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Livro Atleta e o Mito

Book · June 2021

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0 719

1 author:

Kátia Rubio
University of São Paulo
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O atleta e o
mito do herói:
o imaginário esportivo
contemporâneo

1
Katia Rubio

2
Conselho Editorial

Alberto Filipe Araújo - Universidade do Minho, Portugal


Ana Mae Barbosa - Universidade de São Paulo, Brasil
Aquiles Yañez - Universidad del Maule, Chile
Carlos Bernardo Skliar - FLACSO Buenos Aires, Argentina
Cláudia Sperb - Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
Danielle Perin Rocha Pitta - Universidade Federal de Pernambuco
e Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil
Edesmin Wilfrido P. Palacios - Universidade Politecnica Salesiana,
Quito, Ecuador
Ikunori Sumida - Kyoto University, Japan
Ionel Buse - Centre of Studies Mircea Eliade, University of Craiova,
Romania
Jean-Jacques Wunnenberger - Université Jean Moulin de Lyon 3
& Centre de Recherches G. Bachelard sur l’imaginaire et la rationalité
de l’Université de Bourgogne, France
João de Jesus Paes Loureiro - Universidade Federal do Pará,
Belém, Brasil
João Francisco Duarte Junior - Universidade Estadual de Campinas,
Brasil
Jorge Larossa Bondía - Universitat de Barcelona, Spain
Katia Rubio - Universidade de São Paulo, Brasil
Luiz Jean Lauand - Universidade de São Paulo, Brasil
Marcos Ferreira-Santos - Universidade de São Paulo, Brasil
Marian Cao - Universidad Complutense de Madrid, Spain
Patrícia P. Morales - Universidad San Buenaventura, Cali, Colombia
Pilar Peres Camarero - Universidad Autónoma de Madrid, Spain
Regina Machado - Universidade de São Paulo, Brasil
Rogério de Almeida - Universidade de São Paulo, Brasil
Soraia Chung Saura - Universidade de São Paulo, Brasil

3
Katia Rubio

4
katia rubio

O atleta e o
mito do herói:
o imaginário esportivo
contemporâneo

São Paulo, 2021

5
Katia Rubio

2ª- Edição
revista e ampliada
2021

Publisher: Kendi Sakamoto, Ph.D


Assistente editorial: Maria Teresa de Camargo
Diretora literária: Cristine Ramires
Secretária executiva: Renata Mendes
Editoração eletrônica: Marcos C. Nishida
Projeto gráfico da capa: Estúdio Risco

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Rubio, Katia
R896a O atleta e o mito do herói: o imaginário esportivo contemporâneo
/Katia Rubio. - 2. ed. - São Paulo, SP: Laços, 2021.
264 p. : ; 16 x 23 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89694-07-6
1. Mito. 2. Esporte. 3. Atleta. 4. Imaginário. I. Título.
CDD 796
Elaborado por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422

Todos os direitos reservados a autora.


É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida,
copiada, transcrita ou mesmo transmitida por
meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida
sem a permissão, por escrito, dos autores.
Os infratores serão punidos pela Lei nº- 9.610/98.
Képos é um selo da Editora Laços
Impresso no Brasil
Publicado por Editora Laços Ltda.
Rua Serra de Jurea, 767 - cj. 174 - CEP 03323-020 - Tatuapé - SP
Website: www.editoralacos.com.br
E-mail: kendi.editoralacos@gmail.com

6
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas, esse ano eu não morro
(Belchior)

7
Katia Rubio

8
A Hilário Rubio (in memoriam),
Darcy Donadi Rubio e
Toshihiro Rubio Nishida,
cabeça e cauda desse uroboros que me tornei.

A Flávio, Cecilia, Mario, Marcus e Olivia,


minha família por opção.

9
Katia Rubio

Toshihiro, Katia, Seo Hilário, Darcy

10
Sumário

Prólogo à 2ª- edição


O criador de mitos e grifogramas: conto sobre os ‘clássicos’
Rafael Campos Veloso........................................................................... 13

Prefácio à 2ª- edição


O atleta e o mito do herói: as sedes de um devir humano
Neilton Ferreira Júnior............................................................................ 29

Apresentação à 2ª- edição


Katia Rubio............................................................................................. 49

Introdução........................................................................................ 55

CULTURA CONTEMPORÂNEA:
ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO........................................ 63
Moderno, modernismo e modernidade................................................. 64
Pós-moderno, pós-modernismo e pós-modernidade.......................... 71
Cultura contemporânea e comunicação............................................... 79

O IMAGINÁRIO E SUAS ESTRUTURAS............................................... 89


Rumo ao imaginário............................................................................... 91
O imaginário sócio-histórico.................................................................. 93
As estruturas antropológicas do imaginário de Durand........................ 99
O regime diurno da imagem e a estrutura heroica.............................. 102
O regime noturno e as estruturas mística e sintética.......................... 107
A estrutura mística............................................................................... 107
A estrutura sintética..............................................................................111

O MITO, O HERÓI E O ATLETA............................................................115


Mito e mitologia.....................................................................................116
O herói como personagem mítico....................................................... 125
O herói arquetípico.............................................................................. 129
O herói esportivo.................................................................................. 132

11
Katia Rubio

DA GÊNESE AO ESPORTE CONTEMPORÂNEO............................... 143


Origens do esporte.............................................................................. 145
A Grécia e o esporte............................................................................ 148
O esporte na Odisséia......................................................................... 155
O esporte moderno.............................................................................. 158
O Olimpismo - Citius, Altius, Fortius.................................................... 163

CARTOGRAFIAS DO IMAGINÁRIO ESPORTIVO............................... 175


Fase de iniciação................................................................................. 176
Fase de ingresso no esporte............................................................... 176
Fase profissional.................................................................................. 176
Fase de afastamento............................................................................ 176
Fase de recolhimento........................................................................... 177
A. As histórias de vida...................................................................... 178
O tempo na história, a estória do tempo..................................... 182
B. Mitocrítica .................................................................................... 186
C. Histórias de vida no esporte........................................................ 190
C.1. O início da jornada................................................................ 190
Desejo, necessidade, vontade............................................ 193
C.2. A busca do caminho............................................................ 199
O caminho de provas.......................................................... 201
C.3. A aventura do herói.............................................................. 209
Partida e iniciação............................................................... 210
O temido retorno................................................................. 215
C.4. Chegada à ilha da bem-aventurança................................... 220
Da iniciação precoce........................................................... 221
... à longevidade na aventura.............................................. 226
C.5. Regresso e ventura.............................................................. 231
A afirmação da escolha....................................................... 233
A dificuldade como parte do ritual..................................... 238

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................. 243

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................... 251

12
- Pai, o que é um clássico?
Seo Hilário, homem tão sabido
que fez da vida um rito. Não daqueles
cambaleantes em veludos e sedas roxas
encimadas por ornamentos falseados
de dourado opaco, mas da rudeza crua
Prólogo do ordinário de todos nós. Flutuantes
do tempo imemorial, a forma desses
à 2ª
- edição tipos – os sábios – carregam na matéria
ruída do corpo as ruínas para a exegese
das marcas da existência de seu povo.

O
criador Passo depois de passo, comprimem
tudo de nós em si, por isto avançam os
de mitos e tornozelos vagarosamente, apoiando

grifogramas:
sobre os quadris tamanho acúmulo em
dorso pendente. Seo Hilário faz um
tipo de sábio mais esguio que os outros,
conto com estatura imponente e cabelos
sobre os de algodão. Ainda assim, conserva a

“clássicos”1
cadência dos passos com prudência
e das palavras com assertividade. Na
fábrica atendia pelo elevado Larião.
Sua imagem fusionada em forma entre
Rafael a materialidade do corpo avantajado
Campos Veloso e a robustez moral, tornou impossível

Este conto é livremente inspirado nas obras Porque ler os Clássicos - Ítalo Calvino;
1

O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas - Robert M. Pirsig; além de ressoar


aqui e ali o canto de imagens de todos nós.

13
Katia Rubio

a nitidez do motivo de os antigos camaradas empregarem tal


aumentativo. No tardar do desejo, Larião gostava mesmo era de ser
chamado de “Velho Comuna”. A estesia da distensão entre o chão da
fábrica e o trago no botequim, sempre alimentou no espírito o sonho
de uma seara vermelha para o povo brasileiro. Da mesa de jantar –
junto de Dona Darcy e das duas filhas – fez o aparelho afetivo para
a estratégia dialética de ilustrar a historicidade e aceder consciências
sobre a possibilidade de um mundo com justiça social.
Alvorada; eis o primeiro ato! A cena de abertura do rito consiste
em visitar o mundo que criou; a horta nascida em areia de praia. Antes
de prosear dessa feita fantástica, devo dar clareza dos fatos àqueles
que, já de partida, se mexem em descrença. Seo Hilário subiu morada
perto do mar do sul de São Paulo, em Peruíbe. Numa tarde chuvosa,
teve de encerrar a obra mais cedo e aproveitou a sobra de energia para
caminhar até a aldeia de Piaçaguera para ouvir coisas da criação do
mundo. No miolo do pátio, depois de algumas gentilezas e troças com
Zé da Amantikira – um camarada descendente da etnia tupi-guarani
– ouviu coisas interessantes:
- Nosso Iperuype é rio dos tubarões desde muito mais que antes
daquele diabo velho vestido de santo chamar essas bandas de
Tapirema do Peru e encher a moleira do nosso povo de bestagem.
Disso fique certo, e não me venha botar inconstança, tudo qui é
bicho que respira n’água é tubarão!
Noutro dia, na obra, tomou ciência de que o peso em terra
boa para dar nível ao terreno era suficiente apenas para os pés da
casa e de uma edícula onde iria abrigar Vó Maria. Dessa forma,
a área restante do terreno, do primeiro passo a partir do limite do
pavimento hexagonal da rua – muitas cidades do litoral de São Paulo
possuem esses bloquetes por pavimento – até o fundo do quintal,
seria preenchido por um grande nada. Um ‘nadica de nada’ ilhando
a casa e a edícula em algum lugar do terreno. Se o peso da terra era
pouco no terreno, no bolso do ferramenteiro era demasiadamente
pesado para trazer o resto de chão no lombo de um caminhão. Mirou
com tom triste todo aquele imbróglio do vazio, pois pensava que
morada de gente livre não podia ter só parede e cobertura. Tinha
que ter espaço. Um outro tipo de vazio, que deixa o tempo mostrar

14
Prólogo à 2ª- edição

pra gente coisas de entropia. Como uma horta, onde se vê brotar


tudo de nós... Matutou Seo Hilário. Que se pode sentir no tempo do
trabalho a beleza da mudança das cores e dos sabores. Até mesmo
a morte; se não colhido, tudo é tratado de perder o viço, a cor e
o doce, até tombar no chão pra depois se levantar e viver noutro
tempo. Mas como ser livre se num tem nem chão pra nascer, nem
chão pra tombar? - Resmungou pra si, agachado de face para o vazio
até a casa, acariciando com firmeza a cadela Neguinha.
- Pai, por favor, o que é um clássico?
É de costume da gente olhar lá para o fim do mar e esperar
alguma resposta. Uma enunciação de resolução de angústia conflituosa
emergida do tracinho fino que é borda do céu e fim do mar. Sentado
na areia da praia, Seo Hilário volta a acariciar Neguinha – que parece
sorrir –, mas desta vez direciona o afago a contrapelo: - Lá eu sou
João de Barro pra chegar em casa voando? Preciso de terra firme
pra pisar até a casa! - Resmungou. Quando Neguinha foi adotada
quiseram lhe fazer atender por Vitória, mas o negrume do pelo, como
uma madrugada sem lua, não sustentou o primeiro nome. Distraiu-se
do fim do mar perdendo os olhos no ritmo dos pelos da madrugada a
contrapelo. Pelo por pelo. O fininho único aparecia contra a palma da
mão pra novamente juntar e sumir no todo. Por baixo da mão de apoio
sentiu a areia da praia. Enterrou todos os dedos até preencher toda a
palma e desenterrou de lá a lembrança dos passeios na praia junto de
Dona Darcy. Rito que o casal exercia na juventude, principalmente
como forma de escapulir das romarias organizadas pelos primos, e
passear na areia a vida com menos anunciação de pecado e culpa.
A presença de Neguinha e a lembrança desses dias lhe acalmaram a
angústia do problema da terra. Emergiu a mão retesada soltando-a na
superfície, acariciando a areia a contrapelo. Grão por grão. - A areia,
é claro! Levantou-se com espanto e vigor, confundido o espírito de
Neguinha, que saltava e rodopiava em torno de si como fazia todas as
vezes para brincar. - Aqui, onde os tubarões vivem em rio, se juntar na
areia pedaços do mundo que ninguém quer, areia vira terra!
- Pai, está me ouvindo? Preciso saber, o que é um clássico?
Seo Hilário não se furtaria às palavras sobre o tema. A verdade
é que tentava ganhar tempo para uma melhor formulação, escondendo

15
Katia Rubio

os olhos nos rabiscos cruzados de mais um grifograma que construía


por encomenda do Jornal da Cidade de Peruíbe a ser publicado na
próxima edição da coluna Maré Mansa. Larião é tão sabido que não
passa o tempo, faz é o tempo passar do jeito que bem entende. Além
de brotar planta da areia, sabia cruzar as palavras para esconder
trovas, aforismas e ditos de gente famosa. Os rabiscos cruzam por
todos os sentidos da folha branca, nascem e findam por todos os lados.
Escamoteiam, intersecionam, oferecem pistas espaças e se revelam aos
poucos para aqueles mais espertos e habilidosos. No seu rito, resolver
e construir grifogramas era o ato subsequente à inspeção matinal da
horta e das orquídeas que se postavam entre o curto espaço entre a
casa e a edícula. Sebe de orquídeas brancas que delimitava o universo
até Vó Maria. Para o segundo ato acomoda-se num sofá baixo – por
causa da estatura as pernas formam um arco cruzado do assento até o
chão, onde costuma ficar Neguinha – de cor mostarda, madeira tosca
e coberto por alguma renda. Dalí só se levanta ao fim da construção de
um novo grifograma ou por vencer os desafios publicados na Gazeta –
quando é domingo –, ou na Revista Recreativa.
- Minha filha, chamam de clássicos aqueles escritos que gente mais
velha metida a sabida sempre diz que está relendo e nunca, em
verdade, que está lendo de prima. - Disse por detrás dos rabiscos
cruzados, por superfície e com certo desdém arquitetado, tentando
assuntar a suficiência do interesse e da curiosidade da menina.
- Se é coisa de gente mais velha, por que a professora disse que esse
ano temos de escolher um clássico pra ler? E pai, como escolher se
ainda nem sei o que é um clássico?
A réplica da filha deu a Seo Hilário toda a informação que
esperava de sua interlocutora miúda. Não seria nada fácil. E já esperava
por isso. Há pouco tempo a menina nem idade de escolar tinha.
Engenhou pirraçar junto de Dona Darcy e da diretora da escola onde
estudava Silvia – a irmã mais velha – para frequentar à escola antes da
idade e aprender coisas das crianças maiores. Conhecendo a pequena,
sabia que depois da primeira palavra lançada não haveria forma de
retorno ou interrupção. Prevendo a jornada porvir, fechou o caderno,
deixando que o lápis preso às cruzadas interrompidas marcasse em

16
Prólogo à 2ª- edição

relevo um lugar para ser reaberto. Absorto em ansiedade, preservou


a fronte serena, ajeitando-se no sofá para dar melhor acomodação
à sua interlocutora. Em geral, esses tipos sábios se apegam menos à
dialética do que à arte da retórica. Jamais desperdiçam interlocutores
que dispõe de grande atenção e anseio, devem garantir-lhes o conforto
para a melhor escuta.
- Acalma tua angústia para ouvir melhor coisas sobre os clássicos.
Se deixei levar o entendimento se tratar de livros de gente mais
velha isso é só meia verdade. Provavelmente os clássicos da escola
ainda não serão os seus clássicos. Mas, sem eles é quase certo que
não os encontrará. Deverão servir-te de instrumento e guia para
alcançá-los do lado de fora dos muros da escola.
- Clássicos são riqueza para os que conseguem ouvir seu canto.
Mais sorte ainda tem aqueles que arrebatam o corpo porque
ouviram ao ler pela primeira vez. Mas tal beleza só acontece no
tempo certo, nas melhores condições para o gosto...
- Pai, que aqueles livros na mão da professora não são pro meu
tempo soube só de ver o nome! Mas, se na parte de fora livro é tudo
igual, mudando só a cor e o monte de folhas, quero é saber o que
tem lá dentro... Do que são feitos os clássicos? O que tem lá dentro
de tão importante, pai?
Não seria nada fácil encontrar as palavras ao tempo da pequena.
Finalmente chegaram ao tema a ser revelado desde o primeiro som
a interromper o cruzamento das palavras no grifograma. Não que a
noção do tema não soubesse, ao contrário, porque domina o ofício de
muito bem saber dessas matérias. Esteve sempre junto delas. Como
não poderia saber que tipo de coisas tem dentro dos clássicos se passou
a vida fazendo coisas delas? Está encurralado justamente porque essas
matérias são coisas que a humanidade sempre buscou, todos sabem
do que se trata, mas ainda não nasceu aquele que consiga explicar sua
forma: a Qualidade; a Liberdade; e o Tempo. O que fazem os clássicos
é condensar essas três matérias no tipo dos livros e na forma das
palavras; espécies de carimbos nas folhas do tempo da humanidade.
- Mas como dizer dessas riquezas e profundezas do corpo velho, no
tempo da alma nova? Questionou-se por dentro.

17
Katia Rubio

Silvia gritou pela irmã de algum cômodo nos fundos e a voz forte
encheu rápido a sala dando algum tempo a Seo Hilário. Sabia que
esse tempo seria só o da espuma das ondas deixadas na areia da praia
e a filha logo voltaria. Como a voz de Silvia ainda rodopiava pelas
paredes da sala, lembrou-se de sua vocação: - Essa menina sempre teve
tato pra ser professora... Pensou baixinho entre os lábios. Distraiu-
se com a doçura da lembrança da filha mais velha conduzindo a sua
mão rude de ferramenteiro sobre os botões e teclas do computador,
tentando ensinar-lhe das tecnologias atuais de que era avesso. Deu por
si novamente com o fato de que a professorinha também é uma alma
nova. Recuperou nas mãos o caderno de grifogramas que escrevia
folheando para trás e para frente num ritmo suficiente para emanar
brisa no rosto. O ritmo das folhas fundia a forma dos grifogramas
em sequência. As linhas cruzadas ganhavam movimento perdendo a
condição de encruzilhadas fixas. Ao deter os olhos só no movimento
viu trovas e aforismas se juntando, e por um instante sentiu calor na
espinha ao notar as matérias da Qualidade, da Liberdade e do Tempo,
cruzando-se em intersecções que escondiam a origem e o fim. - A
imagem! Darei a ela as imagens que cantam as matérias dos clássicos -
Exultou em tom forte, fazendo Neguinha sorrir novamente. - Imagens
das coisas que as palavras passam longe de dar conta!
Os gregos antigos, mesmo depois de abandonar os mitos
como modo de falar das coisas do mundo – em detrimento de outra
ficção, o logos –, ainda suplicavam às imagens os maiores desafios de
entendimento. Entre esses gregos sabichões, um deles, em especial, era
um grande criador de mitos. Num lugar chamado Academia – algo
parecido com o que chamamos de escola atualmente – para explicar
sua ideia de que a Verdade está no mundo que se pode pensar e não no
mundo feito das coisas que a gente sente, disse para quem o seguia, que
havia pessoas acorrentadas numa caverna que pensavam que o mundo
era feito de sombras que se mexiam na parede. Disse ainda que aqueles
que quisessem dominar a si no rumo da verdade, deveriam conduzir
uma carroça puxada por dois cavalos de temperamentos distintos; um,
galopa de alma dócil sobre o pavimento do mundo eterno; o outro,
afeito às coisas da alma concupiscente, tende a puxar as rédeas noutra
direção. - Um artesão das imagens alegorizantes... Admirou-se.

18
Prólogo à 2ª- edição

Em sequência foi tomado pela lembrança dos encontros com Zé da


Amantikira, que sempre contava que seu nome era uma homenagem
que a avó prestava ao deus Tupã, que ergueu a montanha onde nasceu
seu povo. Uma montanha erguida para esconder Amantikir, no intuito
de forçar o sono de Guaraci por detrás das encostas e o retorno da
noite de Jaci. A volta do dia e da noite encimados no sofrimento de
Amantikir, que chorou rios e cascatas por não mais poder ver Guaraci,
fez florescer a vida do povo de antes do Brasil.
Zé da Amantikira sempre dizia que as imagens das lendas
carregam palavras sobre os segredos da gente, que no início se
revelavam com facilidade. Mas no mundo atual nossas igrejas da razão
jogaram fora as chaves de abrir mitos para compreender as coisas.
Mitos são constelações de cultura expressadas nas palavras de todos
os povos. Nelas, os heróis partem para a jornada levantando tudo de
nós na algibeira. Se abrir, verás que está tudo lá, bem juntinho. - Entre
Platão e Zé da Amantikira tem mito vivo por mais de dois milênios.
Acho que pode ser bom para minha filha se eu a fizer abrir a algibeira
de alguns mitos e lá dentro, tudo juntinho, ela encontrar as matérias
dos clássicos.
Resolvido o imbróglio com a irmã, a menina estava de volta.
Saltou sobre o sofá baixo tomando lugar ao lado do pai, deixando
Neguinha alerta pelo movimento brusco. Desta vez estava tão perto
que Seo Hilário pôde sentir a respiração ofegante pela resposta
interrompida. Os olhos estavam ávidos e arregalados; não piscariam
até que visse a resposta. Tinha de ser rápido.
- Minha filha, camarada... - Sempre que escrevia cartas para
as filhas começava assim. Às vezes também usava “amiga” ou
“confidente”.
- As matérias que formam os clássicos você já conhece muito bem
na sua vida de criança. Só não consegue ver porque ainda não
conhece a vida sem essas matérias. Os clássicos têm três coisas que
agora irá saber quais são. Vem comigo até a horta, vamos logo...
Vó Maria está terminando as orações e bem sabemos que virá para
o lanche da tarde, como faz todos os dias.
Seo Hilário tomou altura de pé com as mãos para trás. Atravessou
a soleira com andar tranquilo, como se estivesse imergindo em outro

19
Katia Rubio

mundo. Sumindo aos poucos, sem movimentos bruscos e sem olhar


para trás. A menina quis imitá-lo. Para ela aquilo parecia postura de
quem tem sempre respostas para as coisas. Neguinha, sem ter muito
o que fazer, também foi lá para assuntar o que seria dito. Andou até
um pé de alface que já estava para colher. Pesava mais de dois quilos
e suplicava pela hora de sair, já estava bem apertado naquele canteiro.
Pôs-se de joelhos e com as mãos começou a cavocar a terra em volta
como um arado firme, evocando as minhocas e arejando as palavras.
- Minha filha, o miolo dos clássicos é feito de Qualidade, Liberdade
e Tempo. Como disse, você já as conhece. Quem cria um clássico,
expressa essas matérias na carcunda das palavras. Mas, devo
advertir-te algo da maior importância antes de prosseguir; não
existem palavras que possam explicá-las em nenhuma língua do
mundo. Mas todas as pessoas do mundo são capazes de notá-las
em tudo que fizer presença.
- O mundo antigo dos gregos, por exemplo... Lembra que uma vez
te contei que essa gente foi importante pro jeito que a gente pensa
até hoje? Pois bem, nem eles conseguiam explicar essas matérias
com palavras. Quando eles notavam a Qualidade, chamavam
sempre de areté. Mas ainda é só uma palavra que diziam quando
notavam uma superioridade no espírito daquele que fez algo ou
agiu de determinada maneira. Nossa gente ainda tentou traduzir
e chamar isso de “excelência” ou “virtude”. Mas ainda é coisa
pequena, coisa de tradutor sabido; areté é a Qualidade...
A menina se mantinha imóvel entre o canteiro retangular e
Neguinha, igualmente paralisada. Os olhos ainda não haviam dado
uma piscadela sequer desde que abandonaram a sala, e a testa franzida
gritava em confusão e dúvida. Seo Hilário notou. Arquitetou e esperava
essa tensão. Fez uma seta côncava com as mãos e cavucou novamente.
Moveu bastante terra e arejou as imagens.
- Começarei pela Qualidade... Não que seja maior em importância
do que as outras duas. Em verdade, acho que uma nem existiria sem
a outra. Ainda nem sei se no fim das contas é tudo uma coisa só...
- Se não posso explicar o que são, posso agir como os clássicos,
cantando a sua presença:

20
Prólogo à 2ª- edição

O demiurgo e a horta de areia (Qualidade)


- No início era o tudo. E tudo não era o caos. Ao contrário, era
tudo muito chato. Faltava em tudo a Qualidade. Tudo era uma porção
de areia sem o mínimo relevo e direção, separada do céu somente por
uma borda sem fim, nem começo. Por ali, o demiurgo andava muito
entediado. Sentia falta do imprevisível, do jogo, naquela ordem toda.
- Onde já se viu uma coisa dessa? Esse monte de areia sem desenho,
encostada num céu sem beleza? A ordem estava imposta de tal forma
que se o demiurgo avançasse um passo, a borda sempre avançava na
mesma distância. E não importasse em qual direção; tudo era uma
direção só para o nada sem beleza. - Jamais faria uma coisa feia dessas,
imagina! Certamente é coisa daquele outro lá. Não tem sentido isso
aqui, e do que adianta não ter sentido? Devo dar qualidade às coisas
com minha forma de artífice... O demiurgo caminhou por demais
a não-distância até chegar ao não-lugar onde foram entulhadas as
sobras de coisas do primeiro obrador. Juntou um bocado nos braços
e percorreu todo caminho de volta, enterrando os restos na areia.
Após recobrir o buraco, quebrou pedacinhos do céu torcendo-os
com firmeza para que gotejasse sobre aquele ponto. - Quebrado, o
céu fica mais bonito. Exultou-se. Fez de enterrar restos na areia um
rito. Não existia tempo, nem passado, nem futuro. Sabia que criaria
deuses inferiores, que por sua vez criariam um camarada chamado
Elomar, e que no seu tempo criaria canções de muita inspiração nas
coisas feitas pelo artífice. Uma delas gostava mais que as outras por
versar sobre a arrumação das coisas, achava que tinha qualidade.
Ordinariamente ia enterrando restos na areia no ritmo da arrumação
de Elomar – poeta que ainda nem nascera, mas já existia –; “Futuca a
tuia, pega o catadô, vamo plantar feijão no pó”. Quanto mais restos
enterrava, maiores ficavam os pedaços de céu que precisava torcer...
“Josefina sai cá fora e vem ver, olha os forro ramiado vai chuvê”. A
areia que molhou e misturou ganhou relevo e cor. Brotou de tudo
lá de dentro. Todas as árvores, todos os gostos das frutas e todas as
flores. O pedaço que gostou mesmo foi a horta, diz que brotou uma
alface igual essa aqui... “Mãe Prudença inda num cuieu o ai, o ai
roxo dessa lavora tardã (...) Vai cuiê o ai, o ai da tua avó”. Terminado
aquilo tudo, viu que tinha beleza em todo canto, mas não o suficiente;

21
Katia Rubio

ainda tinha lugar pra ter mais Qualidade. - Qual a serventia de um


fruto que fica no pé pra sempre? Se não botar quem comer eles nunca
serão doces ou azedos. Se um botão de flor fica aberto o tempo todo,
não existe mais a razão de ser do botão. Tenho de dar nas coisas o
gosto de morte! Resolveu que ia misturar uns bichos lá no meio. Os
deuses inferiores ficaram responsáveis por fazer a gente; você e eu,
todo mundo. Já o demiurgo catou um punhado suficiente de terra
– fértil de restos e úmida de céu – e moldou cada bicho do jeitinho
que queria, cada um com sua cor e braveza distintos. Virou um
caos danado de morte e vida; de vida e morte: “Lua nova sussarana
vai passá. Sêda Branca, na passada ela levô. Ponta d´unha, lua fina
risca o céu, a onça prisunha, a cara de réu, o pai do chiquêro a gata
comeu! Foi um trovejo c´ua zagaia só. Foi tanto sangue que dá dó...”
Qualidade! Quando tá na criação, balança a ordem que está posta
em eterno. Não adianta ter no espírito e não dar forma. Muito menos
ter na substância e não se entregar ao trabalho; “Futuca a tuia, pega
o catadô, vamo plantar feijão no pó”.
***
Antes do último verso a menina já havia desmontado a tensão,
agachada sob uma enorme folha de alface que escondia metade do
corpinho, cavucando a terra preta no seu canto do canteiro:
- Cada clássico é um mundo próprio né pai!? Assim, igual esse que
o demiurgo fez e... igual ao do senhor também! Cada artífice pega
coisas da gente toda, mas que ninguém se importa muito e cria
coisas que são importantes o tempo todo... e não só no tempo de
quem criou.
- Sim, minha filha. Os clássicos são universos próprios, expressões
da Qualidade, criados por quem conduziu as palavras. A Qualidade
é o objetivo da arte, porque ela se manifesta entre a experiência e
nós, participando da criação de todas as coisas.
- E como faço para um dia criar belezas igual o demiurgo, ou o
senhor?
- Com liberdade em si mesma...
- Liberdade?

22
Prólogo à 2ª- edição

- Clássicos imitam a serventia da liberdade. Liberdade é mais


uma matéria que todo mundo busca, sabe o que é, e não carece
explicação. A próxima história que vou narrar é da liberdade da
gente, e vai te falar da serventia dos clássicos na nossa vida. Essa
história não é lá coisa tão boa de criança ouvir, mas por nossa
situação vou te contar como aconteceu:

O último cordel (Liberdade)


- Nos idos da grande seca de trinta e oito, lá pelas bandas do
sertão de Pernambuco, o bando de Dadá subia o fogo nas casas, de
preferência com a injustiça lá dentro, assunto que decidiram tratar
aos trâmites da lâmina e da bala. Tudo que era injustiçado se cansou
de esperar, se juntando à Queima Bucho – pai de Dadá, morto em
emboscada armada pelos macacos do tenente Rufino –, e o primeiro
fogo que subiram foi no livro da lei. Era um tempo sem comida pra
gente e pros bichos. Por falta d’água a terra abria sozinha uns buracos
pra comer corpo fraco de bicho e de gente, depois cuspia os ossos pro
sol e uns restos dava pra urubu. Andava com o bando de Queima
Bucho um cabra chamado Professor. Não se engane com esse nome,
era o único que sorria quando ouvia grito dentro do fogo. Também
era o único que conhecia a palavra escrita – fora alfabetizado pela
mãe, que viveu desde pequena na casa grande – motivo de Queima
Bucho ter lhe dado esse nome depois de encontrá-lo numa invasão,
ainda jovem, recitando folhetos de Leandro Gomes de Barros na
feira livre em troca de alguma dignidade. A mãe de Dadá pôs fim
à vida no cangaço no dia do parto. Era sofrimento por demais pra
aguentar, já tinha olhar parado quando Dadá caiu no chão. Ainda
muito cedo a menina era guiada pelo Professor. Queima Bucho
queria que o cabra iniciasse a menina na arte das palavras escritas,
achava que a filha devia saber ler no dia que chegasse justiça na
terra. Dadá aprendeu a letra, a lâmina e a bala até herdar o respeito e
liderança do bando após Queima Bucho ser emboscado pela guarda
de Rufino. O respeito do bando vinha tanto pela astúcia, quanto pelo
vigor da maldade a quem achasse que merecia. A cabroeira via em
Dadá a flor de mandacaru – nascida na secura, de dentro do gibão de
couro espinhado. Tenente Rufino tinha fixação no bando, tomava a
vida por isso. Sujeito arengueiro e covarde, sorria quando atirava nas
23
Katia Rubio

costas. Seguia a tempos o rastro de Dadá, mas o bando – guiado pela


astuta – sempre escorregava na capoeira. Certa vez, um dos homens
de Rufino de passagem pela região, viu Pilão Deitado – braço direito
de Dadá – pegar água num açude afastado, e correu para dar com
a língua nos dentes da posição do bando. Sabendo da proximidade
do bando, Rufino olhou pro céu e viu que não tinha lua: - Não tem
luz na capoeira, e açude aqui só tem um... Hoje vai ser noite de lua
de sangue! Armou a arapuca sem cavalo e sem barulho. Os homens
de Rufino começaram a cercar o açude arrastando o peito como
cachorros do mato. Nesse dia, Novo Tempo – o melhor caçador do
bando – velava a noite ao lado fogo. Novo Tempo era cego, não fazia
diferença alguma ter ou não luz. Sabia que era dia ou noite porque as
coisas mudavam de cheiro e faziam outros sons. Até que um cheiro
diferente invadiu a noite escura pra acordar o bando: - Sinto cheiro
dos macacos, estão pertos de saltar! Dadá logo abriu o olho esquerdo
que dormia – o direito ficava sempre acordado –, sacudiu o Zé Sereno
e indicou o rumo da capoeira pra esconder: Vão vocês, eu fico aqui!
Os macacos estão aqui, não dá tempo de fugir, fico aqui pra atrasar
esse diabo do Rufino! Só deu tempo de o bando escorregar na
capoeira quando Rufino saltou da noite escura subindo a carabina
na altura do peito de Dadá: - Acabou teu tempo de matança, catraia
disgramada! Gritou Rufino. - Assunte bem, estou velho e não sou
dado à toda maldade. Cacei teu pai e agora vou aqui por fim à
tua linha; deixo que diga agora mesmo se há vontade derradeira!
Decretou, enroscando o dedo no gatilho. - Pois bem, nessa vida
curta eu li tudo que é folheto feito por Leandro, menos um deles.
Guardo aqui na algibeira o “Cachorro dos Mortos”, para o tempo
certo de ler. Não posso levar bala sem cumprir tal determinação...
Toda cabroeira estava tocaiada numa distância que o fogo no chão
iluminava Dadá e Rufino. Pilão Deitado, Novo Tempo, Professor,
Zé Sereno, Vaqueiro e Zé Grosso não planejavam agir. Sabiam que a
leitura do folheto era tramoia de Dadá pra distrair o carrasco e sumir
na noite. - Que serventia há em ler versos de folheto antes de morrer,
diacho!? Resmungou Rufino. - Oras, a resposta que procura está
mesmo na pergunta, velho burro... Desconfiado do pedido inusitado,
Rufino concedeu: - Já cacei muito bicho nesse mato e nunca vi um

24
Prólogo à 2ª- edição

que era letrado! Se tiver me engabolando é agora que te mato! Dadá


aproximou-se do fogo para melhor iluminar o folheto. Decidiu ler
em voz alta menos pra acalmar Rufino do que para toda cabroeira
ouvir – sabia que estavam todos ali; Rufino também. Descansou a
algibeira no chão e aprumou o corpo para o primeiro verso: “Os
nossos antepassados eram muito prevenidos, diziam: Mato tem
olhos, e paredes tem ouvidos. Os crimes são descobertos por mais que
sejam escondidos”. Os versos seguiam em ritmo firme sobrepujando
o tempo da noite. O tempo fez curvas e dobras, fazendo com que a
cabroeira, Rufino e seus macacos, perdessem a vista da situação do
rito de execução. Uma vez dobrado, desdobrou-se nos versos finais:
“Morreu o velho Calar. Ficou também descansado, era um cão,
porém deixou o nome imortalizado. Morreu depois de vingar quem
já o tinha livrado. Leitor, não levantei falso. Escrevi o que se deu,
aquele grande sucesso na Bahia aconteceu, da forma que o velho cão
rolou morto sobre o chão, onde o meu senhor morreu”. O dedo de
Rufino afundou o gatilho e fez clarão na capoeira. O corpo de Dadá
tombou sentado para trás com as costas amparadas no tronco do
umbuzeiro, que nem se mexeu no tempo. Rufino baixou a carabina e
viu de frente seu horror; corpo já sem vida, mas tempo de gente livre.
***
- Os clássicos servem para ser lidos... Comentou resignada.
- Sim! Servem para dar qualidade ao tempo da gente. Clássicos são
monumentos da humanidade em forma escrita. Quando encontrar
os seus clássicos, verás que eles não poderão ser-lhes indiferentes,
por isto darão qualidade à sua forma e ao seu tempo por aqui.
Vai relê-los diversas vezes, e em cada nova leitura eles mudarão
infinitas vezes e sempre descobrirá coisas novas.
- Então, toda a releitura de clássico é também a primeira?
- Sim, e toda primeira leitura é também uma releitura. Nas
páginas dos clássicos tem dobras das memórias de todos nós.
Memórias que a gente viveu e as que a gente não viveu, mas
consegue lembrar. São tempos vivos sempre no presente, por mais
antigos que sejam os escritos.

25
Katia Rubio

- Pai, as histórias que me contou sei que são novas para mim,
ao mesmo tempo sinto já ter ouvido de algum canto... É como
se o demiurgo e Dadá fossem a mesma coisa... E vivessem no
mesmo tempo!
- O que agora sente é a certeza de teu entendimento. Apenas deixei
alguns mitos cantarem sobre as coisas que formam os clássicos.
Pois os mitos e os clássicos vivem num tempo que não se pode
contar no relógio. São pedaços do universo da gente tampados pela
tampa do tempo, e como certa vez disse Juraildes da Cruz – um
sertanejo sabido – “quando a tampa do tempo destampa e o vento
vai, mas a porta do vento é sem tampa e tempo vem, quem tá leve
voa, quem tem pé no chão não cai”.
O passeio na horta de areia fez a manhã juntar com a tarde
interrompendo o rito usual. Seo Hilário desejava permanecer ali, onde
o tempo cronológico não consegue entrar, mas notou que Vó Maria
varria as folhas na calçada possivelmente para ganhar tempo até que
todos se reunissem para o café da tarde. O rito deveria prosseguir.
Retornando para dentro de casa, notou de soslaio que a sombra da
menina se deteve na soleira. Aquele calor – conhecido – avançou pela
espinha até a nuca, fazendo arrepiar os pelos do braço. Sabia bem da
última carta que a filha jogaria na mesa:
- Pai, quais os clássicos vivem nas coisas que acabou de me contar?
- Minha filha, por momento saiba que nenhuma história que fala de
outra história pode dizer melhor da verdade que a outra. Encontre
seus clássicos primeiro, ouça os doutos depois. Até mesmo os
sábios. Deve ficar atenta, tentarão te convencer do contrário
sempre que puderem.
- Agora vá minha filha, vai! Vá destampar a tampa do tempo e criar
o mundo.
Nesse dia Seo Hilário não se juntou aos outros para o café da
tarde. Os mitos que acabara de reviver cantavam-lhe aos ouvidos para
concluir o grifograma interrompido. Acomodou-se no sofá baixo e
sobre o arco das pernas desembainhou o lápis da página abandonada.
Numa trova rabiscou encruzilhada de Qualidade, Liberdade e Tempo.

26
Prólogo à 2ª- edição

Fechou o caderno e viu que a capa tinha o título vazio. Sorriu um dos
cantos da boca, balançando a cabeça assertivamente como se tivesse
acabado de criar o mundo, rabiscando no título: ‘Passa Tempo;
Tempo Passa’.

Primeira a esquerda, ‘a menina’ Katia Rubio, 1975. Sala de aula da turma da


8ª série da Escola Estadual Pasquale Peccicacco.
Fonte: Arquivo pessoal. Fotógrafo desconhecido.

***
Katia Rubio desejou ser atleta olímpica, mas escreveu um clássico.
‘O atleta e o mito do herói’ – produto de sua tese de doutoramento,
lançado em 2001 – mostrou-se um clássico aos interesses dos estudos
socioculturais do esporte e também à uma psicologia social do esporte
embrionária até os dias atuais. Sua trajetória a partir desta obra é
permanentemente marcada pela busca da interpretação das almas dos
atletas, variando apenas o objeto sociocultural nos temas investigados.
Neste percurso de excelência, Seo Hilário Rubio ainda teve tempo
de tomar emprestado um terno cinza e viajar para Brasília, junto de
Dona Darcy (Darcy Donadi Rubio), para ver a filha receber a Medalha
do Mérito Desportivo, das mãos do então Presidente da República,
Luís Inácio Lula da Silva.
27
Katia Rubio

‘O atleta e mito do herói’ é uma obra preocupada na


compreensão da identidade do atleta a partir da exploração das
contingências trajetivas que se manifestam na jornada do mito do
herói. Para tal, a autora nos brinda chamando ao debate autores
e mitólogos do campo dos estudos do imaginário, iluminando
mitemas e imagens dos atletas que atendem ao chamado de si e
percorrem sua jornada em busca da bem-aventurança. As narrativas
biográficas dos atletas olímpicos brasileiros são protagonistas para
o desencadeamento teórico, e não ao contrário. A autora conduz a
análise da oralidade dos atletas perseguindo as etapas da jornada
do mito do herói propostas por Joseph Campbell, sustentadas
pela ‘estrutura heroica’ do estruturalismo figurativo de Gilbert
Durand. Lança mão ainda de perspectivas teóricas amplas como
um entendimento de imaginário que abriga tanto Durand como
Castoriadis; passando por fundamentos da história oral com a
‘Escola dos Annales’; os vigorosos estudos da memória em Eclea
Bosi; os estudos socioculturais e das identidades em Stuart Hall,
dentre outros que vem e vão em auxílio à jornada da compreensão.
Hermes manifesto, Katia Rubio é hermeneuta dos heróis olímpicos
brasileiros e ‘O atleta e mito do herói’ é sua grande expressão de
interpretação da jornada do atleta olímpico e do olimpismo brasileiro.
Para a apresentação desta obra faço apego menos ao caminho da raiz
etimológica da relação entre Hermes e a hermenêutica, do que da
manifestação da raiz mítica sobre a habilidade que possui Hermes em
traduzir e intermediar a palavra dos deuses aos humanos. No rastro
da manifestação desse mitema, Katia Rubio, por meio da expressão
do imaginário do trajeto entre o atleta e o mito do herói, realiza a
tradução das almas desses seres humanos habilidosos nos oferecendo
a intermediação junto aos nossos heróis olímpicos e a todos nós.

Boa leitura!

Rafael Campos Veloso

28
Eu morreria feliz se visse o Brasil cheio,
em seu tempo histórico, de marchas.
Marcha dos que não têm escola, marcha

Prefácio
dos reprovados, marcha dos que querem
amar e não podem, marcha dos que se
recusam a uma obediência servil, marcha
à 2ª
- edição dos que se rebelam, marcha dos que
querem ser e estão proibidos de ser.
Paulo Freire1

O
atleta Sem o mito, toda cultura perde a

e o mito naturalidade de sua força criativa: um


horizonte cercado de mitos encerra em
do herói: unidade todo um movimento cultural.
Todas as forças da fantasia e do sonho
as sedes apolíneo são salvas de seu vaguear ao
léu somente pelo mito. As imagens
de um devir do mito têm que ser os onipresentes e
desapercebidos guardiões demoníacos,
humano sob cuja custódia cresce a alma jovem
e com cujos signos o homem dá a si
mesmo uma interpretação de sua vida
Neilton e de suas lutas.
Ferreira Júnior Friedrich Nietzsche2

Parte 1 da última entrevista do professor, cedida à TV PUC-SP em 17 de abril


1

de 1997.
O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia
2

das Letras, 1992, p.135

29
Katia Rubio

Se fosse possível representar com apenas uma imagem o


que é o Esporte3 contemporâneo, diria, à luz de O atleta e o mito
do herói, que se trata de um imenso campo de disputas em que os
mais diferentes interesses e projetos são postos em jogo. Fundamento
sobre o qual se sustentam todas as práticas culturais, o jogo, no campo
esportivo, é a linguagem por meio da qual os atletas tanto travam
lutas em nome de alguma coisa, como representam uma luta jogando4.
Dessa forma, tornam-se não apenas protagonistas, mas a razão de
ser e a própria substância bioquímica deste que se tornou um dos,
se não for o mais importante fenômeno sociocultural do planeta, o
Esporte. Por isso mesmo, os atletas são também os alvos prediletos de
forças econômicas notadamente hábeis e empenhadas na criação de
semânticas e pedagogias de redução de seus corpos à condição de forças
produtivas e mercadorias. Em que pese a indiscutível legitimidade da
condição trabalhador-atleta, é preciso reconhecer o fato de que desta
“relação trabalhista” nunca foi possível derivar algum equilíbrio. Pelo
contrário, a forma Esporte Espetáculo no Brasil celebra o mesmo
drama de uma classe trabalhadora global, cada vez mais sem direitos,
descartável e precária, à exceção dos pouquíssimos atletas e executivos,
donos de super-salários.
Ocorre que em nossa época, forças econômicas, sempre
muito bem amparadas científica e politicamente, seguem sendo
intransigentemente defendidas, não apenas como “a razão”, mas como
“a única razão possível” num mundo em que a própria subsistência
passa a depender cada vez mais do grau de aderência dos indivíduos
à lógica da mensuração, quantificação, comparação, codificação,
precificação e competição contra o outro5. Na origem dessa nova
razão, que tem no esporte uma de suas expressões mais bem acabadas,

O uso da palavra iniciada em letra maiúscula indica sempre um sentido mais geral
3

do tempo, posto que a sua discussão conceitual demanda um esforço teórico que
foge ao escopo do presente trabalho. O que não impede o leitor de encontrar, já
neste prefácio, mas principalmente ao longo do livro, as mais diversas indicações
sobre o que vem a ser o Esporte.
Huizinga, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
4

1971.
Dardot, P., Laval, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
5

São Paulo: Boitempo, 2016.

30
Prefácio à 2ª- edição

encontramos aquilo a que Joseph Campbell identificou como “os


firmes e certeiros golpes da modernidade que fizeram a teia onírica do
mito ruir”6. O Esporte, conforme analisam Pierre Dardot e Christian
Laval, “continua a ser o grande teatro social que revela os deuses, os
semideuses e os heróis modernos”, ao mesmo tempo em que ao longo
do século XX demonstrará uma distinta capacidade de adaptação
“tanto com o fascismo e o comunismo soviético como com o fordismo”.
Mais adiante, o Esporte sofreria uma mudança caracterizada pelo
“empréstimo de determinado léxico [o empresarial], mas também, de
forma ainda mais decisiva, [uma] lógica do desempenho que altera seu
significado subjetivo”.7
Produto da modernidade, o Esporte tornou-se uma relação
social cujo expediente prioritário – e inegociável – é o da reprodução
da sociedade do espetáculo, com uma diferença fundamental que se
observa na capacidade que alguns poucos portadores de habilidades
excepcionais têm de mobilizar imagens e afetos que escapam ao
expediente acima mencionado. O atleta contemporâneo, assim,
encontra-se no centro ou no limiar de uma disputa que, transcendendo
o próprio campo esportivo, mobiliza as bases filosóficas e culturais
constitutivas do humano. Processo que transita entre a contemporânea
brutalização forjadora dos chamados “empresários de si mesmos”8,
às experiências de liberação da vontade de potência individual ou
coletiva constitutivas de novos valores. O herói-atleta a qual Rubio faz
referência encontra-se neste segundo plano, quase sempre eclipsado
pelo primeiro, mas ainda assim passível de observação quando
utilizados os instrumentos teóricos certos. A aproximação que ela
estabelece entre o mito do herói e o atleta contemporâneo compreende
assim uma retomada, pela cultura esportiva, da discussão sobre os
desdobramentos de uma operação da razão moderna que resultou na
cisão entre espírito apolíneo e dionisíaco9. Processo que mais tarde

Campbell, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.


6

Dardot, P., Laval, C, 2016, p.345.


7

Ibdem.
8

Nietzsche, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo:


9

Companhia das Letras, 1992.

31
Katia Rubio

se fará representar pela ciência industrial do desempenho e ideologia


da vitória como forma “superior” de experiência esportiva, a despeito
dos custos à integridade humana. Seria o herói-atleta, portanto, a
personificação moderna de um antagonismo dirigido contra as forças
de desumanização, ainda que, tal como o herói mitológico, esse atleta
possa ser absorvido pelos feitiços do seu tempo?
Publicada pela primeira vez em 2001 pela psicóloga e teórica
social brasileira, Katia Rubio, a presente obra segue em busca das
reminiscências, bem como das formas originais da denominação
herói. Toma como ponto de partida as pistas oferecidas pela
circulação corrente do termo, até chegar às inscrições imemoriais
do mito daí então utilizá-las como categorias de análise da
trajetória de atletas olímpicos brasileiros. No caminho de retorno
ao tempo presente, ela percorre ainda o caudaloso terreno da
cultura, enfrentando o labirinto da passagem da modernidade à
pós-modernidade. Assim ela chega àquilo a que – à luz de autores
como Fredric Jameson, David Harvey, Gilbert Durand, Joseph
Campbell, Cornelius Castoriadis, Mircea Eliade, José Carlos de
Paula Carvalho, dentre outros – denominou como Cartografias do
Imaginário Esportivo Contemporâneo.
Rubio inicia sua argumentação utilizando-se de imagens da
nossa biologia evolutiva para demonstrar que, em certa medida,
“todos somos heróis”; posto que nossa trajetória no mundo é
atravessada, inelutavelmente, pelo enfrentamento de transformações
que se iniciam ainda em fase pré-natal. O passar “da condição
de criaturas aquáticas vivendo no fluído amniótico à condição de
mamíferos que respiram oxigênio, e que mais tarde se erguerão
sobre os próprios pés”10 é só a primeira das grandes transformações
que nos acompanham. Processos que nos revelam como indivíduos
dotados de uma predisposição para movimentos de saída e gestos
ascensionais que encontram no conjunto de imagens disponíveis na
natureza, bem como nas formas animais, as referências mestras que

Rubio, K. O atleta e o mito do herói: o imaginário esportivo contemporâneo.


10 

São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001, p.11.

32
Prefácio à 2ª- edição

permitem à nossa espécie distinguir-se e prevalecer sobre as demais,


caminhando da mimese ao desejo de autocriação que conduziu nossas
migrações, epopeias e tragédias11. Mais adiante, esse movimento
ganharia representações narrativas, artísticas e religiosas, ricas em
personagens solares, lunares e crepusculares, as bases constitutivas
de nossa estrutura psíquica.
É nesse “lugar”, conforme nos indica Rubio, que se encontram
as formas originais e universais do mito do herói: uma dentre as
inúmeras formas míticas de apreensão da natureza e do cosmos e
que, na essência, se repete em todo lugar, época e cultura. Longe
de ser uma mentira ou falsificação do real, diz a autora, o mito do
herói tem por função essencial estabelecer uma ordem original de
funcionamento e determinação do real, congregando agência divina
e terrestre no processo que permite às coisas serem como são. O
mito compreenderá, por isso mesmo, uma história, uma narrativa de
caráter exemplar, tradicionalmente personificada na figura de deuses
e deusas, heróis e heroínas, mas também homens e mulheres cuja
trajetória é, de algum modo, dedicada à liberação do fluxo da vida12 .
Conforme mencionado há pouco, representações míticas não se
restringem ao passado, tampouco se esgotam no presente. “Em todo
o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias,
os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm
sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das
atividades do corpo e da mente humanos”13.
Força de presentificação, o mito do herói permanece, não como
repetição, mas como referencial primeiro das respostas que os homens
e mulheres dão aos desafios do seu tempo histórico. A trajetória dos
atletas contemporâneos confere contornos próprios a estas respostas,
estabelecendo paralelos com formas de agência mítica (Hércules,
Obá, Gilgamesh) produtoras de grandes obras, a exemplo de Adhemar
Ferreira da Silva, Aída dos Santos, Joaquim Cruz, dentre outros. À
semelhança dos heróis de tempos imemoriais, esses atletas atuam

Aristóteles. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3 ed., 2008.


11 

Campbell, J. 2007.
12 

Ibdem, p.15.
13 

33
Katia Rubio

nos limiares da capacidade humana, carregando sobre os ombros


expectativas particulares, mas principalmente da população, cidade,
país e instituições as quais representam. Quase sempre solitária, sua
jornada tem por objetivo a busca de vitórias, medalhas e da garantia
de subsistência, mas também do reconhecimento genuíno. E seja o
herói-atleta “ridículo ou sublime, grego ou bárbaro, gentio ou judeu,
sua jornada sofre poucas variações no plano essencial [...] Não
obstante, serão encontradas variações surpreendentemente pequenas
na morfologia da aventura, nos papéis envolvidos, nas vitórias
obtidas”14. No cenário esportivo contemporâneo, conforme Rubio
nos sugere, os significados do feito esportivo e de seu reconhecimento
mudam como efeito da própria transição do amadorismo para o
profissionalismo. Processo que coloca o desempenho esportivo no
mesmo circuito da precificação das mercadorias. Se na sua primeira
fase o Esporte moderno tinha no princípio do amadorismo um
estatuto moral e ético que, em tese, assegurava à performance um
valor em si. Na sua segunda fase é o dinheiro que passa a determinar
os fins da performance. É quando as trajetórias esportivas e, mais
especificamente, os sonhos de ser olímpico, passam a depender da
provisão/maldição do deus cego, Pluto.
O contemporâneo a que se refere a autora, compreenderia ainda
um momento de passagem da modernidade à pós-modernidade em
que passado e presente se chocam, estabelecendo formas novas de
sociabilidade, produção cultural e identidades sempre resistentes aos
enquadramentos, ao mesmo tempo em que as referências ao moderno
não desaparecem de todo. Processo marcado pela emergência de uma
indústria cultural, um mercado financeiro, e pela proliferação de
tecnológicas constitutivas e centralizadoras das formas espetaculares
de apropriação da ação humana e dos novos debates sobre a questão
do ser15. Disso não escapam os atletas, que de representantes de
atividades voltadas à reparação e à contemplação passaram à condição
de protagonistas de um sistema que os explora enquanto vendedores

Ibdem, p.42.
14 

Debord, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


15 

34
Prefácio à 2ª- edição

da força de trabalho, ao mesmo o que os mantém destituídos das


condições materiais e simbólicas que melhor os localizaria na luta de
classe pela vida para além da necessidade de subsistência. Conforme
Guy Debord postularia a substância imaterial de identificação do
Ser se esvaiu no momento mesmo em que “a cultura se desligou da
unidade típica do mito, quando o poder de unificação desaparece da
vida do homem e os opostos perdem sua relação e sua interação vivas,
ganhando autonomia”16. Esse quadro impõe aos heróis modernos, das
mais diferentes áreas, tarefas não menos difíceis, se comparadas as que
os heróis mitológicos tiveram que realizar.
A forma como os gestos cívicos dos atletas mobiliza afetos
na sociedade sugere haver um deslocamento próprio da passagem
do moderno ao pós-moderno, em que a luta dos oprimidos não
se fará representar somente pelo operariado industrial, mas pelos
trabalhadores e trabalhadoras da cultura uma vez submetidos
aos mesmos mecanismos de opressão de classe, sexo e raça,
invariavelmente associada aos sistemas capitalista e neocolonial.
“Roubaram nossos nomes, fomos escravizados, roubaram nossa
cultura, nossa verdadeira história, nos deixaram como mortos
caminhantes. Não sabemos nada sobre nós mesmos, não falamos
nosso idioma. Estamos mentalmente mortos. Isso acontece no
mundo todo”, reiterava Muhammad Ali, boxeador afro-americano
cuja trajetória esportiva não se distinguia da luta antirracista e anti-
imperialista que travava ao lado de outros atletas e representantes
do movimento negro nos Estados Unidos dos anos 196017.
Isto significa, dentre outras coisas, que mesmo nas mais adversas
condições de prática esportiva, uma trajetória atlética pode muito em
sua tarefa política de humanização e (re)encantamento do mundo.
Conforme argumenta Campbell, “não seria demais considerar o mito
a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos
penetram nas manifestações culturais humanas”. Heróis e seus feitos,
prossegue o autor, ainda que pessimista, “mantiveram-se vivos até

Ibdem, 119.
16 

Ferreira Júnior, N. S. O herói com rosto africano e o atleta olímpico negro. In:
17 

Rubio, K. (Org.). Esporte e Mito. São Paulo: Laços, 2017, p.201.

35
Katia Rubio

a época moderna”. Contudo, “na ausência de uma mitologia geral,


cada um de nós tem seu próprio panteão de sonho – privado, não
reconhecido, rudimentar e, não obstante, secretamente vigoroso”18.
O caso de Adhemar Ferreira da Silva, conforme nos lembra Rubio,
é exemplar no que tange a forma ambígua e quase sempre póstuma
com que heróis olímpicos brasileiros são “celebrados” na sociedade
do espetáculo. “Reverenciado por seu feito raro durante sua carreira
atlética, tratado com esquecimento durante a vida fora das pistas, foi
ovacionado como herói por todos os meios de comunicação no dia
de sua morte”19. Quando analisada ao pé da história, a trajetória de
Adhemar assume características similares ao papel das grandes obras
artísticas e teóricas, seja por sua capacidade de inaugurar tradições
em sua área de atuação, seja por sua capacidade de se apresentar
como horizonte possível aos que aspiram a uma jornada esportiva.
Os significados do esquecimento, do não reconhecimento, ou mesmo
o desconhecimento do herói pelo seu próprio povo atualizam-se
na narrativa que Adiel, filha de Adhemar, elabora sobre o término
da carreira do bicampeão olímpico. Ao resgatar essas memórias,
O atleta e o mito do herói procura nos alertar sobre o que uma
sociedade tem a perder, em termos de identidade, quando deixa de
celebrar seus heróis culturais. Mais que um atleta, Adhemar foi um
verdadeiro diplomata, pois levava para outros lugares o melhor de
seu país e de si mesmo. Não dissertou sobre a questão racial tal
como fizera Muhammad Ali, mas o enfrentou da forma mais criativa
possível num período em que o mais pacífico dos protestos poderia
interromper sua saga Olímpica.
O heroísmo atlético, portanto, conforme propõe Rubio, não se
refere necessariamente à condição dos vencedores ou mártires, mas
– e talvez fundamentalmente – às características que cada trajetória
assume, no inelutável enfrentamento às injustiças sociais que se
reproduzem no e através do sistema esportivo. Pensar o processo,
permitiu à pesquisadora compreender o papel das desventuras, do
périplo e mesmo das derrotas na “formação” dos atletas. Ao mesmo

Campbell, J. 2007, p.16-17.


18 

Rubio, K. 2001, p.13.


19 

36
Prefácio à 2ª- edição

tempo que lhe deu a chance de pensar o esporte a partir dos desafios
colocados pela sua sociabilidade cotidiana. Nesses termos, herói será
todo homem ou mulher que desafia as limitações históricas pessoais e
locais, alcançando, conforme Campbell analisa, “formas normalmente
válidas, humanas”, sendo as visões, ideias e inspirações dessas pessoas
fontes primárias da vida e do pensamento humano”20. Ancorada à
função arquetípica dos mitos, mais especificamente ao monomito de
Campbell, Rubio procura então escapar à hagiografia, recuperando
das trajetórias atléticas brasileiras a sua potência transvalorativa, ao
mesmo tempo que precarizadas pelas determinações sócio-históricas,
políticas e materiais. Através das experiências relatadas pelos atletas,
cenários de violência simbólica e de solidariedade, interdições e
constituição de vínculos, vão se constituindo de modo a nos apresentar
as vísceras de uma luta pela materialização da vontade de Ser/Estar no
mundo enquanto atleta. As ações e reações que decorrem dessa relação
quase sempre assimétrica entre racionalidades desumanizantes e a
busca pelo Ser-Mais, são ricas em ensinamentos e questões filosóficas
que nos ajudam a manter viva a pergunta sobre qual é o papel social
do Esporte em nossa época.
Filhos de seu tempo e contexto histórico, muitos desses atletas
são levados ao Esporte pelo acaso. Encontro não raro marcado por
experiências de arrebatamento e encanto, dada as características
da socialização nas práticas de modalidade esportiva e da relação
estabelecida com os Quírons21. Esse processo estabelece paralelos com
as mais espetaculares aventuras da mitologia. Pois se outrora o mote
das epopeias, tragédias e comédias foram as guerras entre impérios ou
a luta contra a ira dos deuses, as razões que justificam as experiências
iniciáticas dos heróis-atletas falam sobre a possibilidade de participação
em grandes projetos, a possibilidade de representação nacional, bem
como de escapar às condições precárias que a “vida” reservou à
infância. Por meio do Esporte, o indivíduo dá corpo a um desejo que

Ibdem, p.28.
20 

ZIMMERMANN, M. A. O professor inesquecível nas narrativas de atletas


21 

olímpicos brasileiros. 2019. Dissertação (Mestrado em Estudos Socioculturais


e Comportamentais da Educação Física e Esporte) - Escola de Educação Física
e Esporte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

37
Katia Rubio

ao longo do trajeto vai se redimensionando e, não raro, constituindo-


se ele mesmo a força de contestação às injustiças e arbitrariedades que
habitam e, não raro, organizam o contexto esportivo.
Embora o retorno ao mito compreenda um dos pilares da
presente reflexão, não será difícil perceber que o contexto social e
histórico que sua autora busca iluminar é o do Brasil contemporâneo
e sua modernidade tardia. Esse cenário distingue de forma decisiva a
forma e os rumos que as respectivas trajetórias esportivas assumem.
Diz Rubio que, “assim como os heróis mais intrépidos tiveram
suas vidas e trajetórias marcadas por variadas provas, necessitando
demonstrar todo o seu vigor como sua inteligência, desviando-se ao
longo da jornada de sua trajetória inicial, [os atletas] encontram-se
diante de forças mais poderosas que a fúria dos deuses: a burocracia
das Confederações...”22. Nesse sentido, em certo aspecto, suas histórias
de vida não deixam de ser a história das relações de poder que se
constituem no interior de uma República em crise.
Rubio, a partir das considerações de Anthony Giddens,
compreende a modernidade como um conjunto de “transformações
institucionais que têm suas origens no Ocidente”23. Transformações
que, não sem contradições, se “estenderam” às frações de uma
classe social há muito impedida de acessar aos espaços de educação
e prática esportiva originalmente reservados à aristocracia. Processo
que permitiu a ascensão de figuras esportivas que passaram a fazer
parte do imaginário e cultura popular, não raro protagonizando
embates políticos chave, ao mesmo tempo que contribuíam para a
evolução da modalidade ao desenvolverem novas técnicas. Esse grupo
é formado por atletas negros, mulheres, homossexuais, dentre outros
membros da classe trabalhadora e pobre nacional que, voluntária
e involuntariamente, transformaram suas trajetórias esportivas
em verdadeiras expressões do desejo coletivo de liberdade. Ao
produzirem, a seu modo, os fatos políticos de contestação da cultura
esportiva moderna, esses atletas tornaram-se os próprios coautores de
experiências estéticas novas. Com isso, tal como a jornada mítica de

Rubio, K. 2001, p.196.


