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FISIOTERAPIA NA SAUDE -—\. MENTAL Manuela Carla de Souza Lima Daltro Viviane Valéria de Caldas Guedes Garcia FISIOTERAPIA NA SAUDE MENTAL Manuela Carla de Souza Lima Daltro | Viviane Valéria de Caldas Guedes Garcia ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderé ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou meios (eletrnico ‘cu mecénico, incluindo fotocépia e gravagdo) ou arquivada em cualquer sistema ou banco de dados sem permisstio escrita das autoras. Autoras Organizadoras Manuela Caria de Souza Lima Daltro Viviane Valéria de Caldas Guedes Garcia Editor Carlos Bezerra de Lima Diagramagéo Adjone de Oliveira Gomes Revisao Edingia Ferri FICHA CATOLAGRAFICA, Dados de acordo com AACR2, CDU e CUTTER: Biblioteca Central - FIP Daltro, Manuela Carla de Souza Lima. (D152 FISIOTERAPIA NA SAUDE MENTAL/ Manuela Carla de Souza Lima Daltro; Viviane Valeria de Caldas Guedes Garcia Patos, PB: FIP, 2016. 180 fs. ISBN: 978-85-68196-06-9 1. Fisioterapia. 2. Satide Mental. 3. Qualidade de Vida, |. Titulo Il. Carlos Bezerra de Lima (Colaborader) FIB/BC. CDU:615.8 Francisco das Chagas Leite, Bibliotecario. CRB-15/0076 APRESENTACAO Este livro foi elaborado no intuito de proporcionar uma melhor compreensdo sobre a atuagao do fisioterapeuta no ambito da satide mental, visando preencher uma lacuna na escassa literatura disponivel sobre o tema. O contetido resulta da colaboragao de conhecimentos e experiéncias de profissionais de diferentes areas; entre eles, isioterapeutas, médicos, assistentes sociais, socidlogos, terapeutas ocupacionais, psicélogos, fonoaudidlogos, biomédicos, enfetmeiros e nutricionistas, bem como de docentes do Nucleo de Satide Coletiva e de docentes e alunos do Projeto LoucaMente Fisio, do curso de Bacharelado em Fisioterapia das Faculdades Integradas de Patos. E muito interessante conhecer a produgao de um grupo novo de profissionais, professores @ pesquisadores em fisioterapia, apresentando sua contribuigo para a érea de Sade Mental, como temos a oportunidade de encontrar neste lve. Os transtomos mentais constituem um importante problema de saiide publica - as abordagens tradicionais do mais nfase aos indices de mortalidade, deixando em segundo plano a morbidade ¢ 08 anos vividos com incapacitagao. Seja no contexto de vida individual ou da coletividade, o estigma e a exclustio dos portadores em suas comunidades, bem como servigos e recursos limitados, tornam a vida dessas pessoas e de suas familias muito dificil Em muitos patses, ha décadas se vem buscando incentivar © atendimento a esse segmento em outras modalidades de servigos, que nao os hospitalares, investindo no treinamento ena ualficagao dos profissionais de sade para suprir esta demanda. Nocaso do Brasil, cesde o final dos.anos 1970, desenvolveu- se 0 Movimento da Reforma Psiquiatrica ©, consequentemente, @ organizaggo dos trabalhadores de satide dessas areas, no sentido de identificar e de reforcar o atendimento dos transtornos mais comuns nos servigos de atengao priméria, bem como os mais severos e persistenies tipos de servigos, a exemplo dos Centros de Atencao Psicossocial (CAPS). Estes se multiplicaram 0 logo dos anos 1990 - em muitos municipios, inspirados na Psicoterapia institucional francesa -, além dos Nacleos de Atengao Psicossocial - para apoio matricial das equipes profissionais inspirados na Psiquiatria Democratica Italiana, na perspectiva de praticas psicossociais reabiltadoras. A inclusao de usuarios familiares, por meio de associagSes, introduziu a participagao © 0 Controle social nos servigos e na formulagao das politicas - como Preconiza o Sistema Unico de Saide (SUS), referendado na ‘Constituic&o