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Refere-se ao Art.

de mesmo nome, (I)1 - Opinião, 71-82, 1991 OPlNIAO


Rev. Bras. Cresc. Des. /Hum.
ATIJALJCZAÇÃO
S. Paulo, I(1), 1991
OPINlON / CURRENT COMENTS

5 A CRIANÇA INTEGRAL E AS TEORIAS DO


DESENVOLVIMENTO*

Alberto Olavo Advíncula Reis 1

RESUMO

A confrontação das teorias do desenvolvimento psicológico, propostas por Jean Piaget e Henri
Wallon respectivamente, enseja a possibilidade de se discutir o limite e o alcance dessas teorias
na apreensão mais global, holística, da criança. Não se trata, neste artigo, de superar, como o
faria um ensaio orientado fenomenologicarnente, os limites próprios a toda e qualquer redução
teórica, mas, antes, de compreender a articulação teórica passível de garantir uma compreensão
mais global da criança e do adolescente em desenvolvimento.
O cotejarnento das teorias desses dois autores marcados por semelhanças, amizade, trocas,
mas, igualmente, por diferenças instigantes, propicia ocasião para que se pense sobre o modo
fundamental como são concebidos e o lugar que ocupam os diferentes registros do desenvolvi-
mento psicológico humano: o biológico, o mental e o social Apesar dos interesses divergentes
que ambos pesquisadores manifestaun no tocante aos próprios sujeitos - Piaget interessando-se,
exclusivamente, pelo sujeito epistêmico, estudando as leis subjacentes ao desenrolar do desen-
volvimento cognitivo, enquanto Wallon interessava-se pelo sujeito psicológico, interrogando-se
sobre o grande embate entre o social e o biológico nos processos de transformação da totalidade
da criança -, ambos farão referências às mesmas dimensões do desenvolvimento
Entretanto, se a afetividade, enquanto se revela como uma dessas dimensões, é entendida por
Piaget apenas como uma energética da ação sem poder ocupar nem um lugar preponderante no
curso do desenvolvimento e nem desempenhar um papel estruturante do mesmo, bem diferente
será a concepção de Wallon.
A emoção, forma larvária da afetividade, ocupará na concepção walloniana do desenvolvi-
mento uma posição central, posto que será dela a função elementar de conectar o bebe, mergu-
lhado em sua impotência orgânica, ao seu meio humano. A unidade criança-meio humano será
uma unidade de partilha emotiva. E a partir dessa relação, anterior com o social, que a criança
dirigir-se-á, em seguida, para o mundo dos objetos, instalando-se, só então, no interior de uma
lógica sensório-motora. Para Piaget, a indistinção das dimensões sociais e físicas na sua compre-
ensão do mundo objetal, isto é, do meio em relação ao qual a criança tentará se adaptar, Ihe
permitirá descrever uma trajetória distinta. Com efeito, o biológico é considerado, por este
pesquisados, como o ponto inicial de todo desenvolvimento e o social como o ponto final, sendo
o mental o processo mediano entre esses dois estados. Tanto desta posição quanto do inegável
privilegiamento dado por Piaget à observação dos reflexos exteroceptivos (que, para ele, são os
exercícios reflexos da primeira sub-etapa do nível sensório-motor), decorre o falo dele ter a
concepção de uma criança que liga-se, primeira e diretamente, ao mundo dos objetos físicos e
que a partir da ampliação deste universo físico descobre o mundo social.
Não há grande sentido em repetir as indagações sobre o maior ou menor espaço concedido ao
registro do social, do afetivo, do lógico ou do cognitivo em outra teoria. A questão que se pode
colocar é a de saber em que dimensão tais registros se articulam, visto que a ordem desta articu-
lação, e não o cômputo dos elementos em jogo, permitiria uma aproximação mais completa e
global da criança em desenvolvimento.

* Palestra proferida por ocasião da participação em mesa-redonda sobre “Crescimento e Desenvolvimento” no âmbito do Enconrro
Sobre Creches, promovido pelo CDH e pela Faculdade de Saúde Pública da USP, na cidade de São Paulo, em outubro de 1986.
1 Professor assistente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP.

