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Alexandre Koyré:

História e Filosofia das Ciências

ORGANIZAÇÃO

Mauro Lúcio Leitão Condé


Marlon Salomon
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Mauro Lúcio Leitão Condé, Marlon Salomon
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A369
Alexandre Koyré : História e Filosofia das Ciências / organização Mauro Lúcio
Leitão Condé, Marlon Salomon. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2015.
292 p. ; 23 cm. (Scientia ; 27)
inclui índice
iSBN 978-85-8054-260-8
1. Koyré, Alexandre, 1892-1964. 2. Ciências - História. 3. Ciências - Filosofia. i.
Condé, Mauro Lúcio Leitão. ii. Salomon, Marlon. iii. Série.
15-25660 CDD: 501
CDU: 501

CONSELHO EDITORIAL COLEÇÃO SCIENTIA


Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG
Gilberto Hochman | Fiocruz
Maria Amélia Dantes | USP
Maria de Fátima Nunes | Universidade de Évora - Portugal
Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG
Olival Freire | UFBA

FINO TRAÇO EDITORA LTDA.


Av. do Contorno, 9317 A | 2o andar | Barro Preto | CEP 30110-063
Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444
finotracoeditora.com.br
Apresentação 7

Prefácio 15

Nota introdutória a “Copérnico” [1934] de Alexandre Koyré


Marlon Salomon – UFG 21
1 Copérnico
Alexandre Koyré 23

2 Figuras da atualidade e formas do pensamento em Alexandre Koyré


Marlon Salomon – UFG 43

3 Revolução científica e intuição ontológica em Alexandre Koyré


Gérard Jorland – EHESS - Paris 71

4 A ordem cartesiana em Alexandre Koyré


Francismary Alves da Silva – UFSB 91

5 Teoria da história e história da ciência em Alexandre Koyré


Veronica F. B. Calazans – UTFPR 109

6 De um ponto de vista estruturalista: uma revisão das bases filosóficas


do internalismo de Koyré
Eduardo Salles de O. Barra – UFPR 133

7 Koyré e o realismo
Patrícia Kauark-Leite – UFMG 147

8 Metzger e Koyré: diálogos e escolhas


Ronéi Clécio Mocellin – UFPR 163

9 Alexandre Koyré e Gaston Bachelard: a Ideia na História


Fábio Ferreira de Almeida – UFG 187
10 Alexandre Koyré e a “epistemologia histórica” de Thomas Kuhn
e Paul Feyerabend
Luiz Henrique de Lacerda Abrahão – CEFET-MG 203

11 Koyré e Wittgenstein: o internalismo reconsiderado em uma


perspectiva pragmática
Mauro Lúcio Leitão Condé – UFMG 237

Índice remissivo 277

Sobre os autores 285


Apresentação

Em 2014, ao completar 50 anos do seu falecimento, o eminente filóso-


fo e historiador do pensamento científico, Alexandre Koyré, recebeu, em
diferentes lugares do mundo, a distinta homenagem de ter seu pensamento
vivamente abordado, debatido e, sobretudo, sendo fonte inspiradora para
novas ideias e possibilidades. No Brasil, os autores que assinam os capítulos
desse livro prestaram essa homenagem a Koyré em dois diferentes eventos.
O primeiro deles, intitulado III Colóquio de História e Filosofia da Ciência
[Alexandre Koyré], foi realizado em maio de 2014, na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), pela linha de pesquisa em História da Ciência
(Ciência e Cultura na História), do Programa de Pós-Graduação em História.
O segundo evento, intitulado Colóquio Koyré, foi realizado em dezembro
de 2014, na Universidade Federal de Goiás (UFG), pelo Programa de Pós-
Graduação em História.
Mais do que o registro dessa homenagem a Koyré, esperamos que este
livro possa contribuir para o estudo da rica obra de um dos mais impor-
tantes mestres da história da ciência. Alexandre Koyré: história e filosofia
das ciências, juntamente com Alexandre Koyré: historiador do pensamento
(2010), anteriormente organizado por Marlon Salomon, procura ampliar a
análise crítica da obra de Koyré entre nós e, consequentemente, o estudo
da historiografia da ciência. Nesse sentido, este livro, que ora o leitor tem
em mãos, vem se juntar às publicações Ludwik Fleck: estilo de pensamento
na ciência (2012) e Thomas Kuhn e a Estrutura das Revoluções Científicas
[50 anos] que também foram frutos de eventos realizados em diferentes
universidades brasileiras reunindo historiadores e filósofos da ciência. Além
dessa integração de pesquisadores na área de história e filosofia da ciência,
esse projeto editorial procura ampliar a literatura crítica em historiografia
da ciência entre nós. Certamente, a obra de Koyré não poderia deixar de
ser contemplada.

7
Os historiadores e filósofos da ciência, que aqui prestam essa home-
nagem, analisaram o pensamento de Koyré em duas perspectivas comple-
mentares que nos permitem compreender o complexo lugar que o autor
de Estudos de história do pensamento científico ocupa na historiografia da
ciência. O primeiro grupo de autores focou a atenção na obra de Koyré abor-
dando seus conceitos, ideias e contribuições. Tencionaram seu pensamento
mostrando sua grande riqueza, abrangência e sofisticação. Contrastaram as
ideias de Koyré com seu contexto e seu tempo para elucidar importantes
pontos de sua obra que ainda permaneciam reticentes. Assim, constituíram
um excelente quadro do pensamento do nosso homenageado. O segundo
grupo procurou relacionar as ideias de Koyré com outros importantes pen-
sadores da história e da filosofia da ciência do século XX, ora abordando
autores mais próximos à obra de Koyré, ora autores mais distantes da pró-
pria tradição na qual nosso ilustre homenageado se insere. Esse exercício
de contrastar Koyré com outros importantes pensadores mostrou-nos não
apenas a grande influência modelar exercida por ele na história da ciência,
como também evidenciou a importância da sua perspectiva epistemológica
enquanto baliza da epistemologia do século XX. Contudo, a divisão dessas
diferentes possibilidades de interpretação da obra de Koyré não aparece
aqui de forma rígida. De modo geral, os primeiros capítulos se inserem na
primeira perspectiva, e os capítulos finais na segunda, ainda que a transi-
ção entre essas partes apresentem, em muitos capítulos, características das
duas possibilidades.
iniciamos o livro com um texto do próprio Koyré. Trata-se de sua
apresentação à tradução do livro de Copérnico, A revolução dos orbes celestes
(De revolutionibus orbium coelestium). Mais do que apresentar aspectos da
vida e obra de Copérnico, Koyré empreendeu a difícil tarefa de fazer o leitor
contemporâneo colocar-se no tempo de Copérnico para entender que a terra
gira em torno do sol e não o contrário, algo que hoje nos parece tão trivial!
A revolução copernicana foi um feito tão extraordinário que efetivou uma
radical mudança na nossa visão de mundo.
No segundo capítulo, intitulado Figuras da atualidade e formas de pen-
samento em Koyré, Marlon Salomon mostra-nos que, quando se trata de
destacar a contribuição de Koyré à metodologia da história das ciências, in-

8
siste-se frequentemente em seu esforço inovador de estudar as antigas teorias
científicas em seu próprio tempo. Essa nova atitude perante o passado não
deve, todavia, obscurecer o papel que a atualidade da ciência desempenhou
na elaboração de uma nova concepção de história. A hipótese de Salomon é
a de que a elaboração dessa nova concepção não decorreu de uma distinção
metódica entre presente e passado, mas, ao contrário, de uma nova manei-
ra de articular o atual e o inatual. A novidade teórica e metodológica de
sua compreensão de história esteve indissociavelmente ligada à atualidade
da ciência. A partir do mundo finito (embora ilimitado) de Einstein, era
possível pensar de uma nova maneira o mundo infinito dos modernos e o
Cosmos fechado antigo-medieval. Essa questão permite a Salomon avaliar
se o trabalho de Alexandre Koyré não buscou constituir-se como um estudo
das formas do pensamento.
No terceiro capítulo, Revolução científica e intuição ontológica em
Alexandre Koyré, Gérard Jorland retoma seu interessante argumento, apre-
sentado há três décadas, no principal estudo sistemático sobre o conjunto da
obra de Koyré: La science dans la philosophie. Les recherches épistémologiques
d’Alexandre Koyré. De um lado, Jorland busca mostrar que as revoluções
científicas em Koyré tratam sempre, no fundo, de mudanças de ontologia.
Para Jorland, deve-se entender ontologia em Koyré “como um conjunto de
princípios que permitem discriminar o pensável e o impensável” em uma
determinada época e distinguir “no interior do pensável, o pensado do
impensado”. Mas Koyré, como nos mostra Jorland, não aplica uma ideia
de ontologia nos autores que estuda; ao contrário, ele a faz aparecer nesses
autores cujo pensamento analisa. Por outro lado, Jorland intenta mostrar
que a história do pensamento de Alexandre Koyré pretendia reconstituir o
pensamento de um cientista, teólogo ou místico a partir da apreensão da
intuição ontológica fundamental de um autor. Como, no entanto, apreender
essa intuição ontológica primordial por meio da qual era possível dar conta
da unidade do pensamento? Segundo Jorland, para fazê-lo, Koyré recorreu
ao método da empatia, cujos princípios havia aprendido em sua época de
estudante em Göttingen, com Adolf Reinach. O texto de Jorland permite-nos
compreender não apenas a metodologia do autor dos Estudos Galilaicos, mas
também precisar de que tipo de fenomenologia ele foi herdeiro.

9
No quarto capítulo, intitulado Teoria da história e história da ciência
em Alexandre Koyré, Veronica F. B. Calazans realiza uma análise que busca
compreender a relação entre o Koyré historiador da ciência e o Koyré teórico
da ciência, colocando-nos a instigante questão: em que medida o historiador
Koyré segue os preceitos epistemológicos colocados por ele próprio enquanto
teórico da ciência? As conclusões de Calazans permitem-nos pensar uma
autonomia ou uma relação não necessária entre essas duas atividades.
O quinto capítulo, intitulado A ordem cartesiana em Alexandre Koyré,
assinado por Francismary Alves da Silva, aborda a leitura que Koyré faz
de um dos seus mestres, o filósofo René Descartes. À luz de uma pequena
e pouco conhecida obra do pensador franco-russo, Considerações sobre
Descartes, Francismary argumenta que uma compreensão mais detalhada do
cartesianismo de Koyré mostra-nos que as abordagens didáticas e, por vezes,
redutoras, que entendem Koyré como um mero “internalista” e “platônico”
podem ser fortemente questionadas. A partir de uma leitura sistemática
desse opúsculo de Koyré podemos compreender melhor as críticas – como
vem sendo feitas por autores como Yehuda Elkana (1987) e James Stump
(2001) – à tradicional leitura internalista.
Eduardo Salles de O. Barra, no sexto capítulo, intitulado, De um ponto
de vista estruturalista: uma revisão das bases filosóficas do internalismo de
Koyré analisa, sob uma nova perspectiva, o sempre polêmico internalismo
de Koyré. Para Barra, o internalismo de Koyré foi muito mais associado a
uma perspectiva epistemológica do que propriamente a uma filosofia da
história. Em outras palavras, essa ênfase na leitura epistemológica do inter-
nalismo afastou a possibilidade de vermos a conexão entre a historiografia
da ciência de Koyré e a escola historiográfica da filosofia conhecida como
estruturalismo, que teve em Martial Gueroult e Victor Goldschimidt seus
principais protagonistas. Ora, se por um lado, segundo Barra, essa epistemo-
logia associada ao internalismo de Koyré fundamenta-se no platonismo, por
outro, a filosofia da história estruturalista encontra sua filiação na tradição
hegeliana. Considerar a produção de Koyré em relação a esse estruturalismo
que lhe foi contemporâneo permitir-nos-ia ver seu próprio internalismo em
uma perspectiva totalmente diferente.

10
No sétimo capítulo, Koyré e o realismo, Patrícia Kauark-Leite parte das
teses centrais de Koyré para abordar a tensão que delas surge, ora apontando
para o realismo científico, ora para o historicismo. Seria possível conciliar
essa tensão em Koyré? O historicismo do pensador franco-russo implicaria
na afirmação de uma perspectiva antirrealista em sua epistemologia? Ainda
que reconheça que a tese forte do realismo pareça ser insustentável, Kauark-
Leite procura afirmar a possibilidade da leitura do realismo em Koyré sob
uma nova perspectiva, como a sugerida por Van Fraassen. Esta seria uma
concepção minimalista de realismo científico que se compatibilizaria com
o historicismo. Conclui Kauark-Leite que, assim, em Koyré teríamos um
tipo peculiar de realismo, um realismo historicista – algo muito próximo
das concepções defendidas posteriormente por Kuhn e Feyerabend.
No oitavo capítulo, intitulado Metzger e Koyré: diálogos e escolhas, Ronei
Clécio Mocellin aborda as relações entre esses dois importantes historiadores
da ciência pertencentes à tradição francesa. Ele não procura propriamente
realizar comparações, mas se propõe a investigar, “dentro de um território
intelectual que lhes era comum, suas aproximações e afastamentos, tanto na
adoção e na interpretação de determinados conceitos, quanto em relação à
própria atividade do historiador das ciências”. Para estabelecer esse diálogo,
Mocellin parte de certos conceitos-chave para a história das ciências nos
quais aponta as convergências e as divergências entre esses autores. Por fim,
conclui Mocellin que o que permite esse diálogo conceitual com concor-
dância e discordâncias entre Metzger e Koyré é a abertura hermenêutica
peculiar aos dois autores.
No nono capítulo, intitulado Alexandre Koyré e Gaston Bachelard: a
ideia na história, Fábio Ferreira de Almeida salienta que, aquela que tal-
vez possa ser reconhecida como a máxima de toda a filosofia de Gaston
Bachelard, ou seja, a que afirma: – “Pensar não ouso. Antes de pensar é
preciso estudar” – era compartilhada por Alexandre Koyré, bastando dar
uma rápida olhada na bibliografia deste autor. Esta exigência de estudo,
ou mesmo de instrução, segundo Almeida, é o que nos permite enxergar
melhor a superação da descontinuidade entre história e filosofia. Segundo
a hipótese geral desenvolvida neste capítulo, essa seria a principal lição da
obra de ambos os autores. A mesma exigência estabelece, como bem ressalta

11
Georges Canguilhem, um lugar privilegiado para o objeto a que ambos se
dedicam, objeto cuja construção deve ser pensada, mais que analisada ou
contada: as ciências. A ideia na história toca a fenomenologia, como se
pretende mostrar, e é o que caracteriza a reflexão de Gaston Bachelard e de
Alexandre Koyré, permitindo reconhecê-los para além das diferenças, num
mesmo espaço de pensamento.
Luiz Henrique de Lacerda Abrahão, no décimo capítulo, que se inti-
tula, Alexandre Koyré e a “epistemologia histórica” de Thomas Kuhn e Paul
Feyerabend, aprofunda o entendimento sobre a influência de Alexandre
Koyré na “epistemologia histórica”, especialmente sobre Thomas Kuhn e
Paul Feyerabend. Primeiro, mostra que a “dívida intelectual” do autor do
A Estrutura das Revoluções Científicas com o historiador franco-russo é
nítida, onipresente e reconhecida por especialistas no corpus kuhniano.
Segundo, salienta que a ocorrência do pensamento koyreano na produção
do autor de Contra o Método é relevante, contudo, teoricamente indefinida
e repleta de equívocos interpretativos. Diante disso, Abrahão indica como
que duas importantes teses historiográficas associadas à leitura de Koyré
sobre a figura de Galileu Galilei influenciaram o elogio feyerabendiano ao
cientista pisano como um “embusteiro” ou “oportunista”. Por fim, conclui
que Koyré e Feyerabend (e também Kuhn) compartilham certas reservas
atinentes à concepção empirista sobre a estrutura e desenvolvimento da
ciência, em particular da Revolução Copernicana.
No décimo primeiro capítulo, analiso a concepção de internalismo de
Koyré a partir de certos aspectos da filosofia da linguagem de Wittgenstein.
Hoje, quando a história da ciência é escrita principalmente em uma pers-
pectiva social, e a afirmação do internalismo de Koyré – ancorado em uma
“atitude metafísica” – parece não predominar, busco reavaliá-lo para com-
preender como ele ainda levanta importantes questões – especialmente a
questão da autonomia da ciência – em face dessas abordagens sociais da
ciência. Não busco uma “conciliação” entre Koyré e Wittgenstein, autores
que pertenceram a tradições diferentes. Meu esforço é compreender como
uma teoria da ciência inspirada pela filosofia de Wittgenstein (a gramática

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da ciência) representa uma rica oportunidade de responder importantes
questões levantadas pelo internalismo de Koyré.
Por fim, não poderíamos deixar de dizer que o evento sobre Koyré,
realizado na UFMG, e a publicação deste livro contaram com o fundamental
apoio do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, do Programa
de Pós-Graduação em História da UFG e da Capes.
Mauro Lúcio Leitão Condé – UFMG

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Prefácio

Gostaria de iniciar o preâmbulo deste livro tomando como ponto de


partida a tradução e publicação aqui de “Copérnico”, texto redigido por
Alexandre Koyré no início da década de 1930. No início da década anterior,
Alexandre Koyré havia fundamentalmente estudado a história do pensamento
religioso e místico. Em 1922, diplomou-se na seção de “Ciências Religiosas”
da École Pratique des Hautes Études com uma memória intitulada Ensaio
sobre a ideia de Deus e as provas de sua existência em Descartes. Sua tese
de doutorado tratou d’A ideia de Deus na filosofia de Santo Anselmo. Sua
tese de doutorado de Estado, defendida em 1929, versou sobre a obra do
célebre sapateiro-filósofo, Jacob Boehme. Esse texto do início dos anos 30
poderia, assim, ser visto como uma “passagem” de Alexandre Koyré ao es-
tudo da história do pensamento científico – a partir de 1935 e durante toda
a segunda metade daquela década, ele redigiria os textos que em seguida
comporiam seus Estudos Galilaicos. “Poderia” se ele de fato o fosse. A ideia
de uma “passagem” certamente trairia não apenas os fatos, mas a própria
maneira como ele pensava e formulava seus problemas. Aliás, a ideia de
uma passagem sugeriria que Alexandre Koyré, ao “chegar” à história das
ciências teria, como determinava Augusto Comte, passado pelos três estados
de sua filosofia da história: teológico, metafísico e científico. A sua trajetória,
assim, traduziria aquela do próprio progresso do saber. Se não podemos
falar em “passagem” é justamente em razão desse aspecto: em Alexandre
Koyré, esses domínios não foram tratados de maneira estanque e separados.
“Copérnico” o ilustra bem: o problema fundamental da teoria heliocêntrica
não foi científico (astronômico), mas metafísico e místico.1 Koyré substituía,
assim, a sucessão necessária do positivismo pela pesquisa sobre a simulta-