22 

Giddens, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, p.153.


23 

38
Prefácio à 2ª- edição

Cadmo, acabaram por atualizar representações heroicas de fundação


de novos sistemas sociais, valores e linguagens. O recorde, o novo salto,
a invenção do drible, a denúncia ou o protesto, são para os atletas o
que os artefatos e a resolução de enigmas foi para os heróis míticos:
formas que os auxiliam em suas tarefas de abertura, criação e mesmo
destruição de uma dada ordem.
Ocorre que o esporte contemporâneo impõe desafios específicos
ao seu protagonista. Se, para alcançar sua redenção, vencer a hidra
ou recuperar o amor perdido, o herói mítico precisa escapar à própria
face da morte, ao atleta contemporâneo compete não só o exílio
social, mas a manutenção do corpo em um constante, e não raro
autodestrutivo, estado de exceção e alerta. O culto ao desempenho
celebrado pela sociedade industrial e agora tanto mais intensificado
pela sociedade pós-industrial, deu ao Esporte uma forma social na
qual só é possível permanecer mediante exercícios de sobrevivência nas
fronteiras do humanamente possível. Ao privilegiar o périplo por qual
passa o atleta, Rubio procura iluminar o que desta relação ainda resta
do demasiado humano e essencialmente antropológico, posto que as
lógicas do seu esgotamento estão visivelmente dadas. Desse modo,
ela procura avançar para além do “pessimismo” de Campbell sobre a
cultura, dando à subjetividade dos atletas a vez da expressão sobre o
que é e o que pode vir a ser a cultura. O resultado disso é justamente a
costura, por vias outras, de uma crítica à racionalidade do espetáculo
que busca esvaziar do Esporte as fontes da sua poética.
Para além do reconhecimento às mazelas, belezas e ensinamentos
da trajetória atlética e suas similaridades com a proposta do monomito,
o horizonte que se abre à luz da leitura de O atleta e o mito do herói
se refere ao que classifico como projeto de recomposição artística
e poética da relação dos sujeitos com a cultura esportiva. Projeto
que só pode se estabelecer a partir de ensaios de interpretação que
evoquem do Esporte alguma essencialidade, vocação e projeto que
não a dominação do corpo pelo próprio Esporte. Ao revelar o mito
do herói não como parte do imaginário esportivo contemporâneo,
mas como seu conteúdo nuclear ocultado, a obra de Rubio se (e nos)
insere numa disputa pelo próprio humano, face a valorização das
suas alegorias e do efêmero mantenedor dos racismos, machismos,

39
Katia Rubio

xenofobias e outras formas de desumanização. Juntamente com os


aportes da crítica da modernidade e da mitocrítica, a autora retoma o
debate sobre a potência ontológica, e, porque não dizer emancipadora
do Esporte. Potência que se manifesta nas (i) razões intrínsecas que
levam milhares de crianças e jovens a fazer da prática esportiva uma
forma de Estar, se relacionar e conhecer o mundo; nas já mencionadas
(ii) experiências de profanação do modelo esportivo burguês,
masculino e branca; e na (iii) condução do debate sobre a necessidade
do reconhecimento aos limites do corpo humano, amplamente
evocados pelas histórias de vida aqui elencadas. Seu trabalho segue o
raciocínio segundo o qual o Esporte pode, para além das enterradas,
dos touchdowns, gols, ippons e quebra de recordes, abrir um espaço-
tempo da produção das percepções holísticas, do senso de se estar
fazendo parte de uma grande comunidade, dela partilhar desejos de
transcendência, transformação e desenvolvimento24.
Ao recompor às trajetórias atléticas, privilegiando a memória oral
dos seus protagonistas, a autora nos provoca no sentido de pensarmos
se a estrutura heroica atualizada nos respectivos itinerários se refere a
um processo puramente autodeterminado ou tão somente condicionado
pelas disposições históricas e culturais em que se manifesta. Por isso
mesmo é que sua análise, penso, não pode ser reduzida a um ponto
de vista, tampouco a uma apologia da sociabilidade neoliberal,
equivocadamente denunciada por Santiago Pich25. O que a obra coloca
em destaque, pelo contrário, são os imperativos de um projeto societário
moderno que, em nome da “razão”, do “progresso” e do lucro, não
cessa de precarizar a condição humana e, por isso mesmo, convocar
seus explorados às lutas e resistências, sejam elas mais organizadas ou
mais individualizadas.
Com isso, a autora chama a atenção para a necessidade de
pensarmos o atleta contemporâneo a partir da sua inteireza paradoxal,
isto é, a condição na qual se encontram homens e mulheres sujeitos
às limitações impostas pela superestrutura, ao mesmo tempo que

Parry, J. et al., Sport and spirituality: an introduction. New York: Routledge, 2007.
24 

Pich, S. A mítica neoliberal, o sistema esportivo, a mídia e o herói esportivo: a


25 

construção de uma estória de retalhos de verdade mascarada de verdade revelada.


Perspectiva. Florianópolis, v.21, n.1, p.199-227, 2003.

40
Prefácio à 2ª- edição

portadores de potências indispensáveis à transformação do contexto


a que pertencem. Processo que ganhará cada vez mais corpo, tão logo
às imagens da alienação se some a fortuna de imagens da rebeldia e do
devir humano.
Ao longo do século XX, sobretudo a partir dos anos 1950, o
Esporte passou a ocupar cada vez mais as programações televisivas,
ganhando status de entretenimento de massa e plataforma de ascensão
financeira. Processo que modificou definitivamente a forma como o
atleta, mas também os espectadores, passaram a se relacionar com as
práticas esportivas. A isto cabe reiterar que o Esporte não é apenas
produto da modernidade, mas da passagem à pós-modernidade.
Transição que implica uma mudança no plano das técnicas e
infraestruturas de produção do espetáculo, mas da ética. Nesse atual
estágio de desenvolvimento esportivo em que as experiências de ruptura
deixam de ser exceção e passam a ser regra, o próprio corpo da prática
esportiva vai se tornando sede da produção do pós-humano. Aqui, o
parâmetro do que vem a ser o limite já não é a exaustão dos corpos,
mas seu colapso26.
Essa condição do Esporte contemporâneo, conforme Rubio
postula, à luz de Fredric Jameson, resulta de um período pautado
pela “dominante cultural da lógica do capitalismo tardio” que,
ao estabelecer “um novo estágio na história do modo de produção
reinante”, impõe uma urgente discussão “sobre os destinos da cultura
em geral, e, da função da cultura em particular”27. Por isso mesmo,
pensar a condição do atleta não é nada trivial, uma vez que seu corpo
e desempenho compreende a “matéria prima” de experimentos em
bio e neuro tecnologias computacionais aceleradoras da obsolescência
atlética. Essa engrenagem tem por matriz uma racionalidade capitalista
que, aniquilando ou fetichizando as imagens heroicas, transforma o
seu regime de acumulação numa liturgia natural28. Em O nascimento
da tragédia, Nietzsche aprofunda a esta reflexão, chamando a atenção

Ferreira Júnior, N. S., Rubio, K. Para onde vai o esporte sob a razão neoliberal.
26 

In: J. A. de O. Camilo, K. Rubio, (Orgs.). Trabalho e Esporte: Precariedade,


Invisibilidade e Desafios. 1ª- Ed. São Paulo: Editora Laços, 2020.
Rubio, K. 2001, p.32.
27 

Benjamin, W. 2013.
28 

41
Katia Rubio

para as funções do mito e consequências da sua subtração. Sem o mito,


diz o filósofo...
...toda cultura perde a naturalidade de sua força criativa:
um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um
movimento cultural. Todas as forças da fantasia e do sonho
apolíneo são salvas de seu vaguear ao léu somente pelo mito. As
imagens do mito têm que ser os onipresentes e desapercebidos
guardiões demoníacos, sob cuja custódia cresce a alma jovem
e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação
de sua vida e de suas lutas [...] coloque-se agora ao lado desse
homem abstrato, guiado sem mitos, a educação abstrata, os
costumes abstratos, o direito abstrato, o Estado abstrato:
represente-se o vaguear desregrado, não refreado por nenhum
mito nativo, da fantasia artística; imagine-se uma cultura que
não possua nenhuma sede originária, fixa e sagrada, senão que
esteja condenada a esgotar todas as possibilidades e a nutrir-
se pobremente de todas as culturas – esse é o presente, como
resultado daquele socratismo dirigido à aniquilação do mito. 29
Concebido sem maiores contestações como sede dos extremos e
do extraordinário, o corpo do atleta contemporâneo vai sendo assim
refeito, tornando-se o próprio molde de suas versões ciborguizadas.
No interior das engrenagens da subtração do mito, o corpo humano
até então portador único da alta performance, torna-se corpo da
passagem da modernidade à pós-modernidade, oferta sacrificial
de um rito de interpenetração entre forma humana, formas pós-
humanas e formas transumanas30. São estas as (não tão novas)
forças que hoje ocupam a quase totalidade do debate sobre corpo
e performance. Mas antes mesmo que uma resposta a tais questões
emerja, nosso tempo histórico tem conhecido as mais diferentes
expressões sintéticas da cisão entre a performance e o humano.
Na era do ciborgue, ganhar uma medalha olímpica não tem a ver
mais com o correr mais rápido, saltar mais rápido, ser mais forte,

Nietzsche, F. 1992, p.135.


29 

Haraway, D., Kunzru, H., Tadeu, T. (Orgs.). Antropologia do ciborgue:


30 

as vertigens do pós-humano. Nelo Horizonte: Autêntica, 2009.

42
Prefácio à 2ª- edição

mas com os resultados de uma convergência científico-tecnológica


aplicada, isto é, os “implantes, transplantes, enxertos, próteses”, os
órgãos artificiais”, bem como “estados artificialmente induzidos e
maximizados. Tudo isso dirigido à produção de “seres ‘artificiais’
que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas
qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos”31.
Uma pesquisa recente mostrou que por volta de 2005 o
desempenho médio dos atletas de alto performance teria atingido o seu
“platô”. Os autores da pesquisa argumentam que “após quase cem anos
de aprimoramento constante, parece que estamos entrando em uma
nova fase nos esportes”, a qual denominaram Olympic peak [o pico
Olímpico], “quando a marcha constante do progresso humano atinge
seu patamar final”. Isso não significa que novos recordes e performances
excepcionais deixarão de existir, e sim que elas dependerão cada vez
mais da introdução de novas tecnologias auxiliares32.
Uma das narrativas que nos permite pensar a profundidade
desta condição é o mito de Ícaro, cuja história é marcada pela falta de
equilíbrio no uso de suas asas de cera, conforme recomendara Dédalo,
seu pai. Encantado com a possibilidade de voar para perto do Sol, Ícaro
teve suas asas derretidas pelo calor da grande estrela, o que provocou
a queda livre que resultou na sua morte no mar Egeu. Essa narrativa é
intrigante, pois embora o uso de tecnologias (barcos, espadas, escudos,
lanças, armadura, sandálias, dentre outras) seja uma constante tanto
nas jornadas dos heróis mitológicos quanto nas trajetórias atléticas,
ambos partilham da incapacidade biológica de voar e do risco de ceder
a algum feitiço ou fascínio.
Longe de querer com isso defender posição contrária às
tecnologias, quero apenas ponderar, com base na leitura de O atleta
e o mito do herói, que a reflexão (quase sempre tardia) sobre as
implicações bioéticas dos novos usos e abusos das tecnologias do
desempenho, talvez já não seja suficiente. A esta discussão é preciso
acrescentar a reflexão sobre os rumos da cultura esportiva uma

Ibdem, p.12.
31 

Thomson, S., Ma, J. This is peak Olympic. In: The New York Times. February, 02,
32 

2018. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2018/02/10/opinion/


this-is-peak-olympics.html. Acesso em: out. 2020.

43
Katia Rubio

vez submetida à hegemonia da razão capitalista e econométrica


do recorde. A subtração da função social e simbólica do fenômeno
esportivo não é, ou pelo menos não deveria ser, encarada como um
“processo natural”, mas resultado de uma forma social e histórica
que, por assim o ser, pode ser mudada. Daí a importância das
categorias da Antropologia Cultural e do Imaginário trazidas por
Rubio. Sua feliz e providencial incorporação ao campo de pesquisa
do Esporte parece nos convocar, tal qual um chamado à aventura,
à tarefa prometeica de recuperação da chama aos mortais. Trata-
se de uma categoria de análise rica em considerações que nos
sensibilizam para a necessidade de se desenvolver novas formas
de olhar, de experimentar e, como consequência, transformar o
Esporte. A história de vida dos atletas olímpicos brasileiros, por isso
mesmo, se faz fundamental a essa tarefa, pois podem ser lidas tanto
como cartografias do Esporte quanto evocações do mito; ambas
trazendo conteúdos, insights e ensinamentos sobre como fazer da
cultura esportiva plataforma de elevação do espírito humano, isto
é, de experimentação de sociabilidades suficientemente resistentes e
rebeldes à miséria do mundo.
Em certo momento da obra, a autora nos adverte sobre a existência
das várias formas de se caracterizar o fenômeno esportivo, sendo a
categoria dos atletas, bem como as razões que os fazem prosseguir
no Esporte, o ponto de partida ou referência mais privilegiada de
análise. A história recente nos ensina que a instrumentalização do
Esporte em nome de políticas “civilizacionais” de fato traduziu-se na
universalização de particularidades europeias. Esta mesma estratégia
serviu de base às ideias de “modernização” e higienização, as quais
ganharam nos expedientes ginásticos e competitivos a sua expressão
mais prática.33 Por muito tempo, a “educação esportiva” foi concebida
como o talho da docilização e domesticação dos corpos, maquinaria
de reprodução da virilidade necessária à participação na sociedade
dos direitos individuais e do livre mercado. Contexto que se tornou

SCASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se


33 

conta. Campinas: Papirus, 1988.


SOARES, Carmen Lúcia. Educação Física: raízes europeias e Brasil. Campinas:
Autores Associados, 2001.

44
Prefácio à 2ª- edição

lugar comum a partir do qual muitos atletas brasileiros seguiram em


busca da realização de seus sonhos. Mas foram esses mesmos atletas
que, por meio de suas trajetórias, colocaram em causa os contratos
estabelecidos por esta sociedade, demonstrando que o Esporte não é
em si mesmo um sistema virtuoso, mas expressão da hegemonia de
uma classe e suas ideias.
O mundo da passagem da modernidade à pós-modernidade,
no qual ainda sobejam a razão nacional, das fronteiras de gênero,
de raça e de classe, não é o mundo da negação da cultura, mas de
sua conformação à racionalidade “da única via possível” e do “fim
da história”. Nesse contexto, o mito segue vivo, mas eclipsado e
vilipendiado por uma espécie de forclusão promovida pela ideologia
eleita como a razão. Fazendo caminho inverso, O atleta e o mito do
herói se inscreve entre as produções que propõem não só uma contra-
história do Esporte brasileiro, mas a recuperação e valorização de sua
fortuna imaterial.
Ao tomar por fio norteador a dimensão da vontade-de-Ser-no-
mundo que se manifesta na jornada heroica dos atletas, Rubio procura
estabelecer paralelo com o mito, não para fins comparativos, mas
como exercício/ensaio de aproximação entre experiência esportiva e
seu conteúdo simbólico. Com esse gesto, a autora estaria preparando o
terreno da tarefa que se apresenta imediatamente após o indispensável
exercício da crítica, a saber: dar ao Esporte um Esporte diferente.
A partir dessa operação, a concepção de Esporte como cultura
elevada poderia retornar ao debate público brasileiro, não como uma
forma de negação, e sim de afirmação de suas contradições, rumo a
uma experiência de assimilação, mas principalmente de inserção, que
permitam submeter o Esporte ao corpo e não o corpo ao Esporte.
Isso não significa desprezar as técnicas ou a competição. Trata-se, pelo
contrário, de pensar sua instrumentalização a serviço daquilo a que
Paulo Freire classificou como tomada de consciência das possibilidades
do Ser-mais. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche nos traz
alguns parâmetros do que podemos conceber por cultura elevada,
argumentando que:
...se a ciência proporciona cada vez menos alegria e, lançando
suspeita sobre a metafísica, a religião e a arte consoladoras, subtrai

45
Katia Rubio

cada vez mais alegria, então se empobrece a maior fonte de prazer,


a que o homem deve quase toda a sua humanidade. Por isso uma
cultura superior deve dar ao homem um cérebro duplo, como que
duas câmaras cerebrais, uma para perceber a ciência, outra para
o que não é ciência; uma ao lado da outra, sem se confundirem,
separáveis, estanques; isto é uma exigência da saúde. Num domínio
a fonte de energia, no outro o regulador: as ilusões, parcialidades,
paixões devem ser usadas para aquecer, e mediante o conhecimento
científico deve-se evitar as consequências malignas e perigosas de
um superaquecimento. Se esta exigência de uma cultura superior
não for atendida, o curso posterior do desenvolvimento humano
pode ser previsto quase com certeza: o interesse pela verdade vai
acabar, à medida que garanta menos prazer; a ilusão, o erro, a
fantasia conquistarão passo a passo, estando associados ao prazer,
o território que antes ocupavam: a ruína das ciências, a recaída
na barbárie, é a consequência seguinte; novamente a humanidade
voltará a tecer sua tela, após havê-la desfeito durante a noite, como
Penélope. Mas quem garante que ela sempre terá forças para isso?34
A mitocrítica de Rubio permanece assim debruçada sobre a
relação sujeito e contexto social/esportivo, mas se filia à concepção
nietzscheneana de experiência quando, ao privilegiar a dimensão do
sonho, da ilusão e do desejo que mobiliza os atletas em sua jornada,
nos permite iluminar as próprias deficiências do conceito corrente
de Esporte. Essa obra nos permite entender que, à semelhança dos
artistas, dos músicos, dos poetas e dos literatos, os atletas têm sido, a
seu próprio modo, heróis modernos da resistência cultural ao realismo
distópico do nosso tempo. Ao encarnarem o mito, esses heróis culturais
passam a representar as próprias “forças de dissipação da ignorância
diante da vida, uma vez que, através de seus gestos, são capazes de
reconciliar consciência individual e vontade universal”35.
Num passado não muito distante, os atletas podiam ser
deliberadamente expulsos das instituições de prática esportiva por

Nietzsche, F. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras,


34 

2005, p.158-159.
Campbell, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
35 

46
Prefácio à 2ª- edição

conta de sua cor, ou proibidos de praticar determinadas modalidades


por conta de seu sexo. A longa e inconclusa marcha que empreenderam
pela vontade de Ser no e através do Esporte foi, como ainda tem
sido a força demolidora das fortificações alegóricas que represam
o seu devir-humano. Não há como dizer que este movimento
fundamental é fruto da genialidade ou “grau de consciência” dos
seus protagonistas. Pelo contrário, a civilização do Esporte é fruto
da intransigente persistência de sujeitos históricos em sua maioria
atravessados pela interdição do acesso aos direitos prometidos pela
democracia liberal burguesa. Conforme o leitor poderá concluir, é
no mito que se encontram as forças que nos conduzem à sala central
da vontade de existir para além do biológico, buscando na arte, na
poesia, na música, dança, mas também no Esporte, as formas de
manutenção do nosso encantamento com o mundo.
Através das histórias de vida dos protagonistas olímpicos
brasileiros, a amplitude e profundidade dessas experiências de existir,
procurar e subverter ganham representações difusas, por vezes
opaca, mas que em seu conjunto falam de um projeto cultural que se
aproxima paulatinamente de uma ruptura com as heranças deletérias
do projeto moderno. Heranças das quais Campbell é radicalmente
crítico, ao afirmar, por exemplo, que “o ideal democrático do indivíduo
autodeterminado, a invenção da máquina movida por um motor e o
desenvolvimento do método científico transformaram a tal ponto a vida
humana que o universo intemporal dos símbolos, há muito herdado,
entrou em colapso”36. A apologia da modernidade, também narrada
de forma heroica, conta a história da chegada da humanidade a sua
“fase adulta”. História que representou o soterramento do fascínio
do passado e das tradições, ao mesmo tempo que reduziu o mito a
tudo o que é falso. Ocorre que agora, conforme prossegue o autor,
“já não há sociedades do tipo a que os deuses um dia serviram de
suporte. A unidade social não é portadora de conteúdo religioso, mas
uma organização econômico-política”37. Mesmo entre as sociedades
progressistas, “todos os últimos vestígios da antiga herança humana
do ritual, da moralidade e da arte se encontram em pleno declínio

Ibdem, p.372.
36, 37 

47
Katia Rubio

[...] não há sentido no grupo – nenhum sentido no mundo: tudo está


no indivíduo”38. Há anos identificado por Campbell e tantos outros
autores, esse esgotamento é visível em todos os campos.
A obra que o leitor hoje tem em mãos indica, em última análise,
que o que está em jogo é a possibilidade de um futuro humano que
cada vez mais dependente das imagens de sutura da relação homem e
natureza, ser e corpo, corpo e movimento. A moderna tarefa do herói,
tal como conclui Campbell, configura-se “como uma busca destinada a
trazer outra vez a Atlântida perdida da alma coordenada”39. Trabalho
que não significa, segundo ele mesmo diz, negação ou desprezo àquilo
que a revolução moderna trouxe, e sim “tornar o mundo moderno
espiritualmente significativo”, suficientemente fértil à “possibilidade
de homens e mulheres alcançarem a plena maturidade humana por
intermédio das condições de vida contemporânea”40.

Neilton Ferreira Júnior

Ibdem, p.373.
38, 39, 40 

48
Há mais de duas décadas
persigo um tema que poderia ter
sido apenas uma tese. Jamais eu
teria imaginado que a proposta de
compreender o atleta pela aproximação
com o mito do herói chegasse tão longe
e promovesse estudos tão preciosos
ao esporte, mas, principalmente aos
atletas como os grandes protagonistas
do espetáculo e do negócio esportivo.
Quando comecei a fazer meu
doutorado, tese que resultou nesse
livro, queria compreender como se dava
a formação da identidade do atleta e a
relação dessa força com o mito do herói.
Causava-me incômodo a facilidade
com que jornalistas e comentaristas,
sem contar os fãs de toda a ordem, se
referiam a um jogador, basicamente do
futebol, depois de marcar muitos gols,
como herói.
Parece automática a relação, mas
apenas parece, uma vez que o mito do
herói é bem mais complexo do que uma
referência aos vitoriosos.
O herói é uma figura mítica que
se manifesta em todos as culturas. Se
apresenta com roupagens próprias de
Apresentação cada grupo social, entretanto carrega a
marca de alguém que precisa cumprir
à 2ª
- edição uma longa jornada até alcançar seus

49
Katia Rubio

objetivos. Tem como característica comum a mortalidade de nós


humanos e a marca da existência na realização de um feito incomum.
Daí, a confusão com os deuses, esses sim imortais, independentemente
de gestos altruístas ou vilania suprema. Sua jornada só termina
quando ele pode retribuir à sociedade tudo aquilo que somou ao
longo de sua aventura.
No caminho dos heróis estão inúmeros desafios que implicam
coragem, respeito, compaixão. E, apenas depois disso, acontecerá o
reconhecimento como alguém que tinha habilidades fora da média
e precisava buscar um caminho onde isso pudesse ser reconhecido
como especial, alcançando assim a imortalidade. Se se divinizam
por seus feitos, são também demasiadamente humanos nas virtudes
e nos defeitos.
As semelhanças com a trajetória de atletas não são casuais. E
quanto mais atletas conheço e compartilho trajetórias mais reforço a
minha tese. Entretanto é preciso ter muito cuidado para que o herói
não seja confundido com um ídolo.
Ídolo é apenas uma imagem que se adora como se fosse a
própria divindade. Tem o sentido de uma figura por quem se tem
adoração, um simulacro. Está associado a poderes sobrenaturais e
daí que idolatria é uma prática de adoração de ídolos.
Edgar Morin se refere a esses tipos como olimpianos e
compreende que tanto atletas quanto artistas usufruem dessa condição,
principalmente porque têm os meios de comunicação a lhes conferir
um status que sustenta a própria mídia. Qualquer semelhança com
comportamentos de torcedores, não é mera coincidência.
Atletas que se confundem com o mito do herói fazem na
atualidade uso de sua imagem de pessoas que buscam todos os dias
a perfeição – que não é humana – e chamam a atenção do mundo
para o que está acontecendo em seus países ou cidades. Combatendo o
racismo, ou a discriminação de gênero, acusando o descaso com o país
ou com a saúde da população esses atletas mostraram que o jogo está
para além das quadras, campos, piscinas e ginásios.
Não há esporte sem a figura espetacular do atleta. Sendo assim,
não há como querer separar o esporte da política, razão de ser da
vida em sociedade.

50
Apresentação à 2ª edição

E assim são os verdadeiros heróis do esporte. Encantam por suas


habilidades na competição, mas também por tudo o que fazem pelo
seu país ou grupo social. Do outro lado estão os ídolos que vivem de
vender a própria imagem. Fazem crer que são divinos, mas fechados
em seu próprio ego buscam satisfazer aos próprios desejos.
Ler com atenção uma obra escrita há 20 anos promove uma
variedade de sensações e sentimentos que vão do espanto por algumas
construções teóricas ao lamento por não ter desenvolvido alguns
conceitos de forma mais verticalizada. Isso quer dizer, que nessa edição
foram corrigidas algumas falhas na forma, porém, não no conteúdo.
Na atualidade, provavelmente não utilizaria diversas referências
bibliográficas, seja por identificação política ou epistemológica. O
melhor é saber que vários autores aqui citados permanecem em meus
textos atuais como bons amigos que partilham as virtudes e as dores
de uma longa jornada.
A intenção maior dessa edição é celebrar a maioridade de um
livro que desencadeou uma linha de pesquisa e o trabalho de muitos
alunos, agora, já pesquisadores com pensamentos próprios, atuais e
comprometidos socialmente. Do mito, à história oral até chegar nas
narrativas biográficas, método e instrumento primeiro dos trabalhos
desenvolvidos pelo Grupo de Estudos Olímpicos (GEO), foram 20
anos de trabalho e quase 50 teses defendidas pelos meus orientandos.
Isso pode fazer supor o fim de uma trajetória, entretanto, sou levada
a crer que é apenas o início de um novo ciclo inaugurado com o meu
retorno à Faculdade de Educação da USP, na condição de docente em
tempo integral, onde essa aventura teve início.
Toda jornada heroica começa com a presença de um mestre.
Nessa obra, o psicopompo foi o Prof. Dr. José Carlos de Paula
Carvalho, meu orientador no doutorado, na Faculdade de Educação
da USP, que me conduziu pelo complexo universo do imaginário.
Gratidão que não tem fim.
Há exatos 20 anos, junto com a primeira edição dessa obra,
nascia o Grupo de Estudos Olímpicos. Ao longo dessas duas décadas
foram muitos os alunos regulares, de graduação, pós-graduação e
colaboradores que contribuíram com as pesquisas que derivaram desse
livro. Mesmo correndo o risco de esquecer algumas pessoas vou aqui
mencioná-las por referências já feitas em outras obras.

51
Katia Rubio

Meus agradecimentos, com a doce lembrança daquela que seria


a primeira geração do GEO, quando a pesquisa era feita de forma meio
quixotesca e romântica: Adriano Leal de Carvalho, Carlos Henrique
Tapetti, Carolina Bonzo, Cleber Guilherme, Danilo Luis Rodrigues
Lemos, Dario Apareceido Custódio, Edmilson Silva de Oliveira,
Eduardo de Oliveira Cruz Carlassara, Elisa Martins da Silva, Felipe
A. Moraes, Felipe de Melo Futada, Flávia Maria Roquette Ferreira,
Flavio Lico, Gabriel Vinicius Morais de Andrade, Gilmar Barbosa
de Souza, Ivarilson Silva do Nascimento, Julio Cezar Soares da Silva
Fetter, Leandro Fatiche Pavani, Leonardo Cursino dos Santos, Lígia
Silveira Frascareli, Lucas José Alves de Oliveira, Marcelo de Moraes
Albuquerque, Marcelo Paulino de Souza, Maria Lucia Soares da
Silva, Marília Bandeira, Marina Penteado Gusson, Martha Maria
Borromoletz de Abreu Dalari, Milena Bushatsky Mathias, Raoni
Perrucci Toledo Machado, Tarsila Ely Tramontin Batista, Thais
Fernandes Silva.
Houve então um momento de virada que era preciso buscar de
forma sistemática os atletas olímpicos brasileiros e a estruturar as
narrativas biográficas como método de pesquisa. Essa, que pode ser
compreendida como a segunda geração do GEO, foi composta por:
Alexandre Velly Nunes, Aline Toffoli Martins, Ana Maria Mesquita,
Bernard Kenj (in memoriam), Luciana Ferreira Angelo, Marcio
Antonio Tralci Filho, Maria de Fátima Favoretto, Paulo Henrique
do Nascimento, Ricardo Richter, Sergio Estevam Carlos de Araujo,
Sérgio Settani Giglio.
A terceira geração que vive o lançamento dessa segunda edição já
como colaboradores e autores, representa a maturidade não só de um
grupo de pesquisa, como de uma linha de investigação. Gente de fibra
e de generosidade singular. Passaram por muitos mais trabalhos do que
Hércules, com a astúcia de Odisseu e o compromisso de partilhar o
conhecimento tão caro a Prometeu: André Arantes, Andreza Rodrigues,
Bianca Silva, Carla Meira, Carlos Rey Perez, Dhênis Rosina, Eder
Magalhães, Edilene Mendonça, Gabriel Savonitti, Gabriela Gonçalves,
Gislane Melo, Isaias Sodré da Nóbrega Júnior, Ivan Sant’Ana Rabelo,
Júlia Frias Amato, Juliana Ferreira, Juliana Marconi, Julio Cezar
Soares da Silva Fetter, Luciane Tonon, Luciano Sampaio Duque Silva,

52
Apresentação à 2ª edição

Marcelo Alberto de Oliveira, Marcos Chiguetoshi Nishida, Maria Alice


Zimmermann, Marojrie Enya, Natália Kohatsu Quintílio, Neilton
Sousa Ferreira Junior, Roberta Cardoso, Rafael Campos Veloso,
Raoni Perrucci Toledo Machado, Rovilson de Freitas, Thabata Castelo
Branco, Tiago Brant, Vilson Furtuoso da Silva, Vinicius Cardoso de
Souza, Waleska Vigo Francisco, William Douglas de Almeida.
À Fapesp, CNPq e Capes que financiaram muitos projetos cujo
início se deu nesse livro. Sim, a Terra não é plana e as ciências humanas
são tão fundamentais para a compreensão do ser humano e do mundo
quanto todas as demais áreas que explicam a existência de forma exata
ou biológica.
Aos atletas que, ao longo desses muitos anos, generosamente
compartilharam suas almas, suas memórias, suas dores, suas buscas e
seus tesouros.

Katia Rubio

53
Katia Rubio

54
Ao contrário de heróis como Prometeu
ou Jesus, não nos empenhamos em nossa
jornada para salvar o mundo, mas para
salvar a nós mesmos...
Mas, ao fazer isso, você salva o mundo.
(Joseph Campbell,
O herói das mil faces)

A sociedade tem se organizado


na atualidade de forma a valorizar a
ascensão, a vitória, o melhor, impondo
um padrão de comportamento que
privilegia o mais forte, o mais habilidoso.
Aqueles que alcançam o primeiro
lugar são valorizados, utilizados como
exemplo para os perdedores (termo que,
aliás, é tido pelos mais competitivos
como adjetivo dos mais desmoralizantes)
e contribuem para a perpetuação de um
tipo de conduta.
Por conta de suas proezas e pela
tenacidade em perseguir seus objetivos
esse tipo particular tem sido comparado
ao herói. No entanto, ao se fazer essa
afirmação, não existe a preocupação
em conhecer e reconhecer todo o
périplo por que passa esse personagem
existente na mitologia e na história da
humanidade desde os tempos em que as

Introdução
façanhas eram conhecidas apenas pela
tradição oral.

55
Katia Rubio

Citando Otto Rank, Campbell1 afirma que somos todos heróis


ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto
psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas,
vivendo no fluído amniótico, para assumirmos, daí por diante, a
condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que, mais
tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés.
Se para a sociedade como um todo o referencial mítico do herói
tem servido como parâmetro para justificar atitudes competitivas,
no esporte essa referência ganha força redobrada, uma vez que a
máxima para o atleta é a vitória. Na Antiguidade, os atletas que
participavam dos Jogos Olímpicos distinguiam-se do restante da
população, na medida que a inclusão nesse evento era restrita aos
cidadãos (ou seja, não era permitido aos escravos e às mulheres
competirem nem, tampouco, assistir às competições) e àqueles que
passavam por um processo iniciático para conquistar o direito ao
exercício dos Jogos. Em caso de vitória, além da coroa de louros
recebida, o atleta vencedor gozava da glória concedida aos mais
poderosos como honras políticas, isenção de impostos, pensões
vitalícias, escravos entre outras regalias. Fora isso, os feitos atléticos
colocavam seu protagonista na galeria dos heróis mitológicos,
indicando a impressão de seu nome em documentos e praças públicas
onde esses feitos eram contados e celebrados.
Na atualidade, a coroa foi trocada por medalhas – ouro, prata
e bronze –, as honras e isenções foram transformadas em contratos
publicitários milionários e o prestígio conquistado por alguns atletas,
que praticam modalidades organizadas, reconhecidas e prestigiadas
pelo grande público, leva-os a uma posição de destaque social que
beira a realeza.
Quem acompanha as transmissões esportivas observa uma
falta de cerimônia do locutor ou do jornalista esportivo ao se referir
àquele atleta consagrado, que em seu currículo acumula uma série
de ‘façanhas’ que o distingue dos demais, como o herói em campo.

Campbell, (1990) faz uso desse exemplo para abrir o capítulo A Saga do Herói, em
1

O Poder do mito, e coloca o nascimento, ao lado da maternidade – o que confere à


mulher a condição de heroína – como os dois grandes atos heróicos da humanidade.

56
Introdução

Fato curioso aconteceu na Copa FIFA – Campeonato Mundial de


Clubes – quando no jogo final Corinthians e Vasco se enfrentaram no
Maracanã lotado. A uma certa altura do jogo, Romário, do Vasco,
sente uma dor, que se caracteriza como contusão, e é substituído,
tirado de campo, com seu time em desvantagem no placar. A câmera
colocada no túnel que sai do campo capta a imagem de todo o
trajeto feito pelo atleta até chegar ao vestiário, acompanhada de uma
locução emocionada, que dizia com a voz embargada: “E aí vai o
herói que lutou bravamente para levar o seu time à vitória. Vencido
pela contusão e pela dor é obrigado a abandonar a batalha. Vai
guerreiro, que a tua batalha já acabou”2 .
O caso de Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpico no
salto triplo, é muito ilustrativo dessa condição. Reverenciado por seu
feito raro durante sua carreira atlética, tratado com esquecimento
durante sua vida fora das pistas, foi ovacionado como herói por
todos os meios de comunicação no dia de sua morte, tendo inclusive
estampado em primeira página3 a manchete ‘Morre Adhemar Ferreira
da Silva. Nosso herói olímpico voa para a eternidade’.
Outros casos, como a dor de Ronaldinho em maio de 2000, pela
contusão ‘trágica’ depois de um longo período de afastamento, ou a
morte de Ayrton Senna, em maio de 1994, podem ser citados para
exemplificar a comoção coletiva que uma fatalidade pode provocar
na sociedade que reverencia essas pessoas como seus ídolos.
Reconhecidos como aqueles, e aquelas, destacados entre os
mais fortes, mais velozes e mais habilidosos, que superam todos os
obstáculos para chegar à vitória, enfim, o protótipo de seres quase
perfeitos, os atletas que alcançam o estrelato vivem (ou têm vivido)
a condição de uma vida solitária, rígida e monótona, segundo seu
próprio ponto de vista, mas que aos olhos do grande público é repleta
de far niente e privilégios.
Do jogo entre esses dois polos – o público e o privado – vai se
constituindo o imaginário esportivo da atualidade.

Galvão Bueno, locutor esportivo, Rede Globo. Janeiro de 2000.


2

Jornal Agora, 13 de janeiro de 2001, p.A-12.


3

57
Katia Rubio

Em estudo anterior (Rubio, 1998), referenciado basicamente em


Moreno, Pichon-Rivière e Anzieu4, em que me detive sobre o processo
de formação de vínculo em equipes esportivas, ficou patente que esse
processo estava sujeito a outras forças dinâmicas que não foi possível
abarcar naquele momento. Minha prática como psicóloga de equipes
esportivas me permitia inferir que elementos internos e externos
aos atletas interferiam e, por vezes, determinavam comportamentos
caracterizados como ‘inexplicáveis’, ‘surpreendentes’ ou ‘inaceitáveis’
por parte de familiares, comissão técnica e dirigentes.
Essa dúvida me acompanhou ao longo de um período no qual eu
continuava a buscar não a resposta, mas a compreensão do processo
para que situações semelhantes, em outros grupos, pudessem ser
detectadas.
Um encontro sincrônico permitiu a aproximação com um novo
referencial teórico, no qual resultou essa tese. Desde a pré-matrícula,
para cumprimento dos créditos do mestrado, na disciplina Antropologia
hermenêutica, educação fática e estórias de vida, na Faculdade de
Educação, com o Prof. Dr. José Carlos de Paula Carvalho, foi possível
vislumbrar um outro tipo de caminho para as questões levantadas até
então: o imaginário e toda a extensão e profundidade que ele recobre
para a compreensão dos conjuntos humanos estruturados – pessoas,
interações, grupos, organização e instituição.

O trabalho de Moreno representa uma grande contribuição para a compreensão


4

de grupos, por elaborar o conceito de papéis (Psicodrama, 1991). De sua


obra extraímos o conceito tele, que é o elemento produtor de aproximações
proveitosas, através da percepção enquanto substrato biológico e também
existencial, intelectivo, afetivo e social, para analisar as relações do grupo, e o
instrumento utilizado na pesquisa – a sociometria. Por sua vez Pichon-Rivière
contribuiu grandemente para as discussões sobre grupos, principalmente nas
obras Teoria do vínculo (1995) e O processo grupal (1991), onde considera o
indivíduo como uma resultante dinâmico-mecanicista não da ação dos instintos
e dos objetos interiorizados, mas sim do interjogo estabelecido entre o sujeito e os
objetos internos e externos, em uma predominante relação de interação dialética
que se expressa por meio de certas condutas. Já Anzieu (1993) na obra O grupo e
o inconsciente, vai discutir e elaborar, por via do método psicanalítico, a realidade
imaginária dos grupos (o imaginário grupal), considerada ‘envoltórios’, como uma
membrana, que possui uma face interna, continente das projeções das fantasias e
imagos dos membros do grupo, e uma face externa que desencadeia as relações
de competição, aliança ou neutralidade, principalmente com outros grupos, que
funciona como uma barreira ou filtro.

58
Introdução

Posso afirmar que num primeiro momento a complexidade dos


temas e a utilização de um novo referencial teórico – o paradigma
holonômico, de Edgar Morin e as estruturas antropológicas do
imaginário de Gilbert Durand – me causaram espanto, mas a
curiosidade e uma certa intuição de que ali seria possível beber em
novas fontes, me fizeram seguir em frente, com a absoluta certeza de
que o caminho era aquele, mas o destino final, incognoscível.
E assim comecei minha aventura mítica, no sentido de perseguir
o trajeto heroico dentro do esporte, buscando integrar elementos
do universo esportivo competitivo contemporâneo – o atleta e a
instituição esportiva – com o mitema subjacente a esse universo,
nossa hipótese inicial, o heroico.
A via que me levava ao elemento esporte me colocou, desde
o princípio, diante de inúmeras definições e da polêmica que gira
em torno desse conceito. Era preciso ter clareza do que iria chamar
de esporte – uma prática institucionalizada, regrada, que objetiva
o rendimento e, portanto, a vitória – para poder distingui-la da
atividade física, uma prática de tempo livre muito mais próxima do
lúdico e do lazer. E ao buscar as referências desse tipo de prática
na história, pude constatar que essa polêmica é tão antiga quanto a
própria competição esportiva, ou seja, as críticas ao rendimento para
a vitória vinham desde Platão.
Não bastando as questões teóricas relacionadas ao esporte, era
evidente a necessidade de situar essa discussão dentro do contexto
cultural contemporâneo, principalmente naquilo que se referia ao
moderno e ao pós-moderno, visto que essa prática é considerada como
uma expressão da cultura atual para uns e/ou produto dos meios de
comunicação de massas para outros.
A outra força que me impelia a prosseguir era do mito do herói e,
nesse caso, para que eu tivesse a certeza de chegar ao destino e não me
perdesse pelo caminho, era preciso ter clareza do que seria chamado de
herói, discriminando o herói personagem mítico do herói arquetípico.
Quando a imprensa, meus alunos ou o senso comum se referem ao
atleta enquanto herói, em seu imaginário constelam figuras como
Hércules, Ulisses, Gilgamesh, Jonas, Luke Skywalker, porém seus
feitos independem deles guerreiros, conquistadores, destemidos, fortes

59
Katia Rubio

ou audaciosos. E então foi possível constatar que o herói ao qual essas


pessoas, e também os próprios atletas, se referiam não tinha nome,
mas era o realizador de feitos incomuns. Essa despersonalização me
fez acreditar na possibilidade de o herói esportivo estar vinculado ao
herói arquetípico e, a partir desse momento, eu chegava ao território
do imaginário, do regime de imagens e a todo um universo simbólico
desejado, porém desconhecido.
O imaginário, conforme o apresenta Durand (1997), é um sistema
ordenador de imagens que permite compreender o modo organizador
do indivíduo, tanto em nível subjetivo como social, representado nas
relações objetivas e intersubjetivas.
Não foi sem surpresa que descobri que nessa perspectiva o
imaginário era classificado em dois regimes – regime diurno e regime
noturno – e neles se agrupavam três séries de esquemas estruturais: a
heroica, a mística e a dramática.
Ao tomar contato com a estrutura heroica percebi como o atleta
moderno se amoldava a ela, uma vez que seus valores adjacentes são
o confronto, a luta, a ascensão, o domínio. Se por um lado essas são
características do atleta de um modo geral, também o são do momento
histórico vivido. A questão então a ser respondida era a ordem dessa
determinação. Era cedo para a resposta, mas atuando junto a atletas
e estudando os heróis da Antiguidade foi possível perceber que esses
traços caracterizavam o atleta contemporâneo, tornando-o uma
espécie de herói. Essa caracterização, porém, longe de uma relação
causal está fortemente marcada pelo arquétipo do herói.
Esses foram os passos dados para eu poder chegar a meu objeto
de estudo, o imaginário esportivo, tendo atletas de várias idades e em
diferentes etapas da carreira como sujeitos.
Meu objetivo com esse estudo foi compreender a constituição
do imaginário de atletas e, relacionando ao regime de imagens de
Durand (1997) e ao trajeto heroico de Campbell (s.d.), levantar os
mitemas que constelam esse universo na atualidade, entre atletas em
diferentes momentos da carreira. As histórias de vida desses atletas
foram tomadas individualmente e gravitaram em torno de questões
relacionadas mais especificamente à vida esportiva desses sujeitos,
que optaram por uma prática, em diferentes locais e momentos

60
Introdução

cronológicos e que os levou a ser identificados como atletas de


determinadas modalidade esportiva.
Analisadas de maneira individual essas histórias de vida
apontaram os mitemas predominantes em cada um desses atletas, que
de maneira mais manifesta ou mais latente aproximam-se do mito do
herói. A indicação fundamental, no entanto, é a maneira como o mito ou
a busca dele se expressa ao longo da carreira esportiva desembocando
na fórmula da unidade nuclear do monomito (separação-iniciação-
retorno), sugerida por Campbell (s.d.).
Do ponto de vista do esporte essa trajetória é vista como a escolha
e dedicação à modalidade, a conquista das posições em times de seleções
e a retirada do mundo competitivo e início de uma atividade inédita,
associada ao esporte ou não, caracterizada como uma nova vida.
Empreender a busca deste universo foi uma aventura pessoal, na
medida em que o trabalho foi se construindo ao longo do percurso.
Em princípio esperava empregar o AT-9, instrumento experimental
desenvolvido por Yves Durand, baseado nas estruturas antropológicas
do imaginário de Gilbert Durand. Para minha surpresa houve muita
resistência por parte dos atletas em responder ao instrumento de
maneira satisfatória, realizando-o apenas em parte, ou recusas
categóricas, na presença dos estímulos sugeridos pelo teste.
Diante disso, as histórias de vida, que seriam um complemento
do trabalho, foram mantidas como o instrumento de pesquisa e a
mitocrítica utilizada como forma de análise.
No final dessa jornada foi possível encontrar mais do que os
elementos que caracterizariam o universo mítico do herói no esporte.
Antes de mais nada esse trabalho foi o encontro com um universo
repleto de histórias, algumas delas públicas, acompanhadas ao longo
dos anos por jornais e revistas, outras tantas privadas, que só faziam
sentido se reveladas no contexto de seu acontecimento. Só posso
considerar que compartilhar desses fatos que fazem a história do
esporte e de atletas, podendo refletir sobre elas e oferecer algumas
considerações a seu respeito, foi uma dádiva.
E como oferta divina, eu só tenho a agradecer.

61
Katia Rubio

62
Para os povos primitivos, caçadores
dos mais remotos milênios da história
humana, em que o tigre de dentes
de sabre, o mamute e as presenças
menos importantes do reino animal
constituíam as manifestações
primárias do diferente – a fonte
do perigo e, ao mesmo tempo, do
sustento –, o grande problema
humano consistia em tornar-se
psicologicamente vinculado à tarefa
de compartilhar as selvas com esses
animais...
Em nossos dias, esses mistérios
perderam sua força; seus símbolos
já não interessam à nossa psique...
O homem configura-se como aquela
presença estranha com a qual devem
as forças do egoísmo chegar a um
acordo, presença por meio da qual o
ego deve ser crucificado e ressuscitado
e à cuja imagem a sociedade deve ser
reformada...
O herói moderno, o indivíduo
moderno que tem a coragem de
atender ao chamado dessa presença,
Cultura com a qual todo o nosso destino deve

contemporânea:
ser sintonizado, não pode esperar que
sua comunidade rejeite a degradação
gerada pelo orgulho, pelo medo,
entre o pela avareza racionalizada e pela
incompreensão santificada.
moderno e o
(Joseph Campbell,
pós-moderno O herói das mil faces)

63
Katia Rubio

O esporte ao qual se faz referência e se analisará ao longo


desse trabalho, apresenta-se num momento específico, final do século
XX e início do século XXI. Ainda que, posteriormente, buscar-se-á
resgatar o início do esporte e da atividade física, a intenção dessa obra
se fixa na contextualização do fenômeno esportivo no presente, daí o
atleta contemporâneo. Isso porque, esse modelo construído no final
do século XIX foi pautado sobre o modelo grego antigo, porém com
as características de um espaço-tempo contemporâneo, que levou os
Jogos Olímpicos, na atualidade, a serem chamados de da Era Moderna.
O que leva a essa distinção entre atleta moderno e atleta
contemporâneo não é apenas um adjetivo que expressa temporalidade,
mas todo o conjunto de valores desse lapso temporal agregados
ao sujeito.
Para que essa discussão possa ser feita, não de forma historicista,
mas dentro de uma periodização como proposto por Jameson1, faz-se
mister apresentar e relacionar os conceitos de modernidade e pós-
modernidade, como esse debate se dá na cultura e como se reflete no
esporte, considerado um valor cultural.

Moderno, modernismo e modernidade


O termo moderno tem sido utilizado para se referir ao novo,
ao recente ou atual, àquilo que rompe com um modelo previamente
estabelecido.
Adjetivo daquilo que foi transformado, o termo moderno
remonta, segundo Taschner (1999), ao século V (modernus, em latim),
que servia para diferenciar o (então) presente cristão da era passada
considerada pagã.

Jameson (1997) considera que toda análise cultural isolada e disjuntiva sempre
1

envolve uma teoria subjacente, ou reprimida, de periodização histórica. Sendo assim


propõem a periodização como uma maneira de superar a crise da historicidade
vivida no campo de forças que o autor denomina pós-moderno. Essa crise tem
levado o sujeito a uma perda de sentido na dinâmica vivida como presente, passado
e futuro. Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa
suas protensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado
e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como
a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não ‘um
amontoado de fragmentos’ e em uma prática de heterogeneidade a esmo do
fragmentário, do aleatório. (p.52)

64
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

Associado ao novo, não é de estranhar que tenha sido utilizado,


por exemplo, para se referir a um período de transição histórica – a
Idade Média para a Idade Moderna – marcado pelo Renascimento
e pela Reforma, além do descobrimento do continente americano
também chamado Novo Mundo.
De acordo com Habermas (1990), o mundo novo significava o
mundo moderno e distinguia-se do antigo pelo fato de se abrir para
o futuro, permitindo o começo de um novo epocal que se repete e se
perpetua a cada momento do presente, o qual a partir de si gera o
que é novo.
Mas, moderno na atualidade tem ganhado motivos e significados
próprios, principalmente ao longo do século XX. Teixeira Coelho
(1995, p.14) afirma que moderno é termo dêitico, termo que designa
alguma coisa mostrando-a sem conceituá-la; que aponta para ela sem
defini-la; indica-a, sem simbolizá-la.
Moderno é, assim, um índice, tipo de signo que veicula uma
significação para alguém a partir de uma realidade concreta em
situação e na dependência da experiência prévia que esse alguém
possa ter tido em situações análogas.
A relação com o novo foi ganhando com o tempo novos
contornos e novas significações. A noção de novo ou, mais
precisamente, a valorização do que é novo, não é uma constante
na história da cultura, mas um fenômeno do processo de
industrialização e mercantilização (o mercado exige coisas
diferentes que, exatamente por serem diferentes, devem valer
mais do que as coisas conhecidas). E é a novidade a consciência
neurotizada, a representação neurótica do novo. E por isso o
moderno é, não raro, a consciência neurotizada da modernidade.
Nesse sentido, ao discutir modernidade a partir da conceituação
de moderno, modernismo e modernidade, Teixeira Coelho (1995)
se propõe situar o debate mais próximo ao âmbito da cultura.
Já o modernismo, prossegue, é, inicialmente, um estilo. Uma
linguagem, um código, um sistema ou um conjunto de signos com
suas normas e unidades de significação. Implica uma visão de mundo,
e sendo uma representação, o modernismo é mais uma fabricação do
que uma ação. Ele parece ser antes do que a consciência, um signo

65
Katia Rubio

produzido por um indivíduo ou grupo de indivíduos, signo de toda


uma geração ou apenas um recorte dela.
Finalmente, modernidade é a reflexão, é a crítica ou o esboço
de crítica, ou a tentativa de conhecimento sobre o fato gerado pelo
modernismo. Se o modernismo é a certeza e, não raro, a arrogância
do produtor, a modernidade é a interrogação, a dúvida e a reflexão
(Teixeira Coelho, 1995, p.17).
Apesar de atual, essa discussão está longe de ser consensual. A
modernidade, ou o projeto da modernidade, tem seu início reconhecido
no século XVIII e firma-se ao longo do século XIX. Este período é
marcado pela Revolução Industrial – e uma economia de mercado
inédita – , pela forma marxista de pensar o social – estabelecendo
uma conexão entre a vida privada, a abstração e o formalismo
generalizados que invadem a prática social – e pelos passos iniciais
da psicanálise – a noção de inconsciente e a subjetividade privatizada.
Eurocêntrica, em princípio, e depois ampliada para as nações
consideradas desenvolvidas, a utilização do moderno passou a ser uma
referência para pensar o desenvolvimento atual.
O termo modernização, segundo Habermas (Habermas, 1990,
p.14) foi introduzido como inicialmente utilizado a partir dos anos 50,
e refere-se a um
feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à
formação de capital de mobilização de recursos, ao desenvolvimento
das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho,
ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação
de identidades nacionais, à expansão escolar formal, refere-se à
secularização de valores e normas.
Apesar do uso de valores essencialmente econômicos e
políticos, o campo da cultura tornou-se território privilegiado para
essa discussão.
Habermas distingue modernidade de modernização afirmando
que dos impulsos de uma modernidade cultural que aparentemente se
tornou obsoleta, destacou-se uma modernização social que progride de
forma autossuficiente, em que são executadas apenas as leis funcionais
da economia e do Estado, da técnica e da ciência, as quais parecem
ter-se conjugado num sistema imune a influências. Surge, então, como

66
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

verso de uma cultura exausta e cristalizada, a aceleração incessante de


processos sociais.
‘Cristalizada’, é assim que Gehlen classifica a cultura moderna,
porque todas as possibilidades nela contidas foram já
desenvolvidas nos seus componentes fundamentais. Descobriram-
se e assimilaram-se igualmente todas as possibilidades contrárias
e antíteses, de tal modo que agora se tornam cada vez mais
improváveis quaisquer alterações das suas premissas... Se o leitor
tiver esta noção aperceber-se-á da cristalização... mesmo num
domínio tão surpreendentemente movimentado e matizado como
é o da pintura. (1990, p.15)
As questões relacionadas ao debate sobre modernismo são
para Jameson (1997, p.314) a um só tempo estéticas e políticas. Se
por um lado o modernismo se via como uma prodigiosa revolução
na produção cultural, por outro estava diretamente relacionado ao
progresso industrial, à racionalização, à reorganização da produção e
da administração de forma mais eficiente, à eletricidade, às linhas de
montagem, à democracia parlamentar e ao barateamento dos jornais.
Ou seja, o modernismo deve ser visto como correspondendo de forma
singular a um momento desigual do desenvolvimento social, em que
passaram a coexistir realidades de momentos radicalmente diferentes
da história como o artesanato e grandes cartéis, a agricultura familiar
não intensiva com fábricas de alta tecnologia
se a modernização é algo que acontece com a base, e o
modernismo a forma que a superestrutura assume como reação
a esses acontecimentos ambivalentes, então talvez a modernidade
sirva para caracterizar a tentativa de se obter algo coerente dessa
relação. A modernidade seria, nesse caso, a descrição de como as
pessoas ‘modernas’ veem a si mesmas... Esse sentimento moderno
parece agora consistir na convicção de que nós mesmos somos de
certo modo novos, que uma nova era está começando, que tudo
é possível e que nada pode jamais ser o mesmo novamente; e nós
também não queremos que nada seja novamente o mesmo, nós
queremos ‘fazer o novo’, nos livrar de tudo o que for velho.
A ideia de modernidade, para Touraine (1995), na sua forma
mais ambiciosa, foi a afirmação de que o ser humano é a representação
67
Katia Rubio

do que ele faz, ou seja, há uma relação inextricável entre produção,


tecnologia, organização da sociedade, a vida pessoal, animada pelo
interesse e pela vontade de se libertar de todas as opressões. Essa
mesma ideia substituiu Deus no centro da sociedade pela ciência,
deixando as crenças religiosas para a vida privada, ou seja, a proposta
da modernidade está estreitamente associada à racionalização.
A ideologia ocidental da modernidade, que Touraine chama de
modernismo, substituiu a ideia de Sujeito e a de Deus e as meditações
sobre a alma por estudos de sinapses cerebrais e dissecação de
cadáveres. O indivíduo, conceito esse também moderno, passou a ser
entendido como submetido às leis naturais e do Estado.
Afirmava o modernismo que o progresso da racionalidade e da
técnica não tinha somente efeitos críticos de liquidação das crenças,
dos costumes e dos privilégios herdados do passado, mas que ele criava
também conteúdos culturais novos e, por isso, uma complementaridade
entre razão e prazer.
Touraine prossegue afirmando que os manuais de história
se referem ao período moderno como o que vai da Renascença à
Revolução Francesa e aos princípios da industrialização em massa da
Grã-Bretanha, isso porque
as sociedades onde se desenvolveram o espírito e as práticas
da modernidade procuravam mais pôr em ordem que pôr em
movimento: organização do comércio e das regras de câmbio,
criação de uma administração pública e do Estado de direito, difusão
do livro, crítica das tradições, das proibições e dos privilégios. É
a razão, mais que o capital e o trabalho, que desempenha então o
papel principal. (Touraine, 1995, p.36)
A contraposição do moderno ao antigo está tão distante no
tempo quanto a intenção daqueles que buscam se distinguir do que
é ou está ultrapassado. Entretanto, Lefebvre (1969.) acredita que a
significação do moderno se transformou. Buscando seu emprego em
várias situações históricas e pensadores, o autor pôde associar o termo à
ascensão da burguesia, ao crescimento econômico, ao estabelecimento
do capitalismo, ao efêmero, ao fugaz.
Para o autor, a modernidade, sobre um plano que não a explica,
mas que a revela, nasce das grandes transformações por que passou

68
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

o mundo no século XX. Afirma que os contemporâneos têm a


impressão de uma revolução estética e científica, paralela à revolução
política, e que, segundo alguns, leva a esta última, segundo outros,
permitiria poupá-la.
O período efervescente inicia-se em cerca de 1905 (Apolinaire,
Cendrars, Max Jacob-Braque, Picasso, o cubismo analítico etc.)
Começa logo pouco antes da guerra de 1914-1918, atinge seu
apogeu no fim da guerra, depois da revolução soviética, e acaba
entre 1925 e 1930, com a dupla estabilização, a do capitalismo e a
da revolução proletária. (Lefebvre, 1969, p.212)
Aponta como sinais, aos quais nomeia invenção técnica da
sociedade industrial, da demarcação temporal desse período a rua, as
atividades de trabalho e de prazer, a cotidianidade, porque depreciam
e suplantam os símbolos, regularizam praticamente os atos e armam
comportamentos indispensáveis ao livre desdobramento do indivíduo.
Foto, cinema, publicidade, multiplicam as imagens, povoando
os muros e as consciências de apelos estereotipados e de símbolos
decaídos. A luz elétrica, fixa e artificial, recorta mais fortemente a
cidade, os monumentos, as ruas e as estradas, em relação ao contexto
natural: campo, céu, espaço. A eletricidade acentua os traços da
paisagem urbana mais fortemente do que a iluminação a gás (que
interveio de maneira tão desprezível na formação do mito da cidade no
século XIX). Assim, a anti-natureza torna-se meio social e estabelece-
se na cidade moderna (Lefebvre, 1969, p.211).
A modernidade, com todos os sinais dessa invenção técnica da
sociedade industrial, se caracteriza por dois aspectos contraditórios e
indissoluvelmente ligados: ela leva ao cúmulo a alienação, juntamente
com uma de suas criações, a alienação técnica. O mundo transtornado
permanece o mundo real, mas simultaneamente, por meio desta alienação
máxima, a desalienação não é senão mais urgente e mais apressada.
A modernidade caricatura e monetariza a Revolução total, que
não aconteceu. De bom ou de mau grado, mal e desajeitamente, no
interior do mundo transtornado e não recomposto, a Modernidade
realiza as tarefas da Revolução; crítica da vida burguesa, crítica
da alienação, enfraquecimento da arte, da moral, e geralmente das
ideologias etc. (Lefebvre, 1969, p.269).

69
Katia Rubio

Durante as transformações ocorridas a partir dos primeiros anos


do século XX – a revolução russa, a revolução einsteiniana, a revolução
cubista – observam-se invenções e descobertas técnicas que logo
foram incorporadas ao cotidiano (carro, avião, eletricidade, utensílios
domésticos) alterando radicalmente formas de comportamento. É a
partir desse momento simbólico, afirma Teixeira Coelho (1995), que
podem ser esboçadas algumas linhas gerais em torno das quais se move
a sociedade moderna:
- a mobilidade: a ordem está no movimento. Tudo se move e
muda. Tudo, sob todos os aspectos. A mobilidade é técnica,
o que gera a especialização e alterações no modo de vida e
no arranjo do tempo. Ela é também social porque a posição
recíproca dos indivíduos muda quando se toma por referência
o momento anterior e continua móvel dentro deste período.
As mudanças permanecem ativas no campo da moral e da
ideologia. Esse processo de mudança estaria gerando uma
lógica própria – mudança gera mudança – que escaparia ao
ser humano.
- a descontinuidade: decorrência da mobilidade, ela fornecerá
ampla base de sustentação para a arte da modernidade. A
descontinuidade assinala a passagem do procedimento
sintético para o analítico. Analisar é dividir. O que parecia
indivisível é agora fracionado em suas partes.
- o cientificismo: é a fetichização da ciência – que é a pedra de
toque, a substância alquímica de transformação de tudo –
um dos principais mitos modernos. Ela e seu simulacro, a
tecnologia, apresentam-se como a verdade única. Apesar de
traço do moderno, é a modernidade que pensa esse cientificismo.
- o esteticismo: é a invasão de todos os recantos da vida cotidiana
pela arte ou alguma forma de arte, ainda que desbastada.
Arte e indústria, arte e máquina, arte e técnica apesar de
pertencerem a universos distintos e opostos são postos lado a
lado numa conflituosa conciliação. O projeto da modernidade
implicava um afastamento entre o produtor cultural e seu
público. A modernidade tardia tratou de preencher esse fosso
com uma estética de massa, uma estética industrializada.

70
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

- a representação sobre o real: decorrência do esteticismo tem-


se no papel exercido pelo artista a sua condição pessoal, uma
con-fusão entre criador e criatura. Cria-se toda uma cultura
da representação e apresenta-se essa cultura como se fosse a
cultura. É, porém, uma cultura de fantasmas, imaginações
e delírios, uma cultura delirante.
As cisões, as dualidades e os dilaceramentos levados às últimas
consequências, e as investigações da modernidade criaram as condições
para que a expressão ‘pós-modernidade’ surgisse para designar um
novo movimento, não como a dominante cultural de uma ordem
socialmente nova, mas como reflexo das modificações que o próprio
sistema estava vivendo.