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INTRODUÇÃO ambos construíram teorias acerca do desenvolvi-


mento infantil, cujas semelhanças e diferenças
Quando se aborda a questão do desenvol- têm-se revelado instrutivas e proficuas.
vimento psicológico percebe-se, de chofre, urna Naquilo que tango às semelhanças é mis-
situação dilacerante: a criança é apreendida de ter fazer ressaltar tanto a perspectiva genética as-
forma fragmentada, puxada pelos quatro cantos sumida por ambos bem como a utilização comum
das teorias. A essa necessária fragmentação, do método e observação clínicas.
exigida pelos diferentes reducionismos teóricos, Os pontos comuns existentes entre os dois
opõe-se a necessidade de uma apreensão e de uma pesquisadores sustentam-se tanto numa concep-
percepção global, holística, da criança em desen- ção da criança enquanto um ser fundamentalmente
volvimento, necessidade sobretudo presente para ativo que encontra, em suas trocas com o meio, O
aqueles que fizeram da criança seu objetivo de impulso para seu desenvolvimento, como na ma-
trabalho e cuja prática cotidiana, voltada para ela, neira pela qual concebem o processo infantil de
não pode e não deve prescindir de uma compreen- construção psicológica ativa da realidade.
são teórica. Os dois partilham da idéia da existência
O intuito, aqui, é o de discutir a concepção de uma dinamica propriamente dialética no pro-
básica da teoria do desenvolvimento piagetiano a cesso de desenvolvimento, uma vez que assumem
fim de aclarar um pouco o caminho da possível que a criança constrói e manipula a realidade em
compreensão da criança como fenôrneno mais seu interior, em função da realidade exterior
global. Para tal, tentar-se-á, sem aprofundar no vivenciada, uma vez que essa realidade atua so-
detalhe das teorias, cotejar as concepções de bre a criança, impelindo-a a modificarse em um
Piaget e de H. Wallon acerca do processo de de- esforço de adaptação. Tais semelhanças, de cará-
senvolvimento infantil. Este procedimento e essa ter geral, prolongam-se na descrição dos estádios
tentativa justificam-se por bem mais de uma razao. de desenvolvimento estabelecidos pelo psicólo-
Companheiros de viagem, amigos, debatedores, go francês e pelo epistemólogo suíço (Tabela 1).

Tabela 1
Autores Estádios Características
Wallon Criança senso-motora 1. Descoberta do mundo dos objetos

Piaget Criança senso-motora 2. Atividade de esquemas sensoriais e motores

3. Inexistência de representação mental ligada à


cognição e à afetividade

Wallon Criança sincrétia 1. Pensamento transdedutivo

Piaget Criança pré-operatória 2. Insensibilidade à contradição

3. Dificuldade em superar o centramento em um único


foco da realidade ou em uma perspectiva

Wallon Criança categorial 4. Caráter intuitivo e preconceptual

Piaget Criança operatória concreta 1. Abandono do pensamento infantil

2. Expansão da razão

3. Capacidade maior para conceptualizar adequadamen-


te e realidade

Wallon Adolescente 1. Capacidade de abordar o inatural - aquilo que não é


realisticamente presente, que se encontra no futuro -
Piaget Adolescente operatório-for- que não está na zona da experiência da realidade, mas
mal no campo do possível

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No plano das diferenças, ressalta-se que que e essencialmente biológico ao nascer e se