1. Basta dar uma olhada no resumo dos cursos publicados no Anuário da Escola Prática de
Altos Estudos para concluir como seria equivocada a ideia de uma “passagem”. Para ficar em
um breve exemplo: em 1933-1934 e em 1934-1935, Koyré ministrou, concomitantemente, um
seminário sobre Galileu e outro sobre Calvino; em 1935-1936, um seminário sobre Galileu
e outro sobre “A crítica religiosa no século XVii” (Koyré, 1986, 42-50).
15
neidade indeterminada (visto que era preciso encontrar suas articulações)
de domínios por meio da qual pretendia pensar a unidade do pensamento.
Somente uma “história do pensamento copernicano” poderia reconstituir
os vetores que conduziram o cônego polonês a encetar essa transformação
profunda da representação do Universo e da posição que o homem ocu-
pava nele. Se destaco isso aqui não é porque pretendo glosar ou resumir o
texto que o leitor terá à disposição em seguida, mas porque ele nos permite
destacar uma nova maneira de compreender, então, o passado da ciência:
era preciso “tentar compreendê-lo [o pensamento de Copérnico] em sua
realidade histórica”. Parece-me que esse aspecto metodológico do trabalho
de Alexandre Koyré – talvez ainda mais importante do que a definição do
conceito de revolução científica – é o que reserva a ele uma posição de
destaque na configuração moderna da historiografia das ciências e permite
compreender, mesmo em uma época em que a sociologia da ciência subs-
tituiu a primazia filosófica pelo estudo dessa atividade, o interesse sempre
renovado pela leitura de sua obra – para além, é claro, do interesse pela
minúcia, rigor e erudição de suas análises.
Não podemos retirar essas duas atitudes que acabo de assinalar de
seu contexto. Koyré encontrava-se em ruptura com a tradição positivista
que compreendia teleologicamente a história das ciências, a partir da ideia
de etapas de um progresso necessário. Para ele, não era possível compre-
ender a ciência moderna sem restituir-lhe os aspectos extracientíficos de
sua formação, o contexto mais amplo de ideias no qual se situavam seus
promotores. Era preciso estudar a ciência na história, quer dizer, em “seu
tempo”. Como não relembrar dos pronunciamentos, nessa mesma época, de
um Lucien Febvre – e em mais de um lugar – em defesa de uma história das
ciências ou da filosofia que situasse o cientista ou o filósofo em “seu tempo”,
que o pensasse “em relação a seu tempo e a seus contemporâneos” (Febvre,
1932:102) e não apenas por meio da análise da origem e da filiação de ideias?
Não devemos nos esquecer do que era então a história da ciência na
França. Feita fundamentalmente por historiadores que reclamavam o lega-
do de Pierre Duhem, reunidos em torno de Aldo Mieli e de seu “Comitê
internacional de História das Ciências”, tratava-se “de um estudo da origem
e da filiação das descobertas” (Redondi, 1986:XV) e das invenções, preocu-
pado com as querelas sobre a prioridade científica (particularmente, aquelas

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nacionais), com a determinação de seus precursores, com o estabelecimento
de tábuas cronológicas da ciência. Uma história dos fatos, das descobertas
e dos grandes monumentos do passado da ciência.
Uma história dos cientistas e de suas grandes invenções, assim como,
nessa mesma época, certa história da arte (ou da literatura) organizava-se em
torno do estudo dos grandes artistas e de suas grandes obras. Esses objetos
de estudo eram concebidos e analisados em si mesmos, pensados a partir
de um ponto de vista bastante distinto daquele da história (relevância de
um cientista, de uma invenção ou descoberta para o progresso ou evolução
do saber, no caso da ciência, relevância de um artista ou de uma obra a
partir do julgamento dos valores estéticos ou artísticos normativos, no caso
da arte). Tratava-se, precisamente, de transformar esse modo de compre-
endê-los. É um pouco nesse contexto que devemos situar um enunciado
metodológico (mas também teórico) como esse de Koyré (devemos situar
o pensamento de Copérnico em sua realidade histórica), ou mesmo esse
de Lucien Febvre (é preciso situar os monumentos da ciência e da filosofia
em seu tempo). Vê-se que um combate comum aí se configurava, embora
oriundo de trincheiras diferentes.
A partir dos escritos metodológicos de Max Weber, Paul Veyne reto-
ma uma distinção estabelecida pelo sociólogo alemão entre uma história
axiológica (“uma história das obras que mereceram permanecer, tratadas
como vivas, eternas, não como relativas ao seu tempo”) e uma história pura
(que busca pensar esses objetos a partir do modo como foram produzidos,
pensados, lidos, avaliados, julgados em sua época). Não deixa de ser interes-
sante observar que Paul Veyne retome exatamente o exemplo de Alexandre
Koyré para indicar uma importante transformação no modo de pensar e
compreender a história das ciências.
A obra de Alexandre Koyré consistiu, de diferentes pontos de vista, em
transformar a história da ciência de uma história axiológica em uma
história pura, em uma história da ciência “em seu tempo”. Antes dele, a
história da ciência era sobretudo uma história das grandes descobertas
e invenções, uma história das verdades estabelecidas e de sua aquisi-
ção; Koyré a substitui por uma história dos erros e das verdades, uma
história da trajetória demasiado humana das verdades eternas (Kepler
descobrindo uma de suas leis na base de elucubrações pitagóricas e ao

17
preço de dois erros de cálculos que se anulavam mutuamente; Galileu se
sentindo obrigado a precisar sua posição entre platônicos e aristotélicos,
acreditando dever reclamar o pensamento de Platão e imaginando que
talvez ele se inspirasse nesse filósofo, tal como um físico contemporâneo
que acredita dever ao marxismo suas descobertas) (Veyne, 1978:97).2

Era preciso fazer a história das ciências, como assevera Pietro Redondi,
“entrar na história dos homens” (Redondi, 1986, XVii).
O modo de se desviar dessa história axiológica, ou simplesmente mo-
numental, pressupôs deslocar a atenção dos resultados da ciência (parti-
cularmente do triunfo da verdade) para o itinerário que tornava possível
alcançá-la, isto é, dos fatos para os textos. Oriundo da história da filosofia,
Koyré deslocava os princípios da leitura filosófica para os textos do passado
da ciência. Mas um modo particular de leitura filosófica, aquela da análise
conceitual que havia herdado dos seus anos de formação fenomenológica
em Göttingen (Jorland, 1981:27 e ss). Era preciso lê-los rigorosa e minucio-
samente, palavra por palavra, linha por linha, parágrafo por parágrafo, texto
por texto: só assim os traços de um percurso esboçavam-se.3 A análise da
formação e da transformação dos conceitos permitia compreender a formação
de teorias e a “estrutura do pensamento científico” (Koyré, 1982 [1951]: 10).
Mas esse deslocamento não era apenas historiográfico. Ele possuía
efeitos no âmbito da filosofia. Não se pode esquecer que Koyré estudava a
história do pensamento (e vinha da história da filosofia e não da história
das ciências). Na França, desde o final do século XiX e início do século XX,
a reflexão filosófica da ciência havia se aproximado da história. Lembre-se
a esse respeito dos trabalhos de um Léon Brunschvicg ou de um Émile
Meyerson. Não se considerava mais possível compreender categorialmente

2. É interessante observar que o “Apêndice” de onde acabo de retirar essa citação de Paul
Veyne – que conhece e cita os trabalhos de Alexandre Koyré com certa frequência – não
foi traduzido para a versão brasileira de seu livro. Os editores simplesmente o amputaram
sem indicá-lo ao leitor brasileiro.
3. isso implicava uma mudança metodológica profunda e uma nova arquivologia da ciência.
Esse novo modo de tratar os arquivos da ciência marcou as novas gerações de historiadores,
particularmente norte-americanos, na medida em que abriu as vias para um novo campo
de estudos. “Koyré ensinou-nos a necessidade fundamental do estudo dos textos: linha por
linha, pensamento por pensamento. Ele nos mostrou que apenas examinando esses escritos,
sejam aqueles publicados por um autor, sejam aqueles manuscritos, poderíamos entender
o que esses pensadores do passado pretendiam” (Cohen, 1987:57).

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a razão ou traduzir sua estrutura por meio de uma arquitetura estática e
fechada. Foi aí que a história tornou-se relevante para pensar filosoficamente
a ciência e, assim, compreender a razão. Mas Koyré jamais se considerou
ou se apresentou como um epistemólogo. Nesse sentido, sua maneira de
pensar a ciência na história marcava uma importante diferença em relação
àquela de seus mestres. Não se tratava de buscar na história exemplos que
iluminassem ou alimentassem a reflexão filosófica sobre a ciência, mas de,
radicalmente, introduzir no canteiro da história a reflexão filosófica sobre
a razão. Daí que a expressão história do pensamento científico, expressão
por meio da qual o historiador-filósofo francês de origem russa definiu e
caracterizou seu empreendimento intelectual, contenha uma surpreendente
associação de termos – sobre cuja radicalidade do efeito de sentido não se
insistiu com frequência.4 Pouco importa aqui a autoria dessa expressão.
O que importa é que, em Koyré, ela traduz e define uma prática intelectual
que marca uma nova maneira de abordar a ciência e o pensamento. Pois não
é apenas a ciência que é preciso considerar como um autêntico fenômeno
histórico, mas a própria razão. isso marcou uma inflexão profunda na ordem
do discurso filosófico, na medida em que redistribuiu e embaralhou em seu
interior a dignidade das posições e a hierarquia dos gêneros no interior dos
quais era preciso se situar para poder abordar corretamente a razão. Não foi
essa “desordem” que a Assembleia dos professores do Collège de France quis
evitar em 1951 recusando a criação de uma cátedra de história do pensamento
científico para a qual Alexandre Koyré seria nomeado?5
Marlon Salomon – UFG

4. Eis o que escreveu a esse respeito, tratando do contexto historiográfico norte-americano,


Steven Shapin (2013 [2010], 6): “Koyré foi enormemente encorajador – imagine: a ciência
como um fenômeno autenticamente histórico –, mas o radicalismo de seu trabalho foi mas-
carado em parte por seu posterior recrutamento [por parte dos internalistas] na condição
de Martelo dos marxistas”.
5. “O candidato [Alexandre Koyré] não era cientista de formação, nem filósofo de profissão.
Ele era um historiador do pensamento religioso e científico que escapava às definições
disciplinares mais rígidas quando de um concurso acadêmico. O programa desse ensino se
recusava à denominação tradicional de ‘história das ciências’. Não se tratava tampouco de
um ensino dos progressos de uma disciplina científica. Jamais era formulada a demarcação
familiar entre ciências exatas e ciências humanas. Até que ponto os cientistas do Collège de
France poderiam ter se interessado por um programa de história do ‘pensamento científico’
se apresentando como um ensino de história?” (Cf. Redondi, 1986: 118-119).

19
Referências bibliográficas
COHEN, i. Bernard. “Alexandre Koyré in America: some personal remi-
niscences”. History and Technology, 1987, 4 (1-4), p. 55-70.
FEBVRE, Lucien. “L’histoire de la philosophie et l’histoire des historiens”.
Revue de Synthèse. 1932, 3 p. 97-103.
JORLAND, Gérard. La science dans la philosophie. Les recherches épistémo-
logiques d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard, 1981.
KOYRÉ, Alexandre. [1951]. “Orientação e Projetos de Pesquisa”. in: Koyré,
Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1982, p. 10-14.
KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la science. Cours, conférences et do-
cuments – 1922-1962. Organizado por Pietro Redondi. Paris: EHESS, 1986,
p. iX-XVii.
REDONDi, Pietro. “Préface”. in: Koyré, Alexandre. De la mystique à la
science. Cours, conférences et documents – 1922-1962. Organizado por Pietro
Redondi. Paris: EHESS, 1986, p. iX-XVii.
SHAPiN, Steven [2010]. “Baixando o Tom na História da Ciência. Um
Chamado Nobre”. Nunca Pura. Trad. Erick Ramalho. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2013, p. 1-14.
VEYNE, Paul. “Appendice. L’histoire axiologique”. Veyne, Paul. Comment
on écrit l’histoire. Paris : Seuil, 1978, p. 94-99.

20
Nota introdutória ao texto “Copérnico” [1934]
de Alexandre Koyré
Marlon Salomon – UFG

Em 1934, Alexandre Koyré traduziu e publicou uma versão em francês


do texto dos onze primeiros capítulos do primeiro livro do De Revolutionibus
orbium coelestium. Neste primeiro livro, Copérnico trata fundamentalmente
da “constituição geral” do universo. Como o leitor observará, para Koyré, o
problema fundamental da teoria heliocêntrica não era astronômico, mas sim
cosmológico. Essa tradução foi publicada em uma coleção intitulada “Textos
e Traduções Para Servir à História do Pensamento Moderno”, criada em 1930
por Abel Rey e cujos quatro primeiros volumes sobre Petrarca, Maquiavel,
Nicolau de Cusa e Cesalpino foram resenhados por Koyré naquele mesmo ano.
De 1922 a 1929, os cursos de Koyré na Escola Prática de Altos Estudos
foram fundamentalmente dedicados à história do pensamento místico e reli-
gioso. Em 1929, ele defendeu sua tese de doutorado intitulada La Philosophie
de Jacob Boehme. Nesse mesmo ano, dedicou uma parte de seu curso ao
estudo da obra de Copérnico e às “repercussões imediatas da publicação
do De Revolutionibus”. Estas repercussões não foram científicas, mas funda-
mentalmente religiosas. Uma primeira conclusão a que Koyré chegou nesse
estudo, talvez possa nos indicar a origem dessa tradução:
Para nossa surpresa, constatamos que Copérnico era pouquíssimo
conhecido e que, enquanto dispomos de toda uma série de trabalhos
sobre a nacionalidade de Copérnico, sobre a física copernicana não há
nada; as observações de Duhem e de Meyerson, eis tudo o que acrescenta
alguma coisa a Delambre. Pudemos constatar, no entanto, o quão pobre
é a imagem de Copérnico que encontramos nos melhores manuais de
história da física e da astronomia (Koyré, 1986:29).1

1. Koyré, Alexandre. De la mystique à la science. Cours, conférences et documents – 1922-1962.


Editados por Pietro Redondi. Paris: EHESS, 1986, p. 29.
21
Pode-se dizer que a tradução buscava reintroduzir a obra copernicana
(e não o personagem) na cultura do entreguerras e alterar a pobreza dessa
imagem. O texto que ora vertemos para o português e publicamos neste
livro constitui a introdução a essa tradução de 1934. Ele é importante, de
um lado, porque marca o início das pesquisas koyreanas sobre a história do
pensamento científico em suas relações com outros domínios do saber; de
outro, em função da posição na qual ele situa Copérnico em sua interpre-
tação da história da ciência e do mundo moderno.2
No ano anterior, Koyré já o havia publicado, com ligeiras alterações, na
Revue philosophique de la France et de l’étranger.3 Em 1943, uma versão em
inglês seria publicada sob o título “Nicolaus Copernicus”. Quarterly bulletin
of the Polish institute of arts and sciences in America.4
Esse texto será a base de “Copernic et le bouleversement cosmique”, o
primeiro livro de La Révolution Astronomique.5

2. Cf. Copernic, Nicolas. Des révolutions des orbes celestes: livre premier. introdução, tradução
e notas de Alexandre Koyré. Paris: Félix Alcan, 1934, p. 1-23.
3. T. 116: 7-8, 1933, p. 647-655.
4. Jul. 1943, p. 1-26.
5. Cf. Paris: Hermann, 1961, p. 13-115.

22
1

Copérnico
Alexandre Koyré1

O ano de 1543, ano de aparição do De Revolutionibus orbium coelestium


e da morte de seu genial autor, Nicolau Copérnico, marca uma importante
data na história da humanidade.
Poder-se-ia propô-la como aquela “do fim da idade Média e do início
dos Tempos Modernos”, visto que, muito mais profundamente que a tomada
de Constantinopla pelos turcos ou a descoberta da América por Cristóvão
Colombo, ela marca o fim de um mundo e o nascimento de um mundo novo.
Mas talvez se desconhecesse, ainda assim, a sua importância: o corte
efetuado por Copérnico não marca somente o fim da idade Média. Ele marca
o fim de um período que abarca tanto a idade Média quanto a Antiguidade.
A partir de Copérnico – e somente a partir de Copérnico2 – o homem não
se encontra mais no centro do mundo. O Universo não gira mais para ele.

*
**
Em nossos dias, é difícil imaginar, “apreender” plenamente o esforço
e a audácia desse surpreendente espírito. Teríamos de poder esquecer tudo
o [2]3 que aprendemos na escola; teríamos de poder retornar à segurança

1. Tradução de Marlon Salomon e Raquel Machado Gonçalves Campos.


2. Apelt (1852: 127) afirma com muita razão: “Copérnico foi o primeiro a reconhecer o movi-
mento anual da Terra”. Aristarco de Samos já havia, é verdade, emitido essa hipótese; mas
não sendo sustentada por um sistema de cálculos, ela permaneceu como hipótese curiosa,
sem influência prática.
3. Nota dos tradutores: entre colchetes, encontra-se a paginação da publicação original do
texto koyreano.

23
ingênua com a qual o senso comum aceita a evidência imediata da percepção
da imobilidade da Terra.
Mas mesmo isso não seria suficiente. Sobre essa evidência, teríamos
de poder inserir um triplo ensinamento: científico, filosófico, teológico.
Uma tripla tradição, uma tripla autoridade: de cálculos, de raciocínios, de
revelação. Somente então poderíamos nos dar conta da inverossímil audácia
do pensamento copernicano que arrancava a Terra de seus fundamentos e
a lançava no céu.
Se nos é difícil – para dizer a verdade, mesmo impossível, senão por
meio da imaginação – apreender o esforço liberatório de Copérnico, nos é
igualmente difícil apreender a potência do choque produzido pela leitura de
sua obra nos homens de seu tempo. Desmoronamento de um mundo que
tudo – ciência, filosofia, teologia – representava como centrado no homem e
criado para o homem. Desmoronamento da hierarquia que, opondo o mundo
sublunar aos céus, unia-os na e por essa própria separação. Tratava-se de algo
realmente demasiado louco para ser levado a sério. Tratava-se também de algo
extremamente complicado. Mathemata mathematicis scribuntur. Deixemos
tudo isso aos matemáticos. Uma hipótese, ao mesmo tempo, nova e muito
antiga. Proposta calculista sem importância prática. Eis o que se pensou o
mais frequentemente durante meio [3] século. Somente Melanchton havia
imediatamente compreendido o que estava em jogo.4
Não foi senão mais tarde, quando se tornou patente que a obra de
Copérnico não era um assunto de matemáticos; quando se tornou visível
que o golpe que ela havia desferido contra o mundo geo e antropocêntri-
co era mortal; quando ela teve tempo de desenvolver suas consequências
metafísicas e religiosas, que a reação sobreveio: a condenação de Galileu e
a obra de Pascal.