Pós-moderno, pós-modernismo
e pós-modernidade
O momento pós-moderno é considerado como uma ruptura
iniciada pelo modernismo.
Utilizado num primeiro momento, de acordo com Anderson
(1999) na década de 1930 por Federico de Onís para descrever um
refluxo conservador dentro do próprio modernismo literário, foi
apenas vinte anos depois que o termo surgiu no mundo anglófono,
dentro de um contexto bastante distinto, não como categoria estética,
mas como de época. O autor defende que o pós-modernismo pode ser
visto como um campo cultural triangulado, por sua vez, em três novas
coordenadas históricas: no destino da própria ordem dominante; na
evolução da tecnologia; nas mudanças políticas de época, concluindo
que ele surgiu da combinação de uma ordem dominante desclassificada,
uma tecnologia mediatizada e uma política sem nuances. Anderson
(1999) buscou neste ensaio fornecer um balanço sobre a proposta
de pós-modernidade que identificasse de forma precisa suas diversas
fontes nos respectivos cenários espaciais, políticos e intelectuais, com
maior atenção para a sequência cronológica, tendo como propósito
secundário identificar algumas das condições que podem ter produzido
o pós-moderno, não como ideia, mas como fenômeno.
Analisando a pós-modernidade em termos de condição do
conhecimento nas sociedades mais desenvolvidas e colocando-a no
contexto da crise das narrativas, Lyotard (1989, p.11) concebeu o
71
Katia Rubio

pós-moderno como o estado da cultura após as transformações


que afectaram as regras do jogo da ciência, da literatura e das artes
a partir do fim do século XIX, não como uma consequência ou
desdobramento do moderno, mas como um movimento de renovação
interna inerente ao moderno desde o início, onde o conhecimento
tornou-se a principal força econômica de produção numa corrente
desviada dos Estados nacionais.
Nessa obra, considerada um dos marcos sobre o tema, a questão
central colocada é a criação de um novo referencial epistemológico,
capaz de responder às novas condições do conhecimento, impostas
pelas transformações sociais.
A nossa hipótese de trabalho é que o saber muda de estatuto ao mesmo
tempo que as sociedades entram na era dita pós-industrial e as culturas
na era pós-moderna. Esta passagem começou, pelo menos, no fim dos
anos 50, que para a Europa marca o termo da sua reconstrução. Ela é
mais ou menos rápida segundo os países e, nestes, segundo os sectores
de actividade: donde, que haja uma discronia geral, que não facilita o
quadro de conjunto (Lyotard, 1989, p.15).
Lyotard defende a tese de que o saber científico é uma espécie
de discurso, e aponta o quanto o saber vem sendo transformado em
decorrência dos avanços tecnológicos, responsável pela criação de
uma nova linguagem. E tanto o saber científico como os avanços
tecnológicos são marcos de uma sociedade pós-industrial, berço da
pós-modernidade.
Afirma que na cultura pós-moderna, a questão da legitimação do
saber está afetada, nas suas regulações essenciais, por duas modificações
importantes que seriam o enriquecimento das argumentações e a
complexidade da administração das provas. Isso tem gerado o uso de
linguagens arbitrárias, submetidas a condições pragmáticas, que formulam
suas próprias regras, deixando a cargo do destinatário que as aceite.
Por ser possível generalizar esta propriedade (a completude),
deve-se, portanto, reconhecer que os formalismos têm limitações
internas. Estas limitações significam que, para o lógico, a metalíngua
utilizada para descrever uma linguagem artificial (axiomática) é
a ‘língua natural’ ou ‘língua quotidiana’; esta língua é universal,
dado que todas as outras línguas se deixam traduzir nela; mas não

72
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

é consistente em relação à negação, pois permite a formação de


paradoxos (Lyotard, 1989, p.89).
E com o uso desse precedente, não apenas a ciência, mas
as artes de uma maneira geral, constituíram universos próprios e
passaram a justificar sua produção pelo ineditismo das ideias ou da
construção.
Frontalmente contrário a Lyotard no que se refere à exclusividade
do desenvolvimento da pós-modernidade apenas às sociedades mais
desenvolvidas ou do Primeiro Mundo, Teixeira Coelho (1995, p.57)
aponta uma contradição nessa construção: o conceito pode ser
demasiado amplo ao ser aplicado à ciência, arte, literatura, indústria;
por outro lado, é demasiadamente restrito ao valer apenas para as
sociedades avançadas. A contradição encontrada nessa afirmação é
que os países subdesenvolvidos não podem produzir formas culturais
desvinculadas da condição econômica rudimentar em que se encontram,
distanciando-os das formas de produção cultural dos ‘desenvolvidos’.
A essa distorção o autor responde: O Brasil pré-moderno tem um
Glauber pós-moderno.
A adoção do parentesco formal e de conteúdo entre pós-moderno
e pós-industrial é assumido por Teixeira Coelho que apresenta a
Primeira Idade da Máquina como os tempos ‘heroicos’ da Revolução
Industrial e das relações sociais por ela geradas, tendo como traço a
disponibilidade do gás de carvão para iluminação e aquecimento e seu
símbolo máximo o automóvel. Na sequência viria a Segunda Idade da
Máquina, ou a sociedade pós-industrial, amparada na tecnologia, na
produção em massa, na química sintética e na eletrônica.
O que pode então definir a pós-modernidade? Fugindo da
armadilha preparada pelo moderno que buscava analisar e sintetizar,
Teixeira Coelho aponta três traços, que somados, não conseguirão
compor um quadro geral da pós modernidade, mas cada um deles
conterá em si uma imagem do todo sendo que a totalidade será bem
mais ampla do que a soma das imagens parciais.
- a parataxe: procedimento de análise e de construção ou
reconstrução poética privilegiado pela pós-modernidade. É
um processo que consiste em dispor, lado a lado, blocos de
significação sem que fique explícita a relação que os une,

73
Katia Rubio

conduzindo o receptor a uma condição ativa: ou ele mergulha


no vazio e preenche esse espaço com sua própria trama ou não
haverá significação para ele.
- a aproximação entre arte e ciência: é a associação entre a lógica
e o poético, sem supremacias. O investigador tem de retirar suas
teorias e hipóteses, assim como seus elementos de análise, de
vários lados, e só assim será possível abarcar a complexidade dos
tempos atuais, da ciência e da filosofia da ciência. Não há uma
perfeita correspondência entre as linguagens e há linguagens
nas quais esse procedimento é mais viável ou pertinente do que
em outras.
- a relação com a história: o pós-modernismo não sugere um
retorno simples ao passado – se há retorno é retomada e
reformulação – e critica a afirmação de que os tempos que
correm são de decadência, uma vez que o fundamental é
entender as diferenças e especificidades do objeto analisado
em relação a outros objetos análogos contemporâneos ou
passados.
Em suma, os grandes traços da pós-modernidade seriam
o anarquismo, o tudo vale, o inclusivismo, a proliferação, a aceitação
do antigo e da historiografia; o reconhecimento da ideologia como
traço dominante da humanidade e não como traço a ser superado
inelutavelmente pela ciência, como acreditava a modernidade; a
importância do estilo; a referência ao mito; a revisão do projeto da
modernidade que separou o Estado da moral e estes dois da arte,
mas que criou o novo para Estado-Ciência cujo ‘cabeça de casal’ é
o Estado (Teixeira Coelho, 1995, p.100).
Temos, então, que uma das características mais marcantes do
pós-modernismo é o modo pelo qual inúmeras análises de tendências
se aglutinaram para formar um novo gênero discursivo, possibilitando
tantas análises quantas tendências existirem.
Para Jameson (1997), o pós-modernismo é o que se tem quando
o processo de modernização está completo e a natureza se foi para
sempre. É um mundo mais completamente humano do que o anterior,
mas é um mundo no qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira
‘segunda natureza’.

74
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

Sendo assim, entende o pós-modernismo não como uma


dominante cultural de uma ordem social totalmente nova, mas apenas
um reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica
do próprio capitalismo. Consequentemente, na cultura pós-moderna,
a própria cultura se tornou um produto, o mercado tornou-se seu
próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos
itens que o constituem. Nessa condição, a cultura, necessariamente,
expandiu-se ao ponto de se tornar praticamente coextensiva à própria
economia, não apenas como base sintomática de algumas das maiores
indústrias do mundo, mas de maneira muito mais profunda, uma
vez que todo objeto material ou serviço imaterial se torna, de forma
inseparável, uma marca trabalhável ou produto vendável. A cultura,
nesse sentido, como inevitável tecido da vida no capitalismo avançado,
é nossa segunda natureza.
E o esporte e a indústria esportiva entram nessa esteira associando
imagem e marca de forma inseparável.
O problema do pós-modernismo para Jameson é a um só tempo
estético e político. Inspirado na periodização de Mandel, divide o
capitalismo em três momentos fundamentais, que irão influenciar
diretamente os movimentos culturais: o capitalismo de mercado ou a
Primeira Idade da Máquina, representada pela invenção das máquinas
a vapor (têxteis, locomotiva) que teriam um correspondente cultural no
realismo. Em seguida viria o estágio do monopólio ou do imperialismo
representado pela exaltação da máquina, a excitação do futurismo,
celebrados na invenção da metralhadora e do automóvel, tendo o
modernismo como correspondente cultural. E, por fim, a Terceira
Idade da Máquina ou o estágio do capital multinacional, chamado
erroneamente, segundo o autor, de pós-industrial, representada pelo
computador e pela televisão, máquinas muito mais de reprodução do
que de produção, características do pós-modernismo.
A concepção de pós-modernismo de Jameson é, especificamente,
cultural e histórica e não meramente estilística, pautada na dominante
cultural da lógica do capitalismo tardio, e não como um estilo entre
muitos outros disponíveis. É um novo estágio na história do modo de
produção reinante e, por isso, sua discussão sobre o destino da cultura
em geral, e da função da cultura em particular, como um nível ou
instância social na atualidade.

75
Katia Rubio

A dissociação entre as estratégias econômicas e a construção de


um tipo de sociedade, de cultura e de personalidade operou-se muito
depressa, segundo Touraine (1995), definindo a proposta de pós-
modernidade. Se em um primeiro momento a modernidade associou
progresso e cultura, impondo a contradição sociedades e culturas
tradicionais versus sociedades e culturas modernas, explicando todo fato
social ou cultural pelo lugar que ocupa na linha tradição-modernidade,
a pós-modernidade vai dissociar o que havia sido associado. Para o
autor o pós-modernismo, tal como foi definido, é muito mais que uma
moda intelectual, uma vez que prolonga diretamente a crítica destrutiva
do modelo racionalizador lançada por Marx, Nietsche e Freud. Ele
é o resultado de um longo movimento intelectual, incompatível com
o essencial do pensamento social herdado dos séculos XVIII e XIX,
em particular com noções como as de historicidade, de movimento
social e de sujeito. O movimento pós-modernista conduz ao extremo a
destruição da representação modernista do mundo.
Apresentando a pós-modernidade como uma época de
disparidade manifesta relativamente ao passado, Giddens (1995, p.37)
discute o termo pela negação do significado, ou seja
que descobrimos que não se pode saber nada com qualquer
certeza, uma vez que todos os ‘fundamentos’ preexistentes da
epistemologia se revelaram falíveis; que a ‘história’ é destituída de
teleologia e, consequentemente, nenhuma versão de ‘progresso’
pode ser plausivelmente defendida; e que nasceu uma nova agenda
social e política com a crescente importância das preocupações
ecológicas e, talvez, dos novos movimentos sociais em geral.
E para não reforçar um conceito com o qual não concorda,
Giddens propõe como denominação desse movimento e período
‘modernidade radicalizada’.
Kaplan (1993) define o momento pós-moderno como a
ruptura iniciada pelo modernismo, um período transicional entre
o romantismo do século XIX e o atual panorama cultural. Essa
ruptura iniciada pelo modernismo foi prontamente preenchida pelo
desenvolvimento das recentes e sofisticadas tecnologias eletrônicas e,
ao mesmo tempo, foi drasticamente alterada nesse processo, de modo
a se tornar ‘pós-moderna’.

76
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

O desenvolvimento tecnológico da informática, que viveu seu


grande salto nos anos 80, alterou consideravelmente a base produtiva
da nossa sociedade, estabelecendo um novo parâmetro para a
comunicação, para a produção e para a cultura.
A produção mecânica considerada rígida chegou na era
da automação e tornou-se flexível, flexibilidade que possibilitou
segmentar produtos e serviços, chegando a personalização, permitindo
fazer produtos que atendam a desejos, necessidades e expectativas de
públicos restritos ou de grupos cada vez mais individualizados (Harvey,
1992; Taschner, 1999).
Porém, nem todos compartilham dessa visão em relação à
tecnologia. Polan (1993) afirma que a caracterização de pós-modernista
sugere um afastamento da confiança panglossiana do modernismo na
tecnologia, na visão e no empenho, em direção a um desinteresse por
toda sorte de expressividade – um espetáculo de superficialismo que
não visa a nenhuma celebração de mitos, a nenhum sentido superior. E
ressalva que é necessário cautela quando se faz uso da descrição de um
pós-modernista na cultura atual para que ela não seja entendida como
uma descrição de nossa cultura como um todo.
E, finalmente, para um contraponto com a criação do sujeito e
da subjetividade na modernidade, o que se tem como valor subjetivo
que acompanha a velocidade das mudanças econômicas, tecnológicas,
culturais e do cotidiano na pós-modernidade é a ‘vontade de liberdade’2.
Isso implica, segundo Bauman (1998, p.10), em uma experiência
na qual o mundo é vivido como incerto, incontrolável e assustador,
diferentemente da segurança projetada em torno de uma vida social
estável, ou da ordem, como proposta pela psicanálise. Para o autor, é
na universalização do medo ou das perdas derivadas da troca da ordem
pela busca da liberdade, e não na fragmentação da cultura e do sujeito
contemporâneos, que está o cerne da discussão do pós-modernismo.
Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da
felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm

Em uma referência direta com O mal-estar na civilização, de Freud, Bauman


2

(1998) escreve O mal-estar da pós-modernidade, fazendo uma vigorosa reflexão


sobre as ansiedades vividas na atualidade.

77
Katia Rubio

de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma


segurança individual pequena demais.
Segundo esse autor, psiquicamente, a modernidade (o momento
atual que vivemos e que outros autores denominam pós-modernidade)
tratou da identidade. Tanto social como psiquicamente, a modernidade
é irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim, sem
perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação que faz com que
toda realização seja meramente uma pálida cópia do seu modelo. Em
outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de permanecer
fixo. Ser moderno significa estar em movimento.
No que se refere à busca de identidade, Teixeira Coelho (1999)
aponta que o pensamento pós-moderno aceita a multiplicação das
diferenças, substituindo a procura da identidade permanente ou
estável pela deriva ao sabor das identificações sucessivas e provisórias.
A decorrência disso é o ceticismo diante de todas as narrativas
interpretativas totalizantes – religiosas ou políticas – ; recurso crítico
para o rompimento das cadeias do etnicismo e do nacionalismo; a
relativização dos marcos referenciais; a contestação das instituições e
não mais sua negação, como até os anos 60; a recusa em ver a relação
entre natureza e cultura, entre natureza e humanidade, como pólos
de uma oposição e a aceitação de ambas como componentes de um
processo dinâmico de equilibração.
Que o pós-modernismo seja posterior ao modernismo não
quer dizer que o segundo deixou de existir assim que o primeiro se
manifestou e se instalou na sociedade e na cultura. Ou seja, uma
das características dos tempos atuais é a convivência dessas duas
formas de produzir e agir. Se para a modernidade a vida individual
e coletiva é pensada sobre um projeto futuro, a pós-modernidade
está marcada por uma atenção maior com o presente, cujo
resultado são a
relativização do poder de atração e de significação do novo e do
original, a aceitação do descontínuo como próprio da condição
humana e de sua representação, e o abandono da ênfase no
linear-analítico em favor do sincrônico-sintético. (Teixeira
Coelho, 1999, p.310-3111)
Estão postos os referenciais culturais contemporâneos.

78
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

Cultura contemporânea e comunicação


Cultura tem sido um dos conceitos mais usados e de compreensão
mais ampla nas ciências sociais e humanas na atualidade. A provável
causa dessa dificuldade reside na amplitude do conceito que favorece
uma variedade de conotações.
Nas concepções clássicas de cultura encontram-se preocupações
com todos os aspectos de uma realidade social. Sendo assim, cultura
refere-se a tudo aquilo que caracteriza a existência social de grupos,
povos ou nações, ou seja, é uma dimensão do processo social e não
uma decorrência de leis físicas ou biológicas.
No entender de DaMatta (1986) cultura é a maneira de viver
total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Seria, pois, um mapa,
um receituário, um código por meio do qual as pessoas de um dado
grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si
mesmas. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe
simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um dos membros de
um grupo social, no formato de regras, permitindo que os indivíduos se
relacionem entre si, e o grupo com o ambiente no qual ele está inserido.
Sendo assim, a cultura é um conjunto de regras que diz como o mundo
pode e deve ser classificado.
Geertz (1989, p.15), por sua vez, acredita que o homem é um
animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, e,
portanto, assume a cultura como sendo essas teias e a sua análise.
Sendo assim, ela seria não uma ciência experimental em busca de leis,
mas uma ciência interpretativa à procura de significado. É justamente
uma explicação que eu procuro. Entende que a cultura é pública
porque seu significado também o é.
O conjunto de características, comportamentos, valores ou
crenças que fazem algumas pessoas compartilharem aquilo que é
comum a todos os seres humanos, ou a apenas algumas pessoas
ou simplesmente a ela própria, tornando algumas características
universais e outras peculiares, é denominada, por Wallerstein (1994),
cultura. O fato de cada indivíduo ser um membro de muitos grupos,
de diferentes espécies – classificados por sexo, raça, linguagem, classe,
nacionalidade – leva-o à condição de participante de várias ‘culturas’.
Dentro dessa maneira de falar, a cultura é uma maneira de sintetizar
as formas em que os grupos se distinguem de outros grupos. Ela

79
Katia Rubio

representa aquilo que é compartilhado dentro do grupo, e, como se


supõe, simultaneamente, aquilo que não é compartilhado (ou não
plenamente compartilhado) fora do mesmo grupo... Por outro lado,
o termo cultura é usado também para designar não a totalidade da
especificidade de um determinado grupo em relação a outro grupo,
mas, antes, certas características dentro do grupo, em oposição a
outras características dentro do mesmo grupo (p.42).
Wallerstein prossegue buscando distinguir o significado desse
emprego de cultura, daquele que atribui o conceito às artes ‘superiores’,
em oposição à prática popular ou do dia a dia, ou para designar aquilo
que é ‘superestrutural’ em oposição àquilo que é base, ou ainda aquilo
que é ‘simbólico’ em oposição ao ‘material’, distinções binárias que
indicam uma divisão dentro do grupo e não a unidade deste mesmo
grupo. Essa intensa discussão que tem durado os séculos XIX e XX
leva a duas formas de definir cultura:
- sentido I - o conjunto de características que diferencia um
grupo do outro;
- s entido II - um determinado conjunto de fenômenos que são
diferentes de (e ‘superiores’ a) um outro conjunto de fenômenos
dentro de qualquer outro grupo.
E conclui essa definição afirmando que a cultura utilizada no
sentido I não chega muito longe nas análises históricas, e a cultura
apresentada no sentido II torna-se suspeita, como camuflagem
ideológica para justificar os interesses de algumas pessoas –
obviamente a classe dominante – dentro de um determinado grupo
ou sistema social, contra os interesses de outras pessoas dentro do
mesmo grupo.
Fazendo uma dura crítica à definição de cultura proposta
por Wallerstein, caracterizando-a de tipicamente estruturalista e
monótona, Boyne (1994) afirma que o conceito como está posto
indica ou características compartilhadas dentro de um grupo, que
distinguem este mesmo grupo de outros grupos, ou distorções
hierárquicas dentro de grupos que valorizam um determinado
conjunto de características de preferência a um outro conjunto
de características... Estas são as duas tonalidades do conceito de

80
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

cultura; o primeiro representa a harmonia dentro de um grupo, o


segundo, a divisão (p.69).
O autor prossegue criticando Wallerstein por sustentar que
tem havido uma confusão intelectual perene entre os dois sentidos
da proposta de cultura que se deve, em parte, ao desenvolvimento
histórico do sistema mundial e uma reflexão da sua lógica. Afirma,
ainda, que se o conceito de cultura girasse apenas em torno dos
problemas de harmonia e de diferença internas e externas dos grupos,
então, talvez pudesse ser unívoco. Entretanto, como a cultura também
procura definir e encontrar interesses considerados vitais, autônomos
e específicos aos agentes que os buscam, a harmonia do grupo em
relação a outros grupos e a desarmonia do mesmo grupo em relação
à sua própria constituição não oferecem por si mesmas as tonalidades
principais do conceito de cultura.
Boyne define cultura como sendo tudo aquilo que precisa ser
descrito, aquilo que não pode ser previsto na base de alguma premissa
teórica, e não apenas o campo de batalha ideológico do sistema
mundial moderno (Boyne, 1994, p.70).
Chaui (1990, p.90) participa e contribui para essa discussão ao
afirmar que hegemonia é sinônimo de cultura em sentido amplo e
sobretudo de cultura em sociedade de classes, uma vez que ela permeia
um conjunto articulado de práticas, ideias, significações e valores que
se confirmam e constituem o sentido global da realidade para todos
os membros de uma sociedade, e critica a separação entre cultura
popular e cultura erudita. Observa que a cultura dominante é condição
e resultado da separação radical entre trabalho manual e intelectual e
lança mão do conceito de alienação para determinar a situação da
cultura popular, a fim de que não se atribua a uma esfera da sociedade
algo que define o próprio todo social.
A autora pondera que se a cultura do povo for considerada como
uma recusa explícita ou implícita das culturas das elites, se estaria
diante de duas culturas diferentes que exprimiriam a existência de
diferenças sociais, e que seria preciso admitir que a sociedade não é
um todo unitário, mas que se encontra internamente dividida.
Neste caso, o autoritarismo das elites se manifestaria na necessidade
de dissimular a divisão, vindo abater-se internamente contra a

81
Katia Rubio

cultura do povo para anulá-la, observando-a numa universalidade


abstrata, sempre necessária à dominação em uma sociedade
fundada na luta de classes. Elite significaria precisamente elitismo
e segregação, mas, ao mesmo tempo, afirmação de um padrão
cultural único e tido como o melhor para todos os membros da
sociedade (p.40).
Dessa forma, ao negar o direito à existência para a cultura do
povo, tida como ‘menor’, ‘atrasada’ ou ‘tradicional’ e desconsiderando
o direito ao usufruto da cultura ‘melhor’ aos membros do povo, as
elites surgem como autoritárias por essência, ou seja, a expressão
‘autoritarismo das elites’ é redundante.
Buscando observar essa questão por um outro ângulo Chaui
(1990), pondera que se as ideias dominantes de uma época são as ideias
da classe dominante dessa época, logo a cultura do povo reproduziria
o autoritarismo das elites. Neste caso o povo repetiria, à sua maneira e
segundo seus recursos, os padrões culturais vindos do alto e que
Não podendo ser integralmente copiados, levariam um observador
incauto a encarar a distância que separa o modelo e a cópia, não
como variação de grau do mesmo padrão e, sim, como diferença
real entre duas culturas. Nesta perspectiva, a cultura do povo, em
lugar de ser a recusa do que se passa na esfera das elites, seria,
antes, um instrumento para a dominação por parte daqueles que
detêm o poder e que nele são mantidos na qualidade de elites
justamente por serem tomados como paradigma do ‘melhor’, a que
todos aspiram (p.40).
Chaui (1990) afirma que a expressão ‘cultura do povo’ só
poderia surgir quando a existência da diferença, da oposição e da luta
no interior da sociedade é percebida como manifestação de diferença,
oposição e luta de classes, uma vez que não se fala apenas em povo e
elite, mas em cultura do povo e, portanto, em formas diferenciadas de
representar e interpretar a relação com a natureza e com os homens.
Por fim, a autora busca diferenciar cultura do povo de cultura popular
Considerar a cultura como sendo do povo permitiria assinalar
mais claramente que ela não está simplesmente no povo, mas que é
produzida por ele, enquanto a noção de ‘popular’ é suficientemente

82
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

ambígua para levar à suposição de que representações, normas e


práticas porque são encontradas nas classes dominadas são, ipso
facto, do povo. Em suma, não é porque algo está no povo que é do
povo (p.43).
Diante da diversidade implícita no conceito e nas práticas
culturais, Smith (1994) entende que se a cultura for compreendida
como um modo coletivo de vida, ou um conjunto de crenças, estilos,
valores e símbolos, então seria possível falar em culturas, no plural, e
não simplesmente em cultura. E se posiciona diante do debate sobre
uma cultura global afirmando:
porquanto um modo coletivo de vida, ou um conjunto de crenças,
etc., pressupõe diferentes modos e conjuntos dentro de um
universo de modos e de conjuntos. Por conseguinte, a ideia de uma
‘cultura global’ é praticamente impossível, a não ser em termos
interplanetários (p.183).
O autor descarta a possibilidade de uma ‘cultura global’ e do
ideal cosmopolita que poderia sobrepor-se ao mundo das nações, cada
qual cultivando a sua característica histórica distinta e redescobrindo
os seus mitos, memórias e símbolos nacionais das épocas áureas e das
paisagens sagradas do passado histórico. Por outro lado, a mistura
parcial das culturas, o surgimento de uma língua comum e de ‘pan’-
nacionalismos mais amplos criaram a possibilidade de ‘famílias de
culturas’ que pressageiam áreas culturais regionais mais amplas.
Nesse mesmo sentido, Featherstone (1994) afirma que as
variedades de respostas ao processo de globalização sugerem com toda
a clareza que existe pouca perspectiva de uma cultura global unificada;
pelo contrário, existem muitas culturas no plural. Afirma, ainda, que
o pós-modernismo é ao mesmo tempo um símbolo e uma poderosa
imagem cultural do desvio da conceitualização da cultura global,
menos em termos dos alegados processos de homogeneização, e mais
em termos de diversidade, de variedade e da riqueza dos discursos
populares e locais, dos códigos e das práticas que resistem e produzem
a sistematização e a ordem.
A diversidade de práticas culturais sugerida pela pós-modernidade
e a rapidez com que essa produção se propaga pelo planeta, como
resultado da expansão da tecnologia da comunicação, tem provocado

83
Katia Rubio

transformações drásticas nas diversas formas de produção cultural,


inclusive no esporte.
A mundialização da indústria cultural, como designa Ianni
(1997), tem provocado uma ocidentalização do mundo sem levar em
conta a sua cultura. Ou seja,
aos poucos, em todos os lugares, regiões, países, continentes,
a despeito das diferenças sócio-culturais que lhes são próprias,
os indivíduos e as coletividades são movidos pela mercadoria,
mercado, dinheiro, capital, produtividade, lucratividade (p.72).
Por outro lado, prossegue o autor, o encontro de culturas,
formas de vida e trabalho ou modos de ser raramente é único, unívoco,
unilateral, ainda que sempre haja o predomínio de um sobre o outro ou
os outros. Em geral ocorre a troca, simbiose, influência recíproca, ao
mesmo tempo que ambos ou todos se recriam, desenvolvem, mudam.
Uma outra forma de abordar e conceituar cultura, de acordo com
Paula Carvalho (1990), tem sido baseada nos estudos antropológicos
do imaginário, que propõe novas dimensões à análise da cultura e à
formulação das políticas culturais. Nesse ponto de vista, a cultura é
tratada como um circuito metabólico que se estabelece
entre o pólo das formas estruturantes, ou seja, das organizações e
instituições (o instituído) – no qual manifestam-se códigos, formações
discursivas e sistemas de ação –, e o polo do plasma existencial, isto
é, dos grupos sociais, das vivências, dos espaços, da afetividade e do
afetual, enfim do instituinte. Esse circuito é ainda dito metaléptico –
i.e., guiado pela intencionalidade do desejo nas trocas e substituições
dos elementos, suas causas e consequências – e caracteriza-se por
essa polarização e não por uma dicotomia, localizando-se a cultura
nesse anel recursivo que estabelece e alimenta a circulação constante
entre ambos os polos (p.234-235).
Em uma perspectiva próxima, Morin (1992) entende que a
cultura é uma característica da sociedade humana, e organiza e
é organizada por meio da linguagem e do conjunto de produções e
aptidões desenvolvidas e aprendidas de um conjunto social.
Assim se manifestam representações colectivas’, ‘consciência
colectiva’, ‘imaginário colectivo’. E, dispondo do seu capital

84
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a


sociedade e dirigem os comportamentos individuais. As regras/
normas culturais geram processos e regeneram globalmente a
complexidade social adquirida por essa mesma cultura (p.17).
Reconhece as sociedades contemporâneas como policulturais
onde estão comportadas a(s) cultura(s) religiosa(s), a sua cultura
nacional (integrando eventualmente culturas etno-regionais), uma
‘cultura de massas’ sincrética (veiculada pelos grandes órgãos de
informação), a cultura científica e a cultura humanista, considerada
há dois séculos como sendo a cultura.
Observando que o termo cultura pode receber tanto uma
definição totalizadora como uma definição residual, Morin (1992)
propõe cinco sentidos para o termo cultura:
1. sentido cognitivo: opondo-se à natureza, a cultura abarca
o universo daquilo que escapa ao comportamento inato
e, frente à regressão do capital genético, a cultura marca
o especificamente humano como capital simbólico e
organizacional, ou seja, tudo aquilo que se refere à ampliação
da competência organizacional (organização, estruturação e
programação social);
2. sentido antropológico: cultura é o universo do sentido, ou seja, a
começar pela linguagem, é o universo da produção do sentido
nas atividades humanas, abordadas fundamentalmente de
modo sêmico-intelectivo;
3. s entido etnográfico: o cultural se opõe ao tecnológico como
domínio do nomotético (crenças, ritos, normas, valores,
modelos de comportamento etc.);
4. sentido sociológico: é o residual não assimilável pelas
disciplinas econômicas, demográficas, sociológicas etc.,
ou seja, enumerativamente, o domínio do psico-afetivo, a
personalidade, a sensibilidade e suas adesividades sociais,
reduzindo-se mesmo à dita cultura cultivada;
5. c oncepção valorativa de cultura, centrada nas humanidades
clássicas e no gosto artístico-literário, opondo-se, ética e de
modo elitário, ao inculto e ao popular.
Diante do impasse gerado entre essas várias possibilidades, Morin

85
Katia Rubio

(1992) questiona se seria possível haver um sentido capaz de unificar


essa multiplicidade terminológica e conceitual. E, da mesma forma
que DaMatta e Wallerstein observaram dois sentidos para o conceito
de cultura, Morin também entende que há dois procedimentos, dois
métodos e duas filosofias para unificar os muitos significados do termo.
Uma delas reduz a cultura a estruturas organizacionais, ao passo
que a outra remete-a a um plasma existencial. Cada qual acentua
uma dimensão essencial da cultura, mas a oposição que estabelecem
e a irredutibilidade acabam por deslocar a problemática da cultura.
Se devemos encontrar um sentido para a noção de cultura, esse
sentido seria o liame entre a obscuridade existencial e a forma
estruturante (p.25).
Paula Carvalho (1990, p.40) prossegue a discussão acrescentando
que a primeira concepção reconduz o cultural ao semântico que gera
a codificação da significação sociocultural por meio de códigos e das
estruturas dos sistemas culturais, fundamentado na análise estrutural e
na autonomia da razão cultural. A segunda concepção enfoca a cultura
como modo de vivenciar um problema global, e isto se dá de maneira que
a cultura seria um limite incapaz de apreender a riqueza da realidade.
Portanto, a cultura, nessa perspectiva, deverá ser abordada
como uma forma de comunicação entre a experiência existencial
e um saber constituído. Em uma leitura feita a partir de Morin,
Paula Carvalho afirma:
Trata-se de um sistema indissociável onde o saber, ‘stock’ cultural,
seria registrado e codificado, somente assimilável pelos detentores
do código, os membros de uma cultura dada (linguagem e
sistema de signos e símbolos extralinguísticos); ao mesmo tempo
o saber estaria constitutivamente ligado a ‘patterns-modelos’
possibilitando organizar, canalizar as relações existenciais,
práticas e/ou imaginárias. Assim, a relação com a experiência
é bivetorializada: por um lado, o sistema cultural extrai da
experiência a existência, permitindo assimilá-la, eventualmente
estocá-la; por outro lado, propicia à existência molduras-quadros
e estruturas que assegurarão, dissociando ou misturando a prática e
o imaginário, tanto a conduta operacional, quanto a participação,
o desfrute, o êxtase.

86
Cultura contemporânea: entre o moderno e o pós-moderno

Esta concepção de cultura possibilita vislumbrar a relação


homem-sociedade-mundo por meio de dispositivos polarizadores e
transformadores, seus códigos e padrões (entendidos como subsistemas
complexos); perceber a cultura como mediação simbólica de alta
complexidade; permite trazer para a discussão de cultura elementos
que foram anteriormente deixados à margem como a personalidade,
a sensibilidade e as paisagens mentais, os mitos e as ideias-força, os
tabus; ser aplicada a todas as noções de cultura, da mais ampla à mais
restrita (da cultura como oposição à natureza à alta cultura), porque a
diferença entre as culturas é função da amplitude do sistema, ou campo
do saber, do campo da experiência existencial, das normas e modelos
e, mais profundamente, dos modos de distribuição e de comunicação
entre o real e o imaginário, o mítico e o práxico.
Referindo-se a Morin, Paula Carvalho (1990) entende o sistema
cultural oposto ao sistema natural e concebe a cultura como aspectos
da realidade social global, em suas instâncias econômica, social e
ideológica, ligando-a às demais dimensões sociais.
As recorrências entre as instâncias envolvidas na manutenção
do sistema é a tônica do movimento que instaura a cultura. E assim a
cultura não é nem uma superestrutura, nem uma infra-estrutura, mas o
circuito metabólico que liga a infraestrutura ao superestrutural (Morin,
1992, p.17). E não são apenas os elementos contemplados pela cultura
e pela ciência das chamadas sociedades históricas que irão participar
da elaboração de uma noologia, ou o complexo dos fenômenos que vão
do onirismo à cognição, integrados e ao mesmo tempo distintos3. A
unidade sugerida pela noologia possui uma esfera própria em que atuam
regras específicas, estratégias heurísticas originais, regras sistêmicas de
combinação e uma dialética intercomunicante ‘sui generis’ (p.17).
Há, contudo, uma distinção a ser feita entre os fenômenos
noológicos, considerados fenômenos culturais, e a noologia, responsável
por tornar manifesto o paradoxo da cultura.

Paula Carvalho (1990) referenciado em Morin, utiliza o termo sociedades


3

históricas para se referir, principalmente, à nossa sociedade enquanto sistema


simbiótico-antagonista de múltiplas culturas não-homogêneas, buscando
diferenciá-la das sociedades arcaicas que estabelecem pelo sistema mágico-
religioso uma unidade cultural sincrética dos saberes e das experiências. (p.42)

87
Katia Rubio

A noologia supõe a ‘unidade de princípio’ entre as ‘atividades


práticas do espírito (do cérebro) de tipo cognitivo e suas
fantasmáticas ou imaginárias’, a cultura aparece como sendo
simultaneamente ‘o domínio dos epifenômenos imaginários que
emergem ou arborecem a práxis social’ e o ‘domínio das unidades
codificadas portadoras de informação, que, portanto, propiciam
os princípios de orientação e de organização da práxis social’...
Entretanto, conceber a cultura como um dispositivo complexo,
complementar, concorrente e antagonista do generativo e do
fenomenal, consiste não só em se elaborar a noologia, mas, de
permeio, e de modo necessário, prover a uma nova concepção
de organização que acolha e álea, o risco e a desordem como
estruturadores, o que significa falar em organização neg-
entrópica, com todas as suas implicações antropolíticas (Paula
Carvalho, 1990, p.43).
Pensar e analisar os fenômenos culturais e as instituições, de
maneira geral, a partir desse referencial representa deslocar o discurso
e sua análise do concreto e linear, caracterizado pelo positivismo, para
o abstrato e circular, caracterizado pelo mítico.
Significa também penetrar no território do simbólico e do
imaginário, onde podem ser encontradas outras formas de representação
da realidade exterior, que não a intelectual e cognitiva.
E é por esse universo que nos aventuraremos no próximo capítulo.

88
O chamado à aventura significa
que o destino convocou o herói e
transferiu o seu centro de gravidade
espiritual do âmbito de sua sociedade
para uma zona ignota. Essa região
fatídica de tesouros e perigos pode ser
representada de várias formas: como
uma terra distante, uma floresta, um
reino críptico, por sob as águas do
mar ou para além dos céus, uma ilha
secreta, o píncaro de uma montanha
grandiosa ou um estado de sonho
profundo; no entanto, é sempre
um lugar de seres estranhamente
fluídicos e polimórficos, tormentos
inimagináveis, fatos sobre-humanos
e impossíveis delícias.
(Joseph Campbell,
O herói das mil faces)

Existem vários elementos


que compõem o universo do esporte,
responsáveis por caracterizar tanto
o fenômeno como o protagonista do
espetáculo.
O fenômeno esportivo é
entendido por Freitas Jr. (1992,

Oimaginário p.30) como a capacidade criativa,


de participação, de envolvimento
e suas e de disputa do ser humano que
não se restringe apenas a aspectos
estruturas puramente técnicos da atividade.
89
Katia Rubio

Sendo assim, por fenômeno esportivo podem ser entendidas as


diversas práticas corporais de movimento, nas distintas regiões do
planeta, onde se joga e brinca, fazendo uso de um instrumento ou
do próprio corpo. E como prática regrada e institucionalizada que
objetiva o rendimento e o resultado.
As expectativas geradas em torno do esporte levam a determinados
padrões de comportamento que irão, de certa forma, influenciar e,
por vezes, determinar a conduta daqueles que optam pela sua prática.
Afirmaríamos que essa é a razão por que em torno de uma modalidade
específica, e do esporte como um todo, desenvolve-se um conjunto de
práticas coletivas e comportamentos individuais chamados pelo senso
comum de cultura esportiva.
No caso específico do Brasil, o fenômeno esportivo considerado
quase uma unanimidade nacional, o futebol1, chegou ao país por meio
de um processo de difusão cultural trazido pelos filhos da burguesia
brasileira, que foram estudar na Inglaterra e pelos ingleses que vieram
ao Brasil trabalhar nas indústrias e serviços e aqui se instalaram desde
o século XIX. Ainda que uma prática burguesa, o futebol foi sendo
apropriado pelas outras camadas sociais, chegando a ser ‘usurpado’ no
início dos anos 1920. Na opinião de DaMatta, o futebol foi introduzido
no Brasil sob o signo do novo,
pois, mais do que um simples ‘jogo’, estava na lista das coisas
moderníssimas: era um ‘esporte’. Ou seja, uma atividade destinada
a redimir e modernizar o corpo pelo exercício físico e pela
competição, dando-lhe a higidez necessária a sua sobrevivência num
admirável mundo novo – esse universo governado pelo mercado,
pelo individualismo e pela industrialização (DaMatta, 1994, p.11).

A relação entre futebol e cultura no Brasil é discutida por DaMatta (1982), Bosi
1

(1991) e Rosenfeld (1993), mais recentemente, mas Gilberto Freyre já tratava do


tema em 1945, em Sociologia. Diz o autor: De maneira inconfundível formou-se um
estilo brasileiro de futebol; e esse estilo é uma nova expressão da mulatice, perito em
assimilação, domínio e abrandamento coreográfico sinuoso e musical de técnicas
européias e norte-americanas, que são muito angulosas para o nosso gosto – trata-
se de técnicas, de jogo ou de arquitetura. Pois nosso tipo de mulatice... é inimigo do
formalismo apolíneo, é dionisíaco na sua mobilidade... No futebol como na política,
a mulatice brasileira caracteriza-se pelo prazer da elasticidade, da surpresa, da
retórica, que lembra passos de dança e fintas de capoeira.

90
O imaginário e suas estruturas

Apesar de seu pouco tempo de vida como instituição, a intenção


de modernidade, de saúde e de novidade associados ao esporte aderiram
ao imaginário do século XX com a determinação e tenacidade que
caracterizam o atleta.
Se por um lado, o fenômeno, as instituições e os grupos
esportivos interessam-nos na sua arquetipologia social apresentada
por Paula Carvalho (1992), por outro, sua caracterização enquanto
pequeno grupo e o imaginário característico dele (Duvignaud, 1986;
Paula Carvalho, 1989) constituem-se o grande desafio desse estudo.

Rumo ao imaginário
Não se pretende aqui recobrir todo o caminho já trilhado por
outros autores como Paula Carvalho, 1985; 1990; 1999; Sanchez
Teixeira, 1988; Porto, 1994; Santos, 1998 para justificar o emprego do
imaginário como referencial paradigmático, não por se considerar a
discussão esgotada, mas suficientemente explorada e questionada por
aqueles que tinham esse objetivo. Não é o nosso caso.
Nossa escolha conduz a outras vertentes, sem negar o paradoxo
desta civilização, como aponta Sanchez Teixeira (1988), que recusa a
imagem em proveito do percepto e do conceito e que é incessantemente
solicitada, tentada e subvertida pelos grandes transbordamentos
do imaginário.
Buscam-se na atualidade novos caminhos que possam contribuir
para a compreensão e superação daquilo que se designa realidade.
Diante desse quadro a imaginação teve seu status alterado naquilo
que se refere à racionalidade porque passou a ser considerada como
uma possibilidade de extensão do ‘real’ ou daquilo que poderá vir a
tornar-se realidade.
Entende-se por real a interpretação que os seres humanos
atribuem à realidade. Essa realidade existe a partir das ideias, dos
signos e dos símbolos que são atribuídos à realidade percebida.
Na apresentação que fazem do imaginário Laplantine e Trindade
(1997) afirmam que o imaginário possui um compromisso com o real
e não com a realidade, que esta consiste nas coisas, na natureza; e
o real é a interpretação, é a representação que os homens atribuem
às coisas e à natureza. Os autores distinguem duas escolas que
conceituam e desenvolvem o tema a partir de uma discussão anterior
91
Katia Rubio

sobre imagem, ideia e símbolo. Uma delas é a escola estruturalista cuja


análise antropológica (com Lévi-Strauss), a psicanálise (de Jacques
Lacan) e a semiótica privilegiam o caráter substitutivo, convencional
ou relacional do símbolo.
Nesse caso, o símbolo prevalece sobre a imagem, à medida que,
enquanto a imagem está diretamente identificada ao objeto
referente – embora não seja a sua reprodução, mas a apresentação
do objeto –, o símbolo ultrapassa o seu referente e contém, através
de seus estímulos afetivos, meios para agir, mobilizar os homens e
atuar segundo suas próprias regras normativas (relacional ou de
substituição) (p.13).
A outra abordagem é chamada de escola antropológica e filosófica
substancialista representada por Gilbert Durand, Paul Ricoeur, Mircea
Eliade, Joseph Campbell e C. G. Jung, e representa uma continuidade
da tradição neoplatônica, que considera que a ideia é mais difícil e
menos verbalizável do universo simbólico.
Segundo a perspectiva neoplatônica, as imagens e o imaginário são
sinônimos do simbólico, pois as imagens são formas que contêm
sentidos afetivos universais ou arquetípicos, cujas explicações
remetem a estruturas do inconsciente (Jung, Campbell), ou mesmo
às estruturas biopsíquicas e sociais da espécie humana (Durand).
Embora considerem que o nível consciente emerge do inconsciente,
as especificidades históricas e socioculturais estão relegadas a um
segundo plano da análise. Em consequência, as imagens e sua
dinâmica, o imaginário, são identificadas aos símbolos (Laplantine
e Trindade, 1997, p.16-17).
Apesar da proximidade de alguns autores da mesma escola
naquilo que se refere ao conjunto de teorias, Laplantine e Trindade
acrescentam que há diferenças básicas entre eles. Afirmam que a
análise fundamentada na psicologia analítica de Jung e, de maneira
diferenciada, o estruturalismo partem da premissa do inconsciente
coletivo – e não dos homens – como doador de significados em
situações históricas e culturais definidas e como fornecedor de
significados ao universo em que vive e concebe. Sendo assim, quando
o símbolo é constitutivo de todo fenômeno e as imagens são símbolos
recorrentes e redundantes, o novo e o diverso adquirem sempre o

92
O imaginário e suas estruturas

mesmo sentido de eterno retorno às origens do pensamento único da


espécie humana.
De maneira diversa, Mircea Eliade e Gilbert Duran acreditam
encontrar a permanência dos símbolos arquetípicos na modernidade
das sociedades industriais contemporâneas. Nessas sociedades
modernas, subsiste a continuidade das grandes imagens míticas nos
objetos mais comuns do cotidiano, como os deuses do Olimpo grego.
Para Durand, fundamentando-se em Jung, a matéria primeira,
ou seja, a imagem (Bild na etimologia alemã), está contida no
inconsciente do qual emana o sentido (sinn). Nesses termos, o
símbolo (sinn Bild) é unificado a partir de pares opostos (consciente
e inconsciente, sentido e imagem) e permite, fora da língua, o sentido
de existir. Dado o caráter sincrético, o símbolo para os autores
de tradição neoplatônica, fala por si mesmo e conduz os homens
à reminiscência de um sentido primordial que é constitutivo da
imagem simbólica (Laplantine e Trindade, 1997, p.19).
Considerando essas premissas, Laplantine e Trindade conceituam
imaginário como a parte da representação enquanto tradução mental
de uma realidade exterior percebida, que ocupa apenas uma fração do
campo da representação à medida que ultrapassa um processo mental
que vai além da representação intelectual ou cognitiva. Afirmam que
para construir o processo do imaginário
é preciso mobilizar as imagens primeiras como dos homens,
cidades, animais e flores conhecidas, libertar-se delas e modificá-
las. Como processo criador, o imaginário reconstrói ou transforma
o real. Não se trata, contudo, da modificação da realidade, que
consiste no fato físico em si mesmo, como a trajetória natural dos
astros, mas trata-se do real que constitui a representação, ou seja,
a tradução mental dessa realidade exterior (p.26-27).
Em síntese, o imaginário não é a negação total do real, mas
apoia-se no real de modo a transformá-lo e deslocá-lo, dando origem a
novas relações no aparente real.

O imaginário sócio-histórico
Uma forma de conceber o imaginário, partindo de um referencial
sócio-histórico, foi pensada por Castoriadis (1982) onde a instituição

93
Katia Rubio

apresenta-se enquanto uma rede simbólica definida socialmente e


contém os componentes organizadores do imaginário. O imaginário
de Castoriadis não é imagem de. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens,
a partir das quais somente é possível falar de ‘alguma coisa’. Aquilo
que é denominado ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos.
Para o autor, tudo o que se apresenta no mundo social-histórico
está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico, mas não se
esgota nele.
Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a
guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais
sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento,
não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros
são impossíveis fora de uma rede simbólica (p.142).
Afirma que a primeira instância onde o simbólico pode ser
encontrado é na linguagem. Porém, ele pode ser igualmente encontrado
em diferentes graus e maneiras nas instituições que não se reduzem
ao simbólico. As organizações institucionais enquanto sistemas
simbólicos sancionados consistem em ligar a símbolos (a significantes)
significados (representações, ordens, injunções ou incitações para fazer
ou não fazer, consequências-significações, no sentido amplo do termo)
e fazê-los valer como tais, ou seja, a tornar esta ligação mais ou menos
forçosa para a sociedade ou para o grupo considerado.
Para Castoriadis (1982) a sociedade constrói seu simbolismo,
mas não dentro de uma liberdade total. O simbolismo está cravado
no natural e no histórico, participando, assim do racional. Tudo isso
faz com que surjam encadeamentos de significantes e significados,
conexões e consequências, que não eram nem visadas nem previstas.
Nem livremente escolhido, nem imposto à sociedade considerada,
nem simples instrumento neutro e medium transparente, nem
opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem senhor
da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, nem meio
de participação direta e completa em uma ordem racional, o
simbolismo determina aspectos da vida da sociedade (e não
somente os que era suposto determinar) estando ao mesmo tempo,
cheio de intertíscios e de graus de liberdade (p.152).

94
O imaginário e suas estruturas

As determinações do imaginário, porém, não se esgotam em sua


substância. Para Castoriadis subsiste um componente imaginário de
todo símbolo e de todo simbolismo, em qualquer nível que se situem.
E para que sua conceituação de imaginário não seja confundida com
definições de outras correntes teóricas, explica:
Falamos de imaginário quando queremos falar de alguma
coisa ‘inventada’ – quer se trate de uma invenção ‘absoluta’
(‘uma história imaginada em todas as suas partes’), ou de um
deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já
disponíveis são investidos de outras significações que não suas
significações ‘normais’ ou ‘canônicas’ (o que você está imaginando’,
diz a mulher ao homem que recrimina um sorriso trocado por ela
com um terceiro)... é evidente que o imaginário se separa do real,
que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não
pretende fazê-lo (um romance) (p.154).
Nesse sentido, existiriam profundas e obscuras relações entre
simbólico e imaginário, porque o imaginário deve utilizar o simbólico,
não somente para exprimir-se, mas para existir, para superar uma
condição virtual. Toda criação, seja um delírio ou uma fantasia, está
fundamentada em imagens e, portanto, possui uma função simbólica.
Por outro lado, o simbolismo pressupõe a capacidade imaginária, uma
vez que presume a condição de ver em uma coisa o que ela não é, de
vê-la diferente do que é.
A influência decisiva do imaginário sobre o simbólico pode ser
compreendida a partir da seguinte consideração: o simbolismo
supõe a capacidade de estabelecer um vínculo permanente entre dois
termos, de maneira que um ‘representa’ o outro. Mas é somente
nas etapas muito desenvolvidas do pensamento racional lúcido que
estes três elementos (o significante, o significado e seu vínculo sui
generis) são mantidos como simultaneamente unidos, e distintos,
numa relação ao mesmo tempo firme e flexível. Em outras etapas, a
relação simbólica... retorna, ou melhor, permanece desde o início lá
onde surgiu: no vínculo rígido... entre o significante e o significado,
o símbolo e a coisa, ou seja, no imaginário efetivo (p.154).
Ao pressupor que o simbólico comporta o imaginário radical
e nele se apoia, isso não significa que o simbólico seja apenas

95
Katia Rubio

o imaginário efetivo em seu conteúdo: o simbólico suporta um


componente racional-real e a elaboração do que representa o real ou
o que é indispensável para o pensar e agir, sendo que este componente
é tecido de maneira intricada com o componente imaginário efetivo.
Essa condição fica explícita, principalmente, no âmbito mágico-
religioso em que toda religião está centrada em um imaginário e,
enquanto religião, deve instaurar ritos; e, enquanto instituição, deve
cercar-se de sanções. Castoriadis propõe que ela não pode existir
como religião, nem como instituição se em torno do imaginário
central não se desenvolver um imaginário secundário. O imaginário
secundário é entendido como a cristalização de regras, atos, ritos,
símbolos; seus componentes estão repletos de elementos mágicos
e mais geralmente imaginários, cuja justificação relativamente ao
núcleo funcional é cada vez mais mediata e, finalmente, nula. Ele
corresponde a uma segunda ou enésima elaboração imaginária dos
símbolos, a sucessivas camadas de sedimentação (p.158).
Por isso, o mundo social é cada vez mais constituído e articulado
em função de um sistema de significações, e essas significações
existem, uma vez constituídas na forma do chamado imaginário
efetivo ou imaginado. É apenas relativamente a essas significações que
se pode compreender tanto a ‘escolha’ que cada sociedade faz de seu
simbolismo e, principalmente, de seu simbolismo institucional, como
os fins aos quais ela subordina a ‘funcionalidade’.
Para o autor, o mundo da modernidade, apesar da tendência a
impelir a racionalização ao seu extremo, desprezando os estranhos
costumes, invenções e representações imaginárias das sociedades
precedentes, depende do imaginário tanto quanto qualquer dessas
culturas consideradas arcaicas. Aquilo que se dá como racionalidade
da sociedade moderna é simplesmente a forma, as conexões
exteriormente necessárias, o domínio do silogismo, ou seja, a dedução
formal que permite uma conclusão. A pseudo-racionalidade moderna
é uma das formas históricas do imaginário; ela é arbitrária em seus
fins últimos na medida em que estes não dependem de nenhuma
razão, e é arbitrária quando se coloca como fim, visando somente
uma racionalização formal e vazia. Nesse aspecto de sua existência, o
mundo moderno é atormentado por um delírio sistemático do qual a
autonomização da técnica desencadeada, e que não está a serviço de
96
O imaginário e suas estruturas

nenhum fim determinável, é a forma mais imediatamente perceptível e


a mais diretamente ameaçadora.
Não é possível, para Castoriadis (1982), compreender o que foi
e o que é a história humana fora da categoria do imaginário. Não se
pode compreender uma sociedade sem um fator unificante, que forneça
um conteúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas.
Esse fator é o sentido que surge desde as origens, que não é um sentido
de real, que não é tampouco racional, ou positivamente irracional,
que é da ordem da significação, e que é a criação imaginária própria
da história, aquilo em que e pelo que a história se constitui para
começar. Esse pode ser o motivo para não se ‘explicar’ como e porque
o imaginário, as significações sociais imaginárias e as instituições que
as encarnam, se autonomizam.
É preciso pois abster-se, falando do imaginário, de fazer deslizar
uma imputação à sociedade considerada de uma capacidade
racional absoluta que, presente desde o início, teria sido repelida
ou encoberta pelo imaginário. Quando um indivíduo, crescendo em
nossa cultura, apoiando-se numa realidade estruturada de um modo
preciso, mergulhando num controle social perpétuo ‘decide’ ou
‘escolhe’ ver em cada pessoa que encontra um agressor em potencial
e desenvolve um delírio de perseguição, podemos qualificar sua
percepção dos outros como imaginária não somente ‘objetivamente’
ou socialmente – por referência aos marcos estabelecidos –, mas
subjetivamente, no sentido de que ele ‘teria podido’ forjar-se uma
visão correta do mundo; a forte prevalência da função imaginária
em seu desenvolvimento exige uma explicação à parte, na medida
que outros desenvolvimentos eram possíveis e foram realizados pela
grande maioria dos seres humanos (p.193-94).
Partindo dessa construção, Castoriadis irá propor que
a instituição da sociedade e as significações socais que nela
estão incorporadas desenrolam-se sempre em duas dimensões
indissociáveis:
- a dimensão conjuntista-identitária (‘lógica’): nela a sociedade
opera (‘age’ e ‘pensa’) com e mediante ‘elementos’, ‘classes’,
‘propriedade’ e ‘relações’ postulados como distintos e definidos.
O esquema dominante é o da determinação, e a exigência é de

97
Katia Rubio

que tudo o que é concebível esteja submetido à determinação e


às implicações ou consequências que dela decorrem. Do ponto
de vista desta dimensão, a existência é a determinidade.
- a dimensão propriamente imaginária: nela a existência é
significação, que pode ser demarcada, mas não determinada.
As significações se conectam indefinidamente umas às outras,
sob o modo fundamental do remetimento. Toda significação
remete a um número indefinido de outras significações. Elas
não são distintas nem definidas, e não estão interligadas por
condições e razões necessárias e suficientes.
Assim, as significações imaginárias sociais em uma dada
sociedade apresentam um tipo de organização desconhecido em outros
domínios, ao qual Castoriadis (Castoriadis, 1987) denominou magma.
Um magma ‘contém’ conjuntos – e mesmo um número indefinido
de conjuntos –, mas não é redutível a conjuntos ou a sistemas de
conjuntos, por mais ricos e complexos que estes sejam... E um
magma tampouco pode ser ‘analiticamente’ reconstituído, a saber,
por meio de categorias e operações conjuntivas (p.256).
Um magma é aquilo de onde se podem extrair organizações
conjuntistas em número indefinido, mas que não pode jamais ser
reconstituído (idealmente) por composição conjuntistas (finita ou
infinita) destas organizações. A instituição da sociedade é toda vez
instituição de um magma de significações imaginárias sociais, que
se pode denominar um mundo de significações, entendido como
a instituição da sociedade enquanto instituição do fazer social e do
representar/dizer social.
O mundo das significações tem que ser pensado, não como uma
réplica irreal de um mundo real...Temos que pensá-lo como posição
primeira, inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário
social tal como se manifesta cada vez numa sociedade dada; posição
que se presentifica e se figura na e pela instituição das significações...
que coloca, para cada sociedade, o que é e o que não é, o que vale
e o que não vale, e como é ou não é, vale ou não vale o que pode
ser ou valer. É ela que instaura condições e orientações comuns do
factível e do representável, e através disso dá unidade, previamente
e por construção, se assim podemos dizer, à multidão indefinida e

98
O imaginário e suas estruturas

essencialmente aberta de indivíduos, de atos, de objetos, de funções,


de instituições no sentido secundário e corrente do termo que é cada
vez, concretamente, uma sociedade (p.413).
Produto de uma chamada ‘realidade’, o imaginário se apresenta
para Castoriadis como o movimento contínuo entre instituição e sujeito,
individual e coletivo, em uma criação incessante e essencialmente
incompleta de elementos simbólicos construídos no espaço concedido
pela sociedade.

As estruturas antropológicas
do imaginário de Durand
Um outro caminho rumo ao imaginário é aquele aberto por
Gilbert Durand (1997, p. 18) que justifica, no prefácio da terceira
edição de ‘As estruturas antropológicas do imaginário’, o lugar e a vez
dessa abordagem: imaginário é esta encruzilhada antropológica que
permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana
por um outro aspecto de uma outra, e define-o como
o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande
denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações
do pensamento humano.
Essa proposta remete a uma re-organização da compreensão
da dinâmica do ser humano, naquilo que se refere a seus processos
subjetivos e sociais, representados tanto nas relações objetivas como
nas intersubjetivas.
Durand (1994) considera que todo pensamento humano é
representação, isto é, passa pelas articulações simbólicas, indicando
uma continuidade no homem entre o ‘imaginário’ e o ‘simbólico’. O
imaginário é assim esse conector necessário pelo qual se constitui toda
representação humana.
Paula Carvalho (1985, p.36), nessa mesma perspectiva, entende
que o imaginário é uma dimensão insubstituível de uma vida em
profundidade que se estrutura em cinco níveis de todo conjunto humano
estruturado: pessoas, interações, grupo, organização e instituição, e
sua positividade funcional não se reduz, o que permite assegurar
que entre o grupo e a realidade há sempre algo diferente das

99
Katia Rubio

relações entre forças reais, há uma relação imaginária que unifica


a existencialidade do grupo. Por isso é que ‘não há grupo sem
imaginário e, banido um imaginário é ele substituído por outro...
assim não há grupo sem mitos’.
Existência e imaginário apresentam-se para Durand (1987)
enquanto forças organizativas contraditórias, porém complementares e
simultaneamente concorrentes, cabendo ainda ao imaginário a função
básica de garantir uma equilibração antropológica.
Escapando à literalidade da realidade e da verdade, Duvignaud
(1986) propõe que o imaginário esteja enraizado na existência,
que não é fantasia de romântico, que não é um mundo que paira
acima do mundo, mas ele é a própria experiência da vida, pelo
fato dele se prolongar além da literalidade da vida cotidiana. Não
haveria manifestações emocionais, não haveria vida afetiva, se não
houvesse esta parte de antecipação a que chamamos ‘imaginário’ e
que corresponde às múltiplas projeções que nos permitem ir além
daquilo que nos é dado (p.345).
Durand (1987) aponta que o imaginário e as grandes imagens
arquetípicas produzem e são produzidos no trajeto antropológico,
entendido como
a troca incessante que existe ao nível do imaginário entre as pulsões
subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam
do meio cósmico e social. (p.41)
O trajeto antropológico é a afirmação de que, para que um
simbolismo possa emergir, ele deve participar indissoluvelmente –
numa espécie de contínuo vai-vem – das raízes inatas na representação
do sapiens e, no outro polo, das intimações várias do meio cósmico e
social. O trajeto antropológico é, então, um tipo de uma lei sistêmica,
que mostra a complementaridade na formação do imaginário entre o
estatuto das capacidades inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos
verbais em grandes estruturas ‘dominantes’ e seus complementos
pedagógicos exigidos pela neotonia humana.
Essa concepção promove uma articulação entre o bio/psíquico
e o sócio/cultural, permitindo a manifestação da constância dos
arquétipos, bem como da diversidade dos aspectos socioculturais.

100
O imaginário e suas estruturas

Sanchez Teixeira (1999.a) explica esse processo como sendo


o trajeto no qual a representação do objeto deixa-se assimilar e
modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e, reciprocamente,
as representações subjetivas explicam-se pelas acomodações
anteriores do sujeito ao meio objetivo (p. 19).
Buscando elaborar um esqueleto dinâmico ou esboço funcional
da imaginação, Durand (1997) apresenta o conceito de schème
(esquema), que significa uma generalização dinâmica e afetiva da
imagem e constitui a factividade e a não-substantividade geral do
imaginário. O schème faz a junção entre os gestos inconscientes da
sensório-motricidade, entre as dominantes reflexas e as representações.
A diferença entre os gestos reflexológicos... e os esquemas é que
estes últimos já não são apenas engramas teóricos, mas trajetos
encarnados em representações concretas precisas (p.60).
Badia (1999, p.63) entende que os schèmes se substantificam e
se epitetizam nos arquétipos que, por sua vez induzem... os símbolos
e os mitos.
Ao gesto postural correspondem dois esquemas: o da
verticalização ascendente (dominante postural), ao gesto do
engolimento (dominantes digestiva e copulativa) que correspondem
ao esquema da descida e o acocoramento na intimidade. Os gestos
diferenciados em esquemas vão determinar, em contato com o ambiente
natural e social, os grande arquétipos. A esses gestos dominantes
Durand (1994) dá o nome de esquemas matriciais das grandes
categorias das re-presentações, que englobam gestos corporais, os
centros de ativação nervosa e sensorial e as representações simbólicas
daí derivadas. Afirma o autor que o imperialismo da representação,
portanto, da imagem e a existência de regimes imaginários distintos
no homo sapiens, evidenciaram nos comportamentos animais a
existência de grandes imagens primordiais (Urbilder) diretivas dos
gestos e das atitudes específicas, implicando ‘esquemas inatos de
desencadeamento’ bem próximos dos arquétipos junguianos e dos
‘schèmes arquetípicos’.
São objetos de análise do imaginário, os esquemas verbais (a
ação) e os adjetivos (que qualificam os substantivos) que constituirão o
universo da sensibilidade e da afinidade.
101
Katia Rubio

Como forma de permitir a categorização da análise, Durand


(1997) agrupa essas estruturas em três séries de esquemas estruturais,
isomorfos e entre si irredutíveis: a heroica, a mística e a dramática,
tendo como correspondente dois regimes de imagens, o regime diurno,
onde se encontra a estrutura heroica, e o regime noturno, onde se
encontram as estruturas mística e dramática.

