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A. CASTANHEIRA NEVES DIGESTA ESCRITOS ACERCA DO DIREITO, DO PENSAMENTO JURIDICO, DA SUA METODOLOGIA E OUTROS VOLUME 1.° COIMBRA EDITORA 1995 2 O PRINCIPIO DA LEGALIDADE CRIMINAL O seu problema juridico e 0 seu critério dogmético (*) I. PRINCIPIO 1. O seu sentido geral O principio da legalidade criminal continua a enunciar-se universalmente pela formulagao latina que Ihe foi dada por A. V. FEUERBACH: nullum crimen, nulla poena sine lege (!), E, no entanto, mais do que problemdtico — a conclusio negativa pode mesmo dizer-se actualmente j4 um dado adqui- rido 2) —, que sob a formula inalterada permanega também a intengao nor- (*) Texto originariamente publicado no ntimero especial do Boletim da Faculdade de Dineito, da Universidade de Coimbra, sob 0 titulo Estudos em Homenagem ao Prof, Dow- tor Eduardo Correia, 1984, pigs. 307, ss., ¢ em separata do mesmo Boletim. ()) Jana 14 ed., 1801 (com uma 14. ed. em 1847), do seu Lebrbuch des gemei- nen in Deutschland giligen Peinlichen Rechts, § 20. & f6rmula do texto exprime apenas em termos comurs a sintese conclusiva do pensamento de FEUERBACH, que era todavia mais difereneiado e se polarizava em trés principios sucessiva ¢ correlativamente condicionados: rmulla poena sine lege, nulla poena legalis sine crimine, nullum crimen sine poena legal. Sobre 0 exacto pensamento de FEUERBACH ligado a estas formulagées, v., por todos, W. MAIHOFER, Rechtsstaat und menschliche Wiirde, 142, n. 208; W. SAX, Grundsatee der Sirafiectspflege, in K. A. BETTERMANN, H. C. NirveRDeY, U. SCHEUNER (Hrsg), Die Gran drechte — Handbuch der Theorie und Praxis der Grundrechte, Ui, 2, 995, se ainda Boranent, Paul Johann Anselm Feuerbach und der Bestimmtheingrundatz im Strafrecht, 1982. @) Para um amplo tratamento doutrinal deste ponto, pode ver-se H.-P. LEMMEL, Unbestimmate Strafbarkeitsvoraussetzungen im Besonderen Teil des Strarechts und der Grund- sate nullum crimen sine lege, passim. Para a conclusio referida no texto, v. também. 350 Alguns problemas dogmatico-jurtdicos mativa origindria € iluminista (iluministico-positivista) que com ela se impu- tava ao principio. ‘Tanto a concepsao do direito e da lei em geral como do direito criminal ¢ da lei penal em particular (3) ¢ ainda o entendimento meto- dolégico da concreta realizagio do direito séo j4 bem diferentes daqueles que ica fonte do direito é a lei ¢ o direito com ela se identifica, a lei oferece em si uma formal e abso- luta pré-determinagio do juridico, a realizagao do direito reduz-se & «aplica~ do» da lei (aplicagao légico-subsuntiva ou dedutivamente necessdria), etc. a essa intengio origindria do principio pressupunha: acritico optimismo ideolégico-politico do Iuminismo e o ingénuo radica- lismo normativo-juridico do seu legalismo (ou melhor, do legalismo positivista que ele possibilitou ¢ Ihe foi consequente) esto decerto na nossa condicio- nante heranga cultural, mas nao identificam ja as dimensdes verdadeiramente constitutivas do nosso presente, nao obstante o contemporineo esforco recons- trutivo de vérios neo-iluminismos (4) e de varios neo-positivismos (5). E que todos aqueles pressupostos iluministas vio superados na recuperada entre a lei e 0 direito: na actual recompreensio do problema das fontes, no reconhecimento da transcensio da mera legalidade por uma juridicidade material ou da abertura daquela a esta e bem assim da insuficiéncia norma- tivas do critério formal ¢a lei para assumir a juridicidade concreta, no caréc- ter normativo e de mediago concretamente constitutiva da realizacéo do J. Mever-LaDewic, Der satz «nulla poena sine legen in dogmatischer Sicht, in M.D. Ru 16 (1962), 262, ss T. Lencaner, Wertausillungsbedinfige Begrife im Strafteche und der Satz «nullion crimen sine lege», in Juristische Schulung, 8 (1968), 249, ss. ©) Chi. esperificamente, sobie este hime ponto, LeMMet, vb. cit., 131, ss. ( Tenham-se presentes as intengées politico-juridicas da «teoria critica», na pers- pectiva por que a orienta sobretudo HABERMAS; 0 sentido bésico da projeccio do «racio- rnalismo critico» open society por K, Porrer; as consequéncias politico-juridicas da «sozio- logische Auflelarungy de N. LUHMANN; etc. (9) Particularmente 0 neopositivismo juridico — no nos referimos 20 neoposi filosofico em sentido estrito ou da Escola de Viena entre as duas guerras mundiais — que tem a sua inspiragao na filosofia analitica c assimila os epistemolégicos esquemas ldgico-lin- guisticos das actuais «teorias da linguagem».Neopositivismo juridico esse que se terd de reconhecer a repercutir em todo o pensamento juridico — inclusivamente em polémica com a hermenéutica ou a nova orientacio hermenéutica daquele pensamento: eft. H.