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Toda língua é infinita. Há, entretanto, uma língua cuja infinitude é mais profunda e diferente
de todas as outras (afora a linguagem1 de Deus). Pois cada linguagem significa, sempre
habitualmente [sonst immer], uma expressão positiva de uma essência [Wesens], e sua
infinitude reside nos dois terrenos fronteiriços do revelado [Offenbarten] e do silenciado
[Verschwiegenen]2, de tal modo que essa infinitude se estende, no sentido mais verdadeiro,
sobre ambos os terrenos; assim, essa linguagem é diferente daquela no caso de que ela reside
inteiramente na fronteira, precisamente na fronteira desses dois reinos. Ela não revela nada,
pois a essência que revela-se nela não tem nenhum conteúdo espiritual [Gehalt] (e por isso
pode-se dizer, ao mesmo tempo, que ela revela tudo), e não silencia [verschweigt] nada, pois
toda sua existência baseia-se numa revolução do silêncio [Schweigens]. Ela não é simbólica,
mas apenas aponta para o símbolo; ela não é objetiva [gegenständlich], mas aniquila o objeto.
Esta língua é o lamento [Klage].
O lamento não é, em absoluto, o contrário de qualquer linguagem, tal como se poderia dizer
do júbilo, da alegria ou de algo semelhante, como gostaria de sugerir [meinen] um ponto de
vista caótico. Pelo contrário, apenas a própria revelação é o contrário do lamento e, por isso,
tampouco pode ele ser superado, transformado por nenhum outro meio exceto pela ida
[Hinführung] em direção à revelação. A alegria, pois, tem um núcleo [Kern]. O lamento,
entretanto, nada mais é do que linguagem na fronteira, linguagem da própria fronteira. Tudo
que diz é infinito, mas somente e só infinito no que diz respeito ao símbolo. No lamento, nada
se exprime e tudo se implica. Ele é a única linguagem instável [labile] possível (e, de um
modo único, a única linguagem instável verdadeiramente efetiva). Cada linguagem pode, de
fato, regressar para si mesma, pode abandonar sua esfera, ir para outras e retornar, saturada
com outras ordens; o lamento, entretanto, não pode nunca se recuperar, tendo uma vez
abandonado sua linha, exceto através da aniquilação da revelação que o impossibilita: sua
1
Sprache foi traduzido tanto por língua quanto por linguagem.
2
essência é irreversivelmente perdida [verloren], se ele não mais for fronteira. Não há
nenhuma estabilidade do lamento.
Naturalmente, não se deve dizer que o luto, que nós designamos como essência espiritual, é
um objeto em sentido concreto [konkreten]; mas apenas a sua designação como objeto
simbólico (que, no entanto, significa algo mais para além de uma defesa e indica a natureza
do luto) deveria salvaguardar-nos deste mal-entendido, que acontece como se o realismo
conceitual [Begriffsrealismus] fosse aqui praticado. O luto é uma condição de cada coisa, um
estado [Zustand] no qual tudo pode cair; mas a quintessência [Inbegriff] destes estados para
cada coisa conduz a uma ideia desse estado, e é a essa ideia que a nossa reflexão diz respeito.
