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Sobre o lamento e a lamentação [Über Klage und Klagelied] - Gershom Scholem

William Botura Apostolico - Tradução

Toda língua é infinita. Há, entretanto, uma língua cuja infinitude é mais profunda e diferente
de todas as outras (afora a linguagem1 de Deus). Pois cada linguagem significa, sempre
habitualmente [sonst immer], uma expressão positiva de uma essência [Wesens], e sua
infinitude reside nos dois terrenos fronteiriços do revelado [Offenbarten] e do silenciado
[Verschwiegenen]2, de tal modo que essa infinitude se estende, no sentido mais verdadeiro,
sobre ambos os terrenos; assim, essa linguagem é diferente daquela no caso de que ela reside
inteiramente na fronteira, precisamente na fronteira desses dois reinos. Ela não revela nada,
pois a essência que revela-se nela não tem nenhum conteúdo espiritual [Gehalt] (e por isso
pode-se dizer, ao mesmo tempo, que ela revela tudo), e não silencia [verschweigt] nada, pois
toda sua existência baseia-se numa revolução do silêncio [Schweigens]. Ela não é simbólica,
mas apenas aponta para o símbolo; ela não é objetiva [gegenständlich], mas aniquila o objeto.
Esta língua é o lamento [Klage].

O lamento não é, em absoluto, o contrário de qualquer linguagem, tal como se poderia dizer
do júbilo, da alegria ou de algo semelhante, como gostaria de sugerir [meinen] um ponto de
vista caótico. Pelo contrário, apenas a própria revelação é o contrário do lamento e, por isso,
tampouco pode ele ser superado, transformado por nenhum outro meio exceto pela ida
[Hinführung] em direção à revelação. A alegria, pois, tem um núcleo [Kern]. O lamento,
entretanto, nada mais é do que linguagem na fronteira, linguagem da própria fronteira. Tudo
que diz é infinito, mas somente e só infinito no que diz respeito ao símbolo. No lamento, nada
se exprime e tudo se implica. Ele é a única linguagem instável [labile] possível (e, de um
modo único, a única linguagem instável verdadeiramente efetiva). Cada linguagem pode, de
fato, regressar para si mesma, pode abandonar sua esfera, ir para outras e retornar, saturada
com outras ordens; o lamento, entretanto, não pode nunca se recuperar, tendo uma vez
abandonado sua linha, exceto através da aniquilação da revelação que o impossibilita: sua

1
Sprache foi traduzido tanto por língua quanto por linguagem.
2
essência é irreversivelmente perdida [verloren], se ele não mais for fronteira. Não há
nenhuma estabilidade do lamento.

E também nisso o lamento demonstra-se como o adversário genuíno da revelação: ele


envolve todas as outras linguagens, como uma unidade, ainda que num entendimento
[Verstande] propriamente contrariado, que seja, ele as envolve não como unidade do todo
[Allheit], mas como unidade da particularidade [Besonderheit]. Pois se relevação significa o
patamar onde cada linguagem torna-se absolutamente positiva e não expressa nada mais do
que o positivo do mundo linguístico [sprachlichen], o nascimento da linguagem (não sua
origem!), assim o lamento é precisamente o patamar onde cada língua sofre a morte num
modo verdadeiramente trágico: no sentido de que ele não mais, em absoluto, nada positivo,
mas apenas a pura fronteira. Assim, como já foi dito, cada linguagem reside em dois reinos:
no do revelado, do expresso, e no do simbolizado, silenciado; dessa maneira, cada linguagem
toma parte, em sua transição [Übergang], no lamento, como seu ponto genuinamente trágico
(a língua da tragédia é relacionada, mais intimamente [aufs engste], com o lamento). A
linguagem, na qualidade do lamento, aniquila a si mesma, e a linguagem do lamento é ela
mesma, precisamente por isso, a linguagem da aniquilação [Vernichtung]. Tudo está à mercê
de; o lamento tenta, a cada momento, tornar-se, por assim dizer, novamente símbolo, e, a
cada momento, isso deve fracassar, pois o lamento é fronteira. Por isso também, a infinitude
do lamento direcionou-se totalmente para o símbolo: a transição do símbolo ao lamento é
diferente da transição do lamento ao conteúdo espiritual [Gehalt]. Na linguagem humana, a
segunda transição é, em geral, inexequível [unausführbar], embora seja possível (e provável)
que outras linguagens possam efetuá-la. Não há nuances no lamento, assim como não há
nenhuma nuance na revelação. Não se pode, portanto, traduzir, de maneira significativa, um
lamento em outro, pois essa tradução não transforma nada, a não ser que ela atire-se [stürze]
para fora da sua labilidade e torne-se uma outra coisa. O lamento, entretanto, enquanto for
lamento, permanece sempre o mesmo: há apenas uma fronteira entre os reinos linguísticos do
discurso e do silêncio. Se houvessem mais, assim abrangendo elas uma área, dentro dela o
lamento coincidiria com uma essência espiritual, que não seria puramente simbólica. Mas a
essência espiritual cuja linguagem é o lamento é o luto [die Trauer], dos quais a objetividade
[Gegenständlichkeit] é de natureza exclusivamente simbólica.