enquanto Piaget interessa-se pelo sujeito converte, pela ação social, em ser psicológico.
epistêrnico, isto é, por aquilo que “há em comum Longe do espírito que ammou a pesquisa
nas estruturas intelectuais dos sujeitos de mesmo piagetiana referente a descrição das leis gerais da
nível de desenvolvimento”² – enfatizando a con- transformação do conhecirnento, Wallon preten-
tinuidade ao longo do processo de desenvolvimen- deu descrever os processos psicológicos que, so-
to –, Wallon, por outro lado, entusiasma-se pelo bre uma base biológica e em contato com o meio
sujeito psicológico, isto é, a ele interessam não os social, vão transformando continuamente a tota-
aspectos cognitivos “mas todos os aspectos que lidade do ser da criança.
integram a personalidade do individuo em qual- A compreensão da criança, enquanto um
quer momento de seu desenvolvimento”³ – inclu- sistema global em desenvolvimento, impediu que
indo aqui aqueles aspectos que determinam essa Wallon privilegiasse um aspecto exclusivo ou uma
personalidade de fora. Ao contrário de Piaget, ele dimensão preponderante de sua evolução. Propôs,
insistiu mais nas descontinuidades e nas crises. ao contrário, um modelo onde a interação dos ní-
Tais argumentos legitimam as comparações veis biológico e social permite a construção de
entre os dois autores, fazendo assim avançar nos- um Ego no qual se integram os aspectos cognitivos
sa compreensão acerca do desenvolvimento glo- e os sociais, se resolvem os problemas intelectu-
bal da criança. ais e os emocionais. Daí, foi-lhe possível descobnr
A preocupação fundamental de Piaget foi como o recém-nascido tem acesso à emoção atra-
a elaboração de uma epistemologia genética que vés dos intercâmbios sociais; foi-lhe possível si-
permitisse descobrir as leis gerais, subjacentes à tuar a alternância entre os períodos em que a crian-
cognição, à génese das funções cognitivas, e que ça se encontra voltada para a construção do seu
lhe possibilitariam averiguar como se constrói o Eu (período emocional, período do personalismo)
conhecimen~o do ponto de vista evolutivo. Seu e aqueles outros perfodos em que ela se volve para
trabalho, deve-se enfatizar, nunca teve por esco- a elaboração do mundo exterior (senso-motor,
po a abrangência da totalidade do objeto criança, sincretismo).
mas cingiu-se à descrição das transformações do Ajuriaguerra4 resumiu, em seu conhecido
pensa~nto infantil e ao estabelecimento das leis Manual de Psiquiatria, a descrição das etapas do
que regem essas transformações. desenvolvimento infanto-juvenil proposta por
O estudo da génese da inteligência foi o Wallon. Aquilo que caracteriza a criança ao nau
instrumento pnvilegiado e necessário que tornou cer é a importância da presença da atividade
possível a realização secund~ria do desejo de Jean rnotora reflexa.
Piaget de estabelecer um liame entre a biologia e A resposta aos diferentes tipos de estimu-
a teoria do conhecimento. O limite e a grandeza lação, quer sejam eles de natureza interoceptiva,
do alcance de sua contribuição ao avanço do co- proprioceptiva ou exteroceptiva, é sempre uma
nhecimento psicológico da criança tem neste ins- resposta reflexa. Esta resposta motora reflexa pode
trumento seu ponto de engaste; limite porque es- se apresentar de duas maneiras, ora como uma
tudou parcialmente a criança, grandeza porque resposta relativamente adaptada a seu objeto (suc-
revolucionou genuinamente a maneira de com- ção, preensão, etc.), ora sob forma de grandes
preende-la. descargas impulsivas sem controle. Tais respos-
Resta, sem dúvida, se interrogar melhor tas “desadaptadas” se dão em virtude do falo de
sobre a natureza deste limite ou das condições que os centros corticais não estarem ainda aptos para
impuseram esta abordagem parcial da criança. De exercer seu pleno controle sobre elas. Trata-se,
toda maneira, se a criança apreendida por Piaget neste caso, de uma forma de atividade matara ar-
pelo viés da cognição perr~iitiu-lhe proceder a caica muito próxima das crises convulsivas em
este deslocamento organicamente contínuo da bi- que o controle superior encontra-se, temporaria-
ologia ~ teoria do conhecimento diversamente, a mente, abolido.
criança que interessou a Wallon foi aquela que Ora, o primeiro estádio descrito por Wallon,
lhe propiciou o agenciamento das ciências natu- denominado impulsivo puro, é caracterizado pelo
rais com as ciências humanas. Isto se tornou pos- papel nitidarnente dominante que esta atividade
sível porque Wallon pode entendê-la como um ser motora arcaica assume durante os primeiros me-

2 INHELDER, B. Las estratégias cognitivas: aproxi^lnación ai estádio de los procedimentos de resolucion de problemas.An. de
Psic., 18: 5,197X.
3 PALACIOS, J. J. Piaget y H. Wallon: dos perspectivas distintas, un solo sino ve~dadeiro. In. Mon, Inf. y aprend. 2: 200-205, 1981.
4 AJURIAGUERRA, J. D. Manuel de Psichiatrie de l’enfant. 2ª ed., Paris, Masson et Cie Editeurs, 1974.