O regime diurno da imagem


e a estrutura heroica
Como escreveu o poeta Vinícius de Moraes ‘não existiria a luz
se não fosse a escuridão’, ou seja, a noite tem uma existência simbólica
autônoma definindo o regime diurno, de maneira geral, como o regime
da antítese.
Para Durand (1997), a afirmação da antítese no regime diurno
ultrapassa de longe o
campo do imaginário e se estende sub-repticiamente a setores
da representação que, no Ocidente, se pretendem puros e não
contaminados pela louca da casa. Ao Regime Diurno da imagem
corresponde um regime de expressão e de raciocínio filosófico a
que se poderia chamar racionalismo espiritualista (p.180).
É possível observar que este regime filosófico da separação,
da dicotomia, da transcendência aparece na história do pensamento
ocidental enquanto estatismo da transcendência oposto ao devir
temporal, distinção da ideia acabada e precisa, maniqueísmo inato do
dia e da noite, da luz e da sombra.
O gesto dominante do regime diurno de imagens é a dominante
postural, caracterizada pela tendência ascensional e pela vivência,
desde o nascimento, da experiência da queda. Durand (1997) aponta
que o movimento demasiado brusco imposto ao recém-nascido, as
manipulações e as mudanças de nível brutais que seguem ao nascimento
seriam, ao mesmo tempo, a primeira experiência da queda e a ‘primeira
experiência do medo’. Haveria não só uma imaginação da queda, mas
também uma experiência temporal, existencial, que faz existir em cada
um a imaginação do impulso para cima e o conhecimento da queda
para baixo. A queda estaria assim ao lado do tempo vivido, e uma vez
que ela está ligada à rapidez do movimento, à aceleração e às trevas,

102
O imaginário e suas estruturas

poderá vir a ser a experiência dolorosa fundamental que constituirá


para a consciência o componente dinâmico de qualquer representação
do movimento e da temporalidade.
E daí a negação da queda e a busca da ascensão, que vão
determinar a dominante postural, de onde derivará a estrutura heroica
(diairética ou esquizomorfa).
Os símbolos encontrados com mais frequência nessa estrutura
são as armas – a flecha, o raio, a espada e o cetro – e as imagens que
remetem à ascensão, ao corte ou à dominação de maneira viril.
Para explicar esse regime de antíteses as imagens da estrutura
heroica são classificadas em duas partes antitéticas: a primeira que
remete ao fundo das trevas; e a segunda onde prevalece a reconquista
antitética e metódica das valorizações negativas da anterior.
Advém, daí, justifica Santos (1998), a necessidade heroica das
armas e da luz,
em virtude de seu combate e vigilância constantes contra a finitude
e o tempo que se esvai. Como são elementos vitais dos quais lhe
escapa o controle, o heroico sente profunda angústia diante de seus
grandes monstros: a morte e o tempo (p.115).
Começando pela primeira, ou seja, o fundo das trevas, sobre o
qual se desenha o brilho vitorioso da luz, encontram-se os símbolos
teriomórficos, os nictomórficos e os catamórficos.
Por símbolos teriomórficos entende-se todo o conjunto de
imagens de animais que podem significar o abstrato espontâneo, o
objeto de uma assimilação simbólica, como mostra a universalidade e
a pluralidade da sua presença tanto numa consciência civilizada como
na mentalidade primitiva. Mas também constelam esses símbolos todo
o bestiário animalesco no formato de monstros, toda espécie animada
que se move fora do âmbito humano e que se assemelha àquilo que
devora (leões, lobos, tigres). Diante desse estímulo, é possível entender
a animalidade, que suscita ‘sentimentos poderosos de bestialidade
e agressão’ como necessária para procurar primeiro o sentido do
abstrato espontâneo que o arquétipo animal em geral representa e não
se deixar levar por alguma implicação particular (p.69-70).
Outro grupo de símbolos apresentados são os nictomórficos,
que se referem às trevas, à cegueira, às águas terrificantes. A noite

103
Katia Rubio

é identificada como o receptáculo das substâncias maléficas e todas


as valorizações negativas precedentes. As trevas são sempre caos
e ranger de dentes. Diante da impossibilidade da visão é a audição
quem faz a função de sentido da noite. E das águas sombrias escorre
o amargo convite à viagem sem retorno: nunca se pode banhar duas
vezes no mesmo rio e os cursos de água não voltam à nascente. A
água que corre é figura do irrevogável. A água é epifania da desgraça
do tempo, é a própria expressão do pavor. É da água noturna que
surgem o dragão, as hydras, bem como várias espécies de mulheres
fatais (bruxas, vampiras, sugadoras da vida) (p.93-94).
E a terceira grande epifania imaginária da angústia humana,
diante da temporalidade, surge nos símbolos catamórficos,
representados nas imagens dinâmicas da queda, o abismo associado
ao pecado original, o símbolo carnal completo: a boca ameaçadora, o
ventre digestivo, o intestino como labirinto infernal.
Passamos agora ao segundo grupo de símbolos do regime diurno
que representam a reconquista antitética e metódica das valorizações
negativas do primeiro grupo.
Os símbolos ascensionais representados pelo esquema da
elevação e os símbolos verticalizantes são metáforas axiomáticas por
excelência. A valorização, qualquer que seja, é sempre verticalização.
Talvez a noção de verticalidade como eixo estável das coisas esteja
em relação com a postura ereta do homem, em cuja visão reside
parte de seu simbolismo (Durand, 1997, p.126). Goela, abismo, sol
negro, túmulo, esgoto e labirinto são os desencadeadores psicológicos
e morais que põem em evidência o heroísmo da ascensão. Eles são
representados pela escada, pela montanha ou elevação sagrada. O
instrumento ascensional por excelência é a asa, um meio simbólico de
purificação racional. Elevação e potência equivalem-se.
A frequentação dos lugares altos, o processo de gigantização ou
divinização que toda a altitude e toda a ascensão inspiram dão
conta do que Bachelard chama judiciosamente uma atitude de
‘contemplação monárquica’ ligada ao arquétipo luminoso-visual,
por um lado e, por outro, ao arquétipo psicossociológico da
dominação soberana (p.137).
Esses símbolos ascensionais surgem marcados pela preocupação
da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado

104
O imaginário e suas estruturas

pela queda, e podem manifestar-se de três maneiras, ligadas a


vários símbolos ambíguos ou intermediários: pode ser ascensão ou
ereção rumo a um espaço metafísico; em imagens mais fulgurantes,
sustentadas pelo símbolo da asa e da flecha; o poderio reconquistado a
orientar imagens mais viris como a realeza celeste ou terrestre do rei,
padre ou guerreiro.
Opondo-se aos símbolos tenebrosos encontram-se os símbolos
espetaculares, que podem ser ao mesmo tempo símbolo e órgãos da
luz, como o arquétipo solar, nas manifestações douradas. A descrição
desses elementos abrange horizontes luminosos na prática da elevação
imaginária e céu de azul-celeste. O sol, especialmente o sol ascendente
ou nascente, será a hipóstase das potências celestes. O olho, enquanto
julgamento moral e transcendência, confirma igualmente o isomorfismo
do olho, da visão e da transcendência divina.
No jogo antitético que funda a estrutura heroica, onde a ascensão
é imaginada contra a queda e a luz contra as trevas apresentam-se os
símbolos diairéticos. O dinamismo dessas imagens remete ao herói,
ao herói solar, ao guerreiro violento. Por isso a presença das armas,
principalmente as cortantes que fastas, como a flecha, o gládio ou
o machado, diferem das contundentes, além do cetro da justiça. A
arma de que o herói se encontra munido é ao mesmo tempo símbolo
de potência e de pureza. O combate se cerca mitologicamente de um
caráter espiritual, ou mesmo intelectual, porque as armas simbolizam
a força da espiritualização e de sublimação. A finalidade da arma
também caracteriza esse símbolo.
E é porque as armas, quer sejam cortantes, percucientes ou
punctiformes, são classificadas pelo tecnólogo sob a mesma
rubrica da percussão que não hesitaremos em incluir sob o
mesmo esquema psíquico a divisão brutal, a separação de um
objeto da sua gana informe ou a penetração por perfuração
(Durand, 1997, p.164).
A espada é, assim, o arquétipo para o qual parece orientar-se
a significação profunda de todas as armas. Tanto as armas ofensivas
como as armas protetoras são consideradas meios bélicos de separação
e estão relacionadas a processos mágicos que se incorporam num
ritual, assemelhando-se à dinâmica dos símbolos de ascensão e luz que

105
Katia Rubio

são acompanhados de uma intenção de purificação, juntamente com a


água límpida e cristalina e o fogo.
Durand (1997) observa o ‘parentesco incontestável’ do regime
diurno da imagem com as representações dos esquizofrênicos,
assentado basicamente na essência polêmica, racionalista e
antitética denominando, por isso, as estruturas desse regime como
esquizomórficas, que podem ser sintetizadas em:
-
poder de autonomia e de abstração do meio ambiente que
começa desde a autocinese animal, mas que no bípede humano
se reforça pela postura vertical liberadora das mãos e pelos
instrumentos que as prolongam;
-
abstração, ligada a faculdade de alhear, que é a marca do
homem, representada pela spaltung, ou seja, o prolongamento
representativo e lógico da atitude geral de abstrair. Sua tônica
maior está no comportamento representativo de separar e
menos na atitude caracterológica de separar-se;
- geometrização observada na valorização da simetria, do plano,
da lógica mais formal na representação e no comportamento.
O valor dado ao espaço e à localização geométrica explicam
uma tendência à gigantização dos objetos. Outra consequência
dessa geometrização é o apagamento da noção do tempo e das
expressões linguísticas que o significam em proveito de um
presente especializado;
- oposição, por contrariedade ou contradição, fundamentando
uma atitude conflitual que invade todo o plano da representação,
apresentando as imagens aos pares numa espécie de simetria
invertida, denominada ‘atitude antitética’. A antítese não é
mais que um dualismo exacerbado, no qual o indivíduo rege a
vida unicamente segundo ideias.
Durand (1997) salienta que esse regime não se confunde com
a modificação trazida pela doença, porque esse regime não tem em
si nada de patológico, subentendido nos grandes gestos naturais que
gravitam em torno dos reflexos posturais e dos seus condicionamentos
normais. Não se confundem, tampouco, com a tipologia de caráter
psíquico particular nem com uma pressão cultural qualquer.

106
O imaginário e suas estruturas

E demonstrando que a imagem pode inverter os valores atribuídos


aos termos da antítese e buscar a conversão da visão filosófica do
mundo o autor propõe o regime noturno do imaginário.

O regime noturno e as
estruturas mística e sintética
Pautado no signo da conversão e do eufemismo está o regime
noturno das imagens, expresso nas estruturas mística – constituído
por uma simples e pura inversão do valor afetivo atribuído às
faces do tempo, onde a valorização é fundamental e inverte o
conteúdo afetivo das imagens (no seio da noite o espírito procura
a luz e a queda se eufemiza em descida e o abismo minimiza-se
em taça) –, e na sintética – axializado em torno da procura e da
descoberta de um fator de constância no próprio seio da fluidez
temporal, caracterizado pelo esforço por sintetizar as aspirações da
transcendência ao além e as intuições imanentes do devir (a noite
não passa de propedêutica do dia, promessa indubitável da aurora)
(Durand, 1997, p.230).

A estrutura mística
A estrutura mística pode ser caracterizada pela conjugação
de uma vontade de união e um certo gosto de intimidade secreta,
apresentados na forma de símbolos de inversão e de interioridade.
Podem estar expressos em imagens de encaixe, nas sintaxes de inversão
e de repetição, incitando a imaginação a fabular uma narrativa que
integre as diversas fases do retorno.
Na estrutura mística a descida precisará de maior precaução
que a ascensão na estrutura heroica. Para que esse intento se dê são
necessários escafandros, couraças ou a companhia de um guia ou
mentor. Nesse universo a descida arrisca-se, a todo o momento, a
confundir-se e a transformar-se em queda. O que vai determinar a
distinção entre a fulgurância da queda e a descida é a duração do ato,
a lentidão. Some-se a essa lentidão visceral uma qualidade térmica, um
calor suave, que em nada se assemelha ao fulgor ardente.
A descida está ligada à intimidade digestiva, ao gesto da
deglutição, caracterizando-a como um eixo íntimo, frágil e macio.

107
Katia Rubio

Esse movimento leva o gesto dominante da estrutura mística a ser


identificado pela dominante digestiva.
Para Durand, (1997) estrutura aglutinante encontrada na
estrutura mística é caracterizada pela vocação de ligar, de atenuar
as diferenças, de subutilizar o negativo pela própria negação,
constituindo-se em um eufemismo levado ao extremo, denominado
antífrase, caracterizando os símbolos de inversão. O processo consiste
essencialmente em que pelo negativo se reconstitui o positivo, por uma
negação ou por um ato negativo se destrói o efeito de uma primeira
negatividade – roubar o ladrão, matar a morte. Esse processo é
indicativo de todo um arsenal de procedimentos lógicos e simbólicos
que se opõem radicalmente à atitude diairética do regime diurno
da imagem. É possível dizer que a dupla negação, ou antífrase, é a
marca de uma inversão irrestrita de atitude representativa. Associado
a antífrase está a denegação, que consiste no fato de que a negação
da linguagem traduz uma afirmação do sentimento íntimo. Ela é um
tímido esboço da negação dupla.
O redobramento da negação é ela própria geradora de um
processo de redobramento das imagens. Assim, o sentido do verbo
importa mais para a representação que a atribuição da ação a este
ou àquele sujeito. Para o imaginário fascinado pelo gesto indicado
pelo verbo, o sujeito e o complemento direto podem inverter os
papéis: é assim que o engolidor se torna engolido. Este esquema de
redobramento por encaixes sucessivos leva diretamente aos processo
de ‘gulleverização’, onde se vai assistir a queda dos valores solares
simbolizados pela virilidade e pelo gigantismo.
Constelam esse universo o isomorfismo da fruta, da concha e do
ovo, a caverna, os anões. O peixe é símbolo do continente redobrado,
do continente contido. A classe dos peixes é a que melhor se presta às
infinitas manipulações de encaixamento das similitudes.
Essa indicações apontam para uma reviravolta nos valores
sombrios atribuídos à noite pelo regime diurno. A esperança dos
homens espera da eufemização do noturno uma espécie de retribuição
temporal dos erros e méritos.
A noite opõe-se primeiro ao dia, que minimizada não passa do
prólogo dela. Depois, a noite é valorizada porque é fonte íntima de
reminiscência.

108
O imaginário e suas estruturas

Enquanto as cores, no regime diurno da imagem, se reduzem a


algumas raras brancuras azuladas e douradas, sob o regime noturno
toda a riqueza do prisma e das pedras preciosas vai se desenvolver.
A própria água, cuja primeira intenção parece ser lavar, inverte-
se sob a influência das constelações noturnas da imaginação: torna-se
veículo por excelência da tinta. Ao mesmo tempo que perde a limpidez,
a água ‘espessa-se’, constitui-se por veias de cores diferentes, como
um mármore; materializa-se de tal forma que poderia ser cortada por
uma faca. Esta água geográfica, que só é pensável em vastas extensões
oceânicas, esta água quase orgânica, que permanece a meio caminho
entre o amor e o horror que inspira, é o próprio tipo de substância de
uma imaginação noturna. E aí o eufemismo permite a transparência
da feminilidade.
O eufemismo que as cores noturnas constituem em relação
às trevas parece que a melodia o constitui em relação ao ruído. Do
mesmo modo que a cor é uma espécie de noite dissolvida e a tinta uma
substância em solução, pode-se dizer que a melodia, que a suavidade
musical, é a duplicação eufemizante da duração existencial.
Se a melodia, as cores e a noite são parte de um arquétipo
da feminilidade, o grande esquema do engolimento também está
presente na antífrase da mulher fatal e funestra. O mar é uma de suas
representações junto com os rios a quem estão associados inúmeros
nascimentos.
Os símbolos da intimidade são apresentados na forma de ritos
de enterramento, onde há uma inversão do sentido natural da morte
que permite o isomorfismo túmulo-berço. A terra torna-se o berço
mágico e acolhedor porque é o último lugar de repouso. O túmulo,
lugar do sepultamento, está ligado à constelação ctônico-lunar do
regime noturno da imaginação, enquanto os rituais celestes e solares
recomendam a incineração.
Este gosto da morte, esta fascinação romântica pelo suicídio,
pelas ruínas, pelo jazigo e pela intimidade do sepulcro relaciona-se
com as valorizações positivas da morte e remata a inversão do regime
diurno numa verdadeira e múltipla antífrase do destino mortal.
O sepulcro remete à concavidade, à taça, ao colo uterino,
à caverna, à gruta, à casa, mas, Durand (1997) aponta para o

109
Katia Rubio

inconveniente em classificar os símbolos em torno de objetos-chave em


vez de em torno de trajetos psicológicos, ou seja, esquemas ou gestos.
O mundo da objetividade é polivalente para a projeção imaginária, só
o trajeto psicológico é simplificador. (p.245)
A mandala, o círculo e o centro remetem à grande constelação
do regime noturno que é a repetição. Considerado espaço sagrado o
centro possui o poder de ser multiplicado indefinidamente. O espaço
sagrado torna-se protótipo do tempo sagrado.
Sintetizando, Durand observa que as características da estrutura
mística do imaginário aproximam-se de sintomas e síndromes dos
tipos caracterizados como ixotímicos e ixoides, e mesmo com os
sintomas epileptoides. Ressalta, como na estrutura esquizomórfica,
que esse regime não se confunde com a modificação caracterial
trazida pela doença, mas subentende-se nos gestos que se apresentam
nos reflexos (p.269).
Essas estruturas podem se apresentar da seguinte maneira:
- redobramento (ou dupla negação) e perseverança (ixotimia). Na
profundidade da fantasia noturna há uma espécie de fidelidade
fundamental, uma recusa de sair das imagens familiares e
aconchegantes. É a perseverança que permite a compreensão da
confusão entre continente e conteúdo, entre o sentido passivo e
o sentido ativo dos verbos e dos seres;
- viscosidade eufemizante manifestada na aderência às coisas e
à sua imagem reconhecendo um ‘lado bom’ das coisas, e que
se caracteriza pela utilização da antífrase, recusa de dividir, de
separar e de submeter o pensamento ao implacável regime da
antítese;
- ligação ao aspecto concreto, colorido e íntimo das coisas, é
considerada como um caso particular da estrutura anterior,
que se revela no trajeto imaginário que desce à intimidade dos
objetos e dos seres;
-
propensão para a ‘miniaturização’, para a ‘gulliverização’,
manifesta explicitamente a grande reviravolta dos valores e
das imagens – o que é inferior toma o lugar do superior, os
primeiros tornam-se os últimos, o poderio do polegar vem
escarnecer a força do gigante.

110
O imaginário e suas estruturas

A imaginação noturna é naturalmente levada da quietude


da descida e da intimidade (representada na taça) à dramatização
cíclica na qual se organiza um mito do retorno, mito sempre
ameaçado pelas tentações de um pensamento diurno do retorno
triunfal e definitivo (p.279).
E assim estão lançadas as indicações para a estrutura sintética.

A estrutura sintética
A estrutura sintética pode ser chamada de harmonização dos
contrários, por nela estarem integradas, numa sequência contínua,
todas as outras intenções do imaginário, podendo-se verificar que
foram eliminados qualquer choque, qualquer rebelião diante da
imagem, mesmo nefasta e terrificante, mas que pelo contrário se
harmonizam num todo coerente as contradições mais flagrantes.
O gesto dominante da estrutura sintética é a dominante
copulativa e seus derivados motores rítmicos e adjuvantes sensoriais
que irão permitir representações simbólicas cíclicas, tendo como
função primordial dominar o tempo, representando o mito do
progresso, da evolução, numa indicação do futuro.
Se na estrutura mística a musicalidade era apreendida pela
melodia, na estrutura sintética ela se dá pela harmonização,
cuja função essencial é conciliar os contrários e dominar a fuga
existencial do tempo.
Para Durand (1997), os símbolos que constelam essa estrutura
são cíclicos por privilegiar a repetição infinita de ritmos temporais
e do domínio cíclico do devir. Para simbolizar estes dois matizes
do imaginário, que procura dominar o tempo, foram escolhidos o
denário e o pau, por representarem o movimento do destino e o
ímpeto ascendente do progresso temporal.
O denário nos introduz nas imagens do ciclo e das divisões
circulares do tempo, aritmologia denária, duodenária, ternária ou
quaternária do ciclo. O pau é uma redução simbólica da árvore com
rebentos, da árvore de Jessé, promessa dramática do cetro.
As duas categorias destes símbolos que se enlaçam no tempo
para o vencer terão o caráter comum de serem quase histórias,
narrativas, cuja realidade principal é subjetiva a qual costuma
ser chamada de mito. Tanto os símbolos da medida como os do
111
Katia Rubio

domínio do tempo terão uma tendência para serem desenvolvidos


seguindo o fio do tempo, para ser míticos, e esses mitos serão quase
sempre mitos sintéticos que tentam reconciliar a contradição que o
tempo implica: o terror diante do tempo que vai, a angústia diante
da falta e a esperança na realização do tempo, a confiança numa
vitória sobre ele.
Esses mitos, com a sua fase trágica e a sua fase triunfante, serão
assim sempre dramáticos, quer dizer, irão colocar alternadamente
em jogo as valorizações negativas e positivas das imagens (p.283).
O tempo, reproduzido nos calendários, tem no período de um
ano o ponto preciso onde a imaginação domina a fluidez do tempo por
uma figura espacial. A Lua surge como a primeira medida de tempo.
Astro ao mesmo tempo propício e nefasto, a Lua pode ser considerada
a mãe do plural, pelas possibilidades de combinações que seus ciclos
geram na contagem do tempo, e nas consequentes manifestações
divinas. O simbolismo lunar aparece nas suas múltiplas epifanias,
estreitamente vinculado à obsessão do tempo e da morte. A Lua não
é só o primeiro morto, mas o primeiro morto que ressuscita, sendo
assim, medida de tempo e promessa explícita de eterno retorno.
O ritmo cíclico tem também um outro suporte simbólico: o
ciclo natural da frutificação e da vegetação sazonal. Como escreveu o
compositor Gilberto Gil ‘morre, nasce trigo, vive, morre pão’. Numa
representação ingenuamente imaginária, o ciclo das estações e a rítmica
agrícola estão num primeiro momento ligados à Lua. Só o ritmo lunar
tem a lentidão ‘tranquilizadora’ propícia à instalação de uma filosofia
agrícola. Há mesmo sempre no enterramento da semente um tempo
morto, uma latência que corresponde semanticamente ao tempo morto
das lunações. Dessa forma, o simbolismo vegetal contamina toda a
meditação sobre a duração e o envelhecimento.
Na busca de aproximar os opostos surgem símbolos como o
caminho, a ponte, a barca, o mestre, o crepúsculo, o oroboros.
O esquema cíclico eufemiza a animalidade, a animação
e o movimento, porque os integra num conjunto mítico onde
desempenham um papel positivo, uma vez que nessa perspectiva
a negatividade é necessária para o aparecimento da positividade. O
animal que representa a síntese do ar por ser alado, da água pelas

112
O imaginário e suas estruturas

escamas e da noite, portanto lunar por excelência, é o dragão. Ele é


esfinge, serpente com penas, mesmo sendo o símbolo da totalização e
das várias possibilidades naturais, não deixa de ser um monstro.
O caracol é outro símbolo lunar privilegiado: ele é concha, por
apresentar o aspecto aquático da feminilidade, e também é espiralado,
quase esférico, cuja forma helicoidal representa a temporalidade, a
permanência do ser através das flutuações da mudança. Os répteis estão
incluídos entre os símbolos da transformação temporal. A mudança da
pele pela serpente, mantendo-a ela mesma, é um dos grandes mistérios.
Os instrumentos da tecedura e da fiação são universalmente
simbólicos do devir. O movimento circular do fuso é engendrado pelo
movimento alternativo e rítmico produzido por um arco ou pelo pedal
da roda. O fio além de ligador é também a ligação tranquilizante,
é o símbolo da continuidade, sobre determinado no inconsciente
coletivo pela técnica ‘circular’ ou rítmica da sua produção. O tecido
é o que se opõe à descontinuidade, ao rasgo e à ruptura. Sendo assim
o simbolismo da fiandeira está associado ao movimento rítmico e ao
esquema da circularidade, e o círculo, que por sua vez é um arquétipo
universal, será sempre símbolo da totalidade temporal e do recomeço.
A cruz também aparece entre os símbolos da estrutura sintética
enquanto totalização espacial, união dos contrários, que da madeira
que a compõe, sendo friccionada, surgirá o fogo.
Durand (1997) busca agrupar os elementos que fazem parte da
estrutura sintética da seguinte forma:
- estrutura da harmonização dos contrários, não significando
apenas a organização conveniente das diferenças e dos
contrários;
-
caráter dialético ou contrastante da mentalidade sintética.
A síntese não é uma unificação como a mística, não visa a
confusão dos termos, mas a coerência, salvaguardando as
distinções, originando uma aplicação da coerência no contraste
a todos os fenômenos humanos;
-
a estrutura histórica, que já não tenta esquecer o tempo,
como a música e a cosmologia, mas utiliza conscientemente a
hipotipose que aniquila a fatalidade da cronologia;
-
a estrutura progressista, em que o futuro é presentificado,

113
Katia Rubio

é dominado pela imaginação na vontade de acelerar a história


e o tempo a fim de os perfazer e dominar.
E para que não pairem dúvidas acerca da metodologia adotada
sobre as relações do semantismo arquetípico e simbólico e da narrativa
mística, Durand (1997) aponta que o regime noturno do imaginário
faz tender o simbolismo a organizar-se numa narrativa dramática ou
histórica, em que as imagens arquetípicas ou simbólicas já não bastam
por si só em seu simbolismo intrínseco, mas por um dinamismo
extrínseco, ligando-se umas a outras na forma de narrativa.
É essa narrativa – obcecada pelos estilos da história e pelas
estruturas dramáticas – que chamamos ‘mito’. Repetimos: é no seu
sentido mais geral que entendemos o termo ‘mito’, fazendo entrar
nesse vocábulo tudo o que está balizado por um lado pelo estatismo
dos símbolos e por outro pelas verificações arqueológicas. Assim, o
termo ‘mito’ engloba para nós quer o mito propriamente dito, ou
seja, a narrativa que legitima esta ou aquela fé religiosa ou mágica,
a lenda e as suas intimações explicativas, o conto popular ou a
narrativa romanesca. Por outro lado, não precisamos nos inquietar
imediatamente com o lugar do mito em sua relação ao ritual.
Gostaríamos de precisar a relação entre a narrativa mística e os
elementos semânticos que veicula, a relação entre a arquetipologia
e a mitologia (p.356).
Poder articular as estruturas antropológicas do imaginário com
os aspectos do mito, do herói e do herói-atleta constitui-se como nosso
próximo desafio.

114
A saga do herói consiste na aventura
de estar vivo.
(Joseph Campbell,
O poder do mito.)

A necessidade de incorporar
o mito e, mais especificamente, o herói
nesse trabalho, se deve em grande
medida ao fato de atualmente esse
modelo de ‘personalidade’ ser querido,
respeitado e utilizado como referencial
de projeção de alguém, que mesmo
tendo enfrentado as mais duras provas
e os piores inimigos traz consigo a
marca da vitória.
No entanto, ainda que seus
feitos sejam grandiosos e ganhem
registro secular, a busca impetrada
por esse personagem tem um alto
custo para quem se aventura em levá-
la a cabo e chega a ser considerada
uma atitude insana para aqueles que
não veem sentido nela.
De todo o modo, o que
procuraremos demonstrar ao longo
das próximas páginas é como o
chamado do atleta para a prática
esportiva se assemelha ao chamado do
herói pela aventura, e como esse mito

O mito, sobrevive naqueles que incorporam o


personagem em determinado momento
o herói histórico e como (e talvez porque)
acabam por se tornar referência para
e o atleta outros que virão.
115
Katia Rubio

Mito e mitologia
Ao longo do século XX, os especialistas ocidentais alteraram
sua perspectiva de análise do mito, distinguindo-se dos estudiosos do
século anterior.
Afirma Eliade (1989) que ao invés dos estudiosos tratarem o mito
enquanto fábula, invenção ou ficção, demonstrando um emprego na
linguagem corrente bastante equivocado, passaram a aceitá-lo como
ele era concebido e entendido nas sociedades arcaicas: uma história
verdadeira, preciosa, por ser considerada sagrada, ao mesmo tempo
exemplar e significativa. Desde então, o mito tem sido explorado e
estudado por etnólogos, sociólogos e historiadores das religiões
enquanto tradição sagrada, revelação primordial e modelo exemplar.
Nas sociedades em que o mito está vivo, ele fornece modelos para o
comportamento humano e, por isso mesmo, confere valor à existência.
O significado que o mito carrega de maneira latente imprime
e, ao mesmo tempo, revela a tônica do momento por que passa um
indivíduo ou grupo social.
Campbell (s.d.) considera o mito parte integrante e indissociável
da existência humana. Para ele os mitos têm sido a viva inspiração de
todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente
humanos, a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias
do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas (p.15).
Considerar o mito como elemento integrante e indissociável da
cultura, permite afirmar que as artes, a filosofia, as descobertas da
ciência e formas de organização sociais estão impregnadas de sentido,
na medida que surgem desse círculo básico e mágico.
A mitologia tem sido interpretada pelo intelecto moderno como
um primitivo e desastrado esforço para explicar o mundo da
natureza (Frazer); como um produto da fantasia poética das
épocas pré-históricas, mal compreendido pelas sucessivas gerações
(Müller); como um repositório de instruções alegóricas, destinadas
a adaptar o indivíduo ao seu grupo (Durkheim); como sonho
grupal, sintomático dos impulsos arquetípicos existentes no
interior das camadas profundas da psique humana (Jung); como
veículo tradicional das mais profundas percepções metafísicas do
homem (Coomaraswamy); e como a Revelação de Deus aos Seus

116
O mito, o herói e o atleta

filhos (a Igreja). A mitologia é tudo isso. Os vários julgamentos


são determinados pelo ponto de vista dos juízes. Pois, a mitologia,
quando submetida a um escrutínio que considere não o que é, mas
o modo como funciona, o modo pelo qual serviu à humanidade no
passado e pode servir hoje, revela-se tão sensível quanto a própria
vida às obsessões e exigências do indivíduo, da raça e da época
(Campbell, s.d., p.368).
O mito se configura para Durand (1988) como um relato
(discurso mítico) que dispõe em cena personagens, situações, cenários
geralmente não naturais (divinos, utópicos, surréels etc.), segmentável
em reduzidas unidades semânticas (mitemas1) nas quais, de modo
necessário, está investida uma crença. Tal relato faz funcionar uma
lógica que escapa aos clássicos princípios da lógica da identidade. O
mito aparece, assim, como discurso último de constituição da tensão
antagonista fundamental a do ‘engendramento’ do sentido.
Compreender a estrutura e função dos mitos nas sociedades
não é apenas explicar uma etapa na história do pensamento
humano é, também, compreender melhor uma categoria dos nossos
contemporâneos.
Nesse sentido, Santos (1998, p.16) afirma que
o mytho, como símbolos em movimento através da narrativa,
continua sendo a nossa forma primordial de conhecimento
do mundo e de nós mesmos... é a própria descrição de uma

Mitema pode ser definido, segundo Durand (1987: 253-54), como a menor unidade
1

de discurso miticamente significativa, um ‘átomo’ mítico de natureza estrutural


(‘arquetípico’ no sentido junguiano, ‘esquemático’ no sentido durandiano) e
seu conteúdo pode ser indiferentemente um ‘motivo’, um ‘tema’, um ‘cenário
mítico’, um ‘emblema’, ‘uma situação dramática’. No mitema o ‘verbal domina a
substantividade. E mais, desde que o mitema integra um sistema estatístico que
define o mito, observa-se – como irredutivelmente a psicanálise o estabeleceu
no domínio psicológico – uma dupla utilização possível desse mitema estrutural
segundo os recalques, as censuras, os costumes ou ideologias atuantes numa
época e num meio dados: um mitema pode se manifestar e semanticamente agir
de dois modos diferentes: um modo ‘patente’ e um modo ‘latente’. De modo
patente o mitema pode se manifestar pela repetição explícita de seu ou de seus
conteúdos (situações, personagens, emblemas, etc.) homólogos; e de modo latente,
pela repetição de seu esquema de intencionalidade implícita, pela repetição de
um esquema formal mascarado por conteúdos distanciados. Uma discussão mais
aprofundada será feita no capítulo V Cartografias do imaginário esportivo.

117
Katia Rubio

determinada estrutura de sensibilidade e de estados da alma que


a espécie humana desenvolve em sua relação consigo mesma, com
o Outro e com o mundo, desde que descendo das árvores começou
a fazer o mundo, um mundo humano.
E prossegue, identificando a existência, por meio da vivência,
do mito pessoal e coletivo, uma vez que as estruturas mythicas
exprimem um primeiro estado de valores, aderentes ainda aos
vetores biológicos constitutivos do ser no mundo. Essa ligação
permite compreender a dinâmica individual, subjetiva, relacionada
e atrelada a outra social, coletiva, tanto no que se refere aos atos
altruístas e construtivos, como àqueles ignóbeis e destrutivos.
Ao conjunto de propriedades herdadas, de instintos e
impulsos que leva a ações comandadas por uma necessidade,
mas não por uma ação consciente, Jung (1990a) conceitua como
inconsciente coletivo.
É nesta camada mais profunda do inconsciente que se encontram
os arquétipos. É chamado de coletivo porque, ao contrário do
inconsciente pessoal, não é constituído de conteúdos individuais, mais
ou menos únicos e que não se repetem, mas de conteúdos que são
universais e aparecem regularmente.
Os conteúdos do inconsciente pessoal são parte integrante
da personalidade individual e poderiam, portanto, ser conscientes.
Os conteúdos do inconsciente coletivo constituem-se como uma
condição ou base da psique em si mesma, condição onipresente,
imutável, idêntica a si própria em toda parte. Daí ser constituída
pelos instintos e pelos arquétipos.
Essa é a justificativa, segundo Hendersen (s.d., p.110) porque os
mitos guardam uma forma universal mesmo quando desenvolvidos
por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si, ou
em outras palavras, porque o mito tornou-se um arquétipo.
Para Jung (1991) o conceito de arquétipo deriva da observação
sistemática de que os mitos e os contos da literatura universal
encerram temas bem definidos que reaparecem sempre por toda
a parte. Às imagens e correspondências típicas ele denominou
representações arquetípicas, mas o arquétipo em si escapa à
representação, visto que sendo preexistente e inconsciente faz

118
O mito, o herói e o atleta

parte da estrutura psíquica herdada e pode, assim, manifestar-se


espontaneamente sempre e por toda parte.
Na tentativa de desfazer o mal-entendido sobre uma condição
inata dos arquétipos, Jung (1989; 1990b) reitera que eles não têm
conteúdo determinado, podendo quando muito ser determinados
em sua forma mesmo assim em grau limitado. Ou seja, uma imagem
primordial só tem um conteúdo determinado quando se torna
consciente e é preenchida pelo material da experiência consciente.
E para escapar às especulações sobre as possíveis representações
arquetípicas, Jung (1990c) é categórico: o arquétipo em si mesmo
é vazio, é um elemento puramente formal, apenas uma facultas
praeformandi (possibilidade de pré-formação), forma de representação
dada a priori. As representações não são herdadas; apenas suas formas
o são, contituindo-se como produção sociocultural uma vez que usam
um sistema simbólico – a linguagem – para serem traduzidas.
Instinto e arquétipo distinguem-se na medida em que o primeiro
é constituído por impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos, e o
segundo é a manifestação como fantasias desses instintos por meio de
imagens simbólicas. Ou seja, não se conhece a origem do arquétipo,
mas ele se repete em qualquer época ou lugar do mundo, mesmo onde
não foi possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou
por fecundação cruzada resultante de migração.
Jung (s.d.) recorre a uma analogia com o corpo para explicar seu
conceito de arquétipo.
Assim como nosso corpo é um verdadeiro museu de órgãos, cada
um com a sua longa evolução histórica, devemos esperar encontrar
também na mente uma organização análoga. Nossa mente não
poderia jamais ser um produto sem história, em situação oposta ao
corpo em que existe. Por ‘história’ não estou querendo me referir
àquela que a mente constrói através de referências conscientes
ao passado, por meio da linguagem e de outras tradições
culturais; refiro-me ao desenvolvimento biológico, pré-histórico
e inconsciente da mente do homem primitivo, cuja psique estava
muito próxima a dos animais (p.67).
Anatomia biológica e psíquica são dois termos utilizados para
possibilitar a compreensão de uma ‘estrutura’ que envolve conhecimento

119
Katia Rubio

e sabedoria, ou seja, conhecimento sendo a instância desenvolvida


dentro dos paradigmas da ciência, e sabedoria como produção da
ordem do sagrado, do numinoso (Paula Carvalho, 1998). Nessa
perspectiva, faz parte da sabedoria ter experiências com sonhos
e outras expressões da atividade inconsciente, e também com a
mitologia no seu sentido mais amplo.
Os arquétipos apresentam-se como elementos fundamentais, na
perspectiva de Durand (1997), na medida em que constituem o ponto
de junção entre o imaginário e a cognição. Para o autor, os arquétipos
poderiam ser classificados enquanto genotípicos – se manifestam na
estruturação do campo das imagens de modo bastante precoce – e
fenotípicos – que exigem a aprendizagem e se desenvolvem na relação
com um modelo adulto da espécie.
Sendo assim, não se pode pensar um arquétipo senão como um
elemento da cultura, tanto no sentido de receptor de valores grupais
quanto agente de expressão de transformações ou necessidade de mutação.
Campbell (s.d.) considera que os arquétipos a serem descobertos
e assimilados são precisamente aqueles que inspiraram as imagens
básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses seres eternos
do sonho não devem ser confundidos com as figuras simbólicas,
modificadas individualmente. O sonho é o mito personalizado e o
mito é o sonho despersonalizado (p.27).
Quando relacionado à história da humanidade percebe-se que
esse movimento oceânico de fluxo e refluxo denominou, em certo
sentido, as eras. As idades de ouro, prata, bronze e ferro, ainda
que consideradas míticas, relacionam-se a períodos de prodígios e
bem-aventurança que, ao se confundirem com tempos imemoriais,
ultrapassam a fronteira do não mítico.
É na esteira da con-fusão entre mito e realidade que Eliade
(1989) vai afirmar que o mito conta uma história sagrada, relata
um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo
fabuloso dos ‘começos’. Noutros tempos, o mito conta como, graças
aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir,
quer seja a realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento:
um comportamento humano, uma espécie vegetal, um acidente
geográfico, uma instituição. Refere-se sempre à narração de uma
‘criação’: descreve como algo foi produzido, como começou a existir...

120
O mito, o herói e o atleta

Em suma, os mitos descrevem as diversas e frequentemente


dramáticas eclosões do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo.
É esta irrupção do sagrado que funda realmente o Mundo e o que
faz tal como é hoje. Mais ainda: é graças a intervenções dos Seres
Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado
e cultural. (p.13)
E dentro da estrutura e função dos mitos, o autor entende que eles:
- constituem a História dos atos dos seres sobrenaturais;
- são uma história absolutamente verdadeira (porque se refere a
realidades) e sagrada (porque é obra dos seres sobrenaturais);
- referem-se sempre a uma ‘criação’, contam como algo começou
a existir, ou como um comportamento, uma instituição ou um
modo de trabalhar foram fundados, e por isso apresentam-se
como paradigmas de todo ato humano significativo;
-
permitem conhecer a ‘origem’ das coisas e, desse modo, é
possível dominá-las e manipulá-las à vontade;
- de uma maneira ou de outra, vive-se o mito no sentido em que
se fica imbuído da força sagrada e exaltante dos acontecimentos
evocados reatualizados.
Mas o mito transposto para o mundo contemporâneo receberia
o mesmo tratamento que nas sociedades chamadas arcaicas? As
transformações ocorridas ao longo da história que determinaram
mudanças de comportamentos e hábitos, organização e mesmo a
expectativa em relação ao sagrado o afetaria?
Sironneau (1985) entende que a definição de mito tal como
é apresentada pela história das religiões não pode ser aplicada,
indiscriminadamente, aos mitos que são detectados nas representações
coletivas das sociedades atuais. Isso porque, em definições como
a apresentada por Eliade, o mito é uma história verdadeira, um
padrão de todas as atividades humanas significativas, um meio para
o ser humano conhecer a origem das coisas para poder controlá-las.
Quando vivido no decurso das cerimônias religiosas é possível entrar
em contato com o poder sagrado que está na origem do mundo.
Apesar dessa definição servir aos mitos religiosos ou mágicos,
ela não se aplica aos mitos literários e aos mitos modernos.

121
Katia Rubio

Isso porque Sironneau (1985) entende que não é possível tornar o


mito político moderno uma simples ‘imagem-ação’, impulso irracional
da luta revolucionária. E argumenta:
Não é possível tornar o mito uma forma de representação coletiva
superada, específica das sociedades arcaicas ou tradicionais, alheio
às sociedades modernas, consideradas então como históricas
ou prometeicas. É preciso tentar uma abordagem do mito que
considere o que ele representou nas sociedades arcaicas ou
tradicionais sem, entretanto, excluí-lo das representações coletivas
de nossas sociedades, e particularmente de suas representações
políticas e organizacionais (p.261).
Para que os mitos arcaicos e modernos não sejam confundidos,
o autor propõe uma nova maneira para distingui-los:
- a forma ou modo de expressão: refere-se ao modo de
apresentação do mito, que na atualidade pode se manifestar
por meio da linguagem oral, literária, televisiva ou nas
imagens dos filmes do cinema, cujo teor é diverso do mito
arcaico religioso que costuma relatar a gesta e os atos de seres
sobrenaturais.
- as funções: que podem ser únicas ou múltiplas, umas não
excluindo outras, que o mito pode preencher, segundo os
contextos culturais. Essas funções podem ser:
• c ognitiva: através da compreensão da realidade, busca resolver
uma contradição sociológica. Não deve ser confundida com
explicação racional;
• sociológica: busca a legitimação da ordem social. Nessa
circunstância o mito tem a função de unificar as crenças de um
grupo, de legitimar o poder dos que dominam, assegurando a
integração social;
• psicológica: promove a expressão de conflitos inconscientes
ou latentes da psique e sua superação;
• ontológica: procura na estrutura dos arquétipos, resposta à
humanidade sobre sua condição, a reintegração em um tempo
primordial, a angústia do tempo e da morte. Ela permite ao
homem escapar às contingências da história.

122
O mito, o herói e o atleta

- as estruturas: são entendidas, nesse caso, como organização


relativamente estável de símbolos ou de temas que na forma da
ideologia e da utopia apresentam o ideal.
Nessa concepção, é a estrutura, mais que as funções e a
forma, que assegura a perenidade-persistência do mito. E sem
descartar a possibilidade de uma correspondência estrutural entre
o mito religioso arcaico e uma ideologia política mais ou menos
racionalizada, uma obra literária cinematográfica profana, uma
construção utópica ou um movimento milenarista, Sironneau
(1985) defende sua construção e aponta:
Numa tal perspectiva não há como opor radicalmente, como
tipos heterogêneos e incompatíveis, as diferentes expressões do
imaginário sócio-político e organizacional: a ideologia, o mito ‘à
Sorel’, a utopia, o milenarismo. Sem dúvida, cada qual com sua
especificidade, mas, no interior de cada uma delas poderemos
encontrar uma ou várias estruturas míticas (p.263).
E classifica as estruturas da seguinte forma:
- a ideologia: que pode ser mais ou menos racionalizada. Em
seu extremo pode ser altamente saturada de mitologia, como
é o caso da ideologia tecno-científica na pós-modernidade. Ela
também pode ser apresentada de modo mais moderado, porém
não menos ‘pregnante’, como nas ideologias políticas atuais – o
liberalismo, o nacionalismo e o socialismo;
- uma utopia: considerada um importante elemento de
racionalidade, é a criação de um indivíduo particular que
constrói os alicerces do ideal, contudo sua criação pode cruzar,
ainda que seu criador não o desejasse, as grandes estruturas do
mito;
- um movimento milenarista: que pode ser definido por traços
como a promessa de uma salvação terrestre e coletiva; promessas
e objetivos de caráter ilimitado (outro mundo, outra sociedade,
outro tipo de homem); a necessidade de uma ruptura violenta,
de uma catástrofe ou de um cataclisma considerado como o
decisivo combate transformador do mundo, uma desproporção
máxima entre os fins visados e os meios disponíveis.

123
Katia Rubio

Em suma, o que Sironneau demonstra é que certos temas


míticos tradicionais sobrevivem nas sociedades contemporâneas
mais ou menos camuflados, tendo como seus domínios a literatura, a
mídia e o cinema, e aparecem ‘degradados’ enquanto temas míticos e
personagens exemplares, com evidente parentesco com as estruturas
míticas, figuras heroicas e divinas dos mitos arcaicos e tradicionais.
Aponta, por fim, que os métodos apropriados para evidenciar tal
parentesco são a mitocrítica, a mitanálise ou a análise de conteúdo.
Apesar de toda a construção apresentada acima, a experiência do
mito é ainda uma forma de transcender ao mundo cotidiano, de todos
os dias, e penetrar num mundo transfigurado, auroral, impregnado da
presença do sobrenatural.
O mito, para Brandão (1991), é um sistema que tenta, de
maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Ele
não possui outro fim senão a si próprio, e a crença nele é um ato
de fé. Por isso ele atrai em torno de si toda a parte do irracional no
pensamento humano, sendo por sua própria natureza, aparentado à
arte, em todas as suas criações.
Opondo-se ao lógos como a fantasia à razão, como a palavra que
narra à que demonstra, lógos e mythos são as duas metades da
linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida e do
espírito (p.13).
Na continuidade de seu pensamento, o autor afirma que,
enquanto um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é como
uma metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da
primeira, é um modo de significação.
Essa maneira de compreender o mito permite a incorporação
de uma forma de vivência denominada por Paula Carvalho (1992)
de mitopoiésis, ou seja, a construção e elaboração do mundo e de si
próprio por meio do mito, ou, nas palavras de Campbell (1990), não
buscamos no mito um sentido para a vida, mas o mito é a própria
experiência de estar vivo (p. 173).
Algumas formas do mito manifestam-se em diferentes culturas,
em momentos históricos singulares satisfazendo a um mesmo anseio.
Nenhum outro mito foi tão cultuado e se mantém por tanto tempo no
imaginário como o do herói.

124
O mito, o herói e o atleta

O herói como personagem mítico


Herói é o nome dado por Homero aos homens que possuem
coragem e méritos superiores, favoritos entre os deuses; para Hesíodo, são
filhos da união entre um deus e uma mortal ou de uma deusa com um
mortal. Na mitologia grega, das uniões que Zeus contraiu com mulheres
nasceram, por exemplo, heróis como Perseu e Héracles (Campbell, 1990).
Os heróis costumam ser apontados como os protetores das
cidades, que possuem todas elas a pretensão de prender-se a Zeus por
uma tradição qualquer. Assim Lacedemônio, esposo de Esparta, é filho
de Zeus e Taigeta; os árcades têm por primeiro rei Arcas, filho de Zeus e
Calisto; os cretenses recebem leis de Minos, filho de Zeus e de Europa, e
assim com uma infinidade de personagens mitológicos. Não é, portanto,
sem razão que Zeus é chamado pai dos deuses e dos homens.
Para Sellier (1970), geralmente os heróis têm parentes ilustres: seu
pai ou mãe são de natureza divina (Héracles, Aquiles); ou pelo menos,
seus parentes descendem da divindade: reis, príncipes, seres próximos a
Deus. Ou são a dádiva de uma família ou povo que superam uma grande
dificuldade. O nascimento do herói é precedido de oráculos, acompanhado
de bons augúrios (presságios) ou de premonições infelizes que apontam a
rejeição e o abandono (desgraça) condenando-o ao infortúnio.
O herói é, de acordo com Brandão (1999), uma idealização
e para o homem grego talvez estampasse o protótipo imaginário
da kalokagathía, a ‘suma probidade’, o valor superlativo da vida
helênica. Seres extraordinários que se notabilizaram por certas formas
específicas de criatividade, comparáveis às façanhas incríveis dos heróis
civilizadores das sociedades arcaicas. Foram eméritos fundadores
de cidades e colônias, inventaram e revelaram muitas instituições
humanas, como as leis que governam a cidade, as normas da vida
urbana, a monogamia, a metalurgia, a escrita, o canto, a tática militar.
Instituíram jogos esportivos, participaram ativamente de guerras, da
mântica, da iátrica e dos mistérios2. E mais que tudo, em cometimentos
gigantescos, varreram da terra os bandidos, as feras e os monstros.

A mântica – a arte divinatória – juntamente com a iátrica – a arte da cura – e a


2

agonística – a arte das disputas atléticas – eram elementos do processo de iniciação


vivido pelo herói, ensinados por um mestre, sendo o centauro Quiron o principal
entre eles

125
Katia Rubio

A distância entre deuses e heróis, ainda que não seja grande,


faz com que o homem se coloque mais próximo do herói, talvez por
sua genealogia semi-humana, do que dos deuses, esses sim ilustres e
inatingíveis. Isso porque esses personagens são representações simbólicas
da psique total, entidade que supre o ego da força que lhe falta.
Vernant (1990) afirma que Hesíodo, em Trabalho e dias, adiciona
às raças de ouro, prata, bronze e ferro, uma quinta, a dos heróis, que não
tem correspondente metálico. Intercalada entre as gerações do bronze e
do ferro, ela destrói o paralelismo entre raças e metais, interrompendo
um movimento de decadência contínuo, simbolizado por uma escala
metálica com valor regularmente decrescente. A raça dos heróis define-
se, em relação à do bronze, como a sua contrapartida na mesma esfera
funcional: são guerreiros, lutam na guerra, morrem na guerra. A raça
dos heróis é considerada mais justa e ao mesmo tempo mais valorosa
militarmente. A sua diké – a justiça dos homens – se situa no mesmo
plano militar que a hybris – o descomedimento, a ultrapassagem do
métron – dos homens de bronze. Ao guerreiro, votado por sua própria
natureza à hýbris, opõe-se o guerreiro justo que, reconhecendo os seus
limites, aceita submeter-se à ordem superior da diké3.
No entender de Vernant (1990) essa forma de estruturar o mito
com relação aos heróis é a preocupação de Hesíodo, não com sua
existência terrestre, mas com o seu destino póstumo. Se para cada
uma das outras raças eram indicadas como foi a vida na terra e no
que ela se transformou depois da morte, satisfazendo assim uma
dupla função, expor a degradação moral crescente da humanidade e
fazer conhecer o destino das gerações sucessivas, no caso dos heróis,
sua presença ao lado das outras raças se justifica não pelo primeiro
objetivo, mas pelo segundo.

A Segundo Junito Brandão areté é a expressão daquilo que se poderia definir como
3

excelência ou superioridade que se revelam particularmente no campo de batalha


e nas assembleias, por meio da arte da palavra. A areté, no entanto, é uma outorga
de Zeus: é diminuída, quando se cai na escravatura, ou é severamente castigada,
quando o herói comete uma hýbris, uma violência, um excesso, ultrapassando sua
medida, o métron, desejando igualar-se aos deuses. Consequência lógica da areté
é a timé, a honra que se presta ao valor do herói, que se constitui na mais alta
compensação do guerreiro. É a dike, a justiça, que não permite crescer a hýbris ou
o descomedimento.

126
O mito, o herói e o atleta

Nessa perspectiva, o destino das raças metálicas, depois de


seu desaparecimento da vida terrestre, consiste em uma ‘promoção’
ao nível das forças divinas. Os homens das raças de ouro e prata
tornam-se daimones depois da morte; os de bronze formam a
população do Hades4; e os heróis, e apenas eles, não se beneficiam
de uma transformação que só lhes poderia dar o que já possuem: a
permanência, pois são heróis e heróis permanecem.
Mas não são todos os membros da raça heroica que conseguem
distinguir-se, conquistando uma posição de destaque. A maioria deles
compartilha o Hades depois da morte.
Apenas alguns privilegiados dessa raça mais justa escapam ao
medíocre anonimato da morte e conservam, pela graça de Zeus
que os recompensam com esse favor particular, um nome e uma
existência individuais no mundo do além: transportados para a
ilha dos Bem-aventurados, eles levam uma vida livre de todas as
preocupações (Vernant, 1990, p.30).
A simetria entre o destino póstumo dos homens de bronze e
dos heróis é semelhante a que existe entre os homens de prata e ouro.
Os homens de bronze desaparecem com a morte, sem deixar nome;
os heróis continuam a sua vida na ilha dos bem-aventurados, e os
seus nomes, celebrados pelos poetas, permanecem para sempre na
memória dos homens.
Mas o herói não é encontrado apenas na estrutura mitológica
grega. O mito do herói é o mais comum e mais antigo do mundo,
reconhecido na mitologia clássica da Grécia e Roma, na Idade Média,
no Extremo Oriente e entre diversas tribos contemporâneas. Tem um
poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos aparente,
uma importância psicológica profunda. É um mito que apresenta uma
grande variedade de detalhes, mas se examinado minuciosamente
apresenta inúmeras semelhanças na estrutura.

O Hades é considerado o imenso império de Plutão, localizado no ‘seio das


4

terras brumosas’, nas entranhas da Terra e, por isso mesmo, denominado


‘etimologicamente’ Inferno, o lugar para onde se dirigem e permanecem todas as
almas, após a morte. Depois de passar por julgamento, de acordo com as faltas e
méritos, todos, exceto os deuses, recebiam a sentença que ordenaria como destino
o Tártaro, cárcere dos que haviam cometido grandes crimes, especialmente contra
os deuses; os Campos Elíseos, para onde iam as almas dos justos; e a Ilha dos Bem-
aventurados, reservada aos heróis, lugar de desfrute da felicidade eterna.

127
Katia Rubio

Chevalier e Gheerbrant (1991) apontam que o protótipo do herói


celta é o irlandês Cuchulainn, o qual, desde a mais tenra idade, fez
proezas guerreiras extraordinárias. Sozinho, deteve ao longo de vários
meses todos os exércitos das quatro províncias da Irlanda na fronteira
do Ulster. É distinta sua concepção de guerra, na medida em que
representa a essência da função guerreira, baseada na bravura pessoal
e no destemor, mas não na estratégia coletiva. Força física, destreza e
coragem são atributos do herói, que pode contar, ocasionalmente e por
acréscimo, com a inteligência.
É de se perguntar se diante desse mundo patriarcal dos heróis há
lugar para as mulheres. Na mitologia grega, excetuando algumas deusas
que vão à guerra, à caça e outras atividades essencialmente masculinas
como Athena e Artemis, o heroísmo é uma função masculina. Os gestos
femininos caracterizados pela reflexão e recolhimento constituem um
universo onde atitudes tidas como heroicas são classificadas em uma
outra ordem de valor.
Campbell (1990) justifica essa condição de destaque alcançada
pelo macho argumentando que o homem tem mais destaque nesse
papel por estar lá fora, no mundo, e a mulher permanecer dentro, no
lar. Conta que entre os astecas essa condição sofre alterações quando
observado o destino dado aos mortos que, como já foi dito, é quando
o herói se distingue dos homens.
Entre os astecas, por exemplo, que dispunham de vários céus,
para onde as pessoas iam de acordo com a morte que tivessem,
o céu dos guerreiros mortos em batalha é o mesmo das mães que
morrem em trabalho de parto. Dar à luz é incontestavelmente uma
proeza heroica, pois é abrir mão da própria vida em benefício da
vida alheia (p.132).
As histórias de heróis variam de cultura para cultura e, com
o tempo, acompanhando a evolução – não no sentido do progresso,
mas do desenrolar temporal – que caracteriza as sociedades. Numa
referência à diferença entre esses vários tipos heroicos, Campbell
(1990) irá afirmar que
existe um herói típico das culturas arcaicas, que sai por aí
matando monstros. É uma forma de aventura do período pré-
histórico, quando o homem estava moldando o seu mundo,

128
O mito, o herói e o atleta

a partir da selvageria perigosa... O herói evolui à medida que a


cultura evolui (p.144).
E assim o herói ganha novas formas, novas roupagens, como
Moisés que sobe a montanha e volta com as tábuas da lei, como Jonas
que é engolido e depois escapa à baleia, ou Luke Skywalker, de Guerra
nas Estrelas, que enfrenta o próprio pai para depois salvá-lo.
Nessa perspectiva, admite-se então que o herói está presente em
todas as mitologias, nos vários momentos históricos por que passou a
humanidade, representando ‘diversos papéis sociais’.

O herói arquetípico
Campbell (s.d.) considera o herói como sendo o homem da
submissão autoconquistada, ou seja, submissão ao dilema e ao enigma
comum a todos os seres humanos, e que constitui a virtude primária e
façanha histórica do herói, que é a morte, morte que prescinde de um
nascimento, nascimento não da coisa antiga, mas de algo novo (p.26).
Por isso seu papel reside na tarefa de retirar-se da cena mundana
dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais
da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las
claras, erradicá-las em favor de si mesmo e penetrar no domínio da
experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que
Jung (s.d.) denominou imagens arquetípicas.
O conceito de arquétipo remete a possibilidades herdadas para
representar imagens similares, formas instintivas de imaginar, sem
ser inatas. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou
semelhantes tomam forma.
A partir da consideração do herói enquanto um arquétipo,
Campbell (s.d.) descreve essa manifestação arquetípica como sendo o
homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas
pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas
(p.28), ou seja, as visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm
diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humano.
Em outras palavras, esse esquema tem um significado psicológico
tanto para o indivíduo – no seu esforço em encontrar e afirmar sua
personalidade – como para a sociedade – na sua necessidade análoga
de estabelecer uma identidade coletiva.

129
Katia Rubio

O caminho comum da aventura mitológica do herói, segundo


Campbell (s.d.) está na magnitude da fórmula representada nos ritos
de iniciação: separação-iniciação-retorno, que poderia receber o nome
de ‘unidade nuclear do monomito’, e normalmente esse modelo está
pautado numa sequência que envolve uma separação do mundo, a
penetração em alguma fonte de poder e o regresso à vida para vivê-la
com mais sentido.
Como visto anteriormente, a ideia de herói é dinâmica e adequa-se à
concepção de homem e de mundo. Sustentar que só o personagem de
tipo homérico, por exemplo, merece esse adjetivo significa postular
uma visão de humanidade linear, é acreditar que os modos de vida
não se transformam e que nossa existência deve ser um constante
retorno às formas de vida do passado. Limitar a existência do herói
a tipos humanos do passado é como exigir que em nosso tempo se
escrevam epopeias nos moldes das tragédias. Os tempos são outros,
mas a necessidade desses mitemas permanecem (p.28).
A função do culto do herói é para Villegas (1978) necessário,
não somente pela existência das guerras, mas por causa das virtudes
que o heroísmo comporta e que, sendo advertidas desde os tempos
pré-históricos, houve necessidade de exaltar e recordar. A magia, o
aparato, o esplendor do vestuário guerreiro assim o proclamam, como
a coroação dos vencedores equiparados aos reis. A relação entre a
‘pequena guerra santa’, quer dizer, a luta contra os inimigos interiores e
espirituais, determinou automaticamente a mesma relação entre o herói
de uma ou outra guerra. Todas as qualidades heroicas correspondem
analogamente às virtudes necessárias para triunfar do caos. É aí que o
Sol aparece em muitos mitos como o herói por excelência.
Temos, então, que a vitória sobre si-próprio é a grande propulsora
do herói de todos os tempos.
Sabendo da transformação por que passou esse mito ao longo
das eras, Campbell (s.d.) postula que o problema da humanidade hoje
é precisamente oposto daquele que tiveram os homens dos períodos
comparativamente estáveis das grandes mitologias coordenantes, hoje
tidas como ‘inverdades’.
Naqueles períodos, todo o sentido residia no grupo, nas grandes
formas anônimas, e não havia nenhum sentido no indivíduo com a

130
O mito, o herói e o atleta

capacidade de se expressar; hoje não há nenhum sentido no grupo


– nenhum sentido no mundo: tudo está no indivíduo. Mas hoje o
sentido é totalmente inconsciente. Não se sabe o alvo para o qual
se caminha. Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas
de comunicação entre as zonas consciente e inconsciente da psique
humana foram cortadas e fomos divididos em dois (p.372).
E prossegue
A tarefa do herói, a ser empreendida hoje, não é a mesma do
século de Galileu. Onde então havia trevas, hoje há luz; mas é
igualmente verdadeiro que, onde havia luz, hoje há trevas. A
moderna tarefa do herói deve configurar-se como uma busca
destinada a trazer outra vez à luz a Atlântida perdida da alma
coordenada (p.373).
Ou seja, o herói moderno, o indivíduo moderno que tem a
coragem de atender ao chamado e empreender a busca da morada
dessa presença, com a qual todo o nosso destino deve ser sintonizado,
não pode – e na verdade, não deve – esperar que sua comunidade
rejeite a degradação gerada pelo orgulho, pelo medo, pela avareza
racionalizada e pela incompreensão santificada. Não é a sociedade
que deve orientar e salvar o herói criativo; deve ocorrer precisamente
o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema
provação, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo,
mas nos silêncios do nosso próprio desespero.
E assim, temos mais uma vez a confirmação de que o mito se
transforma com as mudanças da sociedade e da cultura.
O herói não se apresenta dentro de um modelo único. Ele se
manifesta como dois tipos possíveis: o herói físico e o herói místico.
O herói físico é aquele que, diante de monstros que lhe limitam o
caminho, faz uso das armas que possui para se proteger, matando o
inimigo; o herói místico, por sua vez, empreende uma viagem optando
por um outro caminho, para dentro de si mesmo, e suas armas não
cortam nem matam, fazem-no se defender de inimigos que o impedem
de seguir sua jornada rumo ao centro, ao Uno, ao integral, ao completo.
Os dois tipos distintos de dificuldades e de inimigos que encontram
os heróis em suas jornadas são aqueles que os seres humanos enfrentam
em suas trajetórias pessoais: os desafios físicos dos vários momentos

131
Katia Rubio

do ciclo do desenvolvimento vital e os desafios da subjetividade e da


alma, postos desde o nascimento até a morte.
Para Henderson (s.d.), a atribuição essencial do mito heroico é
desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de
suas próprias forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado
para as difíceis tarefas que a vida irá lhe impor. Em cada ciclo
da história de vida do indivíduo o mito tomará forma particular,
que se aplica a determinado ponto alcançado pelo indivíduo no
desenvolvimento da sua consciência do ego e também aos problemas
específicos com que se defronta a cada momento. Ou seja, a imagem
do herói evolui de maneira a refletir cada estágio de evolução da
personalidade humana.

