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Que história mais linda.

Quando eu era pequena minha avó era mãe de Santo


E todos sabiam que era filha de Oyá, porém eu sempre reparava que ela nunca tirava o fio
de contas douradas do pescoço, usava Idés e tudo mais, então um dia enquanto ela se
arrumava eu perguntei:

Vó, porque a senhora sempre usa fio de Oxum e idé dourado? Ela não é sua santa, então
porque disso?

Ela, uma negra retinta de baixa


estatura e de feições delicadas como as de uma boneca mesmo já sendo idosa sacudiu os
pulsos e as pulseiras douradas que usava tilintaram, sorriu para mim e se sentou do meu lado,
ali contou a historia.

Era o ano de 1945 quando minha bisavó, dona Cleuza, veio da Bahia para trabalhar em uma
fabrica em São Paulo.
Hoje a fabrica já é extinta, mas na época todos conheciam a grande tecelagem Mariângela do
bairro Brás, e lá ela trabalhou muito.
Na mesma época conheceu meu bisavô, seu Jarbas, ele era de Pernambuco, mas estava em
São Paulo para trabalhar na construção Civil.
Ele se casaram e em 1948 ela ficou grávida, a fábrica deu-lhe uma licença e ela foi ter o bebê.
Naquela época não havia SUS, e minha bisavó acabou não tendo nenhum tratamento pré-
natal, na época isso nem existia e mesmo se existisse não estaria disponível a uma mulher
Preta e pobre.
O jeito foi ir parir na Santa Casa de Misericórdia, as freiras não eram racistas o suficiente
Para negar atendimento a uma parturiente, então lá nasceu minha avó.
Nasceu quieta, flácida, não chorava nem se mexia e nem sequer conseguia mamar, ficava
imóvel e de olhos fechados como se fosse morta.
Minha bisavó se desesperou e perguntou aos médicos o que a criança tinha, mas eles não
deram muita bola, fizeram alguns exames básicos e disseram que ela não sobreviveria.
Um bebe preto e filho de nordestinos não trazia aos doutores interesse.
Vovó ainda estava viva, mas eles já tinham dado a ela a sentença de morte.
Minha bisavó, uma baiana muito arretada não aceitou ver a filha morrer naquele hospital sujo,
então pediu para ir embora com o bebê.
As Freiras disseram que não podia tinha a restrição medica de ficar pelo menos mais um dia
internada, mas minha vó fez pé firme, então elas disseram que "tanto fazia".
Foi assim que minha bisavó saiu do hospital poucas horas depois do parto.
Como ela teve forças pra sair correndo logo depois de parir?
Eu não sei, mas aquela mulher era fantástica e fez isso.
Minha bisavó era do santo na Bahia foi iniciada para Oxum, era uma Ekeji, então assim que
saiu do hospital disse a meu bisavô que precisava levar o bebê para um terreiro.
Mas que terreiro?
Vocês hoje em dia jogam na internet e ficam sabendo onde estão as coisas, mas naquela época
nem celular existia, e os terreiros era tão poucos na cidade de São Paulo que ela não conhecia
nenhum.
Pegaram o ônibus para a Zona Norte ele fazia sua parada final perto do Tucuruvi.
E ela veio rezando o caminho todo embalava a filha nos braços, um bebe semimorto.
Desceram no Tucuruvi e tomaram um carro de aluguel, pois morava pro fim do Tremembé
La pra aqueles lados que eram fazenda de japoneses.
No meio do caminho minha bisavó fechou os olhos e com toda a fé que tinha rezou.

"Minha mãe Oxum me ajude, salve meu bebê, eu sei que a senhora pode só a senhora pode...
ajude-me minha mãe, me de um sinal... eu não posso enterrar minha filha, eu preciso que ela
viva..."

Meu bisavô não era da religião, mas ainda assim cutucou o ombro dela e apontou para a janela
do carro - Cleuza olhe ali, aquilo não é gente de macumba?