Federal de 1988 - e, posteriormente, na reformulago das constituigbes estaduais © municipais pelo Pals. Por outro lado, 0 pincipio da integralidade da atengdo, que também orientou o SUS, vam sendo contemplado pela concepcao de reablitacao psicossocal, que procura ressaltar 0s recursos individuais do usuario, de sua familia, do contexto dos servigos, dos diferentes profissionais que nele atuam, @ do contexto social ‘em que estao inseridos, usuarios, familias e servigos. Atualmente, s80 quase 1.500 servigos desse tipo em todo © Pais, considerando-se a orientagao do Ministério da Saude de um CAPS por 100.000 habitantes, classificados em diferentes modalidades, de acordo com o volume de populago abrangida, as afividades desenvolvidas ¢ os recursos humanos (Portaria 336/202 do Ministério da Sade): CAPS |, CAPS lI, CAPS Ill, CAPS Infanti, CAPS Alcool e Drogas. Em todos, esté previsto um psiquiatra, No CAPS Infantil, acrescenta-se equipe mais um neurologista ou pediatra, e no CAPS Alcool e Drogas, mais um médico clinico. Além disso, ‘onta-se com a presenga de um enfermeiro e de mais trés a cinco profissionais de nivel superior (sem especificar a profissao) © outros ttés a cito profissionais de nivel médio. Todos devem prestar um atendimento diario, exceto o CAPS Il, que deve funcionar 24 horas ‘© contar com até cinco leltos de repouso e/ou observagso. Em 2008, 0 estado da Paraiba contava com 58 CAPS nas varias modalidades, com uma estimativa de 1,12 servigos por 100.000 habitantes, pela area técnica de satide mental do Ministério da Saude. Nesse contexto, resta especificar melhor a distribuig&o Fo territorio e a relacao modalidade versus populagdo, o.que pode ‘velar uma cobertura muito boa no total, mas desigual. Esse cenério nos leva a levantar algumas questées sobre a ‘cuantidade de recursos humanos versus demanda real. Se o quadro esta completo, quais profissionais de nivel superior 0 integram? ‘Além de médicos e enfermeiros, qual o preparo desses profissionais Fara as fungdes que devem exercer em um equipamento de sade desse tipo? E como atuam em uma equipe de atendimento? O livro esta dividido em 12 capitulos. © primeiro discute as Novas préticas no campo da atengao psicossocial e 0 segundo trata o significado das politicas de satide para a democracia. Dai em diante, seguem nove artigos referentes as diversas contibuigdes «a fisioterapia para a area de satide mental - na ateng&o primaria; @ Psicomotricidade; a Linguagem Corporal; os efeitos dos Psicotrépicos no sistema nervoso central; sob as abordagens no Transtorno do Espectro Autista (TEA), no transtomo de déficit de ‘atengaolhiperatividade; na depresséo; nos transtomos alimentares © na percepcao corporal de usuarios de drogas. E, finalmente, 0 Ltimo capitulo se refere a uma experiéncia de extensao destinada 0 acompanhamento de cuidadores de criangas e de adolescentes com transtornos mentais. Acontribuigdo deste livro se reveste de grande importancia 208 profissionais @ docentes de fisioterapia, © estende-se a especialistas de outras profssdes que participam da area da satide ‘como um todo, @ da satide mental, em particular. Vale destacar que a efetividade das propostas em areas como a da saiide depende, fem grande parte, dos recursos humanos que atuam nos servigos de atengao direta, ‘© grande desafic aqui esté em, muitas vezes, nos depararmos com profissionais formados na légica do atendimento individual, fragmentado, hospitalar, com pouca preocupacao ou até mesmo com dificuldade para o trabalho em equipe. Esta deficiéncia também pode ser notada no que se refere a integralidade da atengao, na partcipacdo da familia e da comunidade, bem como ‘com a participagio de outras instituigbes