You are on page 1of 7
Da impossibilidade d? $xr livre Patricia Rais Primeira consulta ‘A vida tem penas duras. A minha avé dizia esta frase, desde mitida que me lembro de a ouvir dizer. Muito pequena, eu nio entendia. Agora talvez compreenda. A situagio em que estou € quase banal nos dias que correm. Asseguram-me de que assim é, eeu acato. Quer dizer, tentei dar a volta como se fosse normal dar a volta a vinte e cinco anos de vida em comum, prosseguir com ‘os mesmos gestos ir trabalhar, rit com os mitidos. Isto durou dois meses ¢ pouco e, de repente, numa reunio de trabalho comecei 1 suar em bica, uma bateria de coragSes na minha garganta, a sensagio de impoténcia, 0 corpo a fair, os pulmdes sem ar. Sim, a doutora jé deve ter percebido, um ataque de pinico. Pinico dois meses depois pareceu-me uma estupidez, afinal eu estava tdo bem. Todas as pessoas comentavam 0 bem que eu estava. Nio sei como definir 0 bem, esse estado de bonomia apesar das agruras e penas duras da vida. Talvez seja um conceito volétil, depende da pessoa, da vida que tem, dos sonhos que deixou de lado, Esté a olhar para mim e nio tira notas? Achei que tiravam notas. Quer dizer, os psicélogos no podem decorar tudo © que pacientes vém aqui dizer. Ou talvez possam. Percebo pelo seu sorriso que nio me devo preocupar,o drama é que me preocupo com tudo e nio estava a contar com a faléncia do corpo ou da cabeca, Tinha as coisas controladas. Nao € uma hist6ria muito feia. A nossa historia. Vivemos juntos vinte e cinco anos, tivemos dois filhos, viajimos, rimos bastante- Eevidente que existiram momentos dolorosos, incompreensdes, mas nada de muito grave. Tivemos um epis6dio, antes de 0 mais velho nascer, € até julguei que a separacio era o me‘hor, mas eu nfo sou uma mulher de aventuras ou de querer estar sozinha. E terrivel dizer isto: s6 deixei um namorado quardo jé tinha outro, Aos vinte anos conheci o Jaime e foi... Bom, foi um ‘momento alto da minha vida, do meu autoconhecimento. Ele uxava por mim, queria que eu fizesse coisas, incentivava-me. Foi assim que terminei 0 curso e fiz 0 mestrado. Nio fiz 0 doutora- ‘mento por preguica, por um certo comodismo. Enfim, engravidei € 0s estudes deixaram de ter importincia. Casimo-nos aos vinte ce trés anos. Temos a mesma idade, nascemos no mesmo ano. Foi ‘um casamento tradicional, muito bonito. Guardei o vestido com ©sonho deo ver numa filha mais tarde, muito mais tarde. Quis 0 destino que s6 tivesse rapazes, £'s6 um vestido, no tem impor- tincia.O Jaime gostaria de ter tido uma menina, tenko a certeza, ‘mas, atenglo, adora os filhos. Nao compreende bem o mais velho € embirra com as sucessivas faltas de resposta do mais novo. © Filipe. o mais velho, term dezasseis anos, é uma fise compli- cada. Nuno tem catorze ¢ esti na fase do armério, como se diz. Os dois de cara fechada, parece que estio zangidos com 0 mundo, ou 2u sinto assim, que estio cheios de uma raiva qualquer. E, depois, a culpa cai sobre mim como uma fatalidade. O Jaime tem pouca paciéncia para conversas educativas. Disse-me muitas ‘vezes: comigo ninguém falou sobre nada e eu safei-me, nio safei? ‘Como responder a isto? Tantas vezes que tentei explicar-the, em ‘especial por causa do Filipe, que no nosso tempo en: diferente. ‘Os mitidos de hoje tém acesso a coisas que no nos passam pela ; 140 ccabega. Tém excesso de informagio. Veer coisas no computador muito antes