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Alfabetização

Alfabetização e letramento
e letramento
Luciana Carolina Santos Zatera

Luciana Carolina Santos Zatera

Código Logístico
ISBN 978-65-5821-208-9

I0 0 0 7 8 5 9 786558 212089
Alfabetização
e letramento

Luciana Carolina Santos Zatera

IESDE BRASIL
2023
© 2023 – IESDE BRASIL S/A.
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Z44a

Zatera, Luciana Carolina Santos


Alfabetização e letramento / Luciana Carolina Santos Zatera. - 1. ed. - Curitiba
[PR] : IESDE, 2023.

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-208-9

1. Alfabetização. 2. Letramentos. 3. Escrita. I. Título.

22-81664 CDD: 372.416


CDU: 37.091.33:028.1

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

22/12/2022 22/12/2022

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Luciana Carolina Mestra em Educação e graduada em Letras Português
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Santos Zatera (PUCPR). Graduada em Pedagogia e História pelo
Centro Universitário Internacional (Uninter). Estuda
literatura infantil, letramento literário, mediação de
leitura, língua portuguesa e alfabetização. Atua como
professora na Educação Básica, sobretudo nos Anos
Iniciais e no Ensino Superior. Produz materiais didáticos
para a Educação a Distância.
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SUMÁRIO
1 Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 9
1.1 Breve história da escrita 10
1.2 História da alfabetização no Brasil 15
1.3 Conceitos de alfabetização e letramento 18
1.4 Letramentos 24

2 Métodos e tendências em alfabetização 30


2.1 A polêmica questão dos métodos 31
2.2 Métodos sintéticos e analíticos 35
2.3 Perspectiva construtivista 43
2.4 Perspectiva histórico-crítica 46

3 A criança e a aprendizagem da língua escrita 56


3.1 Desenvolvimento infantil e alfabetização 57
3.2 Diferentes concepções de leitura e escrita 62
3.3 Emília Ferreiro e a psicogênese da língua escrita 66
3.4 Fases do desenvolvimento da escrita 69

4 Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 80


4.1 Aprendizagem inicial da leitura e escrita 81
4.2 Sistema gráfico do português 86
4.3 Alfabetização na BNCC 94
4.4 Transtornos de aprendizagem da escrita 99

5 Práticas alfabetizadoras 107


5.1 Gêneros textuais e aprendizagem da escrita 108
5.2 Sequências didáticas para classes de alfabetização 112
5.3 Literatura infantil e alfabetização 117
5.4 Jogos e brincadeiras na alfabetização 123

Resolução das atividades 129


Vídeo
APRESENTAÇÃO
A história da escrita confunde-se com a história da
alfabetização, porque imagina-se que quando o ser humano
criou os primeiros registros escritos também se preocupou
em ensinar aos outros como esses símbolos deveriam ser
lidos. Afinal, de que serviriam códigos que ninguém pudesse
decifrar? Desde então, a escrita vem evoluindo, cada língua
com suas convenções, perpetuadas àqueles que têm acesso
à cultura letrada, o que ocorre, geralmente, no espaço
escolar. Assim, para que se aproprie da linguagem escrita, é
necessário que o aprendiz passe por um processo explícito e
sistematizado de ensino.
Em vista disso, o primeiro capítulo objetiva apresentar os
conceitos preliminares para o estudo da alfabetização, do
letramento e de suas metodologias. Primeiro, conhecendo
a história da escrita desde seu surgimento e como ela se
desenvolveu ao longo dos anos, dando destaque à história da
alfabetização ocidental e brasileira. Depois, aprofundando os
conceitos de alfabetização e letramentos, considerando suas
semelhanças e diferenças.
O segundo capítulo trata da polêmica em torno dos
métodos de alfabetização, assim como conceitua e exemplifica
os métodos mais conhecidos: os de marcha sintética e os
de marcha analítica. Também são abordadas as tendências
construtivistas e histórico-críticas no âmbito da alfabetização.
O terceiro capítulo propõe a reflexão acerca da
aprendizagem da escrita pela criança, destacando a relação
entre o desenvolvimento infantil e a alfabetização, além de
tratar dos diferentes conceitos de leitura e escrita. Elege,
ainda, a psicogênese da língua escrita como teoria capaz de
explicar as etapas pelas quais as crianças passam em seu
processo de aquisição do sistema de escrita alfabético.
O quarto capítulo aborda a aprendizagem inicial da
leitura e da escrita e a importância do desenvolvimento da
consciência fonológica durante esse processo. Também
explicita o funcionamento do sistema gráfico do português,
pois as relações entre som e grafia não são sempre regulares,
e as relações arbitrárias podem gerar dificuldades aos
alfabetizandos. Além disso, apresenta as proposições da Base
Nacional Comum Curricular para o ensino e a aprendizagem
inicial da leitura e escrita, bem como as dificuldades e os
transtornos relacionados a essas habilidades.
Por fim, o último capítulo conceitua os gêneros
textuais, enumerando suas características e sugerindo
como abordá-los nas classes de alfabetização, por meio
de sequências didáticas que exploram oralidade, leitura,
análise linguística e produção de textos. Ainda, evidenciamos
algumas contribuições da área da literatura infantil para a
alfabetização, assim como alguns jogos e brincadeiras que
podem auxiliar a criança na aquisição da escrita e da leitura.
Esperamos que as reflexões teóricas e sugestões práticas
propostas nesta obra possibilitem a ação pedagógica de
alfabetizar letrando, ao contemplar atividades discursivas
necessárias ao sujeito crítico, atuante na sociedade.
Bons estudos!

8 Alfabetização e letramento
1
Escrita, alfabetização e
letramento: história e conceitos
A linguagem é um tema altamente complexo. Embora o ser humano se
comunique por meio da fala há milhões de anos, ainda há muitas dúvidas
relacionadas ao modo como se adquire a linguagem. Por outro lado, não
costumamos nos preocupar muito com isso no dia a dia, porque a fala nos
parece ser muito natural. Basta uma criança conviver com falantes de uma
língua para que, rapidamente e de modo muito eficaz, passe a falar e a ser
entendida por seus pares.
Contudo, quando tratamos da aquisição da linguagem escrita, há ou-
tras questões a serem abordadas, pois, para dominá-la, faz-se necessário
que o aprendiz passe por um processo explícito e sistematizado de ensi-
no. Por isso, este capítulo objetiva apresentar os conceitos preliminares
para o estudo da alfabetização, do letramento e de suas metodologias.
Primeiro conheceremos a história da escrita, ou seja, como ela se desen-
volveu ao longo dos anos, desde seu surgimento. Em seguida, veremos
que, uma vez criado o sistema de escrita, foi preciso desenvolver um
modo de ensiná-lo às gerações. Então, estudaremos a história da alfabeti-
zação ocidental e brasileira e, por fim, aprofundaremos os conceitos de al-
fabetização e letramentos, considerando suas semelhanças e diferenças.

Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• reconhecer a importância do surgimento da escrita;

• conhecer os principais marcos históricos da alfabetização no Bra-


sil e identificar os avanços relacionados ao ensino e à aprendiza-
gem da leitura e da escrita;

• entender as diferenças entre os termos alfabetização e letramento;

• compreender os letramentos como processos necessários à


aprendizagem de múltiplas linguagens.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 9


1.1 Breve história da escrita
Vídeo
A escrita surge quando o ser humano aprende a expressar suas
ideias, pensamentos e sentimentos por meio de signos. E essa ne-
cessidade decorreu, primeiramente, das atividades comerciais e pro-
dutivas em sociedades mais complexas, como os registros numéricos
relacionados aos produtos agrícolas e à quantidade de animais. Assim,
o aparecimento da escrita se relaciona ao avanço da agricultura e da
pecuária, quando pessoas passam a se fixar por mais tempo em deter-
minado espaço e abandonam os costumes nômades.

JihadoSensei/Shutterstock
Já os desenhos e as pinturas antecedem esse processo, uma vez que
passaram de uma função inicialmente estética para outra mais des-
critiva, isto é, com o objetivo de representar a realidade por meio de
símbolos, para identificar, por exemplo, uma pessoa ou objeto. Barbo-
sa (1994, p. 35) afirma que “nesta fase, a pintura, os desenhos não têm
ligação direta alguma com o idioma, com a fala – que expressa ideias de
maneira auditiva e não visual”.

O desenho com essa função descritiva evolui para uma etapa da


escrita mnemônica ou representativa, ou seja, o mesmo desenho
representa sempre o mesmo objeto ou ser. Todavia, esses registros
precisavam ser compreendidos por outros que partilhassem desse
mesmo sistema criado para tal fim. Assim, nessa fase, os registros são

10 Alfabetização e letramento
feitos para a posteridade, a partir de símbolos semelhantes aos usados
por diferentes pessoas, com auxílio da memória. Isso é decisivo para o
desenvolvimento da escrita (BARBOSA, 1994).

Segundo Barbosa (1994), a próxima etapa é denominada logogra-


fia, em que a mesma representação assume significados associados,
ainda que desvinculados da fala, do idioma. Por exemplo, o desenho do
sol pode significar também brilhante, branco ou dia.

Essas etapas (descritiva, mnemônica e logográfica) foram funda- Vídeo


mentais para o completo desenvolvimento da escrita, que se deu na Aprofunde seus co-
nhecimentos acerca do
Mesopotâmia (hoje, território pertencente ao Iraque) pelo povo sumé-
surgimento da escrita,
rio, por volta de 4000 a. C. No início, apenas baseada em pictogramas assistindo ao vídeo A
história da palavra – O
– desenhos que representavam ideias –, a escrita dos sumérios foi per-
nascimento da escrita, do
dendo o caráter figurativo e se transformou em signos abstratos (lo- canal Rede Catarinense.

gogramas) que evocavam a palavra em si, sem a mediação da imagem Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=TVxmJoi-DDg&t=15s.
do objeto (FARACO, 2012). Essa evolução garantiu maior amplitude e
Acesso em: 13 dez. 2022.
funcionalidade ao ato de escrever, pois nem todas as palavras referem-
-se a objetos visíveis e que podem ser desenhados tal qual a realidade.

Mas a evolução da escrita não parou por aí. Ainda era necessário
memorizar um número muito grande de sinais – que representavam
ideias e não palavras – para ler e escrever. Veja um exemplo, baseado
em Barbosa (1994).
Quadro 1
Evolução da escrita

Sadie Mantell/Shutterstock
Se esse desenho estivesse
O desenho de um pé Poderia significar associado a outro sinal, poderia
significar

Pé Apressar-se
Caminhar Carregar
Estar em pé Alicerce

Fonte: Elaborado pela autora com base em Barbosa, 1994.

Em razão da necessidade de registrar os nomes de pessoas e de mer-


cadorias de modo mais exato e evitar confusões, a escrita suméria evo-
luiu de logográfica para cuneiforme, “passando a representar os nomes
por desenhos dos sons desses nomes” (BARBOSA, 1994, p. 35). Assim, o
signo tem agora valor fonético, independente do seu significado.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 11


Saiba mais Verificando mais um exemplo citado por Faraco (2012) e imaginan-
A escrita cuneiforme, do que a escrita do português tivesse passado por essa evolução, tería-
criada pelos sumérios,
era assim chamada por- mos: um logograma usado para representar a palavra pé passaria a ser
que os símbolos eram usado para compor as sílabas iniciais das palavras pedra, pele, pérola.
feitos em tábuas de argi-
la com uma ferramenta Isso significa que, além da função logográfica, o signo teria adquirido a
chamada cunha. função de representar uma sequência sonora silábica.

Segundo Faraco (2012), a passagem da escrita logográfica para a


cuneiforme, mais uma vez, simplificou o sistema de escrita, deixando-o
mais funcional, pois diminuiu significativamente a quantidade de sig-
nos necessários para escrever. E ainda:
Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mis-
tos, com sua base logográfica suplementada por silabários. A
partir destas representações silábicas se chegou, posterior-
mente, à escrita alfabética, cujo elemento verbal de referência
não são as palavras ou sílabas, mas as consoantes e as vogais.
(FARACO, 2012, p. 55)

Ainda que as consoantes e vogais sejam a base para a escrita alfa-


bética, é fundamental saber que a escrita nunca é fonética no sentido
estrito do termo, porque as letras não representam diretamente os
sons da fala. Elas representam as unidades funcionais da língua – os
fonemas – que são abstratas.

Com isso, segundo Barbosa (1994), expande-se significativamente a


escrita. Os valores silábicos dos signos foram normatizados para que
todos os traçassem da mesma maneira. Além disso, são estabelecidas
correspondências entre signos, palavras e sentidos, e definem-se re-
gras (direção dos signos, forma e sequência das linhas).

Com toda essa evolução, os princípios do sistema de escrita suméria


expandiram-se por todo o Oriente. O sistema cuneiforme foi adaptado
a outros idiomas por vários outros povos. Acredita-se que, por volta de
3000 a. C., esse conhecimento tenha chegado até o Egito. Devido a di-
ferentes condições ambientais existentes na região – como a existência
do papiro, planta abundante nas margens do Nilo e usada como supor-
te para a escrita –, os egípcios foram modificando o sistema de escrita,
até criarem os hieróglifos, formados por 24 sinais para as consoantes.

12 Alfabetização e letramento
Figura 1
Hieróglifos

Triff/Shutterstock
1
Destaca-se, na história da escrita, os povos semíticos , que man- 1
tinham contato com o Egito e a Mesopotâmia, usavam o papiro e um O termo semítico ou semi-
ta refere-se a vários povos
alfabeto de 22 sinais. Conforme Barbosa (1994, p. 36-37), “nesse alfa- – dentre eles, árabes e
beto, cada sinal representava uma consoante única, usando o som das hebreus – que viviam no
Oriente Médio, ocupando
vogais indicado apenas pelo contexto”. uma vasta região, entre o
Mar Vermelho e o planal-
Segundo Cagliari (1998), os fenícios (um dos povos semíticos), para to iraniano. Muitas línguas
formar seu próprio alfabeto, escolheram hieróglifos egípcios que lem- compõem a família semí-
tica, por exemplo, fenício,
bravam o significado das palavras. A primeira palavra era alef (que sig- hebraico, árabe etc.
nificava boi), e o hieróglifo correspondente era o desenho da cabeça de
um boi. Esse desenho passou a representar o som inicial da palavra alef.
Esse processo aconteceu com todas as palavras e suas respectivas con-
soantes. Assim, essas palavras escolhidas passaram a ser os nomes das
letras que representavam a consoante inicial de cada uma das palavras.

Esse fato revela uma mudança significativa: desenhos deixam de


representar diretamente as coisas e passam a representar os sons das
palavras usadas para nomear as coisas. Além disso, dá origem ao prin-
cípio acrofônico da língua, ou seja, ao pronunciarmos os nomes das
letras, ouvimos o som mais característico que elas representam no sis-
tema de escrita. Isso acontece, por exemplo, quando dizemos que bala,
bola, boné começam com a letra b (bê). Nesse caso, os sons coincidem,
mas essa regra não vale para todo o nosso alfabeto. Basta ver o que
acontece com as letras h (agá), g (ga, go, gu), l (éle), m (eme) etc.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 13


Esse sistema de escrita foi levado pelos navegadores fenícios – habi-
tantes da antiga Fenícia (hoje, Líbano) – aos gregos, aproximadamente
em 900 a. C. Desse modo, herdando a representação silábica fenícia e
acrescentando as vogais, os gregos desenvolveram outro alfabeto, com
27 letras, que serviu de base para muitos outros alfabetos, como é o
caso do romano. A letra semítica alef, por exemplo, passou a represen-
tar a vogal a, nomeada pelos gregos de alfa. Além disso, estabeleceu-se
a norma ortográfica para fazer com que falantes de variedades linguís-
ticas diferentes usassem a mesma forma escrita (BARBOSA, 1994; CA-
GLIARI, 1998). Podemos dizer, portanto, com base em Barbosa (1994),
que a história da escrita avançou em razão de três grandes invenções:
Figura 2
Grandes invenções da história da escrita

seamuss/Shutterstock

Fonetização
(sumérios)

Escrita silábica
(semitas)

Alfabeto (gregos)

Fonte: Elaborada pela autora com base em Barbosa, 1994.

Embora diferentes alfabetos tenham se desenvolvido pelo mundo


ao longo de tantos anos, os princípios da escrita não sofreram altera-
ções, pois esses sistemas de escrita foram baseados na escrita grega.

14 Alfabetização e letramento
1.2 História da alfabetização no Brasil
Vídeo
Sabendo que os sistemas de escrita têm pelo menos 6 mil anos, po-
demos supor que a alfabetização acompanha esse importante fato his-
tórico, pois quem criou as primeiras formas de representar graficamente
a fala, as ideias e os pensamentos deve ter se preocupado com a manei-
ra como os demais membros da comunidade fariam para decifrá-las.

Araújo (1996 apud MENDONÇA, 2011) divide a história da alfabetiza-


ção em três grandes períodos:

Figura 3
História da alfabetização
ck
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Antiguidade e Do século A partir de 1980


Idade Média XVI até 1960

Reação contra o método da


Método da soletração Divulgação da teoria da
soletração e criação de novos
psicogênese da língua escrita
métodos sintéticos e analíticos

• Criado o primeiro alfabeto e • Métodos com base nos sons das • Privilegia a função social da
o primeiro método de ensino: letras e de palavras conhecidas. escrita.
soletração, alfabético ou ABC. • Método fônico: ensino dos sons • Leva em conta as hipóteses
• Processo lento e complexo. das letras e não o seu nome. criadas pelas crianças
• Decorar as 24 letras do • Método silábico: ensinam-se acerca da escrita.
alfabeto grego. os nomes das vogais, das
• Associar o valor sonoro à consoantes e as famílias
representação gráfica. silábicas.
• Memorização das famílias • Método global: partir de um
silábicas, das mais simples às contexto mais próximo da
mais complexas. criança. Iniciar apresentando
• Leitura de palavras e pequenos palavras inteiras, depois
textos, segmentados em sílabas. analisar cada sílaba.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Mendonça, 2011.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 15


Cagliari (1998) contribui para a caracterização de cada uma dessas
etapas, expondo que, na Antiguidade, o trabalho de leitura e cópia era a
base da alfabetização. Os alunos aprendiam com os escribas a ler algo já
escrito e, em seguida, copiavam palavras e textos famosos para apren-
der a escrever. Só depois disso escreviam seus próprios textos. Na Idade
Média, da época clássica latina até o século XVI d. C., quem sabia ler e
escrever ensinava quem não sabia, pois essa atividade não era essencial-
mente escolar. As crianças que tinham condições eram educadas pelos
pais, por alguém da família ou por preceptores. A chave da decifração
era o princípio acrofônico, então o aprendiz deveria decorar os nomes
das letras para dar início à decifração escrita. Depois, somava-se a esse
passo inicial os valores das letras para descobrir o que estava escrito.

Na época do Renascimento (séculos XV e XVI), surgiram as primeiras


cartilhas, uma vez que, com a expansão da imprensa, o público-leitor
se amplia, e a leitura, muitas vezes coletiva, passa a ser individual. Con-
sequentemente, a preocupação com a alfabetização aumenta, abrindo
espaço para os manuais de ler e escrever, juntamente com as primeiras
gramáticas neolatinas. O intuito dos gramáticos era “estabelecer uma
2 2
ortografia e ensinar o povo a escrever nas línguas vernáculas , deixan-
Idiomas próprios de cada
país; línguas nacionais.
do de lado cada vez mais o latim” (CAGLIARI, 1998, p. 19).

É também no século XVI que o Brasil é colonizado pelos europeus.


Os padres jesuítas ensinam as primeiras letras aos indígenas, mas os
filhos de colonos aprendem latim, gramática, poética e retórica, se-
3 3
guindo os preceitos do método Ratio Studiorum . Com a expulsão dos
Plano de estudos
difundido na Europa e
jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, as aulas passaram a ser
utilizado pelos jesuítas isoladas, sem vínculo com escolas: as conhecidas aulas régias.
em território brasileiro,
no início da colonização. Desde essa época até o final do Império (1822-1889), a educação
era precária, assim como o material de leitura disponível, mesmo que
já circulassem no Brasil alguns livros produzidos na Europa. O ensino
da leitura iniciava-se com as Cartas de ABC, seguido de leitura e cópia de
documentos manuscritos. O método utilizado era o sintético, ou seja,
começando da parte (letras, sons, sílabas) até chegar ao todo (palavras
e frases). “Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia,
e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o
desenho correto das letras” (MORTATTI, 2006, p. 5).

Contudo, em 1876, o poeta português João de Deus publicou a Car-


tilha Maternal, apresentando uma nova proposta: iniciar o ensino da lei-

16 Alfabetização e letramento
tura pela palavra e depois analisar os sons das letras. Esse método foi Saiba mais
amplamente difundido no Brasil e foi responsável pelo início do debate As primeiras obras de
alfabetização em língua por-
entre os defensores dos métodos sintéticos (da parte para o todo) e tuguesa foram as seguintes,
dos analíticos (do todo para a parte). segundo Cagliari (1998):
Cartinha: escrita em
Então, é a partir do início do período republicano (1889) que ocorre 1540, por João de Barros
(1496-1571), juntamente
a instituição do método analítico, que passa a ser obrigatório em vários
com a gramática portugue-
estados brasileiros. Todavia, a disputa entre os partidários do método sa mais antiga. Continha o
alfabeto, tabelas (taboas)
sintético e os do método analítico acirra-se nessa época. Mortatti (2006)
com todas as combina-
salienta que, nesse mesmo período, a educação brasileira ganha des- ções de letras usadas para
escrever as palavras.
taque como uma das utopias da modernidade. A escola universaliza-se
Método portuguez para
como local adequado para o preparo das novas gerações, ideal para o ensino do ler e do es-
educar as “massas iletradas”. Saber ler e escrever, nesse momento his- crever: de Antonio Felicia-
no de Castilho, publicada
tórico, tornou-se instrumento privilegiado de aquisição de saberes e em 1850. Apresentava um
elemento decisivo de modernização e desenvolvimento social. alfabeto pictural ou icônico
e textos narrativos para
Nesse contexto, a educação, antes restrita e direcionada aos mais ensinar o uso das letras.

abastados, em casa ou nas poucas escolas do Império, cede espaço à Cartilha maternal ou
arte de leitura: cartilha
educação popular, de caráter obrigatório, leigo e gratuito. Sendo assim, portuguesa muito famosa
necessário organizar o ensino, de forma sistematizada, com o principal no Brasil, escrita por João
de Deus (1830-1896).
objetivo de formar mão de obra para o mercado de trabalho, contri- Privilegiava a escrita em
buindo para o crescimento econômico do país (MORTATTI, 2006). detrimento da leitura.

A partir de meados da década de 1920, segundo Mortatti (2006),


surgem novas urgências políticas e sociais e busca por novas propos-
tas de solução para os problemas da alfabetização. Assim, os métodos
mistos foram uma alternativa que buscavam conciliar os métodos sin-
téticos e analíticos. Junto a isso, iniciou-se um processo de relativização
da importância do método, devido à “disseminação, repercussão e ins-
titucionalização das então novas e revolucionárias bases psicológicas
da alfabetização” (MORTATTI, 2006, p. 9).

Desde então, são mais de cem anos de história de alfabetização


no Brasil e, infelizmente, o projeto republicano de inauguração de um
novo país, moderno e letrado não se concretizou por completo. Os es-
forços para modificar essa situação centraram-se por muito tempo na
questão dos métodos de ensino da leitura e da escrita e “muitas foram
as disputas entre os que se consideravam portadores de um novo e
revolucionário método de alfabetização e aqueles que continuavam a
defender os métodos considerados antigos e tradicionais” (MORTATTI,
2006, p. 3). No final do século XX e no início do século XXI, intensifica-

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 17


ram-se os questionamentos acerca do fracasso escolar na alfabetiza-
ção. É nesse contexto que surge o termo letramento, além do aumento
dos debates acerca da alfabetização, especialmente com a divulgação
dos estudos de cunho construtivista.

1.3 Conceitos de alfabetização e letramento


Vídeo
Vamos iniciar esta seção realizando a seguinte reflexão: o que
ou quem é responsável pelo fato de você estar neste momento len-
do esta obra e tantos outros textos escritos? Talvez você lembre o
nome da professora da primeira série ou então simplesmente diga
que em algum momento da vida foi alfabetizado e, por isso, conse-
gue com facilidade ler este texto. Provavelmente foram necessários
muitos anos escolares para que a leitura tenha se tornado uma ati-
vidade fluente e cada vez mais desafiadora, pois à medida que os
anos escolares avançam, além de decifrar as letras e formar sílabas,
palavras e frases, a capacidade de interpretação textual também é
exigida pela escola.

Segundo Soares (2003), seja na infância ou na fase adulta, aces-


sar o mundo da escrita é um processo realizado pelo sujeito por
meio de duas vias: a primeira, pelo aprendizado de uma técnica; a
segunda, pelo desenvolvimento de práticas de uso dessa técnica.
Dito de outro jeito, a primeira seria o processo de alfabetização e a
segunda, o letramento.

Esses dois processos são simultâneos, apesar de diferentes. Quan-


do estamos diante de um novo jogo de tabuleiro, como procedemos?
Obviamente precisamos ler as regras para sabermos como proce-
der, ou seja, precisamos dominar a técnica; todavia, mesmo lendo
com atenção o manual de instrução, precisamos jogá-lo para efetiva-
mente entender como ele funciona. E é na prática que conseguimos
compreender algumas situações que se mostravam complicadas nas
regras. O mesmo acontece quando se está aprendendo a dirigir. Nas
aulas teóricas, aprende-se a técnica da direção, mas é apenas ao pegar
um automóvel e começar a dirigir que a técnica fará sentido. No entan-
to, sabemos que muitas pessoas aprendem a dirigir antes mesmo de
frequentar aulas teóricas na autoescola, assim como muitas crianças

18 Alfabetização e letramento
aprendem novos jogos sem lerem as regras. Mas o que isso significa no
contexto da alfabetização e do letramento?

Significa que a alfabetização não é pré-requisito para o letramen-


to. As crianças podem aprender a função da leitura e da escrita e
participar de práticas letradas – audição de histórias, produções co-
letivas de texto, leitura de imagens dos livros infantis etc. – antes
mesmo de dominarem a técnica de leitura e escrita. Levar isso em
consideração não faz o processo de alfabetização ser menos impor-
tante do que o letramento, pois a alfabetização, conforme Soares
(2003), é parte constituinte da prática de leitura e escrita. Por isso,
é essencial conceituarmos alfabetização e letramento para que não
restem dúvidas sobre a importância de reconhecer a especificidade
de cada termo e sua complementaridade.

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Alfabetização
Aprendizagem de uma tecnologia própria da lei-
tura e da escrita; domínio do código convencional
das relações grafema e fonema (SOARES, 2003).

Letramento
Processo de desenvolvimento da língua oral e
escrita. Estado ou condição que assume quem
aprende a ler e escrever (SOARES, 2014).

A alfabetização, por designar o aprendizado de uma tecnologia de


representação da linguagem humana, “envolve um conjunto de conhe-
cimentos e procedimentos” relacionados ao “funcionamento desse
sistema de representação” e às “capacidades motoras e cognitivas
para manipular os instrumentos e equipamentos de escrita” (SOARES;
BATISTA, 2005, p. 24).

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 19


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Conhecimentos e procedimentos
A escrita alfabético-ortográfica é um sistema de representação.
Esse sistema se distingue de outros, como o desenho, e
representa certas propriedades do signo linguístico.
A utilização desse sistema envolve uma automatização das
relações entre o escrito e aquilo que representa.

Capacidades motoras e cognitivas


Habilidades de ler e escrever seguindo a direção correta da escrita da
página (no português, da esquerda para a direita e de cima para baixo).
Habilidades de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta, bor-
racha, teclado etc.).
Aprendizagem de uma postura corporal adequada.
Aprendizagem da caligrafia (letra cursiva, caixa alta etc.).

Detalhando os conceitos apresentados, vamos abordar a questão


do signo linguístico, fundamental à compreensão do processo de
alfabetização, pois é por ele que a linguagem verbal se realiza. Por
exemplo, quando falamos ou ouvimos a palavra casa, utilizamos signos
linguísticos, que possuem sempre duas faces: uma delas é o significa-
do; a outra, o significante. Veja a figura a seguir.
Figura 4
Signo linguístico

Svetolk/Shutterstock
2

Ideia que formulamos ao


1

CASA Significado escutar ou falar as palavras.

2
/KAZA/ Significante Conjunto de sons costoboc/Shutterstock
articulados, ao qual
associamos um significado.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Soares; Batista, 2005.


1

Então, ouvimos ou falamos a palavra casa e associamos os sons [k]


+ [a] + [z] + [a] (o significante) ao seu significado, que pode ser moradia,
habitação, lar. Assim, podemos dizer que o sistema de escrita do portu-
guês representa sempre o significante linguístico e não o significado,
pois utilizamos os sons das palavras, representados por meio de letras
(grafemas) para ler e escrever.

20 Alfabetização e letramento
Essa é uma das primeiras habilidades que devem ser aprendidas
pelas crianças em fase de alfabetização: saber que as letras usadas
para escrever as palavras da língua representam, de modo geral, os
sons da língua. Entretanto, é preciso destacar que
não se escreve como se fala. A fala se dá de diferentes maneiras
em diferentes regiões do país e em vários grupos sociais, mas
a escrita elege algumas letras e sinais para representar apenas
alguns dos sons destas variedades. Logo, a escrita não é, embora
muitos creiam nisto, uma transcrição da fala, não é um código de
transcrição. [...] Uma transcrição mais exata da fala só pode ser
obtida por meio do alfabeto fonético, mas não por meio da escri-
ta alfabética convencional. (ROJO, 2006, p. 17, grifos do original)

Sendo assim, a escrita é um processo de representação da fala e Vídeo


não de transcrição, pois muitos de seus aspectos são baseados em O vídeo Alfabetização e
letramento, publicado pelo
convenções. A alfabetização designa, portanto, a aprendizagem da co-
canal Alfaletrar, apresenta
dificação (escrita) e da decodificação (leitura), que ocorre no início da a professora Magda Soa-
res explicando a diferença
escolarização e tem, de certa forma, um fim, assim que o sistema de
entre esses dois termos.
escrita é dominado pelo aprendiz.
Disponível em: https://
Podemos perguntar, então: por que o termo alfabetização, com o pas- www.youtube.com/
watch?v=k5NFXwghLQ8&t=7s.
sar do tempo, deixou de ser suficiente para designar a aprendizagem Acesso em: 14 dez. 2022.
da leitura e da escrita e houve a necessidade de incorporar à área da
educação e da linguística o termo letramento? Vejamos um exemplo, ci-
tado por Soares (2014). Até 1940, ser alfabetizado no Brasil significava
saber escrever seu próprio nome, de acordo com o formulário do Cen-
so. Para votar ou assinar um contrato de trabalho, isso era suficiente. A
partir dessa década, a pergunta mudou: “sabe ler e escrever um bilhete
simples?”. Embora essa pergunta não garanta a apresentação de dados
fidedignos sobre a quantidade de alfabetizados ou analfabetos no Brasil,
percebe-se a alteração do critério para saber a quantidade de alfabeti-
zados e analfabetos do país: saber assinar o nome não é mais suficiente
para ser considerado alfabetizado, mas já há preocupação com os usos
sociais da leitura e da escrita, ou seja, com o letramento da população.

Portanto, o letramento pode se estender por toda a vida, ao en-


volver a participação efetiva do sujeito em práticas sociais de uso da
leitura e da escrita. Ser letrado é incorporar no dia a dia as práticas de
leitura e escrita, ter competência para ler livros, jornais, revistas, textos
on-line, manuais, bulas, receitas, artigos de opinião, produzir textos di-
versos para cada situação de comunicação exigida.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 21


Contudo, pode ser que alguém seja capaz de ler e compreender
uma notícia na internet, mas tenha dificuldade para ler um romance.
Ou sabe escrever uma mensagem de WhatsApp, mas não sabe escre-
ver um artigo científico. Isso significa que há diferentes níveis de letra-
mento, “dependendo das necessidades, das demandas do indivíduo e
de seu meio, do contexto social e cultural” (SOARES, 2014, p. 49).

Os estudos sobre o letramento são bastante vastos e não há uma de-


finição única para o termo. Pode-se dizer, de modo geral, que há duas di-
mensões para o letramento: uma individual e outra social. Na dimensão
individual, o letramento é um atributo pessoal e refere-se à “posse indi-
vidual das tecnologias mentais complementares de ler e escrever” (SOA-
RES, 2014, p. 66). Quanto à dimensão social, “o letramento é visto como
um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que envolvem
a língua escrita, e de exigências sociais de uso da língua escrita” (SOARES,
2014, p. 66). Em outras palavras, o letramento, para a dimensão social, é
o que os sujeitos “fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um
contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as ne-
cessidades, valores e práticas sociais” (SOARES, 2014, p. 72).