4. Apelt (1852:166) escreve: “a nova doutrina do cônego católico, planta essencialmente


alemã assim como o próprio protestantismo, foi conservada e elaborada sobretudo por
protestantes [...]. O destino da astronomia nova esteve [...], de certa maneira, ligada aos
destinos do protestantismo”. Nada é mais falso que essa asserção de um erudito, entretanto,
bastante advertido: a primeira reação contra a astronomia nova veio do próprio Melanchton
(Cf. Melanchton, 1552:60 e ss) e a tradição se manteve até em pleno século XVii quando a
física de Comenius, cuja difusão é conhecida, ainda combate a cosmologia heliocêntrica.

24
*
**
Seria de um interesse incalculável para a história e para a fenomenologia
do pensamento humano poder reconstruir e reconstituir as démarches do
pensamento copernicano. Digamo-lo de pronto: isso nos parece mais ou
menos impossível. Copérnico não nos deixou autobiografia intelectual; as
poucas informações que dá em sua bela Carta-prefácio ao papa Paulo iii
são parcas e, aliás, sujeitas a caução. Quanto a sua obra, ela se apresenta para
nós em um estado de perfeição desesperadora.
Mas se devemos renunciar ao desejo de poder escrever a história do
pensamento copernicano, devemos ao menos tentar compreendê-lo em sua
realidade histórica, evitando [4] modernizá-lo e aproximá-lo de nós.5 E para
isso, a primeira precaução a se tomar é não ver em Nicolau Copérnico um
precursor de Galileu e de Kepler e não interpretá-lo através deles.6
Tarefa, a nosso ver, singularmente importante e, coisa curiosa, sin-
gularmente negligenciada até aqui. Pois, se não faltam apresentações da
astronomia copernicana,7 se, além disso, tesouros de engenhosidade e de
erudição foram despendidos para estabelecer a etimologia exata de seu
nome ou determinar sua nacionalidade – mais exatamente para provar seu
germanismo ou polonismo (a mais ridícula de todas as tarefas) –, contudo,
sua física foi quase inteiramente desprezada. E, no entanto, assim como
Schiaparelli, com sua profundidade habitual, muito bem observou, tratava-
se, antes de tudo, de física e de cosmologia.8 [5]

5. Sobre a dificuldade de não modernizar a obra de Copérnico e de não introduzir nela


noções que lhe são estranhas, ver as observações luminosas expostas no “Apêndice iii: Os
copernicanos e o princípio de inércia” de E. Meyerson (1908).
6. Nada teve uma influência mais nefasta sobre a história que a noção de “precursor”.
Considerar alguém como “precursor” de alguém outro é, certamente, impedir-se de com-
preendê-lo. Um exemplo preciso: em 1877, a academia de Torun publicou uma tradução
(excelente) da obra de Copérnico feita por C. L. Menzzer. O título da obra do grande
astrônomo é, sabe-se bem, De Revolutionibus orbium coelestium, o que quer dizer: Das
revoluções dos orbes celestes. Menzzer traduz: Ueber die Kreisbewegungen der Welt-Körper,
o que quer dizer: Dos movimentos circulares dos corpos do Universo. E Cantor, que escreveu
o prefácio, não observou o contrassenso.
7. As melhores apresentações são aquelas de Delambre (1821) e de Dreyer (1906).
8. “A grande luta entre o sistema de Ptolomeu e o de Copérnico girava em torno dos mesmos
princípios físicos e cosmológicos [da Antiguidade]. Os dois sistemas podem ser empregados

25
*
**
Nicolau Copérnico nasceu em Torun, na Pomerânia, em 19 de fevereiro
de 1473.9 Seu pai era originário da Cracóvia; sua mãe era de Torun. Órfão
aos 12 anos, ele foi, em alguma medida, adotado pelo seu tio materno, Lucas
de Watzelrode, que mais tarde se tornaria bispo de Ermland. Ele era polonês
ou alemão? Admito que a questão parece-me não somente desprovida de
interesse, mas mesmo de sentido. Copérnico – felizmente para ele – vivia
em uma época que desconhecia o sentimento nacional, visto que ignorava a
existência de nações. Penso que se alguém lhe fizesse essa questão, Copérnico
não a compreenderia: ele era súdito do rei da Polônia, cônego de Frauenburg.
Escrevia em alemão as notas que tratavam das questões da vida quotidiana.
As coisas sérias ele pensava e escrevia em latim. Fora isso, ele era um bom
católico. Eis então, eu imagino, tudo o que ele poderia responder.

*
**
Em 1491, encontramo-lo na Universidade da Cracóvia, muito célebre
naquela época.10 Pode-se supor que ele seguiu o curso habitual dos estudos
da Faculdade das artes, tendo também estudado medicina e direito. Parece
ter [6] se ligado ao astrônomo Alberto de Brudzewo que, em 1482, havia
escrito para seus estudantes um comentário das Theoricae novae planetarum
de Peurbach (Brudzewo, 1495) e que, desde 1490, ali ensinava filosofia, quer
dizer, comentava Aristóteles.11

para a representação dos fenômenos, ambos com sucesso. Do ponto de vista geométrico,
eles eram equivalentes, tanto entre si quanto em relação ao sistema eclético de Tycho”
(Schiaparelli, 1876:85).
9. A melhor biografia de Copérnico é a de Prowe (1884); mas é antes uma história do tempo
do que do homem. Ver também Birkenmajer (1900).
10. Pretendeu-se que ele tenha ido a essa Universidade porque os estudos matemáticos nela
então floresciam de uma maneira particular. Talvez... Talvez, mais simplesmente, ele foi à
Cracóvia porque era a Universidade, entre muitas, a mais próxima. Aliás, é provável que
na Cracóvia seu pai tivesse alguns contatos.
11. A. de Brudzewo não ministrava mais cursos públicos de astronomia; admite-se que teria
dado a Copérnico lições particulares. Seja como for, se Copérnico pôde aprender com A. de
Brudzewo o ofício de astrônomo, não foi ele quem lhe forneceu a ideia da astronomia nova.

26
Alberto de Brudzewo deixou a Universidade da Cracóvia em 1494, e
admite-se – gratuitamente a meu ver – que Copérnico igualmente a deixou
e retornou para casa. Seja como for, em 1496, ele parte para a itália. Em seis
de janeiro de 1497, encontra-se inscrito na Universidade de Bolonha entre
os membros da Natio Germanorum.12
Ele permaneceu nessa Universidade por volta de três anos e meio, onde
aprendeu grego e estudou Platão. No que diz respeito à astronomia, ele
parece já conhecer o suficiente para ser aceito pelo astrônomo Domenico
Maria de Novara “antes como ajudante e colaborador que como discípulo”.
Em 1500, Copérnico vai a Roma onde, segundo Rheticus, ministra um
curso de “matemáticas”. infelizmente, Rheticus não diz o que ele ensinou.
Parece que Copérnico teria voluntariamente prolongado sua estadia na
itália. Ele teve, todavia, que voltar a sua pátria para tomar posse do posto
de cônego de Frauenburg [7] para o qual, três anos antes, seu tio Lucas de
Watzelrode, bispo de Ermland, o havia feito se eleger. Em 1501, encontra-se,
então, em Frauenburg e toma posse (em 27 de julho). Em seguida, munido
de uma nova licença, parte novamente para a itália. Desloca-se para Pádua,
onde permanecerá por quatro anos, estudando medicina e direito. Em 1503,
todavia, vai a Ferrara onde, em dia 31 de maio, recebe o título de doutor em
direito canônico. Com o canudo na mão, ele volta a Pádua.
Copérnico não parece ter tido nenhuma vontade de voltar para casa.
Mas o Capítulo de Frauenburg estava impaciente. A ausência de Copérnico
era realmente muito longa para um cônego, mesmo um que fosse sobrinho
do bispo. Em 1506, Nicolau Copérnico retorna a sua diocese, que ele não
mais deixará até sua morte.

*
**

12. O que não prova seu “germanismo”. As “nações” universitárias eram algo muito diferente
das nações (lembremos da nação da Borgonha e da nação da Picardia da Universidade de
Paris) e a nação germânica, que era em Bolonha a nação “chique”, recolhia jovens de boa
família, pertencentes a diversas nações. Encontram-se nela nomes autenticamente poloneses.

27
A vida de cônego – aliás, Copérnico não residia no Capítulo, mas em
Heilsberg, com seu tio, junto a quem exercia as funções de médico – deixava
tempo o bastante para a meditação, para os estudos, para os cálculos. Pouco
a pouco, a obra imortal se elaborava.
Eu disse: meditações, cálculos... Copérnico, com efeito, não é um as-
trônomo prático. Ele fez pouquíssimas observações do céu.13 E seu sistema,
aliás, não está mais de acordo com os fenômenos do que aquele de Ptolomeu,
a quem ele teve a pretensão de substituir.14 [8]
Nos meios que se interessavam pelas “boas letras”, não se ignorou que,
na pessoa de Copérnico, o Capítulo de Frauenburg possuía um erudito de
valor. Assim, em 1514, quando a questão da reforma do calendário foi levan-
tada no Concílio de Latrão, Paulo de Middelburg, bispo de Fossombrone,
pediu a sua opinião. Copérnico, aliás, recusou-se a dá-la.
A ideia central de seu sistema parece ter-lhe ocorrido muito cedo.15
Talvez ainda na itália. Mas Copérnico havia compreendido que de nada valia
emitir uma ideia, aliás, de modo algum nova. Aquilo de que se precisava
era algo bastante diferente: uma teoria dos movimentos planetários, tão
desenvolvida, tão completa, tão técnica – tábuas e cálculos –, tão utilizável
quanto aquela de Ptolomeu.
É por volta de 1530 que Copérnico conclui a redação do De Revolutionibus.
O fato de Copérnico ter elaborado um novo sistema do mundo não
permaneceu por muito tempo desconhecido. Copérnico, aliás, de modo
algum o escondia. Parece mesmo que, após ter acabado a redação do De
Revolutionibus, fez circular entre seus amigos uma pequena apresentação
– Commentariolus – das grandes linhas do sistema.
Copérnico diz nesse texto que a astronomia de Eudoxo não havia con-
seguido explicar as variações nas distâncias dos planetas; que Ptolomeu

13. No total, ele fez 27 observações.


14. Apelt (1852:150) diz com razão: “Se perguntarmos: quais vantagens práticas a astronomia
havia tirado da teoria de Copérnico?, seria preciso responder: imediatamente, nenhuma.
O sistema de Copérnico, tal como ele saiu das mãos do seu autor, não está mais de acordo
– apesar de tudo o que se disse sobre isso – com o céu que o de Ptolomeu”.
15. Na Carta-Prefácio ao De Revolutionibus, ele diz ter mantido sua obra em segredo “não
nove anos, mas quatro vezes nove anos”, o que indica que ele teria concebido a ideia de
seu livro desde 1506. Talvez ele tenha, desde seu retorno da itália, começado a trabalhar
na elaboração da astronomia nova. Talvez o Commentariolus tivesse sido seu primeiro
esboço dela. Talvez...

28
teve que introduzir em seu sistema astronômico equantes, [9] o que, a seu
ver, era algo repreensível, e que, consequentemente, era preciso procurar
outra solução.16
Sete axiomas, ou petitiones, estabelecem em seguida os traços carac-
terísticos do novo sistema. Enfim, sete pequenos capítulos expõem: a or-
dem dos orbes; o triplo movimento da Terra; a vantagem de se referir os
movimentos não ao equinócio, mas às estrelas fixas; indicam o mecanismo
dos movimentos da Lua, dos planetas superiores, de Vênus e de Mercúrio;
e assinalam aos orbes e epiciclos dimensões determinadas. Tudo isso sem
provas ou demonstrações de qualquer espécie.17 Esse Commentariolus pa-
rece ter tido uma difusão bastante ampla. É provável – assim ao menos o
conta Tiraboschi (1824: 706) – que chegou até Roma onde, a partir 1533,
Johann Widmanstadt18 pôde expor ao papa Clemente Vii as bases da nova
astronomia. Em Roma, ninguém se comoveu com ela. Além disso, três
anos mais tarde, o cardeal arcebispo de Cápua, Nicolas Schönberg, escreve
a Copérnico (em 1º de novembro de 1536) exortando-o a [10] publicar suas
descobertas e rogando-lhe mandar fazer (a expensas do cardeal) uma cópia
de todos os seus trabalhos.19
Copérnico, entretanto, não tinha nenhuma vontade de publicar sua
obra. Ele temia o calumniatorum morsus. Todos os seus amigos e, sobretudo,
seu “caríssimo Tiedmann Giese, bispo de Kulm”, inutilmente o exortavam,
apresentavam-lhe seus deveres frente ao mundo erudito. Com sessenta anos
de idade, Copérnico não pregava nada mais além da tranquilidade.

16. Eis aqui algumas asserções características: “Valde enim absurdum videbatur coeleste
corpus in absolutissima rotunditate non semper aeque moveri” e, entretanto, os astrônomos
não conseguiram representar os movimentos celestes “nisi etiam aequantos quosdam circulos
imaginarentur”. “[...] quapropter non satis absoluta videbatur hujus modi speculatio neque
rationali satis concinna”. Cf. o Commentariolus editado por Curtze (1878:5-6) a partir de
um manuscrito de Viena que havia provavelmente pertencido a Tycho Brahe; uma melhor
edição foi feita em 1881 no Bihang till K. Svenska Vitenskabeliger Academie Handlingar (a
partir de um manuscrito descoberto no observatório de Estocolmo); enfim, uma edição
crítica dele foi feita por Prowe (1884, vol. ii:184-202).
17. As demonstrações deviam ser reservadas à própria obra: “Hic autem brevitatis causa
mathematicas demonstrationes omittendas arbitratus sum majori volumini destinatas”
(Curtze, 1878:7).
18. Sobre Widmanstadt, ver G. Waldau (1796).
19. Cf. Curtze (1878:33). ignora-se se essa cópia foi feita. Schönberg, aliás, morreu em 1537.

29
*
**
Em 1539, Joachim Rheticus, jovem professor na Universidade de
Wittenberg, chega a Frauenburg. Ele quer saber em que ponto está Copérnico.
Bem acolhido por este último, ele ali ficou dois anos estudando o manuscrito
do De Revolutionibus e trabalhando com aquele que doravante ele chamará
apenas de D. Doctor Praeceptor.
Joachim Rheticus é imediatamente convencido e conquistado.
Conquistado pela pessoa do erudito; convencido pela beleza de sua obra. A fim
de que a lâmpada não permanecesse por mais tempo debaixo do alqueire, ele
compõe uma versão resumida, que ele envia a seu mestre, Johannes Schöner,
e que este, imediatamente, manda imprimir em Danzig (em 1540). Nesse
relatório – trata-se da famosa Narratio prima20 – encontra-se, além de uma
exposição sucinta do sistema de Copérnico e algumas indicações biográficas
sobre este último, uma interpretação astrológica bastante curiosa do papel
das [11] variações da excentricidade do orbe terrestre. Fundamentalmente,
Rheticus – mas certamente é o próprio Copérnico quem fala por sua boca
– explica que, quando a excentricidade estava em seu máximo, a República
romana transformara-se em Monarquia. Conforme a excentricidade foi
decrescendo, o império romano igualmente declinou, e quando ela atingiu
seu valor médio, nasceu o islã e um outro grande império que, desde então,
não fez senão crescer. Mas quando a excentricidade chegar ao seu mínimo,
esse império se desmantelará rapidamente. Quando, enfim, a excentricidade
reencontrar novamente seu valor médio, poder-se-á esperar o retorno do
Cristo à terra, porque, então, o centro do orbe terrestre estará no mesmo
lugar em que estava no momento da criação do mundo. Esse cálculo, pros-
segue Rheticus, pouco difere da profecia de Elias, segundo a qual o mundo
durará seis mil anos, intervalo de tempo em que esta rota fortunae teria
tempo de fazer duas voltas.21

20. A Narratio prima de J. Rheticus foi reimpressa por ele na sequência de sua edição do De
Revolutionibus; exemplo seguido pelos editores posteriores.
21. Cf. a edição de Torun da Narratio prima (Rheticus, 1873 [1540]: 453). Os raciocínios desse
gênero não apresentam nada de inaudito: Roger Bacon já havia esboçado uma astrologia
histórica semelhante, fazendo depender dos astros até mesmo a história das religiões (Cf.
Duhem, 1909:169). E Campanella, sabemos disso, será abundante, nesse sentido.

30
Não escarneçamos: Kepler acreditava firmemente na astrologia e
Campanella está cheio de predições semelhantes.
A Narratio prima teve um enorme sucesso. Em 1541, sob os cuidados
do físico Aquiles Ganarus, uma nova edição apareceu na Basiléia. O mundo
erudito estava de posse de elementos da doutrina. As primeiras reações
foram mesmo muito favoráveis. Nesse sentido, Erasmus Reinhold,22 que
[12] em 1542 reeditou o manual de Peurbach, manifesta a esperança de ver
a astronomia restaurada por aquele que ele chama de um novo Ptolomeu.
Não havia mais sentido em ainda recusar a publicação do De Revolutionibus.
Copérnico acaba por consentir.23 O manuscrito remetido a Giese foi, por seus
cuidados, transmitido a Rheticus, que o mandou imprimir em Nüremberg.
Tiedemann Giese relata que Copérnico recebeu um exemplar do livro no
próprio dia de sua morte, em 24 de maio de 1543.
Tudo isso é conhecido. Sabe-se que Rheticus, chamado em 1542 a assumir
uma cátedra em Leipzig, incumbiu seu amigo Andreas Osiander, célebre
teólogo luterano e um pouco herético, de acompanhar a impressão do livro.
Sabe-se também que Osiander, que conhecia os ortodoxos melhor do que
ninguém – e que reconhecia os bem fundados temores de Copérnico –,
achou ser necessário prevenir-se contra a rabies theologorum e tomar suas
precauções. Aliás, a audácia de Copérnico o havia perturbado. A nova teoria
evidentemente contrariava as Escrituras e ele próprio era suficientemente
bom luterano – embora herético – para acreditar em Sua inspiração. Ele
também imaginou, a partir de 1541, uma solução muito elegante dessa di-
ficuldade, por meio da adoção de uma teoria fenomenista da ciência.24 [13]
A ciência – particularmente a astronomia –, pensa ele, tem por finalidade
e dever “salvar os fenômenos”. A questão do astrônomo não é investigar as

22. Cf. o Prefácio de E. Reinhold (1542). E. Reinhold foi professor na Universidade de


Wittenberg e editou, em 1551, sob o título de Tabulae Pruthenicae, novas tábuas astronô-
micas, calculadas ao mesmo tempo a partir dos métodos de Ptolomeu e de Copérnico.
23. Podemos supor que a publicação da Narratio prima, por J. Rheticus, feita sem nenhuma
dúvida com o conhecimento de Copérnico, foi um “balão de ensaio”.
24. Osiander expôs sua concepção em duas cartas que endereçou a Copérnico e a Rheticus
em 1541, em resposta a uma carta de Copérnico, recebida por ele em 1540. Kepler, que teve
acesso a essa correspondência, não diz o que Copérnico lhe havia escrito. Pode-se supor
que não havia ali nada de importante. Talvez ele anunciasse ali o lançamento da Narratio
prima. Ver Kepler (1858:246).