que convivern no mesmo territério ou na area de ebrangéncia do servigo em que estéo inseridos - educagao, assis‘éncia social, esporte e lazer, incluso e no desenvolvimento de novas sociabilidades. Parabéns a esse grupo que tem a ousadia de abordar tantas questées priortérias para os usuarios dos servigos de sade ‘mental, especialmente nos CAPS. Regina Maria Giffoni Marsiglia © DOIDO TA SOLTO, TEM CUIDADO! (PRA ELE) ‘Aqui a luz que vale € a do sol. Oar é ambiente e o cheiro nem sempre agrada Trocamos 0 consultério pelas ruas e cémodos das casas A realidade néo € imaginada, é vistal Sendo que as vezes dei! Sendo que as vezes a gente se rasgal \Vejo um homem enclausurado. Segundo a mae: “doido nao pode ficar sotto!” E um homem na cama, com corpo fechado Mais na frente um grupo reunido onde ha dois dias a agua é pinga = Que agua, meu imao? Agente sobe é com balde na cabega! VE minha coluna ‘como té uma desgraca, gtita a lavadeira! Do outro lado, um vel6rio, morreu de bala, devendo pedra, 0 chamavam de noiado Daqui a gente enxerga andarilhos, acumuladores, gente que pouco 6 respeitada E nessa doidice de vida, ganha quem se mantém forte Que faz da desgraga, escada Da loucura, liberdade Pra revelar sem culpa o grito de socorro Mas aqui no estamos s6s, aqui tem ciranda adoidada Pra nunca mais haver manicOmios Pra gente agora sé ter asas E logo puxo uma conversa, oferego um cuidado As vezes sou marinheiro, capitéo As vezes levanto as velas, faco as redes de pesca | As vezes sou barco e de vez em quando preciso ser mar E conosco vio as estradas, as pessoas ‘Sao familias e familias que esperam pra embarcar (Wellington Duarte, fisioterapeuta de equipe NASF) CAPITULO! ‘SAUDE MENTAL: DA ASSISTENCIA PSIQUIATRICA AS NOVAS PRATICAS NO CAMPO DAATENCAO PSICOSSOCIAL ...e.. CAPITULO II ‘SIGNIFICADO DAS POLITICAS. DE PARACONSOLIDACAO DA DEMOCRACIA CAPITULO IIL FISIOTERAPIA E SAUDE MENTAL NA ATENGAO als A SAUDE we nnnnnnsnstnnnnnnnnnnnnnnnnnt nitions 88 CAPITULO IV PSICOMOTRICIDADE: O MOVIMENTO COMO INSTRUMENTO DA FISIOTERAPIA NA SAUDE MENTAL, At CAPITULO V LINGUAGEM CORPORAL CAPITULO VI EFEITOS DOS PSICOTROPICOS NO SISTEMA NERVOSO eee x 75 67 CAPITULO vi ABORDAGEM FISIOTERAPEUTICA NO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA 101 CAPITULO Vill ABORDAGEM FISIOTERAPEUTICA NO TRANSTORNO DE DEFICIT DE ATENGAO/HIPERATIVIDADE 19 CAPITULO Ix ABORDAGEM FISIOTERAEUTICA NA DEPRESSAO ...... 127 CAPITULO x ABORDAGEM, FISIOTERAPEUTICA NOS TRANSTORNOS ALIMENTARES ... ieee t30 CAPITULO XI PERCEPGAO CORPORAL DE USUARIOS DE DROGAS : oe : : 153, CAPITULO Xi PROJETO TERAPEUTICO SINGULAR (PTS): EXPERIENCIA DO. PROJETO DE EXTENSAO DESTINADO AO ACOMPANHAMENTO DE CUIDADORES DE CRIANCAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS MENTAIS sees 163 ‘SAUDE MENTAL: DA ASSISTENCIA PSIQUIATRICA AS NOVAS. PRATICAS NO CAMPO DA ATENGAO PSICOSSOCIAL Mara Cristina Ribeiro Karini Vieira Menezes de Omena 4-INTRODUGAO: As transformagées paradigmaticas ocorridas no campo da ‘sade mental no Brasil, prncipalmente a partir do final dos anos 1970, trazem em seu bojo novos atores, dispositives e tecnologias ‘que visam o cuidado integral, humanizado, com aces territorais comprometido com o resgate da cidadania daqueles que durante ‘anos foram aprisionados nos esquecidos pordes dos antigos manicémios. Para a melhor compreenstio desse proceso, & necesséiio ‘© apontamento de passagens histéricas que propiciaram essas alteragdes e consubstanciaram o surgimento de novos campos € de novas praticas de atencao. Considerado um marco, 1960 6 nomeado como 0 Ano ‘Mundial de Saude Mental, instituindo em muitos paises do Ocidente ‘.aparecimento de reformulagbes da pratica e do campo de atuagao