de saberem 0 que sio. A doutora entende-me, um rapaz coloca no motor de busca a palavra sexo, tem onze anos,a Internet dé-lhe © que no devia. E, antes de terem experimen- tado, jé viram tudo, Viram concretamente, nio € como nés, que tinhamos umas ideias. Os rapazes, no meu tempo, viam revistas, Na Internet esti um mundo sexual que no beneficia a edu= cagio, no é saudavel. O Jaime desvalorizou 0 acontecimento. O Filipe tinha onze anos! Onze. E depois, para ser sincera, custa- me muito perecber que as coisas que pode ter visto estio sem tum contexto, Imagino sempre as actrizes porno loiras ¢ com ‘mamas grandes, prontas para se submeterem aos homens. Quem sabe se ainda € assim? Estou s6 a imaginar, a doutora sabe como 6,a cabega comega ds voltas e é isto que acontece. O Jaime riu~ -se com 0 epis6dio, nic percebeu os meus argumentos ¢ deixou. a conversa séria para mim. L4 me sentei com o Filipe e tentei explicar 0 melhor possvel. De repente, dei comigo a dizer que ‘0 corpo é um templo, que é preciso respeito e reciprocidade. Vi 6 Jaime, sentado no sof’, com um jornal desportivo na mio, a revirar 0s olhos,¢ tudo aquilo me ofendeu. Julguei-o insensivel. Eu sempre acreditei que 0 conhecia por dentro ¢ por fora, sem colocar de lado os aspectos mais antipaticos, porque todos temos efeitos, nio & doutora? Aquilo pareceu-me demasiado ¢ tivemos ‘um periodo menos bom. Nada de conversas,nada de sexo. Con- fesso-lhe jé que 0 sexo existir ou ndo — é-me indiferente, no ppenso nisso, Talvez nunca tena sido muito feliz, ou tanto quanto podia ter sido. A minha amiga Teresa esté sempre a dizé-lo. «Ta devias ser mais feliz, devias ter experimentado mais coisas.» ‘A facilidade com que se julga a vida dos outros... A intimidade é nossa, s6 nossa, conhego pessoas que garantem que estio felizes € contentes e estio de rastos. O sexo nio é igual para todos € ‘eu nunca entendi a extensio da alegria ou do prazer que podia ut trazer. Era algo mecinico, uma vez durante a semana,uuma vez no fim-de-semana. Tinha essa coisa boa, estava previsto, era assim, no existiam surpresas. Nunca tivemos uma paixdo tal que nio consegufssemos tirar as mos um do outro. Creio que isso é mais nos filmes, nao &? Seja como for, a0 fim de vinte e cinco anos tenho de admitir que pensava em outras coisas. Pensava que os mitédos precisavam menos de nés, podiamos viajar mais, expe- rimentar novos restaurantes, aceitar mais convites para fazer este ‘ou aquele programa, Nao havia qualquer sinal de que o Jaime tivesse esta ideia, que fizesse esta maldade. Os mitidos no com- preendem, talvez por isso andem tio zangados. Como é que 0 pai faz isto? A doutora diga-me, eu, que nunca pensei em vir a0 Psicblogo, que até me considero uma pessoa com alguma saiide mental, como é que um homem faz uma coisa destas? E como € que nos organizamos a seguir? Segunda consulta Desculpe o atraso, s obras em Lisboa tornaram a cidade um estaleiro ¢ eu nio estou habituada a andar de transportes pibli- 05, levo 0 carro da garagem de casa para a garagem do banco ‘onde trabalho. Se gosto? Nem por isso. Nio tenho de gostar, & ‘um emprego. As queixas no adiantam muito. O banco valoriza a formagio, por isso tenho fungdes e ordenado condigno. Hi Imuitas pessoas aflitas. Eu consigo pagar as contas. Sou uma pri~ vilegiada, disseram-me isto noutro dia e eu nem tive coragem de responder. Se o privilégio € ter um