Naturalmente, não se deve dizer que o luto, que nós designamos como essência espiritual, é
um objeto em sentido concreto [konkreten]; mas apenas a sua designação como objeto
simbólico (que, no entanto, significa algo mais para além de uma defesa e indica a natureza
do luto) deveria salvaguardar-nos deste mal-entendido, que acontece como se o realismo
conceitual [Begriffsrealismus] fosse aqui praticado. O luto é uma condição de cada coisa, um
estado [Zustand] no qual tudo pode cair; mas a quintessência [Inbegriff] destes estados para
cada coisa conduz a uma ideia desse estado, e é a essa ideia que a nossa reflexão diz respeito.

O luto e o lamento estão num mais claro relacionamento um com o outro. Mas, no entanto, o
luto reside inteiramente no âmbito dos objetos simbólicos: ele designa, para cada coisa, a
primeira ordem do simbólico. Ele próprio não é, no âmbito dos objetos, fronteira, mas
aproxima-se infinitamente da fronteira. E, por isso, sua derivação [Ableitung] na linguagem é
precisamente a fronteira ela mesma. Sua linguagem contém, entre todas as linguagens
simbólicas, o mais profundo paradoxo, pois sua objetividade aniquila a si mesma. Até o gesto
mais silencioso, a palavra mais muda [stummste] torna-se vítima desse paradoxo. A magia do
luto é assim completamente imanente e escapa, aparentemente, de toda ligação [Verbindung]
com outras ordens; assim, necessita da mais violenta revolução do seu mais íntimo ponto
médio [Mittelpunkt] (através da recondução do simbólico ao revelado), a fim de ocasionar
aquele auto-pivotear [Sichselbstüberschlagen] do luto, que deixa, por causa de sua própria
inversão, a orientação surgir como expressão. É, pois, a lei essencial do luto, que aqui só pode
ser conhecida como tal, que ele não possa escapar dessa revolução, se sua pureza não
turvou-se de outra maneira. Assim, o luto toma parte na linguagem, mas de um modo trágico,
pois aquela orientação para a língua o dirige, é claro, contra ele mesmo – e contra a
linguagem. É, pois, a mais verdadeira anarquia, que aqui aparece [erscheint], e que emerge
mais nitidamente na impressão deixada pelo lamento, na mais acabada incapacidade de outras
coisas em responder, com sua linguagem, o lamento. Não há resposta ao lamento, quer dizer,
há apenas uma: o emudecimento. Mas, nesta altura, o lamento aparece novamente como a
profunda oposição da revelação, e essa aparece como a linguagem que pede, mais
absolutamente, por uma resposta, e a faculta. Nem se pode, ao menos uma vez, responder o
lamento com um mesmo lamento. Pois responder o lamento significa querer dar ao luto, que
dirigiu-se apenas para sua própria destruição, uma outra direção. Apenas um pode responder
ao lamento: Deus ele mesmo, que o evocou, através da revelação, de dentro da revolução do
luto.

