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LIVRO DIGITAL
A luta de classes é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais nada existe
de refinado e espiritual. (ps. 158-159)
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele foi
efetivamente”. É muito mais apropriar-se de uma recordação que brilha num
momento de perigo. Cabe ao materialismo histórico reter firmemente a imagem do
passado tal como ela se impõe, sem que ele o saiba, ao sujeito histórico no momento
de perigo. (ps. 159-160)
Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participam desse cortejo triunfal
em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este
cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso. Esses despojos
são aquilo que se define como bens culturais. (...) como não estremecer de terror
quando se pensa na sua origem? Eles não nasceram apenas do esforço de grandes
gênios que os criaram, mas ao mesmo tempo da anônima corveia imposta aos
contemporâneos desses gênios. Não há um documento da cultura que não seja
também documento de barbárie. (p. 161)
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LIVRO FÍSICO
(...) a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro
nunca mais terá para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe
de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de
procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a
realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se
aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que
podemos descobri-lo, olhando para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma
que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.
Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em
grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em
que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude através dos seus recursos
auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico,
como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (p. 94)
A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição ao ar
livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar tão retirado
quanto possível, onde nada pudesse perturbar a concentração necessária ao trabalho.
(p. 96)
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(...) o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e
temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que esteja.
Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte,
ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora
participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho.
Mas fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão
apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das
coisas, em cada situação, através de sua reprodução. Cada dia fica mais irresistível a
necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou melhor,
na sua reprodução. E cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como
ela nos é oferecida pelos jornais ilustrados e pelas atualidades cinematográficas, e a
imagem. Nesta, a unicidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na
reprodução, a transitoriedade e a reprodutibilidade. Retirar o objeto do seu invólucro,
destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de
captar o “semelhante” no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue
captá-lo até no fenômeno único. (p. 101)
Ilusão da imagem
Com efeito, diz Brecht, a situação “se complica pelo fato de que menos que nunca a
simples reprodução da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. Uma
fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre essas instituições. A
verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As relações humanas,
reificadas – numa fábrica, por exemplo -, não mais se manifestam. É preciso, pois,
construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado”. O mérito dos surrealistas é o de
ter preparado o caminho para essa construção fotográfica. (p. 106)
(...) por um lado devemos exigir que o autor siga a tendência correta, e por outro lado
temos direito de exigir que sua produção seja de boa qualidade. (...) Podemos dizer
que uma obra caracterizada pela tendência justa não precisa ter qualquer outra
qualidade. Podemos também decretar que uma obra caracterizada pela tendência
justa deve ter necessariamente todas as outras qualidades. (p. 121)
Pretendo mostrar-vos que a tendência de uma obra literária só pode ser correta do
ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. (p. 121)
(...) a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque
inclui sua tendência literária. (p. 121)
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Em vez de perguntar: como se vincula uma obra com as relações de produção da
época? É compatível com elas, e, portanto, reacionária, ou visa sua transformação, e
portanto é revolucionária? – em vez dessa pergunta, ou pelo menos antes dela,
gostaria de sugerir-vos outra. Antes, pois, de perguntar como uma obra literária se
situa no tocante às relações de produção da época, gostaria de perguntar: como ela se
situa dentro dessas relações? Essa pergunta visa imediatamente à função exercida pela
obra no interior das relações literárias de produção de uma época. Em outras palavras,
ela visa de modo imediato à técnica literária das obras. (p. 122)
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possível sem a cooperação da palavra. Somente ela, como diz Eisler, pode transformar
um concerto num comício político. (p. 130)
A arte para Benjamin busca aniquilar com a ilusão, à medida que seu objetivo
primordial é a consciência.
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por
discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente
por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica
da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história
intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com
intensidade crescente. (p. 166)
(...) enquanto o autêntico preserva toda a sua autoridade com relação à reprodução
manual, em geral considerada uma falsificação, o mesmo não ocorre no que diz
respeito à reprodução técnica, e isso por duas razões. Em primeiro lugar,
relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução
manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original,
acessíveis à objetiva – ajustável e capaz de selecionar arbitrariamente o seu ângulo de
observação -, mas não acessíveis ao olhar humano. Ela pode, também, graças a
procedimentos como a ampliação ou a câmera lenta, fixar imagens que fogem
inteiramente à ótica natural. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode a cópia do
original em ações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente,
aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma de fotografia, seja do disco. A catedral
abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado
numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto. (p. 168)
Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intacto o conteúdo da obra de arte,
elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fenômeno não
seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem, que
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aparece num filme aos olhos do espectador, ele afeta a obra de arte num núcleo
especialmente sensível que não existe num objeto da natureza: sua autenticidade. (p.
168)
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto
possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais
nítida a diferença entre a reprodução como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas
e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade
se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a
repetibilidade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de
uma forma de percepção cuja capacidade de captar o “semelhante no mundo” é tão
aguda, que graças a reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único. Assim
se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a
importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as
massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o
pensamento quanto para a intuição. (p. 170)
(...) o valor único da obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico,
por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo
nas formas mais profanas do culto do Belo. Essas formas profanas do culto do Belo,
surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos, deixaram manifesto esse
fundamento quando sofreram seu primeiro abalo grave. Com efeito, quando o
advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a
fotografia, contemporânea do início do socialismo – levou a arte a pressentir a
proximidade de uma crise, que só fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu
ao perigo iminente com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da
arte. Dela resultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que
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não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva.
(p. 171)
(...) com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa pela primeira vez na
história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte
reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser
reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade de
cópias; a questão da autenticidade das cópias não tem nenhum sentido. Mas, no
momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística,
toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a
fundar-se em outra práxis: a política. (ps. 171-172)
Os dois polos são o valor de culto da obra e seu valor de exposição. A produção
artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é
que elas existem, e não que sejam vistas. O alce, copado pelo homem paleolítico nas
paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos
olhos de outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de
culto, como tal, quase obriga a manter secretas obras de arte: certas estátuas divinas
somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem
cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais na Idade Média são
invisíveis, do solo para o observador. À medida que as obras de arte se emancipam do
seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas. A exponibilidade
de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma
estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de
um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a
exponibilidade de uma missa, por sua natureza, não era talvez menor que a de uma
sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que
a da missa. (p. 173)
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expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos. É o que lhes dá sua beleza melancólica
e incomparável. Porém, quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição
supra pela primeira vez o valor de culto. O mérito inexcedível de Atget é ter
radicalizado esse processo ao fotografar ruas de Paris, desertas de homens, por volta
de 1900. (p. 174)
Para os gregos, cuja arte visava a produção de valores eternos, a mais alta das artes
era a menos perfectível, a escultura, cujas criações se fazem literalmente a partir de
um só bloco. Daí o declínio inevitável da escultura, na era da obra de arte montável. (p.
176)
Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de
saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse sequer a questão
prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da
arte. (p. 176)
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós,
em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais. (p. 197)
Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às de
forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num
ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma
de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (p.
200)
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