O herói esportivo
Dentre os vários fenômenos que a sociedade moderna tem
produzido para a emergência de atitudes heroicas, o esporte tem
ocupado um dos lugares mais destacados.
O esporte contemporâneo, no seu processo de construção, sofreu
influência das transformações socioculturais e absorveu uma série de
características da sociedade industrial moderna.
Segundo Guttmann (1978), em função disso, características como
secularização, igualdade de chances, especialização, racionalização,
burocratização, quantificação e busca de recorde, princípios que
regem a sociedade capitalista pós-industrial, marcam indelevelmente
a prática esportiva, tendo o rendimento como o princípio norteador.
Mas, apontar apenas o rendimento enquanto elemento
marcante do esporte contemporâneo, apresentado como um dos
espetáculos da pós-modernidade, seria desconsiderar outros valores
que foram sendo transformados, principalmente a partir da década
de 1970, ou mais precisamente com a queda em desgraça do conceito
de amadorismo.
DaMatta (1986) afirma que a função do esporte no mundo
moderno tem uma ligação íntima com dois aspectos fundamentais
da vida burguesa: a disciplina – porque ensina e reafirma nas massas
os limites sociais como regras e deveres – e o fair play ¬– pois o
esporte trivializa a vitória e o fracasso, socializa o insucesso e o êxito
e banaliza a derrota.

132
O mito, o herói e o atleta

Esses conceitos aplicam-se, basicamente ao esporte competitivo.


Apesar do uso corrente do termo esporte para se referir a várias
práticas corporais de movimento, na atualidade essa discussão tem sido
o objeto de estudo de estudiosos da área (Betti, 1991; Bracht, 1997;
Pereira, 1988; Tubino, 1993), com o intuito principal de distinguir a
atividade competitiva da atividade não competitiva, não apenas do
ponto de vista conceitual, mas principalmente naquilo que se refere
à elaboração de políticas para o desenvolvimento de programas que
objetivem formação e participação da população jovem e adulta.
As práticas esportivas, conforme Tubino (1993), contam com
manifestações distintas, embora interatuantes, podendo ser divididas
da seguinte forma: esporte performance, que objetiva rendimento,
numa estrutura formal e institucionalizada; esporte participação,
visa ao bem-estar para todas as pessoas, praticado voluntariamente e
com conexões com os movimentos de educação permanente e com a
saúde; esporte educação, com objetivos claros de formação, baseado
em princípios socioeducativos, tendo como finalidade a preparação de
seus praticantes para a cidadania e para o lazer.
Se na perspectiva do esporte participação e educação observa-se
a preocupação com instâncias sociais e educativas, no que se refere
ao esporte performance, ou de alto rendimento, os procedimentos
e finalidades caminham em outra direção. O espetáculo esportivo
mescla sonho, política e pragmatismo, na medida em que, desde as
competições regionais às internacionais, revelam no balanço do
quadro de medalhas as discrepâncias que diferenciam as nações, tanto
em nível econômico, político-ideológico quanto sociocultural.
Apesar da ‘loucura’ ou do ‘desespero’ vivido por torcidas, e por
vezes nações, diante de um resultado, os componentes ideologia e
paixão não são os únicos a mover o esporte. Grande parte do interesse
despertado por espectadores e/ou torcedores com relação à disputa
esportiva não se distingue do mistério e polêmica que envolvem o
protagonista do espetáculo esportivo.
Na concepção de Helal (1998), um fenômeno de massa como
o esporte não consegue se sustentar por muito tempo sem a presença
de ‘heróis’, ‘estrelas’ ou ‘ídolos’, uma vez que eles levam as pessoas
a se identificarem com aquele evento. O papel que desempenham
como representantes de uma comunidade, frequentemente transpondo

133
Katia Rubio

obstáculos aparentemente intransponíveis, favorece a construção da


condição de herói.
Na relação entre o ego e o desempenho de papéis sociais,
muitas vezes o atleta se vê identificado apenas com a figura
espetacular sugerida pela condição de esportista – aquele capaz de
realizar grandes feitos – dificultando sua participação em situações
da vida cotidiana e em outras atividades sociais (Rubio, 2000b). Se
por um lado sua condição de atleta diferenciou-o de uma grande
parcela da população, permitindo que goze de privilégios reservados
a poucos, por outro essa mesma condição o faz amargar isolamento
e distanciamento de situações vividas por semelhantes. E essa é uma
das condições vividas pelo herói arquetípico.
Diferentemente do atleta da Antiguidade, que tinha sua
preparação física e atlética como um elemento da sua educação e da sua
formação enquanto cidadão, cujos desdobramentos eram a preparação
para a guerra e a proteção da pólis, associando os papéis de esportista
e guardião, o atleta de alto rendimento na atualidade tem sua imagem
vinculada ao espetáculo e ao lazer. Seus feitos são capazes de levar
multidões a estádios e ginásios, em momentos de espetáculo, ou causar
dor e comoção coletiva em caso de acidente ou morte.
Como observado em estudo anterior (Rubio, 1998), submetido a
uma rotina desgastante de treinos e jogos, o atleta se vê envolvido por
questões como a ausência de contato com a família, super-exposição
na mídia e a impossibilidade de admitir – para si e para o público –
suas fragilidades, angústias e incertezas, posto que ainda que uma
figura mítica, nosso herói contemporâneo não habita o Olimpo nem
bebe da ambrosia com os deuses, mas estabelece relações afetivas e
sofre com os transtornos que cercam a vida de um atleta, que também
é cidadão.
Atletas que conseguiram repetir seus feitos por mais de uma
vez – como Adhemar Ferreira da Silva, Carl Lewis, Gustavo Kuerten
ou Nadia Comaneci – ganhando medalhas ou quebrando recordes
têm seus nomes impressos não só na memória de jornalistas bem
preparados como também do espectador em geral, preservando sua
condição de mito. Seus feitos o diferenciam da estrela, atleta que
consegue uma boa performance em uma competição ou o benevolência

134
O mito, o herói e o atleta

da mídia por sua boa aparência ou simpatia, tem seu nome registrado
nos anais, mas cumprida sua trajetória tem seu brilho apagado.
Essas situações são experimentadas e comprovadas de dois em
dois anos – alternando Jogos Olímpicos e os Campeonatos Mundiais
das modalidades mais populares nas diversas nações como o futebol
no Brasil e em vários países americanos, europeus e asiáticos, mas
também o rúgbi na Nova Zelândia e Austrália, o football americano e
o beisebol nos E.U.A., entre outros – quando o esporte, então, ganha
amplo espaço na mídia e invade a vida mesmo daqueles que não são
seus adeptos e amantes, seja na forma das mais variadas espécies
de merchandising ou alterando os horários de trabalho cedendo ao
esporte e ao atleta um espaço nobre do seu dia a dia.
Quem mais, nas sociedades modernas, teria o poder da façanha
de deter a atenção de alguns milhões de pessoas com o intuito
exclusivo do entretenimento?
Não é por acaso que os mitos representados no esporte são
sobretudo de natureza heroica. Os feitos realizados por atletas,
considerados quase sobre-humanos para grande parcela da população,
somados ao tipo de vida regrada a que são submetidos contribui para
que essa imagem se sedimente.
O herói, enquanto figura mítica, vem representar o mortal, que
transcendendo essa sua condição aproxima-se dos deuses em razão
de um grande feito. A realização de prodígios é quase sempre uma
mistura de força, coragem e astúcia, caracterizando essa figura não
como alguém dotado apenas de força bruta, mas como uma figura
particular, capaz de realizar mais do que apenas a força lhe daria
condições.
Transpondo para os nossos dias temos no atleta de alto
rendimento uma espécie de herói onde quadras, campos, piscinas
e pistas assemelham-se a campos de batalhas em dias de grandes
competições.
É nesse sentido que Hillman (1993) propõe não mais procurar
os Deuses no Olimpo, nem nos antigos cultos, templos ou estátuas
do passado. Aponta o autor que, na atualidade, os deuses são vistos
em nossos eventos cotidianos, nas nossas desordens particulares, e
também públicas.

135
Katia Rubio

Não é apenas a disputa que faz o atleta identificar-se com o


herói. O caminho para o desenvolvimento dessa identidade envolve
etapas comuns ao mito: há uma chamada para a prática esportiva,
que em muitos casos significa deixar a casa dos pais e enfrentar um
mundo desconhecido e, por vezes, cheio de perigos. Sua chegada
ao clube representa a iniciação, propriamente dita, um caminho de
provas que envolve persistência, determinação, paciência e um pouco
de sorte. A coroação dessa etapa é a participação na Seleção Nacional,
seja qual for a modalidade, lugar reservado aos verdadeiros heróis,
onde há o desfrute dessa condição. E, finalmente, há o retorno,
muitas vezes negado, pois devolve o herói à sua condição mortal,
e na tentativa de refutar essa condição são tentadas fugas mágicas
(como a desmotivação em retornar ao seu clube de origem), porém,
por paradoxal que seja, é apenas nesse momento que ele encontra a
liberdade para viver (Rubio, 2000b).
Daí acreditarmos que o atleta que atinge o alto rendimento - o
profissionalismo - tem um daimon como afirma Hillman (1997), ou
seja, sua vida não está disfarçada num fato empírico, mas afirma-se
abertamente como mito.
Visto sob esse aspecto o atleta heroico aproxima-se do paradigma
oferecido por Pearson (1994) onde temos sua identificação com a figura
do guerreiro que tem por objetivo a força, como tarefa a coragem e como
fraqueza o medo. E não é de estranhar, portanto, que sua vida seja trágica.
Esse indivíduo a quem nos referimos, que vem a ser identificado
como um ser raro, um entre milhares, usufrui dessa condição uma
vez que é mínima a parcela da população que pratica esporte com
finalidade competitiva e consegue atingir níveis de atuação e exposição
que justifiquem a sua situação de ídolo. O preparo físico (e porque não
psicológico também) extraordinário que tem o atleta, que envolve a
explicitação inevitável da busca e superação de limites, torna-o alvo de
identificações e projeções, levando-o a ser adorado por sua torcida, e
respeitado e, por vezes, odiado pelos adversários.
Essa diversidade de reações tem levado autores, principalmente
americanos e europeus, a estudarem o atleta enquanto herói para a
sociedade à qual ele pertence (Russel, 1993; Harris, 1994; Mangan
e Holt, 1996). Buscam com seus estudos estabelecer uma taxonomia

136
O mito, o herói e o atleta

para identificá-lo, apontando como elementos constitutivos desse


‘personagem’ a capacidade de vencer e de satisfazer as necessidades
do grupo, performances extraordinárias, aceitação social e espírito de
independência.
O interesse por esse tema surge em função do esporte ser
reconhecido, principalmente no Hemisfério Norte, como uma prática
cada vez mais divulgada de atividade saudável para quem compete.
Além disso, o esporte se afirma como uma oportunidade para as
pessoas se engajarem reflexivamente na discussão sobre valores e
relações sociais.
Essa é a razão que leva estudiosos das ciências humanas a voltar
suas atenções para a reflexão sobre o esporte. A análise desse fenômeno
do contemporâneo exige diferentes olhares. Ele já não é visto como
decorrência apenas de questões econômicas, políticas e sociais. O
esporte é tido como a atividade central nas sociedades contemporâneas,
com um conjunto próprio de valores a serem observados e analisados5.
A polaridade da relação amor e ódio, vivida coletivamente, leva
a um redimensionamento da importância do fenômeno esportivo para
a sociedade moderna, que tem na mídia seu principal divulgador e
aliado, que globalizou o esporte, bem como, tantos outros eventos
locais. Os produtos da mídia emergem a partir de um elaborado
processo de que envolve economia e cultura. O público é atraído por
mensagens e valores que refletem as expectativas contemporâneas,
porém não de maneira direta e objetiva, mas quase sempre metafórica.
É a partir dessa referência que Whannel (1998) irá afirmar que o
esporte tem sido prodigamente apresentado como uma metanarrativa:
a mídia narra os eventos esportivos transformando-os em estórias
com estrelas, personagens, heróis e vilões. E neste processo de

A importância que o esporte vem conquistando nas sociedades contemporâneas


5

levou MacClancy (1996) a organizar Sport, Identity and Ethnicity, onde são
apresentados dados como, na atualidade o esporte é considerado, juntamente com
o lazer e o turismo, a terceira maior indústria do globo, perdendo apenas para o
petróleo e a indústria automobilística. Essa posição de destaque tem contribuído
para que as mais diversas modalidade esportivas - olímpicas e não olímpicas -
praticadas por todo o planeta, sofressem profundas transformações ao longo dos
últimos anos, tanto do ponto de vista das modalidades em si, quanto da expectativa
dos praticantes.

137
Katia Rubio

construção de audiência estão estrategicamente posicionadas as


questões nacionais e patrióticas reveladas em práticas discursivas que
tocam em questões da identidade de um povo ou nação. Por isso é
preciso estar atento a apelos como ‘nós vencemos ou venceremos’ ou
‘nossos atletas’ estão competindo para ganhar, largamente utilizados
por locutores televisivos.
Aos personagens criados e sustentados pela mídia, Morin (1997)
nomeia como olimpianos modernos. O novo Olimpo onde esses
habitam é o produto mais original do novo curso da cultura de massas.
Afirma o autor que no encontro do imaginário com o real situam-se as
vedetes da grande imprensa como campeões, príncipes, artistas. Essa
nova modalidade de olimpismo nasce do imaginário, isto é, de papéis
encarnados em filmes por uns, de sua função sagrada ou trabalhos
heroicos para outros.
Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no
imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e
modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza
teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos
são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na
existência privada que eles levam. A imprensa de massa, ao mesmo
tempo que investe os olimpianos de papel mitológico, mergulha em
suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que
permite a identificação (p.106-107).
Esse Olimpo constituído por vedetes domina a cultura de
massa, mas se comunica, por meio da própria cultura, com a
humanidade corrente e interfere com todo o vigor, próprio do meio,
nos mecanismos de identificação e projeção da população de maneira
geral. Mesmo com toda a influência que vem desempenhando, Morin
assegura que apesar do Olimpo moderno se situar além da estética,
ele não se encontra na religião.
Como toda cultura, a cultura de massa produz seus heróis, seus
semideuses, embora ela se fundamente naquilo que é exatamente
a decomposição do sagrado: o espetáculo, a estética. Mas,
precisamente, a mitologização é atrofiada; não há verdadeiros
deuses; heróis e semideuses participam da existência empírica,
enferma e mortal (p.109).

138
O mito, o herói e o atleta

Presentes em todos os setores da cultura de massa, os olimpianos


fazem três universos se comunicarem: o do imaginário; o das normas;
o da informação, dos conselhos e das incitações. Enfim, concentram
neles os poderes mitológicos, nas palavras de Morin, e os poderes
práticos da cultura de massa.
Eliade (1998) já falava do papel dos meios de comunicação
ao observar a condução da vida dos personagens das histórias em
quadrinhos – versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos
– quando da correção do seu comportamento, ou pior, sua morte,
provocando verdadeiras crises entre os leitores, levando a protestos
junto aos autores ou até aos donos de jornais e revistas. Na época
em que aquele texto foi escrito a televisão não gozava, ainda, da
importância que adquiriu nas três últimas décadas do último século.
Assistimos a versão esportiva desse fato quando um atleta, por
questões disciplinares ou pessoais, é afastado do time ou quando
um técnico, por questões técnicas ou sociais, não é reconhecido
pela torcida, sendo então dispensado de suas funções. No caso
específico do Brasil, esse fato acontece com certa frequência em
modalidades prestigiadas por torcidas numerosas, como no caso do
futebol, ou que recebem grande atenção da mídia, como o voleibol
e o basquete.
Transformado em espetáculo pelos meios de comunicação, o
esporte enquanto signo da sociedade contemporânea, remete a imagem
do viver bem, estar bem consigo, ser vitorioso, transmitido como ideais
a serem atingidos pela média da população.
Se por um lado esse fenômeno (a mídia) estaria retratando a
democratização do esporte e um maior intercâmbio de bens
culturais, por outro estaria demonstrando como, na verdade, isso
é fruto de mecanismos cada vez mais fortes de dominação entre as
diferentes classes sociais (Teves, 2000, p.192).
Essa pode ser considerada uma das razões que faz hoje a mídia,
tendo a TV como seu principal expoente, ser considerada a ponta
de lança do processo de globalização. O esporte, visto como mais
um produto de consumo, precisa criar protagonistas para vender
um espetáculo esperado e desejado, mais uma peça numa grande
engrenagem. (Betti, 1998)

139
Katia Rubio

A consequência dessa exploração do esporte é a racionalização


daquilo que ele possui de mítico. Se no mito o herói se dedica a outrem,
a causas externas e à salvação da humanidade, esse mito criado como
um personagem necessário ao sistema tem suas realizações voltadas
para si próprio e se apresenta por meio de signos rapidamente
compreendidos e copiados como os carros importados ou a ostentação
de um vida de pseudo fartura.
Antes de conquistarem o mundo e serem reconhecidos em várias
partes do planeta, atletas-heróis como Adhemar Ferreira da Silva,
Pelé, Ayrton Senna, Zico e vários outros que alcançaram o Olimpo
esportivo, foram cada um, em sua cidade ou bairro, motivo de
aprovação e exemplo para outras pessoas que sonhavam em ser atleta,
um herói regional.
Cada um, cumprindo a sua trajetória, levando consigo aspectos
de sua história de vida, chegou ao topo da carreira esportiva,
desfrutando do reconhecimento do público tanto no Brasil como em
grande parte do mundo. Poderíamos afirmar que dificilmente eles,
assim como Gustavo Kuerten ou Ronaldinho, teriam alcançado esse
feito não fossem os meios de comunicação.
Atletas que fazem parte da história do futebol brasileiro a exemplo
de Friedenreich – El Tigre, Fausto dos Santos – O Maravilha Negra,
Domingos – o Divino Mestre, Leônidas da Silva – O Diamante Negro,
apenas para citar alguns nomes dignos de aposto, são personagens de
uma época em que o rádio era o único meio de comunicação de massa
capaz de transmissões ao vivo, e pela locução levava até o ouvinte a
mesma emoção do drible e do gol, que hoje, a imagem via satélite, em
tempo real, é capaz de provocar. E de uma maneira diferente do que é
feito na atualidade, apresentava ao público os ídolos do esporte.
Os personagens que acabamos de citar, figuras vivas que
tomaram forma mítica, ainda permanecem tanto no imaginário
quanto na história do esporte, porque, em seu tempo excederam os
limites reservados aos atletas do futebol.
Esse é um dos motivos apontados por Costa (1991) para afirmar
que o homem no esporte vive dos mesmos mitos e símbolos que o
homem religioso arcaico. O comportamento esportivo tem como
suporte um imaginário que é reprodução, sob forma dessacralizada ou
secularizada, do imaginário religioso arcaico.

140
O mito, o herói e o atleta

Pelos temas que celebra – morte simbólica, combate sagrado,


procura do paraíso perdido, conquista da imortalidade – pelos
rituais que o envolvem – cerimônias, festivais, desfiles de
bandeiras, chama olímpica, entrega de prêmios – e pelos atores
que nele intervêm – heróis, ídolos, representantes da comunidade
com o estatuto de super-homens -, o desporto moderno é, no
seio da nossa sociedade, uma verdadeira arqueologia dos mitos
arcaicos. Os mitos mais representados são sobretudo os de ordem
cosmológica e de natureza heroica (p.26).
Penetrar no imaginário esportivo desse final de século é, de certa
forma, buscar compreender por onde passa o parâmetro de projeção
e de criação de identidade de uma parcela de adolescentes e jovens
adultos na sociedade contemporânea. Isso porque os feitos esportivos
não estão apenas relacionados à apresentação de comportamentos,
mas também ao preenchimento de um vácuo de feitos de destaque.
Para tanto é fundamental conhecer um pouco mais sobre
o fenômeno esportivo atual e como o atleta se transformou no
personagem que ele é hoje.

141
Katia Rubio

142
(...) O esporte hoje impõe sua própria
lógica, que não é necessariamente
aquela dos governos. O esporte não é
meramente um instrumento: ele está
se tornando um fim em si mesmo,
com seus próprios valores e seus
aspectos progressivos. A dimensão
internacional do evento esportivo já
aboliu fronteiras. O esporte dessa
maneira promove união. O esporte é
uma escola para a paz, e deveria ser
ensinado como tal. Por um excesso
de confiança, seria simplista pensar
que a prática esportiva é igualada
ao trabalho pela paz. Sem esquecer
todas as implicações estratégicas,
a diplomacia também tem a função
de reforçar a amizade entre os povos,

Da gênese
promovendo o diálogo entre eles
e expressando interesses opostos
ao esporte envolvidos, preferivelmente à
utilização da força.
contemporâneo (Boutros Boutros-Ghali)1

A Trecho do discurso de Boutros Broutros-Ghali, Secretário Geral da Organização


1

das Nações Unidas, na abertura da 49ª Sessão da Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 25 de outubro de 1994.

143
Katia Rubio

O esporte é na atualidade um dos principais fenômenos


sociais e uma das maiores instituições do planeta. Ele tem refletido
a forma como a sociedade vem se organizando, espelhando as
diferenças entre Estados, povos e classes sociais, além de se tornar
um dos principais elementos da indústria cultural contemporânea,
matéria prima dos meios de comunicação de massa e umas das
poucas formas reconhecidamente honestas de rápida ascensão social.
Originário no período pré-histórico quando o ser humano era
ainda apenas caçador, organizado na Grécia como um dos eventos
mais importantes da Antiguidade e reinventado no século XIX como
um novo elemento pedagógico, o esporte acompanha a história da
humanidade como um elemento intrínseco à condição humana, seja
na formação de sua constituição física seja na atividade competitiva.
Apesar da abrangência histórica do fenômeno esportivo, essa pesquisa
focará dois momentos distintos: a Grécia Helênica, onde os Jogos
Olímpicos foram originalmente organizados e o século XIX e XX,
com a reedição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e o inevitável
desejo de reviver o esplendor e a glória vividos na Antiguidade.
Portanto, a descrição de fatos ocorridos nos primórdios não deve
ser tomada como historicismo, visto que deliberadamente optou-se pela
origem, pela organização institucional antiga e moderna indicando
uma periodização, onde se pode contemplar os diversos componentes
culturais do momento histórico abordado. Por esse motivo, ao
falarmos sobre o esporte na Grécia Helênica situamo-lo como um item
da educação grega e, quando analisado no contemporâneo, ele é tido
como produto da indústria cultural, um espetáculo, diferentemente da
atividade e da educação física, relacionado com a educação, com a
saúde e com a qualidade de vida.
A preocupação em periodizar, conforme Ribeiro (1988), partiu
da percepção de que os eventos não se sucedem em uma ordem que
é inata a eles, mas que ocorrem intrincados desde o seu nascimento,
ainda que sua articulação ocorra de maneira indeterminada.
O autor aponta que a indeterminação existe no sentido de
justificar quais agrupamentos sairão vencedores no embate de projetos,
uma das características da dinâmica da história humana. Parte-se,
então, do pressuposto de que a

144
Da gênese ao esporte contemporâneo

história não é uma sucessão de fatos, mas produto da articulação dos


agentes envolvidos, ganhando a forma de construção humana a partir
de projetos que vão se politizando ao longo de sua realização (p.94).
A periodização é um instrumento que permite organizar a
história dos fatos para situá-los em suas rupturas e descontinuidades.
Nesse estudo o objeto de análise é a presença do mito do herói no
esporte e as diferentes manifestações e interpretações desse fenômeno
na Grécia Helênica e na atualidade. A periodização proposta auxilia
a identificar o significado do mito do herói, suas premissas na Grécia
Helênica e sua permanência na atualidade.

Origens do esporte
Se em determinados momentos históricos a prática esportiva
esteve associada ao tempo livre, ao lazer e à profissionalização, sua
origem remete à sobrevivência, ao culto aos deuses e ao cumprimento
de rituais, visto a valorização de que desfrutavam as proezas corporais,
na forma de danças, ginástica e jogos (Huizinga, 1971; Magnane,
1988; Grifi, 1989).
A prática do exercício físico foi fator fundamental para o contexto
econômico dos povos primitivos, na medida em que suas atividades de
caça, pesca e o desenvolvimento de técnicas rudimentares de cultivo,
além de envolver a atividade física necessária para o desempenho
dessas funções, garantia a sobrevivência do grupo.
Nos primeiros tempos de sua existência, o homem vivia não
em condições paradisíacas, mas em dura luta pela existência, sob
imperativo das necessidades vitais mais imediatas (Diem, 1966; Jordão
Ramos,1983; Athayde, 1997). Apesar disso, era um ser que caminhava
sobre dois pés, erguido e com os olhos dirigidos para o céu, de onde
surgiam as forças contra as quais ele não podia vencer: o raio e o
trovão e as inundações, bem como o sopro do vento e a luminosidade
do Sol, a força da chuva e a misteriosa luz da Lua. A compreensão
desses fenômenos naturais, por vezes deslumbrantes em sua beleza e
esplendor, por outras aterradores e inexplicáveis, levou o ser humano a
desenvolver formas de simbolização, significação e interpretação, que
apresentassem uma finalidade para as circunstâncias de fartura e de
desastre impostas pela natureza.

145
Katia Rubio

Diante de tais circunstâncias, pouca consciência se tinha do livre


arbítrio humano, uma vez que todas as ações e decisões individuais
ou da comunidade eram imputadas aos deuses. A existência, bem como
todo esforço físico, que não serviam para a satisfação imediata das
necessidades vitais, eram dedicados às potências sobrenaturais, em forma
de manifestações rituais expressas por meio da animação do corpo.
Todo movimento corporal produz uma excitação interior que
pode aumentar o entusiasmo e chegar até um estado transcendente,
experimentado em ritos penitentes ou danças religiosas (Diem, 1966).
Para os sábios chineses, a dança e a música serviam para manter a
ordem do mundo, os jogos com bola dos índios mexicanos imitavam o
movimento do Sol de Leste para Oeste, como luta entre o dia e a noite,
o céu Boreal contra o céu Austral, bem como o salto em altura sugeria
o movimento de crescimento das espigas, do cânhamo e do milho.
Também o jogo de futebol deve ser incluído na lista de ações
ruidosas para dispersar maus espíritos. Em sua origem, na Inglaterra, o
futebol era jogado ao anoitecer, no interior das aldeias, ao longo da via
principal, de Leste para Oeste, acompanhado do maior ruído possível,
levando os comerciantes a fechar seus negócios. As autoridades tanto
eclesiásticas como leigas se viram obrigadas a intervir, proibindo a
sua prática (Diem, 1966). Também pelo período em que se jogava,
no norte da França e na Inglaterra, indica uma procedência ritual: na
época do Natal, como proteção contra os demônios, e na Páscoa, para
comemorar o fim do inverno.
Quando as crianças fazem uso do movimento para brincar ou
usam objetos que giram e fazem barulho, elas repetem aquilo que
era primitivamente destinado a fins mágicos e que foram perdendo
essa finalidade com o decorrer do tempo. O princípio de todo o jogo
remonta à mesma origem: a corrida, a marcha, a equitação, o ritmo
da repetição dos passos, a rapidez do movimento e as variações de um
jogo durante seu transcurso, pela excitação e animação dos sentidos,
tinham como objetivo influenciar a realidade cotidiana e exorcizar os
maus espíritos com o barulho (Huizinga, 1971).
Sendo assim, a origem ritual do esporte enquanto jogo pode ser
associada às festividades da primavera, em várias localidades onde
se calcula o novo ano a partir dessa estação. Até os dias atuais, na

146
Da gênese ao esporte contemporâneo

festa de Ano Novo entre os kagura, realizam-se competições de luta


nos templos japoneses, bem como danças com espadas entre os bery-
tadchik no Tajikistão, e na noite do solstício de verão, nos Cárpatos,
acontece uma corrida de moços à luz de tochas sendo o vencedor
premiado com uma pena de pavão, que podia ser ostentada ao longo
de todo o ano como símbolo da vitória (Diem, 1966). Sempre que o
homem considera importante uma determinada data, é dado o motivo
para uma festividade.
Provas que avaliam rapidez, resistência, força e habilidade sempre
foram consideradas práticas esportivas sem fins competitivos, apenas
rituais. A rapidez sempre foi valorizada como a essência em si mesma
da plenitude da vida juvenil, tanto que a apoteose dos Jogos Olímpicos
era dada pela corrida de velocidade. O vencedor da corrida no estádio
emprestava seu nome à festa olímpica e a ele era concedida a honra de
acender o fogo sagrado.
As competições de velocidade com motivo ritual são encontradas
em todo o mundo, dos esquimós do norte do continente americano,
aos índios mexicanos, à celebração da Páscoa na Alemanha ou na
comemoração da Rigveda na Índia.
Uma das representações da associação entre rapidez e força é
encontrada nas corridas com toras em tribos indígenas brasileiras. A
carga que carregam sobre os ombros representa a alma dos mortos e
deve chegar até a fronteira da aldeia, preferencialmente em um lugar
alto, com visibilidade, para que ganhe novos horizontes.
Entre os exercícios de força cabe mencionar em primeiro lugar
as variadas formas de luta, desde a luta livre dos gregos à luta asiática
dos nômades, chineses, japoneses, hindus, persas, turcos e negros
australianos; ao boxe entre negros, malaios e indonésios; as lutas a
empurrões de Borneo, as lutas com escudos dos índios warau. Consta
das provas de habilidade as competições com armas de precisão, como
o arco, que sempre fizeram parte das festas populares em Benevento,
na Frísia ou no Tirol.
Ainda que se encontrem as mais variadas manifestações esportivas
em forma de jogos pelos vários cantos do mundo, foi no modelo grego
que o esporte moderno se espelhou para que os Jogos Olímpicos fossem
reeditados. E mais uma vez mito e história se confundem.

147
Katia Rubio

A Grécia e o esporte
Ao tratar do antigo esporte grego pisamos no terreno sagrado
da cultura. É conhecida a extensão da influência da cultura grega,
principalmente para o Ocidente, que forneceu os fundamentos de
nossa civilização. Parte do processo de formação do cidadão residia
no processo de purificação do espírito, vigente na ideia de que não era
possível a perfeição sem a beleza do corpo. Para tanto, o caminho da
educação integral, ou Paideia como a chamavam os gregos, não era
possível sem a educação física. Também o ideal da beleza humana para
o Ocidente nasceu dessa prática. Aos gregos devemos a máxima: Não
há educação sem esporte, não há beleza sem esporte; apenas o homem
educado fisicamente é verdadeiramente educado, e, portanto, belo. E
como ensinou Sócrates (Platão, s.d.), o belo é idêntico ao bom.
Vários eram os jogos realizados na Grécia Antiga, todos eles
em um período quadrienal, em diferentes cidades. Havia por parte
da população e dos organizadores dos jogos o cuidado de nunca
coincidir as datas das competições, permitindo assim a participação
dos habitantes das diversas cidades vizinhas na cerimônia (Gillet,
1975). Essa preocupação aponta para a associação entre a legitimidade
dos jogos e a quantidade de representações individuais vinculadas
aos seus locais de origem, ou seja, quanto mais atletas participantes
representando um maior número de cidades, maior a importância
daquela competição.
Os jogos Pan-Helênicos, denominação de quatro grandes
competições – Jogos Olímpicos, Píticos, Ístmicos e Nemeus – eram
realizados para celebrar homenagens a deuses como Zeus, em Olímpia,
Jogos Olímpicos; Apolo, em Delfos, com o nome de Jogos Píticos; em
Corintio, festejavam-se os Jogos Ístmicos a Poseidon; em Nemeia os
Jogos Nemeus, dedicados a Héracles; os Jogos Heranos, dedicados à
deusa Hera, esposa de Zeus, com a participação exclusiva de mulheres;
e os jogos Fúnebres, considerados os mais antigos e talvez precursor
dos Jogos Olímpicos, eram dedicados aos mortos, como descreve
Homero, na Ilíada, sobre a homenagem a Pátroclo; as Panateias, evento
realizado em honra a Athena, tendo sido construído especialmente
para esse evento, em 380 a.C. por Licurgo, o estádio Panatenaico, em
Atenas, e reconstruído e ampliado por Herodes Ático no século II,
para abrigar 50 mil espectadores (Godoy, 1996).

148
Da gênese ao esporte contemporâneo

De acordo com Boga (1964), na Antiguidade os Jogos Olímpicos


foram creditados a Héracles (ou Hércules), que para prestar uma
homenagem ao rei Augias, morto em combate durante a conquista
da cidade de Elis, instituiu em sua memória competições atléticas que
vieram a se chamar Jogos Herácleos. Mas, sua contribuição para com
a organização de jogos esportivos não para aí. Contam os eleenses que
Héracles, criado no Monte Ida, na Ilha de Creta, propôs aos irmãos
um concurso pedestre para se exercitarem na corrida, dando origem
ao primeiro gênero de competição: o atletismo.
Uma outra versão sobre o surgimento dos Jogos Públicos contada
por Fernandes (1980), afirma que Pélope, avô de Héracles, apaixonou-
se pela filha de Enómao, rei de Pisa, que de acordo com o oráculo
seria morto pelas mãos do próprio genro. Esse fato fez com que este
Enómao se opusesse ao casamento da filha Hipodamia. Porém, para
satisfazer ao desejo dos pretendentes, concordou em realizar uma
prova de corrida de carros, durante a qual ele tentava acertar os
concorrentes com uma lança. Um a um os pretendentes foram caindo
mortos, exceto Pélope que havia subornado o cocheiro real, para que
sabotasse o carro do rei, provocando um acidente que veio resultar
em sua morte. Como forma de agradecimento à vitória conquistada
Pélope, organizou jogos.
Se com Pélope ou com Héracles o fato é que o início dos jogos
está relacionado a essa família heroica e, em prevalecendo a segunda
versão, nem só a habilidade e a força eram responsáveis pelo sucesso
esportivo e a lisura nem sempre estava presente em todas as formas
de competição.
Durante muito tempo, heroísmo e esporte estiveram
intimamente relacionados. Conta Brandão (1999) que em Esparta,
onde a educação física era levada muito mais a sério que no restante
da Grécia, a rua que conduzia ao estádio, além de ser marcada
pelo túmulo do herói Eumedes, possuía uma estátua de Héracles,
a quem os sphairîs, os jovens próximos da maturidade faziam
seus sacrifícios antes de seu combate ritual. A conexão entre culto
agonístico e culto heroico era tão séria, que os grandes e mais
célebres atletas foram heroicizados, como é o caso de Cleomedes de
Astipaléia, Eutimo de Locros e Teógenes de Tasos.

149
Katia Rubio

Olímpia era considerada um centro político e religioso e


favoreceu, sob forma de associação, a agregação de várias outras
cidades, para a realização dos jogos, entre elas Esparta. A base dessa
federação foi o reconhecimento de Zeus como protetor comum e os
jogos como uma festa em sua homenagem, que segundo exigência do
oráculo de Delfos deveria ser celebrada de 4 em 4 anos, no dia da Lua
cheia após o solstício de verão. A escolha desse dia devia-se ao fato
desse ser o momento em que o Sol, atingindo o ponto mais elevado de
sua carreira no hemisfério Norte, resplandecendo em todo o brilho,
mostrava-se vitorioso aos seus inimigos mais temíveis. As corridas e
combates dos atletas reproduziriam a imagem do curso anual do Sol
e as vitórias deste sobre os diferentes signos do zodíaco (Boga, 1964).
Os Jogos Olímpicos marcaram de tal forma o modo de vida
grego que durante sua realização era decretada a trégua, ou seja, três
meses antes do início desse acontecimento eram suspensas todas as
guerras, os soldados eram proibidos de pegar em armas ou participar
de conflitos armados, mesmo contra povos invasores, para que atletas
e espectadores pudessem chegar a Olímpia sem sofrer qualquer tipo
de ataque.
Heródoto conta que essa dedicação aos Jogos era o resultado
de uma nobre educação física praticada por amor a si e em honra aos
deuses. Ele conta que em 480 a.C., o rei Xerxes conduziu os exércitos
do Oriente através do Helesponto, conquistou a Tesalia, abriu por
traição o paço marítimo das Termópilas e entrou na Grécia, que
estava, ao que parecia, desprevenida e indefesa. Ao interrogar uns
desertores famintos da Arcádia, perguntou-lhes sobre o que faziam
os gregos naqueles momentos cruciais. A inesperada resposta foi:
‘Estão celebrando as Olimpíadas’ (75ª- Olimpíada). O rei Xerxes
continuou indagando: ‘Qual é o prêmio das competições?’ ‘Uma
coroa de louros’ foi a resposta. Então, um dos comandantes persas
disse pensativamente ao general Mardonios: ‘Temo por nós, se nos
levam a combater contra homens que não lutam por ouro e prata,
mas por virtudes viris!’ (Diem, 1966).
O esporte exerceu grande influência sobre a formação do homem
grego, sendo considerado como um dos três pilares da educação da
criança e do jovem, juntamente com as letras e a música (Cagigal,

150
Da gênese ao esporte contemporâneo

1979; Tubino, 1992). O conceito de harmonia, ainda que de difícil


interpretação, segue sendo o objetivo ideal de toda a educação como o
‘equilíbrio entre os diversos extremos’.
Para os gregos, a ginástica era uma obrigação moral, enquanto
formação do corpo, dirigida a conseguir beleza e força. O descuido
dessa obrigação era uma vergonha, segundo Sócrates. O valor da
ginástica era apreciado pela capacidade intelectual que poderia
comunicar.
Segundo Platão, em Timeo: O mais parecido com a agilidade
mental é a agilidade corporal, e justamente aqueles que precisassem
solucionar graves problemas de pensamento, deveriam praticar ao
mesmo tempo a ginástica; sempre exercitando conjuntamente o
corpo e a alma, e nunca um sem o outro. Enfim, a ginástica persegue
objetivos físicos, espirituais e morais. Daí, as festividades ginásticas
se vincularem intimamente a competições poéticas e artísticas, como
afirma Isócrates, identificando-se com os fundamentos da educação
platônica. Como considerava o homem enquanto um conjunto que
congregava corpo e alma, a ginástica era inseparável da cultura
mental. Segundo essa doutrina, o efeito formativo dos exercícios era
visto pelos gregos na resistência à dor, no desenvolvimento da sensatez
assim como na formação de um grande sentido de honra, sobretudo,
a generosidade considerada a coroa das demais virtudes. Apenas o
homem fisicamente completo era considerado portador da força e
superioridade necessárias para enfrentar os revezes da vida.
Na Grécia Helênica, os exercícios físicos eram realizados nos
ginásios e necessários ao equilíbrio da harmonia humana, desenvolvidos
na educação. Já as atividades de treinamento eram direcionadas a
sujeitos de elite, que se preparavam para os Jogos Olímpicos, motivados
pela busca de prestígio.
Os exercícios físicos eram praticados, principalmente pelos
cidadãos – homens livres, nascidos de pai e mãe atenienses, os
únicos a terem o direito de possuir terras e gozar de plenos direitos
políticos; também poderiam praticá-los, porém em outro ginásio,
os metecos – estrangeiros que obtiveram permissão para se fixar na
Ática, protegidos pelas leis, pagavam impostos e prestavam o serviço
militar, alijados da posse de terras e da participação no governo.

151
Katia Rubio

Os únicos a serem excluídos integralmente da prática da ginástica


eram os escravos – capturados em guerras, filhos de escravos ou de
pais que os abandonaram quando crianças – e as mulheres.
Praticada no gimnasio – um dos edifícios mais importantes da
cidade por simbolizar a importância que a cultura física tinha para o
grego, significava escola em que a juventude se treinava para os jogos
com a finalidade de manter a saúde e desenvolver e conservar a robustez
física do organismo – a atividade física ou ginástica era considerada
elementar para a formação de todo o cidadão.
No entender de Pereira (1988), para que a ginástica e o esporte
fossem ensinados dentro dos preceitos ditados pela Paideia, foram
criados corpos de especialistas em questões atléticas, classificados
como:
- g ymnastai – seriam os dirigentes, semelhantes aos atuais
presidentes de clubes esportivos. Em algumas cidades eram
necessários mais de trinta anos para se desempenhar essa
função, visto que ela tinha uma caráter honorífico;
- pedotribai – eram os instrutores, técnicos que supervisionavam
os treinos portando uma vara, como símbolo de sua autoridade.
Tinham um status social semelhante ao médico.
Ambos os cargos, de dirigente e de treinador, eram um privilégio
de cidadãos gregos que pertenciam à elite das cidades-estados.
O ginásio grego não foi dedicado por muito tempo só aos
exercícios atléticos. Logo se voltou para a orientação da cultura física
da criança. Além das letras e da música, a educação da infância e da
mocidade fazia-se e completava-se nos ginásios onde toda a juventude
ia treinar, ponto de reunião para os gregos. Ali ensinaram Platão,
Aristóteles e Prodicus, o primeiro a expor as vantagens da prática da
ginástica para a saúde.
Todo grego que aspirasse à estima e consideração dos seus
concidadãos deveria frequentar o ginásio pelo espaço de 10 anos até a
maioridade, a fim de obter o diploma que lhe dava ingresso aos cargos
públicos. Como decorrência do poder de emulação diária da vida dos
ginásios, o jovem grego encontrava ocasião e espaço para desenvolver
livre e completamente seus valores pessoais. Por outro lado, as leis
de então obrigavam a uma disciplina severa, regulando os exercícios

152
Da gênese ao esporte contemporâneo

da mocidade, impondo-lhe a aceitação de um regulamento explícito,


obediência aos superiores e renúncia a todo capricho egoísta. A força
inculta não era aceita. Ninguém conseguia ser admitido a tomar parte
nos jogos sem previamente e durante longo tempo haver se submetido
a um treino regular segundo o método grego. Ninguém podia aspirar
honra mais elevada entre os gregos, a coroa olímpica, sem antes ter se
sujeitado, sob juramento, a todas as leis do jogo.
Não eram apenas os detentores do poder aqueles que podiam
fazer os outros trabalharem para si, que praticavam a ginástica.
O grego era o comerciante, o artesão, o agricultor, o banqueiro:
o trabalho não era considerado desonroso, conquanto que cada
um também dispusesse de tempo necessário para dedicar-se à sua
formação cultural e aos problemas da polis. Segundo Péricles, para
um homem não era vergonha a pobreza, mas a inatividade. O grego,
antes de tudo, era cidadão, com direitos e deveres, um dos quais era
a prática da ginástica. Cada qual valia na medida em que servia à
comunidade. Neste sentido ‘ambicionava-se a fama’, e esta aspiração
de honra era talvez o motivo da alegria agonística. A honra era a
principal razão de viver (Boga, 1964).
Diante da perspectiva do esporte enquanto elemento pedagógico
na formação da criança e do jovem gregos, não é de se estranhar a
crítica feita àqueles que optaram pela prática alienada do esporte, que
privilegiava apenas a competição em detrimento da formação, um dos
indicadores da decadência da cultura grega.
Platão, na República, reforça que diante da diversidade da vida,
há homens que não conhecem mais do que o esporte, enquanto há
outros que se dedicam àquilo que lhes é próprio, ou seja, aspiram
à perfeição, como exigia o filósofo. Os primeiros, diante de tanta
especialização, perdem a conexão com a vida e a dimensão da
existência, apesar dos músculos vigorosos, e a longo prazo, perdem
também toda a capacidade corporal.
Galeno, baseado em Hipócrates, condenava os atletas que apenas
se preocupavam com a vitória, e afirmava que a saúde e plenitude
daqueles que praticam esporte apenas para competir são instáveis.
Assim como aquelas partes dos muros que foram talhadas por
aríetes facilmente caem diante da trepidação, já que não resistem

153
Katia Rubio

a esforço algum, assim os atletas são propensos a adoecer em


qualquer ocasião, por se tornarem frágeis pelos golpes que recebem
durante suas atuações... Duvido que os atletas participem do bem
do espírito e que façam uso da razão (apud Diem, 1966, p.125).
Afirma o médico que esse tipo particular transita entre a letargia
e a insônia, são muito sensíveis ao frio e quase inteiramente incapazes
para o exercício de uma profissão.
Além disso, o atleta profissional passava a maior parte do dia
no ginásio preparando-se para a luta, sujeito a um regime especial que
consistia em pão pouco fermentado e mal cozido, carne de porco e
vinho em grande quantidade.
Este regime, unido ao excesso de fadiga e à vida irregular dos
ginásios originava no atleta graves perturbações fisiológicas,
impossibilitando-o de suportar longas viagens, as fadigas da
guerra, reunindo a um espírito pesado com tendência à preguiça,
uma estatura disforme e uma inclinação pronunciada à violência
(Boga, 1964, p.43).
Esse atleta não gozava, geralmente, de vida longa nem saudável.
A exuberância de musculatura era uma sobrecarga para o sistema
vascular, e mesmo adquirindo força sobre-humana era fraquíssimo
de resistência.
Alguma semelhança com os dias atuais?
Prossegue Galeno: Talvez presuma-se que sejam eles os que
maiores quantias de dinheiro ganhem, no entanto é possível constatar
que todos andam endividados (apud Diem, 1966, p.126).
Esse tipo de crítica não se refere ao atletismo, mas às consequências
prejudiciais de uma modalidade específica, que na Antiguidade, servia
para entreter o público com sensacionalismo: o pugilato.
Espécie de luta, foi de início o menos brutal dos exercícios de
força (Boga, 1964). Não era permitido agarrar ou segurar o adversário
pela garganta, confiando a vitória apenas aos golpes de ataque. Do
pugilato derivou o pancrácio (pan – toda; cratos – força), espécie de
combate onde todos os recursos da força eram permitidos para a
derrota do adversário. Desconhecido nas idades heroicas, o pancrácio
começou a ser cultivado quando o gosto dos gregos pelos exercícios do
corpo recebeu uma espécie de consagração oficial nas festas olímpicas,

154
Da gênese ao esporte contemporâneo

que tiravam destas ocasiões a parte essencial de seus interesses. Para


essa luta requeria-se o vigor físico aliado à astúcia, habilidade e rapidez
nos movimentos, e a vitória era conquistada frequentemente pelo mais
ágil. Pancratistas e pugilista demonstravam na sua maioria pouca
habilidade em outras modalidades.
Apesar dos fatos relatados e da crítica ao desvirtuamento da
prática esportiva não se pode generalizar a desmoralização do esporte
clássico. Mesmo diante do ‘espetáculo’ descrito acima, ainda existiam
os atletas que viajavam de competição em competição, que viviam do
esporte, mas não eram caracterizados como profissionais, conforme
o sentido contemporâneo que damos a essa palavra. Os gastos com
viagens, as condições de treinamento, bem como as coroas e as
cerimonias de oferenda aos deuses aconteciam sem que houvesse a
certeza de quando elas seriam celebradas.
A competição, para os gregos, era considerada um princípio
vital, não apenas pelo rendimento ambicionado, mas em si mesma com
independência de todo objetivo. O indivíduo crescia e se desenvolvia
dentro de um espírito criador, um competidor à sua maneira, um
‘agonista’2. Assim, a rivalidade fazia parte da essência da vida, não
apenas em situações onde é fácil a determinação da vitória ou da
derrota, mas também em situações imponderáveis como a criação
artística. Para o grego, a dignidade e o valor de uma competição não
residiam nos resultados. O fator determinante era o brilho e o ardor
que penetrava nos corpos e espíritos durante o jogo das possibilidades,
dominando o instante supremo.

O esporte na Odisseia
Muitos dos feitos heroicos confundem-se com a história. Ainda
assim, é possível constatar que, mesmo na literatura, o esporte é
descrito e apreciado como uma atividade respeitável, quase divina.

A agonística, segundo Brandão (1999) em grego agonistiké, significa luta, disputa


2

atlética, e prende-se a agon, ‘assembleia, reunião’ e, em seguida, ‘reunião dos


helenos para os grandes jogos nacionais’, os próprios jogos, os concursos, as
disputas. No capítulo V Cartografias do imaginário esportivo discorremos mais
detalhadamente sobre esse tema.

155
Katia Rubio

Homero (s.d.), na Odisseia, não deixa de associar a força e


resistência de Odisseu3 à sua astúcia e perspicácia. Depois de vagar
quase duas décadas para regressar a Ítaca, o herói da Odisseia, chega
à terra dos feácios, a Esquéria, onde é recebido por Alcínoo, o rei desse
povo que promete resgatá-lo a sua terra de origem depois de vesti-lo
e oferecer um banquete ao forasteiro e a seu povo com muito vinho,
comida e música. Em certo momento, demonstrando que as provas
esportivas compunham aquilo que de melhor podia se oferecer a um
estrangeiro, o rei Alcínoo proclama:
Atenção, caudilhos e conselheiros feácios!... Agora saiamos e
vamos a uma exibição de todos os jogos atléticos, para que, ao
regressar à pátria, o forasteiro conte à sua gente quanto superamos
os outros povos no pugilato, na luta, no salto e na corrida (p.89).
A partir daí, os melhores cidadãos feácios exibem-se em suas
modalidades, diante do rei e de seu hóspede. Mesmo tendo sido
vitorioso em Troia e reconhecido como um dos mais senão o mais
forte entre os aqueus, Ulisses chega à penúltima etapa de sua viagem,
depois de passar por muitos reveses e infortúnios, com o aspecto físico
de um homem forte, mas já não atlético. Diante dessas circunstâncias,
Laódamas, filho de Alcínoo, dirige-se a ele com as seguintes palavras:
Vem cá também tu, venerável forasteiro; exibe-te nalgum desporto,
se aprendeste algum. Tu deves conhecer desportos, pois a maior
glória dum homem são os feitos que realiza com os pés e as mãos.
Vamos, faze uma prova. Dissipa os cuidados de teu coração; a
viagem não te será mais retardada, já está lançado um barco ao
mar e pronta a tripulação (p.90).
Mais do que um convite ali se produzia um desafio. Consciente
de sua força já testada e comprovada na guerra, Ulisses responde ao
jovem incauto, com o respeito devido a um anfitrião, reconhecendo o
papel de celebração implicado numa apresentação ou disputa esportiva:
Laódamas, por que mofas de mim com esse desafio? Há mais lugar
para tristezas do que para desportos no âmago de quem, apenas
saído de tantas tribulações e tantas fadigas, está hoje sentado em

Nome grego de Ulisses.


3

156
Da gênese ao esporte contemporâneo

meio a vossa assembleia, ansioso pelo repatriamento e suplicando-o


ao vosso rei e a todo o povo (p.90).
E mais uma vez, o conhecimento do esporte é clamado como
a garantia de uma educação pregressa do herói, expressa na fala de
Euríalo, semelhante a Ares, o mais belo de todos os feácios:
Isso, forasteiro, é por não ver em ti um conhecedor de desportos,
de tantos que se contam na Humanidade, mas um desses que vão e
vêm num barco de muitos remos, capitaneando marujos traficantes,
alguém preocupado com o frete, a vigiar a mercadoria, os lucros,
as ganâncias; atleta é o que não pareces (p.90).
A interpretação da recusa de participação na disputa como
incapacidade física ou desconhecimento da prática leva Ulisses a um
estado de cólera, que em algumas circunstâncias teria custado a vida ao
oponente, mas neste caso o faz resgatar seu poder de orador e de atleta:
Senhor, não foram nobres as tuas palavras. Pareces um presunçoso,
tão certo é que a nem todos os homens concedem os deuses os seus
dons, seja o do bom físico, seja o da inteligência, seja o da palavra...
Não sou alheio aos desportos, como tu proclamas; ao contrário,
penso ter sido dos melhores quando podia confiar na juventude e
em meus braços. Hoje, tolhem-me as desgraças e sofrimentos, pois
muito penei atravessando guerras de povos e ondas cruéis. Apesar
de tudo, a despeito das muitas desgraças sofridas, farei uma prova
desportiva, porque tuas palavras pungiram meu coração e teu
desafio me provoca (p.91).
Em seguida, Ulisses procura por um disco de pedra e arremessa-o
a uma distância maior que a tentativa de todos os oponentes anteriores,
causando espanto e admiração entre aqueles que assistiam à contenda.
O gesto foi uma demonstração de força e habilidade. O que estava em
jogo naquela situação eram os valores físicos e morais amealhados ao
longo de uma existência. Como dito anteriormente, o resultado em si
era o que menos importava num momento como esse, principalmente
por se tratar de uma festividade, mas a postura diante de um rival
e da apresentação esportiva apresentavam elementos para avaliar os
padrões éticos e estéticos do atleta. Diante disso, Ulisses anuncia:
Alcançai agora essa marca, moços; talvez logo mais eu lance um
outro disco, a essa distância, suponho, ou ainda além. Venha
157
Katia Rubio

aqui quem quer de vós outros a quem o coração e a alma assim


mandem, pois que me irritastes ao extremo, e meça forças comigo
no pugilato ou na luta, ou mesmo na corrida; para mim tanto faz;
pode ser qualquer dos feácios, menos o próprio Laódamas; ele
é meu hospedeiro e quem lutaria com quem o acolheu? Homem
insensato e mesquinho é quem desafia para disputas atléticas
seu hospedeiro em país estranho; arruína todos os seus próprios
interesses. Dos outros não recuso nem desdenho ninguém; quero
vê-los e pô-los à prova frente a frente. Não sou bisonho em nenhum
dos desportos que os homens praticam... (p.91 e 92).
A conduta seguida por Ulisses retrata a moral esportiva do
homem grego implicada diretamente com a educação. O objetivo da
educação helênica só podia ser alcançado por meio dos exercícios
físicos, que tinham como meta certo tipo de rendimento. Esse
comportamento, porém, não implicava um fim em si próprio. O
vencedor de uma disputa, ainda que fosse uma expressão dessa areté,
só poderia sê-lo realmente se esse homem também fosse capaz, um
bom cidadão. Os gregos concebiam o homem e sua circunstância
como uma totalidade.

O esporte moderno
O esporte e a atividade física chegam ao século XIX
acompanhando as transformações políticas e sociais que começaram
no século anterior – Iluminismo, Revolução Industrial e Revolução
Francesa – demonstrando, desde então, como diria DaMatta4,
uma tendência a servir como um bom veículo para uma série de
dramatizações da sociedade.
O esporte moderno resultou de um processo de esportivização
da cultura corporal de movimento das classes populares inglesas, cujos
exemplos mais citados são os inúmeros jogos com bola, e também
de elementos da cultura corporal de movimento da nobreza inglesa

O conceito do esporte enquanto um instrumento privilegiado de dramatização de


4

muitos aspectos da sociedade, no caso a brasileira, é desenvolvido por DaMatta


(1982). Para o autor o esporte é um código de integração social, uma força integrativa
capaz de proporcionar ao povo a experiência da vitória e do êxito, e, em algumas
situações, proporciona ainda a experiência da igualdade e da justiça social.

158
Da gênese ao esporte contemporâneo

(Betti, 1991). Desde então, esporte e ginástica irão se diferenciar tanto


por seus meios como por seus fins.
O fato é que, semelhante à Grécia antiga, os sistemas
ginásticos têm sua origem vinculada a elementos que os associavam
à educação, mas, se olhados atentamente, apresentam uma tendência
funcionalista e racionalista, na medida em que buscavam responder
a uma demanda advinda da defesa dos Estados Nacionais e ao
aumento da produção capitalista.
A origem do sistema ginástico e do movimento esportivo
oferecem, de certa forma, elementos para a compreensão do esporte
moderno até os dias atuais.
A cultura da atividade física, principalmente a ginástica, seguia
proximamente conceitos ditados por Rousseau, expresso em Emílio, onde
Para aprender a pensar é preciso, portanto, exercitarmos os nossos
membros, nossos sentidos, nossos órgãos, que são instrumentos
de nossa inteligência; e para tirar todo o proveito possível desses
instrumentos, é preciso que o corpo que os fornece seja robusto e
são... (Rousseau, 1979, p.121).
Países como Alemanha, França, Suécia e Dinamarca foram o
berço de movimentos ginásticos vinculados a processos de afirmação
de nacionalidade, cuja preocupação maior era a preparação para a
guerra e a defesa do Estado (Betti, 1991).
Como uma reedição da Paideia, o movimento ginástico alemão
foi influenciado pela ideias educacionais do Iluminismo, período em que
a educação física era parte integrante da educação do jovem. E, assim
como na Grécia onde havia a prática de um mínimo de modalidades
individuais – corridas, saltos, arremessos e lutas – jogos como a
peteca, a bola, os pinos eram acrescentados às atividades físicas, cujas
características podem sugerir variadas interpretações como excursões
ao campo, transporte de sacolas cheias de areia e suspensão em escadas
oblíquas (Marinho, s.d.).
Mas é o trabalho de Friedrich Ludwig Jahn (1778-1852) que
repercutirá na formação da juventude prussiana do início do século
XIX. Mentor de um método de educação nacional, na qual a educação
física tinha um papel fundamental, Jahn, um nacionalista fervoroso,
acreditava que a atividade física favorecia uma vida ativa e saudável,
além de tornar os homens capazes de combater o inimigo e o invasor.
159
Katia Rubio

A derrota das forças napoleônicas acirrou o sentimento nacionalista


e reforçou a proposta da inclusão do sistema ginástico nas escolas
alemãs (McIntosh, 1975).
É também no início do século XIX, depois de se envolver
nas guerras napoleônicas, perder territórios e viver uma forte crise
econômica, que se desenvolve, na Dinamarca, um sistema ginástico.
De acordo com Betti (1991), ainda que criado por um civil – Franz
Nachtegall – esse sistema ganhou destaque entre os militares que
fundaram o Instituto Militar de Ginástica, em que civis também eram
admitidos, responsável pela formação de professores de ginástica para
as escolas em geral. Fruto dessa postura, a Dinamarca veio a ser o
primeiro país europeu a introduzir a educação física como disciplina
curricular, promover cursos de treinamento de professores e a editar
manuais para instrutores.
Entretanto, é na Suécia, nesse mesmo período, que surgirá uma
proposta ginástica longeva. Depois de estudar na Dinamarca e conhecer
o sistema ginástico desenvolvido no país vizinho, Per Henrik Ling volta à
Suécia disposto a implementar um modelo pedagógico que contemplasse
a educação física. Esse desejo ganhou impulso quando, na guerra contra
a Rússia, foi perdida a Finlândia e, mais uma vez, governo e militares
buscaram o desenvolvimento de uma educação física voltada para a
formação de homens robustos de físico e de caráter.
Betti (1991) acredita que Ling tinha motivos patrióticos para
desenvolver esse tipo de ginástica, mas sendo um estudioso de anátomo-
fisiologia buscava outros objetivos para o praticante, levando-o a criar
um projeto de ação dividido em quatro propostas: a ginástica militar,
a médica, a pedagógica e a estética. Esse sistema ginástico alcançou
grande repercussão dentro e fora da Europa, sendo seus seguidores
responsáveis pela continuidade apenas da ginástica militar, fato que
desencadeou uma série de críticas à proposta inicial.
Se Alemanha, Dinamarca e Suécia desenvolveram métodos
ginásticos próprios para fortalecer seus exércitos, desenvolver
um espírito nacionalista e sobreviver às investidas de um vizinho
ameaçador, esse não era o objetivo daquele que representava a ameaça
de perigo, ou seja, a França. A ginástica foi introduzida na França
somente na segunda metade do século passado e, diferentemente

160
Da gênese ao esporte contemporâneo

dos outros países onde toda a população era contemplada, apenas o


exército era usuário dessa atividade. Inimigos ou aliados, o que tornou
semelhante o movimento de expansão do sistema ginástico nesses
países europeus foi o fato de serem territórios localizados no continente
e, portanto, preocupados em defender ou expandir suas fronteiras. O
desenvolvimento da capacidade de defesa do próprio indivíduo e da
nação era o objetivo maior da atividade física.
Em uma outra direção caminhou o sistema ginástico e esportivo
inglês.
Por ser uma potência situada em uma ilha, historicamente
a Inglaterra foi temida e respeitada pelas manobras econômicas e
políticas que conseguia executar pelos mares. Sua guarda como suas
conquistas eram feitas pela marinha, reconhecida em todo o mundo.
Essa característica por si só já confere ao movimento ginástico e
esportivo inglês uma singularidade em relação aos países continentais.
Responsável por um vasto império colonial, berço da Revolução
Industrial e de acontecimentos que tiraram o poder da aristocracia
em favor da burguesia, foi na Inglaterra que novas formas de
relações sociais foram desenvolvidas. Reflexo dessa nova ordem, as
instituições educacionais passaram por grandes transformações como
a transferência para o Estado das escolas de ensino fundamental
associadas à Igreja e a entidades particulares de caráter beneficente,
responsáveis pela educação dos ‘pobres’. Por outro lado, tanto a
burguesia como a aristocracia financiavam seu próprio sistema
educacional, determinando a sistematização da ginástica e do esporte
na Inglaterra. (Luzuriaga, 1979)
Essas condições acabaram por gerar também uma preocupação
com a normatização de conduta e de regras. Elias e Dunning (1992)
apontam que a concepção e organização do esporte moderno na
Inglaterra estão intimamente relacionados aos complexos processos
social e político que viveu esta nação ao longo dos séculos XVII e
XVIII, e justificam:
No decurso do século XIX e, em alguns casos, mais cedo, na
segunda metade do século XVIII, com a Inglaterra considerada
como um modelo, algumas atividades de lazer exigindo esforços
físicos assumiram também em outros países as características

161
Katia Rubio

estruturais de ‘desportos’. O quadro de regras, incluindo aquelas


que eram orientadas pelas ideias de ‘justiça’, de igualdade de
oportunidades de êxito para todos os participantes tornou-se
mais rígido... A ‘desportivização’, em resumo, possui o caráter de
um impulso civilizador comparável, na sua orientação global, à
‘curialização’ dos guerreiros, onde as minuciosas regras de etiqueta
representam um papel significativo (p.224).
Até o final do século XVIII o esporte era uma prática tipicamente
aristocrática, fato que sofreu grandes transformações com a ascensão
da burguesia e a proliferação do esporte em outras camadas sociais
(Grifi, 1989; Tubino,1992; Ulmann,1982). Thomas Arnold, no
Colégio Rugby, utilizou-se desses jogos aristocráticos e burgueses
como elemento pedagógico que foram sendo codificados e organizados
pelos próprios estudantes.
Os estudantes das public-schools promoviam seus próprios jogos
– futebol, tiro e caça – apesar da proibição dessas práticas, por serem
consideradas violentas e perigosas. As conquistas políticas e sociais
burguesas refletiram-se na conquista de privilégios educacionais que
envolviam o surgimento de novas public-schools e, consequentemente,
dos valores desenvolvidos nessas instituições, como o esporte.
O modelo esportivo predominante, em meados do século XIX,
era o da classe média, que no entender de Betti (1991).
...deu aos vários jogos esportivos, alguns descobertos em estado
embrionário, organização, regras, técnicas e padrões de conduta
para os praticantes, em grande parte vigentes até hoje (p.45).
Tido como uma atividade de ócio da aristocracia e da alta
burguesia, e um meio de educação social de seus filhos, foi a partir da
conquista de uma jornada de trabalho reduzida e de um tempo de lazer
das classes trabalhadoras que o esporte experimentou sua expansão e
organização institucional (Mcintosh, 1975).
O modelo esportivo passou a servir como norteador da educação
inglesa, voltada para a formação física e moral daqueles que iriam
explorar e colonizar o mundo da ‘livre troca’. Os homens que levariam
adiante o liberalismo precisavam ser solidários na ação e ter iniciativa
dentro das regras que regia o mercado. O esporte passou a ser uma
metáfora do jogo capitalista.