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ses de vida. Por volta do sexto mês, entretanto, representação”5. Tanto as transforrnações ligadas
um novo tipo de conduta revela-se dominante, à orientação da criança num mundo objetal, quanto
determinando o aparecimento de um segundo es- as operações espaciais, como, ainda, a
tádio. Surgem neste momento os primeiros sinais emerg^ancia da atividade simbólica, ocorridas por
orientados em direção ao mundo humano. Trata- volta de um ano e meio e dois anos de idade, guar-
se de condutas já presentes desde o terceiro e o dam toda semelhança descritiva com as últimas
quarto mês, tais como crises de cólera, sorrisos, su~etapas do estádio sensório-motor piagetiano.
entre outros, mas que se tornam dominantes por Em suas primeiras publicaçôes, Wallon
volta do sexto mês, quando, então, exprimem e refere-se a um quarto estádio: o est~fdio projetivo.
definem, claramente, um certo tipo de relação com Este estádio reveste-se de uma importancia parti-
o mundo exterior. cular (apesar de desaparecer dos escritos posteri~
A existência deste estádio emocional, ou res de Wallon), posto que é a ele que se liga toda
ainda chamado de estádio de simbiose afetiva, a concepção genética walloniana da passagem do
opõe-se ao ponto de vista piagetiano na medida ato ao pensamento.
em que, para ele, a afetividade nunca é preponde- A criança, segundo Wallon (e Piaget), s6
rante e nem pode ser organizadora em si. Em con- conhece o mundo através de sua ação sobre ele.
trapartida, para outros autores que partilham de Durante este período – período projetivo – a crian-
certas noções e princípios piagetianos (Spitz, ça se vê na necessidade de se projetar nas coisas
1968; Mahler, 1977), a descrição walloniana de para apreender a si própria.
um estádio emocional ou simbólica afetivo—que A função motora é, assim, instrumento da
se constituiria como prolongamento da simbiose consciência. Neste m~cio de sua vida mental
fetal e da si nbiose alimentar dos primeiros meses propriarnente dita, a criança deve ter seu apare-
de vida—seria plenamente aceitável. De falo, tal lho motor à sua inteira e contínua disposição. O
estádio coincide com as idéias, de modo geral ato aqui é, verdadeiramente, acompanhamento da
expressas por eles mesmos, de que são as satisfa- representação.
ções das necessidades – ligadas ao fato de a crian- O pensamento é como que projetado no
ça ser alimentada, trocada, acalentada – que con- exterior pelos movimentos que o exprimem e se
correm para o estabelecimento das primeiras ele não for expresso, tanto em gostos quanto em
relações humanas significativas por volta do sex- palavras, ele não existe. Ele não subside sem essa
to ou do oitavo mês. Neste estádio, com efeito, a projeção gestual.
criança, além dos cuidados propriamente materi- O quinto estádio é o do personalismo. A
ais, necessita de manifestações especificamente criança consegue tornar-se independente das si-
afetivas, visto que é a emoção que domina todas tuações nas quais ela está implicada, isto é, con-
suas relações. A criança estabelece ~ lações afeti- segue reconhecer sua personalidade própria in-
vas de tal importância com seu meio que funda, dependentemente das situações.
com ele, uma unidade emocional, no interior da Ela se alça a uma “consciência de si” que
qual partilha o detalhe das mais diversas emoções sé é possível quando se é capaz de ter uma ima-
de angústia, alegria ou gozo. gem de si próprio. Uma vez afiançada tal ima-
No término do primeiro ano, a criança ori- gem, ou representação de si, a criança se afirmará
entar-se-á em direção dos interesses objetivos; nitidamente com o negativismo. Crise de oposi-
descobrindo e situando-se num mundo de obje- ção existente entre dois anos e meio e três anos.
tos. Trata-se do terceiro estádio denominado sen- O fato de a criança ter acesso, neste mo-
sório-motor. Wallon sublinhará a importancia mento, a uma consciência de si é marcado por
conferida a dois aspectos diferentes do desenvol- uma sensibilidade particular face à presença do
vimento: a marcha e a palavra, ambos desempe- outro sob forma de timidez e vergonha, o que en-
nhando um papel de primeira monta na renova- trava e bloqueia sua atividade e faz fracassar de
ção total do universo da criança. maneira provisória sua adaptação.
De fato, com a aquisição da marcha, 0 es- Após este episódio de vergonha específica
paço é completamente transformado pelas possi- – cuja razão está no falo de que a criança, agora,
bilidades novas de deslocamento operadas sobre tornou-se capaz de representar a si própria numa
ele. Por outro lado, com a aquisição e o uso da situação onde ela é vista por outrem, melhor di-
palavra articula-se a atividade simbólica, tornan- zendo, de se ver como o outro a vê – ela irá afir-
do possivel “a atnbuição de uma representação a mar-se e experimentar todos os efeitos da afirma-
um objeto e a alocação de um signo verbal a esta ção de si. O essencial para ela constituirá em