31
causas desconhecidas nem os movimentos reais dos planetas, mas relacionar
as observações por meio de hipóteses que permitam calcular as posições
(visíveis) dos astros. Logo, essas hipóteses – essa de Copérnico não mais do
que as outras – não têm de forma alguma a pretensão de serem verdadeiras,
nem verossímeis ou mesmo prováveis, e a melhor dentre elas é simplesmente
a mais cômoda ou a mais simples. É o que Osiander explica em uma Carta-
prefácio Ao leitor sobre as hipóteses deste livro, que ele acresce (sem assiná-la
com seu nome) à edição do De Revolutionibus.
Essa belíssima apresentação – que o autor poderia ter assinado sem
hesitar –, extremamente curiosa do ponto de vista da história da astronomia,
foi entretanto severamente julgada pelos amigos de Copérnico. Tiedmann
Giese atribui esse prefácio ao desejo do homem que não quer abandonar
suas crenças tradicionais e prefere cometer um verdadeiro erro, duplicado
por um abuso de confiança.
Giese queria um desmentido formal. Ele requereu ao magistrado de
Nüremberg a supressão da Carta ao leitor e queria ainda que se reimprimis-
sem as primeiras páginas do livro, indicando que as que ali estavam eram
falsas. Joachim Rheticus, pensa Giese, deveria encarregar-se desse assunto.
Ele também lhe envia sua queixa ao magistrado.25 [14]
É provável que Rheticus, de Leipzig, visse as coisas de modo mui-
to diferente do que Giese as via de Kulm, pois parece não ter feito nada.
A Carta foi mantida e a segunda edição do De Revolutionibus (feita na Basiléia
em 1566) não faz, não mais do que a primeira, menção a Osiander. Aliás,
embora tenha se acreditado que ela se originasse do próprio Copérnico,
essa declaração de fé fenomenista não enganou os iniciados,26 que diziam,
no máximo, que Copérnico buscava precaver-se.

25. A carta de Tiedemann Giese a J. Rheticus foi publicada na Cracóvia em 1615; reimpressa
desde então na edição de Varsóvia do De Revolutionibus (1854) e no Spicilegium Copernicanum
de Hippler (1873). Beckmann (1861) publicou uma tradução em alemão dessa carta, que
encontramos igualmente na tradução do De Revolutionibus de Menzzer (1879: 4).
26. Ramus havia atacado Copérnico a esse respeito, o que provocou uma resposta da parte
de Kepler em sua Apologia Tychonis contra Ursum e no praefatium de sua Astronomia nova
seu physica celestis tradita commentariis de motu stellae Martis (1609:136 e ss). É curioso
observar que Delambre não parece ter conhecido essa passagem de Kepler e que em sua
excelente Histoire de l’Astronomie moderne (1821) atribua a Carta ao leitor a Copérnico.

32
*
**
Na verdade, Copérnico tomava pouquíssimas precauções. Ele havia
acrescentado à edição de seu livro a carta que lhe havia escrito o cardeal de
Cápua. Dedicara seu livro ao papa Paulo iii. Mas, na belíssima e nobilíssi-
ma Carta-dedicatória, ele reivindica fortemente os direitos da ciência e da
filosofia. Mathemata mathematicis scribuntur, proclama ele; os ignorantes
não devem senão se calar. E a alusão que ele faz a Lactâncio, ridicularizado
por não querer crer na esfericidade da Terra, é clara: não basta ser bom
cristão e nem mesmo teólogo para se meter em assuntos de astronomia. [15]
Na mesma Carta-dedicatória, Copérnico explica por que empreendeu
a elaboração de uma nova teoria dos movimentos planetários. Foi, diz ele,
o desacordo reinante entre os matemáticos, a multiplicidade dos sistemas
astronômicos (Copérnico enumera os sistemas de esferas homocêntricas,
de epiciclos, de excêntricas), bem como o seu fracasso (nenhum pôde re-
presentar exatamente os movimentos aparentes nem permanecer fiel ao
princípio do movimento circular dos astros), que lhe fizeram pensar que
os “matemáticos” haviam ou negligenciado algum princípio essencial ou,
ao contrário, introduzido em suas construções algum princípio inútil. isso
explicaria seu fracasso. Mas onde estava seu erro?
Copérnico diz que, para achar esse erro, havia lido todos os escritos de
filósofos que tratassem da questão. Descobriu que alguns dentre eles acre-
ditavam no movimento da Terra. isso o encorajou a examinar por contra
própria essa hipótese e ver se ela não permitiria uma melhor explicação dos
fenômenos celestes. Ele achou, então, que esse era bem o caso e que, além
do mais, recorrendo a essa hipótese, obtinha-se um Universo perfeitamente
ordenado. O erro dos matemáticos foi, assim, ter feito da Terra o centro dos
movimentos celestes.
Autor de uma das melhores histórias da astronomia que possuímos,
Dreyer escreve a esse propósito:
Copérnico teria, primeiramente, notado o quanto eram grandes as
divergências de opiniões no que concerne aos movimentos planetários;
em seguida, ele teria notado que entre eles alguns haviam atribuído

33
um movimento à Terra; finalmente, ele teria tentado ver se uma tal
suposição podia resolver as coisas (Dreyer, 1906:161).

De forma melancólica, Dreyer acrescenta: [16] “nós mesmos poderí-


amos tê-lo encontrado, mesmo se ele não nos o tivesse”.
Dreyer, que visivelmente tem pouquíssima confiança na sinceridade
com que Copérnico escreveu ao papa, estima que as informações que ele nos
fornece não permitem responder às seguintes questões: como Copérnico veio
a colocar o Sol no centro do mundo? Ele foi influenciado pela leitura dos
antigos filósofos?27 Ele deveu a Aristarco de Samos a primeira ideia de seu
sistema astronômico?28 Ou, ao contrário, teria ele primeiramente elaborado
a astronomia heliocêntrica (partindo diretamente daquela de Ptolomeu) e
não teria encontrado em suas leituras senão encorajamento e reconforto?
É certo que o relato de Copérnico é pleno de reticências. Acredito,
todavia, que se ele não nos fornece a história do pensamento copernicano,
ele nos fornece, contudo, algumas indicações preciosas sobre os motivos e
os móveis desse pensamento.
Copérnico nos diz – e de maneira muito clara29 – o que ele censura em
Ptolomeu, bem como em todos os outros sistemas da astronomia antiga e
medieval: eles não podem [17] permanecer fiéis ao princípio do movimen-
to circular. O que, no pensamento de Copérnico, quer dizer que eles são
fisicamente impossíveis.30

*
**
27. O fato de os filósofos antigos acreditarem no movimento da Terra foi sempre conhecido.
Macróbio, Martianus Capella, J. Scoto de Erígena, Alberto, o Grande e São Tomás falam
disso. Aliás, sobre isso, bastaria citar Aristóteles e Ptolomeu.
28. Copérnico conhecia Aristarco de Samos – assim como nós – por meio de Arquimedes.
Mas ele não era o único a ter lido Arquimedes. Sobre Aristarco de Samos, ver Heath (1913).
29. No Commentariolus, ele estabelece o princípio do movimento circular como base da
astronomia. Nada lhe parece menos perdoável que o emprego de equantes. E ele o dirá
novamente no De Revolutionibus. Rheticus, aliás, afirma-o também na sua Narratio prima
(1873 [1540]: 43).
30. Cf. em Duhem (1913:397 e ss) a história da luta entre os epiciclos e as excêntricas.
Contrariamente ao que pensa Duhem, a vitória alcançada pela primeira teoria sobre sua
rival (malgrado a equivalência matemática entre elas) se explica pelo fato de que somente
a primeira permitia imaginar um mecanismo que explicasse os movimentos planetários.

34
No corpo do livro (Livro i, cap. 10), expondo as dificuldades inerentes
à teoria dos movimentos de Mercúrio e de Vênus, Copérnico relembra a
concepção mencionada por Martianus Capella, segundo a qual esses dois
planetas teriam o centro de seus movimentos no Sol. Ele acrescenta que
aquele que se valesse disso para relacionar os movimentos de Saturno, de
Júpiter e Marte ao mesmo centro, encontraria a explicação real de seus mo-
vimentos. Esta é uma reminiscência da via que havia efetivamente seguido
seu pensamento?
Na Narratio prima, Rheticus (1873 [1540]: 461) diz que foi a diferença
de luminosidade do planeta Marte levantando-se pela manhã e à noite que
havia mostrado a Copérnico que esse planeta não se movia ao redor da
Terra, visto que seu epiciclo não podia explicar uma variação tão grande de
distância. isso parece indicar a mesma démarche de pensamento. Todavia,
se Copérnico tivesse raciocinado dessa maneira, teria construído não a
astronomia copernicana, mas aquela tycho-brahiana. [18]
Talvez, assim como o indicam Apelt (1851) e Dreyer (1906), ele tenha
sido tocado pelo fato de que o movimento do Sol sobre o zodíaco e aquele
dos centros dos epiciclos dos planetas inferiores realizassem-se no mesmo
período, quer dizer, em um ano, enquanto que o período de revolução dos
três planetas superiores sobre seus epiciclos fosse igual ao período sinódico,
quer dizer, aquele dos tempos entre duas oposições sucessivas em relação
ao Sol. Essa relação curiosa entre os planetas e o Sol tornou-lhe possível
conceber a ideia de que os deferentes dos dois planetas inferiores e os epi-
ciclos dos três planetas superiores não eram senão a projeção da órbita da
Terra movendo-se em torno do Sol. Talvez... Como já o disse, não sabemos
nada a esse respeito.

*
**
À astronomia de seu tempo, Copérnico censura sua grande complicação.
Mais vale aceitar o movimento da Terra, por mais absurdo que isso pareça,
do que deixar seu espírito ser dilacerado e perturbado por uma quantida-
de quase infinita de círculos [cycles]. Com efeito, quando se vê a imagem

35
esquemática do sistema copernicano, é-se tocado por sua simplicidade e
sua beleza estética. Uma impressão enganadora, entretanto: o número de
círculos [cycles] não era tão grande na astronomia ptolomaica quanto diz
Copérnico. Aliás, eles não estavam ausentes de sua própria astronomia
que, na verdade, mantém trinta e quatro.31 Seis movimentos, eis [19] tudo o
que se ganha com ela. Aqueles que pensaram que isso não valia a pena não
merecem nossa condenação.
Uma outra objeção de Copérnico, filosófica dessa vez, não é mais con-
tundente. Ele diz – e tem toda razão – que é absurdo querer mover o lugar
e não o localizado. Consequentemente o céu, o lugar do Universo, deve
estar imóvel. Consequentemente, seria preciso concluir, o céu móvel não é
o lugar do Universo. Logo, é preciso admitir um céu imóvel.
As provas que Copérnico alega em favor de sua doutrina são bastante
curiosas. Rigorosamente, elas não provam absolutamente nada. Do ponto de
vista do adversário, elas não se sustentam. Seus contra-argumentos físicos
são – sempre do ponto de vista do adversário –, igualmente frágeis.
Copérnico mostra que, do ponto de vista ótico, é impossível decidir se
é o observador ou o observado que está em movimento. Muito bem, poderia
responder seu adversário, a relatividade ótica do movimento (bastante co-
nhecida, aliás) implica sem dúvida que o movimento da Terra seja possível
(oticamente); mas ela também implica que a admissão desse movimento
– sempre do ponto de vista ótico – não apresenta nenhuma vantagem em
relação à teoria contrária.32
Contra a objeção física de que o movimento rotacional da Terra en-
gendraria uma imensa força centrífuga que a faria voar em estilhaços etc.,
Copérnico responde que se poderia aplicar esse mesmo raciocínio ao mo-
vimento dos céus. De maneira alguma. O movimento dos céus, concebidos
como não pesados, não poderia absolutamente [20] engendrar tais forças; e,
visto que, além disso, os céus, dotados de movimento circular por natureza,
não exprimiriam e não realizariam, em sua revolução, senão sua natureza
– o que não pode dar lugar a nenhuma perturbação.

31. Sete para Mercúrio, cinco para Vênus, três para a Terra, cinco para Marte, cinco para
Júpiter, cinco para Saturno e quatro para a Lua.
32. É o que dirá Tycho Brahe.

36
Não escarneçamos: é de maneira muito séria que o próprio Copérnico
emprega o raciocínio acima; de pleno acordo com a física peripatética, ele
opõe o movimento natural ao movimento violento. Aí está um dos funda-
mentos, ou mais precisamente, aí está o fundamento de toda sua dinâmica.
O movimento circular, pensa ele, é natural. O movimento retilíneo é contra
a natureza. Somente o movimento circular pode, por consequência, ser
empregado em mecânica celeste. Somente uma mecânica celeste que faça
uso apenas de movimentos circulares pode ser verdadeira.
A dinâmica de Copérnico, vê-se claramente, não tem nada de “moderna”.
E, entretanto, um abismo separa-o de seus contemporâneos. É que, esponta-
neamente e sem hesitação, ele aplica ao Universo um ponto de vista estético:
de uma estética geométrica; no mais, talvez sem observá-lo e em todo caso
sem nos dizê-lo expressis verbis, Copérnico faz uma física geométrica; mais
exatamente, uma física da geometria ótica. Assim, duplamente, ele trans-
forma a noção de forma: lá onde a física antiga falava de forma substancial,
Copérnico entende: forma geométrica. As consequências, percebe-se, são
graves: se, para física antiga, era a natureza específica da forma (e a matéria
correspondente) substancial que determinava o movimento circular dos
corpos celestes, para Copérnico, será sua forma geométrica, a esfericidade,
que doravante desempenhará esse papel. Ora, [21] se a esfericidade, geo-
metricamente a forma mais perfeita e buscada, por essa razão, por todos
os corpos,33 acarreta, naturalmente, o movimento mais perfeito – natural –,
quer dizer, o movimento circular, fica evidente ao mesmo tempo: a) que este
raciocínio obriga atribuir à Terra e aos astros o mesmo movimento circular
(e esta é a razão pela qual Copérnico insiste tão delongadamente na forma
esférica da Terra, coisa da qual em seu tempo ninguém duvidava e que podia,
consequentemente – não fosse sua importância cardial –, ser tratada com
menos insistência); b) que as mesmas leis do movimento se aplicam aos
astros e à Terra; c) que, participando da mesma forma circular, submetida
às mesmas leis do movimento, a Terra não se opõe mais aos astros como
um mundo à parte, mas forma com eles um só Universo.

33. Copérnico atribui à matéria um desejo natural de se reunir. O semelhante atrai o


semelhante.

37
A geometrização da noção de forma recolocava a Terra entre os astros
e, por assim dizer, transportava-a aos céus.
Compreende-se agora por que Copérnico atribui uma importância
tão grande à regra – ao princípio – do movimento uniformemente circular.
Tratava-se, para ele, do único meio de colocar em marcha a machina mundi.
Na dinâmica de Copérnico, dinâmica curiosa por excelência – talvez ele a
tenha herdado de Nicolau de Cusa –, o movimento (circular) efetua-se em
virtude da forma (circular) dos corpos.34 Os corpos giram porque eles [22]
são redondos. Sem outra razão. Sem motor exterior.35 Coloque um corpo
redondo no espaço e ele vai girar. Coloque aí um orbe: ele vai girar sobre
si mesmo, descrever revoluções sem ter necessidade nem de motor que
acarrete seu movimento, nem de centro físico que o sustente. E essa é a razão
dinâmica pela qual Copérnico pode, após ter expulsado a Terra do centro
dos movimentos do Universo, deixá-lo vazio.36 Pois, sabe-se muito bem, se
Copérnico coloca o Sol no centro do Universo, de modo algum o coloca
no centro dos movimentos. O Sol, pode-se dizer, não desempenha nenhum
papel na mecânica celeste de Copérnico. Seu papel é totalmente outro: ele é
ótico. Ele clareia o Universo. E isso é tudo.
Estou errado em dizer: isso é tudo. Pois, para Copérnico, a função
preenchida pelo Sol, aquela de iluminar e clarear o mundo, é de extrema
importância. É ela que assegura ao Sol o lugar que ele ocupa no Universo:
primeiro em dignidade e central pela posição. Pois é para clarear o mundo
que o Sol está colocado em seu centro. [23] Possivelmente a posição mais
propícia para esse efeito. Está aí a razão – a única – que possui Copérnico.

34. Ver Duhem (1909, 301 e ss). A unidade do Universo submetido às mesmas leis, a Terra
assimilada aos astros, essas também são ideias de Nicolau de Cusa (1930, ii, p. 17 § 11 e 12;
p. 150 e ss; p. 153 e ss). A aproximação, aliás, já havia sido feita por Riccioli (1651). Mas não
devemos exagerar; a astronomia de Nicolau de Cusa inexiste. E seus princípios se opõem a
Copérnico tanto quanto, e mais ainda, a Ptolomeu. O mundo de Nicolau de Cusa é indeter-
minado e não tem centro. Aquele de Copérnico tem um e o Sol se encontra nele. A Terra é
móvel em N. de Cusa, porque nada está imóvel no Universo; o Sol, por outro lado, move-se
mais ou menos como em Ptolomeu. O Sol é imóvel em Copérnico, etc.
35. A astronomia de Copérnico já não necessita do primeiro motor imóvel de Aristóteles.
36. Os movimentos dos astros estão, na astronomia de Copérnico, relacionados não ao
Sol, mas ao centro dos movimentos da Terra, o que fez com que se dissesse que a Terra
desempenha em Copérnico um papel tão grande quanto em Ptolomeu. É justo dizê-lo, mas
esse papel não é o mesmo: físico em Ptolomeu, ele é ótico em Copérnico.