ordenado, pois entio, ‘sim, sou alguém que tem sorte, embora também tenha feito ‘POF isso. De resto? A minha vida dew uma volta tio grande que parece que tudo esti do avesso. No é bem do avesso, porque isso seria confortivel, até consolador. A minha vida, como sem- 142 pre foi, cabou. Por causa do Jaime. E hoje estou num dia mau, peo desculpa, por causa dos mitidos. A adolescéncia é a época ‘mais infeliz da vida de uma mie, A doutora tem filhos? Pois. Nio é ficil, pois nio? Nunca imaginei que estivessem contra mim. Tudo 0 que fago, tudo o que digo, parece ser uma ofensa, uma hostilidade. Eu no sou esse tipo de mie, porém faco per= guntas, sempre fiz. E natural que queira saber da escola, dos ami- 05, onde vio, com quem esto, dar-Ihes uma hora para estarem em casa, © Filipe ontem informou-me: «Amanhi é sexta, vou sair com 0s meus amigos, nio sei a que horas chego.» Assim. Nio achei uma atitude correcta, assim Iho disse e tive um dis- curso sobre a razoabilidade, os perigos,o facto de ser menor, de estar A minha responsabilidade. Conforme me ouvia, eu a debitar as certezas que porventura todas as mes acham que tém, per cebi de imediato que aquele discurso no fazia sentido para ee. E eu estava alia gastar palavras para nada. Limitou-se a olhar-me fixamente, sempre com aquela expressio corporal que parece tuma arma contra mim, e depois disse: «J4 acabaste? Se as coisas sio assim, eu fico em casa como se tivesse dez anos. E quando cchegar aos dezoito no me vés mais.» Virou as costas ¢ foi para 0 quarto. Mordi os labios para nio ir atris dele, para nio Ihe gritar que ha uma linha, porque hé uma linha, de respeito e que eu no Ihe merego este tipo de atitude. Porque nio merego. Ninguém merece. © Jaime dizia-me sempre que eu tenho de os deixar ir, de os deixar crescer, sio rapazes. O que € que isso quer dizer? Sio rapazes? Bom. O Jaime também me deixou, 0s mitidos estio ccomigo, estou com eles sozinha ha trés meses, trés meses absurdos em que 86 viram o pai ao almogo de sibado. Duas vezes. Dois, sibados. Sim, o Jaime diz que quer ficar com eles de quinze em guinze dias, € que até fari uma contribuicio financeira mensal, ‘mas precisa de se organizar. A palavra organizar € muito impor~ tante para ele. Sempre foi. No dia em que anunciow que ia sair de 145 = «asa, era um domingo, inhamos feito amor na véspera, uilizou ‘© mesmo verbo: organizar. Entrou na cozinha, trazia 0 saco do ginisio, estranhei e ele despejou o que trazia para me dizer, sibe -se li hi quanto tempo. Memorizei as palavras que me atirou,por terem sido poscas, por me terem desfeito por dentro ao ponto de nio ter conseguido formular uma resposta que, no minimo, me deste alguma dignidade. Limitei-me a vé-lo sair porta fora. Chorei o resto do dia e, como & evidente, o Filipe ¢ 0 Nuno nie so parvos, perceberam logo que se passava alguma coisa. O pior € que os tts ficimos agarrados 3 ideia de que seria uma fase, seria tudo pastageiro, o Jaime, o pai, voltria. Era uma crise de meia- ~idade, garantic-me a minha mie, ela que tem setentae tés anos € € casada hi cinquenta. O Jaime,na cozinha,com o tal sco na mio, disse-me:¢Nio aguento mais. Nao me consigo organizar contigo, conosco, o examento acabou. Lamento, Vou sar agora, Hoje.» Foi isto. Palavra por palavra. Nio se conseguia organizar, ‘comigo? Entic, o que andou a fazer durante vinte e cinco aros? ‘© Nuno, hi diss, atirou esta para