Psiquiatrico, observando-se, inclusive, uma nova denominagéo ara a érea: “Sade Mental’ No Brasil, no entanto, apesar da inclusdo de alguns onceitos importados no discurso nacional, como processo sau doenca ¢ histéria natural da doenca, 0 que se vé na pratica € 0 ‘posto do que ocorre nos paises da Europa e dos Estados Unidos. Enquanto estes buscavam estratégias para a substituicao do modelo asilar - sendo essa meta a principal caractoristica da assisténcia Psiquiatrica nesses paises -, aqui as politicas se voltavam para 8 construggo de um aparaio assistencial fincado na expansao da rede de leitos em hospitais psiquiatricos financiados pelo governo (RIBEIRO, 2014). Com a criagdo, 2m 1966, do Instituto Nacional de Previdéncia Social (INPS), uma politica nacional privatizante foi se aterializando, por meio daqual os recursos, de uma maneira geral, -15- ‘eram transferidos para os hospitais privados, proporcionando, assim, criagao de um numero significativo de empresas hospitalares. Essa mudanga propiciou o aparecimento de mecanismos para uma relativa expansdo da assisténcia psiquidtrica que se ampliaria a0 longo dos anos seguintes quando se evidenciou “a passagem da assisténcia psiquiétrica destinada 208 indigentes, a psiquiatria voltada aos trabalhadores seus dependentes, que se coneretizard na politica de incentive & ampliacao do conveniamento de leltos privados com a Previdéncia Social. Ao lado © & margem se implantaré um numero restrito de ‘ambulatérios que funcionargo como porta de entrada para a captagao de clientes para a nascente indistia 40 feito hospitalar contratado, pois o leito préprio, que em psiquiatria néo chegou a exist, fol oficialmente ‘considerado desvantajoso para a Previdéncia (CERQUEIRA, 1989, p. 189). Essa politica privatizante contrariava as recomendagdes da Organizagao Mundial da Saude (OMS) que. na época, preconizava a concentragao da assisténcia psiquiatrica no nivel ambulatorial (SCARCELLI, 1998). Destarte, até 0 final da década de 1970, a assisténcia Psiquidtrica brasileira era realizada por meio de intemacées hospitalares como nica forma de tratamento para doentes mentais, uma vez que a estrutura manicomial ¢ a oferta de leitos consolidava esse modelo de assisténcia. No entanto, em meados dessa mesma década, em diversos setores da sociedade, teve inicio uma luta pela redemocratizagaio do Pais, que possibilitou manifestagdes e questionamentos que outrora eram reprimidos pelo regime militar. Alguns fatores, como a faléncia dos recursos e a precarizacao do cuidado na rea da sade, Passam a estimular uma intensa mobilizagéo popular, resultando "a participagao politica de trabalhadores da satide, movimentos Sindicais ¢ importantes atores politicos em uma mobilizagao que ficou conhecida como *Reforma Sanitaria", que, posteriormente, Gulminou com a proposigéio a construgo do Sistema Unico de Satide (SUS). Assim, as primeiras iniciativas para a mudanga no campo a Satide Mental nascem impulsionadas por esse contexto de luta Social contra a ditadura miltar e a favor da melhoria da condigzio Ge vida. Surgem dentncias de maus-tratos em varios hospicios do Pals, além das condigdes precarias de trabalho nesses locais -16- Capituto | @ delagdes de fraudes no sistema de financiamento dos leitos conveniados pelo INPS (RIBEIRO, 2014). Alguns setores da sociedade civil passaram a se mobilizar ‘em favor da luta pelos dirsitos dos pacientes, abrindo-se espaco, nos meios universitarios, intelectuais e nas préprias instituigdes psiquidtricas, para novas discusses sobre a loucura. Essa _inquietagao desencadeadora, que passou a questionar a condigao de tratamento dirigida’ as pessoas com a ‘experiéncia de sofrimento mental que se encontravam internadas ‘por longos periodos nos antigos manicémios, ficou conhecida como ‘Movimento de Reforma Psiquiatrica, Como uma forma de organizagao dos eventos resultantes desse movimento, 6 possivel apontar trés periodos distintos: Primeiro periodo - critica ao modelo hospitalocéntrico; - Segundo periodo - a implantacao da rede de atencéo Psicossocial e a consolidacéo do nove modelo; - Terceiro periodo -a Rede de Atengao Psicossocial (RAPS) ‘como politica piblica. 