O luto e o lamento estão num mais claro relacionamento um com o outro. Mas, no entanto, o
luto reside inteiramente no âmbito dos objetos simbólicos: ele designa, para cada coisa, a
primeira ordem do simbólico. Ele próprio não é, no âmbito dos objetos, fronteira, mas
aproxima-se infinitamente da fronteira. E, por isso, sua derivação [Ableitung] na linguagem é
precisamente a fronteira ela mesma. Sua linguagem contém, entre todas as linguagens
simbólicas, o mais profundo paradoxo, pois sua objetividade aniquila a si mesma. Até o gesto
mais silencioso, a palavra mais muda [stummste] torna-se vítima desse paradoxo. A magia do
luto é assim completamente imanente e escapa, aparentemente, de toda ligação [Verbindung]
com outras ordens; assim, necessita da mais violenta revolução do seu mais íntimo ponto
médio [Mittelpunkt] (através da recondução do simbólico ao revelado), a fim de ocasionar
aquele auto-pivotear [Sichselbstüberschlagen] do luto, que deixa, por causa de sua própria
inversão, a orientação surgir como expressão. É, pois, a lei essencial do luto, que aqui só pode
ser conhecida como tal, que ele não possa escapar dessa revolução, se sua pureza não
turvou-se de outra maneira. Assim, o luto toma parte na linguagem, mas de um modo trágico,
pois aquela orientação para a língua o dirige, é claro, contra ele mesmo – e contra a
linguagem. É, pois, a mais verdadeira anarquia, que aqui aparece [erscheint], e que emerge
mais nitidamente na impressão deixada pelo lamento, na mais acabada incapacidade de outras
coisas em responder, com sua linguagem, o lamento. Não há resposta ao lamento, quer dizer,
há apenas uma: o emudecimento. Mas, nesta altura, o lamento aparece novamente como a
profunda oposição da revelação, e essa aparece como a linguagem que pede, mais
absolutamente, por uma resposta, e a faculta. Nem se pode, ao menos uma vez, responder o
lamento com um mesmo lamento. Pois responder o lamento significa querer dar ao luto, que
dirigiu-se apenas para sua própria destruição, uma outra direção. Apenas um pode responder
ao lamento: Deus ele mesmo, que o evocou, através da revelação, de dentro da revolução do
luto.
É uma questão do mais alto significado, que parcela têm os objetos simbólicos naquele nexo
[Zusammenhang] das coisas, cuja ideia nós designamos como ensinamento. O ensinamento
engloba não apenas a linguagem, ele engloba também, de modo mais particular, a ausência de
linguagem [Sprachlose], o silenciado, que pertence ao luto. O ensinamento, que não é
expresso, nem insinuado no lamento, mas sim silenciado, é o próprio silêncio. E, por isso,
também o lamento pode assenhorar-se [bemächtigen] de qualquer linguagem: é sempre não a
expressão vazia, mas extinta, na qual ligam-se o querer morrer [Sterbenwollen] e a
incapacidade de fazê-lo [Nichtsterbenkönnen]. A expressão da mais íntima inexpressividade,
o lamento é a linguagem do silêncio. Essa linguagem é infinita, mas ela possui a infinitude da
aniquilação, que é, por assim dizer, a potência [Potenz] última do que foi extinto, potência
essa que nunca alcança o finito, porque mesmo à sua suprema intensidade, que funda-se na
aniquilação (do luto), defronta-se algo [das Etwas] que deve sua infinitude de revelação. O
lamento é a linguagem inteiramente não-simbólica: pois não há nenhum símbolo do símbolo.
O lamento é simbólico apenas no tocante ao que não é propriamente um símbolo nem um
objeto, mas que foi um símbolo ou objeto, mas que agora significa, na aniquilação do infinito
nada, o vazio [Null] de grau infinito: o inexpressível, o que foi extinto. Mas isso não quer
dizer que o lamento é a linguagem completamente factual [sachlich]; do contrário, pois o fato
seria aqui a própria aniquilação de si, o lamento funda uma ordem completamente autônoma,
que já foi entendida acima, como linguagem da fronteira.
Que o lamento possa ser transmitido, isso pertence às maiores, legitimamente místicas leis da
tradição popular [Volkstum]. O lamento não pode ser legado a todos, mas apenas às crianças
de um próprio povo. Quais estupefatas revoluções com que um povo precisa se deparar, para
que seu lamento seja feito transmissível: que todo um povo discurse na língua do silêncio, é
algo que pode apenas ser pressagiado. O exemplo mais eminente desse tipo é, certamente, a
destruição [Zerstörung] do Templo, a partir da qual o lamento foi transmitido até os nossos
dias (na antiga Israel, talvez seja um outro exemplo as mortes de Saul e Jônatas, depois das
quais Davi ordenou que se ensinasse as crianças de Judá sua nênia)3.