A seguir, podemos observar algumas definições que ajudam a en-


tender melhor a dimensão individual do letramento, quanto às habili-
dades de leitura e de escrita, de acordo com Soares (2014).

Dimensão individual do letramento


Leitura
• Conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, desde a habilidade
de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender tex-
tos escritos.

• Captar significados; interpretar sequência de ideias; fazer analogias,


comparações; entender a linguagem figurada; fazer previsões; construir
significados combinando conhecimentos prévios com informação tex-
tual; monitorar a compreensão; modificar previsões quando necessário;
refletir sobre o que foi lido; tirar conclusões; fazer julgamentos sobre o
conteúdo dos textos etc.).

• Ler diversos gêneros/tipos de textos: literatura, obras técnicas, livros


didáticos, dicionários, jornais, revistas, artigos, receitas, documentos
oficiais etc.
(Continua)

22 Alfabetização e letramento
Escrita
• Conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, desde registrar uni-
dades de som, relacionando-os a símbolos escritos, até a capacidade
de transmitir significado de modo adequado a um leitor em potencial.

• Transcrever a fala; habilidade motora (caligrafia); ortografia; pontuação;


selecionar informações sobre determinado assunto; selecionar o públi-
co leitor; estabelecer metas para a escrita e escolher a melhor forma
de desenvolvê-la; organizar as ideias, estabelecer relações entre elas e
expressá-las adequadamente.

• Variedade de materiais escritos desde uma lista de compras até a escri-


ta de um ensaio ou de uma tese de doutorado.

Quanto à dimensão social do letramento, Soares (2014) explica que há


duas vertentes que consideram o letramento como um conjunto de prá-
ticas sociais relacionadas à escrita e à leitura em que os sujeitos se envol-
vem em seu contexto social. A primeira é uma interpretação progressista
ou liberal do letramento social, considerada mais “fraca”, e a segunda con-
siste em uma perspectiva radical ou revolucionária, considerada “forte”.

Para a interpretação progressista ou liberal, o letramento não


pode ser desvinculado de seus usos reais e sociais. Refere-se a habili-
dades necessárias para que o sujeito funcione adequadamente em um
contexto social. Possui teor pragmático, uma vez que se preocupa com
Biografia
a sobrevivência do indivíduo na sociedade: uso da leitura e da escrita
Um dos principais
para conseguir ou manter um emprego, fazer compras, andar pela ci- teóricos do letramento,
dade, enfim, atender às demandas sociais cotidianas. Decorrente des- Brian Street, foi professor
e antropólogo britâni-
sa interpretação está a ideia de que o letramento é responsável pelo co. Realizou pesquisas
“desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso relacionando a leitura
e a escrita à cultura, à
profissional, cidadania” (SOARES, 2014, p. 74). identidade e aos diversos
contextos em que essas
Diferentemente dessa postura, Soares (2014, p. 75) explicita que a
práticas estão presentes.
interpretação radical ou revolucionária compreende o letramento Seu livro Letramentos
sociais: abordagens
como “um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem
críticas do letramento
a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e res- no desenvolvimento, na
etnografia e na educação
ponsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de
é uma referência impor-
distribuição de poder presentes nos contextos sociais”. Sendo assim, tante para quem deseja
aprofundar seus estudos
letramento não pode ser entendido como um instrumento neutro a ser
sobre letramentos.
utilizado nas práticas diárias quando solicitado pelas demandas sociais.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 23


Um dos estudiosos adeptos dessa interpretação revolucionária é Brian
Street, que nomeia esse tipo social de letramento como modelo ideo-
lógico. Para ele, letramento tem um significado político e ideológico e
não pode ser tratado como um fenômeno individual ou autônomo. Por
isso, as práticas de leitura e escrita são sempre propostas e exigidas
pelas instituições sociais. Adversa à versão progressista de letramento
social, para a perspectiva revolucionária,
As consequências do letramento são consideradas desejáveis
e benéficas apenas por aqueles que aceitam como justa e igua-
litária a natureza e estrutura do contexto social específico no
qual ele ocorre. Quando não é esse o caso, quando a natureza
e a estrutura das práticas e relações sociais são questionadas,
o letramento é visto como um instrumento da ideologia, utili-
zado com o objetivo de manter as práticas e relações sociais
correntes, acomodando as pessoas às condições vigentes.
(SOARES, 2014, p. 76)

Pode-se perceber, portanto, que há muitas variáveis que abran-


gem o letramento, sendo difícil defini-lo em poucas palavras ou até
mesmo estabelecer critérios únicos para avaliar se um indivíduo é
letrado ou não, pois seu conceito é bastante flexível e pode cobrir di-
ferentes níveis e habilidades de leitura e escrita. Além disso, também
podemos dizer que o letramento vai além das questões relacionadas
à leitura e à escrita. Atualmente, no contexto educacional, fala-se em
letramentos – com o uso do plural.

1.4 Letramentos
Vídeo
No final do século XX, os estudos sobre letramento chegaram ao
Brasil e continuam avançando, sobretudo em decorrência do adven-
to das tecnologias digitais de informação e comunicação. Por essa ra-
zão, atualmente, fala-se em letramentos, no plural, pois, segundo Rojo
e Moura (2019), tudo o que se faz em ambientes urbanos envolve a
escrita. Até mesmo os analfabetos envolvem-se em práticas letradas,
como tomar ônibus, utilizar cartão bancário, receber benefícios etc.
Contudo, para participarem de práticas letradas de esferas valorizadas,
a alfabetização é o pressuposto mínimo. Mais do que isso, é preciso
ter desenvolvido outras habilidades e capacidades de compreensão,

24 Alfabetização e letramento
interpretação e produção de textos escritos. E essa prática contínua é
tarefa da escola, portanto, da educação formal, a que muitos não têm/
tiveram acesso ou tiveram de maneira precária.

Atualmente, o termo letramento é utilizado para designar práticas so-


ciais não somente de leitura e escrita da letra, mas de imagens/outras
semioses ou de saberes específicos; por exemplo, letramento literário,
letramento visual, letramento digital, letramento matemático, letramen-
to acadêmico, letramento científico etc.

Outra questão que leva à passagem do termo letramento para o plu-


ral é que os estudos acerca da temática avançam para a área socioan-
tropológica, especialmente a partir dos novos estudos dos letramentos
com Brian Street, e chegam ao Brasil, em 1995, com Ângela Kleiman.
Para eles, as práticas letradas são “modos culturais de utilizar a lingua-
gem escrita com que as pessoas lidam em suas vidas cotidianas, sejam
elas alfabetizadas ou não, com os mais diferentes graus de (an)alfabe-
tismo” (ROJO; MOURA, 2019, p. 17). Essas práticas são altamente variá-
veis, de acordo com as comunidades e culturas nas quais os sujeitos se
inserem. Por isso, as práticas letradas são múltiplas, materializando-se
como “eventos de letramento”, sempre situados em determinados con-
textos sociais e culturas específicos.

Contudo, atualmente, as práticas sociais não mais se restringem à


leitura e escrita do texto verbal, mas avançam em direção à leitura de
imagens (estáticas e em movimento), áudios, vídeos etc. Rojo e Moura
(2019, p. 19) complementam:
Com o desenvolvimento dos meios e máquinas de produção e
distribuição de escrita, temos não só a alteração dos textos e,
decorrentemente, dos letramentos, mas também a diluição da
separação das diferenças entre as diversas linguagens e letra-
mentos. Assim, os textos/discursos produzidos, ao saírem dos
escritos-impressos e passarem a contar com novas mídias como
meios de distribuição, circulação e consumo [...] em plena cultura
das mídias, não somente os meios, mas também as mensagens
se alteram, podendo, aos poucos, passar a combinar múltiplas
linguagens que não somente a oral e a escrita, mas também ima-
gens estáticas e em movimento, músicas e sons variados.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 25


Vídeo Com isso, surgiu uma nova palavra para designar essas práticas
Os vídeos Pedagogia dos múltiplas de letramento: multiletramentos. Esse termo foi cunhado
Multiletramentos – partes
1 e 2, produzidos pelo pelo The New London Group (Grupo de Nova Londres), formado por
programa Escrevendo o estudiosos de diferentes universidades, em 1996. Reconhece-se, por-
Futuro e disponibilizados
no canal OlimpiadaLP tanto, “múltiplas formas de comunicação e construção de sentidos, in-
Cenpec, apresenta a cluindo os modos visual, auditivo, espacial, comportamental e gestual”
professora Roxane Rojo
dando exemplos práticos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 19).
de como explorar os mul-
tiletramentos na escola.
Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 19) explicam a dupla dimensão do

Disponíveis em:
termo multiletramentos. Multi significa, primeiramente, diversidade social,
Parte 1: https://www.youtube.com/ ou seja, a “variabilidade de convenções de significado em diferentes situa-
watch?v=IRFrh3z5T5w
Parte 2: https://www.youtube.com/
ções culturais, sociais ou de domínio específico”. Isso quer dizer que os tex-
watch?v=uj4gNjksb88 tos variam muito a depender do contexto social, como citam os autores:
Acessos em: 14 dez. 2022.
“experiência de vida, assunto, domínio disciplinar, ramo de trabalho, conhe-
cimentos especializados, ambiente cultural ou identidade de gênero”.

Essas diferenças ficam evidentes no modo como interagimos no dia


a dia e como construímos significados. Por isso, segundo o New London
Group (1996 apud KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), é necessário lidar
com as diferenças linguísticas e culturais que se tornam cada vez mais
centrais para as práticas das vidas profissionais, cívicas e privadas, por-
que “uma efetiva cidadania e um trabalho produtivo requerem que pos-
samos interagir efetivamente usando múltiplas linguagens [...] e padrões
de comunicação que cruzam fronteiras nacionais, culturais e comunitá-
rias” (NEW LONDON GROUP, 1996 apud KALANTZIS; COPE; PINHEIRO,
2020, p. 20), num ensino voltado às diferenças multiculturais existentes.

Multi também remete à multimodalidade. Em razão das tecnologias di-


gitais de informação e comunicação (TDIC), os significados são construídos
de maneira cada vez mais multimodal, em que o textual está integrado ao
visual, ao áudio, ao espacial, ao comportamental etc. Esses modos integra-
dos, de acordo com Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 20), são capazes
de “cruzar o tempo e a distância, como gravações e transmissões orais, vi-
suais, auditivas, gestuais e outros padrões de significados”. Por essa razão,
“uma pedagogia voltada ao ensino de leitura e escrita precisa ir além da
comunicação alfabética, incorporando, assim, a essas habilidades tradicio-
nais as comunicações multimodais, particularmente aquelas típicas das
novas mídias digitais”. Os dois significados de multi, presentes na palavra
multiletramentos, podem ser entendidos conforme a figura a seguir.

26 Alfabetização e letramento
Figura 5
Multiletramentos

ck
to
rs
Modal

te t
hu
t/S
escrito, visual, espacial, tátil,

er
Ab
gestual, áudio, oral

s
to
en
am
tr
le
ti
Contextual
ul
M

ambiente comunitário; papel


social; relações interpessoais;
identidades; assuntos

Fonte: Elaborada pela autora com base em Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020.

É necessário, portanto, nas práticas pedagógicas, manter o equilí- 4


brio entre o trabalho com o “letramento da letra e do impresso” e os
Multimidiático diz respeito
multiletramentos, relacionados aos gêneros textuais multimodais e aos gêneros textuais
4 presentes em diferentes mí-
multimidiáticos , além de contemplar a diversidade cultural e a maior
dias: TV, rádio, internet etc.
variedade possível de práticas de linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alfabetizar e letrar são práticas que devem estar presentes no dia a dia
da escola. Para isso, é necessário que os docentes conheçam a evolução
histórica pela qual passou a alfabetização e os novos caminhos apontados
pelos estudos sobre os letramentos e multiletramentos. Além disso, de-
vem compreender a especificidade de cada um desses processos, assim
como perceber que não é possível alfabetizar sem levar em conta as prá-
ticas sociais efetivas de linguagem.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 27


ATIVIDADES
Atividade 1
Explique a importância da evolução da escrita logográfica para
a cuneiforme.

Atividade 2
Construa uma breve linha do tempo acerca da história da alfabeti-
zação no Brasil. Tome como base os períodos a seguir: século XVI
até o final do Império (1889); Brasil República (a partir de 1889);
meados da década de 1920; final do século XX e início do XXI.

Atividade 3
Diferencie os termos letramento e alfabetização e explique por que
são práticas que se complementam.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, J. J. Alfabetização e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994.
CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá, bé, bi, bó, bu. São Paulo: Sciplione, 1998.
FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo: Contexto, 2012.
KALANTZIS, M.; COPE, B.; PINHEIRO, P. Letramentos. Trad. de Petrilson Pinheiro. Campinas:
Editora da Unicamp, 2020.
MENDONÇA, O. S. Percurso histórico dos métodos de alfabetização. Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Departamento de Educação, UNESP – Presidente Prudente, p. 23-35, 15 ago. 2011.
Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40137/1/01d16t02.
pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.
MORTATTI, M. do R. L. História dos métodos de alfabetização no Brasil. 2006. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf. Acesso
em: 13 dez. 2022.
ROJO, R. As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas - caderno do professor.
Belo Horizonte: Ceale, 2006. Disponível em: https://orientaeducacao.files.wordpress.
com/2017/02/col-alf-let-13-relacoes_fala_escrita.pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.
ROJO, R.; MOURA, E. Letramentos, mídias, linguagens. São Paulo: Parábola Editorial, 2019.
SOARES, M. A reinvenção da alfabetização. Presença pedagógica, v. 9, n. 52, jul./ago. 2003.
Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/programa_
aceleracao_estudos/reivencao_alfabetizacao.pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.

28 Alfabetização e letramento
SOARES, M. B.; BATISTA, A. A. G. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo
Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://mid-educacao.curitiba.pr.gov.
br/2019/5/pdf/00220354.pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 3. ed. 2 reimp. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.

Escrita, alfabetização e letramento: história e conceitos 29


2
Métodos e tendências
em alfabetização
Vamos iniciar este capítulo relembrando um momento importante:
como você foi alfabetizado? Em que ano? Em que escola e em qual cida-
de? Era rural ou urbana? Qual o nome de sua professora? Qual método
ela utilizava? Quais atividades eram feitas? Que materiais eram usados?
Como eram realizadas as avaliações?
Se você foi alfabetizado na década de 1980 ou antes disso, é provável
que você tenha se lembrado das letras contornadas com barbante, dos
cadernos de caligrafia, dos ditados, da cartilha; de ter aprendido primeira-
mente as vogais, depois as consoantes pela ordem alfabética, as famílias
silábicas, as listas de palavras e frases, como Ivo viu a uva ou A mala do
macaco é mole.
Se você é mais jovem, pode ser que suas lembranças sejam diferentes des-
sas e menos nítidas do que as rememoradas por quem frequentou a escola há
mais tempo, pois naquela época os métodos eram mais explícitos.
No entanto, se tanta coisa mudou com o tempo, e a educação conti-
nua passando por processos constantes de transformação, qual seria a
importância de abordarmos os métodos de alfabetização no contexto
atual? Esse debate é sempre cercado de contradições, porque muitas
vezes atribui-se o fracasso ou o sucesso da aprendizagem da escrita e
da leitura unicamente ao método escolhido, sem levar em conta que a
educação é uma questão política e social. Ademais, segundo os estu-
dos da psicogênese da língua escrita, o aprendiz tenta compreender o
sistema de escrita se apropriando desse conteúdo segundo a sua pró-
pria lógica e não necessariamente pela lógica do método. Assim, este
capítulo tratará da polêmica em torno dos métodos de alfabetização,
assim como irá conceituar e exemplificar os métodos mais conhecidos:
os de marcha sintética e os de marcha analítica. Também serão abor-
dadas as tendências construtivistas e histórico-críticas no âmbito da
alfabetização.

30 Alfabetização e letramento
Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• posicionar-se criticamente em relação aos métodos de alfabetiza-
ção, observando suas potencialidades e fragilidades;

• diferenciar métodos sintéticos de analíticos, avaliando seus bene-


fícios para a alfabetização;

• identificar as principais características da perspectiva construtivis-


ta sobre o desenvolvimento inicial da escrita;

• identificar as principais características da perspectiva histórico-


-crítica sobre o desenvolvimento inicial da escrita.

2.1 A polêmica questão dos métodos


Vídeo
A questão acerca dos métodos de alfabetização é polêmica porque
a cada momento histórico aparecem propostas metodológicas que
prometem ser as melhores, as mais bem-sucedidas, aquelas que re-
solverão os problemas do ensino e da aprendizagem de leitura e escri-
ta. Os sujeitos envolvidos nesses processos garantem que os métodos
usados anteriormente são ultrapassados ou tradicionais, para fazer va-
ler as propostas mais recentes e ditas inovadoras. É preciso destacar,
contudo, que uma ideia nova sempre está ancorada em algum aspecto
da que a antecedeu, portanto, desqualificar um modo de fazer mais
antigo e substituí-lo por outro não fará do último um método infalível,
nem mesmo resolverá todos os problemas da educação. Esse “novo”
método não estará, portanto, isento de críticas e falhas.

Soares (2016) atesta que a questão dos métodos como problemá-


tica a ser elucidada não é recente. Desde as décadas finais do século
XIX – época em que se inicia a consolidação de um sistema público
de ensino – surge a necessidade de implantação de um processo de
escolarização que oportunizasse às crianças o domínio da escrita e
da leitura. Como houve distintas respostas a essa demanda, o mé-
todo como questão controversa e polêmica se coloca desde então,
atravessando o século XX e permanecendo até hoje. Assim, desde
aquela época até 1980, dois caminhos para o ensino da leitura e es-
crita se alternaram: os métodos sintéticos (de base fônica e silábica)

Métodos e tendências em alfabetização 31


e os métodos analíticos – que consideram a realidade psicológica da
criança e a aprendizagem significativa e, por isso, partem da com-
preensão da palavra escrita para chegar ao valor sonoro de sílabas e
grafemas. Consequentemente,
Dessas duas vias de evolução nasceu a controvérsia [...] que se
estendeu até os anos 1980, entre métodos sintéticos e analíticos,
controvérsia que se concretizou em um movimento pendular:
ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual a apren-
dizagem da língua escrita deve partir de unidades menores da
língua – dos fonemas, das sílabas – em direção às unidades maio-
res – à palavra, à frase, ao texto (método fônico, silábico); ora
a opção pelo princípio da análise, segundo o qual essa apren-
dizagem deve, ao contrário, partir das unidades maiores e por-
tadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto – em direção às
unidades menores (método da palavração, método da senten-
ciação, método global). Uma ou outra orientação predominou,
em diferentes momentos, ao longo de quase todo o século XX
– até os anos 1980. (SOARES, 2016, p. 18-19)

Soares (2016) adverte, contudo, que independentemente da es-


colha por uma ou outra dessas orientações, ambos os métodos
se limitam ao objetivo de ensinar o sistema alfabético-ortográfico
da escrita. Ainda que, no método analítico, parta-se de um todo
significativo, as palavras, frases ou textos são escolhidos anteci-
padamente de modo rígido e controlado, de acordo com a ordem
que se deseja ensinar. Por exemplo, os dígrafos (lh, nh, ch etc.) são
ensinados ao final do ano, porque são considerados dificuldades
ortográficas. Frases e textos são artificiais, compostos por palavras
“permitidas” em cada lição, distantes dos usos sociais dos discur-
sos. Além disso, a aplicação desses métodos pressupõe que é pre-
ciso dominar completamente o sistema de escrita para que depois
se possa produzir textos reais.

É somente na década de 1980, portanto, que há uma mudança sig-


nificativa na área da educação, com “o surgimento do paradigma cog-
nitivista, na versão da epistemologia genética de Piaget, que aqui se
difundiu na área da educação sob a discutível denominação de constru-
tivismo, paradigma introduzido e divulgado no Brasil, sobretudo pela
obra de Emilia Ferreiro” (SOARES, 2016, p. 20).

32 Alfabetização e letramento
As principais críticas feitas aos métodos sintéticos e analíticos são:
Figura 1
Críticas aos métodos sintéticos e analíticos

Samarets/Shutterstock
Conhecimento
Ensino prevalece transmitido por
sobre a meio do método
aprendizagem. e da cartilha.

Alfabetização se
reduz à escolha
do método.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Soares, 2016.

Assim, o uso da palavra método na área da alfabetização provoca


diferentes reações. Alguns professores consideram-na uma palavra
proibida, como se método fosse sinônimo de algo ultrapassado, tradi-
cional, que não se deve mais usar. Outros julgam que as escolas deve-
riam adotar um único método para alfabetizar os alunos ou até mesmo
que os métodos antigos eram mais eficazes do que as propostas atuais.

Por isso, ressalta-se que os métodos não são “salvadores” da peda-


gogia da alfabetização. Eles são somente um dos aspectos do ensino
do ler e do escrever, e de modo geral os “problemas e sucessos na
alfabetização também podem ser explicados por questões muito mais
amplas que passam [...] pela discussão de uma problemática social”
(FRADE, 2005, p. 14).

Métodos e tendências em alfabetização 33


Vídeo Além disso, atualmente não é possível tratar dos métodos de alfa-
No vídeo Métodos de alfa- betização isoladamente, como se os professores em suas práticas ti-
betização - Magda Soares -
Entrevista - Canal Futura, a vessem de escolher apenas um deles e, consequentemente, condenar
professora Magda Soares ou ignorar as demais tendências ou estudos nas áreas da educação,
explica a importância do
ensino sistemático da psicologia e linguagem. A reflexão acerca dos métodos, segundo Frade
relação entre letras e sons (2005), perpassa também os estudos sobre o letramento, que contri-
no processo de alfabeti-
zação, assim como das buem para a compreensão dos fatores culturais, sociais e econômicos
práticas de letramento. Os envolvidos no processo de alfabetização.
dois processos são essen-
ciais para a aprendizagem Assim, falar em método de alfabetização no século XXI não significa
e o desenvolvimento da
leitura e escrita.
retroceder no tempo e nem mesmo considerar que apenas o método é

Disponível em: https://


responsável pelos problemas relacionados à aprendizagem da leitura e
www.youtube.com/ escrita. É preciso combater a rigidez na escolha dos métodos, refletindo
watch?v=mAOXxBRaMSY. Acesso
em: 8 dez. 2022.
sobre o que faz sentido para as crianças no contexto atual. Se sabemos
que a escrita apresenta novos usos e uma diversidade de materiais e
textos de leitura para a criança e para a sociedade, qual seria o sentido
de, por exemplo, utilizar cartilhas, com textos artificiais, distantes das
práticas sociais de linguagem?

Para aprofundarmos essa questão, consideremos que a palavra mé-


todo, na área da alfabetização, pode ter ao menos os seguintes senti-
dos, de acordo com Frade (2005, p. 15):
• um método específico, como o silábico, o fônico, o global;
• um livro didático de alfabetização proposto por algum autor;
• um conjunto de princípios teórico-procedimentais que organi-
zam o trabalho pedagógico em torno da alfabetização, nem sem-
pre filiado a uma vertente teórica explícita ou única;
• um conjunto de saberes práticos ou de princípios organizadores
do processo de alfabetização, (re)criados pelo professor em seu
trabalho pedagógico.

Dada a diversidade de definições, podemos perceber que o uso


de um determinado método será sempre subjetivo, pois dependerá
dos saberes de cada docente, dos conhecimentos, das competências
e práticas advindas de sua formação, experiência e história de vida.
Portanto, de modo mais geral, podem-se usar os termos metodologias
ou didáticas da alfabetização para se referir a um conjunto de deci-
sões que estão relacionadas à ideia de como fazer, levando em conta
os procedimentos de ensino tomados “em função dos conteúdos de
alfabetização que se quer ensinar e do conhecimento que o professor
tem sobre os processos cognitivos dos alunos, quando estes tentam

34 Alfabetização e letramento
compreender o sistema alfabético e ortográfico da linguagem escrita e
seu funcionamento social” (FRADE, 2005, p. 16).

Por isso, é necessário que os professores compreendam como fun-


cionam os métodos clássicos de alfabetização e, segundo Frade (2005,
p. 16), tomem decisões relativas aos métodos, “à organização da sala
de aula e de um ambiente de letramento, à pesquisa sobre práticas
culturais de escrita na família e na comunidade, à definição de capa-
cidades a serem atingidas, à escolha de materiais, de procedimentos”.

Se antes um método era entendido como uma maneira específica


de ensinar conteúdos próprios da fase inicial da leitura e da escrita,
atualmente, usando o termo didática da alfabetização, Frade (2005)
destaca que método não pode ser confundido com controle da apren-
dizagem, com a ausência de teorias, com a escolha inflexível de um
só caminho ou somente um material didático. Pelo contrário, a di-
dática da alfabetização envolve vários procedimentos complexos que
exigem do professor a escolha de diversos caminhos. Ou como define
Soares (2016, p. 16), método de alfabetização é “um conjunto de pro-
cedimentos que, fundamentados em teorias e princípios, orientem a
aprendizagem inicial da leitura e da escrita”. Vamos, portanto, iniciar
pelo conhecimento acerca dos dois principais métodos de alfabetiza-
ção: os sintéticos e os analíticos.

2.2 Métodos sintéticos e analíticos


Vídeo
Antes de conceituarmos e exemplificarmos métodos de alfabetização
sintéticos e analíticos, salientamos que, de acordo com Soares (2016),
métodos designam um conjunto de procedimentos, baseados em teo-
rias e princípios linguísticos e psicológicos que orientam a aprendizagem
inicial da leitura e da escrita. Eles não se constituem em processos li-
neares; pelo contrário, são altamente complexos, possuem limitações e
obstáculos e não atuam isoladamente, pois ocorrem na relação entre al-
fabetizandos e alfabetizador, entre sujeitos diferenciados, “em situação
de aprendizagem coletiva, em um contexto escolar inserido em determi-
nada comunidade socioeconômica e cultural” (SOARES, 2016, p. 50-51).

Alfabetizadores e alfabetizandos apresentarão características pes-


soais distintas: classe social, gênero, idade, variante linguística, traços

Métodos e tendências em alfabetização 35


de personalidade, contexto familiar. Os primeiros ainda irão se dife-
renciar de seus pares pelas experiências profissionais (formação inicial
e continuada), experiência no magistério, motivação e aptidão para o
ensino. Os segundos serão diferentes uns dos outros devido às expe-
riências prévias com a língua escrita e às atitudes desenvolvidas em
relação à escola (SOARES, 2016).

Soma-se a isso o fato de que a situação de ensino e aprendizagem


ocorre inserida em determinado contexto escolar e em determinada
comunidade. Cada sala de aula terá número de alunos, espaço, mate-
rial didático e recursos adequados ou não à prática dos métodos. Sem
contar que o tamanho, as condições físicas, o currículo, a organização
de tempo, a gestão administrativa e a educacional da escola também
impactam nas ações educativas entre alfabetizadores e alfabetizandos.
E, por conseguinte, a escola está inserida em uma comunidade com
determinado nível socioeconômico, composição social e étnica, grau de
inserção na cultura letrada e expectativas relacionadas à escolarização.
Sendo assim, métodos que, a princípio, apoiam-se em teorias alteram-
-se na prática, pois “quem alfabetiza não são os métodos, mas o (a) al-
fabetizador(a), sendo ele/ela quem é, com o uso específico que faz dos
métodos e com tudo que acrescenta a eles, e sendo os alfabetizandos
aqueles que são, ocorrendo o processo no contexto e nas condições
em que ocorre” (SOARES, 2016, p. 52).

Todas essas questões, contudo, não invalidam os métodos, haja


vista que
métodos têm a importante função de propiciar ao ensino substra-
to científico e pedagógico que fundamente a prática, ao mesmo
tempo que pode ser corrigido por ela, e de oferecer critérios para
encaminhamentos e correção de rumos. Precisam, sim, adaptar-
-se à interferência dos fatores externos, de modo a respeitá-los
ou superá-los, mas não podem ser negados por causa deles. [...]
métodos de alfabetização são [...] suficientemente flexíveis para
que, na prática pedagógica, possam superar as dificuldades in-
terpostas por fatores externos que interfiram na aprendizagem
dos alfabetizandos. (SOARES, 2016, p. 53)

Dito isso, vamos retomar a história dos métodos. Vale lembrar que,
quando surgiram os métodos sintéticos e analíticos, todas essas ques-
tões citadas e os aspectos da aprendizagem do sistema alfabético/orto-
gráfico da escrita e dos conteúdos relacionados ao seu uso social ainda

36 Alfabetização e letramento
não estavam em pauta na área da educação. A atenção estava voltada
apenas ao método adotado para o ensino inicial da leitura e escrita.
Nesse sentido, observe o Quadro 1:
Quadro 1
Métodos de alfabetização sintéticos e analíticos

Métodos Característica Objeto


Da parte para o todo.
Correspondências fonográficas. Alfabético: a unidade é a letra.
Sintéticos Distanciamento da situação de uso e do Fônico: a unidade é o fonema.
significado. Silábico: a unidade é a sílaba.
Análise do sistema de escrita.
Do todo para as partes. Contos: a unidade é o texto.
Analíticos Trabalho com o sentido e a compreensão. Palavração: a unidade é a palavra.
Percepção global dos fenômenos e da língua. Sentenciação: a unidade é a frase.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Frade, 2005.

Os métodos sintéticos privilegiam as correspondências fonográfi-


cas e vão da parte para o todo. Diferentemente, nos métodos analí-
ticos, o ensino se inicia pelo todo até chegar às unidades menores da
língua, com o objetivo de trabalhar com o sentido global, com a com-
preensão. Vejamos as demais particularidades desses métodos.

2.2.1 Métodos sintéticos


Os métodos sintéticos, como se pode observar no Quadro 1, com-
preendem o método alfabético, o fônico e o silábico. O mais antigo de-
les, conforme Frade (2005), é o alfabético, muito utilizado até o século
XX. Iniciava-se por meio da apresentação das letras do alfabeto, depois
das sílabas e, por fim, das palavras. Para isso, era necessário decorar
o alfabeto a fim de formar as sílabas e, posteriormente, vir a enten-
der que esses segmentos poderiam formar palavras. É também dessa
época o uso da soletração, em que os aprendizes precisavam decorar
e cantar as combinações silábicas da língua: be-a-ba; be-e-be; be-i-bi;
be-o-bo; be-u-bu e assim por diante. Sabe-se que eram usados como
material didático desse período as Cartas de ABC e os silabários.

A vantagem desse método é que o nome de várias letras do alfabeto


remete, ao menos, a um fonema que elas representam na escrita. No
entanto, ao pronunciá-las, há fonemas usados para formar o nome das
letras que não entram na constituição das sílabas e isso dificultava o

Métodos e tendências em alfabetização 37


Curiosidade processo. Por exemplo, N (ene) + A = NA; T (tê) + U = TU; R (erre) + E =
A música ABC do Sertão, RE; Z (zê) + A = ZA: NATUREZA.
de Zé Dantas e Luiz Gon-
zaga, é um belo exemplo Outro método sintético é o fônico, cuja unidade mínima é a análi-
de um dos tipos de alfa-
beto que, possivelmente,
se do som; portanto, ensinam-se as relações entre sons e letras com
tenha sido criado pela o objetivo de relacionar a palavra falada à escrita. Inicia-se ensinan-
dificuldade em soletrar as
sílabas e formar palavras
do a forma e o som das vogais, depois, as consoantes, estabelecen-
pelo método alfabético. do-se relações cada vez mais complexas entre elas. De acordo com
No alfabeto popular de
regiões do Nordeste, por
Frade (2005, p. 25), “cada letra é aprendida como um som que, junto
exemplo, os nomes das a outro som, pode formar sílabas e palavras”. Há uma sequência que
letras são pronunciados
assim: a, bê, cê, dê, ê, fê e
deve ser seguida para o ensino dos sons, das relações mais simples
assim sucessivamente. às mais complexas.
Disponível em: https://www.
A vantagem desse método é a seguinte: o aprendiz que entender as
youtube.com/watch?v=c8bEJ1d-
dlk. Acesso em: 6 dez. 2022.] relações de correspondência direta entre o fonema e sua representa-
ção escrita vai, facilmente, decifrar as sílabas que contêm essas letras.
No português, p, b, v, f, t e d sempre representam o mesmo fonema:
pato, bala, verdura, farofa, tecido, doce.

Contudo, há muitas outras relações entre fonemas e grafemas


usadas na escrita que geram dificuldades no início da alfabetização.
Um exemplo é a variação na pronúncia dos falantes das diversas re-
giões brasileiras, como a palavra leite, escrita com e, mas que pode ser
pronunciada como se houvesse uma letra i ao final da sílaba. Outra
questão é que algumas letras podem representar diversos fonemas, de
acordo com a posição que ocupam na palavra. A letra x, por exemplo,
pode ser usada para representar diferentes fonemas: exato, externo,
xícara, máximo. O fonema /s/ pode ser representado por diferentes
letras: sapo, cebola, caçador, pássaro, piscina, excelente.