2-ACRITICA AO MODELO HOSPITALOCENTRICO ‘As primeiras proposigbes do movimento da Reforma Psiquiatrica Brasileira tinhem como principal objetivo a superagao da pratica © dos pressupostos teéricos da instituigao psiquiatrica tradicional (AMARANTE, 2015), No ano de 1978, observam-se dois eventos que ficam conhecidos como marcos dsparadores: Actise da Diviséo Nacional de Satide Mental (DINSAM), desencadeada a partir de denuincias de médicos e residentes sobre 8 precdrias condigées des hospitais psiquiatricos do Ministério da Satide, seguida da demisséo destes como resposta, ¢ da corréncia, a partir disso, da primeira greve no setor publico no Pais apés a instalacao do Regime Militar. ~ A constituiggo do Movimento dos Trabalhadores em Satide Mental (MTSM), primeiro movimento em satide que reuniu ‘rabalhadores da Area, associages de classes e entidades, além de setores mais ampios da sociedade, que se propunham a organizar debates e criar propostas de transformagao da assisténcia Psiquidtrica, Outro marco importante, em um periodo subsecutivo, foi a Fealizagao da | Conferéncia Nacional de Saiide Mental, em 1987, ‘que aconteceu como desdobramento da 8* Conferéncia Nacional de -17- Capituto t ‘Satide, ocorrida no ano anterior. Seu maior destaque foi o de trazer para a discussao dos trabalhadores a necessidade de superagao do modelo assistencial centrado na internacao hospitalar (BRASIL, 1988), Nos anos seguintes a sua criagdo ¢ organizagéo, o MTSM liderou varios eventos que culminaram com o ingresso de outros atores no proceso de reforma, como as universidades, os usuérios, seus familiares ¢ parte da populagao.e, em anos posteriores, resultou na reivindicagao mais intensa por uma sociedade sem manicémios na ctiagao do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MILA), no II Congreso Nacional do MTSM, ocorrido na cidade de Bauru/SP, no ano de 1987 (AMARANTE, 1995; LOBOSQUE, 2001; TENORIO, 2002) Ainscrigao da proposta do SUS na Carta Constitucional de 1988 e @ articulagao de varios profissionais na Luta Antimanicomial, ‘apés a realizagao do Congresso de Bauru, promoveram importantes mudangas no campo da Saude Mental, caracterizadas pela produgao de novas experiéncias de intervencdo (AMARANTE; TORRES, 2001) Como exemplo disso, temos a inauguragao, em 1987, do primeiro Centro de Atengéo Psicossociel (CAPS) na cidade de So Paulo - 0 CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira -, um servigo alternativo de assisténcia, ensino © pesquisa, inserido na rede iiblica de atengao & satide mental e destinado ao atendimento de pessoas com historia de sofrimento mental grave (GOLDBERG, 1996) Em 1989, no municipio de Santos, entra em cena outro dispositivo substitutivo ac hospital psiquidtrico -o Nucleo de Atengao Psicossocial (NAPS) -, servigo territorial, com funcionamento 24 horas por dia, caracterizado por portas abertas para todas as demandas de satide mental, atendendo prontamente, inclusive, as situag6es de crise (KODA, 2002). Nesse mesmo ano, 0 deputado Paulo Delgado, do Partido dos Trabalhadores (PT) de Minas Gerais, apresentou um Projeto de Lei que impedia a construgao ou contratagao de novos hospitais Psiquidtricos pelo poder publico, previa o redirecionamento dos Fecursos publicos para