5 AJURIAGUERRA, J. D. Op. cit.

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afirmar-se como um indivíduo autónomo e para cia neuromotora manifesta nas deficiência dos
isso todos os meios serão bons: afirmar-se se opon- programas hereditários, restrição progressiva dos
do e tornar-se travesso para chamar atenção são programa hereditários no curso da evolução
as mais banais reações da criança neste estádio. filogenética, infancia prolonga da com grande
Isto significa simplesmente que, tendo su- espaço de tempo aberto à aprendizagem que virá
perado a fase de confusão com o outro, a criança suplementar sua carência biológica. Esta conste-
agora quer ser reconhecida pelo outro. Este pe- lação de falos interdependentes implica em que
ríodo importante para o desenvolvimento da per- no domo sapiens a adaptação dc sujeito ao objeto
sonalidade normal começa pela oposição e termi- repousa numa adaptação anterior e mais precoce
na pela sedução. Com o progresso do domínio a adaptação do sujeito ao sujeito, do homem ao
motor, a criança que inicialmente afirmou-se se homem. Piage~ promove uma redução da adap-
opondo pode agora se fazer admirar, se fazer amar, tação do sujeito ao sujeito (que é uma relação
existir. intersubjetiva e primariamente humana) à adap-
Esta tomada de consciência de si, entre- tação do sujeito ao objeto.
tanto, ainda é instável e frágil. Ela é ainda solidá- Tem-se, é verdade, assinalado que tal críti-
ria da “constelação familiar”, na qual a criança ca repousa, apenas, numa confusão terminológica
está integrada. posto que o termo objeto assume, no vocabulário
É com o início da escolaridade – seis anos piagetiano, uma acepcão de objeto físico e tam-
– que a criança encontrará os meios intelectuais e bém uma acepção ligada ao social. Entretanto,
as ocasiões para individualizar-se de maneira ní- torna-se absolutamente fundametal assinalar que,
tida É o estádio onde a criança diversificara seus além das questões de pertinência e de origem acar-
laços, participará da vida de vários su~grupos retadas pela indiferenciação entre objeto físico e
concomitantemente, ocupando papéis e lugares objeto humano, os dois tipos de relações decor-
difi rentes. Wallon enfada a importância dessas rentes de uma tal distinção, a saber, adaptação do
trocas sociais. sujeito ao sujeito e adaptação do sujeito ao obje-
a. Quando se confronta Wallon a Piaget – to, viabilizam e orientam linhas diferentes de cons-
no sentido d que esta confrontação serve para acla- trução do desenvolvimento.
rar um e outro autor – percebe-se que a concep- Ora, da análise dos primeiros estádios do
ção piagetiana da criança é uma concepcã “quase nível sensório-motor decorre que, para Piaget, a
solipsista”, ou seja, Piaget busca exclusivamente origem das categorias físicas, da inteligência, de
no iD divíduo os elementos da vida psíquica. É toda relação ulterior com o mundo físico e social
como se a criança, ti um Robinson Cruzoé que tem sua raiz nos reflexos exteroceptivos. Quando
isolado em sua ilha fosse gradativamen te tornan- Piaget observa algumas reações em função do
do-se apto a extrair diretamente de seu meio estimulo externo, conforme bem analisa Jalley, ele
circulante a substância material e os instrumen- observa outras, tais como, gostas e atitudes dos
tos que o exercício do pensamento exige. braços, da cabeça e do tronco. “Estas reações
b. Sabe-se que foi, em parte, a partir das desordenadas sem objetivo aparente, espasmos,
experiências com moluscos lacustres que Piaget agitações, gritos, aliás os mais frequentes no nas-
elaborou sua noção de adaptação calcada nos me- cimento, serão aquelas a que Wallon dará maior
canismos de assimilação e acomodação. Est no- importancia no curso do primeiro ano
ção é fundamental e central no processo do de- (impulsividade motoraemocional) enquanto Piaget
senvolvimento psicológico e da inteligência as desprezará”.
(definido) como um processo dá equilibração, Estes reflexos tónicos conectados com os
isto é, de adaptação móvel e estável entre o su- receptores interoceptivos, e que expressam o ní-
jeito e o meio (inicialmente esse meio é o uni- vel de maturação nervosa própria dos seis primei-
verso físico). ros meses, em si mesmos não se orientam no sen-
Ora, a primeira crítica que se pode então tido de extrair do meio circundante qualquer tipo
fazer é que est; concepção—urdida por Piaget a de substancia material. “Mas, falo absolutamente
partir da observação de um; espécie biológica ru- fundamental, (e ausente na teoria piagetiana) es-
dimentar, não social, como é o caso dos mó luscos tes gostos, espasmos, estes reflexos tónicos ex-
lacustres Limae—não pode ser estendida, sem pressam o desamparo do homo sapiens imaturo
problemas ao ser humano que é basicamente ‘so- ao nascer”.
cial. Como bem observa Jalley (1979), ao criticar Sua função biológica consiste em ser uma
precisamente este aspecto de teoria pi& getiana, chamada de socorro: “elaboradas progressivamen-
o ser humano é um ser essencialmente social, te em expressões emocionais, estas reações orga-
possuindo características especificas, distintas de nizam-se em um sistema primitivamente de co-
outros animais: pré-matu ração nervosa, imperí- municação que precede a toda relação com o