Mais uma questão pertinente a ser evidenciada na utilização do mé-


todo fônico, segundo Frade (2005), é que a consoante sozinha nunca é
plenamente pronunciada sem estar acompanhada de uma vogal. En-
tão, quem utiliza esse método acaba criando formas um tanto artificiais
para pronunciar o som das consoantes sozinhas, para depois juntá-las
ao som das vogais e demonstrar a formação das sílabas. Por exemplo,
chamar os sons das consoantes /p/, /b/, /l/ de /pã/, /bã/ e /lã/, respec-
tivamente. No exemplo a seguir, observa-se a primeira lição de uma
cartilha baseada no método fônico, quando as crianças já aprenderam
as vogais e os fonemas /p/, /b/ e /l/.

38 Alfabetização e letramento
ck
to
rs
tte
S hu
ck/
sto
t er
ut
Sh
or
ct
Ve

Leia:
O boi e o lobo.
O lobo pula.
O boi bebe.
O lobo é belo.
Complete:
O lobo ............................................
O boi ..............................................
O lobo é .........................................

daria.volkova_art/Shutterstock

O método fônico continua a ser usado na atualidade, em diferentes


realidades, a partir das seguintes propostas de atividades, conforme
cita Frade (2005, p. 27):
identificação das letras e repetição de seu nome e do seu som
característico, identificação de fonemas em palavras ditas pelo
professor ou criação de palavra a partir de um som; ênfase nos
sons correspondentes a figuras com letra inicial destacada;
identificação de som final e som inicial e também discriminação
entre sons diferentes. Assim, os alunos identificam o som, pen-
sam na letra que o representa e acham a palavra que começa
com o mesmo som.

O último método sintético a ser apresentado é o silábico. Mesmo


que, nesse caso, a sílaba seja a unidade mínima a ser analisada, muitas
cartilhas que se propõem a ensinar por meio desse método iniciam
seus trabalhos com as vogais e seus encontros, “como uma das condi-
ções para a sistematização posterior das sílabas” (FRADE, 2005, p. 27).

Métodos e tendências em alfabetização 39


A ordem de apresentação das sílabas acontece das mais fáceis às mais
difíceis. Palavras-chave são usadas apenas para nelas destacar a sílaba
a ser trabalhada, que será estudada em sua respectiva família silábica.
A partir das sílabas apresentadas, são formadas novas palavras, mas
apenas com essas sílabas ou com aquelas já aprendidas em lições an-
teriores. O mesmo acontece com pequenas frases ou textos. Veja um
exemplo, baseado na famosa cartilha Caminho Suave.

ck

curiosity/Shutterstock
to
rs
te
ut
Sh
ck/
to
rs
te
ut
Sh
or
ct
Ve
A vaca é a Violeta.
Bebê bebe leite de vaca.

vaca viva vovô


valeta vivo vovó
cava uva viola
cavalo ovo viúva

va – ve – vi – vo – vu
Va – Ve – Vi – Vo – Vu
va – ve – vi – vo – vu
Va – Ve – Vi – Vo – Vu

O benefício do método silábico é que a unidade sonora da língua


1 portuguesa é a sílaba. Por isso, não há a dificuldade de se pronunciar
A Escola Nova foi um mo- somente a letra (no método alfabético) ou o som (no método fônico).
vimento de renovação do
ensino, ocorrido no início
Esse método é vantajoso também para os casos em que as sílabas não
do século XX, sobretudo possuem relação direta entre grafema e fonema: m e n (tempo, vento);
na Europa e na América.
Fernando Azevedo, Lou-
dígrafos (chave, barra, guitarra, queijo, exceto etc.).
renço Filho e Anísio Teixei-
ra foram pioneiros desse
movimento no Brasil, ao
defender que a educação
2.2.2 Métodos analíticos
é um instrumento eficaz Os métodos analíticos também são chamados de métodos globais,
para a construção de uma
sociedade democrática. porque seus defensores, baseados em teorias sobre aprendizagem –
1
especialmente em razão do movimento da Escola Nova – acreditam

40 Alfabetização e letramento
que a linguagem funciona como um todo, e que se deve por isso prio-
rizar a compreensão. Assim, contrariando o ensino da leitura e escrita
por meio de fragmentos de palavras – como nos métodos sintéticos –
os métodos analíticos postulam que a “escola tem que acompanhar os
interesses, a linguagem e o universo infantil e, portanto, as palavras
percebidas globalmente também devem ser familiares e ter valor afeti-
vo para a criança” (FRADE, 2005, p. 32).

Um dos métodos analíticos é o método da palavração, por meio


do qual se apresenta, primeiramente, uma palavra – apreendida
globalmente e por reconhecimento – que depois é decomposta em
sílabas. Frade (2005, p. 33) aponta que a escolha de palavras “não
obedece ao princípio do mais fácil ao mais difícil. São apresentadas
independentemente de suas regularidades ortográficas. O importan-
te é que tenham significado para os alunos”. O reconhecimento das
palavras – que podem estar acompanhadas por figuras – se dá pela
visualização e configuração gráfica. O aprendiz é incentivado a memo-
rizá-las, atentando-se aos componentes das palavras (letras, sílabas e
sons). Junto a isso, são trabalhadas estratégias de leitura que enfati-
zam o significado e “ações inteligentes de busca de leitura como fonte
de prazer e informação e a crença na ligação entre a percepção de
ideias e formas na aprendizagem” (FRADE, 2005, p. 33), sendo essas
as vantagens do método da palavração.

No método da sentenciação, a sentença deve ser reconhecida glo-


balmente e compreendida. Depois, decomposta em palavras e em sí-
labas. Outra estratégia usada é a comparação entre palavras, isolando
seus elementos recorrentes, para ler e escrever novas palavras. É co-
mum, ainda, se valer da oralidade das crianças, registrar orações sim-
ples e fixá-las na sala de aula para posterior consulta dos alunos, com o
objetivo de encontrar novas palavras e combinações.
2
Tanto o método da palavração como o da sentenciação apresen-
“A denominação pré-livro
tam uma desvantagem, segundo Frade (2005): a dificuldade do alu- [...] em contraposição à
no em enfrentar novas palavras, quando os docentes se limitam à cartilha e seu [...] método,
o sintético, é atribuída à
visualização das palavras e frases, não incentivando a análise e o professora mineira Lúcia
reconhecimento de partes das palavras, além de perderem muito Casasanta, quando da di-
vulgação do método global
tempo com a memorização. de contos, desde os anos
de 1930, no Brasil (PERES;
Há ainda o método global de contos, cuja unidade inicial é o texto. RAMIL, 2018, p. 38).
2
Para esse trabalho, eram usados os pré-livros com textos já conhe-

Métodos e tendências em alfabetização 41


cidos, como histórias clássicas infantis, ou textos desconhecidos, um
para cada lição, com repetição das mesmas personagens em todo o
livro. Um exemplo de pré-livro com textos criados para a alfabetização
é O livro de Lili, de Anita Fonseca, no qual se observam textos que, ape-
sar de não apresentarem problemas de simplificação na escolha das
palavras, ainda se distanciam da linguagem autêntica de histórias in-
fantis. Observe o exemplo a seguir que, no original, vem acompanhado
de uma ilustração com a menina Lili deitada na cama e a cachorrinha
Suzete tentando acordá-la. O texto apresenta uma estrutura diferen-
te dos contos infantis que circulam socialmente, com frases um tanto
quanto desarticuladas.

Vector Shutterstock/Shutterstock
Suzete
Au! Au! Au! – diz Suzete.
Venha, Lili. Venha depressa.
Venha brincar comigo no jardim.
Eu gosto tanto de brincar com você!
Você corre atrás da bola.
Eu corro atrás de você.
Au! Au! Au! Venha depressa, Lili.

(FONSECA, 1961)

Embora se possam observar certas fragilidades nos textos – como


nesse exemplo –, a vantagem do método global de contos, de acordo com
Frade (2005, p. 37), é que “a linguagem é apresentada de uma maneira
que se aproxima mais do uso efetivo do que nos outros métodos, por-
que não se dissocia a forma do significado”. A autora ainda acrescenta:
Apesar do tom artificial de alguns textos e mesmo quando se
elege a organização por palavra ou sentença, a criança tem aces-
so a uma significação, podendo “ler” palavras, sentenças ou tex-
tos desde a primeira lição, por reconhecimento global. Supõe-se
que, assim, mantém-se o interesse desde o início do processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. Esse tipo de leitura, com
foco na memorização global, possibilita que os alunos não se
percam na tentativa de decodificação e que leiam com rapidez
palavras conhecidas. (FRADE, 2005, p. 37)

42 Alfabetização e letramento
A desvantagem do método de contos revela-se na incerteza do
professor em saber se os alunos estão realmente lendo as lições ou
recitando o texto que foi memorizado por eles. Portanto, se não apren-
derem a decodificar, não conseguirão ler novas palavras.

2.3 Perspectiva construtivista


Vídeo
O biólogo Jean Piaget, buscando respostas sobre o que é o co-
nhecimento, formulou uma teoria chamada de epistemologia gené-
tica, preocupando-se com mecanismos e processos por meio dos
quais, segundo Maia (2017), é possível progredir de etapas em que
se tem menor conhecimento àquelas com maior conhecimento.
Essa teoria é a principal base do construtivismo, em suas diferen-
3
tes formas de expressão.
O conceito de sujeito
cognoscente ou epistêmico Emilia Ferreiro e Ana Teberosky apresentam o construtivismo apli-
“diz respeito ao sujeito
cado à alfabetização para buscar explicação sobre como funciona a
que pensa, reflete, elabora
hipóteses sobre o mundo aquisição da língua escrita pela criança. Elas aplicaram à alfabetização
que o cerca. É um sujeito 3
a ideia de sujeito cognoscente , definido por Piaget, demostrando que
ativo no processo de cons-
trução do conhecimento, a criança procura ativamente compreender o mundo ao seu redor e
enfim, um sujeito capaz de
resolver as questões que esse mundo provoca. Esse sujeito, segundo
conhecer” (GOMES; MON-
TEIRO, 2005, p. 36). Martins e Marsiglia (2015), aprende a partir de suas ações sobre os ob-
jetos do mundo e constrói suas próprias categorias de pensamento en-
Biografia quanto organiza seu mundo.

Jean Piaget (1896-1980) Nesse processo de aprendizagem, é preciso considerar o concei-


nasceu na Suíça, na cidade
to piagetiano de esquemas assimilativos. Em seu desenvolvimento, o
de Neuchâtel. Foi um ga-
roto prodígio, pois aos 10 sujeito passa por vários desequilíbrios e equilibrações. A criança, para
anos publicou seu primeiro
se equilibrar, ao se deparar com uma situação nova, aciona dois me-
artigo, demonstrando inte-
resse pela natureza e pelas canismos: a assimilação e a acomodação. O primeiro refere-se à in-
ciências. Continuou seus
corporação de uma experiência ou objeto aos esquemas preexistentes
estudos em áreas naturais,
principalmente zoologia. do sujeito. O segundo, por sua vez, consiste na reorganização desses
Interessou-se por filosofia,
esquemas para que o organismo se ajuste aos novos elementos (MAR-
religião, lógica e, assim,
conheceu a epistemolo- TINS; MARSIGLIA, 2015; PALANGANA, 2015).
gia (área da filosofia que
estuda o conhecimento). No contexto escolar, a abordagem construtivista piagetiana destaca
Formou-se em Biologia,
a importância da relação entre professores e alunos em colaboração
Psicologia e Sociologia e
trabalhou como professor para a construção do conhecimento acerca da linguagem escrita. O in-
em várias universidades
divíduo – influenciado pelo meio, mas não passivo – é capaz de apren-
(PALANGANA, 2015).
der a partir de sua própria ação. Sendo assim,

Métodos e tendências em alfabetização 43


Biografia o processo de construção é muito valorizado e os erros são ana-
A argentina Emilia Ferreiro lisados como hipóteses constitutivas do processo de ensino-
(1936) é pesquisadora, -aprendizagem. A relativização do erro amplia as possibilidades
pedagoga e psicóloga. É o
nome mais influente nos
de aprender e de ensinar, como também as possibilidades de
estudos sobre alfabeti- intervenção do professor como agente provocador e reequilibra-
zação no Brasil. Em seu dor. A cooperação entre os estudantes é reconhecida e valorizada.
doutorado, foi orientada
(GOMES; MONTEIRO, 2005, p. 36)
por Jean Piaget. Ela e Ana
Teberosky escreveram a
obra Psicogênese da língua
Voltando à questão específica da alfabetização, Ferreiro e Teberosky
escrita, resultado dos es- postulam que “é preciso compreender os processos de aprendizagem
tudos acerca da aquisição
da linguagem escrita pela
da criança ao tentar reconstruir a representação do sistema alfabético”
criança e de seu papel (FRADE, 2005, p. 40). Para isso, apresentam uma descrição do processo
ativo na aprendizagem.
evolutivo da escrita infantil, considerando o aprendiz como um sujeito que
• tem acesso à escrita na sociedade antes de passar por um pro-
cesso sistemático de ensino na escola;
• tem um processo lógico de pensamento, de modo que cada
“erro” de escrita que produz indica uma hipótese sobre o conteú-
do do sistema alfabético de escrita;
• constrói conhecimentos em situação espontânea, desde que
conviva com o sistema de escrita e obtenha algumas informações
sobre seu funcionamento.
Considerando esses pressupostos e de acordo com Frade (2005), a
tendência construtivista em alfabetização postula que:
Figura 2
Características do construtivismo na alfabetização
Samarets/Shutterstock

É preciso considerar o processo e que um método ou uma única direção não


determina a aprendizagem da criança.

A escola deve proporcionar experimentação em torno da escrita e deixar de focar


apenas os “erros” dos alunos.

O material utilizado para a alfabetização deve ser diverso e representar o uso


social da leitura e da escrita.

Os alunos devem expressar, sem medo, o que sabem.

O professor deve conhecer teorias de como se aprende para compreender o


desenvolvimento de cada aluno e saber o nível de compreensão de escrita da criança.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Frade, 2005.


44 Alfabetização e letramento
Vale ressaltar a questão do erro para a tendência construtivista.
Com esse propósito, imagine uma criança em processo de alfabetiza-
ção que tenha escrito uma lista de nomes de frutas do seguinte modo:

Vector Shutterstock/Shutterstock
ABHT (abacate)
LARGA (laranja)
MECLA (melancia)
AGU (caju)
BEIRA (pera)
ABHIX (abacaxi)

Essa criança já conhece as letras do alfabeto e já adquiriu um im-


portante conhecimento acerca da escrita: ela já compreende que cada
letra possui um valor sonoro específico e que não basta registrar um
conjunto qualquer de letras para escrever uma palavra. Portanto, ela já
estabelece a relação grafema e fonema, no entanto, ainda elabora uma
hipótese silábica, ou seja, julga que uma letra equivale a uma sílaba,
ainda que em algumas situações já consiga compreender a sílaba (la e
ga, em laranja; me, em melancia; gu, em caju).

Para uma tendência tradicional, baseada em métodos alfabéticos, si-


lábicos ou fônicos, esses seriam erros grotescos. Na verdade, dificilmen-
te a criança tentaria escrever uma lista como essa, pois a cópia seria uma
solução para evitar desvios da escrita correta. Porém, numa perspectiva
construtivista, esses “erros” são importantes para a aquisição da língua
escrita, pois a criança elabora hipóteses acerca da realidade e “lança
mão de procedimentos próprios para testar e experimentá-las” (SUZU-
KI, 2013, p. 30). Essas hipóteses advêm de seus esforços para aprender,
quando aciona seus conhecimentos prévios para chegar a uma resposta
que supõe estar correta. Por isso, ao ingressar na lógica do pensamento
infantil, o professor pode identificar o erro construtivo da criança e ajudá-
-la a pensar sobre esse erro, a fim de superá-lo. Essa atitude é
Uma oportunidade de discutir hipóteses e buscar soluções, di-
ferentemente de outras abordagens, nas quais o erro era evi-
tado a qualquer custo. Impedir a criança de errar lhe confisca
as chances de vivenciar o processo de sucessivas aprendizagens
e de construir os instrumentos imprescindíveis ao seu pensar.
(SUZUKI, 2013, p. 30)

Métodos e tendências em alfabetização 45


Vídeo É preciso destacar, contudo, que levar em consideração esses aspec-
Assista ao vídeo Pensa- tos não anula a necessidade de ensinar a relação grafema e fonema nas
dores na Educação: Emilia
Ferreiro e as práticas de classes de alfabetização, ou seja, não é possível alfabetizar em uma abor-
alfabetização para saber dagem construtivista abandonando a especificidade do processo de al-
mais sobre essa grande
estudiosa da alfabetização. fabetização. Infelizmente, o construtivismo foi mal interpretado; muitos

Disponível em: https://


propagaram a ideia de que as crianças se alfabetizariam apenas no con-
www.youtube.com/ tato com textos, construindo sozinhas seu próprio aprendizado. Soares
watch?v=wP0P44YnBeU. Acesso
em: 12 dez. 2022.
(2003, p. 17) explica essa falha, ao afirmar que junto à mudança conceitual,
nos anos 80, com a divulgação das ideias construtivistas, “veio a ideia de
que não seria preciso haver método de alfabetização [...]. Por equívocos e
por inferências falsas, passou-se a ignorar ou a menosprezar a especifici-
dade da aquisição da técnica da escrita”. Por isso, a autora salienta:
Ninguém aprende a ler e a escrever se não aprender relações
entre fonemas e grafemas – para codificar e para decodificar.
Isso é uma parte específica do processo de aprender a ler e a
escrever. Linguisticamente, ler e escrever é aprender a codificar
e a decodificar. (SOARES, 2003, p. 17)

Sendo assim, adotar uma concepção construtivista de ensino inicial


da leitura e da escrita não significa renunciar a um método, pois, como
professores, não conseguiremos atingir os objetivos planejados se não
tivermos um caminho, uma direção. Soares (2003) assinala que de toda
teoria educacional deve derivar um método que dê um caminho ao
professor. “É uma falsa inferência achar que a teoria construtivista não
pode ter método, assim como é falso o pressuposto de que a criança
vai aprender a ler e escrever só pelo convívio com textos. O ambiente
4
alfabetizador não é suficiente” (SOARES, 2003, p. 18).
Segundo Frade (2005, p.
41), uma teoria psicolin- Portanto, o construtivismo aplicado à alfabetização e divulgado por Emi-
guística “explicita como 4
os aprendizes organi- lia Ferreiro é uma teoria psicolinguística e não uma teoria pedagógica de
zam psicologicamente como ensinar. Além disso, essa perspectiva reconhece a necessidade de
a aprendizagem de um
conteúdo de escrita”. abordar unidades menores de análise, como a letra, o fonema ou a sílaba,
isto é, sem menosprezar a especificidade da aquisição da técnica da escrita.

2.4 Perspectiva histórico-crítica


Vídeo
Iniciaremos esclarecendo que esta seção busca explorar aspectos
do desenvolvimento da escrita, fundamentados na psicologia históri-
co-cultural – cujos principais teóricos são Vygotsky, Leontiev e Luria – e
pautados na pedagogia histórico-crítica . Esses três autores destacam
5

46 Alfabetização e letramento
a natureza social do desenvolvimento e, consequentemente, o papel 5
fundamental da educação escolar. Segundo a perspectiva histórico-cul- A pedagogia histórico-críti-
ca foi um termo cunhado
tural, é fundamental transmitir às novas gerações o que os seres huma- por Demerval Saviani,
nos já desenvolveram e conquistaram no decorrer da história. Todavia, em 1978, e “assume um
compromisso explícito
essa transferência não acontece natural nem mecanicamente. É preciso com a transformação da
6
desenvolver as funções psicológicas superiores para apropriar-se da sociedade e com a luta
socialista” (SANTOS, 2018,
cultura. Essas funções possibilitam aos indivíduos “utilizar o patrimônio p. 45), pois “a questão
humano-genérico exitosamente fazendo das apropriações mediações educacional é sempre
referida ao problema do
entre os sujeitos e a realidade” (MARTINS; MARSIGLIA, 2015, p. 30). desenvolvimento social e
das classes. A vinculação
Sabendo que a apropriação das capacidades intelectuais depende entre interesses popula-
do desenvolvimento, a educação escolar tem papel significativo nesse res e educação é explícita”
(SAVIANI, 2013, p. 72 apud
contexto, pois é a mais elaborada forma de ensinar e aprender. Para SANTOS, 2018, p. 45).
esses três estudiosos, é preciso que ela estimule “o desenvolvimento
máximo dos indivíduos tendo como referência a apropriação da cultu- 6
ra” (MARTINS; MARSIGLIA, 2015, p. 31). A educação escolar, portanto,
As funções superiores ou
para a concepção histórico-cultural, além de ter natureza social, possui processos psicológicos
superiores são capacida-
objeto, saberes, forma de apropriação e abordagem dos conteúdos.
des humanas que têm
Vejamos quais são eles. a função de organizar a
vida mental dos sujeitos
Figura 3 de modo adequado, tais
Educação escolar para a abordagem histórico-cultural como memória (ativa),
atenção (voluntária), ima-
ginação, pensamento, pla-
nejamento e linguagem.

Objeto: elementos culturais necessários à humanização


do indivíduo e às formas mais apropriadas para garantir a
assimilação do conhecimento.

Saberes: conhecimentos clássicos devem ser garantidos; acesso


ao que de mais importante a humanidade produziu; conhecimento
que contribui para o desenvolvimento do indivíduo.

Formas de apropriação: organização do ensino em um espaço,


com determinados conteúdos (currículo), abordados de forma
sequencial e dosada dentro de um determinado tempo.
Alexander Limbach/Shutterstock

Abordagem dos conteúdos: o educador é portador dos signos


que medeiam a relação criança-mundo, pois tem experiência
do uso social dos objetos culturais para oportunizar à criança a
vivência de operações que organizam atividades interpsíquicas,
que serão internalizadas por ela na medida em que também tiver
a experiência individual.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Martins; Marsiglia, 2015.

Métodos e tendências em alfabetização 47


Biografia Detalhando as ideias apresentadas na Figura 3, podemos afirmar
Vygotsky (1896-1934), que a abordagem histórico-cultural, ao defender que a cultura inte-
Luria (1902-1977) e Leon-
tiev (1903-1979) foram os gra a natureza humana, redefine as relações entre desenvolvimento
maiores representantes e aprendizagem. Uma vez que a aprendizagem estimula o desenvol-
da psicologia soviética,
nascida no início do sécu- vimento, sabe-se “que o conteúdo escolar aprendido é incorporado
lo XX, após as revoluções como desenvolvimento mental pelos aprendizes” e é na “ação compar-
socialistas. Frente aos
desafios de se opor ao ca- tilhada ou dialógica que os aprendizes vão construindo novos conheci-
pitalismo norte-america- mentos, que não seriam possíveis pela ação exclusivamente individual”
no, esses três estudiosos
consideravam a educação (GOMES; MONTEIRO, 2005, p. 36-37).
um assunto central, ins-
trumento primordial para
Essa abordagem difere-se da construtivista, sem invalidá-la, porque
que a revolução iniciada o sujeito, além de ativo, passa a ser interativo. O professor tem papel
fosse perpetuada pelas
gerações seguintes.
fundamental no ato de ensinar – é um mediador. Embora não se pos-
sa desconsiderar a ação individual, a interação entre o mediador e o
aluno e deste com outros é instância necessária para a construção do
conhecimento, pois
a criança, enquanto aprende, desenvolve suas capacidades cog-
nitivas, afetivas e adquire novas habilidades e [...], da mesma
forma, ao se desenvolver, constrói estruturas que lhe possibi-
litam novas aprendizagens. Aprendizagem e desenvolvimento
são concebidos como processos interdependentes e contínuos,
cuja natureza pressupõe que um seja convertido no outro. Nessa
perspectiva, a ação da criança não se dá apenas no nível indivi-
dual, a fim de construir seu próprio conhecimento, mas sim no
nível coletivo, interativamente, na co-construção de conhecimen-
tos. (GOMES; MONTEIRO, 2005, p. 37)

Examinando esses aspectos, podemos mencionar a importância


do conceito de zona de desenvolvimento proximal – base de todo
o desenvolvimento da aprendizagem – proposto por Vygotsky, pois a
presença do professor-mediador como colaborador e orientador é pri-
mordial para que o aprendiz avance daquilo que não consegue fazer
sozinho (nível de desenvolvimento potencial) para aquilo que consegui-
rá fazer sem ajuda (nível de desenvolvimento real).

Assim, o mediador, estando entre o conhecimento e os outros sujei-


tos, cria pontes que os auxiliam a atingir um estágio mais avançado de
aprendizagem. Os saberes que ainda estão sendo formados podem ser
dominados pelo aprendiz, por meio da mediação fornecida pelo pro-
fessor, que ativa os processos de desenvolvimento e as capacidades
cognitivas do aluno, possibilitando que este internalize o conhecimento
partilhado socialmente.

48 Alfabetização e letramento
Figura 4
Zona de desenvolvimento proximal

Zona de desenvolvimento Zona de desenvolvimento


real (saber atual) potencial (saber a ser alcançado)

Andrew Krasovitckii/Shutterstock

Zona de desenvolvimento
proximal (mediação)

Fonte: Elaborada pela autora com base em Vygotsky, 2000.

Logo, podemos observar que a aprendizagem envolve muito


mais do que memorização de conteúdos significativos pelo aluno.
Exige raciocínio, capacidade de fazer relações entre os próprios
conteúdos e os conhecimentos adquiridos na escola e durante a
vivência cotidiana e social. Aprender é, portanto, um processo múl-
tiplo. Isso demanda diferentes maneiras de ensinar os conteúdos
escolares, diversas metodologias, específicas para cada situação
de aprendizagem. Exige, sobretudo, que sejam reconhecidas “as
singularidades dos sujeitos aprendizes e suas formas de aprender
[...] e dos sujeitos que ensinam e suas formas de ensinar” (GOMES;
MONTEIRO, 2005, p. 37-38).

Baseadas na perspectiva histórico-cultural, Martins e Marsiglia


(2015) citam Luria, que, ao estudar o desenvolvimento da escrita,
percebeu que a criança percorre um importante caminho de aqui-
sições culturais até começar a escrever de forma padronizada. As
técnicas primitivas de escrita desenvolvidas antes da alfabetização
são essenciais para que a escrita se desenvolva como um sistema
de signos culturalmente elaborado. A figura a seguir mostra as fa-
ses pelas quais passa a criança até a aquisição da escrita formal,
de acordo com Luria.

Métodos e tendências em alfabetização 49


Figura 5
Fases de aquisição da escrita para Luria

chafankart12/Shutterstock
Pré-instrumental (a partir dos 3 anos)

• A criança “escreve” imitando o adulto, mas sem atribuir


significado ao que a escrita representa e sem função
mnemônica.
• A escrita é um brinquedo.

Atividade gráfica diferenciada (entre 4 e 5 anos)

• A criança usa registros gráficos para relembrar a


sentença ditada.
• O rabisco tem função auxiliar de um signo; uma
técnica mais aprimorada.

Escrita pictográfica (entre 5 e 6 anos)

• O desenho é utilizado como meio de registro,


“signo-símbolo”.

Escrita simbólica (6 a 7 anos)

• Uso da escrita dentro do sistema socialmente


estabelecido sem recorrer a marcas ou desenhos.
• Conhecimento de diferentes gêneros.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Martins; Marsiglia, 2015.

Na fase pré-instrumental, a criança já entende que existe uma es-


crita utilizada pelos adultos. Então, o professor pode instigá-la a supe-
rar essa mera imitação, fazendo com que use os registros gráficos para
se recordar de algum evento. Assim a escrita assume uma função de
operação psicológica, como fazer um desenho, uma pintura ou uma
colagem sobre uma história ouvida (MARTINS; MARSIGLIA, 2015).

Já na fase denominada atividade gráfica diferenciada, o modo de


disposição dos registros auxilia a criança a rememorar, ou seja, o rabis-
co recebe uma função específica. Ela inventa maneiras de estabelecer
vínculos entre sua escrita e o que ela representa, como a criança que
faz quatro marcas para lembrar que o gato tem quatro patas. Nessa

50 Alfabetização e letramento
fase, introduzir cores, tamanhos, formas, quantidades, letras e outros
símbolos auxilia a criança a expressar em sua atividade gráfica, segun-
do Martins e Marsiglia (2015, p. 51), “uma relação entre signo e signi-
ficado e a servir de recurso auxiliar da memória”. A realização de uma
dobradura de um animal, por exemplo, além de desenvolver operações
motoras e cognitivas, ajuda a criança a relacionar essa dobradura a um
substantivo concreto, ou seja, é uma maneira de representar o animal.
Assim, o objetivo dessa fase é fazer a criança avançar para o registro de
um conteúdo específico.

Na fase pictográfica, Luria (2006 apud MARTINS; MARSIGLIA, 2015)


destaca a importância do desenho dirigido para que a criança o utili-
ze, além de recurso mnemônico, como forma de expressar conteúdos
específicos. Assim que esse domínio estiver garantido, o aluno conse-
guirá superar o desenho como técnica de escrita, substituindo-o pela
escrita simbólica. Como atividade mais avançada em relação à etapa
anterior, é possível solicitar que a criança desenhe substantivos abs-
tratos, verbos, adjetivos etc. Nessa fase, também, além de já conhecer
letras e números, a criança deve ser apresentada formalmente ao al-
fabeto, considerando a relação grafema e fonema. São fundamentais,
ainda, produções coletivas de texto, pois, conforme Martins e Marsiglia
(2015, p. 57), “proporcionam ao educando um processo paralelo à esfe-
ra do sistema de escrita”. Ademais,
Enquanto ações individuais desse momento se voltam ao domí-
nio do código de escrita (pois o aluno ainda não o domina su-
ficientemente para escrever textos de maneira autônoma), as
ações coletivas dirigem-se ao conhecimento sobre as caracterís-
ticas dos diferentes tipos de texto que o aluno deve compreen-
der. (MARTINS; MARSIGLIA, 2005, p. 57)

Outras atividades pertinentes a essa fase, segundo Martins e Mar-


siglia (2015), são frases, cartas e músicas enigmáticas para que o aluno
seja capaz de ler com auxílio do desenho, substituindo-o por palavras
escritas. Também a leitura diária do alfabeto, solicitando a repetição
do som das letras, relacionando-as com outros recursos auxiliares da
memória, por exemplo: o z tem o som da abelha; para emitir o som do
b, precisamos encher as bochechas de ar; encostamos a língua no céu
da boca para falar a letra l etc. Depois, essas letras podem ser “dese-
nhadas” pelas crianças para que o processo da escrita vá, aos poucos,
sendo automatizado.

Métodos e tendências em alfabetização 51


Para haver avanço da fase pictográfica para a próxima – escrita sim-
bólica – são indispensáveis atividades que levem o aluno a analisar os
sons das letras/sílabas que formam as palavras, a fim de perceber a
função diferenciadora de sentido dos sons. Assim, a criança passará a
compreender que palavras com diferentes significados exigem diferen-
ciação na escrita. Isso ocorre, por exemplo, quando se faz a troca da
primeira letra/som de pato por f, b, r, t, formando novas palavras. “Isso
representa um importante salto qualitativo para a criança, pois aumen-
ta seu repertório linguístico, garante a compreensão de que a escrita
representa os sons da fala [...] e que essa representação tem uma for-
ma universal partilhada socialmente, correlacionada ao significado da
palavra” (MARTINS; MARSIGLIA, 2015, p. 60).

Na fase da escrita simbólica, Luria (2006 apud MARTINS; MARSI-


GLIA, 2015) assinala que, dependendo do encaminhamento dado pelo
professor, haverá a transição das formas primitivas de leitura e escrita
para as formas culturais complexas de expressar-se graficamente. O
autor destaca que a criança usa as letras para escrever, inicialmente,
como um ato externo, mas que precisa ser internalizado. Para isso, faz-
-se necessário que ela tenha passado pelas etapas anteriores, com in-
tervenções adequadas do mediador, e efetuado tentativas de assimilar
os mecanismos da escrita. No decorrer dessa trajetória, as atividades
propostas devem apresentar sempre um nível de exigência maior do
que o da etapa anterior. Outra questão decisiva para essa fase é o de-
senvolvimento da linguagem em suas duas faces: fonética e semântica,
explicitadas a seguir.

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Face fonética
Aspecto verbal, sonoro, exterior da palavra, representação
material.
A palavra ocupa o lugar do objeto que representa.
Face semiótica
O significado da palavra ancora a significação mais ampla
da linguagem.
Função simbólica da palavra.
Permite distinguir as características essenciais dos objetos,
integrando-os em determinadas categorias.