cima da mesa, a0 jantar:«Vocés sabem que cerca de setenta por cento das familias portuguesas slo segundas familias?» O Filipe manteve-se calado e eu, muito parva, a parecer surpreendida: «Ai sim?» © Nuno garante-me que mais de matade dos colegas da sua turma sio filhos de pais separados. Deve querer dizer que o meu filho esti a processresti a encaixar 0 que ndo é possvel ser encaixado. Que lhe parece? B que eu nio ssi viver assim e acreditava que conhecia 0 Jaime, 4que ele nunca icia abandonar os filhos..Em tés mises esteve com eles duas vezes? Duas vezes. Estou a repetit-me, pego desculpa. Bu no consigo compreender. OK, nunca foi um pai muito interveniente, creio que s6 foi a duas ou tés reunides na escola, mas, mesmo assim, estivamos sempre juntos, faziamos progra- ‘mas. Ukimamente nio faziamos programas, é verdade, no posso ‘mentir. © Jaime andava mais sorumbtico, um pouco irritado, 144 cexplodia com ficilidade. Um dia abandonou a mesa do jantar por ‘causa da consisténcia do puré de batata, Agora di-me vontade cde rir, na alture fiquei de rastos e sempre a acreditar que a culpa era minha. Ainda agora, A culpa é uma coisa judaico-cristd, cul- tural, A minhe amiga Teresa tem todo um discurso sobre esta fatalidade e sobre o papel das mulheres, sempre prejudicadas pelos hhomens.Eu nio posso dizer que seja feministaafinal nunca pensei :nuito no assunto, Fiz 0 meu percurso,acatei o que era preciso, no sou de fazer revolugdes. ATeresa anda a encher-me a cabeya com ‘ideia sobre as diferengas entre homens e mulheres ¢,no fim tenho de lhe dar razio. Nés somos sempre o elo mais fraco.E, cereja no topo do bolo, o meu marido sai de casa, no voka, ¢ deixa-me (08 mitidos e os encargos todos. Sim, esti tudo em cima de mim. E nio hi nada que corra bem, porque até os meus flhos acham que me comporto de forma desadequada. Falhei com o meu maride estou a falhar com os meus filhos. Mas era suposto ter ajuda, era suposto o Jairce estar comigo para os educar ou para os deixar ir. Como é que vou deixi-los ir, se sio a tnica cois que me resta? ‘Sim, sio o meu chio,a minha missdo. Quem sabe se o problema no é mesmo esse. Eu podia ser de outra forma, ter vivide menos focada nos mitidos, menos ralada com a asma de um e asdificul- dades de concentracio do outro. O Jaime ter-me-a deindo por ser boa mie. E seri isto ser boa mie? Como se define o bem? E mie? Nio posso partir do exemplo da minha mae, € outrageragio. ‘A minha mae vive feliz com o que tem, Pinta, tem as suas aguarelas ce escapa-se do mundo assim. Lembro-me de ela se escapulir para a varanda,abrir 0 cavalete,colocar a tela ou a folha de papel especial e estar horas e horas dentro das cores. E uma artista. © meu pai cos- sama dizer que s6 tiveram uma filha porque a minha mae pintow 0s outros filhos. No me posso comparar. Claro que a minha mie no entende o Jaime, o meu pai nada diz, quem sabe se nio existe uma cumplicidade, uma compreensio, entre ¢les. Nao sei. Q meu 145 _ pai nunca foi muito falador, e sobre emogdes ou sentimentos, que seria?, nfo vale sequer a pena tentar. um excelente avd, € af, nessa fangio, que revela o seu melhor, mas de resto... A doutora entende? Quem precisa de se organizar sou eu e nem consigo estabelecer tum quadro de prioridades, Hi sempre os mitidos, o¢ mitidos em primeiro lugar, mas isso € o que se espera, nao &? Terceira consulta No ligue, nio ligue, estou mais