Ela olhou para fora e lá estava um pequeno grupo de pessoas vestindo roupas brancas, eles
iam levando um balaio de pipocas era um Sabajé.
Minha bisa gritou para o motorista parar e desceu do carro correndo deixando meu bisavô
para trás para pagar o motorista.
Ela chegou esbaforida até aquelas pessoas e perguntou se eram de algum terreiro, elas a
olharam torto tinham muito preconceito com candomblé na época então eram arredios em
dar endereços, mas ela mostrou o bebê que trazia nos braços e depois mostrou as marcas de
cura que tinha nos ombros e contou que precisava da ajuda de mãe Oxum.
Aquelas Iyawos estavam passando ali por um acaso, havia uma comunidade de baianos do
outro lado do bairro e elas so estavam pra aquele lado porque uma delas sentiu no coração de
ir para lá, para aquelas ruas de terra onde o povo as olhava feio como se elas fossem o próprio
diabo.
Quando ouviram a história que minha bisavó contou nem perguntaram muito mais, depois de
ver a criança entenderam que era tudo providencia do Orixá.
Elas e meus bisavós saíram correndo e dois quarteirões à frente entraram em uma vielinha,
chegaram à porta do terreiro, uma casinha pequena sem nem reboco.
Quando chegaram chamaram pela mãe de Santo e logo uma mulher corpulenta com roupas de
baiana apareceu na porta.
Minha bisavó rapidamente desatou a falar contando a historia, esperava receber da mãe de
santo alguma palavra de auxílio ou pelo menos de conforto, porém imediatamente se calou
quando a gritaria começou.
Vocês devem estar se perguntando que gritaria foi essa, mas o que acontece foi que todas as
pessoas da casa incorporaram seus Orixás de uma só vez e os Orixás gritaram seus "ilás".
Isso só acontece quando a sacerdotisa líder da casa incorpora, os Orixás de seus filhos vem em
respeito ao Orixá dela, que é mais velho, então minha mãe ergueu a cabeça e olhou para a
mãe de Santo, ela estava ali com uma expressão serena, os olhos fechados e estendeu as
mãos pedindo para segurar o bebê.
Nesse momento minha bisa não conseguiu dizer nenhuma palavra compreensível, ao ver o fio
de contas no pescoço da mãe de santo ela soube que Orixá era aquele, a própria Oxum estava
ali.

Minha bisavó foi tomada por uma emoção tão grande que apenas tentava falar, mas chorava
demais para ser entendida.
Oxum deu um passo a frente e tomou os bebês nos braços, segurou com um e com o outro
abraçou a minha bisavó.
Coitada, estava tão abalada que apenas deixou Oxum a guiar para dentro da casa.
Uma outra mulher chegou apressada, era uma Ekedi, ela foi desvirando o povo
E depois foi ajudar Oxum.
A Orixá pediu para entrar no quarto dos assentamentos, e quem é do santo sabe que esse
quarto é sagrado no terreiro, não é aberto a qualquer um, mas ainda assim Oxum mandou
abrir o quarto e todo mundo daquela casa entrou naquele pequeno cubículo, era pelo menos
uma dúzia de pessoas e até meu bisavô que não fazia idéia do que estava acontecendo se
enfiou lá.
Ali haviam prateleiras com vários assentamentos, mas o maior era um de louça Branca, o
assentamento da própria Oxum.
Ela mexeu nas louças e tirou uma tina que ficava sob elas, colocou no meio do quarto e então
cochichou algo para a ekeji, logo a mulher voltou com uma moringa e encheu a tina de água.
Todas as pessoas observaram em silêncio, oxum se ajoelhou, desenrolou o bebe da manta e o
colocou dentro da água fria.
O bebê parecia morto, roxo e mole.
Oxum fez sinal para minha bisavó, levou uma mão a própria boca e minha bisa entendeu que
ela dizia "cante".
Sim, quem é do santo sabe que o cantar é o mesmo que rezar.
Minha bisavó com voz embargada começou: "Oro mi má, oro mi má ó, oro mi má ó abado o
ieiê ô"

Sim eu sei que ela cantava errado, o Yoruba estava


torto, mas ela cantava com toda a fé que tinha no peito.
O povo ali juntinho no quarto começou a cantar junto e logo como um coral eles entoavam
esta e várias outras cantigas de louvação a senhora das águas doces.
Oxum mantinha o bebê na água, com uma mão apoiava a cabecinha, com a outra ia molhando
o corpinho com toda a delicadeza.
A cantoria continuou por algum tempo até que foi interrompida por um som, o choro do bebê.
Minha bisavó ficou tão emocionada que acabou tendo um desmaio, mas logo que se recobrou
Oxum entregou para ela a criança, um bebê firme, de olhos abertos e sedento por leite.
Ela desabotoou a camisa e pôs o peito pra fora, na hora o bebê pegou e mamou.
Estava viva, a criança estava viva e bem.
Oxum tirou um de seus colares do pescoço e dando várias voltas o colocou no pescocinho do
bebê, beijou aquela cabecinha frágil e então partiu.