52 Alfabetização e letramento
Na fase da escrita simbólica, os conteúdos devem avançar para a lei-
tura, interpretação e escrita de textos – agora, cada vez mais por meio
de produções individuais -, domínio do sistema de escrita alfabético e
suas particularidades, morfologia, sintaxe, concordância verbal e nomi-
nal, acentuação, pontuação etc.

Uma prática pedagógica pautada na pedagogia histórico-crítica, por-


tanto, prevê a possibilidade de se ensinar atribuindo significado àquilo
que se está sendo apropriado foneticamente. O professor é elemento
essencial nesse processo, pois irá orientar a tarefa de ensino de modo
a garantir a apropriação da escrita como instrumento cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aprendizagem inicial da leitura e da escrita, como se viu, é um pro-
cesso complexo e supera a questão da escolha do método. Envolve a in-
teração entre professores e alunos – diferentes sujeitos –, cada um com
repertório cultural específico. Nesse processo, é fundamental possibilitar
aos estudantes a construção dos conceitos de leitura e escrita para que,
além de dominarem a escrita convencional, aprendam os usos e as fun-
ções sociais desse fantástico instrumento cultural.

ATIVIDADES
Atividade 1
Complete o quadro a seguir, sistematizando as discussões acerca
dos métodos de alfabetização.

Métodos Unidade Princípio que


prioriza
Alfabético O alfabeto, Relação do
as letras nome da letra
com o som que
ela representa.
Fônico
Silábico
Palavração
Sentenciação
Global de
contos

Métodos e tendências em alfabetização 53


Atividade 2
Explique a importância do construtivismo para o entendimento do
processo de aquisição da língua escrita pela criança.

Atividade 3
Sintetize as fases de aquisição da escrita, citadas por Luria, de acordo com a
perspectiva histórico-cultural, completando o quadro a seguir.

Fases Características Finalidade


Pré-instrumental “Escrita” como Superar a imitação
imitação do adul- e passar a utilizar
to, sem função registros para
mnemônica. recordação.
Atividade gráfica
diferenciada
Escrita pictográfica
Escrita simbólica

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FRADE, I. C. A. da S. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos
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Disponível em: https://orientaeducacao.files.wordpress.com/2017/02/col-alf-let-08-
metodos_didaticas_alfabetizacao.pdf. Acesso em: 8 dez. 2022.
GOMES, M. de F. C.; MONTEIRO, S. M. A aprendizagem e o ensino da língua escrita:
caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://
www.ceale.fae.ufmg.br/files/uploads/Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20e%20
Letramento/Col%20Alf.Let.%2006%20Aprendizagem_ensino_linguagem_escrita.pdf.
Acesso em: 8 dez. 2022.
LIMA, B. A. de. Caminho suave. 76 ed. São Paulo: Editora Caminho Suave, 1974.
MAIA, C. M. Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. Curitiba: InterSaberes, 2017.
MARTINS, L. M.; MARSIGLIA, A. C. G. As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre
desenvolvimento da escrita. Campinas: Autores Associados, 2015.
PALANGANA, I. C. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vigotski: a relevância do
social. 6 ed. São Paulo: Summus, 2015.
PERES, E.; RAMIL, C. de A. Cartilhas, pré-livros, livros de alfabetização, livros para o ensino
inicial da leitura e da escrita: guardá-los e estudá-los, para quê? Linhas. Florianópolis, v. 19,
n. 41, p. 34-64, set./dez. 2018. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/
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SANTOS, R. E. de O. Pedagogia histórico-crítica: que pedagogia é essa? Horizontes, v. 36, n. 2,
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54 Alfabetização e letramento
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.
SOARES, M. A reinvenção da alfabetização. Presença pedagógica, v. 9, n. 52, jul./ago. 2003.
Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/programa_
aceleracao_estudos/reivencao_alfabetizacao.pdf. Acesso em: 8 dez. 2022.
SUZUKI, Y. R. M. As relações entre concepções de ensino: aprendizagem e alfabetização.
In: LAURITI, N. C.; MOLINARI, S. G. S (orgs.). Perspectivas da alfabetização. Jundiaí, SP: Paco
Editorial, 2013.
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. de Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

Métodos e tendências em alfabetização 55


3
A criança e a aprendizagem
da língua escrita
Antes de ingressar no ambiente escolar, em sociedades grafocêntricas
como a nossa, a criança vai, gradativamente, aproximando-se da escrita e
percebendo como ela funciona: para escrever, é preciso usar sinais especí-
ficos, diferentes dos desenhos. Nota, também, ao ouvir histórias, que aquilo
que ouvimos ou falamos pode ser registrado por esses sinais. Desde esse
momento, ela já está refletindo sobre a língua e inicia seu processo de cons-
trução do conceito de escrita, o que mostra o desenvolvimento de seus
processos cognitivos e linguísticos. Isso será aprimorado pela escola, pela
mediação dos professores e em atividades direcionadas, sistemáticas e ex-
plícitas, que promovam a reelaboração de suas hipóteses iniciais até que a
criança se aproprie do princípio alfabético, isto é, compreenda a escrita al-
fabética como um sistema de representação por letras dos sons da língua.
Este capítulo propõe, portanto, a reflexão acerca dessas questões,
destacando a relação entre o desenvolvimento infantil e a alfabetização
e tratando dos diferentes conceitos de leitura e de escrita. Elege, ainda,
a psicogênese da língua escrita como teoria capaz de explicar as etapas
pelas quais as crianças passam em seu processo de aquisição do sistema
de escrita alfabético.

Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• relacionar o desenvolvimento sociocognitivo infantil ao processo
de alfabetização;

• selecionar uma concepção de leitura e escrita que favoreça a


aprendizagem dos estudantes no tocante à alfabetização;

• reconhecer as contribuições da base teórica apresentada por


Emilia Ferreiro acerca de como a criança aprende a ler e escrever;

• distinguir as diferentes fases de aprendizagem da escrita nas pro-


duções dos estudantes.

56 Alfabetização e letramento
3.1 Desenvolvimento infantil e alfabetização
Vídeo
Iniciaremos refletindo sobre o que distingue a espécie humana dos
outros animais. Por mais que alguns animais possuam diferentes for-
mas de comunicação bastante interessantes – como os golfinhos, as
abelhas, os macacos –, apenas os seres humanos têm a capacidade
de criar sistemas simbólicos ou de representação, isto é, determinado
símbolo ou sinal serve para significar alguma coisa. Assim funciona a
linguagem verbal, um sistema simbólico criado pela humanidade por
meio do qual foi possível desenvolver todas as formas de conhecimen-
to – religiões, filosofia, ciências, arte etc. Faraco (2012, p. 21-22) elenca
algumas características da linguagem verbal:
• permite a articulação de um número infinito de enunciados;
• seus signos (fonemas, sílabas, morfemas, palavras, sentenças
etc.) também são infinitamente combináveis;
• permite falar sobre o passado e futuro, aquilo que está ausente
ou distante e criar realidades imaginárias;
• os signos admitem sentido figurado e completam sua significa-
ção na situação de uso em que ocorrem.

Observando essas particularidades da linguagem verbal, podemos


perceber o quanto ela é complexa devido à sua “organização interna,
seu potencial expressivo, sua base neurológica, seu funcionamento so-
cial, sua variabilidade, sua história, seu domínio pelas crianças” (FARACO,
2012, p. 26). Apesar de ser objeto de estudo sistemático há pelo menos
dois milênios e meio, ainda há muitas dúvidas acerca desse fenômeno.

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Linguagem
É toda maneira de expressão em que haja si-
nais, por meio dos quais possa haver comu-
nicação: placas de trânsito, notas musicais,
gestos, desenhos, fala, escrita etc.

Língua
É uma manifestação particular, históri-
ca e sistemática de interação humana.
Refere-se à fala e à escrita.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 57


Por isso, abordaremos a questão da aquisição da linguagem verbal
em sua modalidade oral, uma vez que, quando falamos de alfabetiza-
ção, precisamos lembrar que as crianças em idade de aprender a ler e
a escrever já adquiriram a língua falada em seus contextos familiares,
portanto têm muitos conhecimentos prévios acerca da língua.

Colocando em evidência a questão da aquisição da linguagem oral, é


muito impressionante observar como as crianças passam de não falantes
a falantes. Faraco (2012) afirma que nenhuma teoria até hoje foi capaz
de explicar esse acontecimento. Sabemos que esse processo é univer-
sal e acontece com todas as crianças aproximadamente na mesma faixa
etária (em torno de dois anos). É também um processo espontâneo, ou
seja, não é preciso ensiná-las sistematicamente; o contato contínuo com
outros falantes da língua já é suficiente para que ela se torne igualmente
um falante proficiente da língua de sua comunidade.

Outra questão importante: a criança se tornará um falante autôno-


mo. Isso significa dizer que não será um mero repetidor de enunciados,
mas será capaz de produzir e entender enunciados novos, ainda que
tenha sido exposta a uma quantidade relativamente pequena de dados
linguísticos (ela nunca é exposta à língua toda) e a enunciados fragmen-
tados e interrompidos, comuns à conversação espontânea. Conforme
Faraco (2012, p. 28), “há um claro descompasso entre a quantidade e
qualidade de dados (finitos e precários) e o saber (infinito e suficiente)
que resulta desse processo na criança”.

Podemos sintetizar esse processo de acordo com Rojo (2006) e Faraco


(2012). Os primeiros sons são os balbucios, emitidos por todas os bebês,
1 em todas as línguas, igualmente. Mais tarde, esses sons vão se especia-

Referem-se a interações
lizando nos sons da língua da comunidade da criança com o auxílio dos
1
que ocorrem por meio da jogos interativos de linguagem , assim as primeiras palavras vão surgindo
linguagem entre os bebês
e as mães ou outros adul-
– os nomes das coisas (mamã, mamá, nenê, bola, au-au etc.) e palavras
tos. Por exemplo, quando operatórias, que funcionam como verbos (dá, tó, qué, ó, cadê, achô etc.).
a mãe está trocando o
bebê, esconde-se atrás da
Posteriormente, a criança passa a produzir frases com duas palavras, como
fralda e diz: “Achou!”, ou “péna boneca” (ou seja, “veja a perna da boneca”). Depois, com três ele-
tantas outras situações em
que adultos ou crianças
mentos, mas sem artigos e preposições, como “bô péna boneca” (ou seja,
maiores interagem com os “quebrou a perna da boneca”. E, por volta dos dois anos, proferirá enun-
bebês usando palavras ou
enunciados do cotidiano,
ciados como “quebrou a perna da boneca”, sem sabermos exatamente
como: “Quer mamar?”, como isso aconteceu e que procedimentos cognitivos foram responsáveis
“Fez xixi?”, “Pega a bola”,
“Vamos nanar?” etc.
por esse salto qualitativo da linguagem. Ainda, utilizará enunciados mais
elaborados posteriormente, como períodos coordenados e subordinados.

58 Alfabetização e letramento
Há diferentes teorias que tentam explicar a aquisição da linguagem Biografia
oral pela criança. Uma delas – vinculada à constatação de que esse pro- Noam Chomsky (1928-),
um dos mais respeitados
cesso é universal, pois ocorre igualmente com todas as crianças, falantes
estudiosos da área da
de qualquer língua – é a hipótese inatista, propagada especialmente por linguística, é conhecido
como o fundador do
Noam Chomsky, cuja ideia principal é que “a linguagem verbal está gene-
gerativismo - teoria que
ticamente inscrita no cérebro humano” (FARACO, 2012, p. 28). estuda a linguagem, consi-
derando as propriedades
Contudo, pela dificuldade em saber como funciona o cérebro hu- da mente humana e sua
relação com a organiza-
mano e as atividades cognitivas, outras teorias se opõem ao inatismo
ção biológica da espécie.
ou o complementam, buscando evidenciar demais fatores que podem É também um ativista polí-
tico norte-americano.
ser responsáveis pela aquisição da linguagem oral pela criança. Fa-
raco (2012) constata que a criança não domina a língua apenas por
imitação; ela é capaz de elaborar enunciados novos com o repertório
que vai aprendendo com seus pares. Portanto, “Ela se mostra um ser
cognoscente ativo. Há, em seu cérebro, uma atividade cognitiva que
opera sobre os dados que recebe do exterior. É esta atividade que
ainda não fomos capazes de descrever. Podemos apenas observar
indícios de que ela está acontecendo” (FARACO, 2012, p. 30). Sem falar
na facilidade que a criança pequena tem em aprender mais de uma
língua ao mesmo tempo, quando em contato com comunidades bilín-
gues, por exemplo.

Vê-se, além da capacidade cognitiva da criança para o processo de


aquisição da oralidade, a importância da interação entre ela e os adultos
ou crianças mais velhas. A interação pode não ser a única responsável pela
aquisição da linguagem – pois algo acontece também no cérebro da crian-
ça -, mas, sem dúvida, é absolutamente necessária, como confirmam os
estudos de Vygotsky (apud FARACO, 2012, p. 31). Ele mostrou como a ativi-
dade cognitiva humana nasce da interação entre aqueles que já dominam
certo conhecimento e os que estão em processo de aprendizagem. Pela
mediação do outro, a lógica cognitiva social se torna interiorizada, e assim
os sujeitos adquirem autonomia cognitiva (FARACO, 2012).

Ainda que não conheçamos os detalhes de como isso acontece, po-


demos observar os gestos dos adultos que colaboram para constituir
as bases da interação com a criança que, desde o nascimento, se ex-
pressa por choro, gestos, sons e ações. Normalmente, é a mãe quem
interpreta esses sinais e lhes atribui sentido. Por meio “das ‘conversas’
com o bebê, das cantigas e de muitos jogos de linguagem, os adultos
vão tornando presentes e perceptíveis para o bebê, processos e ações
do mundo/no mundo” (ROJO, 2006, p. 25).

A criança e a aprendizagem da língua escrita 59


Esses gestos têm papel decisivo na formação da criança, ao desen-
cadear os processos cognitivos, sobretudo na aquisição da linguagem
oral. Portanto, são dois fatores decisivos nesse processo, de acordo
com Faraco (2012): a interação socioverbal e o fato de a criança ser um
sujeito cognitivamente ativo.

Passamos, agora, a nos deter no desenvolvimento infantil relaciona-


do à aquisição da língua escrita. Em torno dos seis anos, quando ingres-
sam no primeiro ano do Ensino Fundamental, as crianças já dominam
o português falado de acordo com a variedade de sua comunidade e
fazem uso de regras e estruturas da língua aprendidas com outros fa-
lantes. Além do conhecimento linguístico, elas se apropriam de uma
ou mais culturas, pois advêm de grupos sociais diferentes e é “pela
linguagem falada que se fazem membros desses grupos e aprendem
seus modos de fazer, de agir, de pensar, de sentir” (GOMES; MONTEI-
RO, 2005, p. 19).

Considerando especificamente a apropriação da escrita, Soares


(2020) esclarece a interação entre desenvolvimento e aprendizagem: o
nível de desenvolvimento da criança possibilita determinadas aprendi-
zagens, e essas, por sua vez, fazem avançar o desenvolvimento.

Desenvolvimento e aprendizagem no processo de apropriação da escrita

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Desenvolvimento
Processo que resulta dos níveis de maturação psicoló-
gica da criança em interação com experiências com a
língua escrita em seu contexto sociocultural – o desen-
volvimento acontece de “dentro para fora”.

Aprendizagem
Processo pelo qual a criança, pela mediação dos outros,
adquire informações sobre a escrita e habilidades com
a escrita, o que possibilita que formule e reformule con-
ceitos a respeito da escrita – a aprendizagem ocorre de
“fora para dentro”.

Nota-se que o desenvolvimento e a aprendizagem são processos que


ocorrem em mão dupla, ou seja, tanto de “dentro para fora” como de “fora
para dentro”. Ao nos determos nos conhecimentos fornecidos pelos pro-
60 Alfabetização e letramento
fessores às crianças pela mediação, é preciso levar em consideração o
contexto sociocultural do aprendiz. No tocante a essa questão, Gomes e
Monteiro (2005, p. 24) asseveram:
Do ponto de vista da psicologia sócio-histórica, mostra-se essencial
saber quem são as crianças, seus interesses, seu cotidiano, seus gos-
tos culturais, suas práticas de leitura e de escrita. O que eles já sabem
sobre leitura e sobre escrita também são saberes fundamentais a
serem considerados nesse processo. Vivemos num mundo de escrita
e nossos alunos já chegam com alguns conhecimentos sobre a língua
que vivenciam em seu cotidiano. Esses conhecimentos precisam ser
valorizados e considerados ao se ensinar a ler e a escrever, tendo em
vista os grupos sócio-culturais aos quais os alunos pertencem.

Para a abordagem sócio-histórica, como citam Gomes e Monteiro


(2005, p. 28), aprender a ler e a escrever é atribuir sentido para o que se
aprende “por meio de usos funcionais da linguagem, que sejam relevan-
tes e significativos para os aprendizes”. Como a escrita é uma atividade
simbólica, compreende a representação de uma coisa por outra, o uso de
signos para representar significados. Assim, atividades como jogos, gestos
e desenhos, mediados pela fala, são aprendizados fundamentais que vão
auxiliar a “elaboração do simbolismo na própria escrita, assim como para
o progresso na atenção e na memória” (GOMES; MONTEIRO, 2005, p. 29).

Vale acentuar que a alfabetização é um processo cultural e, ainda


que apresente aspectos universais, possui particularidades. Cada sala de
aula, escola e professor são únicos. O processo de aprendizagem, nes-
se caso, acontece com cada aprendiz, mas é também coletivo. Por isso,
além de oportunizar a construção de aprendizagens para todos, deve-se
ter em conta as diferenças de apreensão e de produção de cada um e as
diferenças socioculturais, pois, consoante com Gomes e Monteiro (2005,
p. 31), “as práticas sociais de leitura e de escrita desenvolvidas pelos alu-
nos fora da escola influenciam sua aprendizagem dentro da escola”.
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Os sujeitos têm demandas individuais e


sociais diferentes; logo, a sala de aula
funciona como uma cultura, em que os
membros constroem modos padronizados
de interações sociais, cotidianamente.

Consequentemente, a maneira como os estudantes aprendem a ler


e a escrever é contextualizada e envolve

A criança e a aprendizagem da língua escrita 61


práticas culturais dentro das salas de alfabetização [...], a com-
preensão de regras e princípios que orientam as ações e in-
terações dos participantes de uma sala de aula e, para isso, é
necessário observar o que alunos e professores fazem, dizem,
com quem, para quem, sob quais condições, quando e onde,
com que propósitos e com que resultados para a própria pessoa
e para o grupo. (GOMES; MONTEIRO, 2005, p. 32)

Nota-se que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita cons-


tituem um processo complexo que requer preparo por parte dos do-
centes. Cada situação de aprendizagem será distinta devido a todos
esses fatores citados anteriormente e, inclusive, às concepções de lei-
tura e escrita adotadas pela escola e pelos professores.

3.2 Diferentes concepções de leitura e escrita


Vídeo
Ao tratarmos de alfabetização e letramento, é relevante citarmos as
distintas concepções de leitura e escrita existentes, uma vez que a escolha
por uma ou outra abordagem é fator decisivo para as práticas de sala de
aula, conforme o que se pretende ensinar e o que se espera que os alunos
aprendam. Apenas por uma questão didática, elencaremos as concepções
de leitura e de escrita separadamente, embora essas duas práticas sejam
interligadas, especialmente em seu processo de aquisição pela criança. São
vários os autores que abordam essa temática e, de modo geral, classificam
as concepções de leitura em dois grupos: modelos ascendentes e descen-
dentes. Podemos observar as características de cada um deles a seguir.

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Modelo ascendente
Ler é:
• compreender o significado da mensagem decifrada;
• reconhecer o aspecto gráfico das palavras;
• pronunciar os elementos de um texto e compreendê-
-los silenciosamente;
• entender o pensamento colocado no escrito.

62 Alfabetização e letramento
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Modelo descendente
Ler é:
• construir hipóteses sobre o sentido do texto, conforme
o conhecimento de mundo do leitor, as estratégias e o
objetivo de leitura;
• atribuir sentido por meio de uma assimilação
geral do texto;
• compreender o texto como um todo.

Atendo-se às informações supracitadas, percebemos que a leitura


para o modelo ascendente é, grosso modo, a transformação de sinais
gráficos em sonorizações, isto é, a transformação da escrita em leitura
silenciosa ou em voz alta, a fim de alcançar um sentido dado pelo texto.
Já, no modelo descendente, o leitor é sujeito ativo, detentor de co-
nhecimentos prévios utilizados juntamente de seus recursos cognitivos
para formular hipóteses acerca do que lê.

As concepções de escrita, por sua vez, estão vinculadas às aborda-


gens já citadas, mas com algumas particularidades. No primeiro caso,
para o modelo ascendente, a escrita é vista como codificação da língua
oral, ou seja, ao escrever, registram-se as características do código oral.
Para o modelo descendente, ao contrário, a escrita não está presa ao
código oral. Em suma: “O sistema de sinais da escrita corresponde à
organização ortográfica do discurso e aparece sob a forma de marcas,
essencialmente visíveis, sem correspondências exatas na língua oral.
A língua escrita (que é feita para os olhos) e a ortografia favorecem a
compreensão” (CHARMEUX, 1976 apud MICOTTI, 2012, p. 13).

Numa visão atual, alguns autores propõem um modelo mais equili-


brado para as concepções de leitura, visto que os modelos ascendentes
e descendentes apresentam falhas: o primeiro por priorizar a decifra-
ção e anular o papel do sujeito leitor; o segundo, de acordo com Micotti
(2012), por entender a leitura exclusivamente como um processo visual,
ou seja, sem preocupar-se com a oralidade, colocando a decodificação
como oposta à verdadeira leitura. O modelo que procura conciliar as
concepções ascendentes e descendentes é denominado de modelo in-
terativo de leitura e escrita.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 63


Para o modelo interativo, o sujeito utiliza diferentes estratégias
na atividade de leitura por meio tanto da decodificação como da
compreensão, pois esses dois processos coexistem na aplicação de
estratégias ascendentes e descendentes. “Ao ler, o indivíduo cons-
trói o significado do texto, colocando em ação todos os seus conhe-
cimentos, entre os quais os referentes às correspondências entre
elementos visuais e sonoros e as suas intenções ao realizar a leitura”
(MICOTTI, 2012, p. 15).

Passando para as diferentes concepções de escrita, Oliveira (2005),


ao procurar esclarecer como as crianças aprendem a escrever, expõe
três concepções de aprendizagem da escrita, resumidas a seguir.

Figura 1
Concepções de aprendizagem da escrita

Transferência de um produto
• A escrita é um produto pronto e acabado.
• O professor é o conhecedor da escrita e a transmite aos alunos.
• O aprendizado acontece “de fora para dentro”.
• O aprendiz deve ter memória fantástica e deve assimilar tudo o
que foi ensinado.

Processo de construção de conhecimento baseado na escrita


• Aprende-se a escrever escrevendo, ou seja, a escrita é um processo
contínuo de reelaboração de hipóteses.
• Diante da escrita, o aprendiz elabora hipóteses acerca desse objeto e
produz suas primeiras escritas.
• Com base nos aspectos não observados, o aprendiz reformula suas
hipóteses e produz escritas mais elaboradas.
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Processo de construção de conhecimento


intermediado pela oralidade
• A interação com a escrita é intermediada pelo que o aprendiz já
conhece de sua língua.
• O conhecimento da língua falada controla o processo de
aprendizado da escrita, no início da alfabetização.
• Com o passar do tempo (e intervenções necessárias), o aprendiz
deixa de escrever como fala.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Oliveira, 2005.

64 Alfabetização e letramento
Na primeira concepção, a escrita é considerada um produto pron-
to a ser adquirido; então a criança que erra a ortografia de uma palavra
precisa copiá-la várias vezes corretamente. Isso não garante que ela
aprenda a grafar outras palavras que possuam grafia semelhante, pois
esse tipo de atividade é mecânica e não faz sentido para o aluno; vale
apenas como uma punição ao erro.

Para a segunda concepção, o aprendiz passa a ser o centro do


processo de ensino-aprendizagem. “É ele quem controla esse apren-
dizado, formulando e reformulando hipóteses. O conhecimento
passa a ser construído, em vez de ser, simplesmente, transferido. Ou
seja, o aprendizado se dá de dentro para fora” (OLIVEIRA, 2005, p.
14). A ênfase na memorização é substituída pela capacidade de ra-
ciocínio, generalização e inferência. Como o aprendiz é incentivado a
produzir – diferentemente da concepção anterior, em que a cópia é
privilegiada –, cometerá inúmeros desvios de escrita. Oliveira (2005,
p. 14) explica esse fato:
A cada produção escrita do aprendiz, produção essa ‘controla-
da’ pela hipótese que ele tem naquele momento, ele será capaz
de apresentar um bom desempenho naqueles fenômenos que
a hipótese à disposição recobre. Mas, é claro, ele não terá como
controlar os fenômenos que não estão cobertos pela hipótese
à disposição no momento. É por isso que o aprendiz acaba re-
formulando sua hipótese anterior, numa tentativa de cobrir, em
sua produção escrita, um número cada vez maior de fenômenos.

Sabemos que crianças em processo de alfabetização, quando


incentivadas a produzir seus próprios escritos, irão, muitas vezes,
apoiar-se na oralidade para grafar os sons que falam e ouvem. As-
sim, é natural que escrevam, por exemplo, “iscola” (escola), “muin-
to” (muito), “tezora” (tesoura), “fararao” (falaram), “pasteu” (pastel),
“nois foi” (nós fomos), “as menina” (as meninas) etc. Nesses casos e
em vários outros que poderíamos citar, não somente há questões
ortográficas a serem superadas, mas questões de variação linguís-
tica – diferente do uso padrão – que revelam como a criança fala
em sua comunidade. Por essa razão, Oliveira (2005) apresenta uma
terceira concepção de ensino da escrita que pode auxiliar a segunda,
embora se diferencie dela e da primeira.

Oliveira (2005) afirma que para a terceira concepção a língua


falada está amplamente envolvida no aprendizado da escrita, embo-

A criança e a aprendizagem da língua escrita 65


ra se assuma que não apenas ela esteja implicada nesse processo.
No tocante ao domínio da ortografia, conforme os exemplos supra-
citados, nessa concepção, admite-se que, no início do processo de
alfabetização, as produções escritas da criança muito se aproximam
da oralidade. Contudo, com o passar do tempo, “menor se torna o
efeito da oralidade (e o que se espera, a longo prazo, é que sejamos
capazes de tratar a língua falada e a língua escrita de modo inde-
pendente, e que a escrita se torne autônoma em relação à fala)”
(OLIVEIRA, 2005, p. 16). Dito de outro jeito, há um momento em que
não se escreve mais como se fala.

Para finalizar esta seção, vamos sintetizar as ideias gerais de Olivei-


ra (2005) acerca de como as crianças aprendem a escrever.
• Utilizando esquemas mentais inatos: os seres humanos são
geneticamente dotados de esquemas mentais que permitem
aprender (criar conceitos, fazer generalizações etc.). Mas não
aprendem sozinhos, o aprendizado é social.
• Interagindo com o objeto de aprendizado – no caso, a escrita.
• Formulando hipóteses sobre a natureza da escrita.
• Baseando as hipóteses iniciais nos conhecimentos prévios sobre
a língua, que são de natureza oral. Por isso, a criança transfere,
em suas primeiras hipóteses sobre a escrita, algumas caracterís-
ticas da fala.

Esses conceitos elencados por Oliveira (2005) acerca de como a


criança aprende a escrever estão ancorados na abordagem constru-
tivista de aprendizagem inicial da escrita, divulgada, sobretudo, por
Emilia Ferreiro, em sua obra Psicogênese da língua escrita.

3.3 Emília Ferreiro e a psicogênese


Vídeo da língua escrita
Em 1936, na Argentina, nasceu Emilia Ferreiro. Formou-se em Psi-
cologia pela Universidade de Buenos Aires. Em 1970, estudou na Uni-
versidade de Genebra, sob orientação de Jean Piaget. Desenvolveu
pesquisas sobre a aquisição da língua escrita pela criança, tomando
como base a epistemologia genética. Em 1971, retornou a Buenos Ai-

66 Alfabetização e letramento
res, formou um grupo de pesquisa e publicou sua tese de doutorado.
Três anos depois, juntamente da pedagoga Ana Teberosky – argentina,
nascida em 1944 e doutora em Psicologia pela Universidade de Bar-
celona –, desenvolveu vários experimentos com crianças, resultando
na obra Psicogênese da língua escrita, publicada em 1979 na Argentina
e em 1984 no Brasil. Essa é sua obra mais importante, ainda que não
apresente nenhum método pedagógico, e sim a compreensão sobre o
processo de aprendizagem da criança, questionando os métodos tra-
dicionais de leitura e escrita. Essas duas estudiosas construíram, de
acordo com Soares (2020, p. 55), “uma teoria, a psicogênese da escrita:
um modelo explicativo da gênese (da origem) dos processos cognitivos
(psíquicos) que conduzem a criança, ao longo de seu desenvolvimento,
à progressiva construção do conceito de escrita como um sistema de
representação dos sons da língua por letras”.

A partir da publicação dessa famosa obra de Emília Ferreiro e Ana


Teberosky e de outros estudos advindos da área da psicologia – como
os de Piaget e Vygotsky – serem difundidos no cenário educacional,
na década de 1980, os métodos tradicionais foram postos em xeque.
Em seus estudos, Ferreiro e Teberosky voltam-se para a pré-história
da escrita infantil, ou seja, o período que antecede o ensino formal
da escrita. As autoras preocupam-se com o processo da progressiva
compreensão da criança acerca do sistema alfabético de escrita, defi-
nindo os níveis pelos quais ela passa. O foco da pesquisa de Ferreiro
e Teberosky são
os processos cognitivos da criança em sua progressiva aproxi-
mação ao princípio alfabético de escrita, ou seja, o objeto de co-
nhecimento é a escrita como um sistema de representação, que
as pesquisadoras analisam sob a perspectiva da psicogênese, no
quadro da teoria piagetiana. (SOARES, 2016, p. 62)

O destaque é, portanto, a compreensão pela criança da natureza do


sistema de escrita. Isso mostra que a psicogênese da língua escrita não
é um método, mas uma teoria que ajuda a entender como o sujeito se
apropria desse sistema. A escrita, como objeto de conhecimento, exige
reflexão, interação, elaboração de conceitos, tentativas, “erros” e reela-
boração de hipóteses, até chegar à apropriação do sistema alfabético.
Soares e Batista (2005) sintetizam as ideias da psicogênese da língua
escrita do seguinte modo:

A criança e a aprendizagem da língua escrita 67


Figura 2
Ideias da psicogênese da língua escrita

A criança inicia seu processo de aprendizado da língua escrita muito antes de


ingressar na escola, mas no contato com a escrita em seu dia a dia.

O aprendizado da escrita tem natureza conceitual e busca compreender sua definição


e funcionamento para além de uma imitação mecânica usada pelos adultos.

Para compreender a escrita, a criança elabora hipóteses baseadas na análise da


linguagem escrita experimentando modos diferentes de ler e escrever.

As hipóteses manifestam-se em escritas “espontâneas” das crianças; por isso, não


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são “erros”, mas as expressões das respostas que elas elaboram.

As hipóteses são progressivamente reelaboradas, revelando ampliação do


conhecimento sobre a escrita pela criança.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Soares e Batista, 2015.