sensivel, tenho dormido pouco. Pesadelos. Sempre o Jaime pelo meio ou os meus filhos gue desaparecem. Fiquei a pensar no que me disse na iiltima sessio. Como € que era a pergunta? Retirando os meus filhos da ‘equagio, onde estava eu? O que venho dizer ao mundo. isto que quer saber, doutora? Tenho quarenta e cinco anos, o meu mundo ruiu, o futuro ji ndo é o futuro que imaginei, nio vou ‘envelhecer com o Jaime, nio vou ser uma av6 a cuidar dos netos, tenho a certeza de que-os meus filhos ou nio terio filhos ou, pura esimplesmente, nao deixario os netos a meu cargo. & simples de explicar esta teoria, slo rapazes. Esté estudado. Os rapazes esco- hem as familias das namoradas ou mulheres ¢ os meus netos terio ‘uma av6 do outro lado que seri maravilhosa. Acha que & cedo para pensar nisto? Olhe que o tempo passa tio depressa. Ainda ‘ontem estava a casar-me em Seteais,com um vestido maravilhoso que guardei, ja lhe disse? E um vestido com corte vitoriano e com pequenas pérolas na zona do peitilho. E lindo. Nao sei Porqué mas todos os anos, religiosamente, mando-o limpar. Este -2N0 Vai ficar ali, no saco, Nao Ihe mexo mais. O Jaime foi lé a ‘casa buscar a roupa, contei-Ihe? Nio, nio posso ter contado, foi nna semana passada depois da nossa sessao. Hoi li a tarde, quer sizer, tarde ou a hors de almogo, nio sei, numa hora em que 146 ninguém estava em casa. Levou a roupa ¢ os armérios ficaram a parecer outros, em vez da confusio do costume. Nada ao molho, tudo impecivel nos cabides.E ele levou a roupa,a fotografia dos itidos que estava na mesa-de-cabeceira do lado dele, e ainda a almofada. Levou a bodega da almofada! Fiquei siderada. Talvee possa supor que tenho dormido agarrada & almofada dele, o que ime irrita muito. Porque, se me consegue imaginar a chorar por cle, também conseguirs entender que nfo tenho a sua capacidade para me organizar e comegar uma vida nova. Eu no quero uma vida nova, Ele obrigou-me a pensar nisto, na tal vida nova que seri, de acordo com muitas pessoas que me tém confessado os divércios mais estranhos, muito melhor. Preciso do meu tempo. E depois tudo muda, A doutora acrecita nisto? Bom, deve acre- Gitar, nio vai dizer aos seus pacientes: «Olhem, desculpem lé,mas a realidade é esta ¢ nada vai mudar» Tenho de acreditar que vai mudar. £ imprescindivel acreditar.Sabe porque vim ter consigo? Porque a minha amiga Teresa diz que a doutora é uma salvacio, que me pode ajudar. Nao me vai ajudar a resolver o deserto fem que se tornou a minha cama. Nao me vai ajudar a compor a minha conta bancaria, agora que tenho de pagar tudo, Nio me vai ajudar a conhecer um outro homem. Gosto do Jaime ha vinte e cinco anos, Amo-o. Nao posso descartar este sentiment s6 porque ele deixou de me amar. E como é que deixou de me amar? Que foi que eu fiz? Sabe a pergunta que me fazem? As pessoas mais proxias, ou com menos vergonha na cara, € 0 caso da minha assistente no banco, perguntam: +E ele nfo tera outra?» Outra, Uma mulher que © tomou de assalto a0 ponto de o Jaime ignorar os filhos € se esquecer de mim. Sabe quande falamos da Internet € do sexo? E $6 nisso que eu consigo pensar, que ele esti com uma mulher assim, unhas postigas vermelhas, cabelo loiro tipo palha. Um dliché sem sentido, eu reconhego, porém € nisso que penso 47 € penso constantemente. Preciso de entender 0 po-qué ¢, como no entendo, nio sai der a cauda. Dir-me do mesmo lugar. Parego um cio a mor com sabedoria e calma que nem todas as coisas que nos acontecem tém tma explicagio. uma fase que compée, fica bem e, apesar disso, no entendo. Com a minha idade, no é suposto a vida ser uma surpresa. Gostacia de pensar ‘que piso em chio firme, € nio em areias movedicas. Se 0 Jaime tem outra eu nao sei, pode ser que tenha, acabarei por saber. Os ‘meus filhos & que nio podem ser envolvidos em cenérios destes © pai deixow a mie por causa de uma ndo-sei-quantas.