a criagao de servicos de atendimento nao ‘manicomials, obrigava.a comunicagao das internagBes compulsérias & autoridade judiciéria, entre outras medidas (TENORIO, 2002: LUZIO, YASSUI, 2010). Esse projeto ficou tramitando durante 12 anosno Congresso Nacional, e apenas em 2001, durante as comemoragdes do Dia Mundial da Satie, cujo tema foi Sadide Mental: Cuidar sim. Excluir -18- 1nGo, foi aprovado o seu substitutivo, 3 -AIMPLANTAGAO DA REDE DE ATENGAO PSICOSSOCIAL E ACONSOLIDACAO DO NOVO MODELO. As intervengdes acima indicadas © outras mais, que despontaram em varias partes do Pais com repercussao nacional, demonstraram de forma inequivoca a possibilidade de construgao de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquidtrico (BRASIL, 2005). All Conferéncia Nacional de Satide Mental, ocorrida em 1992, aprofundou as criticas ao modelo hospitalar, que se mantinha ainda hegeménico, e apresentou um novo modelo assistencial fundamentado nos conceites de atenodo integral e de cidadania (BRASIL, 1994), Nesse contexto, foi priorizada a criagéo de normativas que dessem sustentagdo as propostas de mudangas. A Portaria 224/92, do Ministério da Saiide (BRASIL, 2004), regulamentou © funcionamento de todos os servigos de saiide mental dando legitimidade e legalidade a essas experiéncias inovadoras © possibiltou que elas fossem financiadas pelo SUS. O projeto de Lei apresentado em 1989, citado acima, teve ‘seu texto final alterado do seu anterior e originou a Lei 10.216, de 6 do abril de 2001 (BRASIL, 2004A), também conhecida como L da Reforma Psiquiatrica. Importante ressaltar que, mesmo sendo considerada por alguns como uma lei progressista (TENORIO, 2002), 8 julgada por outros como um texto timido, se comparado ao primeiro, por ainda manter a estrutura hospitalar existente, apenas Tegulando as intemagées psiquidtricas e acenando para uma roposta de mudangas no modelo assistencial (LUZIO; YASSUI, 2010), Com 0 fervor de sua promulgacao, foi convocada a II ‘Conferéncia Nacional de Satde Mental, ocorridaemdezembrodesse mesmo ano. Diferente das conferéncias ocorridas anteriormente, esta é marcada por ampla participagéo dos movimentos sociais, de usuarios e de seus familares. Outras normativas passam a dar Suporte a construgao de uma rede substitutiva, possibiitando a implantacao e a sustentagdode um modelo de atenc&o psicossocial Em 2002, a Portaria 336 adota o CAPS como novo modelo de atencao e define modalidades diferentes, segundo porte e complexidade desses servigos em seus territorios (CAPS |, CAPS |, CAPS Il, CAPSad, CAPSi); @ Portaria 626 cria mecanismos de -19- seu financiamento; @ Portaria 189 insere novos procedimentos ‘ambulatoriais, ampliando 0 financiamento dos novos servigos; @ @ Lei 10.708, de 2003, conhecida como Lei do Programa De Volta Para Casa, impulsiona 0 processo de desinstitucionalizagao, ao conceder auxilio-reabiltagao psicossocial e incluso em programas cextra-hospitalares aos pacientes com histéria de longa permanéncla em hospitais psiquidtricos (BRASIL, 2004). ‘Com a publicagao da Portaria GM 1.935, de 2004 - que estabelece incentivo financeiro para a implantagao dos CAPS -, @ a sua substituta GM 245, de 2005, que aprimora este incentive © 0 amplia, péde-se verificar um aumento significative dos CAPS, principalmente nos municipios de menor porte, contribuindo para & interiorizagdo da assisténcia extra-hospitalar (BRASIL, 2011) Atualmente, a rede de atencao em Satide Mental pode ser composta por setores da atengao basica, como as Unidades Basicas de Sade, as equipes de satide da familia e 0s Nucleos de ‘Apoio & Satide da Familia (NASF); por setores ligados aos servigos especializados, como os CAPS, os ambulatérios de satide