Ferreiro e Teberosky consideram tanto o desenvolvimento da lei-


tura quanto a evolução da escrita. No Brasil e em outros países, os es-
tudos sobre a escrita foram mais amplamente divulgados, talvez pelo
fato de os níveis de evolução da escrita serem facilmente captados por
pesquisadores e professores se comparados aos níveis dos processos
da leitura. Ainda assim, podemos apresentar algumas ideias acerca
desse processo.
Importante
Segundo Soares (2016), Ferreiro e Teberosky seguiram o método
Soares (2020) alerta que
a teoria da psicogênese clínico piagetiano, identificando a interpretação que as crianças atri-
da língua escrita foi equi- buem a aspectos formais do texto escrito, mesmo antes de saberem
vocadamente denomi-
nada de construtivismo ler formalmente:
– referindo-se à aquisição
de conhecimento como • quantidade e variedade de letras para que se possa ler: as crian-
processo de construção. ças supõem que não é possível ler palavras com menos de três
O problema é que esse
termo restringe o sentido
letras e nem mesmo com letras repetidas (como uma sequência
da teoria e tem levado a AAA, por exemplo);
mal-entendidos no campo
da alfabetização. • distinção entre desenho e texto: o que serve para ler e o que
não serve;

68 Alfabetização e letramento
• relação entre desenhos e palavras e entre palavras e orações;
• reconhecimento das letras do alfabeto;
• diferenciação entre números e letras, entre letras e sinais de
pontuação;
• orientação espacial da leitura;
• separação entre palavras;
• interpretação de atos de leitura (silenciosa, oral); 2
São oportunidades
• reconhecimento de diferentes portadores de texto.
dadas à criança de
tentar escrever. Segundo
Para estabelecer esses aspectos relativos à leitura, Ferreiro e Soares (2020), devem
Teberosky se orientam por uma perspectiva evolutiva, identificando ní- ser frequentes desde a
Educação Infantil, pois re-
veis em cada um deles, mas sem estabelecer uma teoria específica de velam-se como atividades
níveis da leitura como um todo, diferente do que ocorre com a escrita. periódicas diagnósticas
que permitem verificar em
Em suas pesquisas, Ferreiro selecionou crianças de 4 a 6 anos falantes que nível de compreensão
do espanhol e as convidou a escrever palavras e frases curtas por meio da escrita está a criança.
2 Podem-se ditar palavras;
do que chama de escrita espontânea ou inventada . Ela concluiu que “as entregar uma folha com
crianças evoluem em níveis sucessivos, em uma progressiva compreen- desenhos e solicitar o
registro por escrito dos
são da escrita como um sistema de representação. Esses níveis têm nomes dos objetos; pedir
sido confirmados em numerosas pesquisas com crianças falantes de para fazer listas, como
dos animais ou comidas
outras línguas” (SOARES, 2020, p. 56), sobretudo as que possuem fron- de que mais gosta etc.
teiras silábicas nitidamente demarcadas, como é o caso do português.

3.4 Fases do desenvolvimento da escrita


Vídeo
Crianças bem pequenas costumam desenhar acreditando que es-
tão “escrevendo”, porque, se assim o fazem, entendem que escrever é
representar aquilo que se fala, isto é, os significados. Aos poucos, vão
vivenciando situações de leitura e escrita em seu dia a dia, como ouvir
histórias, observar as propagandas, folhear revistas e gibis, manusear
os dispositivos móveis, e percebem que a escrita não é o mesmo que
desenho; notam os traços, os riscos, as linhas que vão de um lado a
outro do papel, e passam a imitar esses registros. Tudo começa assim
e evoluirá progressivamente – durante a Educação Infantil e os primei-
ros anos do Ensino Fundamental –, até chegar à compreensão da es-
crita como representação dos sons da fala, ou seja, dos significantes.
Soares (2016) sintetiza as cinco fases do desenvolvimento da escrita,
apresentadas por Ferreiro e Teberosky.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 69


Figura 3
As cinco fases do desenvolvimento da escrita

Fase 1
Diferenciação entre desenho e escrita; uso
de grafismos para imitar a escrita (garatujas,
linhas curvas e retas); reconhecimento da
arbitrariedade e linearidade da escrita.

Fase 2 (pré-silábica)
Uso de letras sem correspondência com os valores
sonoros e com as propriedades sonoras da palavra
(número de sílabas), normalmente, respeitando
a quantidade mínima de sílabas (pelo menos três
letras) e a variedade (letras não repetidas).

Fase 3 (silábica)
Uso de uma letra para cada sílaba da palavra.
Inicialmente, sem valor sonoro, reunidas
aleatoriamente. Depois, letras com valor sonoro,
representando um dos fonemas da sílaba.

Fase 4 (silábico-alfabética)
Passagem da hipótese silábica para a alfabética,
quando a criança começa a analisar a sílaba em
unidades menores (fonemas). Em uma palavra, a
criança escreve letras representando uma sílaba e
outras já representando fonemas.

Fase 5 (alfabética)
seamuss/Shutterstock

Final do processo de compreensão do sistema


de escrita. A criança já compreendeu que cada
letra corresponde a valores sonoros menores
que a sílaba. Mesmo que já tenha compreendido
o sistema alfabético, a ortografia ainda será um
desafio a ela.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Soares, 2016.

Agora, detalharemos cada uma dessas fases e as exemplificaremos


com tentativas de escrita feitas por crianças. Observe a primeira delas
e reflita: quais conhecimentos importantes para a aquisição da escrita
essa criança já domina?

70 Alfabetização e letramento
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Criança 1

1
A Criança 1 parece já compreender a linearidade da escrita, e as
formas que usa lembram a escrita cursiva. As linhas são sinuosas, obe-
decendo a direção da escrita do português: de cima para baixo e da
esquerda para a direita. Nessa mesma fase, há crianças que usam gara-
tujas que se assemelham a letras caixa-alta ou, ainda, há aquelas que,
incertas da diferença entre escrita e desenho, acabam por representar
a escrita das palavras com símbolos que mais parecem desenhos, di-
ferentes dos traços retos ou curvos das letras, como os da imagem a
seguir. A Criança 2 não percebeu ainda a linearidade da escrita.
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Criança 2

2
1

(Continua)

A criança e a aprendizagem da língua escrita 71


A Aleksii/Shutterstock
3

3
Ambas as crianças se encontram na fase do rabisco ou das garatu-
jas e ainda não perceberam que, para haver escrita, é preciso usar sinais
gráficos, ou seja, as letras. No entanto, à medida que convivem com a
escrita, em casa e na escola, passam a notar a necessidade de letras para
o registro de escritos. Atividades como a chamada diária (com os nomes
escritos em crachás), para que a criança reconheça seu nome e copie-o
em seus materiais, são importantes nessa fase. Todo o contexto de sala
de aula é povoado de materiais escritos, que devem ser manipulados e
observados: calendário dos aniversariantes, livros, jornais, revistas, al-
fabeto na parede e móvel, cartazes etc. Além das leituras frequentes de
histórias, nas quais a professora mostre as imagens e as diferencie das
letras usadas para formar as palavras. A leitura de poemas, parlendas
e cantigas apontadas no quadro, por exemplo, mostrando a direção da
escrita, também contribui para a passagem dessa fase para a próxima

Na fase denominada por estudiosos de Ferreiro de pré-silábica – em-


bora a própria autora não tenha dado um nome específico para essa fase
–, as crianças passam a substituir os rabiscos por letras, mesmo sem valor
sonoro ou correspondência silábica, como é o caso da Criança 3.

Yesaulov Vadym/Shutterstock 2izzayani/Shutterstock 3A Aleksii/Shutterstock


Criança 3: Rodrigo

ORGORIO

OGROTODO

ROGRIORDRI
1

72 Alfabetização e letramento
Há algumas considerações a serem feitas relativas à tentativa de
escrita da Criança 3. Como já conhece as letras de seu nome, usa es-
sas mesmas letras e algumas outras para escrever as palavras, numa
combinação aleatória. O fato de não as utilizar na mesma sequência
em que aparecem na escrita convencional do nome Rodrigo mostra
seu conhecimento de que para escrever diferentes palavras – mesmo
que domine praticamente apenas as letras de seu nome – precisa com-
binar as letras de distintas formas. Então, o princípio da variabilidade
foi preservado, além do princípio da quantidade (usa ao menos três
letras para grafar uma palavra). Obviamente, o traçado da letra, nessa
fase, ainda não é firme, e, às vezes, as crianças traçam-nas de modo
espelhado. Como imitam o que os adultos fazem, “seu repertório de
letras é limitado e as letras são grafadas com evidente insegurança”
(SOARES, 2020, p. 67). Também é comum escreverem as letras em
caixa-alta bem juntas, sem espaçamento adequado. Acontece, ainda,
nessa fase, o que chamamos de realismo nominal, quando a criança
associa o tamanho do objeto à quantidade de letras necessárias para
escrever a palavra que o nomeia. Por exemplo, escreve girafa com
muitas letras, porque ela é alta, e formiga com poucas, porque ela é
pequena. Soares (2020) assegura que à medida que amplia o contato
com a escrita, a criança passa a reconhecer, nomear e grafar as letras
com maior segurança e habilidade grafomotora, preparando-se para
a próxima fase.

Na fase silábica, há um grande avanço com relação ao domínio do


código escrito, porque a criança passa a prestar atenção no significante,
ou seja, no som das palavras quando pronunciadas. Para isso, é neces-
sário aprender que aquilo que está escrito representa o que ela ouve
ser lido (quando escuta histórias, por exemplo), “que as palavras que
escrevem devem ser a representação dos sons das palavras que escre-
vem” (SOARES, 2020, p. 77). Isso é chamado de consciência fonológica,
que, conforme Soares (2020, p. 77) é a “capacidade de focalizar e seg-
mentar a cadeia sonora que constitui a palavra e de refletir sobre seus
segmentos sonoros que se distinguem por sua dimensão: a palavra, as
sílabas, as rimas, os fonemas”. A autora explica os níveis de consciência
fonológica necessários para que a criança chegue ao princípio alfabéti-
co. Esses níveis estão representados na Figura 4.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 73


Figura 4
Consciência fonológica
Consciência lexical Consciência fonêmica
A palavra é uma cadeia de sons. As sílabas são formadas por
Segmentos de palavras podem pequenos sons (os fonemas).
ser iguais (aliterações e rimas).

Consciência silábica
A palavra pode ser dividida
em sílabas.
Fonte: Elaborada pela autora com base em Soares, 2020.

Para Soares (2020), a aprendizagem das letras está associada


ao desenvolvimento da consciência fonológica. Primeiro, a criança
aprende que a palavra é uma cadeia sonora representada por várias
letras, entendendo a diferença entre significante e significado (cons-
ciência lexical). Depois, ela se torna capaz de segmentar a cadeia so-
nora da palavra em sílabas, representando-as por um conjunto de
letras (consciência silábica). Por fim, identifica fonemas nas sílabas,
representando-os pelas letras (consciência fonêmica).

Todo esse processo não se dá naturalmente, ele precisa de mediação e


ocorrerá por meio de atividades que explorem rimas (palavras que termi-
nem com o mesmo som: macarrão, coração, avião), aliterações (palavras
que iniciem com o mesmo som: laranja, lata, laço), contagem de sílabas das
palavras (batendo palmas e dando passos, por exemplo) etc.

Quando consegue segmentar a cadeia sonora da palavra em sílabas


e representar cada sílaba com uma letra – em sua escrita inventada –,
a criança, segundo Soares (2020, p. 87), “revela consciência de que a
palavra é constituída de segmentos sonoros representados por letras”.
Todavia, inicialmente, representa a quantidade de sílabas da palavra
sem atribuir valor sonoro às letras, pois ainda não adquiriu a capaci-
dade de perceber sons individuais nas sílabas – os fonemas, represen-

74 Alfabetização e letramento
tados pelas letras que a compõem. Após a intervenção sistemática do
professor, dando continuidade às atividades que exploram a consciên-
cia fonológica, as crianças passam a escrever silabicamente com valor
sonoro. Observe as duas tentativas de escrita a seguir.

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Criança 4

TAR

BTUA

NAN

1
greenpic.studio/Shutterstock 2king72/Shutterstock 3NotionPic/Shutterstock
Criança 5

KAO

AAUH

AAE
1

Como se pode ver, a Criança 4 já está na fase silábica, porque usa


uma letra para cada sílaba das palavras, porém ainda não reconhece
que as letras correspondem aos sons da fala; então, escolhe, aleatoria-
mente, letras que conhece para grafar a quantidade de sílabas que a
palavra possui. Quando esses registros são afastados das figuras que
os representam, a criança não consegue ler o que escreveu.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 75


A Criança 5, por sua vez, escreve uma letra para cada sílaba das pala-
vras, mas, agora, escolhendo aquela que corresponde ao som que mais se
destaca na pronúncia das palavras. Algumas crianças irão escolher sempre
vogais, por serem “as únicas letras cujo nome corresponde ao fonema que
representam, são os únicos fonemas pronunciáveis” (SOARES, 2020, p. 97),
como acontece com a escrita da palavra jacaré. Já, quando grafa KAO para
cavalo, a Criança 5 escreve a sílaba inicial com a letra k (cá), pois se orienta
pelo nome da letra e não pelo som da vogal dessa sílaba. O mesmo acon-
tece com a palavra tartaruga: para a última sílaba, utiliza h, pois o nome
dessa letra (agá) representa o som da sílaba final da palavra. Assim como
a Criança 4, quando as palavras estão sem o desenho ao lado, a Criança 5
também não conseguirá ler o que escreveu. Outras crianças nessa fase co-
meçam a identificar fonemas consonantais, por exemplo, quando escreve
JAAE para jacaré, o que indica a evolução para a fase seguinte.

A fase silábico-alfabética foi assim nomeada porque a criança osci-


la entre a escrita silábica e a alfabética. Ela nota que é possível segmen-
tar algumas sílabas em unidades sonoras menores (fonemas) e utiliza
mais de uma letra para representá-las. Mas, em outras situações, conti-
nua grafando apenas uma letra para cada sílaba, conforme a tentativa
de escrita a seguir.

greenpic.studio/Shutterstock 2king72/Shutterstock 3NotionPic/Shutterstock


Criança 6

KVAO

TATAUGA

AKARE
1

Nota-se um avanço da Criança 5 à Criança 6 se compararmos as escri-


tas delas. Algumas sílabas das palavras já foram segmentadas em mais
de um som, como acontece com a sílaba VA em cavalo; TA, TA e GA em tar-
taruga; KA e RE em jacaré. A Criança 6 já percebe que uma sílaba pode ser
segmentada em mais de um som, ou seja, já identifica alguns fonemas e

76 Alfabetização e letramento
relaciona os sons com as letras que os representam. A primeira sílaba da
palavra jacaré foi grafada apenas com a letra a. Como as demais sílabas
da palavra foram segmentadas em fonemas – KA (cá) e RE –, é provável
que a criança reconheça que a sílaba JA seja formada por mais de um fo-
nema, mas ainda não saiba que letra representa esse som. Normalmen-
te, crianças nessa etapa avançam rapidamente para a próxima, quando
passam a segmentar todas as sílabas das palavras em fonemas.

Na fase alfabética, Soares (2020) alerta para a necessidade de ensi-


nar explicitamente todos os fonemas do português brasileiro e todas as
letras correspondentes a eles. A consciência fonêmica não se desenvolve
naturalmente, sem instrução, porque é preciso que a criança realize a
difícil tarefa de decompor as sílabas em unidades menores, que não são
facilmente identificáveis em nossa língua. Além disso, ela precisa “desen-
volver a consciência grafofonêmica: a consciência das correspondências
entre letras (grafemas) e fonemas” (SOARES, 2020, 121). A Criança 7 já
está na fase alfabética, como se pode observar a seguir.

greenpic.studio/Shutterstock 2king72/Shutterstock 3NotionPic/Shutterstock


Criança 7

CAVALO

TATARUGA

JACARE
1

A Criança 7 já percebe que cada letra corresponde a um fonema. Na


escrita de tartaruga, não grafou o r (na sílaba TAR) talvez pela dificuldade
de identificar o som correspondente a essa letra e porque, nesse caso, a
sílaba possui três letras – consoante, vogal, consoante (CVC), mais com-
plexa que as sílabas predominantes no português, formadas por con-
soante e vogal (CV). Além disso, questões ortográficas (s/z, casa, azul; r/
rr, rato/carro; s/ss/c/ç, doce, açúcar, assa, sede; acentuação etc.) ainda
serão um desafio nessa fase e serão superadas aos poucos, com muita
leitura, uso do dicionário e intervenção do mediador.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 77


Site Em suma, os dois primeiros níveis da aquisição da língua escrita re-
No canal da Nova Escola, ferem-se ao momento em que a criança começa a perceber que pode-
há uma série de vídeos
– Alfaletrar - com a pro- mos representar os objetos pela escrita e que ela se difere do desenho,
fessora Magda Soares e a saber que letras são marcas usadas para ler e escrever. Já, nos ou-
apresentando conceitos
essenciais sobre alfa- tros três níveis, a aquisição da escrita vai se consolidando porque a
betização e letramento, criança passa a prestar atenção não somente no significado das pala-
passando pela psicogê-
nese da língua escrita vras, como quando houve uma história, mas no som das palavras.
e exemplificando – em
práticas escolares com
É oportuno destacar também que a apropriação da escrita não
crianças – as diferentes acontece de modo linear e igual com todas as crianças, pois há dife-
fases de aquisição da
escrita, de acordo com
renças entre os ritmos de desenvolvimento e aprendizagem de cada
Emilia Ferreiro. uma. A turma de alunos será sempre heterogênea: um avançará mais
Disponível em: https://www. rapidamente que outro; há crianças que não passam por todas as fa-
youtube.com/playlist?
list=PLfarCWFbZ2YbEypoe3
ses (vão diretamente da pré-silábica para a silábica com valor sonoro,
g4NTyy8zfIghulw. Acesso em: 21 por exemplo); há outras que se encontram em duas fases ao mesmo
dez. 2022.
tempo (escrevem algumas palavras silabicamente, outras silábico-alfa-
béticas) etc. Por essa razão, há de se conhecer a fase em que cada estu-
dante está, trabalhar em grupos para que os mais avançados auxiliem
os que ainda precisam de maior intervenção e preparar atividades para
que todos progridam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levar em consideração a construção do conhecimento pelo sujeito,
seu desenvolvimento cognitivo e, ao mesmo tempo, a aprendizagem –
que se dá pela mediação do educador no processo de aquisição do sis-
tema de escrita – é alfabetizar numa perspectiva socioconstrutivista. Isso
porque garante o espaço para que cada aprendiz reflita sobre a língua e
elabore hipóteses com base em seus conhecimentos prévios, por meio da
escrita espontânea. E, para que domine a escrita alfabética, é essencial a
observação e orientação frequente do mediador, permitindo que as crian-
ças avancem qualitativamente em suas produções.

ATIVIDADES
Atividade 1
Explique a relação entre o desenvolvimento da criança e a aprendi-
zagem no processo de aquisição da escrita.

78 Alfabetização e letramento
Atividade 2
Argumente a favor do modelo interativo de leitura.

Atividade 3
Observe a tentativa de escrita de uma criança para as palavras
BONECA, PETECA e SAPATO. Em que fase de aquisição da escrita
essa criança se encontra, de acordo com a psicogênese da língua
escrita? Justifique sua resposta.

• OEA
• PEKA
• AAO

REFERÊNCIAS
COSSON, R. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2020.
FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo, Contexto, 2012.
GOMES, M. de F. C.; MONTEIRO, S. M. A aprendizagem e o ensino da língua escrita: caderno
do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://www.ceale.fae.
ufmg.br/files/uploads/Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20e%20Letramento/Col%20
Alf.Let.%2006%20Aprendizagem_ensino_linguagem_escrita.pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.
MICOTTI, M. C. de O. Alfabetização: propostas e práticas pedagógicas. São Paulo: Contexto, 2012.
OLIVEIRA, M. A. de. Conhecimento linguístico e apropriação do sistema de escrita: caderno do
formador. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://www.ceale.fae.
ufmg.br/files/uploads/Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20e%20Letramento/Col%20
Alf.Let.%2003%20Conhecimento_Linguistico.pdf. Acesso em 13 dez. 2022.
ROJO, R. Desenvolvimento e apropriação da linguagem pela criança: caderno do professor.
Belo Horizonte: Ceale, 2006. Disponível em: https://www.ceale.fae.ufmg.br/files/uploads/
Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20e%20Letramento/Col%20Alf.Let.%2012%20
Desenvolvimento_Apropriacao.pdf. Acesso em 13 dez. 2022.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.
SOARES, M. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2020.
SOARES, M. B.; BATISTA, A. A. G. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo
Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://mid-educacao.curitiba.pr.gov.
br/2019/5/pdf/00220354.pdf. Acesso em: 13 dez. 2022.

A criança e a aprendizagem da língua escrita 79


4
Leitura, oralidade e escrita
em classes de alfabetização
Enquanto a língua oral é aprendida naturalmente pela criança – para
isso, em condições típicas, ela precisa interagir socialmente com falantes
–, com a escrita, esse processo não é tão simples assim. É consenso entre
psicólogos, linguistas e cientistas que a aprendizagem da escrita e da leitura
exige instrução explícita e sistemática. Há, ainda, muitas crianças que en-
frentam dificuldades no domínio das habilidades de ler e escrever, mesmo
que escolarizadas. A escrita e a leitura são, portanto, elementos culturais.
Neste capítulo, abordaremos a aprendizagem inicial da leitura e da escrita,
além da importância do desenvolvimento da consciência fonológica durante
esse processo. Também explicitaremos o funcionamento do sistema gráfico
do português, pois as relações entre som e grafia não são sempre regulares, e
as relações arbitrárias podem gerar dificuldades para os alfabetizandos. Além
disso, veremos quais as proposições da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) para o ensino-aprendizagem inicial da leitura e escrita, bem como as
dificuldades e os transtornos relacionados à aquisição da linguagem escrita.

Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• prever os conteúdos a serem ensinados e as capacidades a serem
desenvolvidas durante a aprendizagem inicial da leitura e da escrita;

• compreender o funcionamento do sistema gráfico do português


em favor do ensino-aprendizagem da leitura e da escrita;

• avaliar as proposições da BNCC acerca da alfabetização e do


­ensino-aprendizagem da língua escrita;

• conhecer os principais transtornos de aprendizagem da escrita com


vistas a identificar dificuldades de aprendizagem dos estudantes.

80 Alfabetização e letramento
4.1 Aprendizagem inicial da leitura e escrita
Vídeo
Diferentemente do japonês e do chinês, que são línguas ideográficas e
grafam, de modo geral, os significados da fala, a Língua Portuguesa escrita
é alfabética, ou seja, grafa os sons da fala, os significantes. Sendo assim,
aprender a ler e escrever em nossa língua é saber “converter sons da fala
em letras, ou combinação de letras – escrita –, ou converter letras, ou com-
binações de letras, em sons da fala – leitura” (SOARES, 2016, p. 46).

Para a criança, em seu processo de desenvolvimento e aprendiza-


gem, a escrita é um sistema de representação e um sistema notacio-
nal. É sistema de representação porque, segundo Soares (2016, p. 49),
“em seu processo de compreensão da língua escrita [...], a criança [...]
‘reconstrói’ o processo de invenção da escrita como representação”, ao
compreender seu processo de construção e suas regras de produção.
É também um sistema notacional, pois,
ao compreender o que a escrita representa (a cadeia sonora da
fala e não seu conteúdo semântico), precisa também aprender
a notação com que, arbitrária e convencionalmente, são repre-
sentados os sons da fala (os grafemas e suas relações com os
fonemas), bem como a posição desses elementos no sistema.
(SOARES, 2016, p. 49)

As crianças bem pequenas, mesmo antes de ingressarem na escola,


já distinguem desenho de escrita e passam a imitar o que fazem os adul-
tos, traçando linhas e rabiscos semelhantes à escrita. Depois, passam a
utilizar as letras, ainda que aleatoriamente, para suas tentativas de es-
crita. Mas o seu avanço no processo de alfabetização acontece decisi-
Figura 1 vamente quando, nos momentos de mediação, o docente faz com que
Escrita japonesa repararem, conscientemente, nos sons produzidos pela fala e que es-
ses sons podem ser registrados por meio de grafemas (letras). Nas
palavras de Soares (2016, p. 166):
As crianças, no processo de aquisição da língua oral, ouvem e produ-
zem cadeias sonoras – significantes – que associam a significados. Para
compreender a escrita alfabética como notações que representam
os sons que compõem essas cadeias sonoras, é necessário que [...]
dissociem significante de significado, isto é, que dirijam sua atenção
N.Natsu/Shutterstock

para o estrato fônico das palavras, desligando-o do estrato semânti-


co [...], em seguida, tornando-se sensível à segmentação de cadeias
sonoras em palavras, sílabas, fonemas.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 81


As capacidades de focalizar os sons das palavras distanciando-as
de seu significado e de segmentar as palavras nos sons que as consti-
tuem dizem respeito à consciência fonológica. Soares (2016) explica
que há três diferentes níveis de consciência fonológica: a lexical, a
silábica e a fonêmica. Vamos a elas!

Quadro 1
Consciência fonológica

Níveis de
consciência Conceito e objetivos Exemplos de atividades
fonológica
Consciência Compreender o conceito de palavra. Destacar as palavras de um texto (parlenda,
lexical Diferenciar palavras de conteúdo (substanti- quadrinha, cantiga, fábula etc.) para desenvolver
vos, adjetivos, verbos) de palavras funcionais atividades: da fábula O leão e o ratinho, trabalhar
(conjunções, preposições, artigos). com os nomes dos dois animais. Contar a quan-
tidade de letras de cada palavra e mostrar que o
Superar o realismo nominal (suposição de que
tamanho da palavra não tem relação com o ta-
o tamanho da palavra tem relação com o ta-
manho do animal.
manho do objeto a que se refere).
Na brincadeira Lá vai o meu barquinho, apresen-
Explorar rimas e aliterações entre palavras. (Continua)
tar a dobradura de um barco e dizer que dentro
Mostrar que segmentos de sons iguais se es- dele só podem entrar palavras que comecem
crevem com as mesmas letras. com o mesmo som da palavra LARANJA. Cada
criança dirá uma palavra que começa com LA (ali-
teração). Ou então, no barco só entram palavras
que terminem com ÃO, como AVIÃO (rima).
Consciência Segmentar a cadeia sonora da palavra em sí- Segmentar as palavras em sílabas batendo uma
silábica labas (inicialmente, utilizando qualquer letra; palma para cada sílaba.
depois, percebendo em cada sílaba o som que Andar pela sala falando uma palavra. Cada passo
mais se destaca e escolhendo a letra que re- corresponde a uma sílaba.
presenta esse som).
Em uma folha com figuras de animais, colocar
Orientar a reflexão da criança sobre sua escri- um tracinho para cada sílaba da palavra.
ta silábica sem valor sonoro.
Pedir para que as crianças retirem certas sílabas
de uma palavra. Ex.: Se retirar MA de MACACO,
o que sobra? E se retirar CO de MACACO, o que
sobra? Quais novas palavras formamos?
Em brincadeiras com parlendas, cantigas, trava-
-línguas, escrever as palavras ou textos, grifando
ou separando cada sílaba à medida que escreve
e lendo-as em voz alta, destacando a escrita igual
de rimas e aliterações.
Ensinar músicas que apresentam o alfabeto (relacio-
nar as letras com palavras que comecem com elas).
(Continua)

82 Alfabetização e letramento
Níveis de
consciência Conceito e objetivos Exemplos de atividades
fonológica
Consciência Perceber a estrutura interna da sílaba. Com o alfabeto móvel, trabalhar com pares míni-
fonêmica Perceber os fonemas que as letras representam. mos, solicitando a troca de uma letra por outra,
como em mar, dar, lar, bar etc., e chamando a
Desenvolver a consciência grafofonêmica:
atenção para o fato de que a substituição de uma
consciência das correspondências entre letras
letra por outra (alterando também o som, ou o
(grafemas) e fonemas.
significante), leva à mudança de significado.
Relacionar fonemas e letras e escrever alfabe-
Ler em voz alta as palavras que a criança escreveu,
ticamente.
suscitando a consciência fonêmica. Ao identificar
Identificar um fonema por estar em oposição lacunas na cadeia sonora, voltar a atenção da crian-
1
a outro, produzindo significados diferentes ça para a representação de sons da fala por letras.

. Ex.: pata – bata; vaca – faca; fica – viga etc. A criança deve escolher a ficha onde está o nome
da figura. Ex.: figura de um gato e três opções:
pato, gato, rato.
Completar o nome da figura com a letra que está
faltando. Ex.: figura de um galo (GA__O) e de um
gato (GA__O.
Circular a figura cujo nome começa com a mes-
ma letra do nome da primeira figura: peteca, pa-
nela, lata, cola.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Soares, 2016; Soares, 2020.

A consciência fonológica faz parte do sistema de escrita, que é um 1


conteúdo a ser ensinado na alfabetização. Frade e Silva (2005), além de Esse fenômeno é
chamado de par
detalharem o sistema de escrita em alfabético e ortográfico, apresentam
mínimo, ou seja,
outros conteúdos essenciais durante esse processo: oralidade, cultura es- “duas palavras com
significados diferentes
crita, leitura e produção de textos.
cuja cadeia sonora
seja idêntica exceto
A oralidade relaciona-se às capacidades de compreensão de textos fa-
por um segmento
lados por outros e à produção de textos orais em distintas situações infor- na mesma posição
estrutural. Um par
mais (ouvir e dar recados, escutar e compreender o que se fala, conversar
mínimo identifica dois
espontaneamente) e formais (apresentar trabalhos, representar uma peça fonemas” (SOARES,
2016, p. 195), como
teatral, apresentar um jornal falado etc.). É importante valorizar o uso pú-
caça [kasa] e casa
blico da linguagem, a exposição de ideias e opiniões, além das variedades [kaza], caracterizando
os fonemas /s/ e /z/.
linguísticas; e ainda resgatar textos da tradição oral: trava-línguas, parlen-
das, cantigas, quadrinhas etc. Esses textos são importantes também para o
trabalho com a escrita porque

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 83


Vídeo as crianças os conhecem, gostam deles e, sabendo-os de cor,
Para que a criança se conseguem perceber com mais facilidade, quando os veem
aproprie plenamente do transcritos no quadro de giz, noções iniciais importantes
sistema de escrita alfabé-
tica, uma ideia é construir
como a delimitação e o tamanho de cada palavra, a escan-
o jogo Onde moram os são em sílabas, a semelhança, na fala e na escrita, entre as
fonemas para sistematizar palavras que rimam, algumas relações entre sons e letras.
as relações grafema-fo-
(FRADE; SILVA, 2005, p. 31)
nema e fonema-grafema.
Veja como construí-lo,
assistindo ao vídeo O pro-
A cultura escrita, conforme Frade e Silva (2005), diz respeito aos
cedimento das casinhas, do conhecimentos, atitudes e valores construídos pelos cidadãos quan-
canal Alfaletrar Cenpec.
do inseridos em culturas letradas. Além da leitura e da escrita propria-
Disponível em: https://
mente ditas, esses saberes referem-se à compreensão dos gêneros
www.youtube.com/
watch?v=YYmXG6Hcpa8. Acesso textuais escritos (poemas, certidões, rótulos, anúncios, notícias etc.);
em: 14 dez. 2022.
dos suportes textuais (livros, cartazes, jornais etc.); das esferas de cir-
culação dos gêneros (familiar, jornalística, escolar, científica etc.); das
formas de armazenamento (bibliotecas, livrarias, internet etc.); e das
formas de aquisição (compra, troca, empréstimo).

O sistema alfabético refere-se à relação grafema e fonema, con-


forme explicado anteriormente. As capacidades a serem desenvolvidas
nesse componente, de modo geral, são:

Figura 2
Capacidades a serem desenvolvidas no sistema alfabético

Compreender a diferença entre letras e outras formas gráficas e saber grafá-las.

Conhecer o alfabeto em diversos tipos de letras.

Escrever de cima para baixo e da esquerda para a direita e deixar


espaço entre as palavras.

Reconhecer as repetições de sons como rimas, sílabas, início e final de palavras;


Samarets/Shutterstock

identificar e registrar as letras que representam esses sons.

Escrever ortograficamente usando a representação direta de sons por letras (p,


b, t, d, f, v) e grafar palavras irregulares de uso frequente em sala de aula.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Frade; Silva, 2005.


84 Alfabetização e letramento
Mesmo que a criança atinja o nível alfabético, há ainda o sistema
ortográfico para ser aprendido, ou seja, “o conhecimento de regras
para a representação das relações regulares entre os sons da fala e as
letras e [...] a aprendizagem, por memorização, de relações irregulares,
aparentemente arbitrárias” (FRADE; SILVA, 2005, p. 33). As relações fo-
nema-letra “não são sempre unívocas, isto é, a cada letra nem sempre
corresponde um mesmo fonema, a cada fonema nem sempre corres-
ponde uma só letra” (SOARES, 2020, p. 143). Por isso, a ortografia não
será completamente dominada no período inicial da alfabetização, mas
ao longo do Ensino Fundamental.

O componente leitura refere-se à decifração e à compreensão. Es-


tão envolvidas, nesse processo, as seguintes capacidades: fazer ante-
cipações acerca do que será lido por meio de pistas, como o título, as
imagens, a estrutura do texto; confirmar as hipóteses levantadas; rela-
cionar as partes do texto, buscando compreensão; relacionar o texto
lido com outras leituras etc.