38
E não se trata de uma razão puramente científica. Não se trata mesmo, de
modo algum, de uma razão científica.
Velhas tradições – tradição da metafísica da luz (que, durante toda a
idade Média acompanha e sustenta o estudo da ótica geométrica), remi-
niscências platônicas e neoplatônicas (o Sol visível representando o Sol
invisível) – podem apenas, a meu ver, explicar a emoção, o lirismo que toma
conta de Copérnico quando ele fala do Sol. Ele o adora e quase o diviniza.
A luminária esplêndida que ilumina o mundo torna-se o centro ontológico
e, por causa disso, o centro geométrico do Universo. Também a Renascença,
que herdou da revolução copernicana uma espécie de heliolatria, que viu
no Sol uma manifestação divina e que, por outro lado, sentiu-se juntamen-
te com a Terra lançada aos céus, permaneceu fiel à própria inspiração do
grande astrônomo.
Copérnico, conforme já o disse Dreyer, não é copernicano. Ele não é
tampouco um homem moderno. Seu Universo não é o espaço infinito, é
limitado, tanto quanto aquele de Aristóteles ou de Peurbach. Maior, certa-
mente, mas finito, inteiramente contido na e pela esfera das fixas.37 O Sol
está no centro. E em torno do Sol sobrepõem-se os orbes que carregam os
planetas, orbes tão sólidos e tão reais quanto aqueles da astronomia medieval.
Os orbes giram em virtude de sua forma, levando consigo os “errantes”, que
neles estão presos. Ordem esplêndida, geometria luminosa, cosmo-ótica
substituindo a astrobiologia dos antigos.

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BIHANG TILL K. Svenska Vitenskabeliger Academie Handlingar. Vol. Vi,
nº 12, 1881.

37. É a razão pela qual a esfera das fixas não gira.

39
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BRUDzEWO, Alberto de. Commentariolum super theoricas planetarum
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40
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WALDAU, G. Johannes Albrecht Widmanstadt oesterreichischer und grosser
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41
2

Figuras da atualidade e formas do pensamento


em Alexandre Koyré
Marlon Salomon1

O presente e o passado
Quando se trata de destacar a contribuição de Alexandre Koyré à me-
todologia da história das ciências, insiste-se frequentemente em seu esforço
inovador de estudar as antigas teorias científicas em seu próprio tempo ou,
como ele mesmo afirmou em 1951, em “recolocar os trabalhos estudados
em seu meio intelectual e espiritual, interpretá-los em função dos hábitos
mentais, das preferências e das aversões de seus autores” (1982 [1951]:14).
Sabemos, todavia, que essa démarche não era exclusiva à história das ciências,
visto que, desde cedo, ele buscava elaborá-la em relação a outros domínios
da história do pensamento. Em 1933, ele afirmava:
O que há de mais difícil – e mais necessário – quando se estuda um
pensamento que não é o nosso, é – como o mostrou admiravelmente um
grande historiador – menos aprender o que não se sabe e o que sabia o
pensador em questão, que de esquecer o que nós sabemos ou acredita-

1. Professor da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal de Goiás. Os resultados deste artigo fazem parte de uma pesquisa de pós-doutora-
mento realizada na EHESS, em Paris, que contou com o apoio da CAPES, através de uma
bolsa de Estágio Sênior. Este trabalho integra um estudo mais amplo sobre a concepção de
história de Alexandre Koyré, que conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) através de uma bolsa de produtividade. Parte deste texto
foi publicada sob o título “Alexandre Koyré, history and actuality” in Pisano, Raffaele
(Org.). Hypotheses and Perspectives within History and Philosophy of Science. Hommage to
Alexandre Koyré, 1964-2014. Springer, 2015.

43
mos saber. Às vezes, acrescentemos, é necessário não apenas esquecer
verdades que se tornaram partes integrantes do nosso pensamento,
mas mesmo adotar certos modos, certas categorias de raciocínio ou ao
menos certos princípios metafísicos que, para pessoas de uma época
passada eram tão válidos e formavam bases tão seguras de raciocínio
e de pesquisa quanto são para nós os princípios da física matemática
(Koyré, 1971 [1933]: 77).

Por essa razão, para Pietro Redondi, a originalidade do autor de Estudos


Galilaicos reside menos na elaboração e definição filosófica do conceito de
revolução científica, do que “em sua metodologia histórica, que permitiu
dar um conteúdo a suas interpretações gerais” (Redondi, 1986, xxiii). E foi
sem dúvida nessa nova maneira de abordar o passado da ciência, conside-
rando-a em sua própria estrutura conceitual, em sua coerência e em seu
aspecto sistemático, que os historiadores do pós-guerra encontraram uma
nova chave de interpretação das antigas teorias, daquelas teorias caídas em
desuso e proscritas no presente. Era preciso doravante evitar “modernizar” a
ciência do passado, quer dizer, traduzir em nossos termos precisos e claros,
antigas noções imprecisas e obscuras e resguardar-se assim do anacronismo;
evitar procurar no passado aqueles que, supostamente, adiantando-se em
relação a seus contemporâneos, anunciavam o caminho que a ciência futura
perseguiria, e falsificar assim a história.
Essa nova atitude perante o passado não deve, todavia, obscurecer o papel
que a atualidade ou modernidade da ciência desempenhou na elaboração
de uma nova concepção de história. A crítica do anacronismo, do precursor
e da modernização do passado – que pressupõe um distanciamento crítico
em relação ao tempo em que se encontra o historiador – não transforma
Koyré no herdeiro espiritual do objetivismo histórico do século XiX e dos
promotores da história como “ciência pura”. Minha hipótese é a de que a
elaboração dessa nova concepção de história não decorreu de um afastamento
ou de uma distinção metódica entre presente e passado, mas, ao contrário – e
o que pode soar paradoxal – de uma aproximação entre passado e presente,
de uma nova maneira de articular o atual e o inatual. A novidade teórica e
metodológica de sua concepção história esteve indissociavelmente ligada à
atualidade da ciência. E sob ao menos dois aspectos.

44
Antes de passar a sua análise, gostaria, todavia, de recordar que o modo
de articular a relação entre presente e passado viu-se profundamente alte-
rado, no entreguerras, na esteira das transformações que então marcavam
o pensamento histórico. O postulado de uma separação radical entre pre-
sente e passado por meio do qual se pretendeu fundar, no século XiX, a
história como ciência segura e rigorosa, era posto em questão por todos os
lados. “Se pretendemos conhecer o passado, escrevia Fustel de Coulanges
em 1875, devemos começar por afastar do espírito tudo o que diga respeito
ao presente” (Coulanges, 2003 [1875]: 307). Era exatamente essa exigência,
francamente partilhada no século XiX pelos promotores da história como
ciência pura e objetiva, que era posta em questão e, com ela, ruía o ideal de
história como ciência do passado. A possibilidade de reformar o pensamento
histórico passava por uma nova aliança entre o mundo dos vivos e o mundo
dos mortos. “É em função da vida que ela [a história] interroga o morto”,
escrevia Lucien Febvre (2009 [1949]: 373). Presente e passado intricavam-se
de modo que não era mais possível separá-los absolutamente. Como insistia
Marc Bloch, não apenas a “própria ideia de que o passado, como tal, possa
ser objeto da ciência é absurda”, quanto é verdadeiro afirmar que aquele que
“se ater ao presente, ao atual, não compreenderá o atual” – aqui, ele citava
Michelet (Bloch, 2006 [1942]: 875-876). Não era apenas por meio do presente
que o historiador conhecia e interpretava o passado, mas o conhecimento
histórico tornava-se um meio de “organizar o passado”. “Organizar o passado”,
insistia Lucien Febvre, “em função do presente” (Febvre, 2009 [1949]: 373).
Essa era, para ele, a própria “função social” da história.
Não devemos, todavia, reduzir esse novo modo de articular o atual e
o inatual – cuja condição de possibilidade reside em uma nova maneira de
compreender o próprio tempo histórico – a uma instituição historiográfica
ou escola histórica daquele período. Essa intricação, por exemplo, colocava
imediatamente o problema da objetividade histórica, logo, da legitimidade
epistemológica do conhecimento histórico. Seria exatamente esse o tema
da tese apresentada por Raymond Aron, no final dos anos 30 – e que Koyré
comentaria em 1946 –, sobre os limites da objetividade histórica. Tratava-
se, portanto, de um problema mais amplo então ligado à transformação
epistêmica do pensamento histórico (Gattinara, 1998). A historiografia das

45
ciências não foi indiferente a esse problema, se pensarmos, por exemplo, nos
trabalhos de Gaston Bachelard, Helène Metzger, Robert Lenoble e Alexandre
Koyré. No entanto, no interior desses trabalhos, mais do que em qualquer
outro domínio historiográfico, o problema se colocava de uma maneira ao
mesmo tempo singular e radical. Singular, na medida em que o estudo do
passado da ciência não poderia ser indiferente à atualidade, particularmen-
te, às radicais transformações epistemológicas em curso com as teorias da
relatividade e dos quanta, pois a definição do que era a ciência, cuja história
caberia escrever, alterava-se profundamente. O presente transformava o
objeto de que deveria tratar o historiador e essa transformação não era sem
efeito sobre seu estatuto no passado. Radical, na medida em que no interior
desse estudo, o historiador não poderia fazer economia da verdade.
Pouco se insistiu em refletir sobre o papel da atualidade no trabalho de
Alexandre Koyré. Em outro estudo, procuramos considerar se as profundas
transformações em curso na ciência desde meados da década de 1920 não
permitiriam compreender de que modo torna-se possível a constituição de
uma nova história das ciências no entreguerras. Essas transformações alteram
e reconfiguram a maneira como se compreendia o passado da ciência e soli-
citam a reescrita de sua história. O modo como ele define sua concepção de
história, como tematiza o pensamento científico e filosófico e como formula
o conceito de revolução científica parece ser atravessado por essa figura. Se,
todavia, essas transformações radicais pelas quais passavam então as ciên-
cias permitem compreender o que torna possível e até mesmo reconstituir o
horizonte em que se situa a perspectiva do autor de La philosophie de Jacob
Boehme, como compreender o fato de que sua escrita da história não esteja
assente nas normas do novo saber e tampouco não retome o programa me-
tódico do século XiX? Como compreender que a atualidade da ciência não se
transforme no tribunal da razão a partir do qual se julgaria o seu passado, tal
como ocorre, nessa mesma época, com a epistemologia histórica de Gaston
Bachelard? É que, para Koyré, ela torna possível ao menos duas perspectivas
sobre o passado da ciência, cuja distinção e contornos exatos seria preciso
delimitar claramente, sob o risco de transformar a história do pensamento
científico em uma reflexão filosófica sem objeto. É, portanto, do objeto e da
própria história das ciências como saber singular de que aí se trata.

46
O atual e uma primeira atitude em relação ao passado
Essa distinção é explicitamente estabelecida em uma conferência de 1954.
A história do pensamento científico ou técnico é “um cemitério de erros, ou
até mesmo uma coleção de monstra relegados com razão ao quarto de des-
pejo e bons apenas para um canteiro de demolição. A graveyard of forgotten
theories ou mesmo um capítulo da Geschichte der menschlichen Dummheit”
(Koyré, 1991 [1955]: 205). Eis aqui uma primeira perspectiva do passado da
ciência, que decorre imediatamente do efeito da atualidade. Koyré define
que esta, antes de corresponder “à” história do pensamento científico ou
técnico, é uma disposição muito precisa em relação ao seu passado. Embora
se trate de uma atitude recorrente, essa é a conduta espontânea do técnico e
do cientista, daquele que a partir do horizonte de seu trabalho atual, lança
um olhar para o passado.
É bastante normal que para quem a partir do presente, e até mesmo
do futuro para onde dirige seu trabalho, lança um olhar na direção
do passado – um passado já há muito tempo ultrapassado – as teorias
antigas apareçam como monstros incompreensíveis, ridículas e dis-
formes. De fato, remontando a corrente do tempo, ele as reencontra
no momento de sua morte, velhas, ressequidas, esclerosadas. Ele as
vê, em resumo, como a Belle Heaumière que Rodin mostrou para nós
(Koyré, 1991 [1955]: 205).

É que a perspectiva do cientista encontra-se fundada no laboratório da


ciência e em sua última linguagem. A partir da perspectiva inscrita nesse
espaço, o que se encontra no passado são erros e corpos disformes. Não
apenas sem forma, mas esclerosados e sem vida. Cadáveres teóricos que
servem apenas para ser sepultados em um mausoléu de teorias esqueci-
das. Não há mais lugar para essas teorias no espaço de trabalho da ciência
atual. Elas sequer podem ser tratadas como teorias, pois não são dignas de
figurar nos espaços atuais da razão. O abrigo exclusivo que o racionalismo
corrente lhes reserva é o espaço do gabinete de curiosidades. Para o racio-
nalismo científico em marcha nos lugares atuais da ciência, o passado da
ciência se encontra petrificado, morto, envelhecido como a mulher com o
corpo decrépito e desprovida de beleza esculpida por Rodin, cuja imagem

47
ele evoca em sua análise. As velhas teorias não são legítimas do ponto de
vista lógico e dignas de interesse do ponto de vista racional. Um museu da
estupidez humana seria o espaço sem dúvida mais adequado para receber
essas figuras negativas da razão.
Por isso, Koyré caracteriza essa atitude de “normal”. Trata-se de uma
perspectiva sobre uma forma de pensar inatual a partir das normas do pensar
atual. Trata-se de uma evidência. Como seria possível não pensar a história
das ciências a partir dessa evidência, segundo a qual as conclusões a que
chegaram os cientistas do passado estavam erradas ou eram insuficientes?
Além disso, é preciso considerar que as novas teorias científicas nascem em
oposição e em luta contra as formas correntes do saber e as concepções de
mundo que elas pressupõem (Koyré, 1991 [1955]: 204). Elas nascem, portan-
to, destruindo-as e enterrando-as. O esforço histórico-filosófico de Koyré
é indissociável, como veremos, de uma crítica e de uma desnaturalização
dessa evidência.
A data em que essa conferência foi pronunciada não deve passar des-
percebida. É que apenas três anos antes, em 1951, Gaston Bachelard proferiu
no Palais de la Découverte, em Paris, a conferência que se tornaria célebre e
que marcaria a formação metodológica das novas gerações de epistemólogos
franceses, L’actualité de l’histoire des sciences. Logo no início dessa conferên-
cia, ele afirmava que “a ciência contemporânea pode se designar, por suas
descobertas revolucionárias, como uma liquidação do passado” (Bachelard,
1972 [1951]: 137) – note-se que Koyré falaria três anos mais tarde em “um
canteiro de demolição”. Mas o mais importante é que Bachelard definia aí
que o historiador das ciências deveria “aprender seu ofício” na atualidade da
ciência cuja história ele pretendia estudar. “O drama das grandes descobertas”
científicas seria mais facilmente conhecido após ter se “assistido ao quinto
ato” (Bachelard, 1972 [1951]: 142). Assim, no passado, apenas interessaria ao
epistemólogo aquilo que ainda permanecia atual. isso porque, para Bachelard,
“a ciência evolui no sentido de um progresso manifesto”. Daí que a história
das ciências seja “necessariamente a determinação dos sucessivos valores
do progresso do pensamento científico” (Bachelard, 1972 [1951]: 139). Para
determinar esses valores, o historiador deveria, ao contrário de todas as
recomendações, julgar. E era no conhecimento do presente que ele deveria

48
aprender seu ofício de magistrado e a jurisprudência em que deveria basear
suas sentenças. “O historiador das ciências, para bem julgar o passado, deve
compreender o presente”2 (Bachelard 1972 [1951]: 142).
Bachelard não apenas fundava sua epistemologia histórica no presente
de uma ciência, como condenava, de um ponto de vista filosófico, o estudo
de teorias proscritas. De um lado, a história de uma teoria que repousa sobre
um erro fundamental, como a do flogístico, argumentava ele em outro texto
publicado nesse mesmo ano, não tem nenhum interesse de um ponto de
vista racional. “Um epistemólogo apenas pode se interessar por ela porque
aí encontra motivos de psicanálise do conhecimento objetivo” (Bachelard,
1951:36). De outro, querer se dedicar à coerência de sistemas de pensamento
desaparecidos, como aquele de um Ptolomeu, “seria apenas [fazer] obra
de historiador” (Bachelard, 1951:36). Esse estudo histórico seria somente
trabalho de erudição, sem interesse epistemológico e que não apresentaria
qualquer importância racional, visto que estudaria a pré-história da ciência
e trataria de “um espírito desaparecido”, pré-lógico.3
E embora Koyré não faça em nenhum momento alusão a esse texto de
1951, não podemos deixar de constatar as implicações de seus pronunciamen-
tos para uma história do pensamento científico. A perspectiva bachelardiana
assentava-se na modernidade do Palais de la Découverte, como sabemos, no
lugar da “ciência viva”. Era aí que se erguia sua epistemologia, visto que aí se
traçava o limite claro entre ciência e não ciência, o corte que determinava
para a filosofia a separação entre valores racionais e primitivos. Embora
não seja esse aqui o meu objetivo, não poderia deixar de apontar nesse
argumento uma concepção que acentuava a antiga oposição entre história
e filosofia – não é, certamente, aí que uma história filosófica encontraria
seus termos – oposição que, por razões inversamente opostas, encontrava
nos Annales seus promotores do lado da história. Ao mesmo tempo, deve-
mos lembrar que Koyré, desde a década de 1930, dedicava-se ao estudo de
teorias que Bachelard definia como perimées e ao estudo de um tempo que

2. O “caráter efêmero da modernidade da ciência”, sem dúvida, implicava um fundamento


movediço dessa teoria da história, ele o reconhecia (Bachelard, 1972 [1951]: 142).
3. Bachelard não emprega a expressão de Lévy-Bruhl, mas é difícil não deixar de perceber
em sua distinção entre ciência e pré-ciência a oposição entre pensamento lógico e pré-lógico.

49
ele inscrevia na pré-história do seu calendário epistemológico. Koyré, no
entanto, desde seus primeiros estudos sobre o passado da ciência, mantinha-
se distante dos psiquismos e insistia no valor filosófico do estudo histórico
da ciência (Redondi, 1983). Por isso, não deixa de ser interessante observar
que Koyré, em 1954, estabeleça essa distinção entre duas atitudes perante o
passado da ciência e, ao mesmo tempo, formule outro papel metodológico
para o presente em seu estudo histórico. Daí exatamente o problema: como
o presente seria teoricamente importante para a história das ciências se, do
ponto de vista da opinião científica, ele conduzia a uma perspectiva escle-
rosada do passado e, do ponto de vista filosófico, a uma compreensão que
não reconhecia no passado a existência de valores racionais?

O atual e uma segunda atitude perante o passado


Koyré distingue essa atitude comum e “normal” em relação ao passado
da ciência, daquela do historiador do pensamento científico e técnico.
Só o historiador é que a encontra [a Belle Heaumière] em sua primeira
e gloriosa juventude, em todo o esplendor de sua beleza. Só o historia-
dor é que, refazendo e recorrendo à evolução da ciência, apreende as
teorias do passado em seu nascimento e vive, com elas, o élan criador
do pensamento (Koyré, 1991 [1955]: 205).