& 0 que Vio dizer. Nao suporto essa ideia, Nao suporto. Quarta consulta Obrigada por me receber hoje, nio consegui estar aqui ma segunda-feira. Mas tenho de Ihe dizer que esta é a nossa diltima Sessio. O Jaime voltou para casa, j4 nio preciso de vir aqui. Esti tudo como deve ser. B como se estes trés meses e pouco nio tivessem existido. Voltou simplesmente, ¢ as pegas encaixaram- -se. © Nuno ainda torceu o nar deve querer explicagdes mais detalhadas, mas isso passa, © Filipe ignorou e continuo com 4a sua atitude cisplicente que tanto me irrita. Os meus filhos Parecem-me estrangeiros. Tenho-me dedicado a0 Jaime, a ter tempo para nés, na segunda-feira até fomos almogar. Fui ter com ele a0 certro comercial perto do escritério dele ¢ come- ‘mos uma saladz, Nao the perguntei nada. Até agora nio o quis agredir. Voltou. Isso é que importa. Se teve um caso, nio sei, Pode Set que tenha tido, Fizemos amor uma tinica vez, eu chorei ele saiu para a cozinha para fumar um cigarro. Nio posso estranhar, sempre fez isto. Depois de tudo, levanta-se e vai famar um cigarto, mesmo que sejz de madrugada. Nio fago ideia daquilo em que pensaré, deduzo que precise da pausa para meditar na vida. Eu ‘fiquei ali sozinha e chorei baixinho. Muito baixinho, Nao queria ‘que ninguém me ouvisse € no queria fazer fitas. Sabe aquelas mulheres que precisam de muita atengdo, fazem birras, amuam, ‘choram? Aquelas que estio sempre muito cansadas..? Nao posso ser assim. Nunca 0 fui, nfo & agora que me vou transformar. Foi ‘uma separagio que nos obrigou a pesar 0 que importa,e 0 Jaime ‘concluiu certamente que nés importamos, somos a sua familia, nnio serd feliz sem nés. Ou se calhar foi feliz longe de nés € no aguentou tanta felicidade, Estou a brincar. Acha que isto pode vvoltar a acentecer? E que eu nfo vou conseguir sobreviver a ‘outro choque. Foi muito duro, mas, bem vistas as coisas, nio me aguentei mal. A doutora o que acha? Deve ter pacientes que sio smais lamechas, que choram mais do que eu alguma vez chore ‘Nio estou a desvalorizar 0 softimento, magoou-me muito. Creio que ele sabe. Diga? Nao, nio, conversar sobre a separagio é algo que esti muito longe de acontecer. E 0 meu pressentimento. ‘Como & que voltou? Bom, o Jaime ligou-me para 0 banco e disse isto: #Posso voltar para casa?» Nao sei se foi bem uma inter rogagio, admito. A entoacio era diibia. Talvez me esteja a fazer um favor? Fode ser. «Posso voltar para casav & ums coisa, «posso -voltar para casa?» & outra. Acha que nao tive espago para perceber quem sou sem a estrutura organizada do casamento € dos filhos. Eu compreendo-a, doutora. Sabe?, eu niio consigo viver sozinha € 0 Jaime é alguém que no me faz feliz, mas também no me faz infeliz. Etava aqui a ponderar e,se nao se importa, creio que marco nova sessio para a semana. O Jaime no precisa de saber até pode ser que me faga bem. Que acha? ‘Maio de 2016 149

You might also like