Quanto à produção de textos, é necessário criar diversas situações


de escrita em classes de alfabetização, desenvolvendo diferentes capa-
cidades: “definir para que se escreve e para quem se escreve; planejar a
escrita relacionando-a às intenções e ao tema proposto; organizar o tex-
to conforme o gênero textual escolhido (carta, bilhete, conto, lista etc.);
usar as convenções da escrita para tornar o texto legível para o leitor”
(FRADE; SILVA, 2005, p. 39). Na alfabetização, as produções de texto co-
letivas são muito produtivas. Ao perguntar às crianças sobre questões
como a finalidade do texto que está sendo produzido, como iniciá-lo,
qual nível de linguagem utilizar, quais letras usar para grafar determi-
nadas palavras etc., elas vão aprendendo as convenções de escrita, as
características dos gêneros textuais e a adequação da linguagem a cada
situação de comunicação. Ademais, para Frade e Silva (2005, p. 43-44):
Havendo motivação suficiente para a produção escolar de textos
autênticos, as decisões curriculares modificam-se. Será impor-
tante oferecer modelos de textos variados, através de leituras
feitas pelo professor e por colegas que se encontram em níveis
diferenciados; trazer para a sala de aula discussões de temas
que estejam na ordem do dia, valorizar a produção oral de tex-
tos, promover situações em que seja necessário fazer o registro
escrito para organização do trabalho, para apoio à memória ou
para interagir com outros etc. Além dos ganhos quanto à dimen-
são textual e discursiva, essas atividades também favorecem a

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 85


apropriação do sistema de escrita, porque é nesses contextos
que problemas relativos ao conhecimento alfabético e ortográfi-
co passam a ter mais sentido.

É, portanto, na prática de produção de textos que os problemas relacio-


nados ao domínio do sistema alfabético e ortográfico ficarão evidentes, e
será possível intervir a fim de que a criança avance em seus conhecimentos.

4.2 Sistema gráfico do português


Vídeo
Quando as crianças aprendem que as letras servem para represen-
tar os sons e realizam suas primeiras produções, tomam por base a sua
fala para escrever. Por isso, é importante tratarmos, inicialmente, da
produção de sons pelo ser humano. Oliveira (2005) explica que nosso
aparelho fonador é responsável pela emissão de sons e, consequente-
mente, pela fala. Dele fazem parte os pulmões, a laringe e as cavidades
supraglóticas. A principal função do pulmão é garantir, por meio da
respiração, a oxigenação do sangue que circula no corpo. A corrente
de ar expelida pela expiração é usada na criação dos sons da fala. Essa
corrente de ar passa pela traqueia e chega à laringe, onde se transfor-
ma em corrente sonora pelo processo de fonação: as cordas vocais
(situadas na laringe) podem ficar separadas – quando a corrente de ar
passa entre elas sem encontrar obstáculo – ou juntadas – formando
uma barreira à corrente de ar. Temos, portanto:

Andrew Krasovitckii/Shutterstock
Figura 3
Cordas vocais separadas ou juntadas

O som produzido não


Cordas vocais coloca as cordas vocais Som surdo
separadas em vibração Ex.: /p/, /t/, /k/, /f/ etc.

Cordas vocais O som produzido Som sonoro


juntadas coloca as cordas Ex.: /b/, /d/, /z/, /v/ etc.
vocais em vibração
Fonte: Elaborada pela autora.

Depois de a corrente sonora ser criada na laringe, as cavidades su-


praglóticas (faringe, fossas nasais e boca) ampliam e modificam os sons,
que são chamados de fones, podendo ser consonantais e vocálicos. “Os
sons vocálicos são aqueles em que não se coloca nenhum impedimento

86 Alfabetização e letramento
à corrente sonora na cavidade bucal. Os sons consonantais são aqueles
em que algum tipo de impedimento, seja ele total ou parcial, é colocado
à corrente sonora na cavidade bucal” (OLIVEIRA, 2005, p. 29).

Algumas distinções importantes:


• Fala e língua: as pessoas falam de modos diferentes, devido a vá-
rios fatores, como regionais, sociais, históricos. Ainda assim, por
falarem a mesma língua – em um mesmo país –, conseguem se
comunicar. Portanto, enquanto a fala é individual, a língua é coletiva.
• Sons e letras: as letras são elementos mínimos da escrita. Os sons
são elementos mínimos da fala (os fones) e da língua (os fonemas).
• Fones e fonemas: os fones (elementos da fala) são falados. Os fone-
mas (elementos da língua) não são falados. Na linguística, a Fonética
estuda os sons da fala. A Fonologia se ocupa dos sons da língua. Os
sons da fala (fones) são representados entre colchetes, [ ]; já os sons
da língua (fonemas) são representados entre barras inclinadas, / /.

Representamos esses sons vocálicos e consonantais do português


de um modo específico, por meio de símbolos fonéticos. A título de co-
nhecimento, o quadro a seguir mostra essas representações.
Quadro 2
Símbolos fonéticos do português

Símbolos Símbolos Símbolos


Exemplos Exemplos Exemplos
fonéticos fonéticos fonéticos
[p] Pato, sapatilha. [v] Vaca, cavalo. [m] Maçã, camisa.
Seu, céu, máximo,
Navio, cana, nun-
[b] Bala, tambor, abrir. [s] piscina, pás, paz, ex- [n]
ca.
ceto, nasça, caçada.
Zebra, exército, azul, Caminho, nhoque,
[t] Tatu, pote, tratar. [z] [ɲ]
asa. manhã.
Chave, caixa, achar, Lindo, lápis, cane-
[d] Cadeado, doce. [ſ] [l]
xale. la.
[k] Casa, quilo, como. [3] Gente, janela, ajuda. [ʎ] Calha, melhor.
Tio, time, leite (dia-
Porta, rato, ca-
[g] Gato, guerra, gota. [t ʃ ] leto mineiro, por [h]
chorro.
exemplo).
Dia, verde, ande
Barata, francês,
[f] Café, feliz, fratura. [d ʒ] (dialeto mineiro, por [ɾ]
cravo, maravilha.
exemplo).
[i] Viola, idade, neve. [a] Fato, bola, abacaxi. [ɛ] Café, leva, pega.

[u] Lutar, tatu, tato. [e] Telha, escola. [o] Bolo, avô.
(Continua)

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 87


Símbolos Símbolos Símbolos
Exemplos Exemplos Exemplos
fonéticos fonéticos fonéticos
[ɔ] Bola, avó, volta. [I] Vinda, hino, capim. [e] Pente, ema, renda.
Canta, andorinha,
[õ] Onda, bomba, goma [u] Fundo, fuma, atum. [ã]
manhã.
Brasil, mau, mal, al-
[w] [y] Pai, vai, foi.
tura.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Oliveira, 2005.

Se no início do processo de alfabetização a criança se apoia na sua fala


para realizar seus registros, como, então, ela evoluirá para uma escrita orto-
gráfica? Ou ainda, como ela avançará da escrita alfabética para a ortográfi-
ca? Oliveira (2005) esclarece que ela passa de uma fase inicial – com caráter
de código, baseada na fala, procurando representar concretamente os sons
na escrita e deixando-a muito próxima de uma escrita fonética, mas distan-
te da escrita ortográfica oficial – para uma fase final – com base na língua,
abstrata e com caráter de representação. Assim, quando escreve “peti” para
pente, por exemplo, verificam-se duas situações: a sílaba pen, apesar de ser
2 grafada com três letras, tem apenas dois sons, pois en é um dígrafo . A
2

Dígrafo é o encontro última sílaba foi grafada “ti” devido ao modo como esse aprendiz pronun-
entre duas letras para
representar um único cia a palavra. Quando passa a grafar pente ortograficamente, notou que a
som na fala. São dígrafos escrita ortográfica “independe da fala de quem quer que seja, inclusive da
consonantais: nh, lh, ch,
rr, ss, sc, sç, xc, xs, qu e gu, sua própria. Ele percebeu que a escrita ortográfica representa um nível mais
presentes nas palavras abstrato de organização sonora [...]” (OLIVEIRA, 2005, p. 37).
caminho, milho, chutar,
carro, pássaro, nascer, Portanto, detalharemos como funciona o sistema gráfico do portu-
nasça, excesso, exsudar,
quilo, guerra. guês de modo a auxiliar os aprendizes a mover-se, conforme Oliveira
São dígrafos vocálicos: (2005, p. 39), “de um sistema de representação calcado na fala para
am, an, em, en, im, in, om,
um sistema de representação calcado na língua”. Além disso, a escrita
on, um, un. Ex.: campo,
sangue, sempre, entrou, ortográfica incorpora outras nuances, que devem ser superadas pela
limpo, tinto, ombro, ontem,
criança ao longo do processo de aprendizado.
nenhum, sunga etc.
De acordo com Faraco (2012, p. 122), “a língua portuguesa tem uma
representação gráfica alfabética com memória etimológica”. O princí-
pio geral da escrita alfabética é que cada fonema será representado
por um grafema e cada grafema representará um fonema. Contudo,
em razão da memória etimológica, as formas gráficas de certas pala-
vras serão fixadas não só pelas unidades sonoras, mas também por
sua origem – grega, latina, tupi etc. Por isso, a relação grafema e fone-

88 Alfabetização e letramento
ma não será sempre regular, surgindo, assim, as representações arbi-
trárias – que irão gerar dificuldades para o alfabetizando.

A grande vantagem é que as representações regulares são a maio-


ria. Além de que a grafia é, de certo modo, neutra com relação à pro-
núncia. A palavra pente, anteriormente citada, pode ser falada de vários
modos, mas a forma de grafar é única e não representa diretamente
nenhuma das pronúncias possíveis.

Há dois tipos de relações possíveis no sistema gráfico do português


entre unidades sonoras e unidades gráficas: as relações biunívocas e as
cruzadas. As biunívocas são relações totalmente regulares, ou seja, “a
unidade gráfica (letra ou dígrafo) representa uma e só aquela unidade
sonora; e a unidade sonora é representada por uma e só aquela unida-
de gráfica” (FARACO, 2012, p. 131), conforme o quadro a seguir.
Quadro 3
Relações biunívocas

Unidade sonora Unidade gráfica Exemplo


/p/ p Pacote, apito, prata, apto.
/b/ b Bolo, abacate, abre, obter.
/f/ f Foca, bafo, fraco, afta.
/v/ v Viola, chave, palavra.

/ɲ/ nh Ninho, nhoque, rainha.


/t/ t Pacote, tatu, trator.
/d/ d Doce, adoçante, drástico, advogado.

/ʎ/ lh Milho, lhama, palhaço.


Fonte: Elaborado pela autora com base em Faraco, 2012.

Nas relações cruzadas, de acordo com Faraco (2012, p. 128), “uma


unidade sonora tem mais de uma representação gráfica possível”, como
ocorre com /ã/, que pode ser representada por ã (irmã), am (samba) ou
an (manga), ou “uma unidade gráfica representa mais de uma unidade
sonora”, como é o caso da letra r, que pode ser forte em rato e fraca em
barata. As relações cruzadas são divididas em previsíveis, parcialmente
previsíveis, parcialmente arbitrárias e totalmente arbitrárias.

Com relação às cruzadas previsíveis, há dois casos. No primeiro, a


relação é biunívoca em um ou alguns contextos na sílaba ou na palavra,
mas em outros, essa relação é representada por outras unidades sono-
ras. Acompanhe o quadro que exemplifica esse primeiro caso.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 89


Quadro 4
Relações cruzadas previsíveis: primeiro caso

Unidade Unidade
Ocorrências
sonora gráfica
Só ocorre no início de sílaba: mato, cama, palma, admitir.

/m/ m A letra m, em fim de sílaba, participa da representação das vogais nasais: tempo,
bomba, limpo. Em fim de palavra, representa a semivogal /y/ ou /w/: também, porém,
falam, cantam.

Só ocorre no início de sílaba: nata, caneta, repugnar.

/n/ n A letra n, em fim de sílaba, participa da representação das vogais nasais: vento, tinta,
manco. Em fim de palavra, a letra n é muito rara, representando a semivogal /y/ ou
/w/: hífen, nêutron.
/r/
r Ocorre entre vogais ou no encontro consonantal: cenoura, trato, carta.
(erre fraco)
Ocorre no início de sílaba e no encontro consonantal: lápis, falar, planta.
/l/ l
Em final de sílaba, a letra l representa /w/, como em anel, funil, pastel.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Faraco, 2012.
No segundo caso, a unidade sonora tem mais de uma representa-
ção gráfica, cada uma num contexto determinado, como exemplificado
no quadro a seguir.
Quadro 5
Relações cruzadas previsíveis: segundo caso

Unidade sonora Unidades gráficas


a) O dígrafo rr quando a unidade sonora estiver entre vogais: carro, cachorro, irrita.
/R/ b) A letra r nos demais casos: início de palavra (roer, ração); fim de sílaba e de palavra (arco, amor);
precedido de vogal nasal (honra, enrosca); precedido de consoante (desrespeito).
a) A letra c quando a unidade sonora /k/ for seguida das letras a, u, o: caracol, buraco, curto.
b) Quando /k/ estiver em encontro consonantal ou no fim de sílaba: cravo, acrílico, pacto, técnica.
c) O dígrafo qu quando /k/ for seguida de i ou e: queijo, quilo, aquecer.
/k/
3
d) A letra q quando /k/ for seguida de u (semivogal ) e depois a ou o: quarto, quota, ou por u,
seguido de e ou i: cinquenta, tranquilo.
e) A letra q quando /k/ for seguida de u e depois de vogal: adequo, adequa, adeque.
a) A letra g quando a unidade sonora /g/ for seguida das letras u, a, o: gostoso, pegada, guloseima.
b) Quando /g/ estiver em encontro consonantal ou no fim de sílaba: gruta, grotesco, repugnante.
/g/
c) Quando /g/ for seguida de u (semivogal): água, linguiça, averiguo.
d) O dígrafo gu, quando /g/ for seguida de i ou e: guia, gueto, guincho, guerra.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Faraco, 2012.

3
As vogais i e u (representadas pelos sons /y/ e /w/) são semivogais quando acompanham outra vogal na mesma sílaba. O som das
semivogais é menos sonoro do que das vogais. Ex.: pai, quarto, mão, alguém.

90 Alfabetização e letramento
As relações cruzadas podem ser também parcialmente previsíveis
e parcialmente arbitrárias quando a unidade sonora tem mais de
uma representação. Em alguns casos, a representação gráfica é previsí-
vel pelo contexto, e em outros não. Vejamos o quadro a seguir.

Quadro 6
Relações cruzadas parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias

Unidade
Unidades gráficas
sonora
Representação previsível: só j:
a) A letra j quando a unidade sonora /ʒ/ for seguida de a, o, u: janela, jogo, juba.
Representações arbitrárias: j ou g:
b) As letras j ou g quando /ʒ/ for seguida de e ou i: girar, geralmente, jegue, nojento, argentino.
/ʒ/ Obs: Regras para a relação cruzada das letras g e j. Diante de e e i, a letra g é mais frequente que a letra j.
A letra j ocorre em palavras derivadas de outras que se escrevem com j: laranja, laranjeira, loja, lojista; ver-
bos terminados em jar: viajar, velejar. Em palavras de origem tupi, africana ou popular: pajé, jiboia, jiló. A
letra g ocorre em palavras derivadas de outras escritas com g: vertigem, vertiginoso; verbos terminados em
ger e gir: eleger, fugir, dirigir. Na maioria das palavras terminadas em gem: aprendizagem, ferrugem, co-
ragem. Nas palavras terminadas em ágio, égio, ígio, ógio, úgio: estágio, prestígio, colégio, refúgio, relógio.
Representações previsíveis: só z, só s e só x:

a) No início de palavras, sempre com a letra z: zebra, zangado, zunido.


A letra z no fim de palavra representa a unidade sonora /s/: paz, faz, traz.
b) No fim de sílaba, sempre a letra s: desde, mesmo, gosmento.
c) No início de sílaba precedido de vogal nasal (grafada com auxílio de n) ou consoante, sempre z:
zonzo, marzipan.
Nas vogais orais, o ar sai pela boca. Nas nasais, a corrente de ar passa, ao mesmo tempo, pelas cavidades
bucal e nasal.

/z/ d) Em e + /z/ + vogal, quase só a letra x: exato, exemplo, exímio, exótico, exumar.
Representações arbitrárias: s ou z:
a) Entre vogais, /z/ pode ser representado pela letra s (mais frequentemente) e pela letra z: casa,
mesa, meses, azar, rezar, luzes.
Obs: A letra s ocorre sempre: depois de ditongos (encontro de uma vogal e uma semivogal em uma mesma
sílaba): pausa, coisa, lousa; nas palavras terminadas em oso ou osa: formoso, dolorosa; nos femininos
em esa ou isa: duquesa, francesa; nas palavras derivadas de outras escritas com s: empresa, empresário,
casa, casinha; em verbos em isar, que derivam de palavras com s: pesquisa, pesquisar, análise, analisar. A
letra z ocorre sempre nas palavras derivadas de outras escritas com z: cruz/cruzada, rapaz/rapaziada; nos
substantivos terminados em eza derivados de adjetivos: pobreza, tristeza; nos verbos em izar derivados de
palavras cuja raiz não termina em s: suave/suavizar, útil/utilizar.
(Continua)

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 91


Unidade
Unidades gráficas
sonora
Representações previsíveis:
a) Sempre a letra s:
• Se a unidade sonora /s/ estiver no início da palavra seguida de a, o, u: sapo, soltar, sujo.
• Se /s/ estiver no fim da palavra e for marca de plural: balas, cones.
b) Quase sempre a letra s – quando a unidade sonora /s/ ocorre em fim de sílaba:
• Consoante + vogal + /s/
Regular: será s com todas as vogais, menos e: pasta, pista, poste, fustigar.
Arbitrária: com e, será s na maioria dos casos: resto, emprestar. Exceções: sexto, texto, têxtil e derivados.
• Vogal + /s/
Regular: será s com todas as vogais, menos e: astro, ostentar, isto.
Arbitrária: com e, será s na grande maioria. Minoria com x. Absolutamente raro com xs.
Representações arbitrárias:
a) Letra c ou s:
• No início de palavra quando a unidade sonora /s/ é seguida de i ou e: cisto, cerca, certo, sílaba,
/s/ serena, sete.
b) Letra s ou z no final de palavra, salvo na marca de plural, na qual é sempre s: mês, gás, pus, vez,
paz, giz.
c) Letra s ou c (+e ou i) ou letra s ou ç (+ a/o/u) no início de sílaba quando a unidade sonora /s/ é pre-
cedida de consoante ou vogal nasal (grafada com auxílio de n): pense/lance, versificar/parcimônia,
pensar/lançar, persuadir/forçudo.
d) Entre vogais:
• A vogal que segue é a/o/u
ss ou ç: passado, traça, passo, paço, assunto, açúcar.
ss ou sç: assado, assumir, cresça, desça.
• A vogal que segue é e/i
4
ss ou c: passe, cassino, receber, recibo.
ss ou sc: nascente, nascimento.
ss ou x: máximo, sintaxe.
ss ou xc: excelente, excitar.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Faraco, 2012.

4
Usa-se c/ç e não ss: depois de ditongos (louça, traição); nos sufixos aça, aço, ação, ecer, iço, ança, uço (ricaço, barcaça, armação,
entardecer, caniço, criança, dentuço); nos vocábulos de origem tupi, africana ou árabe (araçá, Iguaçu, paçoca, muçulmano, açúcar).
Usa-se ss e não c em correlação constante entre palavras: CED-CESS (conceder/concessão); GRED-GRESS (agredir/agressão);
PRIM-PRESS (oprima/opressão); TIR-SSÃO (omitir/omissão); MET-MISS (submeter/submissão).

92 Alfabetização e letramento
Como se pode notar, o som /s/ é bastante produtivo na língua portu-
guesa, e em várias situações suas representações gráficas são arbitrárias,
o que dificulta a apreensão da ortografia correta por parte dos aprendizes
iniciantes. Contudo, Faraco (2012) aconselha trabalhar, inicialmente, com
as formas regulares. Depois, aos poucos, introduzir as arbitrárias com a
forma global da palavra e com as respectivas famílias, evitando as mais ra-
ras. Nas séries iniciais, faz mais sentido trabalhar com a memorização das
palavras de uso frequente e nas séries mais avançadas promover maior
reflexão acerca das regularidades e arbitrariedades da língua.

Para finalizar esta seção, apresentamos as relações cruzadas to-


talmente arbitrárias, que ocorrem quando “a unidade sonora tem
mais de uma representação gráfica e a ocorrência de uma ou outra é
imprevisível” (FARACO, 2012, p. 148).
Quadro 7
Relações cruzadas totalmente arbitrárias

Unidade
Unidades gráficas Observações
sonora
/ʃ/ A letra x ou o dígrafo ch, como nas palavras: a) O dígrafo ch só representa / ʃ /.
chave, chiste, encharcado, macho, xale, xisto,
b) A letra x tem outros valores no sistema gráfico.
enxadrezado, faxineiro.
c) A representação de / ʃ / por ch é mais frequen-
te que por x.
d) Usa-se sempre x:
• Depois de ditongos: caixa, ameixa, paixão, rou-
xinol.
• Em vocábulos de origem indígena ou africana:
abacaxi, xavante.
• Geralmente depois da sílaba inicial en: enxada,
enxame, enxuto, enxofre.
d) Serão com ch (depois de en) palavras derivadas
de outras escritas com ch: cheio/encher; enchi-
mento/preencher.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Faraco, 2012.

Pôde-se notar, portanto, que o professor alfabetizador precisa co-


nhecer a organização do sistema gráfico do português para compreen-
der as dificuldades ortográficas dos alunos e auxiliá-los a superá-las
por meio de um ensino sistemático e organizado.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 93


4.3 Alfabetização na BNCC
Vídeo
Para atender à exigência feita pela Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (LDBEN), a BNCC foi elaborada com o objetivo de garantir
o conjunto de aprendizagens fundamentais aos estudantes brasileiros
e seu desenvolvimento integral. Esse documento contempla as etapas
da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Para a Educação Infantil, a BNCC (BRASIL, 2018) orienta a organi-


zação curricular conforme os campos de experiência. Denomina-se
Escuta, pensamento, fala e imaginação o campo de experiência que diz
respeito ao desenvolvimento da linguagem. Os objetivos de aprendiza-
gem e desenvolvimento são organizados em três etapas: bebês (de 0 a
1 ano e meio); crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11
meses) e crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses).

Ainda que a alfabetização não seja um dos objetivos da Educação


Infantil, desde essa etapa, a criança deve participar de diferentes prá-
ticas de leitura e escrita. A partir dos dois ou três anos de idade, em
ambientes letrados, ela se interessará pela função e pelo significado da
linguagem, questionando os escritos que visualiza. Nesse processo, ela
pode “escrever” e “ler”, mesmo sem ainda fazê-lo convencionalmente.
Isso é importante para que a criança crie hipóteses sobre a escrita, que
serão válidas para o posterior processo de alfabetização (BRASIL, 2018).
Assim, observaremos, no quadro a seguir, os objetivos de aprendiza-
gem e desenvolvimento da linguagem na Educação Infantil de acordo
com a BNCC, a fim de destacar aqueles que podem auxiliar o processo
de alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Quadro 8
Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da linguagem na Educação Infantil

Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas


Reconhecer o seu nome e o das pes- Dialogar e expressar desejos, senti- Expressar suas ideias por desenhos,
soas com quem convive. mentos, opiniões. escrita espontânea, fotos etc.
Interessar-se por poemas, músicas, Conhecer rimas, identificar e criar Criar brincadeiras cantadas, poe-
histórias lidas e contadas; observar sons; diferenciar escrita de ilustração; mas, canções, ritmos; escolher e
ilustrações dos livros; e reconhecer acompanhar a direção da leitura; for- folhear livros; tentar identificar pala-
elementos das ilustrações das histó- mular e responder perguntas sobre vras conhecidas; e recontar histórias
rias. a história; e identificar personagens, ouvidas.
cenários e acontecimentos.
(Continua)

94 Alfabetização e letramento
Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas
Imitar entonação e gestos feitos pelo Relatar experiências, histórias, fatos, Recontar histórias para o professor
adulto ao ler e cantar; comunicar-se filmes; criar e contar histórias com escrevê-las; levantar hipóteses so-
por gestos, movimentos, fala; conhe- base em imagens ou temas sugeri- bre gêneros textuais; realizar hipóte-
cer e manipular instrumentos e su- dos; desenhar, traçar letras e sinais ses sobre a escrita e realizar escrita
portes de escrita. gráficos. espontânea.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2018.

Percebe-se que os objetivos propostos para a Educação Infantil cami-


nham na direção não somente do letramento – mediante audição de his-
tórias, convívio com materiais escritos, manipulação de variados gêneros
textuais – mas também no que diz respeito ao processo de aquisição
da língua escrita, ou seja, a alfabetização propriamente dita: conhecer
rimas, identificar e criar sons, diferenciar escrita de ilustração, acompa-
nhar a direção da leitura, traçar letras e realizar hipóteses sobre a escrita.

Entretanto, segundo a BNCC (BRASIL, 2018), nos Anos Iniciais (1º e 2º


anos) do Ensino Fundamental é que se espera que a criança se alfabe-
tize, pois a alfabetização é o foco da ação pedagógica. Nesse processo:
é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica
da escrita/leitura – processos que visam a que alguém (se) torne
alfabetizado, ou seja, consiga “codificar e decodificar” os sons
da língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou letras), o
que envolve o desenvolvimento de uma consciência fonológica
(dos fonemas do português do Brasil e de sua organização em
segmentos sonoros maiores como sílabas e palavras) e o conhe-
cimento do alfabeto do português do Brasil em seus vários for-
matos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além
do estabelecimento de relações grafofônicas entre esses dois sis-
temas de materialização da língua. (BRASIL, 2018, p. 89-90)

Desse modo, para a BNCC (BRASIL, 2018), alfabetizar significa conduzir


o aluno à apropriação da ortografia do português escrito do Brasil. Para
isso, é necessário conhecer o funcionamento da escrita alfabética para ler
e escrever, compreendendo especialmente as relações complexas entre
os sons da fala e as letras. O documento baseia-se nas recentes pesquisas
sobre a construção da língua escrita pela criança, como as de Emilia Ferrei-
ro, afirmando que esse processo (a alfabetização propriamente dita) pode
ocorrer em dois anos e será complementado por outro, mais demorado,
chamado de ortografização – o conhecimento da ortografia do português
do Brasil, já explicitado anteriormente. Assim, as capacidades ou habilida-
des envolvidas na alfabetização, segundo esse documento, são:

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 95


• Compreender diferenças entre escrita e outras formas gráficas
(outros sistemas de representação);
• Dominar as convenções gráficas (letras maiúsculas e minúsculas,
cursiva e script);
• Conhecer o alfabeto;
• Compreender a natureza alfabética do nosso sistema de escrita;
• Dominar as relações entre grafemas e fonemas;
• Saber decodificar palavras e textos escritos;
• Saber ler, reconhecendo globalmente as palavras;
• Ampliar a sacada do olhar para porções maiores de texto que
meras palavras, desenvolvendo assim fluência e rapidez de leitu-
ra (fatiamento). (BRASIL, 2018, p. 93)

Para o desenvolvimento dessas capacidades, o texto é objeto de en-


sino em seus usos significativos, nas atividades de leitura, escuta e pro-
dução de textos em várias mídias e semioses. As práticas de linguagem,
portanto, são organizadas em quatro eixos, conforme a figura a seguir.
Figura 4
Eixos organizadores das práticas de linguagem na BNCC

Sam
Leitura/escuta Oralidade

arets/Shuttersto
(de texto escrito, (práticas com
imagens estáticas ou sem contato
ou em movimento face a face)
e som)

ck

Análise linguística/
Produção
semiótica (envolve
(escrita e
conhecimentos
multissemiótica)
linguísticos)

Fonte: Elaborada pela autora com base em Brasil, 2018, p. 71.

96 Alfabetização e letramento
Além da organização por eixos, o documento propõe outra cate-
goria organizadora do currículo, denominada de campos de atuação,
de modo articulado à leitura/escuta, produção e análise linguística/
semiótica. Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e, portanto, tam-
bém nas classes de alfabetização, os campos de atuação são: campo
da vida cotidiana, campo artístico-literário, campo das práticas de estu-
do e pesquisa e campo da vida pública. Esses eixos contemplam usos
variados da linguagem e contribuem para a definição de objetos de
conhecimento (conteúdos) e das habilidades (objetivos) a serem desen-
volvidos em cada etapa da escolarização. Vamos listar alguns exemplos
de habilidades relacionadas ao eixo análise linguística, que poderiam
ser trabalhadas em sala de aula. Acompanhe o quadro a seguir.
Quadro 9
Propostas de atividades baseadas nas habilidades presentes na BNCC

Objeto do Habilidade (BNCC) Atividades propostas


conhecimento
Construção Relacionar elementos so- 1- Veja a figura.
do sistema noros (sílabas, fonemas,
alfabético partes de palavras) com
sua representação escrita. Epine/Shutterstock

Faça um X na alternativa em que


está escrito o nome dessa fruta.
A) PERA
B) PERU
C) PELO
D) PELE
Construção do Segmentar palavras em 2- Marque um X na alternativa em
sistema alfabético sílabas, remover e subs- que aparece o número de sílabas da
e da ortografia tituir sílabas iniciais, me- palavra CEGONHA
diais ou finais para criar A) 7
novas palavras.
B) 3
C) 4
D) 5
(Continua)

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 97


Objeto do Habilidade (BNCC) Atividades propostas
conhecimento
Construção Ler e escrever correta- 3- Veja o desenho.
do sistema mente palavras com sí- Lid
ok
alfabético e da labas CV, V, CVC, CCV, _L
/S
hu
ortografia identificando que existem tte
rst
oc
vogais em todas as sílabas. k

Faça um X na alternativa em que


está escrito o nome do desenho.
A) AGITO
B) APITO
C) PALITO
D) PILOTO
Conhecimento Conhecer, diferenciar e 4- Veja as palavras:
das diversas gra- relacionar letras de forma BARATA - GELADEIRA
fias do alfabeto e cursiva, maiúsculas e mi-
Faça um X na alternativa em que
núsculas.
estão escritas as mesmas palavras
lidas acima.
A) Barata – Geladeira
B) BATATA – GARRAFA
C) Barata – GAZELA
D) BALEIA – geladeira
Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2018.

A questão número 1 avalia a capacidade de reconhecer o valor


sonoro de uma sílaba, partindo da imagem que representa a fruta
pera. O que varia nas alternativas é apenas a sílaba final das pa-
lavras. Sendo assim, a criança precisa reconhecer a sílaba final da
palavra para marcar a alternativa correta. Caso erre a questão, é
possível que o aluno ainda não consiga identificar a correspondên-
cia sonora das sílabas.

A criança que acerta a questão 2 consegue identificar corretamente


o número de sílabas que formam a palavra cegonha. Aquela que marca
a primeira alternativa (7 sílabas), possivelmente confunde os conceitos
de letra e sílaba, e quem marca a terceira alternativa (5 sílabas) pode
ter pensado que o nh se separa e forma duas sílabas.

98 Alfabetização e letramento
A questão 3 avalia a capacidade de ler palavras e relacionar o signi-
ficado e o significante de uma palavra iniciada por uma sílaba formada
somente por vogal, diferentemente das compostas por consoante e vo-
gal (bola, bala, pato). Nesse caso, o aluno precisa identificar que uma
sílaba pode ser formada por uma única vogal, como é o caso de apito,
mas deve ler toda a palavra; caso contrário, confundirá com a alterna-
tiva que apresenta a palavra agito.

O estudante que acerta a questão 4 demonstra a habilidade de


reconhecer diferentes tipos de letras. Em questões como essa tam-
bém podem ser incluídas alternativas em que a palavra esteja escri-
ta com letra cursiva ou utilizar outras fontes de imprensa – se for o
caso –, pois a criança, no processo de alfabetização, vai aprendendo
que há diferentes modos de grafar a mesma letra e que isso não
interfere na relação grafema e fonema.

Por fim, além de questões como essas que focalizam a codifica-


ção e a decodificação, há outras habilidades descritas na BNCC re-
lacionadas à leitura, oralidade e escrita que contemplam práticas de
letramento e acompanham os demais anos do Ensino Fundamental.
Podemos, contudo, questionar: se a criança não consegue aprender
a ler e a escrever nos dois primeiros anos dessa etapa de ensino, o
que devemos fazer? As crianças aprendem de modo diferente e em
tempos distintos; porém, e quando percebemos uma dificuldade mais
acentuada? Poderá ser um transtorno de aprendizagem?