162
Da gênese ao esporte contemporâneo

As escolas públicas tornam-se o celeiro de líderes que iriam


atuar na indústria, na política, no exército, nas empresas comerciais e
na administração do império colonial, e a influência socializante dos
jogos era enfatizada para promover liderança, lealdade, cooperação,
auto-disciplina, iniciativa e tenacidade, qualidades necessárias à
administração do Império britânico.
Mas o privilégio esportivo não estava destinado a todos, uma
vez que diante da formação de lideranças é presumível que haja
liderados. A partir do Ato de Educação de 1870 foi estabelecido um
acordo entre o Departamento de Educação e o Gabinete Militar para
que sargentos ministrassem educação física nas escolas primárias.
O modelo seguido foi o da ginástica sueca de Ling, gerando uma
dualidade de sistemas na educação física inglesa: jogos organizados
nas Escolas Públicas e ginástica nas Escolas Primárias, ou seja, nas
primeiras tem-se a formação de líderes empreendedores e bons oficiais
e, nas segundas, bons operários e soldados, talhados na disciplina e
nos efeitos fisiológicos do exercício sistemático.
Juntamente com a indústria têxtil, as ferrovias, as companhias
de energia elétrica e tudo o que a Inglaterra pôde exportar, estavam
o esporte, sua organização e regras. Baseado na tradição helênica da
‘igualdade de oportunidades’ entre os competidores, o esporte veio a
servir perfeitamente a essa mesma ideologia dentro do liberalismo.
Estavam lançadas as bases do movimento que veio a reeditar os
Jogos Olímpicos da Era Moderna.

O Olimpismo - Citius, Altius, Fortius


O Movimento Olímpico moderno, pautado no modelo grego,
renasceu com a preocupação de universalizar a instituição esportiva.
Exerceu papel de destaque nesse processo o francês Pierre de Freddy,
conhecido pelo título nobiliárquico de Barão de Coubertin. Educador,
pensador e historiador, quando se empenhou na reorganização dos
Jogos Olímpicos intentava revalorizar os aspectos pedagógicos do
esporte grego, muito mais do que assistir a conquista de marcas e
quebra de recordes. Sua preocupação fundamental era valorizar a
competição leal e sadia, o culto ao corpo e à atividade física, reflexo de
sua concepção humanista.

163
Katia Rubio

Inspirado nos jogos da Grécia Helênica e no modelo educativo


das escolas públicas britânicas, esse aristocrata francês via o esporte
como um fator indireto para o equilíbrio entre as qualidades físicas e
intelectuais – mens sana in corpore sano (mente sã em corpo são) – e
assegurar a paz universal.
Em junho de 1894, diante de uma plateia que reunia representantes
de 12 países para um congresso esportivo-cultural em Paris, Coubertin
apresentou a proposta de recriação dos Jogos Olímpicos para a capital
francesa em 1900, como parte das comemorações da virada do século
que ocorreria em seis anos. A proposta foi aprovada por unanimidade,
apesar da ignorância da maioria da plateia sobre a história e a
tradição dos jogos gregos, mas diferentemente do que havia sugerido
o proponente, a competição foi antecipada para o ano de 1896, para a
Grécia, como uma deferência aos criadores dos jogos originais.
A ideia de organizar os Jogos Olímpicos por representações
nacionais exigia a criação de uma instituição capaz tanto de
normatizar a participação de atletas como de escolher as modalidades
disputadas, muitas delas recém-criadas e sem um corpo de regras
universalizadas. Foi então criado um comitê com representantes de
várias nacionalidades, indicados pelos participantes do encontro para
organizar aquela edição dos Jogos, dando origem ao Comitê Olímpico
Internacional (COI), em 1894.
A prática de indicação pelo próprio Comitê persiste até os
dias atuais e seus membros são considerados embaixadores dos
ideais olímpicos em seus respectivos países e não delegados de suas
nações junto ao Comitê, numa tentativa de destituir aqueles que
lidam com o esporte de qualquer relação com manobras políticas5.
Isso seria possível?
Regidos desde então por princípios fundamentais contidos na
Carta Olímpica, os Jogos Olímpicos pautaram-se por um conjunto de
valores que são a referência fundamental do Movimento Olímpico até
os dias atuais, que refletiam a formação do Barão de Coubertin.

Sagrave (1988) apresenta o conceito de Olimpismo enquanto uma filosofia de


5

reforma social, onde se pode encontrar, dentre o conjunto de objetivos específicos,


a independência do esporte de qualquer influência política, e, consequentemente,
dos membros da instituição máximo do Olimpismo que seria o COI.

164
Da gênese ao esporte contemporâneo

De acordo com Tavares (1999a), os Jogos Olímpicos eram para


seu reinventor a institucionalização de uma concepção de práticas de
atividades físicas que transformava o esporte em um empreendimento
educativo, moral e social, destinado a produzir reflexos no plano dos
indivíduos, das sociedades e das nações que refletiam a formação
humanista e eclética de Coubertin. E, é justamente o ecletismo uma
das chaves para compreender a lógica interna do corpus de valores
do Olimpismo, uma vez que a definição contida nos Princípios
Fundamentais da Carta Olímpica (1997) é pouco precisa – ou em
última análise, como afirma DaCosta (1999) uma filosofia em processo
durante o tempo de vida de Coubertin – o que tem levado estudiosos
do tema a discussões extensas e inconclusivas (Lenk, 1976; Segrave,
1988; Grupe, 1992; Parry, 1998).
A Carta Olímpica apresenta o conceito de Olimpismo no
Princípio Fundamental nº- 2 enquanto
uma filosofia de vida que exalta e combina em equilíbrio as
qualidades do corpo, espírito e mente, combinando esporte com
cultura e educação. O Olimpismo visa criar um estilo de vida
baseado no prazer encontrado no esforço, no valor educacional
do bom exemplo e no respeito aos princípios éticos fundamentais
universais (1997, p.8).
Dos idos de 1894 a 1999, o entendimento desse conceito passou
por algumas transformações e hoje é
entendido de maneira crescente como um grande ‘laboratório’
para o estudo do esporte uma vez que possibilita, em uma escala
internacional e sob abordagens multiculturais, o estudo das
questões culturais, filosóficas, educacionais, econômicas, sociais,
ecológicas e urbanas à (sic) ele relacionadas via Movimento
Olímpico (Tavares e DaCosta, 1999, p.08).
As modernas Olimpíadas dividem-se em jogos de inverno e de
verão, ocorrem de quatro em quatro anos, como na Antiguidade,
sendo que na atualidade cada edição ocorre em uma cidade de um país
diferente, ainda que possa vir a se repetir depois de um tempo.
O crescimento da importância do evento pode ser observado nos
números entre Grécia, em 1896, e Sydney, em 2000. De 9 modalidades,

165
Katia Rubio

no princípio, saltaram para 26. De 13 países participantes, passaram


para 197. De 250 atletas homens na Grécia, o total entre mulheres e
homens em Sydney ficou em torno de 10 mil. A evolução dos números
é um bom indicador de que na atualidade o esporte adquiriu a
importância e o prestígio de que desfrutava na Grécia Helênica.
Diferentemente dos gregos, porém, onde o período dos jogos
representava um momento de trégua nas guerras e conflitos de qualquer
ordem para que competidores e espectadores pudessem chegar a
Olímpia, ao longo desses cem anos de competições os Jogos Olímpicos
da Era Moderna já sofreram interrupção por causa das duas Grandes
Guerras e boicotes promovidos por Estados Unidos e União Soviética
na década de 1980, indicando que o Movimento Olímpico não é tão
apolítico como se proclama.
Os ideais mais arduamente defendidos pelo olimpismo ao
longo do tempo foram o amadorismo e o fair-play. Se tomados
descontextualizados do momento histórico em que foram produzidos,
seria de admirar tão nobre sentimento. Quando vinculados aos interesses
aristocráticos e burgueses esse quadro ganha outros contornos.
O amadorismo era o principal foco de atenção de Coubertin nos
idos da reedição dos Jogos. Isso porque, preocupados com a perda do
controle da prática esportiva, originária em seus domínios, aristocratas
e burgueses lançavam-se em defesa dessa atividade alegando que a
permissão para o seu exercício seria dada apenas àqueles que pudessem
tê-lo como atividade de tempo livre. Dessa forma, qualquer pessoa
que tivesse trabalhado recebendo remuneração até o momento da
competição perderia o direito de participar, enquanto competidor, dos
Jogos Olímpicos.
Essas restrições não se baseavam apenas na nobreza do esporte
e de seus praticantes simplesmente. Cardoso (1996) aponta para a
questão latente posta na prática popularizada do esporte:
Os inventores do amadorismo queriam, em primeiro lugar, afastar da
arena os trabalhadores. O esporte estava reservado a quem pudesse
se dedicar a ele em tempo integral e desinteressadamente, enquanto o
comum dos mortais suava para garantir o pão de cada dia. Este era o
motivo oculto. Abertamente se temia que o dinheiro transformasse a
competição esportiva em espetáculo de ‘show-business’ (p.07).

166
Da gênese ao esporte contemporâneo

Que os jogos mudaram, não se tem dúvida. O amadorismo


foi no passado tema tão tabu quanto o uso de substâncias dopantes,
considerado uma virtude humana e condição sine qua non para
qualquer atleta olímpico. Vale lembrar que o bicampeão olímpico
brasileiro Adhemar Ferreira da Silva, depois de conquistar a medalha
de ouro no salto triplo em Helsinque, recusou a oferta de doação de
uma casa feita por um jornal de São Paulo como prêmio por seus feitos,
porque ainda pretendia competir e temia que aquele gesto pudesse ser
interpretado como atividade remunerada, pondo em risco sua condição
de amador. Vale ressaltar que esse atleta só conseguiu sua casa própria
depois de encerrar a carreira de esportista.
Passado pouco mais de um século, na virada do milênio, no
prefácio do livro Estudos Olímpicos, o então presidente do Comitê
Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman afirmou em um texto que
se pretende defensor do Olimpismo
A ideia do Olimpismo se adaptou a um novo mundo, onde não
há lugar para o amadorismo, onde a competitividade é feroz e o
doping uma ameaça. Mais que nunca é preciso preservar o ideal
olímpico (Tavares e DaCosta, 1999).
Ou seja, a defesa do Olimpismo enquanto ideal do Movimento
Olímpico segue não aquilo que está expresso na Carta Olímpica –
ainda que confuso por causa da base epistemológica eclética do
Barão de Coubertin, que permite diferentes interpretações do texto
original, segundo vários de seus opositores e ideólogos posteriores,
como já citado anteriormente – mas as necessidades ou tendências
internacionais ditadas pelos interesses que despontam no momento.
Teria sido essa, de fato, a intenção do Barão?
Então, por que toda a discussão sobre o que é e para que serve o
Olimpismo? As quadras, pistas, piscinas e campos estariam se tornando
palco de outras disputas que não apenas aquelas que se propunham a
apontar o mais rápido, ágil e habilidoso?
O ideal do amadorismo é para Donnely (1996) a base do
Olimpismo. Seu desenvolvimento se deu dentro de um contexto
bastante específico que era a moral vitoriana e veio a sofrer verdadeira
mutação com o estabelecimento de uma relação causal entre dinheiro
e desempenho esportivo. Por isso, o Olimpismo é para esse autor, uma
atitude em extinção no mundo olímpico.
167
Katia Rubio

mais do que solidariedade e respeito mútuo, o principal referencial


para a realização do esporte de alta competição atualmente é
a capacidade de gerar remuneração financeira para todos os
envolvidos direta ou indiretamente. (p.248)
Como consequência desse processo e do esforço de muitos, o
amadorismo foi sendo esquecido como um dos elementos fundantes e
fundamentais do Olimpismo no final da década de 1970, emergindo
um movimento de disfarce de atletas em funcionários de empresas
para que escapassem à condição de profissionais do esporte. Esse
esforço foi substituído definitivamente e com sucesso pelos contratos
com patrocinadores e empresas interessadas em investir no esporte,
surgindo a partir daí outros tipos de problema.
Cardoso (1996) não vê muita diferença na mudança de
procedimentos.
O amadorismo fez tanto ou mais mal ao esporte do que o
mercantilismo deslavado que o substituiu a partir dos anos 80.
A implicância com o dinheiro no bolso dos outros se dirigia
especialmente contra os nomes mais destacados do esporte.
Se arma do bem ou do mal, a profissionalização acabou por
acarretar numa grande transformação na organização do esporte,
tanto do ponto de vista institucional como na atividade competitiva
em si, levando o esporte a se tornar uma carreira profissional cobiçada
e uma opção de vida para jovens habilidosos e talentosos. Esse é o
esporte do século XXI.
Outro elemento fundamental do movimento olímpico é
denominado fair-play. Utilizado pela primeira vez por Shakespeare,
em 1595, sem qualquer relação com a prática esportiva, a partir de
1880 foi incorporado ao esporte para designar um tipo de conduta
(Mangan, 1996).
O fair-play, ou ‘espírito esportivo’, ou ‘jogo limpo’, ou ‘ética
esportiva’, pode ser definido como um conjunto de princípios éticos
que orientam a prática esportiva, principalmente do atleta e dos demais
envolvidos com o espetáculo esportivo.
Influenciado pela obra de Hippolyte Taine Notes sur Anglaterre
e pela metodologia da Rugby School de Thomas Arnold, ou seja,
pelo sistema educacional e esportivo inglês, Pierre de Coubertin

168
Da gênese ao esporte contemporâneo

incorporou ao seu ideário olímpico a noção do comportamento


cavalheiresco no esporte.
O fair-play presume uma formação ética e moral daquele que
pratica e se relaciona com os demais atletas na competição, e que este
atleta não fará uso de outros meios que não a própria capacidade para
superar os oponentes. Nessas condições não há espaço para formas
ilícitas que objetivem a vitória, suborno ou uso de substâncias que
aumentem o desempenho.
De acordo com Tavares (1999.b), o fair-play, enquanto
conjunto de valores normativos do comportamento individual e
coletivo no ambiente da competição atlética, reflete a formulação
de um ambiente cultural específico, ou seja, por mais que tenha
havido uma universalização dos valores esportivos atuais, é preciso
contextualizar, do ponto de vista cultural, as transformações que
eles sofreram ao longo do século XX, desde que formulados por
Pierre de Coubertin.
Apesar de amplo e aparentemente irrestrito, o fair-play tem
recebido a atenção de estudiosos do olimpismo preocupados com
as transformações que vêm ocorrendo nas regras e conduta dos
praticantes das diversas modalidades esportivas. Isso porque o próprio
movimento olímpico criou padrões, normas e orientações que norteiam
e influenciam a prática e o entendimento do esporte, tanto por parte de
quem o pratica como de quem o assiste.
Lenk (1986) conceitua o fair-play de duas maneiras:
- fair-play formal – está relacionado diretamente ao cumprimento
de regras e regulamentos que o participante da competição deve
cumprir, em princípio, sendo considerado como uma ‘norma
obrigação’ (must norm).
- fair-play não formal – relaciona-se ao comportamento pessoal
e aos valores morais do atleta e daqueles envolvidos com o
mundo esportivo. Não está limitado por regras escritas e é
legitimado culturalmente. A ausência de uma regulamentação
oficial confere a ele um caráter subjetivo.
Apesar de caracterizado por uma abordagem normativa e
conservadora do comportamento atlético, o fair-play serviu durante

169
Katia Rubio

longo tempo como orientação para os protagonistas do espetáculo


esportivo, ainda que não fosse seguido durante todo o tempo.
Assim como o conceito de amadorismo foi abolido ou esquecido
do olimpismo, assistimos a uma mudança no que se refere também
ao fair-play. Tavares (1999.b, p.190) justifica essa transformação
porque o esporte vem sofrendo deslocamentos de sentido nos
últimos trinta anos, apontando para uma possível relativização dos
valores tradicionais ligados à prática esportiva, entre eles o fair-
play. Tavares tenta justificar essa guinada do Olimpismo, situando,
principalmente o fair-play dentro de uma nova ordem cultural, sem
discutir, entretanto, a motivação intrínseca do Olimpismo atual que
está pautado na potência comercial que o COI se tornou. O autor
afirma talvez o próprio conjunto de valores do fair-play necessite
ser repensado em função de um cenário cultural bastante diverso
do ambiente aristocrático do século passado em que surgiu o
Olimpismo, incorporando novos valores sociais contemporâneos
ao mesmo tempo que mantendo seus elementos essenciais, numa
articulação entre tradição e mudança.
Parece acaso, mas o lapso temporal apontado pelo autor
coincide com o fim do amadorismo e o início do profissionalismo no
esporte, conferindo uma nova moral, e, portanto, uma nova ética, ao
Olimpismo. E mais uma vez os ideais olímpicos Coubertinianos são
postos a prova.
De 1896, em Atenas a 2000, em Sydney, os Jogos Olímpicos
cresceram em número de países e atletas participantes e em
importância. Tornaram-se um evento significativo tanto do ponto de
vista esportivo, como econômico e político. Já não possui o purismo
sonhado por Coubertin, que encarava o esporte como uma religião.
Pereira (1988) aponta que, na atualidade, os Jogos Olímpicos são um
dos eventos de maior importância para a cultura física competitiva,
principalmente em relação aos índices de desempenho atlético, número
de provas, de modalidades, de esportistas e de países participantes.
Caracterizam-se ainda por ser um evento que proporciona grande
atração turística e comercial.
Contribuiu grandemente para essa transformação o advento
das transmissões televisivas, principalmente ao vivo a partir de

170
Da gênese ao esporte contemporâneo

1960 em Roma, que permitiram o acompanhamento em tempo real


das façanhas realizadas nas pistas, quadras, piscinas e ginásios, por
atletas que começaram a ver seus papéis transformados ao longo do
século XX. Nesse cenário de transformação, as mulheres ganharam
posição de destaque. Proibidas de participar dos Jogos Antigos viram
essa restrição perdurar nos Jogos da Era Moderna, apesar do evento
ocorrer em um momento em que as mulheres se manifestavam pelo
reconhecimento de seus direitos.
Mesmo com a valorização do esporte enquanto elemento
pedagógico, a competição, o culto ao corpo e a prática da atividade
física eram tidas como atividades do universo masculino, de exercício
de poder, coragem, virilidade e de força6, e expressavam uma visão
machista e preconceituosa daquele que reorganizava os Jogos.
Nas palavras de Coubertin
O verdadeiro herói olímpico é, a meu ver, o homem adulto.
Eu pessoalmente não aprovo a participação das mulheres em
competições públicas... Isto significa não que elas devam se abster
de praticar um grande número de esportes, mas que não devem dar
espetáculos. Nos Jogos Olímpicos seu papel deveria ser, sobretudo,
como nos antigos torneios, o de coroar os vencedores7.
A tendência acima manifesta no discurso e na prática do
idealizador do Olimpismo moderno alijou a mulher de participar da
primeira edição dos Jogos Olímpicos na Grécia em 1896, mas não
foi forte o suficiente para suportar o movimento que levou a mulher
a conquistar direitos civis e trabalhistas. O esforço de Coubertin não
sobreviveu à segunda edição dos Jogos Olímpicos, realizados em Paris,
1900. Palco da luta pelo direito de voto feminino e de igualdade de

Diante da importância desse tema e das transformações por que tem passado o
6

papel da mulher no esporte Rubio & Simões (1999) construíram uma reflexão
sobre a participação da mulher no esporte.
Essa citação de Pierre de Coubertin em Princípios filosóficos do olimpismo
7

moderno foi encontrada em Cardoso (1996), juntamente com outras passagens que
evidenciam o preconceito do Barão também contra negros, índios e japoneses. Se
deixarem, logo os brancos estarão correndo atrás de negros, amarelos e vermelhos
nas pistas esportivas dos mundo (p. 10). Portanto, é de se supor que o esporte
enquanto elemento de congraçamento entre os povos é posterior a Coubertin e,
provavelmente, reflexo das políticas de aproximação entre as nações, consequência
das Grandes Guerras dos século XX.

171
Katia Rubio

direitos, as mulheres tiveram a oportunidade de participar e brilhar


no universo esportivo, sendo formalmente aceitas como atletas. Em
contrapartida tiveram que aceitar algumas restrições impostas: as
únicas competições permitidas foram o golfe e o tênis, modalidades
consideradas belas esteticamente e que não ofereciam contato físico
entre as participantes.
De 1900 a 2000 foram realizadas vinte e quatro edições de
Jogos e as mulheres seguiram participando em número crescente de
modalidades, marcas, tempos e recordes, pondo por terra o rótulo
de sexo frágil. Mas nem por isso o tratamento desigual em relação
aos atletas do sexo masculino deixou de existir. Ou seja, da mesma
maneira que no mundo profissional a mulher avançou e conquistou seu
espaço nas mais variadas funções, mas ainda não venceu as barreiras
do preconceito, no mundo esportivo isso também se deu. A imposição
da diferença está dada na determinação de prêmios e privilégios que
permanecem maiores para os atletas masculinos. E, mais uma vez, o
esporte imita a vida.
De qualquer forma, as mulheres atletas, na atualidade, além
de conferirem plasticidade às competições, demonstram cada vez
mais dedicação e determinação na administração de sua carreira
profissional no esporte, tornando-se alvo de projeção, influenciando as
novas gerações tanto quanto os heróis masculinos.
Ainda que discriminadas nos primórdios, passadas algumas
décadas as mulheres também puderam usufruir do espírito olímpico
pregado pelo Olimpismo. Diante desse cenário é possível dizer que,
na atualidade, o esporte deixou de ser apenas uma competição para
se tornar um espetáculo. Já não é possível imaginar o espetáculo
esportivo sem alguma forma de competição, seja entre atletas, seja
entre as empresas que patrocinam a competição.
Sendo assim, Lovisolo (2000, p.16) destaca que é possível
entender o espetáculo esportivo quase como sinônimo de esporte
competitivo. Ressalta ainda que, para que o espetáculo esportivo
competitivo aconteça, é imprescindível o herói, a estrela esportiva.
Sem essas figuras ele perderia a força, e sabemos que o assistimos
tanto pelo prazer do jogo coletivo quanto por aquele gerado pelos
desempenhos individuais.

172
Da gênese ao esporte contemporâneo

A transformação do atleta em herói e do ídolo em mito, vem


possivelmente satisfazer ao conjunto de novos valores esportivos, aos
quais denominaremos pós-Olimpismo, onde o amadorismo é abolido do
conjunto de ideais e o fair-play é adequado à necessidade de convivência
com patrocinadores, espaço comercial e novas regulamentações.
A forma como essas condições interferem e determinam o
exercício da profissão de atleta é o foco do capítulo que segue.

173
Katia Rubio

174
Minha vida é a história de um
inconsciente que conseguiu se
realizar. Tudo aquilo que habita no
inconsciente quer se tornar evento:
também a personalidade quer evolver
desde as condições inconscientes,
sentindo-se viver como totalidade...
Aquilo que se é segundo a intuição
anterior, e aquilo que o homem parece
ser sub specie aeternitatis só pode
ser expresso por meio de um mito...
Comecei hoje a contar o mito da
minha vida.
(Carl Gustav Jung,
Sonhos, memórias e reflexões)

Quando optamos por tomar


o atleta e o mundo esportivo como
ponto de partida dessa pesquisa e
percorrer os caminhos do imaginário
é porque pretendemos retornar
àquele ponto com um outro olhar.
Eterno retorno? Caberia bem essa
metáfora aqui já que uma de nossas
hipóteses é a condição heroica desse
sujeito. Já o trato por sujeito, não
para desvesti-lo de sua condição de
indivíduo, mas porque é para ele que
se volta minha atenção.
Falamos de uma figura
particular, seus processos subjetivos

C artografias e habilidades individuais para fazer


uma escolha, trabalhar por ela e,
do imaginário sendo favorecido por uma série de
circunstâncias, chegar ao topo para se
esportivo postar no Olimpo ao lado dos deuses.
175
Katia Rubio

Esse processo, apesar de individual, é, também, coletivo, na medida


em que a dinâmica de formação da função que ele desenvolveu, ou
desenvolverá, ao longo de sua carreira, é uma criação da cultura ao
qual ele pertence.
O objetivo desse trabalho é compreender a constituição do
imaginário de atletas e, relacionando ao regime de imagens de Durand
(1997) e ao trajeto heroico de Campbell (s.d.), levantar os mitemas
que constelam esse universo na atualidade, em diferentes níveis de
colocação na carreira.
Sendo assim, os atletas-sujeitos dessa pesquisa serão vistos
dentro de seu grupo de semelhantes, não em uma equipe esportiva
específica, mas enquanto indivíduos que optaram por uma prática,
em diferentes locais e momentos cronológicos, que os levam a ser
identificados como tal.
Para tanto nos aproximaremos de atletas que poderão ser
divididos em cinco categorias, sendo que o critério para essa divisão
não está relacionado à faixa etária ou modalidade esportiva, mas aos
diferentes níveis de envolvimento com o esporte.
Fase de iniciação
Será abordado um adolescente recém-ingresso em um grupo
esportivo, independentemente da idade ou da modalidade esportiva,
que tem o esporte enquanto um fim, mas também, um meio, de vida.
Fase de ingresso no esporte
Jovem que ingressou em um clube profissional, porém que ainda
disputa as chamadas ‘categorias de base’ e que começa a viver a rotina
de treinos e jogos numa simulação do que será a carreira profissional.
Fase profissional
Atleta de alto rendimento, que vive do e para o esporte e por isso
tem a experiência da prática profissional. Disputa grandes competições
nacionais, como Campeonatos Brasileiros; e internacionais, como
Campeonatos Mundiais ou Jogos Olímpicos.
Fase de afastamento
Atleta que, por vários anos, teve o esporte como uma atividade
profissional, participou de times e seleções e se afastou da vida esportiva

176
Cartografias do imaginário esportivo

competitiva. Vale lembrar que essa etapa é vivenciada na faixa dos 30


anos, ou seja, que o ex-atleta tem ainda um longo período de vida ativa
para experimentar.
Fase de recolhimento
Ex-atleta1 que, em um determinado momento da vida, foi
considerado expoente ou esperança de ser um grande atleta, tendo
desenvolvido uma rotina de treinamento e competições, mas que por
algum motivo específico não teve continuidade na carreira esportiva.
Os dados referentes à vida desses atletas foram levantados por
meio de entrevistas em forma de histórias de vida e serão analisados
sob a perspectiva do trajeto heroico de Campbell (s.d.), e da mitocrítica,
conforme Duran (1997). A identidade dos atletas, bem como nome de
clubes e outras peculiaridades que possam identificá-los serão omitidos
com o intuito de preservar sua privacidade.
Esse procedimento, de acordo com Santos (1999), possibilita
fornecer dados objetivos e subjetivos referentes a comportamentos,
crenças, ideias, opiniões, sentimentos, maneiras de sentir e de pensar e
suas razões conscientes e inconscientes.
Foi adotado como regra para todos os entrevistados a seguinte
indagação: “Por favor, eu gostaria que você me contasse sua história
de vida”. Essa pergunta inicial serviu como estímulo para a emergência
de lembranças tanto da vida familiar e pessoal como da esportiva e,
a partir do desenrolar da narrativa do entrevistado, outras perguntas
iam sendo elaboradas com o intuito de rastrear o máximo possível as
recordações de uma vida de treinos e competições.
A análise em forma de narrativa buscou seguir a trajetória do
atleta e capturar elementos da aventura heroica, proposta por Campbell
(s.d.), e apresentar qual entre as possíveis variações propostas pelo
autor foi a trilhada pelo sujeito entrevistado.

Passadas duas décadas já não mais utilizamos o termo ex-atleta, e passamos a


1

denominar pós-atleta àquelas e aqueles que realizaram a transição de carreira e


desempenham outros papéis sociais. Observa-se ao longo de outras pesquisas que a
identidade do atleta permanece como uma tatuagem no corpo dessa pessoa que um
dia chegou a ser olímpico (Rubio, K. (Org.), Destreinamento e transição de carreira
no esporte. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2012. Ferreira Júnior, N. S. e Rubio
K. Término, transição e vida pós-atleta entre corredoras olímpicas brasileiras.
Olimpianos - Journal of Olympic Studies. 2017, 1(2), 187-209).

177
Katia Rubio

Acompanham a análise frases da narração que foram consideradas


ilustrativas para reforçar aquele contexto apresentado. Como esses
elementos foram surgindo na fala do atleta de maneira esparsa, na
ilustração proposta elas foram agrupadas por temas, e sempre que não
seguiram a narração original foram utilizadas reticências (...) como
indicação de que a ordem da análise não era a do narrador. As reticências
usadas sem o parênteses indicam pausa ou vacilação do entrevistado.
Informações complementares e comentários da pesquisadora foram
identificados entre parênteses, porém sem o itálico.
Como forma de registro dos dados, foi utilizada a gravação
em áudio pela sua utilidade em gravar todas as expressões orais
imediatamente, permitindo à entrevistadora a liberdade para prestar
atenção aos gestos, expressões, entonações, sinais não verbais,
hesitações, alterações do ritmo e todo o repertório não verbal do
entrevistado, cuja captação é de grande importância para a compreensão
e validação do que foi efetivamente dito.

A. As histórias de vida
Os relatos orais têm se constituído desde o final do século
passado como uma técnica qualitativa por excelência. Eles permitem
que se considere o som e o tom da fala do entrevistado, a sutileza dos
detalhes da narrativa e as várias facetas do fato social vivido, sentido
e percebido, ainda que depois de transcritos esses relatos estivessem
submetidos às mazelas de toda expressão que se torna escrita2.
História oral é para Queiroz (1988) um termo amplo que
abrange uma vasta quantidade de informações a respeito de fatos não
registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se
quer completar. O registro dessa história é feito por meio de entrevistas
e colhe a experiência de um único indivíduo ou de diversas pessoas
de uma mesma coletividade. Ela pode captar a experiência efetiva
dos narradores além de colher tradições e mitos, narrativas de ficção,
crenças existentes no grupo. Por esse motivo, Queiroz considera que

Mayr (1994) afirma haver uma diferença entre linguagem e escrita, entre o “ouvir”
2

as palavras e “ler” as letras e que essa relação tem um papel decisivo na compreensão
hermenêutica da linguagem. O autor afirma ainda que essa diferença se encontra
na orientação mais “visual” dos gregos e mais “auditiva” dos hebreus (p.330).

178
Cartografias do imaginário esportivo

tudo quanto se narra oralmente é história, seja ela história de alguém,


de um grupo, real ou mítica.
A história de vida é uma forma particular de história oral, que
interessa ao pesquisador por captar valores que transcendem o caráter
individual do que é transmitido e que se insere na cultura do grupo
social ao qual o sujeito que narra pertence.
Por isso a história de vida constitui-se, segundo Queiroz
(1988), como
o relato de um narrador sobre sua experiência através do tempo,
tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir
a experiência que adquiriu. Narrativa linear e individual dos
acontecimentos que nele considera significativos... (p.20)
A autora acredita que a reflexão na história de vida começa
na relação pesquisador-narrador, visto que é nessa interação que se
dá a dinâmica do relato e permite ao narrador ‘abrir’ sua memória
para refletir sobre si próprio, discutir para si e para o outro (tendo o
pesquisador como mediador) e sua participação dentro da história.
Ao se reconhecer como sujeito produtor e reprodutor de significados,
o indivíduo está participando da história, está fazendo o relato da
sua própria participação e reflexionando sobre a sua própria vida,
sobre a sua participação na história pessoal e social. (p.69)
O relato em si traz o que o narrador considera importante em
sua trajetória, dando uma ideia do que foi sua vida e do que ele mesmo
é nesse momento. Essa atitude reflexiva permite a re-experimentação
de situações passadas, não apenas do ponto de vista do desenrolar dos
fatos, mas pela ressignificação de episódios marcantes para o narrador,
que se permite inverter (ou subverter) a narrativa obedecendo a uma
cronologia própria da afetividade implicada no evento ocorrido, dando
ao seu texto um contexto3.

Diante dessa questão, Strôngoli (1999) apresenta o texto como um encadeamento


3

de estruturas lexicais, morfológicas e sintáticas que forma uma unidade


significativa de comunicação. E prossegue situando o discurso como esse mesmo
texto, mas focalizado como o resultado do processo de enunciação, ou seja, o
processo interativo e único no qual o indivíduo converte a língua, elemento social
e cultural, em um produto particular e pessoal: o enunciado (p.160).

179
Katia Rubio

Avanços e recuos marcam a narração das histórias de vida, e a


ausência de cronologia ou de uma sequência lógica na apresentação
dos fatos podem constituir indícios que permitirão a formulação de
inferências sobre a importância pessoal dos episódios narrados.
Com relação a esse tema, Paula Carvalho (1998) diferencia
estória de vida da história de vida porque na sua concepção a segunda
apresentaria uma proposta de compreensão linear, ao passo que a
primeira traz em si a recursividade sobre a qual falaremos quando
estivermos lidando com a questão do tempo.
Para o autor, a estória de vida é uma das heurísticas privilegiadas
da culturanálise de grupo por
evidenciar ou descobrir a profunda organizacionalidade imaginária
do real processando-se através da cultura e das figurações
imaginárias. Sendo assim, as estórias de vida seriam como matéria
imaginária e matéria imaginal, isto é, como portadoras, enquanto
relatos que são, da dinâmica da função simbólica... portanto,
de modo latente e profundo, portadoras das figurações mítico-
imaginais e das figuras míticas e imaginais num percurso que é, de
modo latente e profundo, um ‘trajeto iniciático’ ou um ‘itinerário
espiritual’ cujo teor cabe ao intérprete revelar evidenciando os
‘núcleos mitemáticos’ como ‘imperativos mitogênicos’ (p.73).
A história de vida distingue-se da história oral por se constituir
como relato de um único narrador sobre sua existência através do tempo,
tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a
experiência que adquiriu. Emergem dessa narrativa os acontecimentos
considerados significativos na trajetória de vida pessoal ou do grupo
ao qual o indivíduo pertence4, cabendo ao pesquisador perceber o que
ultrapassa o caráter individual do que é relatado e o que está inscrito
na coletividade à qual o narrador se insere.
Queiroz (1988) entende que apesar do indivíduo obedecer a
determinações próprias, subjetivas e inconscientes, o que existe de

Ciente das críticas feitas ao método biográfico por ser apresentado como ‘individual’,
4

Ferrarotti (1983) aponta que essa afirmação é um erro grosseiro, na medida que
considera o indivíduo enquanto um ‘átomo social’. Para o autor o indivíduo é uma
síntese complexa de elementos sociais que pode ter seus elementos constitutivos
captados a partir de uma perspectiva de agente social de uma totalidade social.

180
Cartografias do imaginário esportivo

único numa pessoa é também formado e moldado pelas instâncias


culturais que o cercam. A história de vida é, portanto, técnica que
capta o que sucede na encruzilhada da vida individual e social (p.36).
Nessa lógica, além do conteúdo envolvido no discurso das
histórias de vidas, temos a forma como elas são expressas perpassadas
pela gramática, pela semântica e pela melodia da narração, colaborando
para a sua complexidade.
É a força da linguagem e do discurso revelando a cultura
manifesta e latente5 na qual o sujeito se insere, num processo de
polarização, cuja mediação se faz pelo símbolo.
Nesse sentido, Souza (1997) afirma que onde quer que as pessoas
vivam suas relações acabam construindo, a partir daí, sua consciência
e identidade social e, por isso, representam o que são por meio das
histórias que contam. Isso pode significar que uma narrativa repleta
de detalhes representa a valorização de experiências passadas mesmo
que em contextos menos favorecidos.
Tida pela psicanálise como elemento fundamental no resgate
de elementos do inconsciente, a linguagem pode ganhar o status de
‘grande articulação simbólica no homem’, segundo Safra (1999),
revelando-se em dimensões poéticas, mesmo ali onde aparentemente
ela é simplesmente discurso.
Observando essa questão a partir de uma perspectiva clínica, o
autor afirma que
se vamos abordar a linguagem do ponto de vista do self temos
que ter uma escuta que não só acompanha o aspecto discursivo,
mas também o que apresenta esteticamente na fala do paciente.

Porto (1993) referencia-se em Paula Carvalho para fazer essa distinção. Considera
5

cultura patente como o correspondente do “nível racional de funcionamento do


grupo ou polo técnico das interações grupais, regido, portanto, pelos perceptos e
pelas funções conscienciais pragmático-reflexivas. Trata-se, portanto, do sistema
de metas e meios racionalmente dispostos que atuam como fator de agregação do
grupo, traduzindo assim sua organização como uma ‘estrutura racional-produtiva’,
na expressão de Maffesoli, ou seja sua praxeologia...”. Cultura latente é considerada
“o nível afetivo, ou afetual, de estruturação do grupo ou o polo fantasmático-
imaginal das interações grupais, regido, portanto, pelo dispositivo inconsciente
em suas caracterizações analíticas e neuropsicológicas, pelas funções conscienciais
emanando do onirismo coletivo, enfim pelo processo de ‘mythopoiésis’ e pelos seus
transdutores mitemáticos” (p.34-35).

181
Katia Rubio

Pelo aspecto discursivo pode-se compreender profundamente a


maneira como o paciente lida com suas relações objetais, sua vida
pulsional, suas defesas e a maneira como as instâncias psíquicas se
organizam. A partir da poesia de sua fala, apreende-se o seu self e
o modo como a sua existência acontece. (p.109)
A apresentação de histórias de vida não tem finalidade terapêutica,
ainda que durante a narrativa o autor se veja numa condição de reflexão
que permita reelaborar acontecimentos que determinaram a condução
de sua vida. A forma como o narrador se coloca diante dos fatos
lembrados, ou seja, a linguagem utilizada para descrever esses fatos,
permite ao pesquisador fazer as inferências e interpretações cabíveis
sobre a importância do acontecimento relatado e dos elementos do
imaginário aí contidos.
A partir de uma perspectiva hermenêutica, Ricoeur (1986)
considera o discurso como uma obra por ser produto da dialética
do acontecimento e da significação, que ao ser fixado pela escrita
transforma-se em texto, uma manifestação do símbolo. Sendo assim,
se o discurso e sua narrativa se apresentam como um dos pilares para
a compreensão das histórias de vida, o desenrolar temporal dessa
narração se apresenta como um segundo elemento imprescindível para
uma cartografia do imaginário individual e social do narrador.
É nesse sentido que Pannikar (1994) afirma que a consciência
simbólica é tanto diacrônica quanto sincrônica. E é uma consciência
de tempo que não é do “hoje, amanhã ou depois”. Quando um ser se
projeta no futuro e cria, fala; quando o ser volta ao passado e reflete,
pensa. Isso quer dizer que o falar e pensar não são, conjuntamente,
essa manifestação do ser sincrônica e diacrônica de cada vez.
O tempo na história, a estória do tempo
Conta o poeta Hesíodo que no começo era o Caos. Era espaço
aberto, a pura extensão ilimitada, o abismo sem fundo. De repente,
surgiu a primeira realidade sólida: Gaia, a Terra. Ela deu ao Caos um
sentido: limitou-o. E depois vieram Érebo (na forma da noite profunda),
Urano (o céu estrelado), o Éter (a luz que iluminaria os deuses), o Dia
(a claridade dos mortais) e unindo-se a Urano gerou muitos filhos:
Titãs, Ciclopes, Hecatônquiros estão entre eles, mas é Cronos quem
transformará o desenrolar da cosmogênese. Inconformado com a falta

182
Cartografias do imaginário esportivo

de limite de Urano (seu pai) em fecundar Gaia (sua mãe), Cronos põe
fim a isso, cortando os testículos do pai. Sua arma é uma foice, símbolo
da colheita, mas também da morte. Quem morre, porém, não é Urano
(ele é imortal): é seu reinado, que dá lugar ao de Cronos, e a uma
dimensão temporal. Cronos significa o Tempo: a fome devoradora da
vida, o desejo insaciável de evolução. Juntamente com Réia, sua esposa
e irmã, estabelece um reinado que se assemelha à era pré-consciente
da humanidade. Nesse período, o Tempo ainda está cego. A vida
não compreende a si mesma, e parece mais um simples fervilhar de
elementos confusos que propriamente uma evolução. Seres nascem e
morrem ininterruptamente, sem ordem alguma. Cronos devora seus
filhos. É Zeus quem ordenará o universo definitivamente, sendo o
princípio divino da espiritualidade, a nova ordem que surgirá com a
geração dos Olímpicos, que ao destronar o próprio pai, estabelecerá na
Terra a base das relações entre todos os seres.
De acordo com Brandão (1991), se na realidade Krónos, Crono,
nenhuma relação tem com Khrónos, o Tempo, semanticamente a
identificação, de certa forma, é válida. Crono devora, ao mesmo tempo
que gera: mutilando a Urano, estanca as fontes da vida, mas torna-se
ele próprio uma fonte, fecundando Réia.
A recursividade que reveste o mito indica sua condição cíclica.
Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um elemento linear,
onde ao nascer o sujeito traça uma linha e por ela segue até chegar à
morte, numa noção de continum, tem-se também a concepção daquele
tempo que parece nunca se esgotar, transformando-se na medida que
se reveste de significado.
A concepção linear (ou aberta) do tempo, segundo Mazzoleni
(1992)6 caracteriza a moderna cultura ocidental, e foi a chave

Segundo Mazzoleni (1992), essas duas concepções de tempo são consequência dos
6

estudos antropológicos das primeiras décadas desse século (E. Webster, H. Hubert,
M. Mauss, G, Dumézil) e prosseguem na atualidade divididos em dois expoentes:
os antimodernistas (tempo cíclico, mítico) como Pettazzoni, De Martino, Brelich e
Lanternari; e os fideístas (tempo linear, histórico) como Triulzi, Miller, Papagno.
Ainda que, teoricamente, estejam divididos em dois grupos pode-se também
encontrá-los pertencentes a correntes ‘histórico-comparadas’ (que se contrapõe
ao ‘irracionalismo etnológico’ de Eliade); cognitivistas (próximos do pensamento
analógico de Lévi-Strauss); dialéticos (interessam-se pela relação tempo mítico/
tempo histórico).

183
Katia Rubio

teológica para identificar a realidade religiosa hebraico-cristã como


um unicum cultural; já a concepção cíclica (ou periódica), própria do
mundo antigo, da sociedade alto-medieval, das civilizações orientais
e das classes rurais, está relacionada com os chamados primitivos, e
orientada pelos mitos de fundação e pelos ritmos cósmicos, contrapõe-
se a um tempo histórico.
Para o autor a diferença básica na concepção dessas duas
modalidades de tempo está na ‘consciência histórica’, ou seja, para
as sociedades que operam numa contínua desistoricização do real
por meio do mito e do rito, opera o tempo da previsibilidade e da
segurança, oferecido pelo ciclo astronômico e sazonal; já onde há
o desenvolvimento dos meios de produção, a sedentarização, o
crescimento dos centros urbanos e da articulação social, constituindo
um Estado de direito há a emersão para a consciência do sentido do
tempo em direção ao futuro que é próprio de uma cultura histórica.
Essa perspectiva histórico-antropológica de tempo busca situar
o ser humano enquanto sujeito histórico, o que não implica numa
depreciação das culturas orais ou uma sobrevalorização daqueles que
ofereceram os paradigmas históricos aos ‘povos civilizados’. Acredita-
se que o tempo sagrado se associa ao tempo profano constituindo a
visão global que nossa cultura possui hoje sobre a dimensão do tempo.
De uma perspectiva diferente, Cassirer (1977) considera o tempo
não como forma específica da vida humana, mas como condição
geral da vida orgânica, existente na medida em que se desenvolve no
tempo. Não é uma coisa, mas um processo – uma corrente contínua,
incessante, de acontecimentos, onde jamais se repete com a mesma
forma idêntica (p.86). Sendo assim, o sujeito nunca está localizado num
instante isolado. Há em sua vida, os três modos de tempo – passado,
presente e futuro – formando um todo que não pode ser desagregado
em elementos individuais.
Diante dessa ordem, o ser humano desenvolveu a memória e a
hereditariedade. Na memória estão implicadas mais que a presença e
a soma total de resíduos de vivências ocorridas, supondo um processo
de reconhecimento e identificação, não bastando que fatos ocorridos
se repitam. É preciso que sejam ordenados, localizados e relacionados
com diferentes pontos no tempo, implicando, necessariamente, o
conceito de uma ordem serial, correspondendo ao plano espacial.

184
Cartografias do imaginário esportivo

Cassirer (1977) afirma que no homem não se pode descrever a


lembrança como o simples retorno de um acontecimento, como uma
imagem enevoada ou a reprodução de impressões anteriores.
Não se trata unicamente de uma repetição, senão de um
renascimento do passado, supõe um processo criativo e
construtivo. Não basta recolhermos dados isolados da nossa
experiência passada; precisamos realmente recordá-los, organizá-
los, sistematizá-los e reuni-los num foco de pensamento. Esta
espécie de recordação nos dá a forma humana característica da
memória e a distingue de todos os outros fenômenos da vida
animal ou orgânica (p.89).
Portanto, a memória simbólica seria o processo pelo qual o
indivíduo se situa num tempo não linear, indo além da repetição de
uma experiência vivida, ele a reconstrói, fazendo da imaginação o
elemento necessário para a verdadeira recordação.
Diante dessas considerações, seria possível dizer que a criação
temporal é subjetiva e se desenvolve ao longo da vida do sujeito, levando
consigo os registros armazenados na trajetória de sua história de vida.
Ribeiro (1988) distingue temporalidades no tempo social, que é
construído nas relações sociais, na forma de um tempo objetivo, quando
se torna a expressão do tempo no espaço, via trabalho humano, e um
tempo subjetivo, expressão do vir a ser que o espaço tomará. Indica
a necessidade de se recuperar o tempo de produzi-lo, considerando os
tempos materializados e os vividos.
Para o autor
Pensar o tempo é dar vazão à sensibilidade acumulada na vivência
específica, para agir de modo a trabalhar as suas necessidades.
Que essas, hoje, são sociais, não há dúvida. O problema é que
as necessidades socializadas não trazem respostas únicas, mas
sim pessoais, na expressão dos indivíduos... Um problema que se
transforma em grande virtude, pois dá sentido ao pessoal, tirando
do único a expressão segura e totalitária de alguns indivíduos no
espaço (p.49).
Safra (1999) aponta que a experiência temporal experimentada
em nossa cultura é vivida como sequencial, fruto de deslocamentos

185
Katia Rubio

no espaço e é convencionada pelo uso do calendário ou do relógio. E é


esse tempo que permite a apreensão da realidade compartilhada, visto
que organiza as experiências do ciclo de vida da pessoa, sua história,
seu contato com seu meio social traçando sua trajetória. Porém, ao
longo do processo maturacional, o indivíduo experimentará várias
formas de tempo. São eles:
-T  empo compartilhado: é a possibilidade do uso da organização
do tempo que se dá pelo contraste entre a presença e a ausência
do outro significativo. O tempo já não é só uma expressão do si
mesmo, mas é articulado com a noção de um outro.
- Tempo convencionado: é o tempo organizado com as medidas
utilizadas pela cultura de um determinado grupo social. É o
tempo do encontro.
- Tempo transicional: é o tempo do faz de conta, do encantamento.
É onde se pode dispor dos diferentes sentidos da temporalidade,
sem que o senso de continuidade seja perdido.
- Tempo das potencialidades: é o território das possibilidades,
recursos e anseios do self, a experiência do que está para
acontecer. Ainda que já haja construção, é a disposição para
novas realizações.
Havendo um desenvolvimento satisfatório do self, segundo
Safra, o indivíduo pode viver essas diversas modalidades de tempo,
permitindo e facilitando suas relações, tornando ainda mais ricas as
diferentes experiências vividas.
Diante das várias considerações feitas sobre o tempo e seu
significado subjetivo e social, é possível, então, reconhecer a dimensão
que o relato de história de vida adquire tanto para o narrador como
para o pesquisador. Passível de ser analisada numa perspectiva linear
ou cíclica, dela podem ser extraídos elementos históricos coletivos,
mas também individuais capazes de compor uma cartografia do sujeito
e do grupo ao qual ele pertence e das transformações significativas
ocorridas ao longo dessa trajetória.

B. MITOCRÍTICA
A mitocrítica é apresentada por Durand (1993) como um método,
juntamente com a mitanálise, de análise científica situado na mais

186
Cartografias do imaginário esportivo

recente corrente epistemológica, centrada na produção do universo das


imagens simbólicas e do mito, como forma dinâmico-cultural dessas
configurações organizatórias da sociedade.
Considerando que os personagens mitológicos são passíveis
de uma análise sócio-histórica e utilizando o modelo psicanalítico,
Durand (1985) cria a mitanálise, um método de análise científica
dos mitos que visa a extração tanto do sentido psicológico como
sociológico, que tenta apreender os grandes mitos que orientam os
momentos históricos, os tipos de grupos e relações sociais.
Trata-se realmente de uma ‘mitanálise’ porque, frequentemente,
as instâncias míticas existem de um modo latente e difuso na
sociedade e que, mesmo quando são ‘patentes’, a escolha de tal
ou qual mito explicitado escapa à consciência, ainda que seja
coletiva (p.246).
A mitocrítica foi desenvolvida ao longo dos anos 1970, seguindo
o modelo de psicocrítica utilizado por Charles Mauron7. Consiste em
um método de crítica literária (ou artística), de análise do discurso
que centra o processo de compreensão do caráter ‘mítico’ inerente à
significação de todo e qualquer relato, evidenciando em um autor, na
obra de uma época e de um meio sociocultural os mitos diretivos,
regentes e suas transformações significativas.
A ‘mitocrítica’ pretende constituir um método de crítica que
seja uma síntese construtiva entre as diversas críticas literárias
e artísticas, antigas e novas, que até agora se enfrentavam de
maneira estéril. Pode-se resumir as distintas intenções ‘críticas’ em
uma espécie de ‘triedro’ do saber que estaria formado em primeiro
lugar pelas ‘antigas’ críticas, que desde o positivismo de Taine ao
marxismo de Lukács baseiam a explicação ‘na raça, no meio e no
momento’; em segundo lugar pela crítica psicológica e psicanalítica
(Ch. Baudoin, A. Allendy, Ch. Mauron, etc.) e até pela psicanálise
existencial (S. Doubrowsky), que reduz a explicação da biografia
mais ou menos aparente do autor; e por último – na recente ‘nova

Gilbert Durand baseou-se no modelo da psicocrítica de Mauron para criar a


7

mitocrítica, modelo este que busca, por meio da apresentação redundante de temas,
o ‘mito pessoal’ que rege o destino individual dos seres humanos.

187
Katia Rubio

crítica’ – a explicação estaria no mesmo texto, no jogo mais ou


menos formal do escrito e de suas estruturas (R. Jakobson, A. J.
Greimas) (Durand, 1993, p.341-42).
Prossegue Durand afirmando que a mitocrítica, ainda que
tenha em conta os progressos de cada face do ‘triedro’ da explicação
crítica, procura centrar-se de maneira ‘centrípeta’ sobre essas
entidades simbólicas coordenadas em um relato simbólico, o mito, que
constitui a leitura e seus níveis de profundidade. Estruturas, história
ou entorno socio-histórico e aparato psíquico são indissociáveis e
fundamentam o conjunto compreensivo ou significativo da obra de
arte e, particularmente, do relato literário.
A importância do acesso ao imaginário de cada indivíduo
por meio da análise de sua obra, se justifica pela retroalimentação
indivíduo-coletivo, ou como aponta Sanchez Teixeira (1999.b, p.102) o
imaginário individual se inscreve e se apoia no imaginário coletivo que,
por sua vez, é renovado pelas obras individuais. Para a autora, tanto
a mitocrítica quanto a mitanálise são heurísticas que podem dar conta
das dimensões pessoal e sociocultural – conforme o conceito de trajeto
antropológico de Durand. Sendo assim, ao partir do mito pessoal,
enraizado no bio-psíquico, a mitocrítica precisará compulsoriamente
chegar ao mito coletivo que se assenta no meio cósmico e social onde
ele se sustenta.
Esse tipo de análise de textos pode, segundo Porto e Fonseca
(1998), também ser aplicado à narrativa expressa em um discurso oral,
uma vez que a mitocrítica tende a extrapolar o texto ou o documento
estudado, destacando o mito coletivo que rege o momento presente e
apresentando as preocupações sócio-histórico-culturais.
A mitocrítica feita a partir de um ou vários relatos8 tem por
finalidade perceber a dimensão mítica subjacente a toda narração,
apontando elementos latentes em um texto oral ou escrito, apresentando
um padrão mítico dessa narrativa. O procedimento adotado para
essa finalidade consiste em dividir o texto em mitemas e observar a
redundância de temas que irão apontar para o mito subjacente.

Considerando o mito como o relato simbólico por excelência, Rocha Pitta (1999)
8

confirma a necessidade do que G. Durand chamou de mitodologia, composta por


uma mitocrítica, uma mitanálise e pelo teste AT-9.

188
Cartografias do imaginário esportivo

O texto pode ser lido na sua totalidade, porém cada sequência


destacada constitui um mitema – a menor unidade mítica do discurso
– também chamado de ‘átomo mítico’ (Durand, 1993), possuidor de
uma natureza arquetípica e seu conteúdo pode ser indiferentemente,
um motivo, um tema, um decorado mítico, uma situação dramática.
No mitema o dinamismo verbal domina a substantividade.
Conforme Dib (1999), a mitocrítica, enquanto recurso
metodológico baseado na compreensão e interpretação da análise
do texto, permite encontrar e apreender traços míticos e estruturas
intencionais profundas – os chamados núcleos figurativos – que
colocam em relevo o mito diretor que atua por trás de sua narrativa.
Esses núcleos figurativos podem ser acessados por meio
da observância de mitemas, que podem manifestar-se e atuar
semanticamente de duas maneiras:
-d
 e forma patente: pela repetição explícita de seus conteúdos
(situações, personagens, emblemas etc.) homólogos;
-d
 e forma latente: pela repetição de seu esquema intencional
implícito em um fenômeno próximo aos ‘deslocamentos’9
estudados por Freud nos sonhos.
A continuidade entre o imaginário mítico e o positivismo
histórico, sugerida por Eliade – a partir da hipótese de que os relatos
culturais e particularmente a novela moderna são reinvenções
mitológicas mais ou menos confessas – e por Jung – ao observar que
certos personagens mitológicos, determinadas configurações simbólicas
ou emblemas, longe de serem produto de uma circunstância histórica
precisa são espécies universais repletas de imagens (os arquétipos e

Para Freud o deslocamento está implicado diretamente com os sonhos. O sonho é


9

centrado de modo diferente do pensamento onírico; seu conteúdo tem elementos


diferentes como ponto central. Parece plausível supor que na elaboração do sonho
opera uma força psíquica atuante que despoja os elementos de alto valor psíquico
de sua intensidade, e por meio de sobre determinação cria novos valores a partir
de elementos de baixo valor psíquico, os quais acabam por penetrar no conteúdo
onírico. Sendo assim, ocorre uma transferência e deslocamento de intensidade
psíquica no processo de formação do sonho, e é como resultado desta que se observa
a diferença entre a análise do conteúdo do sonho e o pensamento onírico. Podemos
supor que o deslocamento do sonho surge através da influência da censura endo
psíquica. Estes elementos dos pensamentos oníricos que penetram no sonho devem
escapar à censura imposta pela resistência (Rothgeb, 1998, p.137).

189
Katia Rubio

as imagens arquetípicas) – se multiplica, conforme Durand (1993),


em outra hipótese mais rica expressa no sonho ou no desejo mítico
que no acontecimento histórico também é chamado realidade. Sendo
assim, segundo o autor, os comportamentos concretos dos homens e,
precisamente o comportamento histórico, repetem timidamente, e com
maior ou menor acerto, as características e as situações dramáticas
dos grandes mitos. Para ele, essa segunda hipótese comporta a
consequência imediata de desmistificar a modernidade em um de seus
ideais fundamentais: que a história objetiva do humano se apresenta
em fases dispostas positivamente como um progresso fatal. Retornar à
preleção epistemológica do mito é, ao mesmo tempo, orientar a curva
do tempo humano no sentido de uma recorrência ou volta atrás, e,
sobretudo, é fazer brotar a história do centro das estruturas do ser
humano e não o inverso.

C. Histórias de vida no esporte


Que o esporte tem se constituído como uma instituição criadora
de valores culturais, isso já discutimos ao longo dos capítulos anteriores.
Mas a amplitude e profundidade de sua existência é o que buscaremos
verificar ao longo da mitocrítica de atletas que seguem.
Tipo de modalidade, faixa etária e estrutura da instituição
em que se pratica o esporte, interferem e, por vezes, determinam a
qualidade da prática e a longevidade do projeto de vida de ser um
atleta, que pode se tornar um sonho, uma realização ou um pesadelo.

C.1. O início da jornada


A. foi escolhida para caracterizar a fase de iniciação por alguns
motivos particulares. É praticante de ginástica olímpica, modalidade
apreciada por sua plasticidade, beleza de movimentos e graciosidade
das atletas que a praticam, graça essa, talvez, advinda da associação
entre a pouca idade e o tamanho das meninas que se exibem.
No Brasil, a ginástica olímpica não tem um histórico de grandes
performances se comparado a outros países, principalmente Romênia,
Rússia, China e, recentemente, Estados Unidos, principais centros de
formação e organização de equipes que demonstram em campeonatos
internacionais e Jogos Olímpicos o resultado de seu trabalho. Ainda
assim, meninas brasileiras perseguem o sonho de se transformar em

190
Cartografias do imaginário esportivo

‘rainhas dos Jogos’ como são chamadas as ginastas que se destacam


nos Jogos Olímpicos.
A cultura dessa modalidade é muito peculiar, visto que as
meninas e meninos que desejam vir a ser atletas de ponta devem
iniciar seu aprendizado, no máximo até os 7 anos, uma vez que o
pouco desenvolvimento corporal é fundamental para que os exercícios
no solo e nos demais aparelhos sejam bem executados. Esse fato, em si,
chama a atenção de pesquisadores e observadores do esporte, porque
mais do que explorar o pouco desenvolvimento físico de atletas, o que
se fez e faz, ao longo dos anos, é retardar o crescimento daqueles e
daquelas que apresentam um maior nível de habilidade para o esporte
ainda no final da primeira infância e início da segunda.
Somado a isso, a carga de treinamento que essas crianças
recebem é igual ou maior que outras modalidades esportivas praticadas
por atletas adultos, ou seja, o número de horas de treinamento e o
nível de exigência vivido na ginástica olímpica tornam o ginasta um
servo da sua prática e de suas mazelas, ainda que seja, na opinião dos
praticantes, uma escravidão voluntária ou prazerosa.
A pergunta que rondava minha consciência ao longo da
entrevista era ‘Tem, de fato, a criança condições de escolher a
prática dessa modalidade ou será que há outros motivos presentes
nessa opção?’.
Essa indagação era feita a partir da reflexão sobre autores que
teorizaram sobre psicologia do desenvolvimento, como Vygotsky
e Piaget10, e se preocuparam em demonstrar que aprendizagem e
cognição de crianças é um processo sujeito a influência de vários fatores,
culturais e/ou genéticos, que interferem e determinam a capacidade de
elaboração e raciocínio.
Se tomada apenas desse ponto de vista maturacional, seria possível
afirmar que a criança, aos 7 ou 8 anos, não teria ainda condições de
avaliar a extensão de sua escolha, nem tampouco se poderia dizer que
este ser é capaz de optar por um tipo de prática regrada e rígida que

Vygotsky (1984), a partir de uma concepção histórico-cultural e Piaget (1964)


10 

referenciado em teorias psicogenéticas manifestaram-se sobre o desenvolvimento


humano, mais precisamente sobre a infância, enquanto processo e/ou fases, onde
uma etapa não pode ser alcançada antes que a anterior tenha sido cumprida.