-J. Koc (Hrsg), Juristcche Methodenlehre und analytiche Philosophie — e de que se podem referir, como exemplares expresses significativas, no plano metodolégico KOCH ROSSMANN, Juristiche Begriindungslebre 1982, © no. plano dogmético, ¢ mesmo dogmdtico-criminal, J. HRUSCHKA, Sfraffeche nach logiseb-analytiveher Methode 1983. Para uma extica geral, v., KL. KUNZ, Die analytische Rechtstheorie: eine «Rechts»-theorie ohne Recht?, 1977. O principio da legalidade criminal 351 direito, etc. (9). Pelo que o principio da legalidade criminal s6 pode signifi- car hoje o que, numa irrecusével exigéncia de integrante congruéncia que o préprio direito como sistema nfo dispensa, for compativel com o diferente sen- tido da juridicidade, ¢ igualmente da juridicidade criminal, implicado por esta mutacio da compreenséo do direito ¢ da sua realizaczo; mais do que iss0, nao pode ele proprio deixar de assimilar em si, na sua especifica inten- cionalidade normativa, esse outro ¢ actual sentido da juridicidade, Tudo pon- tos de que este estudo se ocupard. Nao obstante, continua o princfpio a ter por_abjecto todo o ambito mate- rial (?) ja da incriminagao (dos pressupostos quer positivos € negativos ("), quer normativamente gerais ¢ tipificadamente especiais (?) da incriminasio ¢ bem assim da sua agravagio), jd da punigao (da definigéo ¢ determinagao das (©) Caberé ainda referir que as trés coordenadas actualmente constitutivas do sistema do direito e da «razio juridica», na parte que mais ditectamente toca o principio de que nos ocupamos, como sio a aconcepgio do homem» (Mensckenbild), a videia de dircito» € 4 posigio do jurista perante a lei e 0 direico em geral rém hoje um sentido fundamen- talmente diferente daquele que Ihes correspondia 20 tempo da sua iluministica instituigio wv. neste sentido, P. SEEL, Unbestimmte und normative Tatbestandsmerkmale im Stra- ‘recht und der Grundsate nullum erimen sine lige, apud LEMMEL, 0b cit, 104 () O principio, ainda nas suas implicagoes mais rigorosas, como a proibigao da ana logia in malam partem continua a ser referido pelo pensamento dominante apenas 20 diseito criminal material e nfo jd 20 direito processual. — V., por todos, H. Wetzet, Dat detache Safed, 9* ed, 20; H. Hi, JESCHECK, Lebrbuch des Straftechts, AT. 3: ed. 107 que serd, no entanto, muito discutivel — v. J. BAUMANN, Grenzen der individualen Gerechtigheis im Serafech, in Summum ius, Summa iniuria, 122; W. Hassemen, Einfith- rung in die Grundlagen des Sraftechts, 245, 55 SCHONKE, SCHRODER, EsER, Strafgesersbuch Kommentar, 22 ed., § 2, 617, ps. 44, 8. Alids, pode perguntar-se se esta questio no devers resolver-se noutta sede, nfo por referéncia a0 principio nullum crimen, mas com funda- mento no principio da «reserva da lei» a impor a rodo o dircito piiblico que envolva ata- que ou diminuigo de direitos ou interesses dos cidadios — neste sentido, v. KREY, Stt- dien cum Geserzenorbchalt im Staffed, 41, ss3 240, 248. Sobre a relagio entre o p, muller ‘imen e o problema da «reserva da lei, v. também G. Marit, Nillum crimen, nulla poena sine lege, in Enciclopedia del Ditto, XVII, 952, ss.. 955. (8) Sobre o feito incriminador indirecto que pode resultar da delimitagdo ¢ apli- casio dos fundamentos de exclusio do ilfcio, da culpa e da pena, v. M. WaIBuINGER, Die Bedeutung des Grundiatces enullum erimen sine lege fr die Arvendung und Fortennvicklung des Schweizerischen Strafrechts, in Rechtsquellenprobleme im Schweizerischen Recht, 239. (0) Que o principio abrange todos os pressupostos da incriminacao punitiva, sejam cles determinados na «parte especial» (nos tipos incriminadores) ou enunciados na «parte geralo, nas normas geais do iiccoe da imputaglo, no sofre hoje divida — cfr por rodos, SCHONKE-SCHRODER-ESER, ob. cit, § 1, 28 (pag. 23).

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