4.4 Transtornos de aprendizagem da escrita


Vídeo
Numa classe de alfabetização, naturalmente, haverá crianças que
aprenderão a ler e escrever mais rapidamente do que outras. Algumas
já chegarão ao primeiro ano praticamente alfabetizadas, porque de-
senvolveram essas habilidades com os familiares ou na Educação In-
fantil, e outras demonstrarão dificuldades nesse processo, por várias
razões. Primeiramente, elencaremos o que Oliveira (2005) chama de
problemas de escrita, que podem se fazer presentes nos textos das
crianças em processo de alfabetização. O autor divide esses problemas
em três grupos, expostos nos quadros a seguir.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 99


Quadro 10
Problemas de escrita

Escrita pré-alfabética Escrita alfabética com correspon- Escrita alfabética com correspondên-
dência trocada por semelhança de cia trocada pela mudança de sons
traçado
ampofelida (a minha pro- nacaco (macaco); boce (doce); qato (pato) cheito (jeito); cato (gato); papa (baba)
fessora é linda)

A criança ainda não se Em razão da semelhança no traçado das Quando as crianças repetem as palavras
resolveu entre a repre- letras, muitas crianças confundem, por sussurrando-as ao escrevê-las, acabam
sentação de grupos de algum tempo, a grafia de algumas letras trocando sons sonoros por surdos.
sons (escrita silábica) ou a como m e n, p e q, b e d.
representação de sons in-
dividuais (escrita alfabética).
Fonte: Elaborado pela autora com base em Oliveira, 2005.

Quadro 11
Problemas de escrita II

Violações das relações Violações das regras Violações da relação entre Violação de formas
biunívocas entre os sons invariantes que con- os sons e os grafemas por dicionarizadas
e os grafemas trolam a representa- interferência das
ção de alguns sons características estruturais
do dialeto do aprendiz
fava (mola); cata (bola) Um aluno grafa gato sou (sol); bunito (bonito) cesta-feira (sexta); cinto
corretamente, mas (sinto)
escreve gera (guerra). jelo (gelo); xoque (choque)
Aprendiz que não con- Há regras sem exceção Dependerá de como a criança Grafias de natureza to-
seguiu até o momento (invariantes) para grafar fala, de acordo com o seu talmente arbitrárias. Há
estabelecer as relações [g] diante de [ɛ] e [h] dialeto. casos em que as duas
mínimas entre alguns sons entre vogais. formas existem, mas se
e alguns grafemas. relacionam a contextos
diferentes, e outras que
não existem, porém são
tecnicamente possíveis.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Oliveira, 2005.

Quadro 12
Problemas de escrita III

Violação na escrita de Casos de hipercorreção Casos acidentais


sequências de palavras
opatu (o pato); mileva (me abril (abriu); pegol (pegou); jogol (jogou) aprandim (aprendi)
leva); javai (já vai)

A partição da fala não cor- A criança percebe que muitas palavras Casos em que a criança grafa uma palavra
responde à partição da terminam com a letra l, mas tem som de u de modo incorreto, mas sem nenhuma re-
escrita. (pastel, sol, lençol) e aplicam esse conheci- lação com a sua fala.
mento a outras palavras.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Oliveira, 2005.

100 Alfabetização e letramento


Os casos descritos, apesar de parecerem assustadores, podem ser
superados com um trabalho sistemático em sala de aula e fazem parte
do processo natural de aprendizagem da leitura e da escrita. Para além
desses problemas de escrita, podemos identificar em nossos alunos difi-
culdades de aprendizagem mais acentuadas ou ainda transtornos de
aprendizagem relacionadas à aquisição da escrita. É importante distin-
guir esses dois termos que, a princípio, podem parecer sinônimos.

Dificuldades de aprendizagem dizem respeito a certas dificuldades


na realização de tarefas que podem acontecer por vários motivos: pro-
blemas com a proposta pedagógica, falta de preparo do docente, pro-
blemas familiares, déficits cognitivos etc. Elas podem ocorrer apenas
em determinada matéria escolar ou em algum momento da vida. Além
disso, podem ser causadas por problemas psicológicos, como falta de
motivação ou baixa autoestima (OHLWEILER, 2016). Há, ainda, dificul-
dades de aprendizagem secundárias a outros quadros diagnosticáveis,
por exemplo, decorrentes de alterações das funções sensoriais, doenças
crônicas, transtornos psiquiátricos, deficiência mental e doenças neuro-
lógicas (como paralisia cerebral, transtorno de déficit de atenção/hipera-
tividade, deficiência mental, transtorno do espectro autista e epilepsia).

Os transtornos de aprendizagem, por sua vez, segundo Ohlweiler


(2016, p. 108), “compreendem uma inabilidade específica, como de leitura,
escrita ou matemática, em indivíduos que apresentam resultados significa-
tivamente abaixo do esperado para seu nível de desenvolvimento, escola-
ridade e capacidade intelectual”. O transtorno de aprendizagem pode ser
suspeitado naquela criança que apresenta algumas características como:
“inteligência normal; ausência de alterações motoras ou sensoriais; bom
ajuste emocional; nível socioeconômico e cultural aceitável” (OHLWEILER,
2016, p. 108). Outro ponto destacado por Ohlweiler (2016) é que nos trans-
tornos de aprendizagem os padrões normais de aquisição de habilidades
estão comprometidos desde os estágios iniciais do desenvolvimento. Tam-
bém não se dão em razão da falta de estímulo adequado ou de qualquer
forma de traumatismo ou doença cerebral. E não são resultado direto de
outros transtornos, ainda que possam ocorrer simultaneamente. O proble-
ma apresentado pela criança, geralmente, persiste por toda a vida.

De acordo com Ohlweiler (2016), acredita-se que os transtornos de


aprendizagem se originam a partir de distúrbios na interligação de in-
formações em várias regiões do cérebro. São total ou parcialmente ir-
reversíveis, provavelmente advindos de fatores biológicos.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 101


Há três tipos de transtornos de aprendizagem específicos: o trans-
torno da leitura, o transtorno da expressão escrita e o transtorno da
matemática. Interessa-nos, nesta obra, os dois primeiros. O transtorno
da leitura caracteriza-se por uma dificuldade específica na compreen-
são de palavras escritas. Trata-se de um transtorno específico das ha-
bilidades de leitura, em que foram eliminadas todas as outras causas.
O transtorno da expressão escrita diz respeito apenas à ortografia
ou caligrafia, na ausência de outras dificuldades da expressão escrita,
podendo haver associação de dificuldades na capacidade de produzir
textos escritos, erros de gramática, pontuação, desorganização no uso
de parágrafos, múltiplos erros ortográficos (OHLWEILER, 2016).

A literatura da área costuma nomear o transtorno da leitura como dis-


lexia. Quanto ao transtorno da expressão escrita, trataremos da disgrafia
e da disortografia. Observaremos a seguir as principais características de
cada um desses transtornos específicos da aprendizagem.

Figura 5
Principais características dos transtornos específicos da aprendizagem

Dislexia Disortografia Disgrafia

Distúrbio do funcionamento Uso incorreto do símbolo gráfico Problemas na escrita que


cerebral com causa genética ou para representar a linguagem falada. dificultam a comunicação de ideias
hereditária. e apreensão de conhecimentos
Dificuldades devido à grafia das palavras.
Dificuldades • Trocas, omissões de letras,
• Fluência correta na leitura. confusão na concordância de Dificuldades
Samarets/Shutterstock

• Soletração e decodificação. gênero e número, erros sintáticos • Podem ocorrer erros


• Inversões, omissões e grosseiros e uso incorreto da ortográficos graves; omissão,
substituição de letras ou pontuação. acréscimo ou inversão de letras
sílabas na leitura. • Organização, estruturação e e sílabas.
composição de textos escritos. • Dificuldade espacial e falta de
• Construção frásica pobre e domínio do traçado da letra.
geralmente curta.
• Múltiplos erros ortográficos.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Machado, 2020; Pereira, 2018.

102 Alfabetização e letramento


Para Machado (2020, p. 65), o funcionamento cerebral típico “depen-
de da ativação integrada e simultânea de diversas redes neurais para
decodificar as informações, no caso, as letras do alfabeto. Quando isso
não ocorre adequadamente, há uma desordem no caminho das infor-
mações, dificultando o processo de decodificação das letras”. Temos,
portanto, nesse caso, a dislexia, que pode acarretar dificuldade na
escrita. As pessoas com dislexia nem sempre apresentam os mesmos
sintomas, porém desenvolvem algumas características em comum. Pe-
reira (2018) e Machado (2020) elencam algumas delas, que podem ser
observadas pelos professores tanto na Educação Infantil como nos pri-
meiros anos do Ensino Fundamental:
• dispersão e desatenção;
• atraso no desenvolvimento da fala;
• fraco desenvolvimento da coordenação motora, falta de interes-
se por livros impressos;
• dificuldade para aprender rimas, aliterações e canções, escre-
ver letras e números corretamente, ordenar as letras do alfa-
beto, meses do ano, sílabas de palavras compridas, montar
quebra-cabeças;
• dificuldade na distinção de esquerda e direita, de copiar textos
de livros ou do quadro, na coordenação motora fina (desenhos,
letras, pinturas), manusear mapas e dicionários;
• compreensão de leitura lenta;
• insegurança e baixa autoestima;
• confusão entre letras e formas vizinhas, letras simétricas e fone-
ticamente semelhantes;
• leitura e escrita espelhadas;
• vocabulário pobre, com sentenças curtas e imaturas ou longas
e vagas.

Vale ressaltar que, no início do processo de alfabetização, é co-


mum acontecerem trocas de letras e erros ortográficos. Portanto, para
ser considerado sinal de dislexia, conforme alerta Machado (2020, p.
68), “esses equívocos precisam ser frequentes, ou seja, mesmo com a
orientação do professor, eles se mantêm”, como “baixa capacidade de
compreensão da leitura; dificuldade para estabelecer a relação grafe-
ma/fonema na identificação e na leitura oral das palavras; e problemas
para realizar tarefas que necessitam da leitura”.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 103


Quanto à disgrafia, é preciso salientar que o estudante com esse
transtorno não tem problema visual nem motor e sua capacidade inte-
lectual é preservada. Segundo Machado (2020, p. 87), há pessoas com
disgrafia com letras mal grafadas, mas legíveis; “outros cometem erros
e borrões que quase não deixam possibilidade de leitura para sua escri-
ta cursiva, embora eles mesmos sejam capazes de ler o que escrevem”.
Além de ilegível, a escrita pode ser demasiadamente lenta, o que impede
o desenvolvimento normal da escolaridade. A letra pode ser muito gran-
de, muito pequena, mal desenhada ou escrita fora das linhas. Machado
(2020, p. 88) cita os sinais que podem indicar a necessidade de encami-
nhar o aluno a um profissional devido à suspeita de disgrafia:
• Forma irregular de segurar o lápis e dificuldade na pressão a
aplicar;
• Traçado muito grosso ou muito suave;
• Forma das letras irreconhecível, muitas vezes distorcida ou sim-
plificada, fazendo com que só a própria criança consiga ler o que
escreveu;
• Letra excessivamente grande ou pequena ou com tamanhos
inconsistentes.
• Espaçamento irregular entre letras ou palavras, que podem estar
muito afastadas ou sobrepostas;
• Escrita demasiado rápida ou lenta;
• Postura gráfica incorreta;
• Não ser capaz de respeitar as linhas;
• Inclinação inconsistente das letras ou palavras;
• Uso incorreto de maiúsculas e minúsculas;
• Pontuação inexistente ou errada;
• Erros ortográficos com omissão ou troca de letras;
• Desorganização geral na folha ou texto.

No tocante à disortografia, os estudantes com esse transtorno


apresentam inúmeros erros de escrita que se manifestam ao longo da
trajetória escolar. Os textos produzidos caracterizam-se pela falta de
sentido, clareza, coesão e coerência. Outras pistas são: trocas de cará-
ter visoespacial (d/b); confusão entre fonemas com dupla grafia (x/ch);
omissão da letra h (quando não apresenta som); trocas de letras sem
qualquer sentido; junção de palavras (ocarro, nodia seguinte); separa-
ção incorreta de palavras; desconhecimento de normas regulares (m
antes de p e b, por exemplo), regras de pontuação, do uso de maiúscu-
las e de separação silábica (MACHADO, 2020).

104 Alfabetização e letramento


Vale ressaltar que, antes de atribuir as dificuldades de leitura e escrita
à dislexia, disgrafia ou disortografia, alguns fatores devem ser descarta-
dos, como a maturidade da criança para aprender; questões emocionais;
incapacidade geral para aprender; método de alfabetização inadequa-
do; déficit intelectual; problemas auditivos ou visuais; e lesões cerebrais.
Depois de excluídas essas condições, e percebidos os sinais de algum
desses transtornos de aprendizagem, a escola deve comunicar à famí-
lia a fim de que os familiares busquem ajuda especializada para uma
avaliação multidisciplinar – neurologista, neuropsicólogo, psicólogo,
psicopedagogo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo inicial de ensino-aprendizagem da leitura e escrita exi-
ge estudo e comprometimento por parte dos professores e da escola.
Além de um trabalho alinhado às propostas da BNCC, o qual toma como
eixo as práticas de leitura, oralidade e escrita, é preciso estar atento ao
desenvolvimento dos alunos, observando como cada um adquire o sis-
tema de escrita e as possíveis dificuldades que podem ocorrer durante
esse processo.

ATIVIDADES
Atividade 1
Desde pequenas, em casa ou na Educação Infantil, as crianças
desenham, traçam linhas, letras ou outros sinais gráficos, imitando
a escrita dos adultos. Contudo, há um marco decisivo para seu
avanço no processo de alfabetização. Explique como se dá esse
salto qualitativo.

Atividade 2
Podemos afirmar que, no português, cada fonema será representado
por um grafema e cada grafema representará um fonema? Explique.

Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização 105


Atividade 3
Explique a diferença entre dificuldade de aprendizagem e
transtorno de aprendizagem, destacando aqueles relacionados à
leitura e à escrita.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 16 dez. 2022.
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo,
Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.
htm. Acesso em: 16 dez. 2022.
FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo: Contexto, 2012.
FRADE, I. C. A da S.; SILVA, C. S, R. da. A organização do trabalho de alfabetização na escola e na
sala de aula: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em:
https://www.ceale.fae.ufmg.br/files/uploads/Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20
e%20Letramento/Col%20Alf.Let.%2007%20Organizacao_trabalho.pdf. Acesso em: 29 dez.
2022.
MACHADO, J. M. Transtornos funcionais específicos da aprendizagem: identificação e
intervenção. Curitiba: InterSaberes, 2020.
OHLWEILER, L. Introdução aos transtornos da aprendizagem. In: ROTTA, N. T.; OHLWEILER,
L.; RIESGO, R. dos S. (org.). Transtornos de aprendizagem: abordagem neurobiológica e
multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2016.
OLIVEIRA, M. A. de. Conhecimento linguístico e apropriação do sistema de escrita: caderno do
formador. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: https://www.ceale.fae.
ufmg.br/files/uploads/Col.%20Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o%20e%20Letramento/Col%20
Alf.Let.%2003%20Conhecimento_Linguistico.pdf. Acesso em 16 dez. 2022.
PEREIRA, R. de C. Transtorno psicomotor e aprendizagem. Rio de Janeiro: Thieme Revinter
Publicações, 2018.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.
SOARES, M. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2020.

106 Alfabetização e letramento


5
Práticas alfabetizadoras
Se você entrasse, hoje, em uma classe de alfabetização, o que faria?
Por onde começaria? Como selecionaria os conteúdos para sua prática
pedagógica? Inicialmente, além de contar com a equipe pedagógica para
orientá-lo, você teria de conhecer o Projeto Político Pedagógico (PPP) da
escola, a proposta curricular e saber se ela está alinhada às orientações
nacionais, nesse caso, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Essas orientações, pautadas nas mais recentes teorias linguísticas,
garantem que o texto é a unidade central de trabalho com a linguagem
e que a leitura, a oralidade e a escrita são os eixos a serem explorados
na prática pedagógica, pois interagimos em sociedade por meio de di-
ferentes enunciados orais e escritos, produzidos historicamente. Esses
enunciados são chamados de gêneros textuais e estão presentes desde
a conversa familiar e informal até os textos mais formais, proferidos em
congressos internacionais.
Uma criança que ouve contos de fada aprende não somente pala-
vras, frases ou o ritmo da fala, mas também características peculiares
desse gênero. Assim ocorre com a aprendizagem de outros gêneros
usados no cotidiano. Contudo, na escola é necessário ensinar gêneros
textuais com os quais a criança tem pouco ou nenhum contato.
Portanto, vamos verificar neste capítulo o conceito de gêneros tex-
tuais, suas características e como abordá-los nas classes de alfabetização,
por meio de sequências didáticas (SD) que exploram oralidade, leitura,
análise linguística, produção e reescrita de textos. Ainda, vamos acompa-
nhar as contribuições da área da literatura infantil para a alfabetização,
assim como conhecer alguns jogos e brincadeiras que possam auxiliar a
criança na aquisição da escrita e da leitura.

Práticas alfabetizadoras 107


Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• explorar gêneros textuais em classes de alfabetização;

• organizar sequências didáticas com gêneros textuais para classes


de alfabetização;

• enriquecer o processo de alfabetização por meio da literatura infantil;

• explorar a ludicidade na alfabetização a partir de jogos e brincadeiras.

5.1 Gêneros textuais e aprendizagem da escrita


Vídeo
Eleger o texto como objeto de ensino nas classes de alfabetiza-
ção significa levar para a sala de aula a maior variedade possível de
­gêneros textuais. Antes de apresentarmos o conceito desse termo,
vamos reconhecer alguns deles, pois, como afirma Bakhtin (2000), os
gêneros do discurso nos são dados assim como a língua nos é dada.
Portanto, desde pequenos convivemos com uma grande diversida-
de de gêneros orais e escritos e os reconhecemos facilmente pelo
uso que fazemos deles. Entretanto, na escola é necessário que as
crianças dominem outros, que não são tão acessíveis a elas. Vamos,
então, ler os dois textos a seguir e procurar identificar a que gênero
cada um deles pertence?

Texto 1
Um, dois, feijão com arroz.
Três, quatro, feijão no prato.
Cinco, seis, chegou minha vez.
Sete, oito, comer biscoito.
Nove, dez, comer pastéis.

Texto 2

O que um pato disse ao outro?


Estamos empatados.

108 Alfabetização e letramento


É possível que você tenha reconhecido os dois textos como per-
tencentes a determinados gêneros textuais, mesmo não sabendo
­nomeá-los com tanta precisão. Isso significa que interagimos por meio
deles em nosso dia a dia, em várias situações de comunicação. Vamos
conferir cada um dos gêneros apresentados e observar suas caracterís-
ticas no quadro a seguir.
Quadro 1
Gêneros textuais

Parlendas
Construção
Função social Conteúdo temático
­composicional
As parlendas têm função de divertir. Normalmente, toma- São organizadas em versos Não há um tema específico
mos conhecimento delas na infância, quando recitadas e estrofes. explorado pelas parlendas,
pelos familiares ou na escola. São passadas entre as ge- Apresentam rimas, ritmo e pois sua função é trabalhar
rações pela oralidade. Encontramos por escrito em livros sonoridade. com ritmo e rima por meio
infantis ou na internet. Quem costuma ler esse gênero da organização de palavras.
Não têm título e são textos
são professores e pais, para brincar com as crianças. Não
curtos.
há indicação de autoria nas parlendas, são de domínio
público.

Adivinhas
As adivinhas têm origem folclórica e a função de desafiar Normalmente, começam Não há um tema em espe-
e divertir. São perguntas e respostas de humor, com con- com “O que é o que é”. cífico, mas sempre buscam
teúdo dúbio ou desafiador e, na maioria das vezes, su- São formuladas em forma o humor e provocam refle-
bentendido. Como fazem parte do cotidiano popular, não de pergunta marcada pelo xões por meio de questões
têm indicação de autoria e são transmitidas oralmente. ponto de interrogação. enigmáticas.
Encontramos por escrito em livros de piadas, jornais, re-
Têm uma resposta conven-
vistas, almanaques ou internet. Os leitores são diversos.
cionada.
Há adivinhas para crianças e adultos.
Apresentam um desafio.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Baumgärtner; Costa-Hubes, 2007.

Agora que você já observou esses exemplos de gêneros textuais –


muito apropriados para o trabalho com a alfabetização – e algumas
de suas características, é mais fácil compreender alguns conceitos.
Vamos a eles!

Bakhtin (2000, p. 279) definiu gêneros do discurso como “tipos re-


lativamente estáveis de enunciados”, ou seja, “modos de dizer” (orais,
escritos, multissemióticos) que usamos em nosso dia a dia para intera-
girmos em sociedade. Esses tipos de enunciado não são totalmente es-
táveis porque sofrem modificações com o passar do tempo e de acordo
com o uso que fazemos deles. Por exemplo, a carta pessoal é um gê-
nero textual pouco usado atualmente, devido ao avanço da tecnologia

Práticas alfabetizadoras 109


digital. Hoje temos meios mais eficientes e rápidos que substituíram
esse gênero, como o e-mail, as mensagens via celular etc.

Ao mesmo tempo, os gêneros têm certa estabilidade, pois, se não fos-


se assim, teríamos de criar um gênero novo cada vez que ­precisássemos
interagir. Há, em circulação, formas previamente definidas, às quais recor-
remos cada vez que precisamos falar ou escrever.

Vejamos um exemplo: se precisarmos registrar por escrito observa-


ções acerca de um aluno que está sendo avaliado por uma equipe espe-
cializada para diagnosticar algum problema específico de aprendizagem,
escolheremos o gênero relatório. Não utilizaremos uma história em qua-
drinhos, um poema ou uma receita para realizar essa tarefa.

Quando lemos um texto, somos capazes de reconhecer nele algu-


mas características que o fazem pertencer a determinado gênero e não
a outro, como no exemplo da figura a seguir.

Figura 1
Anúncio publicitário

HstrongART/Shutterstock
HstrongART/Shutterstock

Ao observar o texto anterior, não é necessário que você o traduza


para identificar que se trata de um anúncio publicitário, caracterizado
pelo fato de haver imagens, logomarca, chamada, slogan.

Há gêneros mais maleáveis (como os literários) e outros mais rígi-


dos (como os documentos oficiais). Todavia, os gêneros possuem três
características comuns, citadas por Bakhtin (2000): conteúdo temáti-

110 Alfabetização e letramento


co, construção composicional e estilo. O conteúdo temático refere-se
àquilo que pode ser dito em determinado gênero, conforme exemplifi-
cado no Quadro 1. A construção composicional diz respeito à organi-
zação do texto, isto é, à forma de dizer o que diz, também ilustrado no
Quadro 1. Já o estilo refere-se à seleção que o autor faz dos recursos
disponibilizados pela língua para produzir o texto.

Além dessas características, é importante destacar a função so-


cial dos gêneros textuais, conforme os exemplos do Quadro 1, pois,
como afirma Marcuschi (2002), os gêneros caracterizam-se por suas
funções comunicativas e devem ser compreendidos em seus contex-
tos de uso.

O autor colabora ainda para a distinção entre tipos e gêneros tex-


tuais, pois é muito comum a confusão entre esses dois termos. Tipos
são sequências textuais por meio das quais se constrói um texto. Um
conto, por exemplo, pode ser construído predominantemente por se-
quências narrativas, caracterizadas pelas ações das personagens. Mas
também pode conter sequências que descrevem o tempo, o espaço, as
personagens. Assim, em um texto pertencente a um gênero, pode haver
mais de um tipo textual, conforme exemplo a seguir.

O príncipe consultou o relógio.


— Estou na hora da audiência — murmurou. — Vamos depressa, que
tenho muitos casos a atender.
Lá se foram. Entraram diretamente para a sala do trono, no qual a me-
nina se sentou a seu lado, como se fosse uma princesa. Linda sala!
Toda dum coral cor de leite, franjadinho como musgo e penduradinho
de pingentes de pérola, que tremiam ao menor sopro. O chão, de nácar
furta-cor, era tão liso que Emília escorregou três vezes.
(LOBATO, 2007)

Esse é um trecho do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato,


em que a personagem Lúcia é levada pelo Príncipe Escamado até o Reino
das Águas Claras. O trecho em itálico narra as ações das personagens,
portanto é narrativo. O trecho sublinhado descreve detalhadamente
como era a sala do trono, logo é descritivo. Já o trecho em negrito é
caracterizado por uma sequência injuntiva, pois, na fala, o príncipe usa
um verbo no imperativo, ao dar uma ordem (vamos).

Práticas alfabetizadoras 111


Os tipos textuais, segundo Marcuschi (2002), são bastante restritos.
Há narração, descrição, injunção, exposição e argumentação. Já os
gêneros são praticamente incontáveis, devido à sua imensa variedade.

Os gêneros, por cumprirem diferentes funções, de acordo com cada


situação comunicativa, são objeto de estudo nas classes de alfabetiza-
ção. Sendo assim, vamos, na próxima seção, verificar como é possível
tratar deles didaticamente em sala de aula.

5.2 Sequências didáticas para


Vídeo classes de alfabetização
Quando falamos da aquisição da leitura e da escrita, é compreensível
que a preocupação inicial dos docentes seja com a alfabetização ou, como
afirma Soares (2020, p. 193), com o desenvolvimento da ­consciência
­fonografêmica, isto é, “identificar os sons da língua até o nível dos fo-
nemas e representá-los com grafemas correspondentes aos fonemas” e
da consciência grafofonêmica, ou seja, “relacionar as letras do alfabeto
com os fonemas que elas representam”. Esses dois processos são inter-
dependentes e, certamente, imprescindíveis para que a criança avance
para a leitura e escrita de textos – progrida em seu letramento. Por isso,
as propostas de alfabetização devem sempre partir de atividades basea-
das em textos (histórias, parlendas, bilhetes, cantigas, rótulos etc.) que
levem a criança a compreender o uso da escrita alfabética para ler e que
criem oportunidades para escrever espontaneamente.

O trabalho diário com gêneros textuais facilita o processo de alfa-


betização e letramento, pois, por meio de textos, é possível explorar
leitura, interpretação, escrita e análise linguística, contemplando tanto
o processo de alfabetização quanto o de letramento.

Para a prática com gêneros textuais, sugerimos o uso de sequên-


1 cias didáticas, conforme propõem os estudiosos suíços Dolz, Noverraz
Círculo de Bakhtin e Schneuwly (2004), com base em uma concepção interacionista e dia-
refere-se a um grupo de 1
intelectuais russos que se lógica de linguagem, divulgada pelo Círculo de Bakhtin .
reunia regularmente no
período de 1919 a 1974,
Definindo sequência didática como “um conjunto de atividades es-
dentre o quais fizeram colares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gêne-
parte Bakhtin, Volóchinov
e Medvedev.
ro textual oral ou escrito”, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97)
apresentam uma forma de auxiliar os alunos a dominarem melhor um

112 Alfabetização e letramento


gênero textual, especialmente aqueles pouco acessíveis, como os gêne- 2
2
ros de esferas públicas. Assim, os autores propõem a organização da De acordo com
Marcuschi (2002), esfera
sequência didática conforme a figura a seguir. discursiva ou domínio
discursivo refere-se a es-
Figura 2
tâncias que oportunizam a
Sequência didática manifestação de discursos
específicos. Por exemplo,
discurso jurídico, jornalísti-
co, religioso, literário etc.
Apresentação Produção Módulo Módulo Módulo Produção
da situação inicial 1 2 n final

Fonte: Elaborada pela autora com base em Dolz; Noverraz; Schneuwly, 2004.

Na apresentação da situação, descreve-se detalhadamente a ati-


vidade que será feita, de modo a expor o projeto de comunicação a ser
realizado no momento da produção de texto. Então, é necessário des-
tacar o que será dito, para quem, quando e em que local, evidenciando
o gênero textual adequado à situação de comunicação.

Na produção inicial, o aluno procurará atender ao que foi solicitado


na apresentação da situação e produzir o texto de acordo com o gênero
sugerido. Essa produção servirá de subsídio para que o professor avalie o
que os alunos já dominam com relação ao gênero e o que ainda precisam
aprender, a fim de elaborar as atividades que compõem os módulos.

Os módulos são compostos de atividades relacionadas ao domí-


nio do gênero em questão. Por meio do diagnóstico levantado duran-
te a produção inicial, é possível planejar atividades que contemplem
­aspectos ainda não dominados pelos alunos.
Esse método de avaliar a produção inicial para, a partir daí, pro-
por atividades em função das dificuldades elencadas no diagnós-
tico, ­possibilita a construção progressiva de conhecimento sobre
o gênero em foco. Somente após um trabalho consistente com
o gênero chega-se ao momento de colocar novamente o aluno
na situação de produção de texto (oral ou escrito), delimitada no
início da SD. De acordo com os autores, este momento revela o
que foi apreendido ou não com os procedimentos adotados nos
módulos, bem como, possibilita, ao professor, a realização de uma
avaliação somativa acerca do ­processo ensino-aprendizagem.
(COSTA-HÜBES, 2009, p. 140)

Na produção final, os alunos serão capazes de produzir nova-


mente o texto, mas agora com maior conhecimento do gênero es-

Práticas alfabetizadoras 113


tudado e levando em consideração verdadeiramente a situação de
comunicação, ou seja, onde o texto circulará, para quem ele será
produzido, com que intenção etc.

Para a realidade brasileira dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental,


Baumgärtner e Costa-Hübes (2007) apresentam uma adaptação dessa
proposta, conforme a figura a seguir.
Figura 3
Sequência didática para os Anos Iniciais

Andrew Krasovitckii/Shutterstock
Apresentação da Produção textual
situação

Reconhecimento do
gênero

Fonte: Elaborada pela autora com base em Baumgärtner; Costa-Hübes, 2007.

Para exemplificar esse modelo de SD, especificamente para as ­classes


de alfabetização, apresentamos uma proposta de atividade para o primei-
ro ano do Ensino Fundamental, utilizando o gênero parlenda.

Apresentação da situação
Motivar a turma a participar da Semana do Folclore, promovida
pela escola. O primeiro ano ficará responsável por apresentar uma
coletânea de parlendas recolhidas pelos alunos. Para isso, é necessá-
rio trabalhar com o conceito de folclore, por meio de pesquisas, entre-
vistas com os familiares etc., e com os gêneros textuais que possuem
temáticas folclóricas, como parlendas, lendas, cantigas de roda, ditos
populares, adivinhas, quadrinhas populares etc.

Reconhecimento do gênero
Questionar os alunos sobre o que é uma parlenda, se conhecem al-
guma e qual, se sabem por que as parlendas são criadas e quais suas
principais características. Podem trazer de casa parlendas contadas pelos
familiares ou pesquisar na biblioteca. Permitir o contato com várias par-

114 Alfabetização e letramento


lendas por meio de leitura ou oralidade. Nesse momento, é importante
destacar a função social e as principais características do gênero (conteú-
do temático, construção composicional e estilo).

Escolha de uma parlenda para a realização de atividades que con-


templem leitura, interpretação de texto e análise linguística.

Exemplo de parlenda a ser trabalhada: Hoje é domingo, pé de


cachimbo.
Hoje é domingo
Pé de cachimbo
O cachimbo é de barro
Bate no jarro
O jarro é de ouro
Bate no touro
O touro é valente
Chifra a gente
A gente é fraco
Cai no buraco
O buraco é fundo
Acabou-se o mundo
Outras sugestões: Um dois, feijão com arroz; Uni, dune, tê; Meio-dia,
panela no fogo; Palminha de guiné; Cadê o toicinho que estava aqui? etc.

A palavra parlenda significa falar muito, tagarelar, conversar sem


compromisso. Parlendas são brincadeiras com palavras que encan-
tam as crianças. São compostas de palavras rimadas ou com ritmo
para serem memorizadas, normalmente relacionadas aos seguintes
temas: contagem, saberes da natureza, regras de convívio, ludicidade.

A função social das parlendas é, principalmente, divertir. Elas


não exploram um assunto específico, pois sua função é essencial-
mente lúdica.

Atividades de sistematização da escrita


1. Pinte, no texto, as palavras repetidas.
2. Pinte, no texto, as palavras que terminam com o mesmo som ou
com o som parecido.
3. Pinte, no texto, o espaço que há entre as palavras.
4. Vamos comparar as palavras do texto com os nomes dos colegas,
observando as letras iniciais. Por exemplo:

Práticas alfabetizadoras 115


DOMINGO – Diego, Daniela
CACHIMBO – Carolina, Camila

5. Complete a palavra com a letra que estiver faltando.

DOMI_GO; D_MINGO; DOMIN_O; DOMING_.

6. Pinte somente as letras que formam a palavra DOMINGO.


A O D A O H
M U I N G C

7. Forme outras palavras com as letras de VALENTE.


8. Copie do texto uma palavra que tenha: 4 letras, 5 letras, 3 letras
e 7 letras.

9. Ligue as palavras que terminam com som igual.


GENTE TOURO
FUNDO BURACO
OURO MUNDO
FRACO VALENTE

10.Modifique a primeira letra das palavras indicadas a seguir para


formar novas palavras.