191
Katia Rubio

impõe rotinas e condutas que restringem seu modo de vida de forma


tão marcante.
A disseminação dessa cultura fez com que as crianças fossem
iniciadas na prática da modalidade cada vez mais precocemente,
levando a problemas físicos como o retardamento da menarca,
nas meninas, e, em muitos casos, a anorexia e bulimia. Um outro
componente desse universo é a forma como se dão os treinamentos.
Tanto no Brasil quanto em outros países onde a ginástica apresenta
um elevado nível de desenvolvimento, o tratamento despendido por
técnicos em relação aos atletas é de um rigor soldadesco. Disciplina
é a palavra de ordem. O medo deve ser abolido ou expulso do rol de
sentimentos que se possa experienciar. Obediência, cega e sempre, é
o que se espera de todos aqueles que querem vencer. Isso faz com que
a ginástica olímpica se caracterize por excessos e autoritarismo por
parte de atletas e treinadores envolvidos na modalidade.
Quando o ou a atleta executam sua apresentação e parecem ser
de borracha em alguns movimentos ou flutuar em um salto, poucos
sabem que aquilo é fruto de treinamentos exaustivos, motivados
por muita dor física e psicológica. A dor física advém de um tipo
de treinamento em que o limiar da flexibilidade é desafiado a cada
treino e na crença de que o limite ainda não está posto, portanto,
é possível conseguir um pouco mais. Nesse momento, a presença do
técnico ou do preparador físico é notada em toda a sua autoridade.
Precisando qual o limite da atleta que prepara é ele quem determina
se é possível ir além em uma extensão de pernas, se deve continuar
uma flexão ou se é hora de parar, independentemente de a criança
já estar em prantos ou não. A dor psicológica é companheira da dor
física na medida que outras crianças já passaram pelo treinamento, já
choraram publicamente expressando sua dor e, portanto, todos sabem
que também irão passar por aquilo. É uma questão de tempo. Cedo ou
tarde chegará sua vez, como um castigo ou maldição divina.
Ainda assim permanece a questão se de fato a criança afirma
ser sua a escolha pela modalidade e se mantém firme na proposta de
continuar treinando e competindo, que condições ela tem para poder
discernir e avaliar o tipo de tratamento que recebe de seus técnicos e
que implicações isso pode ter para sua vida.

192
Cartografias do imaginário esportivo

Desejo, necessidade, vontade


Quando essa entrevista foi realizada A. tinha 10 anos de idade,
ou seja, era ainda uma criança. Digo criança porquê do ponto de
vista cronológico, nem tampouco do biológico, ela apresentava traços
que pudessem caracterizá-la como uma pré-adolescente. Começou
na prática esportiva sem saber ao certo o que isso significava e não
hesitou em responder ao chamado, interno e externo, para o início
dessa aventura quando a oportunidade se apresentou.
Eu comecei a praticar, eu nem sabia o que era ginástica olímpica,
né. Minhas amigas, eu tinha umas quatro que faziam, eu acho que
eu tinha uns cinco anos, e eu queria fazer também, mas eu nem
sequer sabia o que era. Aí quando eu tinha oito anos as professoras
foram na escola, distribuíram uns papeizinhos para quem quisesse
fazer o teste. Aí eu vim e fiz. E passei.
A resposta a esse chamado representou o início de uma jornada
que para muitos demora anos e, por vezes, uma vida, e que pode
marcar, sob vários aspectos sua existência. No caso de A. não poderia
ser diferente. Considerando a comunidade da qual ela é originária e
seu nível socioeconômico – ela habita em uma casa que compartilha
o quintal com outras casas em um bairro periférico de um município
da Grande São Paulo – ser convidada a participar de um grupo como
o da ginástica é receber uma espécie de distinção, tanto simbólica
como concreta.
Do ponto de vista concreto isso significa alimentação, cuidados
com a saúde, certeza do cumprimento de uma vida escolar. Do
simbólico é a distinção das demais meninas da comunidade, ou seja,
A. descobriu, e agora realiza, alguma coisa além do nível normal de
realizações ou de experiência de suas colegas. Em certa medida, essa
escolha altera o curso de sua vida por conta das exigências impostas
pela rotina de atleta. Treinando ginástica olímpica sistematicamente
há um ano, essa menina já possui o repertório de valores do esporte
de rendimento, que em nada sugere o mundo da infância. Treina,
diariamente, de três a quatro horas e tem a vida submetida a regras e
valores dessa modalidade e da vida competitiva como se fosse atleta
profissional ou de alto rendimento.

193
Katia Rubio

A gente acorda logo cedinho, aí até arrumar o cabelo, tomar


café... Aí você arruma tudo, coloca o colan (...) aí já vem direto
pra cá. Tira a roupa, fica só de colan, aí depois começa a correr,
faz o preparo, tudo. Treina tudo, trave, solo, seja o que for, faz
flexibilidade, e sai. Aí depois já vai pro vestiário, toma banho,
almoça, espera um pouquinho e vai pra escola. Aí depois chega
em casa, faz lição e vai dormir.
A rotina diária de A. representa um afastamento da vida
de criança conhecida antes do esporte e ainda vivenciada por suas
amigas de escola e de vizinhança e o ingresso em uma nova etapa,
com o enfrentamento de responsabilidades e obrigações, um espécie
de mundo dos adultos, sugerindo a passagem por um tipo de ritual.
Campbell (1990) fala de rituais de iniciação em primitivas
sociedades tribais nos quais uma criança é compelida a desistir da sua
infância e a se tornar um adulto, morrendo para sua personalidade e
psique infantis e retornando como adulto responsável.
Se os valores esportivos forem tomados como referência de uma
transformação radical de vida, diríamos que A. passou por uma espécie
de iniciação. Seu mundo de criança é diferente do de suas amigas. A
brincadeira ainda existe, porém agora se brinca de ginástica.
Eu gosto de brincar, correr, fazer paredão (...) É paredão11 ,
pontapé, a gente faz um monte de coisas no chão. A gente brinca
de ginástica. Pontapé, a gente começa a pegar coragem de fazer
no chão. A gente só faz no solo (...) Tem algumas meninas que
querem aprender a fazer paredão. Uma eu já ensinei. A outra
chutou e se machucou todo o joelho. Saiu um monte de sangue
(...) Ah, mas é normal.
O mundo infantil se distingue do mundo adulto, principalmente,
pela quantidade e qualidade de responsabilidades, que irá determinar,
em certa medida, a maturidade do iniciado. Não chegar na hora
estipulada, não fazer a lição, não prender corretamente o cabelo, são

O termo paredão se refere a um tipo de atividade, considerada de lazer, em que a


11 

atleta realiza uma parada de mão com o auxílio da parede, para que suas pernas
não ultrapassem o ponto de equilíbrio desejado. Se a parede não for utilizada o
ponto de equilíbrio pode ser ultrapassado, podendo resultar em alguns acidentes
como o descrito pela entrevistada.

194
Cartografias do imaginário esportivo

falhas inadmissíveis para uma menina que almeja ser ginasta. Por outro
lado, ‘brincar de fazer ginástica’ com outras meninas que não sabem,
mesmo que isso implique em acidente, ‘é normal’, como A. mesma diz.
Numa referência à sociedade contemporânea, Campbell afirma
que na infância vive-se sob a proteção ou a supervisão de alguém.
Essa condição se mantém, na ausência dos rituais de passagem, ao
longo da adolescência e, se a pessoa se empenha em obter um título
universitário, isso pode prosseguir até os trinta e cinco anos. A forma
de organização familiar, que reforça a dependência do sujeito ao
longo de sua vida adulta, impede sua auto-responsabilidade e torna-o
submisso, esperando e recebendo punições e recompensas.
Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem
da auto-responsabilidade e da confiança exige morte e ressurreição.
E esse é o motivo básico do périplo universal do herói. Determinada
condição é abandonada e é encontrada a fonte da vida, que o leva a
uma experiência rica e madura. Que uma condição – a infância em si
– foi abandonada e que foi encontrada uma fonte de vida, parece não
haver dúvida. Porém, se isso conduz a uma condição rica e madura é
difícil afirmar.
O mais difícil (da vida de atleta) é a correria, né. E o preparo
também. Eu treino segunda, terça, quarta, quinta, sexta e, as
vezes, elas (as técnicas), marcam treino de sábado (...) Eu estudo,
brinco a noite e faço lição, senão levo bilhete (...) e sem escola
não tem ginástica.
Estão dadas as provações e as experiências penosas para testar
a intenção, ou pretensão, de vir a ser uma grande atleta. A atitude
heroica dessa atleta se apresenta nos inúmeros desafios da tarefa que
vão sendo apresentados diariamente, a cada treino, a cada machucado,
a cada dor, pondo à prova a vontade de permanecer, perseguindo um
desejo e um ideal.
Quando ela me pede pra fazer alguma coisa muito difícil, a gente
concentra, pensa bem e faz. É só não ter medo, tirar o medo da
gente (...) Não pode roubar no preparo12 , sinal que poucas fazem,

Essa expressão é utilizada para se referir a atletas que recebem a rotina de


12 

preparação física e não cumprem o que está estipulado, fazendo aquém do número
de repetições determinadas ou então executando a rotina de maneira incompleta.

195
Katia Rubio

ter flexibilidade, não chorar. (Por que não chorar?) Por causa que
dói. E se chorar, depois dói mais. E não pode fazer força contra,
senão dá câimbra.
Essas situações cotidianas, apresentadas como perigosas,
desafiam a todo o instante a coragem, o conhecimento e a capacidade
que habilitam A. a prosseguir. Campbell (1990) lembra que as
provações da jornada heroica são parte significativa da vida, sendo
que não há recompensa sem renúncia, sem pagar o preço, e que os
mitos lidam com a transformação da consciência, ou pelas próprias
provações ou por revelações iluminadas.
A dúvida que permanece, neste caso, é se o processo
experienciado por A. está sendo de fato assimilado, no sentido de
tornar-se consciência, ou se as exigências impostas pela prática da
modalidade devem ser cumpridas, sem contestação, perpetuando
um procedimento de ensino-aprendizagem que determina: ‘assim eu
aprendi, assim eu ensino, assim você executa’, tão comum no mundo
esportivo. E, diante do poder da relação técnico-atleta, só resta ao
atleta cumprir as exigências ou se desligar do grupo, pondo um fim
a sonhos e fantasias de uma vida repleta de realizações e conquistas.
Isso nos permite inferir que na fase de iniciação a influência exercida
por fatores externos são tão determinantes para a adesão à prática
competitiva quanto os fatores subjetivos, denominados pela Psicologia
do Esporte como motivação intrínseca13.
Para DaMatta (1986), a cultura é entendida como um mapa ou
receituário que está dentro e fora de cada um dos membros de um grupo
social, por meio do qual pessoas de um grupo pensam, classificam e
modificam o mundo e a si mesmas, no formato de regras, permitindo
que os indivíduos se relacionem entre si, com o grupo e com o ambiente
no qual ele está inserido. Temos, então, a caracterização do chamado
não apenas como uma disposição pessoal, mas também como uma
construção cultural, desse momento contemporâneo, que permite ao
esporte ocupar um lugar que já pertenceu ao mágico e ao religioso.

Figueiredo (2000) entende por motivação intrínseca a participação de um atleta


13 

em determinada atividade sem recompensa externa. Afirma que o atleta em início


de carreira é impulsionado por motivos intrínsecos, pois geralmente treina sem
receber nenhum tipo de recompensa externa, e compete por muito tempo sem
alcançar uma colocação significativa.

196
Cartografias do imaginário esportivo

É na resposta rápida e precisa à pergunta o que você pretende ser


na vida que se manifesta o conjunto de valores subjetivos e culturais
presentes na vida de A.
Uma grande atleta. Ir para os campeonatos, pro Pan, chegar até as
Olimpíadas.
É evidente que nesse curto período que A. vem treinando e
competindo, já foi possível desenvolver e projetar, pela convivência
com as amigas e pela performance das meninas com mais tempo de
treinamento, o conjunto de metas que vão nortear sua carreira como
atleta. Se uma manifestação de sua subjetividade ou se uma construção
social, ela expressa o que todo atleta mais almeja: representar seu país
em campeonatos internacionais, principalmente os Jogos Olímpicos. A
referência aos Jogos Pan-americanos se dá pela conquista de medalhas,
na edição de 1999, das ginastas brasileiras. E sabe que para isso é
importante muita dedicação, que essa condição não se dá por milagres,
mas com trabalho árduo.
Pra chegar a uma Olimpíada... treinar muito, muito preparo e
flexibilidade também.
Apesar das dificuldades dessa escolha, é, possivelmente, na
realização dessa jornada que acontece o encontro consigo mesma, uma
das passagens da saga do herói. Por mais difícil que pareça ser persistir,
por maior que seja a influência dos ideais e autoridade de outros, é na
perseguição do próprio mito que pode estar a resposta à continuidade
de uma opção tão difícil.
Campbell (1990) afirma que os mitos estimulam a tomada de
consciência da sua perfeição possível, a plenitude da sua força, a
introdução da luz solar no mundo, e que quando crianças as ideias
míticas são aprendidas em um certo nível, porém, com o passar dos
anos muitos outros níveis se revelam. Por isso os mitos são infinitos na
sua revelação.
No caso de A., os mitos que estimulam a tomada de consciência
da sua perfeição possível e a plenitude da sua força vêm das atletas
que estão no seu entorno e já foram capazes de realizar grandes feitos,
como participar de campeonatos internacionais, ou naquilo que ela
sabe sobre o mundo, que não está dentro do seu ginásio, mas em

197
Katia Rubio

algum lugar próximo capaz de ser apreendido pelo seu estágio de


desenvolvimento. Quando perguntada qual a ginasta que ela mais
gosta, respondeu sem vacilar
a Daniele Hipólito (uma das medalhistas em 1999 no Pan).
Porém, quando perguntada sobre ginastas de fora do Brasil, ela
pensa um pouco para responder
a J., a F. (companheiras mais velhas de ginástica). Fora eu não
conheço nenhuma.
Ou seja, a ginástica é construída e incorporada ao universo de A.
a partir de referências concretas. As ideias míticas sobre o esporte, que
constelam seu imaginário, são ainda apreendidas das manifestações
mais próximas ao longo desse pouco tempo que ela tem de prática.
Ela sabe que há muitas outras ginastas e que seu desejo é realizar e
competir como aquelas que inovam e que foi possível assistir pela TV.
(sobre as Olimpíadas de Sydney) Ah... dava vontade da gente fazer
também, mas não pode. Tem que ficar só assistindo.
Diferentemente de modalidades coletivas, em que os atletas,
individualmente, buscam e dão força ao conjunto, a ginástica olímpica
é uma modalidade individual. Seu sistema de pontuação envolve a
premiação da melhor performance individual – nos vários aparelhos –,
e a premiação por desempenho em equipe – quando os vários resultados
individuais do mesmo grupo de atletas são somados e comparados
a outras equipes. Essa dimensão de treinar em conjunto e competir
individualmente, em parte para si e em parte para a equipe, confere
para A. o grau de importância do grupo.
(a convivência com as colegas) é meia íntima, né, a gente fica quase
o dia todo juntas, fica quase cinco horas (...) A gente treina num
grupo. Acho que tem nove meninas. Na hora da competição a
gente compete contra as outras meninas, de outros ginásios. E uma
torce pra outra (da mesma equipe).
À jornada empreendida em busca dos próprios ideais, Campbell
(1990) denomina de ‘perseguição à bem-aventurança’, que compreende
em descobrir e depois seguir aquilo que efetivamente faz sentido à vida
de alguém. Se o motivo está no trabalho, nas artes ou no esporte,
pouco importa. É fundamental que esse objetivo seja perseguido.

198
Cartografias do imaginário esportivo

E aponta que para os heróis contemporâneos, ao contrário daqueles


como Prometeu, na jornada atual não existe a preocupação em salvar o
mundo, mas apenas em que está dentro e fora de cada um dos membros
de um grupo social salvar a si próprio. Contemporiza ao refletir que
quando um sujeito realiza essa façanha, de um certo modo ele também
salva o mundo, mas a única maneira de fazer isso é descobrir em si
mesmo onde está a vida e manter-se vivo. Ou seja, a proeza derradeira
da jornada, mesmo quando se tem alguém para ser ajudado, é que ela
deve ser praticada só.
E assim tem sido, e parece que continuará sendo, a jornada de
um atleta.

C. 2. A busca do caminho
Se o início da jornada é marcado por um chamado, onde se
descerram as cortinas de um mistério de transfiguração, o momento
seguinte do périplo do herói se constitui na passagem por um limiar.
As surpresas de um novo parâmetro de vida estão sendo conhecidas e a
única certeza que se tem, diante do inesperado, é que o devir comporta
muitos perigos.
A modalidade praticada pelo sujeito dessa entrevista é o
voleibol, que ao longo da década de 1980 se transformou no
segundo esporte mais praticado no país, perdendo apenas para o
futebol. Essa condição foi assegurada por uma política de expansão
agressiva por parte da CBV (Confederação Brasileira de Voleibol),
pela conquista de um espaço na mídia, assegurado até então apenas
ao futebol, e pela conquista da primeira medalha de ouro olímpica
brasileira para uma modalidade coletiva, ocorrida nos Jogos
Olímpicos de Barcelona, em 1992.
Toda essa rica experiência acumulada ao longo desses anos
tornou o voleibol alvo de projeção e identificação de jovens com
um nível mínimo de habilidade e estatura privilegiada. Vários deles
chegaram ao estrelato e passaram a ver suas conquistas, tanto nas
quadras como na vida pessoal, como característica a ser explorada
e ressaltada. Com isso, o voleibol construiu uma imagem de esporte
vitorioso, bem estruturado e organizado, a modalidade certa para
jovens com um nível sócio-econômico diferenciado pela realização de
polpudos contratos profissionais com clubes e patrocinadores.
199
Katia Rubio

Apesar dessa marca institucional positiva, a vida daqueles que


optaram por sua prática não se diferencia muito de qualquer outra
modalidade, seja individual ou coletiva. Os processos seletivos
disputados, as limitações impostas pelo rigor de treinamentos e jogos,
a luta pelas poucas vagas no time e a necessidade de um bom nível de
relacionamento e convivência para a sobrevivência individual e coletiva
marcam o voleibol como a todos os demais esportes.
A fase que estamos caracterizando como ingresso no esporte,
se diferencia da fase de iniciação pelo fato do atleta, ainda que
um adolescente, já ter alguns anos de experiência acumulada em
categorias de base, conhecer as agruras do esporte competitivo –
como a vida regrada, a abstinência do lazer e de atividades sociais
e a responsabilidade da competição – e estar muito próximo da tão
desejada categoria profissional, o mundo de gente grande.
O momento vivido pelo atleta de uma categoria juvenil é
caracterizado como adolescência e apresenta traços distintos das
demais fases do desenvolvimento do ser humano. Um deles, afirma
Vargas (1999)14, é a manifestação, por excelência, do arquétipo do
herói. É a hora da grande batalha para partir do mundo parental e
viver a morte simbólica dos pais e do filho, para assim poder surgir
o indivíduo, o adulto. Nessa fase, o herói, presente na personalidade
juvenil, assume as mais variadas características, dependendo de seus
diferentes aspectos biopsicossocial e dos traços próprios do momento
cultural da sociedade a qual ele pertence.
Ter o arquétipo do herói como parâmetro de identificação pode
ser saudável e produtivo para aquele que vive a situação do embate,
desde que, como com qualquer outro arquétipo, não seja ultrapassado
o métron, o limite da medida humana. Isto fica bem caracterizado nos
mitos e expresso na frase do oráculo de Delfos – conhece-te a ti mesmo
– do templo de Apolo.

O psiquiatra Nairo de Souza Vargas apresenta no prefácio ao terceiro volume


14 

da obra Mitologia Grega, de Junito de Souza Brandão, a importância do herói


para o desenvolvimento do adolescente, entre outros fatores, pelo grande potencial
transformador que esse mito carrega, favorecendo analogias com o momento de
mutação existencial pelo qual o jovem também passa.

200
Cartografias do imaginário esportivo

O caminho de provas
A vida de D. é marcada por um fato curioso. Seus pais, uma ex-
atleta de voleibol e um árbitro dessa mesma modalidade, se conheceram
durante uma competição quando ainda eram muito jovens. Segundo
filho dessa união, hoje está com18 anos de idade, oito deles dedicados
à prática do voleibol. Quando criança morava em uma cidade do
interior de São Paulo, que não oferecia muitas opções de lazer, senão
a prática esportiva.
Comecei a fazer escolinha primeiro, depois fui para o time da
cidade. Joguei por uns dois anos pelo time da cidade. Como na
cidade não se tinha muito o que fazer, tinha que fazer esporte.
Ficar parado em casa eu não conseguia.
E assim D. se pôs, ou foi posto, no caminho da aventura.
Atendendo ao chamado para realizar seu mito pessoal, saiu da cidade
onde começou a jogar e veio para São Paulo, lugar que concentra
muitos clubes, grandes e médios, capazes de transformar um sonho
em realidade, e efetivamente começou sua jornada.
Em 94 vim fazer teste no W., passei e fiquei de 94 até 98.
Contudo, a entrada no clube não representou a garantia de que
a profecia se realizasse. Foi necessário que manifestações de distinção
acontecessem e que as particularidades que o diferenciavam dos demais
se manifestassem. Como na saga do herói, passou a realizar proezas
comuns num mundo de todos os dias até chegar a uma região onde
seus prodígios começaram a se concretizar.
Em 94 como não era o meu ano ainda, eu tinha mais um ano para
ser pré-mirim, para ser o primeiro ano de pré-mirim, que eu comecei
como titular, aí eu tive uma caída grande (...) Em 95 fui capitão da
equipe e titular até 97. Em 98 fui titular, mas não fui capitão (...)
eles preferiram que o capitão fosse o mais velho, o mais experiente.
A prova de que o caminho apenas se iniciava veio quando D.
se viu em meio a um processo de seleção em um dos clubes de ponta
do Brasil, competindo com mais de três mil atletas por apenas doze
vagas. É possível dizer que esse foi um dos momentos de sua iniciação,
no qual ele se viu obrigado a se defrontar com as forças que o fizeram
superar a si próprio, conseguindo seu triunfo.

201
Katia Rubio

Fiz a peneira com outros três mil atletas (...) Tinha doze vagas e era
uma semana de peneira. Era o vestibular do vôlei (...) tanto que
quando um entra aqui tem até trote. Tem tudo. É um vestibularzão.
Esse momento é visto, no presente, como perigoso porque não
era possível ter o controle de si próprio na situação. Ele exigiu mais que
apenas habilidade e competência para superar o desafio posto. A luta,
muitas vezes traduzida e reduzida, de acordo com Brandão (1999), ao
que se denomina trabalho e agonística, é conferida aos heróis com o
sentido de valorização do guerreiro e do combate intrépido. É o caráter
de combatente que distingue, em certa medida, os heróis dos deuses.
Quer se trate de guerra ou de monomaquia15, a existência do herói é a
luta. Os deuses, não podendo morrer, pararam de lutar.
(A peneira) É uma guerra. É matar ou morrer. Ali você não tem
amigo. Naquela hora você não pode ajudar ninguém, só pode
pensar em você. É um querendo matar o outro.
O momento da batalha, como este, não permite qualquer
manifestação de fraqueza ou vacilação, de reações e sentimentos
que remetam o atleta à sua condição humana. É quando prevalece a
natureza do herói, no qual ele deve manifestar todos seus atributos, na
sua plenitude, ou então o projeto sonhado corre o risco de se acabar.
É muito ingrata essa peneira. Na semana você pode estar bom
como não pode. Se aquela é a sua pior semana, o pior dos seus
dias, você tem que fazer aquela peneira bem porque se não fizer do
jeito que o técnico quer, ele não fica com você.
Apesar de preparado para a luta, para o sofrimento e para a
solidão, esse atleta se viu diante de sua condição humana marcada por
limitações, ainda que indesejadas, e percebeu não ser possível contar
apenas com seus próprios esforços. A presença de uma figura externa,
no caso o técnico, que também representa o papel do educador –
presente no trajeto de todos os heróis – garantiu a permanência de
seu sonho. Finalmente, tão importante quanto os elementos anteriores,
está sua trajetória de lutas e conquistas, que apesar de breve, já o

Monomaquia é entendido por Brandão (1999) como combate singular realizado


15 

apenas pelo herói.

202
Cartografias do imaginário esportivo

diferenciou de muitos outros que estão na jornada há tanto tempo


quanto ele.
Aí eu passei, e nem estava tão bem nesses dias. Até o técnico falou que
ficou comigo mesmo, porque me conhecia. Foram estas as palavras,
na frente de todo mundo. Ficou só comigo porque me conhecia,
porque naqueles dias eu não estava muito bem, não agradou.
Consciente de tudo que acontecia, de seu desempenho aquém
do limite conhecido, da concorrência com os demais atletas, dos
riscos de perder o lugar desejado, D. respondeu ao seu próprio
chamado e buscou forças para prosseguir. A insubmissão àquilo
que parecia incontrolável levou-o à procura de elementos para
reagir contra o esvaio de sua capacidade de lutar, reafirmando sua
disposição para permanecer no caminho, buscando a trilha da sua
bem-aventurança.
Eu quero passar. Isso era para me levantar. Eu falava ‘Eu vou passar.
Não importa se estou mal ou se estou bem, eu quero passar’. Foi o
que deu. Passei de três mil e pouco para doze vagas.
Assim como o herói que conta com as personificações do seu
destino a ajudá-lo e a guiá-lo, seguindo em sua aventura até chegar
ao ‘guardião do limiar’ na porta que leva à área da força ampliada
marcando os limites da esfera ou horizonte da vida presente, D.
enfrentou a iniciação que o levou a experimentar um mundo,
semelhante em parte ao que ele conhecia, no que se refere à prática da
modalidade em si, mas absolutamente diferente, naquilo que se referia
às perspectivas de futuro em um clube reconhecido como um dos mais
importantes da modalidade no país. Além de conquistar a posição
desejada no processo seletivo, em pouco tempo passou a defender a
equipe mais cobiçada por aqueles que intentam uma longa vida no
esporte: a adulta, também chamada de profissional.
Conforme Campbell (s.d.), a concepção tradicional de iniciação
combina uma introdução do candidato nas técnicas, obrigações e
prerrogativas de sua vocação com um radical reajustamento de sua
relação emocional com as imagens que o ligam a seu passado.
Entrei aqui no segundo ano do infanto. Joguei, fui titular um ano
inteiro, só não fui capitão, mas fui titular o ano inteiro (...) Foi

203
Katia Rubio

quando uns meninos foram pra Seleção (...) Aí eu tive a minha


boquinha. Fiquei treinando com a equipe adulta (...) E daqui eu
não saio. Vai ser difícil de me tirar, eu vou dar o máximo possível.
Daqui você não me tira.
O reconhecimento desse momento como um dos mais marcantes
de sua vida, juntamente com outros que o ajudaram a consagrá-lo
como o atleta vitorioso que ele já é, indicam a transposição do limiar
e o confronto efetivo com as grandes forças que irão torná-lo, de
fato, um herói. Apesar de todas as dificuldades que envolvem essa
passagem e a manutenção no estágio seguinte, o esforço é reconhecido
como necessário para a conquista do objetivo. Este reconhecimento,
admitido aqui como assimilação, é parte integrante da passagem de
mais essa etapa.
Ser campeão três anos seguidos, de 94 até 96, no Z. foi a consagração.
Fui bicampeão pré-mirim em 94 e 95. Campeão mirim, que
ninguém imaginava, ninguém esperava, que surpreendeu todo
mundo. E ter passado aqui, ter jogado a Super Liga. A emoção é
muito grande. Estar treinando com o adulto. É um stress, não tem
férias, mas é muito bom.
O fato de já treinar com a equipe adulta não assegura sua
permanência nesta condição. Em seu caminho estão suas próprias
limitações, a competência alheia e o tempo, que permitiu a evolução
de outros que hoje são seus concorrentes e que o separa daqueles que
primeiro chegaram. D. sabe que a passagem da categoria juvenil para
a adulta não é natural nem automática. Essa condição também há
que ser conquistada, e como todo processo de conquista implica em
esforço, disposição para o embate e a perseguição do sonho.
Meu sonho... é ficar em uma equipe adulta boa. Porque a passagem
da juvenil para a adulta é uma passagem muito grande de idade.
Tem pessoas muito mais velhas que têm muito mais experiência
(...) Depois disso, o objetivo é pegar uma Seleção Brasileira, que
é o sonho de todo mundo, de todo atleta, acho que de qualquer
modalidade.
O custo desse sonho não é baixo, mesmo para alguém que
ainda é tão novo. No caminho de provas a ser seguido estão a luta, a

204
Cartografias do imaginário esportivo

abstinência, a solidão e o desapego a valores tão caros a outros jovens


da mesma idade, com ideais diversos. A rotina de treinos e competições,
viagens e exposição, tida pelo público como fácil e desejada, é vista
e compreendida por quem a ela se dedica como a realização de um
projeto de vida iluminado, mas que tem também seu lado obscuro.
Diante disso, a vida desse atleta em muito se distingue da de
outros adolescentes. Um dos poucos valores comuns aos demais
é a obrigatoriedade dos estudos, condição sine qua non para a
permanência no clube e na equipe. Em certa medida essa atitude reflete
uma preocupação dos dirigentes da instituição com o futuro daqueles,
que mesmo desejando e trabalhando para chegar ao topo, ficarão ao
longo da subida.
Apesar de não admitir para si essa possibilidade, D. encara esse
fato como inevitável, mesmo para aqueles que conseguiram as mais
altas conquistas na modalidade. Assim, até o mais olímpico dos heróis
tem seu ciclo fechado. No entanto, o final que o espera não é a morte
em batalha, mas a morte para a carreira esportiva e o nascimento para
uma nova vida.
Eu acho que não faço corpo mole pra nada. Já fiquei doente, treinei
doente, joguei doente (...) Você acaba abrindo mão de tudo. Você
abre mão de sair, de férias, de namorar, de tudo. Só não abre mão
dos estudos, que é o que eles exigem aqui, senão você abriria mão
até do estudo (...) Se você amanhã é mandado embora daqui, e aí?
Aí você fica sem nada e não tem estudo. Não tem nem de onde
começar. É muito complicado. Vôlei uma hora acaba, chega uma
idade que você não consegue mais jogar. Você tem que estudar.
Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pela carreira,
da necessária reclusão e ausência de atividades comuns a outros jovens
de sua idade e da perspectiva de que essa dinâmica ainda se prolongue
por vários anos, D. prefere prosseguir com sua aventura, enfrentando
os desafios, perseguindo a razão, ainda que presente e momentânea,
de sua existência.
O voleibol pra mim é tudo. Eu não sei o que vou fazer se eu parar
de jogar. É óbvio que vou estudar, fazer faculdade (...) Mas, não
sei o que eu vou fazer, voleibol pra mim é tudo. Não consigo, acho
que... sem o voleibol vai cair muito a minha vida.

205
Katia Rubio

Assim como nos tempos antigos em que era reconhecido pela


força e resistência, o bom atleta para D., nos tempos atuais, é uma
soma de outros elementos. A frieza para executar uma jogada em
um momento decisivo da partida e a habilidade para determinar
exatamente onde a bola deve cair, são indicações de uma espécie de
atleta que explora um outro tipo de virtude. De forma semelhante a
Ulisses, que para poder voltar a Ítaca utilizou-se de vários artifícios
que certificaram e consagraram sua astúcia mesmo depois de ter
sido um dos mais bravos guerreiros em Troia, o ideal de atleta para
D. é aquele que se destaca dos demais por sua inteligência, mais que
pela força.
Não basta só força. O voleibol não é só força, só porrada (...) É
muita cabeça. O cara que é meio burro e quer só dar porrada, acho
que hoje, não cresce.
A convivência com outros atletas, tanto de sua categoria original
– a juvenil – como com os mais velhos – a equipe adulta –, confere à
relação um caráter de aprendizado e de troca. Com os mais velhos
há a absorção da experiência daqueles que já participaram de muitas
situações que não podem apenas ser contadas e ensinadas, mas que
devem ser vividas. E aí, uma vez mais o papel do educador surge no
trajeto do herói, trazendo para o seu universo o conhecimento e a
sabedoria necessários para que o caminho possa ser trilhado e superado
de maneira vitoriosa.
Eles dão uns ‘toques’ que você nem imagina que você pode fazer
daquele jeito. Eles têm uma experiência de vida já muito longa.
Já jogam há muito tempo e já sabem, mais ou menos, o esquema
de como é o vôlei. E você não. Você está aprendendo agora e tem
muito o que aprender.
Além do reconhecimento de sua condição de neófito por parte
dos atletas mais velhos, efetivos da equipe adulta, e da ajuda respeitosa
em forma de transmissão de experiência, existe também a cobrança de
uma condição de igualdade no que se refere às responsabilidades pela
qualidade e resultado de um jogo. Essa situação faz D. vislumbrar a
passagem de mais uma etapa de sua iniciação que é a entrada no mundo
do esporte profissional, dos ‘adultos’. Esse termo é muito significativo
porque marca, afirmativamente, uma condição a ser superada –

206
Cartografias do imaginário esportivo

o juvenil, o adolescente – para ingressar em um universo tão desejado,


tão esperado – o adulto, o profissional.
Eu sou tratado como igual. Se o juvenil está ali é porque ele tem
o mesmo potencial que eles, que pode entrar e decidir o jogo.
Você é um adulto agora e tem o mesmo potencial que eu, só não
com a mesma experiência. A experiência só com o tempo é que
se vai pegar (...) Eles tratam você do mesmo jeito. Como uma
pessoa normal.
Mas D. vive uma dupla condição na medida que seu grupo
original, que lhe proporciona o referencial para exercitar a posição
de ‘adulto’, é a equipe juvenil. O movimento de ida e volta de uma
equipe para a outra coloca-o numa situação particular e faz com
que ele experimente duas condições bastantes distintas em cada um
dos grupos. Se para os adultos ele é o juvenil que pode colaborar,
de alguma maneira, completar o esforço do grupo em campeonatos
importantes, para o grupo juvenil D. é visto como o eleito, aquele que
se distinguiu entre os demais, que conseguiu transpor os limites da
categoria e atingir a meta comum a todos, transformando-o em alvo
de identificação, projeção e, quem sabe até, de inveja.
Eles ficam te olhando muito. Ficam vendo o que você faz, e querem
estar lá também, do mesmo jeito, e o que eu fiz pra estar lá. Eles
ficam olhando. Aí depende de cada atleta.
O desempenho de papéis em cada uma das equipes é distinto
e obriga a uma reflexão sobre a importância de olhar e agir com
seu grupo original de maneira respeitosa. O movimento latente
dos grupos esportivos indica a existência de uma distinção entre
aqueles que permaneceram na equipe original e aqueles que
ascenderam à categoria posterior. Contudo, é na categoria original
que a continuidade do processo de afirmação no esporte se dará,
tanto pelos aspectos de formação técnica, com o aprimoramento
do gesto técnico, como pessoal, com a aprendizagem dos valores
fundamentais para o próprio desenvolvimento e também dos demais
companheiros de jornada. E, confirmando a condição básica de
uma modalidade coletiva, onde a força do grupo reside na relação
entre seus componentes, a valorização dos demais companheiros é
reforçada e confirmada.

207
Katia Rubio

O atleta não pode, só porque está subindo pro adulto, ele não
pode parar de falar com as pessoas do time. Se ele para de falar,
o time dele vai rejeitar ele. O juvenil rejeita, e isso é a pior coisa,
ser rejeitado por um time. O time tem que ser fechadinho, não
importa só porque ele sobe e você não sobe.
A rejeição do grupo àquele que não possui espírito coletivo
não é temida apenas porque priva esse sujeito do convívio com os
demais companheiros, mas porque, principalmente, põe em risco o
projeto maior de todo o herói que é vencer a batalha. Nenhuma outra
possibilidade é vislumbrada senão a vitória. A derrota, companheira
de existência e de jornada da vitória, é negada como se fosse algo
monstruoso ou alheio à condição heroica, inadmissível no esporte,
palco contemporâneo do desempenho desse papel.
Pra mim é assim, é ganhar e ganhar. Não tem a palavra perder.
Perder é pra perdedor. Eu não sou perdedor. Tem que ser assim.
O momento vivido por D. indica toda a plenitude de sua condição
heroica. Ao conquistar uma posição dentre os atletas do time adulto ele
vence um dos desafios impostos pela carreira e mais um dos portais da
iniciação. Poderíamos afirmar que ele vive a porção média daquilo que
Campbell (s.d.) define como unidade nuclear do monomito, ou seja, o
ciclo separação-iniciação-retorno, considerando, no entanto, que em
seu périplo cada mudança de categoria, ou cada convocação para uma
seleção sugere uma nova iniciação. No auge de suas forças ele enfrenta
uma a uma todas as etapas para poder chegar e se postar ao lado dos
que já conquistaram a ‘Ilha da bem-aventurança’16. Perseguindo seu
sonho já não corre sozinho o risco da aventura, pois os heróis de todos
os tempos a enfrentaram antes dele.
O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. O que deve ser
feito é apenas seguir a trilha do herói, e lá, onde se temia encontrar
algo abominável, será encontrado um deus. E lá, onde se esperava
matar alguém, se matará a si próprio. Onde se imaginava viajar para
longe, se irá ao centro da própria existência. E lá, onde se pensava
estar a sós, se estará na companhia do mundo todo.

Local de destino dos heróis após o final de sua jornada.


16 

208
Cartografias do imaginário esportivo

C. 3. A aventura do herói
Na longa jornada empreendida pelo herói são inúmeras as
provações concebidas para que se tenha a certeza de que o pretendente
a essa condição possa realmente sê-lo. Esses desafios consistem em
saber se ele está à altura da tarefa; se ele é capaz de ultrapassar
os perigos; e se terá coragem, conhecimento e capacidade que o
habilitem a cumprir com o devir, tornando a jornada heroica, parte
significativa da vida.
No caminho para se tornar um profissional do esporte, em parte,
esse ritual é cumprido, principalmente na modalidade mais desejada e
idolatrada no Brasil, que é o futebol.
O futebol tem para a cultura brasileira um significado particular
enquanto prática esportiva. Ele mobiliza multidões, apresenta e
reforça padrões de comportamentos e se apresenta como um objeto
de desejo de realização profissional. Crianças (leia-se meninos, uma
vez que apenas recentemente as meninas começaram a conquistar
espaço no universo masculino desse esporte) e pais ainda vislumbram
no futebol a possibilidade de realização de um sonho que envolve
fama, projeção e dinheiro.
Esse foi o principal motivo por que se escolheu um atleta do
futebol para ilustrar a fase profissional. Além disso, em sua estória
estão presentes elementos como saída precoce do núcleo familiar,
profissionalização, sucesso no clube, convocação para a Seleção
Brasileira e conquista da posição de titular na equipe nacional, ou seja,
a trajetória ideal de um atleta bem-sucedido.
Nascido em uma família com 4 irmãos, cujo pai teve sempre
a preocupação em ‘fazer todos estudarem’, Y. foi o único que não
conseguiu ter formação universitária, porque ao terminar o ensino
médio já estava envolvido com a carreira de atleta profissional.
Tem dois advogados em casa e um engenheiro florestal. Eu fui o
único que parou os estudos por causa do futebol.
Assim começa a estória de mais um atleta do futebol, que como
tantos outros abdicou do conforto e segurança do núcleo familiar em
plena adolescência, alterou seu projeto de vida e empreendeu uma
jornada rumo a uma grande aventura, que como em vários casos
tornou-se determinante em sua trajetória de vida.

209
Katia Rubio

Partida e iniciação
Em certa medida, este é o primeiro indício da trajetória
padrão da aventura mitológica do herói, da fórmula representada
nos rituais de passagem proposta por Campbell, que envolve o ciclo
separação-iniciação-retorno, e que pode ser considerado a unidade
nuclear do monomito.
Essa trajetória envolve a ida de um herói vindo do mundo
cotidiano para uma aventura numa região de prodígios sobrenaturais.
Ali ele encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva, para
depois retornar de sua misteriosa aventura com o poder de trazer
benefícios aos seus semelhantes.
A primeira das etapas é representada pela alteração de uma rotina
de vida e uma organização familiar já estabelecidas e não programada.
É o ‘chamado da aventura’, primeiro estágio da jornada mitológica.
Eu trabalhei como menor auxiliar de serviços gerais no Banco do
Brasil(...) E aí o time da minha cidade, que era um time pequeno,
não tinha condições de trazer jogadores de fora (...) me convidaram
pra ser o segundo reserva do time (...) Eu trabalhava meio período,
treinava meio período e estudava a noite... Aí o titular e o primeiro
reserva se machucaram durante a competição, e apareceu aquela
oportunidade pra mim (...) E nós fomos campeões. Foi a primeira
vez que um time do interior foi campeão.
Apesar da rapidez entre a passagem de uma condição
semiprofissional de uma equipe do interior de um estado brasileiro
para um dos grandes times de São Paulo, esse personagem nega,
num primeiro momento, uma condição inata para a prática da
modalidade, apresentada enquanto descaracterização de um
planejamento dessa trajetória.
A sugestão do imprevisto como responsável pelo desencadeamento
da trajetória futura se apresenta como um dos indícios da vocação
do herói e pode responsabilizar o destino pela convocação para a
aventura, transferindo o herói do centro de gravidade de seu grupo
social original para um região desconhecida. O acaso, assim como o
erro (Capbell, s.d.), revela um mundo insuspeito e coloca o indivíduo
numa relação de forças que não são plenamente compreendidas.

210
Cartografias do imaginário esportivo

E nós fomos campeões. Foi a primeira vez que um time do interior


foi campeão. Então aquilo me despertou assim, uma coisa ‘será
que existe a possibilidade de eu chegar num time grande?’ (...) Foi
aí que eu consegui um teste aqui no XX.
O chamado é sempre o descerrar de cortinas de um mistério de
transfiguração. Pequeno ou grande, independentemente do estágio ou
grau da vida, esse instante equivale a um momento de passagem que,
quando completo, representa uma morte seguida de nascimento. Daí a
inferência de uma ‘naturalidade’ do processo, ou seja, na ausência da
necessidade do esforço para desencadear uma aventura, que lembrada
depois de ocorrida foi bem-sucedida, a justificativa dada se encontra
na falta de intenção para promoção da ação.
Eu nunca nem desejei ser um jogador de futebol (...) Eu joguei tudo,
vôlei, joguei tênis, jogava futebol, jogava de tudo um pouco... Eu
nunca disse assim... Eu disse ‘pai eu quero ser jogador de futebol,
dá um jeito, arruma um teste’ que nem os meninos fazem hoje,
aquele desespero e tal. As coisas aconteceram bem naturalmente
pra mim. Talvez por isso deu tão certo.
Campbell (1990) afirma que existem dois tipos diferentes de
herói. Em um tipo de aventura o herói se prepara responsavelmente
e intencionalmente para realizar a proeza. É o caso de Atena que
ordena a Telêmaco, filho de Ulisses, que saia à procura do pai que não
regressou da guerra de Troia. E existem as aventuras nas quais o herói
é lançado, como por exemplo, alistar-se no exército. Para o autor,
apesar dessa condição inesperada, o aventureiro que se envolve nesse
tipo de situação também é um herói no sentido mitológico porque ele
deve sempre estar pronto para enfrentar os fatos que se interpuserem
em seu caminho. Ou seja, a aventura para a qual o herói está pronto
é aquela que ele de fato realiza. A aventura é, simbolicamente, uma
manifestação do seu caráter.
O chamado para o mundo de aventuras envolve, quase sempre,
o enfrentamento de um mundo desconhecido e, por vezes, cheio de
perigos. Implica também na perda de referência do horizonte familiar
da vida, a renovação de velhos conceitos, ideais e padrões emocionais,
que já não são adequados. É o momento de passagem por um limiar.

211
Katia Rubio

Eu vim pra cá eu não tinha família, quer dizer não tenho até hoje
(...) E eu fiquei sozinho com 17 anos, aqui, morando no estádio,
nos alojamentos...
O auxílio àqueles que não recusaram ao chamado acontece
inesperadamente, e é mais uma indicação da necessidade de
prosseguimento da missão. Ele surge na forma de uma figura protetora
que fornece ao aventureiro amparo contra as forças titânicas que ele
está prestes a deparar-se, ou com a sugestão do caminho a seguir.
Esse primeiro estágio da jornada mitológica representa a convocação
do herói que tanto pode agir por vontade própria na realização da
aventura, como pode ser levado ou enviado para longe por algum
agente benigno ou maligno. Essa aventura pode ter seu início em um
mero erro ou pode atrair o herói que está a esmo levando-o para longe
dos caminhos comuns do homem.
Um diretor lá do A. falou ‘vamos conseguir um contato com um
conselheiro do XX’ e me trouxe aqui pra fazer o teste. E aí eu vim,
meu pai me acompanhou...
Tendo respondido ao seu próprio chamado, e prosseguindo
corajosamente conforme se desenrolam as consequências, o herói
encontra todas as forças concretas e do inconsciente do seu lado.
Aí eu ligava, às vezes chorava, ligava pra casa dizendo ‘olha... quero...
não dá, não consigo me acostumar’ (...) mas meu pai me dizia ‘não,
arrisca, tenta mais um pouco, porque se você conseguir vai valer
a pena’. E através dessa força eu consegui me manter aqui. E fui
crescendo. Cada ano fui melhorando, até chegar aonde eu cheguei.
Passada essa etapa, o herói começa a enfrentar as agruras da
iniciação propriamente dita, ainda que fosse possível supor que as
dificuldades já tivessem sido postas. A vida do atleta é tida, pelo senso
comum, como uma sucessão de regalias, facilidades, fama e sucesso
financeiro. Visto apenas no momento do espetáculo esportivo, que
dificilmente excede a duas horas, o atleta é invejado na sua condição
vitoriosa, mesmo que venha a ser derrotado em alguns momentos de
sua carreira. Porém, o trajeto percorrido até a condição de titular de
um time profissional ou de uma Seleção Nacional é repleto de provas
de resistência e de persistência.

212
Cartografias do imaginário esportivo

A vida do atleta profissional, do profissional na acepção da palavra,


é muito difícil (...) O treinamento hoje é muito forte, a parte física
é hoje muito forte. O jogo que todo mundo vê é onde todo mundo
gostaria de estar. Aqueles 90 minutos, com 80 mil pessoas dentro
do estádio, em uma final, é uma coisa que todo mundo gostaria.
Mas o que antecede uma partida, o que antecede o sucesso é uma
coisa muito difícil e que poucos realizam...
Não bastasse as dificuldades inerentes à prática, a rotina de
treinos, concentrações e competições leva o atleta a um distanciamento
da família e da rotina de vida que o transforma em um sujeito excêntrico
e cheio de manias. Essa excentricidade, longe de ser patológica, é uma
condição vivida pela falta de tempo para as pequenas coisas, para o
cotidiano que remete as pessoas à sua condição humana.
Você passa, às vezes, 60, 70% do tempo da sua vida dentro de
uma concentração, ou jogando, ou viajando, longe da tua família,
aí você começa realmente a balançar (...) É complicado você
concentrar numa segunda-feira à noite, pra jogar numa quarta-
feira à noite, chega na quinta de viagem, concentra na sexta pra
jogar num sábado, pra chegar em casa num domingo de manhã.
Quer dizer, você passa dois dias da semana, nem em casa, duas
noites, duas ou três noites da semana só em casa.
Esse esforço todo acaba por ser justificado pela necessidade
de perfeição. Tudo pelo melhor desempenho, tudo pelo profissional.
Essa máxima coloca a escanteio relações pessoais e familiares em
detrimento do melhor desempenho e da melhor performance. Não
basta apenas ser bom. Há que ser o melhor. Mas é bom que não se
esqueça que a perfeição, mais que uma características heroica, é uma
condição divina.
Eu dou muito mais valor, e talvez isso seja um erro, eu dou muito
mais valor para o meu lado profissional do que meu lado pessoal. Eu
posso até errar no meu lado pessoal, mas no meu lado profissional
eu não admito errar. Eu procuro sempre buscar a perfeição no meu
lado profissional.
Depois de cruzado o limiar do chamado à aventura o herói
caminha por território desconhecido e cheio de perigos. Muitas vezes

213
Katia Rubio

ele é auxiliado, de forma encoberta pelo conselho, pelos amuletos e


pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado
antes de penetrar nessa região. Ou talvez descubra que exista um
poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-
humana, ainda que esse poder seja um valor próprio, interno e que seja
denominado motivo.
...as vezes tem outros que têm muito mais condições de estar
aqui do que eu, mas que não souberam... não aguentaram o que
realmente é a vida de um jogador de futebol (...) Então eu acho
que isso é uma coisa que vem de dentro. Eu acho que é uma coisa
muito íntima, e são poucos os que realmente conseguem chegar a
esse nível de competitividade.
No caminho da aventura estão provas que testam, a todo o
instante e de diversas maneiras a determinação em prosseguir. As
derrotas talvez sejam a principal forma de teste. Não apenas as que
se referem à competição em si – perder um jogo ou uma posição de
titular – mas aquelas diante dos poderes maiores da vida, que sacam
coisas e pessoas significativas do cotidiano e da vida, colocando o
indivíduo cara a cara com a finitude, independente do poder que já
tenha conquistado como herói.
Em 1993 eu perdi minha mãe (...) Eu estava jogando na Espanha
e era o ano que eu estava estreando como profissional. Era meu
terceiro ou quarto jogo (...) Eu tive que vir da Espanha pra cá,
pro Brasil, pro enterro da minha mãe (...) Esse ano talvez tenha
sido o ano mais difícil pra suportar tudo. A perda da minha mãe,
continuar aqui, não poder largar aqui, porque se para aqui as
coisas se atropelam dos dois lados...
É nesse trajeto também que emerge a importância de uma
companhia de confiança. Campbell (s.d.) fala em provação a partir
da qual o herói deve derivar esperança e garantia da figura masculina
do auxiliar, por intermédio de cuja magia ele é protegido ao longo de
todas as assustadoras experiências da iniciação, fragilizadora do ego,
o pai. Isso remete à ideia tradicional de que a iniciação combina uma
introdução do candidato nas técnicas, obrigações e prerrogativas de
sua vocação com um radical reajustamento de sua relação emocional
com as imagens parentais.

214
Cartografias do imaginário esportivo

Meu pai sempre pôde dar estudo a todos os filhos (...) Meu pai
sempre me ajudou muito, me apoiou bastante (...) Um diretor lá
do A. falou ‘vamos conseguir um contato com um conselheiro do
XX’ e me trouxe aqui pra fazer um teste. E aí eu vim, meu pai me
acompanhou, fiz todos os testes aqui, passei, e estou aqui até hoje.
Onze anos depois e ainda continuo aqui.
Diante dessa fala, o trajeto percorrido até o presente não
contempla as agruras por que passou esse atleta. A facilidade com que
a aventura é realizada, indica, segundo Campbell (s.d.) que o herói
é um homem superior, um rei nato. Ou seja, onde o herói comum
teria um teste diante de si, o eleito não encontra nenhum empecilho
e não comete erros. Essa conduta faz com que o objetivo desejado
seja arduamente buscado e realizado, ainda que a tarefa exceda às
limitações pessoais daquele que a executa.
Eu acho que é o objetivo de todo atleta, ou tem que ser, o objetivo
de todo atleta que joga numa grande equipe: você almejar a chegar
num Seleção Brasileira. E pra mim não foi de forma diferente. Eu
acho que é o ponto máximo que um atleta pode chegar. Difícil é
se manter (...) Mas é um sonho, sem dúvida. É uma realização
profissional. Isso é o ponto mais alto que um atleta pode chegar. E
eu ainda tenho como objetivo me manter, chegar a uma Copa do
Mundo, jogar uma Copa do Mundo, e ser penta campeão mundial.
Aí sim, eu acho que é parte de um ciclo completo que eu vou ter
realizado na minha vida.
Em busca desse ideal a semana de lazer e vida em comum tem
apenas duas ou três noites, o prazer das pequenas coisas se restringe à
realização sobre um tapete de grama e persistência é a palavra-chave
para a continuidade.
O temido retorno
O retorno, ou a última etapa para que o círculo completo se
forme, caracterizando o monomito, pode estar marcado por diversos
elementos como a recusa, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo
ou a liberdade para viver.
A recusa do retorno é marcada pela necessidade de o herói iniciar
o trabalho de conduzir de volta suas conquistas ao reino humano,
trazendo consigo os símbolos que motivaram sua aventura.

215
Katia Rubio

Pra mim é uma coisa marcante. Receber uma placa de 300 jogos
completados como titular do XX, colocar a braçadeira de capitão
do time, representar os jogadores, quer dizer, eu acho que, tudo isso
são coisas que, pra mim, vão ser inesquecíveis. Vão ser marcados,
coroados para sempre.
Na jornada heroica, essa atitude pode servir à renovação da
comunidade, da nação, do planeta ou de dez mil mundos, porém,
poderes mágicos, sobrenaturais ou mais fortes que a vontade de voltar
impedem que essa tarefa se complete. Assim como na mitologia Buda,
após seu triunfo, duvidou da possibilidade de comunicar a mensagem
de sua realização, santos faleceram quando estavam no êxtase celeste e
numerosos heróis fixaram residência eterna na bendita ilha da sempre
jovem Deusa do Ser Imortal Campbell, s.d., p.195), atletas no auge de
suas carreiras também não conseguem fechar seu ciclo, tendo como
explicação a mais variada gama de motivos.
No caso específico de Y. isso ainda não pode ser avaliado porque
ele vive o auge da carreira profissional e espera que ela seja longeva.
Eu ainda espero ter bons anos de vida como atleta para jogar. Mas
eu penso em fazer muita coisa no futuro (...) No mínimo mais
3 (anos) eu jogo, pelo contrato assinado que eu tenho (...) Eu já
pensei eu várias coisas que eu posso, poderia fazer...
O exercício de olhar para o futuro e programá-lo se faz necessário,
principalmente, pela consciência de que a carreira é breve, e o esforço
despendido para sua construção não permitiu que outros horizontes se
descortinassem ao longo de sua existência. No entanto, o que fazer ou
como fazer não parecem perguntas fáceis de serem respondidas para
quem tem toda sua energia investida no aqui e agora.
Eu acho que você tem que ter uma preocupação futura, né. Porque,
afinal de contas, nossa profissão é até certo ponto rentável, até um
determinado momento. Depois acaba (...) Eu acho que você tem
que estudar muito bem o que você vai fazer (...) Eu acho que você
tem que viver um pouco também o presente, porque o futuro ele é
muito importante pra você, mas eu acho que você tem que também
ter um pouco de conforto...

216
Cartografias do imaginário esportivo

A exploração da dimensão esquecida do mundo que conhecemos,


voluntária ou relutante, resume todo o sentido da façanha do herói.
Os valores e distinções que parecem importantes na vida normal,
desaparecem como terrificante assimilação do eu naquilo que antes
não passava de alteridade. Para o atleta, esse esforço se apresenta como
a dificuldade em viver e pensar em outras formas de organizar sua
vida fora do cenário onde acontece o espetáculo esportivo. Assim,
como para o herói que viveu a experiência do chamado e da aventura
retornar consiste em aceitar como real, depois de ter passado por uma
experiência da visão da completeza, que traz satisfação à alma, as
alegrias e tristezas passageiras, as banalidades e ruidosas obscenidades
da vida (Campbell, s.d., p.215), para o atleta, deixar o cenário
competitivo é se adequar a um mundo cotidiano do qual há muito ele
se afastou e se desacostumou a pertencer.
Eu não sei o que vai estar acontecendo no momento daqui a seis,
sete, sei lá quantos anos quando eu parar.
Essa sensação de desencantamento acaba se tornando um dos
principais motivos para que o atleta ativo relute em olhar para o futuro,
tempo em que a identidade presente não passará de uma lembrança. A
forma encontrada para driblar essa condição é pensar na continuidade
concretizada na perpetuação da própria espécie e se imaginar outro,
diferente e distante da condição atual.
Eu vou ter orgulho de um dia dizer para o meu filho que ‘tá vendo
filho, olha onde o pai chegou’. Ele não vai acreditar porque eu já
vou estar sem cabelo, gordo. Então tem que ter fotos, vídeo, pra
mostrar. ‘Olha, pra chegar numa Seleção Brasileira, campeão do
mundo, títulos conquistados, mais o reconhecimento de todos foi
preciso muito...
... Muito..., tanto..., que foi impossível completar a frase.
Ânimo, vigor, sacrifício, determinação, paixão, coragem poderiam
ser palavras que completariam essa ideia. Mas, talvez, nem todas elas
juntas seriam suficientes para expressar, de fato, o esforço despendido
nessa empreitada.
Talvez seja na opinião formada a respeito da crescente
importância que a mídia vem conquistando para o meio esportivo,
alterando o rumo da vida de clubes e atletas, que Y. traduza com

217
Katia Rubio

clareza o maniqueísmo presente no universo do esporte, umas das


características do regime diurno de imagens de Durand (1987). Esta
percepção, afirma-se no referencial de quem observa internamente o
fenômeno esportivo.
Eu acho que a mídia, ela cria os grandes ídolos para poder destruí-
los depois e ter notícia sempre.
Apesar de sintética, essa frase exprime a observação e avaliação
de atitudes e comportamentos, que tanto despertam a ira pela
impossibilidade do enfrentamento direto, quanto a sensação de
impotência diante do embate desigual, numa luta em que a mídia,
uma força poderosa e superior à sua própria e de outros que o
cercam juntos, escolhe o final que quer dar para esse episódio. Esses
elementos remetem a convivência, mesmo que indesejada, com a
oposição, seja por contrariedade ou contradição, que fundamenta
uma atitude conflitual. E o conflito vai além, uma vez que a força
da mídia, o ícone da pós-modernidade, também reforça esse jogo de
vida e morte, de construção e destruição.
...ele entrou, fez dois gols numa final, uma coisa super
importante, super válida, ele tem, acho, que 10 jogos pelo clube,
e a imprensa o estava colocando lá em cima. Se ele conseguir se
manter lá em cima sempre, é o protagonista de notícias boas.
Amanhã, se ele for mal, passar 2, 3, 4 partidas consecutivas, vão
dizer aquilo que usaram pra levá-lo até em cima. O tombo dele
vai ser da mesma forma.
Na luta incessante com as forças titânicas, o herói-atleta se vê
envolvido com duas formas de embate exaustivas e duradouras: a
interna, onde ele vive o confronto com suas limitações e motivações,
devendo sempre estar atento para que elas não cresçam e o dominem;
e a externa, na qual o confronto se amplia e alcança os meios de
comunicação e, por vezes, a torcida, que têm no esporte a fonte de
acontecimentos para abastecer, diariamente, páginas de jornais e
revistas ou horários na TV e no rádio. Lembrando que nem sempre
o que se procura são informações sobre o atleta e seu desempenho,
mas assuntos pessoais e outras notícias para satisfazer a curiosidade
de leitores e torcedores.

218
Cartografias do imaginário esportivo

Apesar de jogar um esporte coletivo, eu não consigo admitir


a derrota (...) Qualquer profissão que você tenha, você tem
que ser, tem que tentar ser o melhor (...) No futebol no Brasil,
principalmente, você tem tantos jogadores, você tem tantos
clubes que você tem que promover a cada dia um ídolo para o
povo, pra vender alguma coisa diferente (...) Às vezes, você dá
uma entrevista e a pessoa não consegue nem passar pro papel
o que você falou. As vezes a pessoa não tá nem sabendo qual
é o jogo do dia seguinte, contra que é, faz pergunta totalmente
errada e ainda taxam o jogador de futebol de burro.
Durand chamou o regime diurno de imagens de regime filosófico
da separação, da dicotomia, que tem prevalecido na história do
pensamento ocidental enquanto estatismo da transcendência oposto
ao devir temporal, distinção da ideia acabada e precisa, maniqueísmo
inato do dia e da noite, da luz e da sombra. O jogo entre os extremos
leva a uma tensão constante e a uma necessidade de luta, uma vez que
as polaridades carregam consigo valores que são postos à prova em
cada disputa. Superar o errado, vencer o mais fraco tornam-se vitais
para a continuidade da vida.
Eu trago comigo a vontade de vencer. Eu não aceito perder. Eu
não aprendi a perder (...) Eu acho que você tem que sempre ter
uma competição consigo mesmo (...) Você, às vezes, consegue
ultrapassar até o nível dos outros, mas você tem que competir
consigo mesmo pra evoluir cada dia.
A competição vitoriosa, bem como a conquista da condição de
ídolo, faz parte do esquema de elevação, ao qual pertencem os símbolos
ascensionais. A expressão ‘não se deixar abater’, ou seja, não sucumbir
diante da adversidade, tão usada no meio esportivo, é indicação da
necessidade de não cair, não esmorecer, manter-se de pé mesmo que o
chão falte, confirmando a estabilidade postural ereta do homem, como
gesto dominante do regime diurno de imagens. Associada a isso, todas
as formas de valorização, concreta ou simbólica, relacionam-se com a
verticalização e a negação da queda.
A carência de ídolos que a gente tem no nosso país é muito grande,
por isso é que de um dia para o outro uma pessoa vira um... uma
coisa assim... um ídolo nacional, de um dia pro outro...

219
Katia Rubio

Apesar do desgaste dessa luta ininterrupta o atleta não


abandona sua intenção de prosseguir, até que suas forças se esgotem.
Esse processo pode durar anos ou um instante, um insight, no qual
uma vida inteira pode ser revista e avaliada. E então, outros valores
e motivos são encontrados para que a vida tenha continuidade, quem
sabe ainda de maneira heroica, mas não mais com a competição como
motor da existência.