É uma questão do mais alto significado, que parcela têm os objetos simbólicos naquele nexo
[Zusammenhang] das coisas, cuja ideia nós designamos como ensinamento. O ensinamento
engloba não apenas a linguagem, ele engloba também, de modo mais particular, a ausência de
linguagem [Sprachlose], o silenciado, que pertence ao luto. O ensinamento, que não é
expresso, nem insinuado no lamento, mas sim silenciado, é o próprio silêncio. E, por isso,
também o lamento pode assenhorar-se [bemächtigen] de qualquer linguagem: é sempre não a
expressão vazia, mas extinta, na qual ligam-se o querer morrer [Sterbenwollen] e a
incapacidade de fazê-lo [Nichtsterbenkönnen]. A expressão da mais íntima inexpressividade,
o lamento é a linguagem do silêncio. Essa linguagem é infinita, mas ela possui a infinitude da
aniquilação, que é, por assim dizer, a potência [Potenz] última do que foi extinto, potência
essa que nunca alcança o finito, porque mesmo à sua suprema intensidade, que funda-se na
aniquilação (do luto), defronta-se algo [das Etwas] que deve sua infinitude de revelação. O
lamento é a linguagem inteiramente não-simbólica: pois não há nenhum símbolo do símbolo.
O lamento é simbólico apenas no tocante ao que não é propriamente um símbolo nem um
objeto, mas que foi um símbolo ou objeto, mas que agora significa, na aniquilação do infinito
nada, o vazio [Null] de grau infinito: o inexpressível, o que foi extinto. Mas isso não quer
dizer que o lamento é a linguagem completamente factual [sachlich]; do contrário, pois o fato
seria aqui a própria aniquilação de si, o lamento funda uma ordem completamente autônoma,
que já foi entendida acima, como linguagem da fronteira.

Que o lamento possa ser transmitido, isso pertence às maiores, legitimamente místicas leis da
tradição popular [Volkstum]. O lamento não pode ser legado a todos, mas apenas às crianças
de um próprio povo. Quais estupefatas revoluções com que um povo precisa se deparar, para
que seu lamento seja feito transmissível: que todo um povo discurse na língua do silêncio, é
algo que pode apenas ser pressagiado. O exemplo mais eminente desse tipo é, certamente, a
destruição [Zerstörung] do Templo, a partir da qual o lamento foi transmitido até os nossos
dias (na antiga Israel, talvez seja um outro exemplo as mortes de Saul e Jônatas, depois das
quais Davi ordenou que se ensinasse as crianças de Judá sua nênia)3.

Todo lamento pode ser expresso como poesia, pois precisamente sua liminaridade
[Grenzhalftigkeit] particular entre os reinos linguísticos, seu trágico paradoxo, o transforma
nisso (destarte, possuem também os hebreus a mesma palavra para o lamento e a lamentação
[Klagelied]: Kinah). De fato, talvez as línguas de objetos simbólicos não tenham outra
possibilidade, a fim de se tornarem línguas da poesia, a não ser na qualidade de lamento. E
como isso aparece mais claramente no lamento humano! A tensão [Spannung] infinita, que