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objeto fisico”6. Em outras palavras, o cantata do diferentes teorias contemplam ou não diferentes
bebe com o social precede seu contato com o dimensões do desenvolvimento, tornando-se, fi-
mundo físico (sensório-motor). nalmente, uma teoria “mais completa” do que a
Enfim, a partir destes pontos, pode-se, en- outra. A verdadeira questão, e é somente neste
tão, dizer que Wallon considera o homem como sentido que se pode falar, efetivamente, de apre-
um ser cuja organização biológica contém em sua ensão balística da criança pela teoria, é a de saber
própria estrutura a amálgama do social com o or- que lugar os diferentes registros ou dimensões do
ganizo; enquanto que a base do desenvolvimento desenvolvimento ocupam no ambito de uma de-
mental piagetiano parece ser o indivíduo e suas terminada teoria.
relações com o meio físico organizados num sis- Assim, não se pode levar a sério, estrita-
tema fechado. mente falando, que Piaget, por exemplo, ignora a
O ser humano pelas suas especificidades dimensão social ou que desconhece o papel da
biológicas (imaturidade biológica, por exemplo) afetividade no desenvolvimento humano. Mas é,
é desde o início um ser voltado e votado ao social precisamente, neste ponto que Jalley percebe 0
sendo que “a emoção é o verdadeiro substrato mal entendido que separa as concepções de Piaget
funcional que liga o sujeito ao outro e, através e Wallon, visto que a série biológico-mental-so-
deste outro, ao mundo físico”. Distanciado desta cial (raiz biológica, término social e processo psi-
concepção de Wallon situa-se Piaget para quem cológico intermediário) pode efetivamente ser
são os exercícios funcionais reflexos que levam a aceitável se ela é compreendida dentro de uma
criança a ligar-se diretamente ao mundo dos ob- perspectiva sincrônica, mas não se ela é coloca-
jetos físicos, sendo da ampliação deste universo da, como o faz Piaget, numa perspectiva
físico que ela descobre e se estende ao social. diacrônica.
Entretanto, é bem conhecida a afirmação Ao contrapor estas duas teorias, pretendeu-
piagetiana de que todo fenómeno possui raízes se apenas problematizar a questão da natureza das
biológicas e um término social, sendo que o pro- reduções teóricas que podem fazer obstáculo a
cesso entre estes dois estados é mental ou psico- uma apreensão global da criança como um ser
lógico. Consequentemente, a questão que se co- biológico, social, cognitivo e emocional em de-
loca, em última análise, não é aquela de saber se senvolvimento.

BIBLIOGRAFIA

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Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1978. mo. Lisboa, Editorial Vega, 1978.

6 JALLEY, B. Para una lectura comparada de Piaget y Wallon. In Mon Inf. y aprend. 2: 207-227, 1981.

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