C. 4. Chegada à ilha da bem-aventurança


Dedicar toda uma vida a uma causa é digno de registro e reflexão.
Quando o fruto dessa dedicação se apresenta como trajetória vitoriosa
isso se reverte em alvo de identificação. Aqui a dimensão temporal
não pode ser medida apenas pelo relógio ou calendário, de maneira
linear. Uma vida pode ser apresentada em algumas décadas, capazes
de marcar, definitivamente, nesse lapso de tempo, as características de
um grupo ou os rumos de uma geração, incorporando valores passados
aos tempos futuros, em uma construção cíclica.
A atleta que ofereceu a história de vida que segue foi uma das
principais jogadoras de basquete que o Brasil já conheceu. Campeã
mundial e vice-campeã olímpica, dentre outras vitórias e títulos
conquistados, representa a fase de afastamento, que teve a sua trajetória
marcada pela iniciação competitiva precoce, a passagem por várias
equipes ao longo de sua carreira profissional e, considerado seu ciclo
cumprido – esportivo e pessoal – se retira das quadras para iniciar
uma nova etapa.
Como nos apresenta Campbell (s.d.), o retorno e a reintegração
à vida social é, do ponto de vista da comunidade, a justificativa do
longo afastamento. É neste momento que se inicia o trabalho de trazer
os símbolos da sabedoria de volta ao reino humano, onde a benção
alcançada servirá à renovação de sua comunidade ou grupo social.
O basquete feminino brasileiro apresenta características
singulares. Nascido e desenvolvido, principalmente em São Paulo,
mais precisamente no interior do estado, essa modalidade cresceu
basicamente à sombra dos times masculinos, com uma tradição de
grandes atletas e vários títulos históricos.
Fenômeno recente é a importação de times completos para
outras cidades e estados brasileiros que, possuindo patrocinadores

220
Cartografias do imaginário esportivo

fortes, contratam equipes já formadas para disputarem torneios ou


campeonatos eventuais, sem qualquer compromisso com as etapas de
formação, fundamentais para o desenvolvimento do esporte no futuro.
Segunda modalidade coletiva mais apreciada pelo público
brasileiro, até o advento do voleibol na década de 1980, o basquete
brasileiro assistiu a uma decadência do time masculino no início dos
anos 90, inclusive com a não classificação para Jogos Olímpicos,
e a ascensão do time feminino com a conquista do Mundial da
Austrália, em 1995, e da medalha de prata nos Jogos Olímpicos de
Atlanta, no ano seguinte.
Fruto desse contexto a vida de B. é marcada pela conquista,
primeiro de um espaço individual na modalidade e, depois, por um
lugar na galeria dos grandes nomes do esporte brasileiro.
Da iniciação precoce...
Remetendo ao percurso padrão da aventura mitológica do
herói representada na fórmula da unidade nuclear do monomito –
separação- iniciação-retorno –, vivido na separação do mundo, na
penetração em alguma fonte de poder e em um regresso à vida, a fim
de que todos possam usufruir das energias e dos benefícios outorgados
pelas façanhas do herói, a história de vida de B. reafirma esse modelo.
Desde muito cedo, ainda criança, B. gostava e procurava as
atividades esportivas, principalmente por seu caráter competitivo e
gratificador. Não havia qualquer discriminação quanto à modalidade
ou categoria. A motivação principal residia na competição em si.
Desde criança, eu sempre gostei de qualquer atividade esportiva
(...) Tudo que aparecia de competição eu estava participando (...)
Se tinha alguma competição que envolvia medalhas, que envolvia
prêmios, eu me inscrevia (...) Eu cheguei até a me inscrever num
torneio de xadrez porque eu vi que só tinha uma menina. Eu falei
‘bom, eu vou ganhar pelo menos uma medalha de prata.
A busca de premiação e o ímpeto competitivo, inerente à sua
condição de existência, como que se cumprisse uma profecia ditada
pelo oráculo, se amoldaram perfeitamente à cultura esportiva, que
valoriza a performance, reconhecendo os vencedores com uma ampla
variedade de prêmios. Mas, para que a profecia se realizasse, era

221
Katia Rubio

fundamental que se desse a conquista do espaço para a transformação


da menina em atleta.
A cidade (em que morava) era muito pequenininha e não tinha
muita coisa pra fazer (...) resolveram fazer um time feminino, só
que eles não me deixavam treinar porque as meninas todas tinham
14, 15, 16 e 17 anos. Eu tinha 10, e não me deixavam jogar, diziam
que eu era muito nova e iria me machucar (...) Todo treino eu ia lá
pedir pra treinar (...) ficava enchendo o saco do professor até que
um dia eles me deixaram treinar.
Da permissão para entrar para o grupo à demonstração de
habilidades não foi preciso muito tempo. Estavam dadas as primeiras
condições para a transformação radical de uma vida de criança, o
chamado da aventura e o início da jornada heroica. De acordo com
Campbell (s.d.), independente do estágio ou grau da vida, o chamado
sempre envolve o mistério de uma transformação – um ritual – que
equivale ao início de uma nova etapa, de uma nova vida. A referência
familiar é superada e, no horizonte, surge a expectativa de uma
realização de prodígios ainda não praticados pelo grupo de referência.
A partida original para a terra das provas representa o início da trilha,
longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos
momentos de iluminação.
Eu via as pessoas fazerem e eu fazia, eu copiava e fazia. Aí,
no primeiro jogo amistoso que esse time fez eu já fui titular
do time. Eu comecei jogando com as meninas de 15, 16 anos,
e eu tinha 10 (...) Com 12 anos começaram a surgir equipes
querendo me levar (...) Fui jogar em U. a convite do técnico,
que tinha uma esposa professora de Educação Física e duas
filhas que também jogavam.
Brandão (1999) afirma que o itinerário de conquistas e vitórias
do herói é marcado pela educação, que significa um desprendimento
das garras paternas do futuro benfeitor da humanidade e a ausência do
lar, por um período mais ou menos longo, em busca de sua formação
iniciática. Separando-se dos seus e, após longos ritos iniciáticos,
o herói inicia suas aventuras, a partir de proezas comuns num mundo
de todos os dias, até chegar a uma região de prodígios sobrenaturais,
onde se defronta com forças fabulosas.

222
Cartografias do imaginário esportivo

Meus pais me mandaram para U. para jogar. Na época foram


tachados como loucos.
Longe do núcleo familiar com apenas doze anos e vivendo
a rotina de treinos e competições, B. passou a ter a ausência como
sua companheira de horas por muitos anos. Esse estado reafirma a
condição de solitário imputada ao herói por Brandão (1999), que deve
estar preparado também para a luta, para os sofrimentos e, até mesmo,
para as perigosas catábase17 à outra vida.
Eu não queria, eu chorava todos os dias, porque eu achava que eu
não precisava brincar longe de casa. O basquete, para mim, era
um brincadeira. Eu não entendia porque eu tinha que estar numa
outra cidade, ficando longe da minha casa, longe da minha família,
da minha cidade pra brincar de basquete.
A importância parental neste processo é reconhecida como
fundamental para que as realizações pudessem se dar da maneira
como se deram, porém, com as ressalvas do excesso de autoridade
que isso demandava. De certa maneira, é justamente com o intuito de
fugir à interferência e segurança familiar e social que o herói parte de
seu locus original para um outro desconhecido e cheio e de perigos. É
apenas nessas condições que ele poderá passar pelas provas e tornar-se
apto a merecer a condição heroica.
Eles viam que se eu ficasse em Z. eu podia ser um talento (...) Eu
não imaginava que eles estavam pensando, há 29 anos atrás, que
eles tivessem a sensibilidade ou a bola de cristal para adivinhar que
eu poderia chegar, que o basquete poderia fazer parte da minha
vida como fez (...) Eu acho que não fosse o apoio dos meus pais,
talvez eu não tivesse chegado (...) Meus pais sempre escolhiam pra
onde eu ia (...) Em outros momentos, foi um pouco complicado
porque eles se achavam no direito de dar palpites e não admitiam
que eu, às vezes, jogasse mal.
Sua permanência em U. por um ano e meio foi marcada como
um período de iniciação efetiva no mundo do esporte, tanto no que se

O termo refere-se ao caminho trilhado abaixo, rumo ao Hades para a realização


17 

de alguma façanha, e o retorno com vida ao reino dos mortais, em uma escalada
para a luz.

223
Katia Rubio

refere à construção de uma rotina de treinos e competições como pelo


afastamento prolongado do núcleo familiar. Contudo, apesar dessas
características, aspectos que determinam a condição de profissional
como a concretização de um contrato, o pagamento de benefícios,
salários e prêmios, ainda demorariam a acontecer.
Quando eu fui pra U. eles me pagavam caderno, livros, essas coisas
de escola. Davam um dinheirinho por mês pra tomar sorvete, eu
morava na casa do técnico, quer dizer, todas as despesas eram dele
(...) O primeiro contrato que eu fiz já de forma mais profissional
foi em 1979 (cinco anos e meio depois).
Com a extinção desse time, surgiram convites em várias cidades
do interior do estado de São Paulo, mas B. se transferiu para aquela
que seus pais escolheram, marcando o início de uma longa jornada por
cidades do Brasil e do exterior. O critério adotado para a escolha foi o
de um lugar que oferecesse boas condições de vida e de futuro, tanto
pessoal como profissional. Isso representou uma proposta de estudo
em um bom colégio e o desfrute da tradição de um trabalho com
categorias de formação do basquete, significando um salto importante
na carreira de B. e na modalidade em nível brasileiro.
Fui para lá com 14 anos e foi a primeira vez que fui convocada
para a Seleção Brasileira. Eu era a mais novinha. Foi feita uma
renovação, tiraram as jogadoras antigas e foi aí que entraram as
meninas da minha geração.
Mais uma mudança de clube e mais uma transformação nessa
vida tão curta e já tão incomum. Depois de quatro anos jogando em
seu segundo time, B. recebeu uma proposta para se transferir para T.
onde defenderia o time que representava a cidade. Isso representou a
realização de seu primeiro contrato profissional e o envolvimento de
toda a família nessa mudança.
Fui para T., foi aí que já me deram um carro, pagavam o aluguel da
casa em que eu morava com a minha família (...) Quando fomos
para T. foi a família inteira e eles estão lá até hoje (...) Aí a coisa
começou a ficar mais profissional. Aí eu comecei a perceber que o
basquete poderia ser alguma coisa mais profissional.
Depois de três outros clubes e três novas residências, B. se
estabelece em uma cidade que, acredita, é seu lugar de parada, sua
224
Cartografias do imaginário esportivo

referência espacial e o seu local de repouso no descanso merecido. A


necessidade de fixação em um lugar já é o sintoma de uma marca que
destaca, sobremaneira, a condição de ser errante que caracteriza o atleta
de maneira geral, mas principalmente, onde o esporte é precariamente
organizado, obrigando que atletas e comissões técnicas se submetam
às mais variadas condições de trabalho a cada final de temporada.
Resolvi fazer meu QG lá (...) Eu achava que eu tinha que ter um
lugar pra me fixar, eu não aguentava mais ficar nessa vida de
cigana, a cada hora eu estava em um lugar diferente. Eu queria
ter um lugar.
Outra marca fundamental na vida dessa pessoa já tão cheia de
sinais foi a falta de experiências próprias da etapa de desenvolvimento,
como o contato com outros adolescentes e com a família. A falta,
vivida no passado e elaborada no presente, é classificada como roubo.
A veemência com que a palavra é empregada denota toda a força
afetiva implicada na sua expressão. Reconhece nessa abstinência,
entretanto, o motivo para o sucesso que aconteceu muito cedo e
durou por longos anos.
Foram 27 anos dedicados ao basquete. Me roubou muito da
minha vida pessoal. Roubou muito o convívio com a família, com
os amigos, porque eu vivia mais com as pessoas da equipe que
com as pessoas que me cercavam. Então, é bastante complicado
porque te rouba... já roubou a minha infância, roubou a minha
adolescência. (...) Eu não ia a bailes, não namorava. Eu acho que
é por isso que deu certo.
Dentre as características que difere o herói dos demais mortais,
segundo Campbell (s.d.), está o fato do primeiro ser considerado um
homem superior e sua vida ser uma sucessão de testes.
Ainda que muito tenha sido realizado, muito deverá ser feito até
que toda a jornada seja cumprida. E nesse percurso não estão apenas as
passagens vitoriosas e feitos gloriosos, mas inúmeras situações em que
a derrota é experimentada e incorporada como uma das possibilidades
da vida. E se visto desta maneira, perder pode ser tão pedagógico como
meses de treinamento.
O esporte te ensina para a vida, porque a vida é uma competição.
Você está sempre querendo se preparar para estar bem, para

225
Katia Rubio

vencer. Mas você aprende, também, que as derrotas, têm


determinados momentos que são importantes para você parar
e pensar que alguma coisa não está certa, que você tem que
mudar algumas atitudes.
Refletir com relação à própria atitude implica em tornar-se
sensível ao externo, ao coletivo. A consciência da posição de liderança
que construiu e exerceu ao longo dos anos de carreira em clubes e
seleção fez com que B. fosse respeitada por esse atributo, por não utilizar
dessa condição em benefício próprio. Seu diferencial está no plano da
realização e não nos benefícios adquiridos por suas conquistas.
Brandão (1999) afirma que o mito heroico revela, ao longo de
todo o seu desenvolvimento, um esforço por libertar-se dos vários tipos
de submissão, esforço esse percebido desde as fantasias individuais
da criança quando da busca de sua emancipação. Nesse sentido, o
‘eu’ pueril se comporta como o herói do mito e, na realidade, o herói
deve ser interpretado sempre como um ‘eu’ coletivo, dotado de todas
as excelências.
Ser líder não é fácil, porque, às vezes, as pessoas esperam muito de
você e tem dias que você não está correspondendo ao que esperam
(...) É uma responsabilidade enorme porque você não tem o direito
de estar mal em um dia (...) Eu nunca fiz treinamento diferente,
mesmo agora com 37 anos, eu fazia a mesma coisa que uma de 18
ou 20 anos faziam. Nunca quis ter regalias de treinar menos ou
mais, ou de forma diferenciada.

... à longevidade na aventura


A vida de atleta de B. foi construída e assentada sobre patamares
que envolveram uma enorme dedicação e uma grande paixão pelo
basquete, a ponto de não conceber qualquer outra opção de vida que
não essa. O sinal de que era hora de parar veio no momento em que um
desses pilares ruiu, expondo a necessidade do fechamento de um ciclo,
ainda que seu corpo apresentasse sinais de vitalidade e resistência para
mais alguns anos de carreira.
Eu não tive chance de escolher porque eu comecei com 10 anos.
O basquete chegou muito cedo na minha vida (...) A gente teve
férias e no momento de voltar eu dei um refugada pra ter que

226
Cartografias do imaginário esportivo

voltar a treinar. Eu pensei ‘Ah, treinar...’ Eu nunca tinha sentido


isso, achei melhor parar e pensar. Já estava há dois anos fazendo
terapia, me preparando para esse momento, porque achava que
não estava longe.
O recolhimento de B. foi precedido de uma preparação que
envolveu um redimensionamento de suas atividades e da própria
aventura. A descoberta de novos valores e a redescoberta do que
lhe era caro no passado, porém impossível de gozo, puderam
paulatinamente ocupar o espaço reservado com exclusividade a uma
opção de vida até então. Isso significou enfrentar o retorno sem fugas
mágicas, nem negações.
Os valores de cada época, nos último anos, foram mudando o
que era o esporte na minha vida. Quer dizer, eu já tinha o meu
tempo de lazer, meu tempo para o lado afetivo. Eu não vivia mais
integralmente o basquete. O basquete era um complemento.
A parada como opção e não como imposição imputou a essa
escolha um valor fundamental para o desenvolvimento de uma nova
identidade e a realização de projetos já pensados no passado. Encerrar
a carreira de atleta representou, em um primeiro instante o repouso
do guerreiro, as férias tão desejadas e, depois, o engajamento em
ações que visassem a um compromisso social, não apenas individual,
reforçando a afirmação de que com o retorno do herói chegam também
à comunidade as benções alcançadas em sua jornada.
Campbell (1990) afirma que a sociedade tem necessidade
de heróis porque ela precisa de uma constelação de imagens
suficientemente poderosa para reunir, sob uma mesma intenção,
todas as tendências individualistas. Daí o herói público ser sensível
às necessidades de sua época.
Eu ter escolhido que tinha que parar foi uma escolha. O poder da
escolha é uma coisa que nós temos que ter (...) Logo que parei de
jogar, foram umas férias ótimas que eu fiquei sem fazer nada (...)
Eu já estava cansada de não trabalhar e eu já tinha um projeto
de trabalhar com crianças (...) Os atletas que param de jogar vão
administrar um time, que tem patrocínio e ganham super bem.
Ninguém quer trabalhar com a base ganhando pouco (...) É claro
que o dinheiro é super importante, mas se ninguém se propor a

227
Katia Rubio

fazer o trabalho de preparar o futuro, cada vez mais a gente vai


ficar sem futuro.
A mudança de função representou uma alteração de papéis. Se
como atleta a organização e liderança do time era uma prerrogativa
inquestionável sua, hoje, na coordenação de uma equipe de
profissionais em uma instituição voltada para a formação esportiva
de crianças, B. se vê obrigada a exercitar o seu aprendizado sobre
liderança a partir de um outro referencial. Assim como na quadra,
hoje em seu escritório ela continua a desfrutar e a empregar entre
o grupo com o qual trabalha as virtudes inerentes à sua condição e
natureza heroica: a timé e a areté.
Ali na quadra dependia bastante de mim. Eu sabia do que eu podia
e do que eu era capaz. Aqui eu dependo de cem funcionários e de ter
a autorização dos outros para o que eu vou fazer (...) No trabalho
em equipe você tem que estar sempre motivando e incentivando as
pessoas que estão com você. Ninguém vive sem motivação, mesmo
aquele que é super bom. Todo mundo gosta de ser elogiado, de ser
incentivado.
A compreensão de que a identidade de atleta seria passageira e
breve levou B. a ter uma relação com o esporte de muito profissionalismo
e pouco deslumbramento. Aponta que a construção dessa conduta se
deu por influência dos pais e pela maturidade adquirida ao longo de sua
trajetória, maturidade que implicou em comportamentos singulares
dentro do mundo esportivo, como o recolhimento de eventos sociais
desnecessários e o desprezo pelo marketing sobre sua imagem. É certo
que o recolhimento das manchetes de notícias não esportivas tinha
uma relação direta com o planejamento futuro de seu afastamento do
basquete e da construção de uma identidade, desligada das quadras e
das competições.
Meus pais sempre falaram que o que valia era o que eu era como
pessoa. Isso era o que iria ficar para a vida toda. O fato de ser atleta
era uma coisa passageira (...) Nunca gostei muito de aparecer, sou
uma pessoa mais reservada. Se eu deixar de ser o que sou e de dizer
o que eu penso, falar só o que querem que eu fale, eu vou deixar de
ser eu. Então não quero marketing nenhum para mim.

228
Cartografias do imaginário esportivo

A passagem pelo limiar do retorno e a indicação de que o círculo


da unidade nuclear do monomito se fechou pode estar expresso
no encerramento da vida de atleta de B., bem como no trabalho
institucional que passou a realizar. Numa demonstração de que a
função do retorno passa a ser cumprida ela declara sobre o que esperar
do esporte para as crianças.
O que eu tenho colocado para os professores é que eu não quero que
eles formem aqui 500 mil talentos, grandes atletas, porque é papel nosso
orientar a pessoa, estar orientando, dando a oportunidade para que,
se ele não for um grande atleta, ele possa ser um grande profissional
em outra área e um grande homem ou uma grande mulher (...)
A ideia principal é trabalhar, dando não só a oportunidade para que
eles cheguem a algum lugar, mas também mostrando que o importante
de tudo isso é a pessoa, o ser humano.
Apesar disso, sintetiza na vitória as boas lembranças dos momentos
marcantes da carreira. Justifica essa condição como a coroação de
anos de dedicação e trabalho para um ideal. De certa maneira, é como
se todas as provações do caminho fossem incorporadas e aceitas como
necessárias, conferindo ao treinamento e às competições um valor
iniciático. Ressalta, ainda, a desvalorização daqueles que lutam mas
que não chegam entre os primeiros, o endeusamento daqueles que
chegam à condição de medalhista olímpico e aponta essa condição
como um valor social.
De bom (um episódio) é a hora que você vê todo o seu empenho e
sacrifício ser recompensado, que é o título. Sempre o título. A única
medalha que vale é a olímpica. Você se contenta com o bronze ou
com a prata. Agora, se você for segundo lugar aqui, em qualquer
campeonato, já não tem o mesmo valor que tem ser campeão (...)
Quer dizer, no final, o que vale mesmo é o sucesso.
Olhar para o futuro, tendo como referência o passado, não
apenas para incorporar as vitórias, mas também para aprender com
as derrotas, parece, de fato ter se tornado um lema. O bom e o ruim,
quando destituídos de juízo de valor, podem vir a se tornar grandes
fontes de aprendizagem. E aproveitando a experiência vivida naquilo
que se referiu ao empenho dos próprios pais na sua carreira de atleta,
e do quanto isso pode interferir na vida de crianças que se iniciam na

229
Katia Rubio

prática esportiva, B. passa a se preocupar com isso tanto quanto com o


esclarecimento do que implica fazer essa opção. Ou seja, que a carreira
esportiva é edificada em dedicação, abstinência e muita vontade de
chegar ao objetivo, e que dois caminhos se apresentam ao final daquilo
que ela chama de funil: o sucesso e, pior que o fracasso, a decepção.
Pai e mãe muitas vezes transportam para o filho o que eles gostariam
de ser e, às vezes, a criança não tem o talento que eles acham que
ela tem. Para todo pai e toda mãe, o filho é o máximo (...) Não
pode ter cobrança, não pode impor uma coisa que, de repente, não
é a verdade, não é a realidade (...) Muitas atletas deixaram de jogar
muito antes, talvez pela pressão, talvez pela falta de estrutura de
não saber que a caminhada é dura, a caminhada é árdua (...) É um
caminho que tem que ter renúncia.
Por fim, fala sobre e do esporte brasileiro do alto de seus 27
anos de carreira. Perdida a inocência e o encantamento de um
mundo aparentemente mágico, B. aponta para questões nevrálgicas
relacionadas ao pleno desenvolvimento de muitos valores atléticos.
Entende que existe uma manipulação da vida do atleta e que essa
pessoa é mais do que um corpo perfeito e habilidoso.
O Brasil tem a mania de fazer heróis do dia pra noite e desfazer os
heróis também sem dar uma condição e uma preparação adequada
para a cabeça dessas pessoas (...) Eu acho que o grande problema
do esporte no país, entre muitas coisas, é a falta de preparação
psicológica (...) Brasileiro tem mania de carregar o país nas costas.
Todo mundo se propõe a fazer as coisas da melhor maneira
possível. Se não dá certo, você não pode se sentir culpado porque
estava fazendo aquilo por um país todo.
A tranquilidade com que é feita essa afirmação indica que o
afastamento da carreira de atleta ou o fechamento do ciclo heroico
vivido no desempenho desse papel pôde ser cumprido e assimilado
como uma parte da história de vida de B. É uma parte, ainda que
em alguns momentos pudesse ter sido o todo, e permite a emergência
de uma nova condição incorporando todos os valores aprendidos e
construídos ao longo desse período.
Campbell (s.d.) aponta que um dos problemas do herói que
retorna consiste em aceitar como real, depois de ter passado por

230
Cartografias do imaginário esportivo

uma experiência da visão de completeza, que traz satisfação à


alma, as alegrias e tristezas passageiras, as banalidades e ruidosas
obscenidades da vida.
É indubitável que poucos são aqueles que podem experimentar
a plenitude de uma vida de realizações como B. e que teve também a
condição rara de escolher o momento de iniciar um novo caminho. E,
se em um determinado momento, aquilo que a aproximava do herói
era o combate singular, a luta, o último ato de seu drama até aqui é
que irá distingui-la em direção oposta: longe de um final trágico, o
que B. promete é uma longa vida de dedicação ao esporte, vinculada à
formação de crianças e jovens que poderão vir a se tornar atletas, mas
que serão, antes de tudo, cidadãos.

C. 5. Regresso e ventura
Cumprindo o percurso padrão da aventura mitológica do
herói, representada na fórmula separação-iniciação-retorno, o atleta
que experimentou a aprendizagem, o processo de treinamento e o
ciclo de conquistas nas grandes competições, também vive o final
da jornada e o regresso. Diferentemente daqueles que competem até
não mais terem força física ou porque a idade já avança, há aqueles
que iniciam seu retorno por causa de impedimentos que minam
suas forças.
Isso, muitas vezes, não significa que a guerra tenha sido perdida
ou que os ânimos tenham esmorecido diante da adversidade. Retirar-
se do epicentro das atenções do mundo esportivo – piscinas, quadras,
pistas, campos e tatames – na condição de atleta competitivo, não quer
dizer em absoluto que o esporte, ou a aventura do atleta, tenha sido
abandonada. Alguns conseguem completar o ciclo nessa condição e
voltar para o cotidiano entre os pares para viver o retorno, usufruindo
das benesses da ‘Ilha da bem-aventurança’. Outros completam
parcialmente a jornada e a retomam de uma outra condição, seja
enquanto técnico ou dirigente, como uma necessidade de cumprir
algum ponto professado pelo oráculo ou de vingar companheiros, e a
si próprio, em alguma batalha perdida.
Campbell (s.d.) afirma que o retorno do herói, ou sua
reintegração na sociedade, é indispensável à contínua circulação da

231
Katia Rubio

energia espiritual no mundo, e do ponto de vista da comunidade,


é a justificativa de seu longo afastamento. Para o herói, isso pode
se afigurar como o requisito mais difícil, porque se ele conseguiu
amealhar conquistas e experimentar a completude, há vários perigos
a enfrentar: da incompreensão do caminho percorrido à incapacidade
de aceitação das dádivas distribuídas.
A história de vida que ilustrará a fase de recolhimento refere-se
a um atleta, que experimentou a façanha de conquistar os títulos mais
almejados em qualquer modalidade esportiva: uma medalha olímpica
e outra mundial, ou seja, seus feitos são raros entre o incomum. Essa
distinção, contudo, não garantiu a sua longevidade no esporte por
motivos de ordem superior à sua vontade.
Isso reforça a condição própria do herói que, apesar de toda
sua coragem e energia, está ele também sujeito às forças de desígnios
maiores. Acima dele estão os deuses, e contra a força e a ira dos
deuses está apenas o poder de seus iguais. É por isso que Héracles,
mesmo contando com uma condição privilegiada entre os heróis,
amarga a submissão aos caprichos de Juno.
Assim como os heróis mais intrépidos tiveram suas vidas e
trajetórias marcadas por variadas provas, necessitando demonstrar
todo seu vigor como sua inteligência, desviando-se ao longo da
jornada de sua trajetória inicial, esse atleta encontrou à sua frente
forças mais poderosas que a fúria dos deuses: o poder da burocracia
da Confederação Brasileira de Judô.
Comandada ao longo de quase três décadas por um clã
que se revezava entre parentes próximos, essa entidade marcou
algumas gerações de atletas do judô brasileiro com procedimentos
obscuros na seleção e convocação de atletas, no gerenciamento e
administração dos recursos destinados a treinamentos e competições
e interferiu diretamente no rumo da vida de vários judocas. Apesar
dos desmandos e arbitrariedades, o judô foi a modalidade que mais
trouxe medalhas para o Brasil ao longo de sua história olímpica e
vem mantendo uma tradição de renovação de valores competitivos,
mesmo com a ausência de incentivos e de uma política cristalina
sobre os rumos da modalidade.
Como a superação da adversidade é uma das características
mais marcantes da vida do herói, com esse senhor dos tatames não

232
Cartografias do imaginário esportivo

poderia ser diferente.


E assim é contada a sua estória.
A afirmação da escolha
Indicado como terapêutico, o esporte é incorporado à vida de
W. muito precocemente. É possível classificar como incorporado por
não ter sido, em princípio, uma escolha, mas uma conquista familiar
para serenar os ânimos de um garoto intrépido, ainda que a intrepidez
na primeira infância seja comumente caracterizada como reinação ou
traquinagem. O envolvimento da família foi fundamental para que o
chamado pudesse ser despertado e perseguido, apesar da tentativa de
recusa, e o caminho que começara a ser trilhado não fosse abandonado.
Comecei a fazer judô com 4 anos, por indicação do pediatra (...)
eu era um garoto agitado e iria gastar energia (...) Eu tinha um
irmão mais velho que acabou entrando para me incentivar. Ficou
uma semana, duas e então eu entrei. Entrei, fiz um tempo e quis
sair. Saí, fiquei nove meses fora e quis voltar. Aí minha mãe falou
‘se você voltar não sai mais’ (...) Aí voltei, fiz uma semana e quis
sair, mas minha mãe não me deixou mais sair. Aí eu fiquei.
O método de ensino utilizado nesse período foi fundamental para a
permanência no universo do judô, caracterizando desde esse momento a
importância do processo de ensino-aprendizagem e do papel do técnico/
professor. A didática utilizada é recordada como elemento reforçador
da resposta ao chamado, e a coexistência do prazer com a disciplina é
afirmada como possível, e inferida como necessária.
Brandão (1999) destaca a importância da educação que o herói
recebe em seu itinerário de conquistas e vitórias, apresentando a etapa
inicial da vida como fundamental para o seu desenvolvimento futuro.
Eu tive a sorte de ter um professor, foi o professor J., que ensinava
a gente. A aula era uma grande brincadeira e a gente aprendia
brincando. Era uma diversão, era um prazer estar ali. Embora
fosse um trabalho de muita brincadeira, sempre tinha uma rigidez
no esquema de treinamento em relação à disciplina. Mas, mesmo
assim, sempre foi um grande prazer.
Durante um longo período essa rotina se manteve, até que W. se
deparasse com a indicação do primeiro portal da iniciação. No início

233
Katia Rubio

da adolescência, já submetido a uma rotina diária de treinos e de


preparação física leve, começou a participar de competições e passou
a observar que, embora treinando de maneira semelhante a outros
colegas, não era capaz de obter os mesmos resultados. Essa capacidade
de comparação e reflexão permitiu que fosse tomada uma decisão que
iria alterar profundamente o curso de sua vida.
Um dia eu me perguntei, acho que eu devia ter uns 14 anos, eu me
deitei em casa à noite e perguntei: ‘Puxa, por que eles conseguem
e eu não consigo? O que eles têm que eu não tenho? Por que eu
não consigo ganhar os mesmos títulos?’ Aí resolvi que eu tinha que
treinar mais para conseguir os mesmos resultados (...) Aí comecei a
treinar em dois períodos, a fazer preparação física e foi questão de
tempo, os resultados começaram a aparecer.
Campbell (s.d., p.26) define o herói como sendo o homem da
submissão autoconquistada, submissão apresentada em forma de
enigma cuja solução, em toda parte, constitui a virtude primária e a
façanha histórica do herói. Citando Toynbee, que utiliza os termos
‘separação’ e ‘transfiguração’ para descrever a crise por intermédio
da qual é atingida a dimensão espiritual mais elevada que possibilita
a retomada do trabalho da criação, Campbell apresenta a separação
como uma radical transferência da ênfase do mundo externo para
o mundo interno. Em outras palavras, a primeira tarefa do herói
representa a sua retirada dos eventos cotidianos de valores de menos
importância e o início de uma jornada pelas regiões causais da psique,
onde de fato habitam as dificuldades, para iluminá-las e utilizá-las em
favor de si próprio.
No caso de W. a transfiguração vivida é desencadeada por um
questionamento interior e uma determinação própria, comportamento
aliás que irá marcar toda sua trajetória. Talvez o que possa ser
caracterizado como agente externo fosse a performance de outros
atletas de sua categoria que conseguiram obter resultados que estavam
também ao seu alcance. Contudo, a assimilação dessa possibilidade faz
brotar o desejo de sua auto-realização e da procura de seu caminho,
por meio da busca da beleza de sua escolha – a estética – e considerando
as vitórias e as derrotas elementos necessários para a construção de um
caminho glorioso – a ética.

234
Cartografias do imaginário esportivo

Independente da vitória ou da derrota, o que mais me satisfazia


era a beleza plástica dos movimentos (...) Muitas vezes eu perdia,
mas conseguia apresentar um judô dentro de uma perfeição que
eu imaginava que deveria fazer. E, às vezes, eu ganhava e não
conseguia lutar tão bem e saia insatisfeito, incompleto (...) o grande
campeão não é aquele que ganha todas, mas aquele que tem, às
vezes, uma carreira pautada por diversas derrotas e ele utiliza essas
derrotas para se corrigir.
A busca de sua bem-aventurança passa pela valorização dos
meios tanto quanto dos fins. Diferentemente da grande maioria dos
atletas que valorizam a competição como o momento supremo do
prazer atlético, W. sente uma grande satisfação pelos períodos de
treinamento, situação em que se liberta do que a competição tem de
pior: o confronto com a ansiedade, com o medo e com a impotência
imposta pela derrota.
Muitas vezes sentia mais prazer em treinar do que em competir.
Porque a competição envolve uma série de coisas. A tua
sensibilidade fica à flor da pele. Você sente ansiedade, você sente
medo. Todo mundo sente medo (...) de entrar, de perder, não de se
machucar. O medo de perder e, talvez, de os outros te olharem de
maneira diferente, ou até você notar que você não é realmente tudo
aquilo que você realmente pensa que é (...) O treinamento te dá a
opção de entrar livre isso tudo.
E no encalço de sua bem-aventurança, além de contar com a
presença constante do técnico que o acompanhava desde criança, com
a determinação para permanecer no caminho e com a impetuosidade
necessária para enfrentar os grandes desafios, W. passou a perseguir
seu ideal. Para tanto, foi preciso sonhar e realizar. E sonho e realização
nunca mais se separaram.
Campbell (1990) afirma que o grande problema na vida de
qualquer jovem é encontrar modelos que sugiram possibilidades e
que, ao escolher uma vocação, o que se escolhe é um modelo, que em
pouco tempo se ajustará a quem o escolheu. E acredita que viver a
vida que existe potencialmente em si é a grande verdade do Ocidente:
cada um é uma criatura completa, única e, se for o caso, de oferecer
alguma dádiva ao mundo, ela deverá ser extraída de sua própria

235
Katia Rubio

experiência e da realização das próprias potencialidades, e não de


quem quer que seja.
Eu sempre fui meio metido assim. Eu me lembro que na época das
Olimpíadas de Los Angeles, eu tinha 16 anos na época, ainda ia
fazer 17 (...) eu cheguei para o meu professor e disse ‘olha, eu queria
treinar porque nas próximas Olimpíadas eu quero estar lá’. Então ele
falou ‘então, vamos treinar’. Eu lembro que saí da minha casa e fui
até a academia só pra dizer isso pra ele (...) No judô você precisa do
outro companheiro para treinar, não dá pra treinar sozinho. Só que
é difícil você ter alguém que mantém o mesmo ritmo de treinamento
(...) Como (o técnico) era muito estudioso, tinha muitos livros sobre
o judô de outros países, ele tinha um japonês que mostrava uma
barra de ferro, e os atletas do Japão treinavam ali. (...) Meu pai
arrumou uma oficina e fez aquela barra de aço. Eu amarrava uma
faixa, simulava que era outra pessoa e fazia as entradas da minha
técnica (...) E eu fazia mil todos os dias. As vezes chovia e eu fazia
debaixo de chuva. Eu tava resfriado, eu não tinha dia.
Contudo, a realização de um caminho pautado no esforço
pessoal não excluiu a disposição pela construção coletiva, que
marcará, definitivamente a vida de W. e que será comentada em
momento oportuno.
A certeza de que o caminho escolhido estava correto veio com
a convocação para a primeira competição internacional. Fruto de
anos de treinamento e de uma dedicação que não respeitava relógio
ou calendário, essa situação descortinou duas novas realidades: a
capacidade de estar entre os melhores e o poder da força da burocracia.
Para enfrentar a primeira, a estratégia de treinamentos estabelecida era
suficiente tanto quanto a força de Héracles; já a segunda, a força física
de nada resolveria se uma estratégia astuciosa, como as utilizadas por
Odisseu, não fosse posta em prática, ainda que também envolvesse
força muscular e de vontade.
Campbell (s.d) apresenta a ideia da partida original para a terra
das provas como o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa,
das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação.
Ia ter uma seletiva para o Campeonato Pan-Americano Juvenil
(...) meu adversário era dois anos mais velho que eu (...) e o pai

236
Cartografias do imaginário esportivo

dele era presidente da Federação X. Então eu lembro que durante


toda a seletiva era uma pressão muito grande para esse menino
ganhar (...) E eis que na final chegou eu e ele. Naquela época não
existia placar, ficavam umas pessoas anotando e era uma coisa
muito armada. Quando eu entrei pra fazer a final pensei comigo
(...) ‘Para eu conseguir ir pra esse campeonato eu vou ter que jogar
esse cara umas três vezes de ipon18 e mesmo assim rezar muito’ (...)
Entrei e consegui. Joguei duas vezes de ipon, fora outros pontos
menores, e ficou bem nítida a minha vitória. Mas independente
disso eu tinha medo de não ir. Mas depois a Federação que eu
representava tinha força política e eu acabei indo, com méritos, e
acabei sendo campeão.
Daí em diante a sucessão de campeonatos e títulos não parou
de acontecer. Até que chegou o ano de 1988 e com ele as Olimpíadas
sonhadas quatro anos antes, responsável pela transformação de sua
maneira de treinar e olhar para o futuro.
Um episódio, porém, altera radicalmente seus planos e marca
esse momento pelo resto de sua vida: a vaga para ir a Seul é disputada
por W. e seu irmão mais velho, titular da equipe brasileira na época,
escolhido como o representante brasileiro para os Jogos. Apesar
do reconhecimento dos méritos do irmão, tido como um ídolo, W.
se sente abater emocional e fisicamente, tanto pelo frustração da
não realização de seu objetivo como pela pressão social de ser tão
próximo ao titular. Mesmo com todos esses elementos, em nenhum
instante uma luta fratricida foi considerada, fugindo à hybris e às
Erínias. Esse episódio, pode ser considerado mais um dos portais da
iniciação na vida desse herói.
Em 88 eu acho que foi um dos piores momentos que eu tive na minha
carreira, porque esse negócio de não ir pra Olimpíada, embora eu
tivesse interiormente aquela coisa que realmente meu irmão era
mais forte (...) Até hoje as pessoas dizem que ele foi um dos atletas
mais técnicos que o Brasil já teve. Todo mundo que lutava com
ele sentia muita dificuldade (...) Embora eu tivesse... não tinha

Ipon é considerado no judô o golpe perfeito, que confere a quem o desfere a


18 

pontuação máxima e põe fim à disputa.

237
Katia Rubio

aquele negócio de aliviar. Mas eu acho que, emocionalmente, eu


jamais iria aceitar uma vitória sobre ele (...) Eu chegava em alguma
competição, na época da Olimpíada, ou um pouco antes, e as
pessoas não falavam nem bom dia, nem boa tarde e já perguntavam
‘E teu irmão? Tá treinando? Tá bem?’ E aquilo começou a me abater
emocionalmente (...) Acabei logo em seguida tendo uma contusão
no joelho e demorei uns dois, três meses para me recuperar. E eu
só consegui me reerguer emocionalmente no final do ano de 88.
Demorei uns três, quatro, cinco meses e então fui campeão paulista
universitário e campeão brasileiro universitário, e consegui a vaga
para disputar o campeonato mundial universitário.

A dificuldade como parte do ritual


Campbell (s.d.) afirma que em sua forma-vida o indivíduo
é necessariamente mera fração e distorção da imagem total do ser
humano. Ele é limitado em seu gênero, a cada período de sua vida, e
pelo papel que desempenha na vida. Por conseguinte, a totalidade – a
plenitude como ser – não se acha no membro separado, mas no corpo
da sociedade como um todo; o indivíduo pode ser apenas um órgão. Do
seu grupo ele derivou a cultura. Do passado, a herança genética que lhe
forma o corpo. Se esse indivíduo se atrever a apartar-se, por meio de
ações ou em termos de pensamento e sentimento, ele romperá o vínculo
com as fontes de sua existência. Portanto, a essência de cada um de
nós e do mundo é a mesma. Assim como o caminho da participação
social pode levar, no final, a uma percepção do todo no indivíduo, assim
também o exílio leva o herói a encontrar o eu em tudo.
A continuidade da vida de W. no esporte é marcada por um
episódio público que o fez desafiar, juntamente com mais outros
judocas, a autoridade e o poder da Confederação Brasileira de Judô.
Diante de desmandos que os deixaram à parte do campeonato mundial
universitário e de outros eventos importantes, das constantes atitudes
e manobras que os prejudicavam, atletas da seleção nacional negaram-
se a disputar campeonatos internacionais representando o Brasil,
enquanto alguma providência não fosse tomada para que a situação em
que o judô se encontrava pudesse ser alterada. A tirania foi afrontada,
e o preço dessa atitude foi pago com a própria carreira.

238
Cartografias do imaginário esportivo

Em setembro de 89 teve uma briga dos atletas com a Confederação.


Nós nos negamos a disputar torneios internacionais, enquanto o Z.
fosse presidente da Confederação. E aí nós só voltamos em janeiro
de 92. É a maior mágoa que eu tenho do esporte. Eu tinha 21 pra
22 anos e eu acho que era o momento único na vida de um atleta,
porque você está começando a atingir o auge da tua carreira (...)
O afastamento das competições foi um momento de dor e marcou
não só a minha vida como a de todos que se afastaram com a gente
(...) Eu, o Y. e o X, nós temos uma ligação hoje, em decorrência
daquela vivência toda, que é uma irmandade.
As marcas desse período não se restringiram apenas à vida de
atleta. O mesmo irmão que conseguiu a vaga para os Jogos Olímpicos
de 1988, um modelo de atleta e de indivíduo, morre tragicamente,
provocando profundas transformações na vida de W., obrigando-o à
maturidade compulsória.
Aquele momento foi muito importante para que eu depois
conseguisse ganhar as Olimpíadas, porque foi um momento que
eu fui obrigado a amadurecer como pessoa. Foram momentos de
muita dor que acabaram trazendo um crescimento interior.
A compensação para a dor estava no caminho seguido desde
a infância: o judô. Mesmo sabendo que as Olimpíadas de Barcelona
se aproximavam e que a continuar aquela situação ele estaria fora
também dessa competição, o chamado calou mais fundo, e mesmo
sem poder prever o futuro estavam sendo criadas as condições para o
desfrute do esforço.
Voltei a treinar num ritmo que me fazia bem. Treinar era uma coisa
que pra minha cabeça funcionava bem. Só que quando eu percebi
que estava bem e que faltava oito ou nove meses pras Olimpíadas
e que eu não ia lutar... (...) Mas aí fizemos um acordo com a
Confederação e, em janeiro de 92, nós voltamos a competir.
A vitória olímpica foi vista como uma conjunção de fatores que
envolveram a superação do isolamento, o enfrentamento da dor e o
amadurecimento forçado pelo caminho. A importância desse evento
remeteu W. a um questionamento pessoal sobre o lugar que passou a
ocupar na galeria do esporte. E mais, a consciência de que, transposto
esse limiar, seu lugar estava assegurado junto àqueles poucos, que

239
Katia Rubio

foram capazes desse feito grandioso e de um maior, tempos depois,


ao conquistar também uma medalha em um campeonato mundial,
acumulando assim, dois grandes feitos.
Lembrar daqueles momentos... (os Jogos Olímpicos de Barcelona)
pena que passa rápido. Devia ficar por uns 30 anos pra gente
poder curtir mais (...) Dentro do judô, eu sempre tive como
ídolos aqueles atletas que antes de mim conquistaram medalhas
olímpicas. Só que depois que eu conquistei eu acho que comecei
a enxergá-los de maneira diferente. Tanto é que, quando eu
fui campeão olímpico, naquela noite, naquela madrugada, eu
pensava assim ‘puxa, agora eu estou ao lado deles’ (...) E mais
impressionante ainda foi quando eu conquistei a medalha no
campeonato mundial (...) No Brasil, apenas quatro atletas, até
hoje, fizeram isso (...) Naquela noite, eu pensei assim ‘agora eu
estou mais ainda ao lado deles’.
Ainda que distinto da grande maioria dos atletas brasileiros e
mundiais por seus feitos individuais, o pensamento e as atitudes de
W. estão voltados para o grupo de atletas praticantes da modalidade
que representa a escolha da sua vida. Com a autoridade reforçada
pelos títulos conquistados e por uma conduta voltada para o coletivo,
W. continua a enfrentar os desmandos institucionais com o mesmo
vigor de antanho. Esse tipo de atitude coloca-o em uma condição de
liderança assumida, porém temida, e lhe dá a clareza de que formas de
retaliação serão tentadas, sempre que possível, para que seu caminho
seja interceptado ou finalizado.
Campbell (1990) escreve que o herói público é sensível às
necessidades da sua época. E assim procede esse herói do tatame.
... até pela briga que eu já havia tido com a Confederação
Brasileira de Judô era encarado pelos outros atletas como um
líder, e você ser líder é uma coisa terrível, porque isso te traz
uma responsabilidade que, às vezes, ... nem sempre é bom (...) Eu
sabia que muitas vitórias eu podia ter agora, mas que na primeira
oportunidade ele ia... eu ia ser cortado por alguma coisa (...) Em
94, na primeira contusão que eu tive (...) eu fiquei muito tempo
parado (...) a Confederação deu um jeito de... acontecer de eu não
voltar para a Seleção Brasileira.

240
Cartografias do imaginário esportivo

Mesmo os mais fortes entre os bravos guardam seus pontos


fracos. Aquiles foi atingido em seu calcanhar por Páris. Héracles
padece sob a túnica dada por Dejanira. Teseu é atirado do alto do
rochedo por Licômedes. E cada um, mesmo tendo realizado grandes
prodígios, perecem diante de alguma força mais poderosa que as suas
próprias. Afinal, a condição de imortal é dada apenas aos deuses, ou
àqueles que conquistam essa condição, com o beneplácito daqueles.
Assim também sucede com W. A glória das conquistas vem
acompanhada da injustiça. E o retorno é então vislumbrado.
O esporte começou a deixar de ser pra mim um prazer. Em 95
ia ter a seletiva para as Olimpíadas (...) Eu tive uma contusão e
pedi para que a minha seletiva fosse feita 30 ou 40 dias depois, até
porque a Olimpíada de Atlanta foi em agosto e a seletiva foi em
dezembro de 95. Tinha 7 meses, eu era campeão olímpico, eu falei
que estava machucado e queria 45 dias pra me recuperar de uma
contusão e competir. Eu não tô pedindo para ir de graça, pra ir
de favor, e não foi me dada essa chance (...) O esporte começou a
deixar de ser pra mim um prazer.
A certeza de ter seguido o caminho certo e da continuidade de sua
jornada, agora de uma outra condição, são os elementos necessários
para que W. concretize o retorno e inicie uma nova jornada. A avaliação
de todo o processo é fundamental para a continuidade de uma opção
de vida e de um padrão de conduta que permanecem marcando sua
trajetória e sua prática profissional.
Em momento algum, independente das consequências, eu deixei
de ser... de lutar por aquilo que eu achava certo (...) Muito
dirigente que me viu algumas vezes ser injustiçado nunca levantou
a bandeira... E quando ocorreu o contrário, quando eu vi injustiça
com outros atletas eu fui lá e dei a cara pra bater. E a recíproca
nem sempre é a mesma. Mas são coisas da vida.
A relação com o técnico é tida como o fato marcante de sua
vida de atleta. Os anos de convivência e a cumplicidade na prática
de suas funções de técnico/atleta ou de mestre/aprendiz construíram
uma relação forte o suficiente, chegando a ser reconhecida como tal
também por quem desejava descobrir o ponto fraco daquele titã.

241
Katia Rubio

Eu acho que o ponto marcante (da carreira) foi sempre o


relacionamento que eu tive com o meu professor, o meu técnico.
A gente conseguiu chegar numa sintonia (...) que muitas vezes não
precisava nem falar mas bastava se olhar (...) O meu técnico foi
convidado a ser técnico da Seleção Brasileira Junior e eu acabei não
concordando com a ida dele (...) E depois disso eu passei a treinar
sozinho (...) Tenho certeza que ele foi convidado, exatamente, para
enfraquecer o nosso grupo.
É na nova jornada que se inicia que estão depositadas todas as
energias para que o caminho trilhado prossiga, porém de uma nova
condição. O herói agora inverte de função. De educando passa a
educador. De iniciado a iniciador. E a experiência como atleta vem
somar na construção desse novo papel, porém sem determinar.
Eu estou super animado agora com essas mudanças na Confederação
e estou com aquele fôlego de trabalhar como técnico... o mesmo fôlego
que eu tinha como atleta (...) Ser técnico é um aprendizado. Eu acho
que do mesmo modo que eu demorei vinte anos para me revelar como
um grande atleta, acho que também me revelar como um grande
técnico é uma coisa que leva certo tempo. Depende de maturidade.
E é como Quíron que seu caminho se reinicia. O futuro projeta
para a responsabilidade pela iniciação daqueles que, por diferentes
motivos, escolheram a prática esportiva como um ou como o projeto
de sua vida. E assim como ele próprio pôde contar com a presença de
um mestre que o acompanhou por um longo período de sua carreira,
W. passa a desenvolver a competência de estimular o chamado
e ensinar os segredos do caminho àqueles que, pelas mais diversas
razões, resolveram perseguir a sua bem-aventurança.

242
Além disso, não precisamos correr
sozinhos o risco da aventura, pois
os heróis de todos os tempos a
enfrentaram antes de nós. O labirinto
é conhecido em toda a sua extensão.
Temos apenas de seguir a trilha do
herói, e lá, onde temíamos encontrar
algo abominável, encontraremos um
deus. E lá, onde esperávamos matar
alguém, mataremos a nós mesmos.
Onde imaginávamos viajar para longe,
iremos ter ao centro da nossa própria
existência. E lá, onde pensávamos
estar sós estaremos na companhia do
mundo todo.
(Joseph Campbell, O poder do mito.)

A relação entre o atleta


e a figura espetacular do herói vem
ocorrendo há muito tempo. De uma
certa maneira, essa ‘ideia’ foi sendo

Considerações
incorporada ao imaginário de sua
época, transformada conforme os
valores culturais do grupo social e,
finais consequentemente, reforçada.
243
Katia Rubio

Um dos principais elementos dessa identificação extemporânea,


pode ser creditado à capacidade de enfrentamento do perigo e do
desconhecido, do destemor ao combate e da busca incessante dos
objetivos propostos a essa figura mítica. Não bastasse isso, na
associação feita entre o atleta e o herói uma outra característica vem a
ser agregada a esse conjunto de valores e que, de certa forma, acabou se
constituindo como um dos marcos definidores do esporte: seu caráter
agonístico, presentes no mito desde a sua criação.
A luta, conforme Brandão (1999), associa o herói à agonística,
que por sua vez relaciona-se ao caráter e ao culto do herói. O autor
aponta que o termo heroico permaneceu nas línguas modernas,
principalmente, com o sentido de guerreiro, de combatente intrépido,
e talvez seja este o significado mais antigo da palavra. É esta a
conceituação principal que Homero empresta aos combatentes da
Guerra de Troia. A mesma conotação se deve à heroicização em
massa dos que tombaram em Maratona contra os bárbaros de Dario.
Nada realça tanto um número tão grande de heróis como o
qualificativo de combatente, exceção feita apenas à morte, caráter que
diferencia, em certa medida, os heróis dos deuses, uma vez que estes
participaram, sim, de combates até consolidarem sua posição divina.
O heroísmo divino, além de nulo, seria desnecessário, uma vez que a
condição da imortalidade está assegurada mesmo diante de grandes
ferimentos no corpo ou na alma. Por outro lado, mesmo capaz de
tarefas prodigiosas e feitos grandiosos envolvendo o enfrentamento de
situações e criaturas monstruosas em defesa própria ou da comunidade,
na guerra ou na monomaquia, a razão da existência do herói é a luta.
A agonística é como que um prolongamento das lutas dos heróis
nos campos de batalha, uma vez que também no agón os que disputam
fazem uso de vários artifícios bélicos e, dependendo da contenda,
expõem-se à morte, ainda que, em tese, a agonística não tenha por
objetivo eliminar o adversário.
O agón, uma das formas mais características do culto heroico,
era celebrado em forma de Jogos para honrar heróis como Tlepólemo,
Dioscuros, Castor e Pólux na Ilha de Rodes, Alcátoo em Mégara, a
Trofônio em Lebadia. Somam-se a essas disputas atléticas dedicadas
aos heróis outras consagradas a algumas divindades. Os agônes

244
Considerações finais

Pan-Helênicos – os Jogos Olímpicos, Píticos, Ístmicos e Nemeus –


apesar de em sua origem serem consagrados a heróis, mais tarde
compuseram o culto divino. Antes de pertencer a Zeus, o culto
agonístico de Olímpia era celebrado em honra a Pélops; os Nemeus,
mais tarde consagrados também a Zeus, eram, a princípio, dedicados
a um menino morto por uma serpente, Ofeltes-Arquêmoro e também
a Héracles; os Ístmicos o eram ao herói Melicertes, ou a Sínis, antes
de caírem no domínio de Posídon; os Píticos, consagrados a Apolo,
haviam sido instituídos para honrar ou aplacar a serpente-dragão
Píton, vítima do próprio deus.
Muitas das palestras e dos ginásios, locais de treinamento
para as disputas atléticas, eram dedicados a heróis, referendando
a aproximação entre o culto agonístico e o culto heroico, levando
o povo grego a ter os grandes Jogos Pan-Helênicos como os
acontecimentos religiosos centrais da vida nacional.
Brandão (1999) chega a afirmar uma mitologia da agonística
rica em nomes mais do que em formas e temas plásticos e
considera que, se os heróis míticos são celebrados com jogos,
é porque devem ter sido grandes atletas durante sua existência
terrena e apresenta as modalidades esportivas como especialidade
agonística destacando Héracles no pancrácio; Castor, na corrida;
Pólux, na luta; Iolau, na corrida de carros; Iásio no hipismo;
Etéocles, na corrida; Anfiarau, no salto. Entretanto, todos esses
campeões passaram por um longo período de treinamento, com
caráter iniciático, com mestres especializados, destacando-se,
entre eles, o centauro Quíron.
Excetuado o rito, permaneceu o mito. E da mesma forma
que a imagem do herói evolui de maneira a refletir cada etapa do
desenvolvimento da personalidade humana, o esporte acompanha os
diversos movimentos vividos pelo homem ao longo da história.
Essa pode ser uma das explicações para a relação estabelecida entre
o esporte atual, segundo a intenção do Barão de Coubertin, e o esporte
grego. O que se pode frisar é que da intenção inicial de reeditar uma
prática pedagógica, profundamente fincada em outra prática, a religiosa,
elementos caros à era contemporânea foram agregados àquela prática
antiga, criando um modelo com valores modernos, apesar do empenho

245
Katia Rubio

de seu idealizador em se manter fiel à tradição grega, apresentando o


esporte como o temos na atualidade, um elemento de cultura.
Se considerada dessa maneira, o herói-atleta da Antiguidade
exerceu, e ainda exerce, grande influência na construção da condição
heroica do atleta dos Jogos da Era Moderna, apesar das transformações
ocorridas na função e no papel desempenhados por esses personagens
na vida social.
Sobre a concepção do esporte enquanto uma prática de
cultura e a associação inextricável entre eles, Belbenoit (1976)
aponta que essa relação está dada pela necessidade de substituição
da noção formal do equilíbrio dual mente corpo pela concepção de
saúde psicossomática e o desenvolvimento mental inseparável da
motricidade. Considera o esporte uma das formas de comunicação
por excelência do homem moderno, por se prestar à função biológica,
naquilo que se refere à saúde; e sociocultural, pela necessidade de
expressão e participação.
Daí uma das justificativas para o esporte usufruir da condição
de um dos principais fenômenos culturais da atualidade. Se por
um lado, enquanto atividade física não competitiva, ele é capaz de
resgatar sua função pedagógica praticada na paideia como elemento
integrador da posterior dicotomia mente corpo, por outro lado, a
sua porção competitiva se integra perfeitamente àquilo que Jameson
(1997) designou de a Terceira Idade da Máquina ou o estágio do
capital multinacional, representada pelo computador e pela televisão,
máquinas característica do pós-modernismo, muito mais de reprodução
do que de produção, presentes no cotidiano atual como gênero de
primeira necessidade.
Essa condição pós-moderna conferida ao esporte atual pode ser
justificada pela relação de dependência estabelecida com os meios de
comunicação de massa e o consequente ajustamento de sua prática em
função das exigências e necessidades desses meios.
Conforme Betti (1998), a televisão transformou a audiência
do esporte em todo o mundo e, na medida que começou a perder
a capacidade de subsistir enquanto espetáculo ao vivo, tornou-se
dependente de patrocínios gerados pela abrangência das transmissões
televisivas. Essa situação provocou o incremento do profissionalismo

246
Considerações finais

no esporte, tanto no que se refere à possessão do espetáculo pela


televisão como em relação àquele que protagoniza o espetáculo,
o atleta.
É a partir desse momento que os dois elementos fundantes do
esporte moderno, o amadorismo e o fair play passaram a sofrer seu
grande revés. Considerados a base do Olimpismo, esses conceitos foram
norteadores do esporte ao longo do século XX, até aproximadamente
os anos 70, quando a relação causal dinheiro e desempenho esportivo
passaram a compor uma dupla inseparável, levando o esporte a se
tornar uma carreira profissional e uma opção de vida para crianças
e jovens possuidores de um nível de habilidade desejada para o
desempenho esportivo.
Apesar do pragmatismo observado na relação esporte-
mídia-patrocinador, há, ainda, outros elementos implicados na
escolha do esporte competitivo como atividade profissional tão
determinantes, que já não seria possível dizer que apenas os lucros
obtidos com essa prática seriam capazes de motivar um atleta a
permanecer na carreira.
Existem vários aspectos que compõem o universo do esporte,
responsáveis por caracterizar tanto o fenômeno como o protagonista
do espetáculo. As expectativas geradas em torno da prática esportiva
levam a determinados padrões de comportamento que irão, de certa
forma, influenciar e, por vezes, determinar a conduta daqueles que
escolheram o esporte como profissão e opção de vida.
Afirmaríamos que essa é a razão por que em torno de uma
modalidade específica e, do esporte como um todo, desenvolve-se um
conjunto de práticas coletivas e comportamentos individuais chamados
pelo senso comum de cultura esportiva. Esses comportamentos e
procedimentos levam à criação e multiplicação daquilo que estamos
denominando imaginário esportivo, entendendo por imaginário tanto
a tradução mental de uma realidade percebida como o conjunto de
imagens ou de relação de imagens que constituem o capital pensado
do ‘homo sapiens’.
Tais indicações fazem parte da história de vida de atletas ativos,
que ainda fazem o espetáculo esportivo, e inativos, que já realizaram
grandes feitos, registraram seu nome para a posteridade e agora vão em

247
Katia Rubio

uma outra direção. O que se observou foi que o encerramento da carreira


marca o início de uma nova etapa de vida, que pode ser encarada como
a realização de atividades projetadas ao longo do período competitivo
ou de preparação para o afastamento, como pode ser um momento de
busca de projetos e objetivos perdidos ou esquecidos durante a carreira
e que, com a perda da identidade profissional de atleta, precisam ser
resgatados.
Poderíamos destacar como um dos aspectos comuns a todos
os atletas sujeitos dessa pesquisa a manifestação de um desejo e uma
procura pela vitória antes mesmo da escolha pela carreira esportiva.
A frase ‘desde pequeno’ ou ‘desde criança’ é comum a todos eles como
se quisessem afirmar uma condição inata e descartar a influência
do meio no desenvolvimento de sua atividade. Assim como o herói
é considerado o paladino que nasceu para servir (Brandão, 1999) o
atleta seria o bravo que nasceu para competir. Não há escolha. O
chamado se revela em toda a sua potência.
A partir do início da atividade esportiva e competitiva
regular, essa condição é reforçada pelo argumento de que atleta
vencedor é aquele que ganha torneios e se consagra com medalhas.
A interpretação dessa situação aponta para uma inclinação desses
atletas para a luta e, consequentemente, à agonística, conforme
discussão anterior. Apresentado, em princípio, como uma disposição
individual, no entanto, é possível perceber a influência exercida por
elementos externos, como por exemplo a trajetória de outros atletas e
a exposição sistemática pela mídia de carreiras e situações vitoriosas,
interferindo diretamente na construção do conceito de vencedor
e na constituição do imaginário e do repertório esportivo, onde o
derrotado é premiado com o consolo.
Outro elemento que diferencia o atleta-heroico dos demais
membros de seu grupo é o afastamento do mundo comum ao longo
de toda a sua carreira, que pode ser longa ou curta, conferindo o
caráter iniciático do esporte. Esse recolhimento pode gerar uma
reflexão sobre sua escolha enquanto opção temporária ou imposição
vitalícia, apresentando a carreira esportiva como uma obrigação,
uma via de mão única onde não há a possibilidade de retorno, ou

248
Considerações finais

como o elemento capaz de grandes transformações pessoais de uma


vida que transcende o esporte.
O significado que a prática esportiva adquire ao longo do
período competitivo, ou profissional, pode influenciar diretamente
os rumos da vida futura do atleta. Isso porque o período de
afastamento ou recolhimento possivelmente assume a forma de
gozo, o desfrute por tudo aquilo que ele conquistou e proporcionou
para o público durante longos anos de dedicação e glória. A
necessidade do desfrute ocorre, independentemente, dos marcos
dessa trajetória, tenham sido eles satisfatórios e positivos iluminados
pelo reconhecimento e apoio, ou relembrados pelas arbitrariedades
e desmandos cometidos independente da dedicação e dos resultados
alcançados por ele. Uma forma de elaborar essa história marcada
por tantos sobressaltos está no envolvimento com a criação e
formação de novos atletas, que poderão vir a se manifestar contra
esse sistema, reparando ao mestre o passado e criando para si a
possibilidade do gozo não vivido por outros.
Essa é uma das indicações de que a carreira de um atleta não
é fruto apenas de uma disposição e talento individuais, da afirmação
de uma vontade latente ou da determinação em perseguir objetivos.
Fatores externos como a influência parental, políticas institucionais
e papel dos formadores, sejam eles professores de educação física ou
técnicos, podem influenciar e até determinar a transformação de um
aspirante em atleta.
Depois de iniciada a trajetória, outros elementos se somam a estes
e alocam o atleta entre os que adquirem fama e status, e se tornam a
referência presente da modalidade, ou àqueles que buscam pela ação
e pelo gesto o prestígio, condição que em certa medida favorece a
duração e a permanência.
O pragmatismo que favorece a fama e o status caracteriza o
esporte na atualidade e imprime a condição mítica de uma parcela de
atletas contemporâneos, externalizado em forma de comportamento
vencedor, racionalizando o mito, esvaziando-o de sua pregnância
mítica. O discurso e a prática Olímpicos, que já foram divinos,
tornaram-se mercantil e ideológico, repleto de mitologemas, porém
destituído de conteúdo semântico.

249
Katia Rubio

Aqueles que escaparam a essa armadilha e cumpriram o trajeto


iniciático puderam superar o individualismo e trazer de volta os
símbolos da aventura para a comunidade, conquistando seu lugar no
pódio das realizações humanas.
A vivência do arquétipo do herói pelo atleta é experimentada em
toda a sua abrangência, seja pela demonstração de força e coragem,
seja pela capacidade de realizar virtudes destinadas a poucos, seja
até em determinados momentos pela morte trágica. Contudo, isso
não é de se estranhar que justamente este personagem seja o alvo
de projeção de grande parcela da população de crianças e jovens.
Reside na possibilidade de realizações semelhantes e, na consequente
permanência, a esperança de um futuro que inscreva seu nome na
história, como o tiveram os heróis-atletas da Antiguidade.

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