3
Nênia traduz, aqui, Totenklage. A tradução mais direta seria lamento de morte, lamento fúnebre. A tradutora da
edição inglesa, Paula Schwebel, traduz Totenklage por dirge. Algumas alternativas cotejadas foram: elogio
fúnebre e elegia. A escolha por nênia, entretanto, se deu porque a palavra grega νηνία (nēnia), da qual o cognato
português deriva diretamente, significa literalmente um tipo de elogio fúnebre público e ritualístico que fazia
parte das antigas práticas litúrgicas gregas.
inflama cada palavra do lamento e, por assim dizer, faz chorar – com certeza, quase não há
nas línguas humanas uma palavra que chore e silencie mais do que a palavra hebraica ‫איכח‬
[eikha] (“Como!), com a qual os nênias começam – a força infinita com que cada palavra se
nega e afunda novamente na infinitude do silêncio, na qual seu vazio torna-se ensinamento,
mas, sobretudo, a infinitude do próprio luto que, no lamento, se aniquila como ritmo, tudo
isso demonstra o lamento como poesia. O ritmo silencioso, a monotonia do lamento é a única
coisa de sua responsabilidade que permanece: como é a única que é símbolo no lamento –
símbolo, diga-se, do ser extinto na revolução do luto, como foi dito acima. Mas precisamente
a inviolabilidade do ritmo em oposição à palavra é o que, no sentido mais elementar, constitui
toda poesia. A monotonia é o profundo símbolo linguístico do inexpressível, que envia seu
fulgor para dentro da escuridão de todo luto, que absorve para si a própria luz. Toda palavra
aparece apenas para morrer, e talvez deva se ousar supor que a forma de arte da maior parte
das lamentações hebraicas tardias, o acróstico alfabético, tenha um sentido simbólico que
esteja ao menos relacionado com o fato de que o lamento envolve toda língua e silencia toda
língua. O acróstico é a forma mágica, na qual a infinitude da linguagem é enfeitiçada
[gebannt]. / Assim, o lamento é na poesia, o que a morte é na esfera da vida.

A lamentação é, em seu sentido mais profundo, quase mítica. Nela, o mito busca uma saída
para um mundo, para o qual não há nenhuma entrada, mundo onde algo pode ser e pode não
ser, mas no qual ninguém pode (lá) chegar, desde a eternidade, se vindo de outro mundo. Na
lamentação, o encanto mítico (com quem, talvez, estivesse ligado originalmente), sucumbe ao
fenômeno linguístico da fronteira. A ordem do próprio lamento nega a possibilidade de
aproveitar sua magia como encantamento: as palavras encantadas não devem ser trágicas. Por
isso, e porque a realidade mítica, que se consumiu na lamentação é de tão grande verdade
interna, pode o judaísmo, depois de ter superado o mito e ter proibido o encantamento,
incorporar para si o lamento. Assim surgiu a Kinah hebraica . A nênia de Davi para Saul e
Jônatas, as lamentações pela destruição do primeiro Templo, o lamento de Jehuda Helvis para
Jerusalém no Zionide ou o lamento do Rabino Meir von Rothenburg para a queima da Torá,
no ‫[ שאלי שדופח‬sch’ali serufa (Questão, (em fogo), arrasada)], designam os três patamares
desse caminho, que significa a tentativa de elevação do lamento à perspectiva divina. O
lamento ele mesmo morre, entretanto, ao longo desse caminho, e apenas a sempre recorrente
força do fenômeno fronteiriço preserva o lamento de tornar-se estável, i.e. mais nada além de
tagarelice [Geschwärz] simbólica4. O ensinamento e o lamento ficam entrelaçados nesse
4
povo, no qual pôde acontecer de o ensinamento lamentar, e de o lamento ensinar, sem que
suas ordens desabassem, mesmo tendo elas sido tão ameaçadas; pois a maior desgraça , que
era vez após vez seu destino, produziu nesse povo o luto, e o luto revolucionou-se em
lamento, e o lamento morre diante de Deus, com o ensinamento, em nome da alma do povo.

As ordens da própria criação preservam o lamento da destruição, um fato que se expressou,


de modo mais profundo, num aggadah na petichtah da midrash Eikhah Rabbati – o famoso
Introdução para um grande lamento, onde Deus ele mesmo deixa-se lamentar pelo templo.
Enquanto a inviolabilidade do silêncio não é ameaçada, humanos e coisas lamentarão, pois
precisamente isto constitui o fundamento de nossa esperança pela restituição da linguagem,
pela reconciliação: a saber, que a linguagem sofreu a queda, mas não o silêncio.

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