O ponto de vista de sua análise não coincide com aquele do cientista.


Ele pode, assim, apreender as velhas teorias não mais em seu momento
de agonia, mas no momento de seu nascimento. Daí que o historiador do
pensamento científico tenha que pensar o passado sob o ponto de vista que
não aquele da atualidade do inatual. É que o historiador precisa deslocar sua
perspectiva do laboratório da ciência, fundá-la em outro espaço e construí-la
a partir de outra linguagem.
isso não quer dizer que Koyré descarte a importância do presente na
história das ciências. Mas as normas do conhecimento atual não devem
instruir o historiador a ponto de conduzir sua análise do passado da ciência.
isso não quer dizer que ele retome o programa fusteliano, segundo o qual
“se deve exigir de quem se dedica ao estudo da história [...] uma renúncia

50
ao presente; um esquecimento total das questões atuais”.4 A atualidade tem
outra função teórica. Uma história das ciências é apenas possível por ter-
mos “nós próprios vividos duas ou três crises profundas de nosso modo de
pensar” (Koyré, 1982 [1951]: 13). As revoluções científicas contemporâneas
introduzem uma fratura na evolução das ciências; e essa fratura introduz
um deslocamento em que se produz um plano de pensamento a partir do
qual é possível diferenciar formas de pensamento no passado, com estruturas
próprias, normas próprias. Nosso modo de pensar é afetado, é equipado
pelas revoluções contemporâneas.
Não vivemos mais no mundo das ideias newtonianas, nem mesmo
maxwellianas, daí sermos capazes de encará-las de dentro e de fora, de
analisar suas estruturas, de perceber as causas de suas insuficiências.
Estamos mais bem aparelhados para compreender o sentido das espe-
culações medievais sobre a composição do contínuo e a ‘latitude das
formas’, a evolução da estrutura do pensamento matemático e físico no
decorrer do século passado, em seu esforço de criação de novas formas
de raciocínio (Koyré, 1982 [1951]: 13).

É justamente essa exterioridade, esse pensamento do fora que é chave


para Koyré no presente. Ela permite diferenciar planos ou estruturas de
pensamento no passado, os contornos precisos que permitem delimitar
a configuração de diferentes ontologias (Jorland, 1981:27-70). Ao mesmo
tempo, as novas formas de raciocínio permitem pensar de outro modo
as concepções de outrora. É essa exterioridade que permite diferenciar
certos “modos de raciocínio”, “princípios metafísicos”, que o historiador
precisa adotar quando “estuda um pensamento que não é o nosso”. É ela
que permite reconhecer que “as bases seguras de raciocínio e pesquisa não
foram sempre as mesmas”, como ele escrevia em 1933. Daí a importância
das transformações, que tornam possível uma nova história, na medida em
que a espessura do tempo dessa história e suas camadas são expostas com
a fratura que as transformações implicam. Formula-se aí um modelo tem-
poral para história das ciências, constituído por camadas, estratos, planos.

4. Nessa mesma conferência, ele afirmava: “A meu ver, o cenário da vida atual constitui, para
o historiador, mais um perigo do que um auxílio” (Coulanges, 2003 [1875]: 307).

51
O tempo dessa história não se estrutura mais na escala cronológica a partir
da tábua das descobertas científicas. Não se trata mais de opor a ciência ao
tempo ou deduzir as leis que lhe impõem um sentido por meio da identi-
ficação de precursores ou de homens que se encontravam à frente do seu
tempo. Trata-se de articular as ideias científicas com estratos temporais.
As ideias einsteinianas introduzem um deslocamento do presente em relação
à síntese newtoniana ou mesmo um duplo deslocamento, se aí incluirmos a
física aristotélica, que delimita uma espessura temporal própria e constitui
a exterioridade que torna possível pensá-las de outra perspectiva. E a cons-
tituição desse ponto de vista marca uma diferença fundamental no modo
como até então se pensava as antigas teorias.
Para Koyré, é exatamente essa exterioridade que permite compreender
a má fama de que gozavam as concepções aristotélicas nos séculos XVii e
XViii. Na época de predominância da física newtoniana, em que o Universo
era infinito e em que o espaço correspondia àquele da geometria euclidia-
na, a concepção aristotélica de Cosmos aparecia como absurda e mesmo
incompreensível. “Era difícil compreendê-la, porque, involuntariamente,
substituíam-na pela imagem de uma bola redonda nadando em um vácuo
infinito – imagem que a desfigurava irremediavelmente – hoje em dia o
mesmo não acontece” (Koyré, 1991 [1949]: 26). Em nosso tempo, podemos
não apenas compreender de um modo radicalmente diferente a estrutura
do Cosmos aristotélico, como entender as razões da atitude negativa que
marcou os homens dos séculos XVii e XViii diante dele. E isso porque, no
Universo einsteiniano (assim como no Cosmos aristotélico), o mundo é
coextensivo ao espaço físico e não há nada fora dele, nem pleno e nem vácuo
(Koyré, 1991 [1949]: 25). Por outro lado, visto que os historiadores naquela
época “consideravam as concepções newtonianas não só verdadeiras, mas
também evidentes e até mesmo naturais, a própria ideia de um Cosmo finito
parecia ridícula e absurda” (Koyré, 1991 [1955]: 206). Hoje, com a concepção
einsteiniana de Cosmo finito (embora ilimitado), sabemos que não há nada
de absurdo ou monstruoso na concepção aristotélica e nossa perspectiva
sobre ela se transforma radicalmente.

52
Depois de Einstein, torna-se possível analisar o passado da ciência a
partir de um ponto de vista que transforma nossa compreensão do passado.5
O presente transforma o passado. Dispomos de armas que desconheciam
nossos predecessores. O historiador pode se situar no interior e no exterior
da física antiga e medieval, mas ao mesmo tempo no interior e no exterior
da física newtoniana. É exatamente essa perspectiva que era impossível
antes dele, quando a física aristotélica era pensada a partir dos critérios
de uma física matemática e a ciência newtoniana a partir de seus próprios
princípios. Era isso que tornava suas verdades parecerem evidentes e mesmo
naturais. Esse é, sem dúvida, um postulado metodológico importante em
Koyré e que se encontra em marcha em seu trabalho. A partir do mundo
finito-ilimitado einsteiniano, podemos pensar o Cosmos fechado e finito
(antigo e medieval) e o mundo aberto e infinito (moderno) de outro ponto
de vista. A partir do mundo da imprecisão dos quanta, torna-se possível
pensar o mundo do mais-ou-menos (antigo e medieval) e o universo da
precisão (moderno) a partir de uma nova perspectiva. É o atual, portanto,
que torna possível a história do pensamento científico de Koyré. O cenário
da vida científica atual, como se vê, é mais do que um auxílio.
Ao contrário do cientista, que julga sempre o passado a partir das
categorias atuais da ciência, o historiador procura não apenas se “colocar
na situação de um contemporâneo de Galileu”, mas analisá-lo a partir de
suas próprias categorias e de sua própria linguagem. Minha hipótese é a
de que Koyré distingue as noções de presente e atualidade – e essa seria
uma das singularidades de sua posição nos debates sobre a intricação en-
tre presente e passado que mobilizaram os historiadores no entreguerras
e que permite diferenciá-lo da concepção presentista que seria aquela de
um Lucien Febvre. Virtualmente, é possível pensar o inatual como atual.
O presente torna possível uma nova história das ciências e ao mesmo tempo
fornece ao historiador ferramentas intelectuais que seus predecessores não
possuíam para compreender o passado. No entanto, a partir disso, ele busca
compreender as teorias do passado em sua própria atualidade. Elas apenas

5. Do mesmo modo que a física de Galileu havia sido uma desforra de Platão sobre Aristóteles,
a de Einstein, que reduz a física e o real ao geométrico é, para Koyré, uma desforra de
Descartes sobre Newton (Koyré, 1962 [1938]: 228).

53
são inatuais em nosso presente; mas isso não significa que o historiador
não possa compreendê-las no tempo de sua atualidade. A atualidade não
coincide, assim, com o presente. Essa distinção, que permite diferenciar a
perspectiva do historiador daquela do cientista e mesmo daquela bachelar-
diana e judicativa, seria fundamental para a constituição de uma história
das ciências, como veremos em seguida.
O que é, todavia, situar-se, ao mesmo tempo, no interior e no exterior
de um plano de pensamento, senão situar-se no limite? A análise de Koyré
é uma reflexão filosófica fundada historicamente sobre os limites do pen-
samento. Daí a importância do tema das revoluções em seu trabalho, das
revoluções como transformações dos limites do pensamento, mas também
da imagem dos monstros, evocada em sua reflexão epistemológica, pois os
monstros, é preciso lembrar, são sempre figuras que vagam nos limites. Assim,
o presente não apenas torna possível, como exerce uma função decisiva na
escrita da história de Koyré. Eis porque é difícil, do ponto de vista da análise
da historicidade de seu trabalho, aplicar-lhe os rótulos tradicionais: ele não
é internalista nem tampouco externalista. Koyré é um pensador dos limites.

Um domínio de análise
Não devemos esquecer que o estudo do passado da ciência, no entre-
guerras, gozava de pouco prestígio intelectual – e o modo como um Gaston
Bachelard o caracterizava não deixa dúvidas desse desprestígio. Em 1935,
Koyré insistia nesse estado de coisas: “Com efeito, por que perder seu tempo
estudando doutrinas [científicas] erradas do passado? [Eis um] Ponto de
vista assaz comum nos promotores do saber científico e mesmo nos filósofos”
(Koyré, 1934-1935:522). Essa distinção feita por Koyré entre duas atitudes pe-
rante o passado, que a atualidade torna possível, é extremamente importante,
na medida em que parece conter ou pressupor outra sobre a qual é preciso
insistir. É ela que, sem dúvida, nas análises historiográficas, reserva a Koyré
um papel de destaque na constituição de um campo histórico e filosófico de
estudo das ciências. Um dos seus méritos foi o de ter percebido que sem essa
distinção era impossível, em primeiro lugar, demarcar com clareza a diferença
dessa perspectiva sobre o passado da ciência daquela do próprio cientista ou,
para sermos ainda mais precisos, a de ter produzido esta fratura que tornou

54
possível delimitar com clareza um domínio de análise da ciência que não
coincidia e mesmo se opunha às opiniões e avaliações que os cientistas po-
diam ter, a partir do seu trabalho, do passado de sua atividade. Em segundo
lugar, de que essa distinção permite diferenciar, para retomar uma expressão
que mais tarde se tornaria célebre na pena de Georges Canguilhem, o objeto
da ciência do objeto da história das ciências. O objeto da ciência e o objeto
da história das ciências, com Koyré, não mais se identificam (Canguilhem,
1983 [1966]),6 pois, como ele escrevia em 1929, o “pensamento do cientista
está concentrado nas coisas, não sobre si mesmo”, não sobre a historicidade
de sua atividade e discurso. Daí o corolário metodológico: “a epistemologia
dos cientistas não vale habitualmente grande coisa”, pois a interpretação
histórica e filosófica que os cientistas podem apresentar de suas próprias
teorias não se constituem como garantia do sentido histórico ou filosófico
de sua interpretação. O caso de Einstein, para Koyré, seria “o exemplo mais
típico da incompetência filosófica do cientista” (Koyré, 1929:156).7
Essa diferenciação é uma condição para a elaboração de um domínio
de análise das ciências autônomo em relação ao trabalho científico corrente.
É ela que torna possível à história e à filosofia subtraírem-se do modo como
o cientista julga o passado – e mesmo o presente – de sua atividade e definir
com clareza as tarefas do historiador do pensamento. E se a posteridade
mostrou que essa fratura recobre uma zona de tensão que volta e meia se
manifesta na definição polêmica sobre o que constitui o próprio objeto
a que se referem cientistas e historiadores quando falam do passado, ela
foi decisiva na constituição de um campo próprio à história das ciências.
A partir do momento em que se delimita e se evidencia um objeto do saber,
uma nova disciplina, um novo gênero do saber pode se constituir. Do ponto
de vista de uma arqueologia do saber, não seria incorreto, portanto, situar

6. Pietro Redondi também situa em Koyré o estabelecimento dessa distinção (Redondi,


1986: x).
7. Apenas alguns anos mais tarde, ele afirmaria exatamente a mesma coisa, dessa vez, sobre
as obras de Eddington e de Heisenberg. “Fazer um elogio do livro de Sir A. Eddington seria
quase uma impertinência. Pode-se lamentar apenas que sua parte filosófica [...] não esteja à
altura da parte científica”. (Koyré, 1935-1936:457). Em seu livro sobre as transformações nos
fundamentos da ciência, “Heisenberg acrescenta algumas considerações históricas sobre o
papel desempenhado por Copérnico, Cristóvão Colombo, Galileu, Newton. Nosso respeito
por Heisenberg nos proíbe de comentá-las” (Koyré, 1935-1936:458).

55
no entreguerras o nascimento da história das ciências e atribuir ao autor
dos Estudos Galilaicos um papel relevante em sua constituição.
Tratava-se de um novo objeto do saber, bastante distinto daquele que os
historiadores da ciência do início do século XX haviam herdado da história
erudita do século XiX (pensemos, por exemplo, em um Georges Sarton).
Mas tratava-se também de um programa cuja sutil distinção marcava uma
enorme diferença com aquele do racionalismo francês do início do século XX.
Pensemos, por exemplo, na reflexão epistemológica de dois maîtres à penser
daquele período, Léon Brunschvicg e Émile Meyerson, para os quais a história
desempenhava um papel fundamental na reflexão filosófica sobre as ciências.
Se a história era fundamental, ela não era, no entanto, o objetivo, o fim do
trabalho filosófico (Gattinara, 1998); era apenas um meio, um lugar de onde
se podia retirar materiais e se encontrar exemplos por meio dos quais era pos-
sível, para Brunschvicg, demonstrar o dinamismo da razão, e para Meyerson,
ao contrário, sua identidade, i.e., seus traços constitutivos e constantes. É um
estatuto da história muito parecido com aquele que encontraríamos mais tarde
em Bachelard e na tradição histórico-epistemológica francesa (Bachelard, 2003
[1938]: 10-11). Daí a radicalidade do programa koyreano, no qual a história se
transforma na própria finalidade filosófica. É aí que devemos situar a afirma-
ção de Thomas Kuhn, feita em 1968, de que o “estabelecimento da próspera
tradição contemporânea em História da Ciência” devia-se, “sobretudo”, a
Alexandre Koyré. Eis o que o autor de La Révolution Astronomique, segundo
Kuhn, legou à história das ciências: “[...] eu e meus colegas aprendemos a
reconhecer a estrutura e a coerência de outros sistemas de ideias [científicas]
diferentes do nosso” (Kuhn, 2011 [1968]: 35). Quer dizer, a reconhecer com
clareza o recorte e os limites do objeto da história das ciências, que não se
confunde com o objeto da ciência. É com a exterioridade que as formas de
pensamento que não são as nossas podem aparecer em sua singularidade e
como diferença e não como deformidade ou como objeto clínico. Mas para
isso, era também preciso constituir uma linguagem própria para falar desse
pensamento, uma linguagem diferente daquela do cientista e do técnico que,
no limite, é uma linguagem desgastada pelo tempo, imprópria para tratar do
pensamento outro.

56
O problema das formas
Este estudo sobre as figuras da atualidade no trabalho de Koyré permite,
finalmente, considerar sua escrita da história como aquela das formas de
pensamento. As imagens que ele evoca amiúde para explicitá-la são ligadas
a formas: os monstros, a escultura de Rodin, os corpos desfigurados. Além
destas imagens, ele também faz referência aos fantasmas: “O tempo absoluto
assim como o espaço absoluto, realidades que Newton aceitou sem hesitar
[...] tornam-se para Einstein fantasmas sem consistência e sem significado”
(Koyré, 1991 [1955]: 213-214). Gaston Bachelard também evocou essas ima-
gens em suas análises, mas os fantasmas e monstros a que Koyré se refere
possuem um estatuto distinto daqueles que Bachelard expõe em seu museu
de horrores – note-se que Koyré falava em “coleção de monstros” ao se referir
à perspectiva do cientista fundada na atualidade –, e não requerem uma
psicanálise do conhecimento objetivo: eles se prestam à análise histórica.8
É porque Einstein transforma a natureza em princípio metafísico – “a natureza
é a medida das coisas tais como são” e não Deus ou o homem –, a partir do
qual pensa o tempo e o espaço, que aquelas noções newtonianas aparecem
em nossa atualidade como fantasmas sem consistência e significado. Einstein
não pensa mais no mesmo plano de pensamento de Newton. É a partir deste
novo plano que as verdades newtonianas tornam-se fantasmas inconsistentes.
Um monstro é um corpo sem forma, quer dizer, mal formado, defor-
mado. Um fantasma é uma forma sem corpo, uma aparência. Mas essas
figuras deformadas e espectrais jamais o são em si mesmas. A concepção
newtoniana de espaço absoluto torna-se fantasmagórica, quando colocada
diante desse novo plano de pensamento aberto por Einstein. Todas essas
imagens e figuras evocadas por Koyré são imagens e figuras temporais. Não
é a eternidade, mas a consistibilidade da verdade o que importa. Assim,
a consistência não decorre de uma firme imposição de uma forma a um
conteúdo. Fora do plano de pensamento no qual foi composta, ela perde
consistência e significado. Fora dele, ela se deforma, perde seu corpo, torna-se

8. François Delaporte mostrou claramente como, por meio dessas imagens, Michel Foucault,
em um diálogo com Gaston Bachelard, buscou diferenciar sua arqueologia da epistemologia
do autor de A formação do espírito científico (Ver Delaporte, 2011). Foi Delaporte quem
chamou a atenção para a importância das imagens teratológicas na reflexão epistemológica.