mental © 0s hospitais-dia ¢ os Centros de Convivéncia e Cultura; além de servigos de urgéncia e de emergéncia psiquiatrica, lellos ou unidades em hospital gerale as residéncias terapéuticas (RIBEIRO, 2014. [Nos tltimos anos, essa rede tem sido ampliada por se articular com outros servigos @ setores das mais diversas areas, com 0 objetivo de dar respostas globais as necessidades de (re) insergao de seus usuérios. Dessa forma, tem sido reforpada @ necessidade de realizar agdes intersetoriais nas areas de Educagao, de Assisténcia Social e de Justiga, bem como fortalecer © desenvolvimento de cooperativas sociais ¢ de projetos de incluso (Sus, 2010). Em junho de 2010, aconteceu a IV Conferéncia Nacional de Satide Mental, que teve, pela primeira vez, uma convocagso intersetorial, contando com a participagso ‘de usuarios, de trabalhadores @ de gestores da saiide © de outros setores. Também se manifestou contréria as propostas de privatizagao € de terceirizagao de servigos, além de reafirmar a necessidade da Presenca e da partcipagdo ativa dos usuarios da rede de servigos substitutivos (SUS, 2010). © modelo de satide mental, portanto, na atual conjuntura, amplia 0 seu campo de cuidado, fentendendo-o como campo complexo, ‘mutidimensional, interdisciplinar, interprofissional -20 Capito! @ interseforia. Campo que deve continuaments se articular com os campos dos direitos socials, da educagde, do trabalho, da justica, da assisténcia social, d3 cultura, do lazer, da economia soliséria, entre outos (RIBEIRO, 2014). Logo, @ preciso compreendé-lo nao como um modelo ou sistema fechado, mas, sim, como um processo social complexo que ‘se constitui enquanto entrelagamento de dimensées simulténeas, que orase alimentam, ora séo confltantes; que produzem pulsacées, paradoxos, contradig6es, consensos, tensdes (AMARANTE, 2007), Destarte, a discussdo do que & e de como construir ‘modelos de culdado em sade mental se mantém atual, necesséria, turgente e pertence a todos que tém como prioridade a abordagem Gtica do problema da sade mental, a saber: os gestores - que ‘propsem polticas e criam possibilidades de mudangas e servicos ‘comprometidos com a concretizacao de modelos substitutivos aos hospitais psiquidtricos; os profissionais - que organizam o cuidado; (98 usudrios e familiares - que recebem o culdado e dele neces: @ Universidade - que forma, ensina e propde teorias sobre o ‘cuidado: e, por titimo, mas nao menos importante, a comunidade = que deve se mobilizar em favor dessas mudangas na garantia de vidas coletivas mais solidérias, inclusivas e éticas. 4 - A REDE DE ATENGAO PSICOSSOCIAL (RAPS) COMO POLITICA PUBLICA Recentemente, com a publicagao da Portaria n® 3.08/11 @ sua republicagtio em 2013, 0 SUS propde a organizagao da Rede de Atengdo Psicossocial (RAPS) integrada, articulada e efetiva, composta por diversos pontos de atencéo. Esta rede ‘considera as especificidades loco-regionais e prioriza os servicos ‘com base comunitaria, orientados pela logica do cuidado centrado nas necessidades das pessoas. Assim, define como principais, ‘Componentes da assisténcia a Atencao Basica em Saiide, aAtencao Psicossocial Estratégica, a Atencao de Urgéncia e Emergéncia, a ‘Atencao Residencial de Cardter Transitério, aAtenco Hospitalar, as Estratégias de Desinstitucionalizagao e a Reabiltagao Psicossocial. ‘© modelo de atencdo 4 saide organizado em Redes de Atengao Saude (RAS) favorece uma forma de garantir a Integralidade do cuidado em sade, onde a Atengao Primaria & Satide (APS) é priorizada e exerce 0 papel de ordenadora da RAS. -21- Em seu desenho, a RAPS também tem como principal e preferencial porta de entrada @APS, que, no Brasil, édesempenhada pela Estratégia de Saiide