Minha bisavó nomeou minha avó de "Conceição" para homenagear Oxum, ela na época
achava que Oxum era o mesmo que Nossa Senhora da Conceição, sabe como é, coisas de
gente antiga sem muita compreensão.
Mas uma coisa é certa, Oxum deu a vida a minha avó, ela nasceu realmente naquela tina de
água, nas mãos de Oxum.

Quando ficou adulta vovó foi iniciada para Oyá Onira, era uma Iansã belíssima a dela, Orixá
que ela amava muito, mas sempre que perguntavam de quem ela era filha ela dizia "Sou de
Oxum com Oyá”, pois foi Oxum quem lhe deu a graça de viver.
Ela abriu casa e se tornou Iyalorixá, por toda a vida zelou pelo santo.
Em 2014 ela já era idosa quando foi diagnosticada com demência senil, que é quando o idoso
começa a perder a capacidade intelectual.
Por três anos lutamos atrás de uma cura mas essa condição é considerada algo natural, não é
uma doença, é simplesmente algo que pode acontecer.
No fim do ano de 2017 os problemas mentais começaram a atingir o corpo em forma de
síndromes,
Após três AVC's e múltiplos fatores recorrentes os médicos liberaram vovó para passar seus
últimos dias em casa.
Minha mãe não teve esse interesse em ser do santo mas eu sim, trilhei os caminhos de vovó e
me tornei Iyalorixá, aqui na mesma casa que foi dela, uma casinha pequena que alguns até
chamam de beco por ser humilde e por ainda ter alguns costumes referentes a crença de
minha avó, dona Conceição.
Era Dezembro, época que eu toco a festa das Iyagbás, e como sempre o pessoal do bairro veio,
e dessa vez vieram pessoas que eu não conhecia, um rapaz se destacava, um negro enorme,
lindo de olhos verdes.
No meio do Xirê ele recebeu seu Orixá e para minha surpresa aquele homenzarrão era filho de
mãe Oxum.
Na hora que ele incorporou não se juntou aos outros Orixás na roda, não, ele simplesmente
saiu do terreiro pela porta lateral.
Eu corri atrás, pensei que Oxum estava procurando um lugar para se trocar, me envergonho
em dizer que até suspeitei que o rapaz estava de ekê, mas não, Oxum simplesmente seguiu
para fora, atravessou o corredor até chegar nos fundos onde fica a minha casa e ficou parada
diante da porta esperando que eu abrisse.
Eu estava achando estranho e expliquei a Oxum que ali não era parte do terreiro, mas ela de
modo impaciente fez gestos para que eu abrisse logo aquela porta.
Assim eu fiz, abri e ela entrou, ali na sala de casa estava vovó sentada na cadeira de rodas
vendo televisão com os olhos vidrados.
Sabe, vovó já não reconhecia a gente, era como se fosse uma casca vazia, mas quando Oxum
se aproximou ela ergueu a cabeça e sorriu, com a voz fraquinha Disse "mãe..."
O rapaz era forte, com um único movimento pegou minha avó no colo e caminhou de volta
para o terreiro.
A Oxum dele dançou todo o rum com vovó em seus braços, a embalando como um bebê.
Foi uma alegria só, todo o povo a conhecia e lhe davam comprimentos, vovó estava tão bem
Que até comeu o Ajeun conosco, Oxum a sentou na cadeira de mãe de santo e ali vovó riu e
brincou, reconhecia cada pessoa de nossa comunidade como se nunca houvesse ficado
doente.
No fim da noite Oxum levou vovó de volta para casa e a colocou na cama, deu nela um abraço
e depois partiu, então a Orixá deixou o corpo do rapaz.
Minha velha estava outra pessoa, estava lúcida e sorridente, conversou comigo como nos
tempos de outrora.
A festa acabou, o povo se despediu e eu e meus filhos colocamos o terreiro em ordem.
Passamos a madrugada na faxina, já estava amanhecendo quando eu voltei para casa
para ver como estava vovó.

Ela estava com os olhos fechados e uma


expressão serena, havia falecido durante o sono.
Eu tenho muito orgulho de ser Mãe de Santo como ela foi, de reinar nessas paredes e de saber
que ali atrás no quarto dos assentamentos tem até os dias de hoje dois Ibás gêmeos um do
lado do outro montados da mesma maneira, do lado direto um de louça amarela e do
esquerdo um de louça cor de rosa, os Orixás de minha avó.
É história de minha velha, é a história de uma mulher que amou e foi amada pelo divino .

Não sei a autoria e nem a veracidade desta estória, mas se tratando de orixá é a mais linda que
li até hoje sem duvida alguma.

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