57
caduca e o que ela diz não tem mais qualquer sentido. Fora desse plano, ela
erra, visto que não se encontra mais “no verdadeiro”. O problema, portanto,
não é o de dizer ou não a verdade, mas estar ou não no verdadeiro:9 “Não
devemos zombar”, escreve Koyré, do argumento aristotélico contra a mo-
bilidade da terra. “Do ponto de vista da física aristotélica, ele é totalmente
justo. Tão justo que, com base nessa física, é irrefutável” (Koyré, 1982 [1955]:
187). É apenas fora desse espaço que ela se torna uma figura sem limites,
uma figura-limite. Por isso, é preciso pensá-la a partir de outros limites.
A história das ciências, e essa é uma de suas características e dificuldades,
não é simplesmente um trabalho com mortos, mas mais precisamente um
trabalho com monstros e fantasmas.
Vemos apenas aparências de forma, sempre mal definidas. É impossível
mesmo vê-lo, compreendê-lo, pois o fantasma nunca aparece claramente;
ele não é claro, é taciturno. É um pensamento obscuro e sombrio. Mas esses
fantasmas, para Koyré, não são imagens primitivas, arquetípicas, pré-lógicas
ou psíquicas. Não é tampouco o sono da razão que produz monstros. Ao
contrário. Eles são produtos de seu trabalho diurno. Não é durante a noite
que eles são oniricamente engendrados, mas durante o dia, por uma razão
ativa, criativa e dinâmica. Não se trata de figuras do inconsciente, mesmo
que se possa dizer que os fantasmas são sintomas de uma transformação
revolucionária. É ela que os empurra para fora dos limites, para as sombras
do saber e os transforma em formas obscuras, incertas e desprovidas de
clareza. Um fantasma, da mesma forma, é uma figura-limite, ou melhor, uma
des-figura-limite, um ser que vaga nas fronteiras do “já não mais vivo” e do
“ainda não morto”. isso quer dizer que a razão não se fixa em uma imagem
definitiva, não se petrifica em uma arquitetura estática. Ao contrário. Ela
se deforma, se reforma, se transforma, se metamorfoseia. Daí que Koyré
transforme a imagem do passado a partir do qual seria preciso apreender
as formas hoje obscuras do pensamento. Se apenas o historiador do pen-
samento pode apreender as antigas teorias no momento de sua “criação”, o
passado dessa história assume a imagem do ateliê do artista, do escultor, do
lugar em que o pensamento toma forma. isso porque não se trata apenas da

9. Delaporte mostrou a importância que essa noção, être dans le vrai, cunhada por Koyré,
adquiriu na filosofia das ciências na França (Delaporte, 2011: 69).

58
reconstituição de teorias, mas do próprio tempo. É preciso reconstituir os
estratos temporais em que ele tomou forma. isso me faz pensar em Rodin,
que, referindo-se à escultura, dizia que toda superfície era a extremidade
de um volume, o ponto de emergência de um volume. A posição de Koyré
diante das teorias do passado é a mesma da de um escultor: o historiador
precisa reconstituir a superfície do tempo em que emerge uma forma, nasce
um novo pensamento. Por isso, para ele, o historiador das ciências é um
“pensador criador” (Koyré, 1991 [1955]: 205): ele reconstitui no presente for-
mas que não se encontram dadas em tempo algum. Eis a extrema diferença
dessa imagem para aquelas do cemitério e do museu de horrores. Todas
essas figuras nos ajudam a pensar como o trabalho de Koyré é um estudo
sobre as formas e os limites do pensamento. Daí a centralidade do conceito
de revolução em seu trabalho.

Revoluções
O modo como Michel Foucault caracterizou o conceito de revolução
em Koyré permite pensar uma segunda dimensão de seu interesse por esses
acontecimentos e a maneira como ele os aborda. Koyré não aponta no dis-
curso copernicano ou kepleriano seus aspectos verdadeiros e falsos. Somos
“nós” que, ao nos referirmos a esse discurso, “falamos de verdade e de erro
e admiramos sua aliança” ainda corrente no século XVi. Falamos, assim,
escreve Foucault, “do fundo de nossa linguagem desgastada”. Koyré toma o
pensamento e os textos antigos de outro modo. Em sua análise, suspende
nossa linguagem puída pelo tempo em nome dessa outra linguagem, que
só os textos originais, caídos em desuso, podem fornecer. Se o conceito
de revolução é histórico e filosófico, é porque ele indica esse “momento
de turbulência em que o verdadeiro e o falso não se encontravam ainda
completamente separados”.
Uma revolução, uma transformação dos marcos do pensamento, anali-
saria “esse indissociável trabalho, situado sob as divisões que são em seguida
feitas pela história”. A verdade e o erro, a evidência e o absurdo, só se colocam
aí, nessas divisões que se constituem sobre esses marcos. Esse momento
de turbulência é, da mesma forma, aquele das núpcias, “das bodas entre o

59
verdadeiro e o falso” (Foucault, 2001 [1961]: 198). Por isso, a dificuldade de
nossa linguagem em tratar dele.
É preciso, portanto, restituir esses marcos, esses estratos nos quais o
verdadeiro e o falso ainda não se distinguiam. Que ciência a história deveria
ser para poder fazê-lo? No século XiX, para fundar-se como saber positivo,
a história tomou como modelo a imagem das ciências da natureza, parti-
cularmente, a da física. É a partir desse modelo que se buscou estabelecer
leis e revelar as causas dos fenômenos históricos. As filosofias da história,
inspiradas em um ideal laplaciano de ciência, buscavam explicar o devir a
partir de teorias globais, unitárias e deterministas. Em 1946, Koyré insistia
no fato de que esse ideal havia caducado e, mesmo em física, a partir do
início do século XX, tornava-se irrealizável. Era preciso abandonar esse
tipo de comparação com as ciências da natureza. No entanto, ele fazia uma
concessão e escrevia que “se quiséssemos forçar a comparação da história
com as ciências da natureza”, não seria “à física, mas à geologia ou à pale-
ontologia que ela deveria ser comparada”; portanto, não às ciências exatas,
mas àquelas pertencentes à história natural (Koyré, 2011 [1946]: 59).10
Sabe-se que o estudo dos estratos sobrepostos em camadas geológi-
cas constitui a estratigrafia, um ramo importante da geologia. Do mesmo
modo, sabe-se que a paleontologia, por meio do estudo dos fósseis e de seus
vestígios, que se encontram nessas camadas, busca reconstituir mundos
ou habitats que desapareceram e formas de vida que o habitavam. Koyré
insistia no fato de que, tal como esses saberes, a ciência histórica buscava
reconstituir o passado a partir de vestígios, de fragmentos, de “fragmentos
de fragmentos” – e os termos da comparação esgotam-se aí.
Contudo, não deixa de ser interessante observar que Koyré, que es-
creveu a história de concepções de mundos e cosmos destruídos e desapa-
recidos, recorra à imagem da geologia para pensar no esforço histórico de
reconstituição do passado. Essas camadas geológicas, desde o século XiX,
testemunham a espessura do tempo disposta em estratos sobrepostos de
maneira descontínua. A história geológica do globo terrestre não é linear,

10. Fustel de Coulanges também aproximava a história da geologia; do ponto de vista


epistemológico, ele não via, no entanto, diferença entre ela e a física.

60
contínua, arborescente e cumulativa, mas constituída por estratos descon-
tínuos, fraturados, que testemunham rupturas nessa história. Não deixa de
ser igualmente interessante observar que Koyré, que escreveu a história das
formas de pensamento outro, de pensamentos que a nós outros aparecem
sem forma precisa, incertas, aberrantes e nos chegam apenas por meio de
seus fragmentos, despojos, restos muitas vezes heteróclitos, recorra, com
o mesmo intuito, à imagem da paleontologia. isso porque, com Georges
Cuvier, a partir do início do século XiX, os fósseis não mais testemunham
a continuidade e a semelhança entre as formas de vida antigas e atuais.
É por meio de seus fragmentos que é possível não apenas reconstituir antigas
formas, mas com a anatomia comparada, diferenciá-las daquelas atuais. De
modo que o estatuto dos fósseis se transforma: eles constituem a espessura
do tempo geológico, delimitam os estratos que formam a história da terra.
Eles são o que Cuvier, na página de abertura de seu livro, denomina de “mo-
numentos de revoluções passadas” que é preciso “restaurar” e cujo “sentido”
é preciso compreender. Mas talvez o mais interessante de se observar no
desenvolvimento dessa “comparação forçada” – com a qual não pretendo
sugerir que Koyré faça uma anatomia comparada do pensamento –, é que
Cuvier redefine o sentido moderno do conceito de revolução.
A configuração atual ou a “superfície do globo”, por mais surpreendente
que isso possa parecer a um viajante que percorre planícies fecundas, de
águas tranquilas com cursos regulares, com vegetação abundante, “pisadas
por um povo numeroso, ornada por vilarejos florescentes, ricas cidades,
belos monumentos”, foi “transformada por revoluções e catástrofes” (Cuvier,
1830: 6-7). Os fósseis, os materiais depositados nas rochas marítimas, ou que
se acumulam em camadas ao pé das grandes cadeias de montanhas, dão
testemunho de inúmeras revoluções que transformaram inúmeras vezes a
superfície do globo. Essas camadas arquivam “traços de revoluções” (Cuvier,
1830: 9). Para Cuvier, são apenas as revoluções, transformações radicais na
configuração do mundo e das formas que o habitam, que permitem com-
preender a superfície atual da terra – a superfície é o ponto de emergência
de um volume. Com Cuvier, transforma-se o conceito de revolução nas
ciências, que não designa mais, a partir do modelo astronômico, o retorno
a um estado anterior, mas uma ruptura temporal, a transformação radical

61
de uma certa configuração do globo ou de certo estado de coisas – e não
é à toa que toda uma série de imagens advindas da geologia associou-se
ao nosso modo de conceber uma revolução. Assim, para Koyré, se alguma
comparação da história com as ciências da natureza fosse possível de ser
estabelecida, certamente, não seria com a física (celeste ou terrestre), mas,
com a geologia e a paleontologia, porque talvez estas duas figuras, a geolo-
gia e a paleontologia, indiquem-nos que o esforço de Koyré, o de escrever
uma história do pensamento, foi aquele de escrever a história da vida do
pensamento em suas diferentes formas.11 Não de formas que se estendem
indefinidamente ao longo do tempo, mas que se transformam em novas
formas por meio de revoluções.
A atualidade ou as revoluções científicas contemporâneas são impor-
tantes porque permitem temporalizar e diferenciar planos, camadas, estratos
do pensamento em seus próprios limites. Mas é apenas em nosso presente
que as antigas formas encontram-se enterradas, fossilizadas e aparecem
como restos, como fragmentos confusos. Somos nós que as vemos como
fósseis muitas vezes monstruosos, como monumentos teóricos sem vida;
como fósseis do pensamento, que, num primeiro momento, aparecem como
monstros ou fantasmas. Não se trata de formas (fósseis) petrificadas, pois
uma revolução é sempre um abalo sísmico, um movimento tectônico, um
momento de turbulência, como dizia Foucault, embora subterrâneo e invi-
sível. Ora, ele fala do “nascimento” do conceito de Cosmos entre os gregos.
Em “nascimento” da ciência e do mundo moderno. Ele fala em graveyard of
forgotten theories. Ele evoca a imagem de formas decrépitas e envelhecidas
pela ação do tempo. Refere-se aos fantasmas, quer dizer, aos mortos que
assombram o mundo dos vivos. Fala em rejuvenescimento, em renascimento.
Refere-se a todo um conjunto de imagens que remetem à vida do pensa-
mento. Talvez a partir delas possamos entender que Koyré sempre tenha
considerado que a história do pensamento deveria ser entendida como uma

11. Nesse sentido, diferente daquela que Bachelard denominava de “paleontologia do espírito”.
É interessante observar que, segundo Michel Foucault, é apenas com Cuvier, no início do
século XiX, que as formas passam a ser definidas por essa qualidade específica denominada
de “vida”. Da mesma forma, é com o fundador da anatomia comparada que as formas e
a própria natureza são temporalizadas, e essa é uma condição de possibilidade, segundo
Foucault, da constituição de uma ciência da vida, a biologia. (Cf. Foucault, 1992 [1966]: 283).

62
história imanente.12 Koyré não buscava reconstituir o passado de civilizações
inteiras e em sua totalidade, para explicar as formas do pensamento por meio
destas civilizações, mas esforçava-se em reconstruir formas de pensamento
no tempo de sua constituição e no mundo que as tornou possível. Assim
como a geologia é um estudo das idades da terra, o trabalho de Koyré é um
estudo “das idades da ciência” (Gattinara, 1998:264), das idades do pensa-
mento científico. O historiador é uma espécie de geólogo, na medida em
que expõe as camadas do tempo da ciência. Sua história do pensamento
científico é uma arqueologia, uma geologia: ele parte do modo como ele nos
é dado hoje, para remontar a sua fonte e refazer a sua evolução, passando
por todos os seus estratos ou camadas posteriores.
Koyré desloca a filosofia para isso que Adi Ophir denomina de “espaço
no qual os fósseis da linguagem estão entrepostos” (Ophir, 2011:80), a saber,
para os arquivos. É preciso deslocar a perspectiva fundada no laboratório
da ciência, ou no Palais de la Dévouverte, para outro espaço. O historia-
dor precisa conhecer esse espaço, mas não pode fundar aí sua perspectiva.
É preciso escavar a superfície dos estratos que constituem um arquivo para
encontrar os despojos, os restos dessa linguagem exilada de nosso tempo,
com a qual se pode falar das núpcias entre o verdadeiro e o falso. É preci-
so recorrer às ruínas dessa linguagem outra, dessa linguagem esquecida,
desconhecida, menor, em desuso, em exílio, para falar de algo que nossa
linguagem apenas consegue entrever como convivência inconsciente do
erro e da verdade. E não porque essa linguagem seja autêntica e o arquivo
seja o lugar em que repousa uma verdade ao aguardo do historiador. Pois
no fundo, esse espaço não conserva uma fala, que bastaria apenas escutar
com acuidade; ele arquiva, ao contrário, um silêncio. Esses textos pertencem
a uma língua estranha, desprovida de sentido. Para os cientistas, trata-se
antes de uma língua morta. A língua que trata dos fenômenos físicos que nos
cercam com conceitos não matemáticos e inexatos, com noções semiquali-
tativas, é uma língua morta. Para a ciência atual, trata-se de uma aberração
semântica. Assim, o que ele arquiva precisamente não é uma língua que fala

12. “Pois, se a humanidade é, como disse Pascal, um único homem que vive sempre e que
aprende sempre, é de nossa própria história, e mais que isso, é de nossa autobiografia que
nos ocupamos ao estudá-la” (Koyré, 1982 [1961]: 377).

63
ou diz alguma coisa. Pois não é apenas essa linguagem que não faz sentido,
mas seus despojos por si só nada dizem. É preciso, com os arquivos, criá-la
novamente: dar a ela palavras, dar a ela a palavra, dar-lhe voz e fazer falar
o que até então era apenas murmúrio, ruído, silêncio.
Eis um traço marcante em Koyré, esse “mestre da leitura”, como queria
Yvon Belaval (Belaval, 2011 [1964]: 11). “Em meus ‘estudos’, sempre que pos-
sível, deixei a palavra aos próprios autores” (Koyré, 1961:10).13 Em primei-
ro lugar, porque se trata de textos desconhecidos, inacessíveis, de autores
obscuros e ignorados. “[...] Como (com poucas exceções) os textos de que
trato provêm de autores esquecidos há muito tempo e que estão enterrados
em obras acessíveis somente nas maiores e mais antigas bibliotecas, citarei
abundantemente os representantes dessa ignota literatura” (Koyré, 1973:10).
Em segundo lugar, porque para o historiador do pensamento científico “nada
pode substituir o contato direto com as fontes e com os textos originais”;
apenas esse contato “pode nos fazer compreender a potência dos obstáculos
que se levantavam na rota difícil, tortuosa, incerta, que os havia levado do
abandono de verdades antigas à descoberta e à afirmação de novas verdades”
(Koyré, 1961:11). Eis por que deslocar a reflexão filosófica sobre a ciência para
o arquivo é uma exigência do trabalho koyreano.
Desde Michelet, a historiografia francesa foi atravessada pela preocupa-
ção em afrontar e apaziguar a morte. Ela se constituiu como figura do saber
no século XiX definindo que a relação do historiador com o passado era uma
relação com defuntos. A história daria um segundo túmulo, uma sepultura
escriturária ao morto (Certeau, 2007 [1975]: 106-109). No entreguerras, na
época de uma profunda transformação epistêmica dessa disciplina, a história
cruzava os caminhos da espectrologia e da teratologia. Diferentes atitudes
perante essas figuras então se constituíram. Para Bachelard, tratava-se de
obstáculos do espírito científico. Ele os reduzia, assim, a uma psicanálise
do conhecimento objetivo. Os Annales inventaram um modo de tratar essas
falas que marcaria a historiografia do século XX. Não se tratava de dar voz

13. Devemos diferenciar esse traço de um procedimento empirista. Deixar a palavra aos
próprios autores não significa “deixar falar os textos” por si sós. Esses textos “por si mes-
mos, nada dizem”. Pois, “para que eles nos digam algo, é preciso interrogá-los” (Koyré,
2011 [1946]: 57).