da Familia (ESF) da Politica Nacional de ‘tengo Bésica (PNAB), corroborando com a superagao do modelo asilar € a garantia do cuidado em servigos de base territorial e em liberdade, E na l6gica do cuidado no excludente, do combate aos estigmas e aos preconceitos e da garantia da diversificagao do cuidado nos diferentes pontos da Rede, que a RAPS se faz necessaria, garantindo a autonomia e 0 acesso aos servicos, AESF, como referéncia e primeiro contato no cuidado em sade mental, contribui para a deteccao e a assisténcia precoce s pessoas em sofrimento psiquico, para a insercéo desses sujeitos na comunidade, como também na produgao de mudancas ‘na cultura. Desta forma, se faz necessario que os profissionais da satide centrem o seu fazer na singularidade dos sujeitos, em Seus modos de viver individual e coletivamente, 0 que Campos e Bedrikow (2015) chamam de Clinica Ampliada e Compartilhada, ois se interessa pelo sujeito e pelo contexto, sem desprezar a doenca, e convida 0 sujeito a participar do exercicio da clinica. Quando a Atengao Priméria nao cumpre com 0 seu Papel frente @ demanda de satide mental, ndo acolhendo e se responsabilizando por essa clientela, acaba por afastar 0 usuario, Jirecionando-o para os hospitais psiquidtricos ou para os servigos Substitutivos, que continuam a representar, em muitos casos, 0 lugar social da doenga mental, o espago da loucura (COSTA et al., 2012), Para _o funcionamento da RAPS, é preconizado nas diretizes, entre outras, a garantia do cuidado integral © a assisténcia multiprofssional, sob a légica interdisciplinar com atengo humanizada e centrada nas necessidades das pessoas, ‘com participagao e controle social dos usuarios e de seus familiares. Para tanto, espera-se um perfil de competéncia de profissionais, Que, para Lancetti e Amarante (2014), devem contribuir para uma clinica implicada com a lierdade e com uma maneira de viver @ de @xistrorientada para a autonomia e comprometida com a vida, Fundamental para a implantacao da RAPS 6, também, 0 gnvolvimento @ o compromisso dos gestores, em que competem as Socretarias Estaduais de Satide (SES) ¢ as Secretarias Municipals Ge Sade (SMS) o apoio a implementagao, o financiamento, a Contratualizagao com os pontos de atengto a satide sob cada Sestéo, @ coordenagao do Grupo Condutor (Estadual! Municipal) da RAPS, o monitoramento e a avaliagao, de forma regionalizada -22- Capituto | (BRASIL, 2015). (© planejamento da RAPS @ potencializado quando ha © envolvimento dos diversos atores (gestores, trabalhadores e usuérios), que vao trabalhar sob uma dinamica complexe e diversificada, considerando a visio e o entendimento de todos. Este deve ser um processo dinamico, debrugado sobre a realidade local, problematizando-a e respeitando os desejos e singularidades, levando, assim, ao repensar de praticas em busca cde melhorias, aos pactos ¢ fluxos firmados para faciitar as agdes ‘em rede e, consequentemente, a oferta de culdados humanizados, cconscientes, de escuta quelificada e emancipatérios dos sujeitos coletivos. REFERENCIAS AMARANTE, P. (Coord.). Loucos pela vida a trajetéria da reforma psiquidtrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiooruz, 1995. Satide mentale atengao psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. Teoria e critica em satide mental: textos selecionados. ‘S80 Paulo: Zagodoni, 2018 AMARANTE, P. D. C.; TORRES, E. H. G. A constituigao de novas: praticas no campo da atengo psicossocial: andlise de dois projetos: pioneiros na Reforma Psiquiatrica no Brasil. Saude em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, 2001 BRASIL. A Atengdo Priméria e as Redes de Atencdo Satide. 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