TOURO
_OURO
_OURO
_OURO
MATO
_ATO
_ATO
_ATO
GENTE
_ENTE
_ENTE
_ENTE

116 Alfabetização e letramento


Produção textual
Propor que os alunos reproduzam, por escrito, uma parlenda que
sabem de cor. Depois das tentativas de escrita, retomar os textos indivi-
dualmente para ajustar questões ortográficas, junção ou segmentação
das palavras, supressão de pedaços do texto etc. Depois da reescrita, as
crianças podem ensinar a outros colegas a parlenda escolhida, na Se-
mana do Folclore, conforme combinado na apresentação da situação. Saiba mais
Você conhece o Canal
Ainda, como sugestão de atividade com a parlenda Hoje é domingo ­Parabolé Educação e
pé de cachimbo, pode-se entregar aos alunos a parlenda dividida em Cultura? Nele, você en-
contra vários conteúdos
versos, recortados e misturados, para que desembaralhem e coloquem relacionados a brincadei-
na ordem original. Outra ideia é apresentar a parlenda com algumas la- ras tradicionais e diversos
materiais para trabalhar
cunas para serem completadas com as palavras faltantes. Nesses dois na Educação Infantil e
casos, as crianças observarão o texto completo e deverão pareá-lo com nos Anos Iniciais do En-
sino Fundamental, como
a atividade que estão fazendo. Muitas outras atividades podem ser rea- parlendas, trava-línguas,
lizadas, dependendo do texto escolhido para o estudo. cantigas, brinquedos
cantados, histórias etc.
As sequências didáticas organizadas desse modo proporcionam
Disponível em: https://
ao aluno diversas situações que envolvem o contato com textos re- www.youtube.com/c/
CanalParabol%C3%A9/featured.
presentantes do gênero abordado, por meio da oralidade/escuta, lei-
Acesso em: 19 dez. 2022.
tura e análise linguística.

5.3 Literatura infantil e alfabetização


Vídeo
Aproximar literatura infantil e alfabetização pode ser um risco se
não tivermos a clareza de que os textos literários não devem servir
3
como pretexto para atividades relacionadas à aquisição da escrita e
da leitura. Isso ocorre quando a estética do texto literário é deixada de
lado e ele é usado com o único objetivo de ensinar relações grafema
3 e fonema, ortografia e gramática, ou ainda quando textos ditos literá-
“Servir como pretexto”
rios são produzidos para fins didáticos. Literatura é, sobretudo, criação
é uma expressão que, artística. Por isso, explora amplamente a palavra de modo poético, fi-
nesse caso, refere-se ao
uso inadequado de textos
gurado, subjetivo, permitindo diferentes leituras. Além disso, a litera-
literários para ensinar tura é permeada pelo faz de conta, pela fantasia e imaginação, assim
conteúdos gramaticais.
Por exemplo, quando
é ­possível o leitor ocupar o lugar do outro, viver experiências nunca
se usa um poema para vividas sem sair de si mesmo e, por isso, humanizar-se. Tudo isso diz
ensinar verbos, ortografia,
acentuação etc.
respeito muito mais ao processo de letramento do que ao de alfabeti-
zação. Goulart (2014, p. 62) corrobora essa questão:

Práticas alfabetizadoras 117


As perspectivas de compreender a realidade, abertas pelos
autores dos textos literários, os colocam como grandes com-
panheiros de trabalho nas classes de alfabetização, como
um grande senso de força. Não como uma ferramenta. [...]
o ­o bjeto de reflexão de um texto é o próprio texto, a forma
como é trabalhado para o entendimento que vai sendo cons-
truído entre os alunos e a professora.

Lembramos também que o processo de letramento na escola


deve anteceder a alfabetização, uma vez que a inserção da criança no
­mundo da leitura e da escrita ocorre antes de ela se tornar alfabética.
A audição de histórias, o contato com os livros e todos os materiais de
leitura alimentam o repertório literário, linguístico e a imaginação das
crianças, e podem contribuir para o processo de alfabetização.

Por outro lado, à medida que a criança se apropria da escrita alfabé-


tica, adquire “capacidades de uso da língua escrita para inserir-se nas
práticas sociais, culturais e pessoais que envolvem a língua escrita”, isto
é, à alfabetização se acrescenta o letramento, pois “o domínio do sis-
tema de escrita alfabética abre novas possibilidades de interação para
as crianças” (SOARES, 2020, p. 203-204). Isso amplia sua inserção no
contexto social e cultural, ao mesmo tempo que se alfabetiza.

Nesta seção, tratamos de um tipo específico de letramento: o literá-


rio, definido por Cosson (2020, p. 172) como “processo de apropriação
da literatura enquanto construção literária de sentidos”, construído ao
longo do tempo e que se inicia antes mesmo do ingresso do sujeito na
escola. Acerca desse conceito, o autor constata, ainda, que ler literatura
na escola vai além de fruir um livro de ficção ou deliciar-se com a poe-
sia. É posicionar-se criticamente diante da obra literária, elaborando e
expandindo sentidos.

Dessa forma, é possível pensar em textos literários que favoreçam


não somente o processo de alfabetização, mas também o de letramen-
to literário. Ou ainda, como assinalam Santos e Moraes (2014), é possí-
vel selecionar livros que favoreçam abordagens em sala de aula a partir
da proposta de alfabetizar letrando, considerando os usos específicos
da linguagem literária produzida para crianças. Para essa escolha, é
preciso analisar se os textos “configuram uma proposta que supõe um
leitor que inicia o seu contato com as letras” e “se preocupam com o ní-
vel de proficiência das crianças sem abrir mão do jogo ficcional ou poé-
tico que os caracterizariam como literatura” (MACHADO, 2014, p. 43).

118 Alfabetização e letramento


Souza (2004) vai além, assegurando que, na formação do leitor, é es-
sencial que a criança conheça livros de caráter estético, diferentes dos
pedagógicos e utilitários, pois “o livro estético (prosa ou poesia) pro-
porciona ao pequeno leitor oportunidade de vivenciar histórias e sentir
emoções, permitindo-lhe colocar em ação a capacidade de imaginar e
ter uma visão mais crítica do mundo” (SOUZA, 2004, p. 64). Por isso, na
fase de iniciação à leitura, é preciso oferecer às crianças obras de ficção
que estimulem o desenvolvimento da individualidade e a capacidade
de fantasiar e que as levem a conhecer melhor seu próprio mundo.

Nesse processo, a poesia é um gênero oportuno, pois é capaz de des-


pertar o gosto pela leitura, uma vez que o vínculo da criança com o tex-
to poético começa pelas cantigas, parlendas, quadrinhas, ­trava-línguas.
A linguagem poética desses textos é composta de rimas, aliterações,
ritmo e, normalmente, apresenta as palavras na ordem direta, o que
revela marcas da poesia popular oral. Por isso, Souza (2004, p. 65) afir-
ma que “nos primeiros anos de escolarização, o trabalho do professor
com a linguagem é predominantemente oral e mnemônico”. Na infân-
cia, aprende-se mais facilmente o caráter lúdico da linguagem, como as
parlendas, que se revelam como um jogo de palavras. O trabalho com
a poesia, especialmente na alfabetização, deve levar em consideração
os aspectos descritos na figura a seguir.
Figura 4
Poesia na alfabetização

Exercer a imaginação
Decompor textos; relacionar o poema
a outras formas de expressão; ouvir,
Exploração do texto poético repetir e reinventar os poemas.
Utilizar desenhos, representações
plásticas, atividades rítmicas, jogos
com palavras do poema.
Ludicidade
Kuliperko/Shutterstock

Descoberta do jogo de palavras.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Souza, 2004.

Práticas alfabetizadoras 119


Além disso, Genebra (1997 apud Souza, 2004) define quatro momen-
tos que podem fazer parte da sala de aula ao se trabalhar com a lingua-
gem poética, como descrito na figura a seguir.
Figura 5
Momentos para a prática pedagógica com a linguagem poética

Andrew Krasovitckii/Shutterstock
Primeiro momento

Leitura contemplativa:
sensibilização do leitor pelas Segundo momento
impressões e emoções
estéticas do texto.
Elaboração pelos alunos de uma
paráfrase do poema.
Situar o autor e a obra (aspectos
históricos e sociais, se for o caso).
Terceiro momento

Análise: decomposição final do


sentido total e unitário do poema Quarto momento
em diversos níveis:
a) Visual: da composição do
poema no espaço. Síntese: professor e
b) Fônico: da organização dos sons alunos discutem todos
(rimas, assonâncias, aliterações). os constituintes do
c) Léxico: dos termos usados, do poema para chegarem
nível de linguagem etc. a uma interpretação
d) Morfossintático: das classes de crítica finalizadora do
palavras e de suas combinações. ato da leitura.
e) Semântico: dos efeitos de
sentido, figuras de linguagem.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Souza, 2004.

Souza (2004) sugere atividades que tenham como objeto poemas


e canções. Para isso, é necessário que o docente perceba alguns ele-
mentos inerentes a esses gêneros, como o humor, o belo, a fantasia e o
lúdico, para despertar nos pequenos leitores sensações e emoções por
meio da brincadeira com as palavras.

120 Alfabetização e letramento


Para criar situações que favoreçam a descoberta da sonoridade,
as cantigas de roda e as canções de ninar podem ser resgatadas. Por
exemplo, propor mudanças na letra, acrescentando o nome da criança.

Boi, boi, boi


Boi da cara amarela
Pega a/o <nome da criança>
Que é muito tagarela.

Essa atividade pode ser realizada com outras canções populares, de


acordo com aquelas conhecidas em cada região do país, explorando as
rimas. O nome da criança pode ser colocado no diminutivo ou aumenta-
tivo para facilitar a combinação. “Esses exercícios, que valorizam nossa
cultura oral, riquíssima em sonoridades, aliterações e repetições, contri-
buirão para o aumento de vocabulário do aluno, pois, além de criar as
próprias rimas, ele ouvirá as criadas pelos colegas” (SOUZA, 2004, p. 71).
Aproveitando esse trabalho, há várias obras literárias em que aparecem
as personagens boi ou vaca, e que podem ser objeto de outras práticas:
O menino Pedro e seu boi, de Ana Maria Machado; Blimundo, o maior rei do
mundo, de Celso Sisto; O sonho da vaca, de Sonia Junqueira etc.

Outro gênero interessante a ser explorado são as adivinhas, como


aquelas iniciadas pela pergunta “O que é o que é?”. As crianças podem co-
letar algumas adivinhas com seus familiares para compartilhar com seus
colegas em sala. No livro Panela de arroz, de Luís Camargo, o protagonista
Maneco Caneco Chapéu de Funil é um boneco que se aventura na casa do
arroz. Contudo, para ele conseguir acessá-la, a porta lhe faz várias pergun-
tas em forma de adivinhas, como “O que é o que é: na água nasci, na água
me criei, se me colocarem na água, na água morrerei. Maneco Caneco
respondeu sal, e a porta se abriu” (CAMARGO, 2007, p. 20).

Para além dessas propostas de trabalho acerca de gêneros fol-


clóricos, como canções, parlendas, adivinhas, trava-línguas, Santos e
Moraes (2014) elencam uma série de práticas com outros textos perten-
centes à literatura infantil. Eles favorecem a alfabetização e o letramento,
como vemos no quadro a seguir.

Práticas alfabetizadoras 121


Quadro 2
Práticas de alfabetização e letramento literário com obras de literatura infantil

Aspectos a serem Obra literária Características da Outras sugestões:


abordados infantil obra obras ­semelhantes
Leituras que possibili- Confusão no galinheiro: O livro dialoga com os A mulher que falava para-choquês, de
tam o diálogo com ou- o caso dos ovos de ouro, gêneros: conversação, Marcelo Duarte
tros gêneros textuais. de Amir Piedade discussão, matéria jorna- Carta errante, avó atrapalhada, meni-
lística, relatório de inquéri- na aniversariante, de Mirna Pinsky
to e despacho judicial.
Meu querido diário, de Fabiano Mo-
raes e Yedda de Oliveira
Leituras que exploram Era uma vez uma bruxa, O livro contempla o Pequenas observações sobre a vida em
a linguagem lúdica, de Lia Zatz universo lúdico das outros planetas, de Ricardo Silvestrin
­ficcional, criativa. cartas enigmáticas, jogos Ponto & Linha, de Mila Behrendt
elaborados por meio da
Menino chuva na rua do Sol, de André
substituição de palavras
Neves
ou sílabas por imagens.
O colecionador de águas, de Elaine
Cavion
Leituras que potencia- Guilherme Augusto O livro narra, com sen- Diferentes: pensando conceitos e pre-
lizam o caráter político, ­Araújo Fernandes, de sibilidade, a amizade de conceitos, de Liana Leão
estético e coletivo de Mem Fox um menino com idosos Faca sem ponta, galinha sem pé, de
reinvenção da lingua- de um asilo. Ele ajuda Ruth Rocha
gem. sua amiga Antonia a
O dia em que minha avó envelheceu,
resgatar a memória, por
de Lúcia Fidalgo
meio de lembranças das
histórias dela.
Leituras que potencia- Chapeuzinho Amarelo, Chapeuzinho Amarelo O gigante egoísta, de Oscar Wide
lizam o caráter atual de de Chico Buarque enfrenta o lobo, supera Quem ouvir e contar, pedra há de se
versões dos clássicos seus medos e a alegria tornar, de Nelson Albissú
da literatura infantil. de viver e brincar com
Uma história hebraica, de Tatiana
as palavras.
Belinky
Fonte: Elaborado pela autora com base em Santos; Moraes, 2014.

Como podemos notar, unir alfabetização e literatura infantil não


­significa apenas escolher textos literários que as crianças em fase ini-
cial de aprendizagem da escrita consigam ler. É preciso também con-
siderar a qualidade literária dos textos e sua capacidade de contribuir
para o letramento literário de leitores iniciantes.

122 Alfabetização e letramento


5.4 Jogos e brincadeiras na alfabetização
Vídeo
Quando falamos de jogos e brincadeiras, temos de abordar a impor-
tância do lúdico na educação. Por meio da ludicidade, a criança assimila
os papéis sociais, compreende as relações afetivas que ocorrem em
seu meio e aprende. Assim, os jogos e as brincadeiras assumem papel
didático e podem ser explorados no processo educativo.

Considerar o jogo e a brincadeira como estratégias de ensino e aprendi-


zagem significa compreender que as crianças conduzem as suas relações
com o outro e com o mundo por meio da ação lúdica. Por isso, a organi-
zação da prática pedagógica pautada em atividades lúdicas p
­ ossibilita a
transformação do espaço escolar em um ambiente integrador e dinâmico,
com o objetivo de desenvolver aspectos cognitivos e sociais.

Jogos e brincadeiras no processo de alfabetização oportunizam o de-


senvolvimento do raciocínio da criança e a construção do conhecimento.
Nesta seção, vamos evidenciar o jogo educativo, ou seja, quando as si-
tuações lúdicas são intencionalmente criadas pelo adulto, com o objetivo
de estimular determinada aprendizagem. Assim, ao propor jogos e brin-
cadeiras de alfabetização, o professor potencializará situações de apren-
dizagem (KISHIMOTO, 2005, p. 36-37). Ainda, “utilizar o jogo [...] significa
transportar para o campo do ensino-aprendizagem condições para ma-
ximizar a construção do conhecimento, introduzindo as propriedades do
lúdico, do prazer, da capacidade de iniciação e ação ativa e motivadora”.

As orientações do Ministério da Educação (MEC) para o Ensino Funda-


mental citam três tipos de jogos que podem ser aliados dos professores
alfabetizadores: os que contemplam atividades de análise fonológica sem
fazer correspondência com a escrita; os que possibilitam a reflexão sobre os
princípios do sistema alfabético, ajudando as crianças a pensar sobre as cor-
respondências entre as relações letra-som (grafofônicas); e os que ajudam
a sistematizar essas correspondências grafofônicas. Vamos compreender a
seguir os objetivos e as vantagens desses jogos para o processo de alfabeti-
zação (BEAUCHAMP; PAGEL; NASCIMENTO, 2007; OLIVEIRA; MERLIN, 2015).

Práticas alfabetizadoras 123


Jogos para análise fonológica

Vector Shutterstock/Shutterstock
Objetivos
• Refletir sobre as semelhanças e diferenças sonoras
entre palavras.

• Desenvolver a consciência fonológica por meio do


uso de rimas e aliterações; segmentação das pala-
vras em sílabas.

Vantagens
Os alunos percebem que nem sempre o foco de
atenção deve ser o significado das palavras, ou seja,
passam a atentar para a pauta sonora em busca de
encontrar a lógica da escrita.

Jogos para reflexão sobre o sistema alfabético

Objetivos
• Conhecer as letras do alfabeto e nomeá-las.
• Perceber que palavras diferentes possuem partes
sonoras iguais.

• Reconhecer a sílaba como unidade fonológica.

Vantagens
Os alunos consolidam a ideia de que as sílabas variam quanto à
composição e ao número de letras. Uma sílaba pode ser formada
por uma letra (A-MOR), por duas (BO-TA), por três (PRA-TO) ou por
quatro (TRANS-FOR-MA), mas obrigatoriamente uma dessas letras
precisa ser uma vogal. Os alunos aprendem que a ordem em que os
fonemas são pronunciados deve ser respeitada no registro escrito.

124 Alfabetização e letramento


Jogos para sistematizar as correspondências grafofônicas

Vector Shutterstock/Shutterstock
Objetivos
• Incorporar conscientemente as correspondências
grafema-fonema, reconhecendo todas as letras e
suas correspondências sonoras.
Vantagens
Os alunos são capacitados à leitura e à
escrita fluentes.

Oliveira e Merlin (2015) apresentam uma variedade de jogos educa-


tivos que pode ser utilizada em classes de alfabetização, cujos objetivos
coincidem com os citados anteriormente. Aqui, vamos reproduzir um
jogo de cada tipo.

Mico de rimas
Objetivo

Desenvolver a consciência fonológica.

Recursos

20 pares de cartas, formados por duas figuras cujos nomes rimem


e uma que não possui par (MICO).

Como jogar

As cartas devem ser divididas igualmente entre os jogadores e cada


jogador baixa na mesa seus pares, nomeando-os em voz alta. Em
seguida, um jogador por vez pega uma carta do colega à direita, sem
vê-la. Se formar par, baixa na mesa, senão o jogo continua e o próximo
colega pega uma carta. Perde quem ficar com o MICO nas mãos.

Exemplos:
LaineN/Shutterstock

Nadya C/Shutterstock

Semenaka_Maria/Shutterstock

StockSmartStart/Shutterstock

MELANCIA BACIA OVELHA ORELHA

Práticas alfabetizadoras 125


Troca letra
Objetivo

Refletir sobre o sistema alfabético.

Recursos

Cartões com recortes para deslizar tiras contendo diferentes letras.

Como jogar

O jogador deve deslizar a tira formando novas palavras que devem ser
lidas e copiadas no caderno.

Exemplos:

M A N T A

Jogo da velha do encontro consonantal


Objetivo

Ajudar a sistematizar as correspondências grafofônicas.

Recursos

Um tabuleiro dividido em nove quadrados iguais; seis fichas vermelhas


com palavras escritas sem R ou L intermediário (por exemplo, taça, fio,
boto, pato, tinta, fitas, puma, paca, caro, cone, foco, pano); seis fichas
azuis com as mesmas palavras acrescidas de R ou L.

Como jogar

Os jogadores vão colocando as fichas e lendo as palavras em voz alta,


como no jogo da velha. Se um colocar pato, outro deve colocar prato,
e assim sucessivamente, tentando fechar as três casas na horizontal,
vertical ou diagonal.

(Continua)

126 Alfabetização e letramento


Exemplos:

PEGO PREGO

BANCO BRANCO

BOTA BROTA

Vale lembrar que há muitas outras possibilidades além dessas apre-


sentadas, e cada jogo, ainda que focalize determinado conteúdo, pode
explorar outros. As próprias crianças podem adaptar as regras e suge-
rir adaptações. O professor, à medida que observa o desenvolvimento
dos alunos, pode ir aumentando o nível de complexidade dos jogos.
Por exemplo, o jogo Troca de letra pode sofrer variação e ser transfor-
mado em Troca de sílaba.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quanto mais diversa a prática com leitura, oralidade, análise linguís-
tica e produção de gêneros textuais, maior a possibilidade de alfabetizar
letrando. Assim, o uso de sequências didáticas para o trabalho com gêne-
ros textuais torna-se ótima escolha, pois contempla as práticas discursivas
necessárias à atuação do sujeito nas sociedades letradas. Ademais, a lu-
dicidade por meio da literatura, de jogos e brincadeiras também contribui
para o processo de alfabetização e letramento.

ATIVIDADES
Atividade 1
O que são gêneros textuais e quais as suas características? Cite
alguns exemplos de gêneros textuais próprios para alfabetização.

Atividade 2
Explique como pode acontecer a aplicação de uma sequência didá-
tica com o gênero textual adivinha em uma classe de alfabetização.

Práticas alfabetizadoras 127


Atividade 3
Como alfabetizar letrando com a literatura infantil?

REFERÊNCIAS
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anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
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DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:
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KISHIMOTO, T. M. O jogo e a Educação Infantil. In: KISHIMOTO, T. M. (org.). Jogo, brinquedo
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128 Alfabetização e letramento


Resolução das atividades
1 Escrita, alfabetização e letramento:
história e conceitos
1. Explique a importância da evolução da escrita logográfica para a
cuneiforme.
Com a escrita logográfica, os desenhos passaram a representar
significados associados (como o mesmo desenho para representar
pé ou caminhar), mas ainda não se relacionavam à fala. Com a escrita
cuneiforme, passou-se a representar os nomes por desenhos dos
sons desses nomes. Assim, o signo passa a ter valor fonético. Esse fato
foi decisivo para a evolução da escrita, que ficou mais simplificada e
funcional, diminuindo a quantidade de signos necessários para escrever.

2. Construa uma breve linha do tempo acerca da história da


alfabetização no Brasil. Tome como base os períodos a seguir:
século XVI até o final do Império (1889); Brasil República (a partir de
1889); meados da década de 1920; final do século XX e início do XXI.
Século XVI até o final do Império (1889):
• Brasil Colônia: alfabetização dos indígenas e filhos de colonos
pelos jesuítas.
• Material precário, poucos livros vindos da Europa.
• Ensino da leitura: Cartas de ABC.
• Método sintético.
• Caligrafia, ortografia, cópia, ditados.
• Cartilha Maternal: método analítico.
Brasil República (a partir de 1889):
• Instituição do método analítico (passa a ser obrigatório).
• Escola como local de preparo das massas iletradas.
• Educação popular.
Meados da década de 1920:
• Busca pela resolução de problemas educacionais.
• Métodos mistos.
• Relativização da importância do método.
• Ideias novas acerca da educação (bases psicológicas).
Final do século XX e início do XXI:
• Intensificam-se os questionamentos acerca do fracasso escolar.
• Ideias construtivistas.
• Surgimento do termo letramento.

Resolução das atividades 129


3. Diferencie os termos letramento e alfabetização e explique por que
são práticas que se complementam.
A alfabetização designa uma técnica ou tecnologia de aquisição do
código convencional escrito, relacionando grafema e fonema.
O letramento é um processo de desenvolvimento da língua oral e
escrita. Pode ser definido como o estado ou condição que assume
quem aprende a ler e escrever, fazendo uso de práticas sociais.
Essas duas práticas são complementares, devem acontecer ao mesmo
tempo. Acessar o mundo da leitura e da escrita deve acontecer por
meio da alfabetização e do letramento. A alfabetização não deve
preceder o letramento, pois as crianças podem participar de práticas
sociais de leitura e de escrita desde sempre.

2 Métodos e tendências em alfabetização


1. Complete o quadro a seguir, sistematizando as discussões acerca
dos métodos de alfabetização.

Métodos Unidade Princípio que prioriza


Alfabético O alfabeto, as letras Relação do nome da letra com o
som que ela representa.
Fônico O fonema (som) Relação entre os sons e as letras.
Cada letra é aprendida como um
som que se junta a outros sons
para formar as sílabas.
Silábico A sílaba Das mais fáceis às mais com-
plexas, aprende-se a sílaba
destacada em uma palavra e
sua respectiva família silábica e,
a partir delas, formam-se outras
palavras.
Palavração A palavra Apreensão de uma palavra (que
tenha sentido para o aluno) glo-
balmente e, depois, a decomposi-
ção em sílabas.
Sentenciação A sentença (frase) Reconhecimento e compreensão
de uma sentença globalmente.
Depois, decomposição em pala-
vras e sílabas.
Global de O texto Reconhecimento global do texto,
contos destacando frases e palavras
para posterior análise.

130 Alfabetização e letramento


2. Explique a importância do construtivismo para o entendimento do
processo de aquisição da língua escrita pela criança.
O construtivismo deriva dos estudos de Piaget sobre como o
conhecimento se desenvolve no indivíduo. Assim, o construtivismo
aplicado à alfabetização ajudou os educadores a refletirem sobre
como funciona a aquisição da língua escrita pela criança, que procura
ativamente compreender o mundo ao seu redor e resolver as questões
que esse mundo provoca. Isso ocorre também quando a criança está
se apropriando do sistema de escrita e construindo hipóteses acerca
do conteúdo do sistema alfabético. Assim, os “erros” são construtivos,
pois revelam caminhos para entender como a criança está pensando,
a fim de ajudá-la a superar seus desafios.

3. Sintetize as fases de aquisição da escrita, citadas por Luria, de


acordo com a perspectiva histórico-cultural, completando o quadro
a seguir.
Fases Características Finalidade
Pré-instrumental “Escrita” como imita- Superar a imitação e
ção do adulto, sem passar a utilizar regis-
função mnemônica. tros para recordação.
Atividade gráfica Inicia o uso do Superar o registro
diferenciada desenho com função mnemônico e avançar
mnemônica. para o registro de um
conteúdo específico.
Escrita pictográfica O desenho é utili- Superar o desenho
zado como meio de como técnica de escri-
registro. ta, substituindo-o pela
escrita simbólica.
Escrita simbólica Uso da escrita como Ampliar o uso do
sistema socialmente sistema alfabético,
estabelecido. dominando suas par-
ticularidades. Leitura,
interpretação e escrita
de textos.

3 A criança e a aprendizagem da língua escrita


1. Explique a relação entre o desenvolvimento da criança e a
aprendizagem no processo de aquisição da escrita.
O desenvolvimento e a aprendizagem são dois processos
interdependentes. Ao passo que a criança se desenvolve e amadurece
psicologicamente – mudança de “dentro para fora” –, é capaz de
adquirir certas aprendizagens, fornecidas pela mediação de sujeitos
mais experientes, os quais lhe oferecem informações sobre o sistema
de escrita – nesse caso, a aprendizagem é de “fora para dentro”. Essas

Resolução das atividades 131


aprendizagens fazem com que ela avance em seu desenvolvimento
reformulando suas hipóteses acerca da escrita.

2. Argumente a favor do modelo interativo de leitura.


O modelo interativo de leitura procura associar os outros dois
modelos, o ascendente e o descendente, considerando que o indivíduo
utiliza tanto a decodificação como a compreensão no processo de
leitura, ao passo que, além de recorrer aos conhecimentos acerca
das correspondências entre os elementos visuais e sonoros, utiliza
estratégias que o auxiliam na atribuição de sentidos para o texto. Por
essas razões, o modelo interativo supera as limitações dos outros
dois modelos.

3. Observe a tentativa de escrita de uma criança para as palavras


BONECA, PETECA e SAPATO. Em que nível de aquisição da escrita
essa criança se encontra, de acordo com a psicogênese da língua
escrita? Justifique sua resposta.
• OEA
• PEKA
• AAO
A criança encontra-se no nível silábico com valor sonoro, pois, de
modo geral, utiliza uma letra para grafar uma sílaba. Essas letras, como
em OEA (para boneca) e AAO (para sapato), são correspondentes
aos fonemas vocálicos utilizados nas palavras. Quando grafa a
palavra peteca como PEKA, a criança mostra que já percebeu o som
consonantal, representado pela letra P, mas ainda assim utiliza apenas
o P para formar a sílaba PE. Em TE, usa somente o E; e, na última sílaba,
já percebe a segmentação da sílaba em dois fonemas, KA (ca).

4 Leitura, oralidade e escrita em classes de


alfabetização
1. Desde pequenas, em casa ou na Educação Infantil, as crianças
desenham, traçam linhas, letras ou outros sinais gráficos,
imitando a escrita dos adultos. Contudo, há um marco decisivo
para seu avanço no processo de alfabetização. Explique como se
dá esse salto qualitativo.
O avanço no processo de alfabetização acontece quando a criança
– mediada pelo adulto – começa a perceber que os sons produzidos
pela fala podem ser registrados por meio das letras, desenvolvendo a
consciência fonológica (lexical, silábica e fonêmica).

132 Alfabetização e letramento


2. Podemos afirmar que, no português, cada fonema será
representado por um grafema e cada grafema representará um
fonema? Explique.
Esse é o princípio geral do sistema gráfico: cada fonema será
representado por um grafema e cada grafema representará um
fonema. Todavia, por causa da memória etimológica da língua,
as formas gráficas de muitas palavras serão fixadas não só pelas
unidades sonoras, mas também por sua origem – grega, latina, tupi
etc. Por essa razão, a relação grafema e fonema não será sempre
regular. Haverá também as representações arbitrárias.

3. Explique a diferença entre dificuldade de aprendizagem e


transtorno de aprendizagem, destacando aqueles relacionados à
leitura e à escrita.
Dificuldades de aprendizagem mostram-se como dificuldades na
execução de tarefas que podem ocorrer por variados motivos:
problemas com a proposta pedagógica, falta de preparo do docente,
problemas familiares, déficits cognitivos etc. A falta de motivação
ou questões psicológicas podem acarretar essas dificuldades, que
podem ser especificamente em determinado conteúdo, disciplina, ou
acontecer apenas em um período da vida escolar. Podem também
ser advindas de alterações das funções sensoriais, doenças crônicas,
transtornos psiquiátricos, deficiência mental e doenças neurológicas.
Os transtornos de aprendizagem dizem respeito a uma inabilidade
específica, como de leitura, escrita ou matemática, em pessoas
que apresentam resultados aquém do esperado para seu nível de
desenvolvimento, escolaridade e capacidade intelectual, descartados
problemas cognitivos, motores ou sensoriais. São genéticos ou
hereditários; estão presentes desde o início do desenvolvimento;
e, comumente, permanecem por toda a vida. O transtorno de
aprendizagem da leitura é chamado de dislexia e os de escrita são
disgrafia e disortografia.

5 Práticas alfabetizadoras
1. O que são gêneros textuais e quais as suas características? Cite
alguns exemplos de gêneros textuais próprios para alfabetização.
Gêneros textuais são modos de dizer que se alteram com o tempo,
de acordo com a necessidade humana, e são usados para a interação
verbal. Suas principais características são o conteúdo temático
(aquilo que normalmente é dito em certo gênero), a construção
composicional (a estrutura do texto) e o estilo (uso de recursos da

Resolução das atividades 133


língua, selecionados por cada autor). Alguns gêneros adequados para
a alfabetização são: adivinhas, parlendas, poemas, receitas, regras de
jogo, trava-línguas, rótulos etc.

2. Explique como pode acontecer a aplicação de uma sequência didática


com o gênero textual adivinha em uma classe de alfabetização.
Inicialmente, na apresentação da situação, pode-se motivar as
crianças a organizar um livreto com adivinhas para ser partilhado
com demais colegas da escola. Para o reconhecimento do gênero,
propor que as crianças coletem adivinhas com seus familiares e
compartilhem em sala de aula. Explicar a função social das adivinhas
(divertir e responder um desafio) e selecionar uma adivinha para
trabalhar sistematicamente a leitura e a escrita, por exemplo,
utilizando a resposta dada à adivinha, que normalmente é uma única
palavra. Ex.: O que é o que é? Quanto mais se tira, maior fica? BURACO.
Escrever palavras que comecem com a mesma letra de buraco ou com
a mesma sílaba. Listar os nomes das crianças que começam com B.
Escrever palavras que rimam com buraco. Utilizar as letras de buraco
para formar outras palavras (rua, barco, cobra etc.).

3. Como alfabetizar letrando com a literatura infantil?


É preciso, em primeiro lugar, analisar se as obras literárias levam em
consideração o leitor iniciante, mas não renunciam à estética que
caracteriza o texto literário. Além disso, as obras devem estimular
o desenvolvimento da individualidade e a capacidade de fantasiar
das crianças, levando-as a conhecer melhor seu próprio mundo. As
poesias, por exemplo, são muito oportunas para o trabalho em classes
de alfabetização, pois cantigas, parlendas, quadrinhas, ­trava-línguas
são textos de caráter poético que atraem muito as crianças, já que
possuem rimas, aliterações, humor e ludicidade.

134 Alfabetização e letramento


Alfabetização

Alfabetização e letramento
e letramento
Luciana Carolina Santos Zatera

Luciana Carolina Santos Zatera

Código Logístico
ISBN 978-65-5821-208-9

I0 0 0 7 8 5 9 786558 212089

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