Todo lamento pode ser expresso como poesia, pois precisamente sua liminaridade
[Grenzhalftigkeit] particular entre os reinos linguísticos, seu trágico paradoxo, o transforma
nisso (destarte, possuem também os hebreus a mesma palavra para o lamento e a lamentação
[Klagelied]: Kinah). De fato, talvez as línguas de objetos simbólicos não tenham outra
possibilidade, a fim de se tornarem línguas da poesia, a não ser na qualidade de lamento. E
como isso aparece mais claramente no lamento humano! A tensão [Spannung] infinita, que
3
Nênia traduz, aqui, Totenklage. A tradução mais direta seria lamento de morte, lamento fúnebre. A tradutora da
edição inglesa, Paula Schwebel, traduz Totenklage por dirge. Algumas alternativas cotejadas foram: elogio
fúnebre e elegia. A escolha por nênia, entretanto, se deu porque a palavra grega νηνία (nēnia), da qual o cognato
português deriva diretamente, significa literalmente um tipo de elogio fúnebre público e ritualístico que fazia
parte das antigas práticas litúrgicas gregas.
inflama cada palavra do lamento e, por assim dizer, faz chorar – com certeza, quase não há
nas línguas humanas uma palavra que chore e silencie mais do que a palavra hebraica איכח
[eikha] (“Como!), com a qual os nênias começam – a força infinita com que cada palavra se
nega e afunda novamente na infinitude do silêncio, na qual seu vazio torna-se ensinamento,
mas, sobretudo, a infinitude do próprio luto que, no lamento, se aniquila como ritmo, tudo
isso demonstra o lamento como poesia. O ritmo silencioso, a monotonia do lamento é a única
coisa de sua responsabilidade que permanece: como é a única que é símbolo no lamento –
símbolo, diga-se, do ser extinto na revolução do luto, como foi dito acima. Mas precisamente
a inviolabilidade do ritmo em oposição à palavra é o que, no sentido mais elementar, constitui
toda poesia. A monotonia é o profundo símbolo linguístico do inexpressível, que envia seu
fulgor para dentro da escuridão de todo luto, que absorve para si a própria luz. Toda palavra
aparece apenas para morrer, e talvez deva se ousar supor que a forma de arte da maior parte
das lamentações hebraicas tardias, o acróstico alfabético, tenha um sentido simbólico que
esteja ao menos relacionado com o fato de que o lamento envolve toda língua e silencia toda
língua. O acróstico é a forma mágica, na qual a infinitude da linguagem é enfeitiçada
[gebannt]. / Assim, o lamento é na poesia, o que a morte é na esfera da vida.
A lamentação é, em seu sentido mais profundo, quase mítica. Nela, o mito busca uma saída
para um mundo, para o qual não há nenhuma entrada, mundo onde algo pode ser e pode não
ser, mas no qual ninguém pode (lá) chegar, desde a eternidade, se vindo de outro mundo. Na
lamentação, o encanto mítico (com quem, talvez, estivesse ligado originalmente), sucumbe ao
fenômeno linguístico da fronteira. A ordem do próprio lamento nega a possibilidade de
aproveitar sua magia como encantamento: as palavras encantadas não devem ser trágicas. Por
isso, e porque a realidade mítica, que se consumiu na lamentação é de tão grande verdade
interna, pode o judaísmo, depois de ter superado o mito e ter proibido o encantamento,
incorporar para si o lamento. Assim surgiu a Kinah hebraica . A nênia de Davi para Saul e
Jônatas, as lamentações pela destruição do primeiro Templo, o lamento de Jehuda Helvis para
Jerusalém no Zionide ou o lamento do Rabino Meir von Rothenburg para a queima da Torá,
no [ שאלי שדופחsch’ali serufa (Questão, (em fogo), arrasada)], designam os três patamares
desse caminho, que significa a tentativa de elevação do lamento à perspectiva divina. O
lamento ele mesmo morre, entretanto, ao longo desse caminho, e apenas a sempre recorrente
força do fenômeno fronteiriço preserva o lamento de tornar-se estável, i.e. mais nada além de
tagarelice [Geschwärz] simbólica4. O ensinamento e o lamento ficam entrelaçados nesse
4
povo, no qual pôde acontecer de o ensinamento lamentar, e de o lamento ensinar, sem que
suas ordens desabassem, mesmo tendo elas sido tão ameaçadas; pois a maior desgraça , que
era vez após vez seu destino, produziu nesse povo o luto, e o luto revolucionou-se em
lamento, e o lamento morre diante de Deus, com o ensinamento, em nome da alma do povo.