64
àqueles que não falam mais, de fazer falar falas reduzidas no presente ao
mutismo, mas de silenciá-las novamente e fazer precisamente falar o que
não fala, a palavra muda das coisas, a expressão de um modo de ser (uma
mentalidade, uma cultura) ou de um lugar (um vilarejo, o mediterrâneo)
(Rancière, 1992). Os monstros e fantasmas pertenciam, no limite, a um sis-
tema de crenças. Koyré, de sua parte, recusava a operação de silenciamento
intrínseca ao procedimento poético annaliste, pois para ele a história é um
“diálogo” (Koyré, 1991 [1946]:235).14 Deixar a palavra aos próprios personagens
que estiveram indissociavelmente ligados ao nascimento de novas teorias
científicas pressupõe não apenas tratar essa fala como singularidade e como
acontecimento, mas dar-lhe voz, dar voz aos exilados. Essas falas (teóricas)
esquecidas em obras inacessíveis, que é preciso, como um paleontólogo,
desenterrar de antigas bibliotecas, são traços de vozes que no passado torna-
ram-se escritas. Embora esses traços não possam substituir as vozes, através
deles “o corpo se fez voz e alguma coisa como um espaço de audição se abre
onde inicialmente havia silêncio” (Farge, 2003:111).
Se a história se torna um diálogo, é porque essa postura torna possível
contornar aquela atitude historiadora que encontra no passado defuntos
desprovidos de voz. Aquelas vozes que um dia se tornaram inaudíveis,
que foram aniquiladas e exiladas pelo nascimento de novas teorias e que o
historiador, no presente, encontra emudecidas, podem ser assim restituídas
em seu próprio vigor. E isso permite compreender que um fantasma não é
senão uma ideia científica desconectada de sua espessura temporal, que um
monstro não é senão uma teoria isolada de uma camada, estrato ou plano de
pensamento, quer dizer, “de um quadro de ideias, de princípios fundamentais,
de evidências axiomáticas” (Koyré, 1991 [1955]: 204), “de um meio espiritual
e intelectual” (Koyré, 1982 [1951]: 13). A história de uma revolução busca
exatamente restituir o movimento dessas vozes nesse plano, nesse quadro.
Como um geólogo, como um arqueólogo, como um escultor, Koyré fez vir à
superfície vozes cuja coerência aprendemos a compreender.15 Seria ingênuo

14. E não silêncio como queria, nessa mesma época, Heidegger; silêncio, aqui, diz respeito
exatamente à morte e ao isolamento.
15. É esse tipo de exigência que conduz, a partir do entreguerras, a um esforço de promoção
e de institucionalização do ensino de história das ciências. E se não há em Koyré algo que

65
acreditar que a abertura de um espaço de audição queira dizer ressuscitá-las,
mas simplesmente que essas vozes produzem efeitos em nossa atualidade.
Koyré deu voz a essas formas outras do pensamento, a essas outras figuras
da razão. E um dos efeitos importantes dessa abertura foi compreender que
doravante não poderíamos mais querer transformar a forma atual da razão
em sua única voz, em sua forma absoluta ou definitiva. A atualidade torna
possível voltar-se ao passado a partir de uma nova perspectiva. Mas a nova
perspectiva que se constrói a partir desse voltar-se torna possível pensar
diferentemente o presente.
Daí sua recusa em tratar o passado como um cemitério de teorias ou
de reduzi-las a uma psicanálise do conhecimento. A concepção da histó-
ria como um diálogo pressupunha não apenas compreender essa língua
esquecida e desprovida de significado, mas apresentá-la em sua estrutura
e coerência própria; embora ligados a problemas metafísicos que não são
os nossos, seus argumentos e enunciados eram, sem dúvida alguma, racio-
nais; embora absolutamente diferentes da nossa, havia uma racionalidade
nas formas do pensamento que não são as nossas e isso as torna dignas do
interesse filosófico. Era isso que tornava possível uma história das ciências
como história da vida do pensamento, em suas diferentes formas. Ela não
poderia ser escrita como um capítulo da história da tolice humana, mas
como a história de uma aventura, da aventura do pensamento.

poderíamos chamar de um programa a esse respeito, não podemos esquecer que ele reser-
vava a essa disciplina um papel não simplesmente acadêmico, mas cultural importante.
“O conhecimento das grandes obras científicas do passado deveria ser tornado obrigató-
rio; ao menos tão obrigatório quanto o é para o honête homme de nosso tempo aquele dos
grandes clássicos literários. É então, mas somente então, que a instrução ‘moderna’ cessaria
de formar primários”. Se considerarmos a dificuldade intrínseca dessa leitura, que a sua
compreensão depende do conhecimento da história “dos problemas” (muitos dos quais não
se colocam mais), “das noções” (muitas das quais “mudaram de sentido” ou “desaparece-
ram”) e “da situação concreta de sua composição”, sem dúvida, podemos concluir que algum
intermediário deveria se colocar entre o texto e o leitor. Em sua resenha, Koyré o chama
de “comentador”. Gostaria de chamar a atenção para esse papel importante que ele reserva
ao aprendizado da história das ciências para a instrução moderna (Koyré, 1934-1935:518).

66
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70
3

Revolução Científica e Intuição Ontológica


em Alexandre Koyré1
Gérard Jorland2

Entre os inúmeros heróis de Alexandre Koyré, há um que sempre me


pareceu assemelhar-se a ele – ao menos tal como ele o evocou. Trata-se
de Mersenne:
O Reverendo Padre Marin Mersenne era de uma curiosidade sem
limites, interessando-se por tudo, pela astronomia e pela astrologia,
pela alquimia e pelas matemáticas, pela física e pela exegese. Nada
ocorria no mundo do pensamento sem que Mersenne ficasse ciente, e
suas novidades – verbais ou escritas – ele não as guardava para si, mas
comunicava-as prontamente àqueles a quem elas pudessem interessar
ou cujos trabalhos elas pudessem promover (Koyré, 1934-1935: 519).

Como, com efeito, não pensar nesse retrato de Mersenne ao ler aquele
que seu amigo Yvon Belaval deixou-nos de Alexandre Koyré: “Toda a cultura
ocidental era-lhe diretamente acessível. Mas seu triunfo interessava-lhe menos
que as ideias; ele amava-as por si mesmas. De todas, sua erudição ampliava
as perspectivas; em todas, sua inteligência lançava luzes” (Belaval, 1964: 675).
Sua influência foi, ao mesmo tempo, pessoal e intelectual. Foi ele quem
introduziu Bergson na Alemanha, nos anos 1910 e, em seguida, Husserl na
França, nos anos 1920. inspirou os trabalhos de Kojève sobre Hegel, os quais
reintroduziram o hegelianismo na França. Criou e dirigiu, com Henri-Charles

1. Tradução de Marlon Salomon e Raquel Machado Gonçalves Campos.


2. Gérard Jorland é diretor de pesquisas do CNRS e professor no Centro de Pesquisas
Históricas (CRH) da École des Hautes Études en Science Sociales, em Paris.

71
Puech e Albert Spaier, as Recherches Philosophiques, que publicaram, entre
outros, Heidegger e Sartre, Meyerson e Bachelard, Marcel e Wahl, Dumézil e
Lacan, Caillois e Bataille. Em Nova York, durante a Guerra, Koyré provocou
o encontro entre Jakobson e Lévi-Strauss, do qual surgiu o estruturalismo.
Enfim, graças ao seu ensino itinerante em universidades americanas e per-
manente no Institute for Advanced Study de Princeton, inúmeras carreiras
científicas reorientaram-se para a história das ciências, tais como aquelas
de Thomas Kuhn e Gerald Holton.
Se Thomas Kuhn foi o teórico da revolução científica na idade Clássica,
ele reconheceu sua dívida para com Alexandre Koyré nesse domínio (Kuhn,
1977 [1968]: Xiii, nota 3). Quanto a Gerald Holton, este autor evoca “o efei-
to eletrizante das visitas de Koyré a Cambridge no imediato pós-guerra”
(Holton, 1988: 26). O fato de Koyré ter inspirado historiadores das ciências
tão diferentes entre si demonstra toda a riqueza de seu pensamento. Nós
tentaremos dar-lhe a medida no que diz respeito à revolução científica na
idade Clássica. Em seguida, veremos como ele soube fazer da empatia fe-
nomenológica um método histórico.

O modelo de Koyré
Em um livro publicado há mais de trinta anos, tentei formular o modelo
implícito das revoluções científicas segundo Koyré e testar sua pertinência
em seus próprios estudos históricos: Copérnico, Galileu, Descartes, Kepler,
Newton e mesmo Boehme (Jorland, 1981).
O traço característico do modelo de Koyré é que uma revolução cien-
tífica é uma mudança de ontologia. Tudo aquilo que está implicado em um
paradigma conceitual – um conjunto de crenças, um mito ou uma visão e
uma concepção de mundo – não é senão um efeito de estrutura, a expressão
de uma ontologia subjacente. A primeira tarefa consiste, portanto, em dizer
o que é uma ontologia nesse modelo.
Em seus estudos sobre os paradoxos lógico-matemáticos – de seu pe-
ríodo fenomenológico –, Koyré parece considerar uma ontologia como um
conjunto de categorias que ele denomina “transcendentais”, no sentido da
escolástica medieval, isto é, categorias que podem ser predicadas de tudo,

72
inclusive de si mesmas, mas as quais não corresponde nenhuma classe
de objetos. Elas têm a mesma extensão que o ser que elas qualificam sem
determinar. Assim, “unidade”, “multiplicidade”, “conjunto”, “número”, “con-
ceito”, “proposição”, “relação”, etc., são transcendentais, visto que tudo tem
uma unidade, ou é uma multiplicidade, ou pertence a um conjunto, ou é o
objeto de um conceito, ou de uma proposição, ou constitui o termo de uma
relação. E todas essas categorias são reflexivas: os números são numeráveis,
as proposições são afirmáveis. Esses transcendentais são manifestações do
ser como fenômeno.
Contudo, essa concepção platônica da ontologia não é apropriada a uma
análise das revoluções científicas em termos de mudança de ontologia. Nesses
termos, uma revolução científica consiste antes em distribuir de outro modo
as entidades entre as categorias do que em inventar novas categorias. Uma
revolução científica preserva sempre essa ontologia categorial, quer a defi-
namos como Koyré ou de uma maneira totalmente diferente, e é exatamente
por isso que podemos sempre discernir continuidades na trama da história.
Se for verdade que pensamos com nosso cérebro, e que ao menos uma
parte de nosso pensamento é racional – uma vez que nossa espécie de-
fine-se por um certo número de constantes evolutivas, entre as quais nossa
capacidade cerebral – é claro que uma revolução científica não pode ser
considerada como uma mutação que teria acrescentado uma nova faculdade,
a razão científica, àquelas de que o homem dispunha até então. Os gregos
não pensavam mais racionalmente que os nambiquaras, nem os europeus
que os mossi. Uma revolução científica não pode ser estudada nesse nível
ontológico que qualifica o ser sem determiná-lo.
isso é, aliás, o que próprio Koyré faz, visto que sua análise da revolução
científica na idade Clássica acaba por mostrar como ela se reduz a uma outra
distribuição do repouso e do movimento sob as categorias do ser e do devir.
Enquanto que no aristotelismo o repouso pertence ao ser e o movimento
ao devir, como modo da mudança, na ontologia clássica o movimento e o
repouso pertencem ao ser ao passo que os outros modos da mudança, como
a geração e a corrupção, pertencem sempre ao devir.
Foi certamente Gerald Holton quem desenvolveu mais sistematicamente
esse nível ontológico sob a forma de “themata”, essas determinações exclu-

73
sivas e complementares do ser que vêm em pares e podem ser pensadas em
termos topológicos de aberto e fechado, como o devir e o ser, o contínuo
e o descontínuo, a diversidade e a unidade, o vácuo e o pleno, a análise e a
síntese, a evolução e a involução, a variação e a invariância, o indeterminis-
mo e o determinismo, o reducionismo e o holismo, etc. Esses “themata” são
uma primeira determinação do ser, mas não têm a mesma extensão que ele,
ainda que conservem a propriedade da reflexividade.
Entretanto, isso não é suficiente para descrever uma revolução em
termos de mudança de ontologia, isto é, de um deslocamento de entidades
de uma categoria à sua complementar. O deslocamento do movimento do
devir ao ser foi tornado necessário pelo princípio de inércia e pelo princípio
de relatividade, que definem o movimento como um estado relativo e não
mais como uma mudança. No modelo de Koyré, uma ontologia é antes um
conjunto de princípios que permitem discriminar o possível do impossível.
Quanto a isso, basta lembrarmos de seu estudo sobre o Renascimento,
o qual teria destruído a síntese aristotélica, tanto sua metafísica quanto sua
física. Antes que uma nova ontologia emergisse, no século XVii apenas,
o Renascimento teria permanecido sem ontologia, sem critério que per-
mitisse discriminar o possível do impossível; o real não sendo senão um
caso particular do possível, aquele que otimiza os copossíveis. Sem uma
tal ontologia, tudo torna-se possível e é isso que explica, segundo Koyré, a
credulidade do homem do Renascimento. Por que, pergunta Koyré, aceitar
a astronomia dos ptolomaicos e rejeitar sua astrologia? Por que aceitar os
milagres cristãos e rejeitar os milagres pagãos? Por que rejeitar a magia e a
feitiçaria, se elas eram validadas pela autoridade da igreja e do Estado, que
as combatiam? Tudo era então possível e a única discriminação nesse campo
de possíveis coextensivo ao ser situava-se entre o possível em razão de forças
sobrenaturais e o possível em razão de forças naturais: “é nessa naturalização
mágica do maravilhoso que consiste aquilo que chamamos ‘o naturalismo’
do Renascimento” (Koyré, 1966 [1951]: 40). Ou se sobrenaturaliza o natural,
ou se naturaliza o sobrenatural. A ontologia mágica, que substitui a ontolo-
gia aristotélica sem assegurar sua função, isto é, discriminar o possível do
impossível, gera ou uma demonologia ou uma alquimia.

74
A fim de evitar o realismo de noções como “possível” e “impossível” –
o que é impossível sendo trivialmente não real – e de preservar a natureza
a priori de uma ontologia seguindo o princípio kantiano de que a ideia
jamais implica a coisa, eu preferi substituí-las pelas noções de pensável e
impensável. Uma ontologia aparece então como um conjunto de princípios
que permitem discriminar o pensável do impensável. E isso não é tudo.
Uma ontologia permite, ademais, discriminar, no interior do pensável, o
pensado do impensado.
A título de exemplo da primeira discriminação, entre o pensável e o
impensável, citarei as observações de Koyré sobre o conceito de Deus. Na
idade Média, pode-se perguntar como provar a existência de Deus, mas a
pluralidade dos Deuses é desprovida de significação; sabe-se que Deus, quer
ele exista ou não, não pode ser senão único. Por outro lado, o Deus medieval
é um Deus criador, o que é impensável para um grego. Em outros termos,
a pluralidade dos Deuses, pensável para um grego, torna-se impensável
para um europeu medieval, enquanto que o conceito de um Deus criador,
impensável para aquele, torna-se pensável para este (Koyré, 1966 [1944]).
A segunda discriminação, entre o pensado e o impensado no interior
do pensável, justifica-se pelo fato de que Koyré conferia à ciência um ideal
de dedutibilidade total dos fenômenos – a lei universal, a grande unificação,
a teoria de tudo – que, embora legítima, permanece inacessível, uma busca
sem fim. Para ele, o pangeometrismo de Descartes constituía a mais radical
tentativa de deduzir tudo o que é. O espaço, a extensão, é a única dimensão
do ser necessária a todas as suas determinações, o espaço da geometria em
que nada nunca ocorre, em que tudo é reversível, em que não há tempo
nem devir.
Essa redução da física à geometria nunca foi concluída: ela significaria
que os fenômenos fossem puras aparências das quais pudéssemos nos livrar
para deduzir a priori as determinações do ser que não são nada mais que
propriedades geométricas. Se essa redução fosse operável, então a distinção
entre o pensado e o impensado seria clara; o pensado compreenderia tudo o
que é geometrizável e seu complementar no pensável constituiria o impensado.
Mas a história da física moderna, tal como Koyré a reconstituiu, começa
com a primeira lei matemática do movimento, a lei da queda dos corpos,

75
que introduz de saída aquilo que não cessará de constituir seu impensado
– a gravidade que resistiu ao mecanicismo e que resiste à grande unificação.
O impensado constitui uma abertura no interior do pensado que tende a se
fechar. E, portanto, a incorporá-lo sem nunca alcançá-lo. É um fenômeno
que a ontologia faz com que apareça em problemas tais como esse da queda
dos corpos. O impensável é uma abertura exterior à ontologia, aquilo que
ela considera ser falso ou privado a priori de toda existência.
A primeira discriminação separa o que pode ser verdadeiro do que
é indubitavelmente falso. A segunda discriminação separa, no modelo de
Koyré, o racional do irracional. O racional é simplesmente aquilo que uma
ontologia permite pensar; o “pensamento racional” é, portanto, um pleo-
nasmo, o pensamento é sempre racional, uma vez que ele determina o ser
conformemente a princípios. A racionalidade científica não se distingue de
outras racionalidades senão pela forma de seus princípios: ela é matemática.
O que não quer dizer que as ontologias sejam equivalentes. Em um sentido,
elas o são, na medida em que o ser é preservado em toda ontologia, visto que
elas procuram representar, simular e predizer o mesmo. Mas uma ontolo-
gia estrutura não somente representações, mas também maneiras de fazer.
É, portanto, em relação à sua eficácia que as ontologias podem ser avaliadas e,
nesse sentido, a racionalidade científica moderna é incomparavelmente mais
eficaz: enviar um foguete à lua, reduzindo os riscos a problemas químicos,
é um indício suficiente da eficácia da mecânica moderna.
Essa simples constatação não é satisfatória, mas a própria razão des-
sa eficácia não é um mistério; trata-se da matematização das ciências da
natureza. A ontologia, no sentido de Heidegger-Benveniste,3 é pensar sua
língua natural; mas essa ontologia não é universal, uma vez que as línguas
não são homeomorfas – donde a importância das pesquisas sobre a gramá-
tica universal que, em nossos dias, foram abandonadas, sem que tivessem
alcançado seu objetivo. Por falta de uma gramática universal, nada sabemos
sobre uma ontologia universal das línguas naturais.

3. Heidegger tentou constituir uma ontologia germânica. Eis aí algo que não deveria inte-
ressar senão aos etnólogos. Tudo o que há de profundo em Heidegger, Benveniste o disse
em dez páginas luminosas (Benveniste, 1968:63-74).

76
Podemos não renunciar a uma ontologia universal, uma vez que re-
montemos de Heidegger a Husserl a fim de considerar as matemáticas como
constitutivas de uma ontologia formal enquanto língua universal. A univer-
salidade que as matemáticas conferem aos princípios ontológicos provém do
fato de tratar-se de uma língua em que todo mundo diz necessariamente a
mesma coisa. A eficácia da racionalidade científica moderna não é o efeito
de um contágio de crenças que se tornariam auto-realizadoras, mas da
constituição da mais ampla e, ao mesmo tempo, da mais coercitiva [con-
traignante] intersubjetividade. A ontologia matemática é, ao menos, aquela
de toda a humanidade. Como a matematização também disse respeito à
experiência que regula qualquer ontologia, compreende-se que ela permita
não somente melhor apreender a realidade, mas que também confira um
maior poder sobre ela.
Há um outro critério de eficácia, já não prático, mas teórico: trata-se
das performances preditivas. A determinação da figura da Terra e o cálculo
do retorno do cometa Halley são performances autorizadas somente pela
universalidade da ontologia matemática – de maneira trivial, no último caso,
uma vez que todo mundo pôde observar o citado cometa.
Coloquemos agora esse modelo à prova da história da ciência clássica
tal como concebida por Koyré. O arremesso é o impensado da física aris-
totélica: ele torna-se o ponto de partida da física do impetus; do mesmo
modo, o papel do Sol é o impensado da astronomia ptolomaica e torna-se
o ponto de partida da astronomia copernicana. O arremesso, ou a queda,
que Galileu reuniu em uma única experiência de pensamento, o arremesso
vertical, é o impensado da física aristotélica, na medida em que se trata de
um movimento sem motor, portanto, de um efeito sem causa, visto que
esta deixou de agir.
Algo mais é, entretanto, necessário para se falar de revolução científica,
não somente tomar o impensado como axioma, mas pensar o impensável.
O que foi decisivo na Revolução Científica da idade Clássica não foi o pro-
blema do arremesso, mas o do movimento da Terra, impensável na física
aristotélica e que não se torna pensável senão em uma outra ontologia, aquela
constituída pelo princípio de relatividade galilaico. O movimento da bala de
canhão só é pertinente, quanto a isso, na medida em que ele representa um

77
caso particular do movimento da Terra em torno do Sol e em que indica a
sua causa: a gravidade. Foi assim que pude reduzir todos os estudos de Koyré
sobre história do pensamento científico na idade Clássica à história de um
problema na longa duração, aquele da queda dos corpos em uma Terra em
movimento, que tem por questão tanto o impensado quanto o impensável
aristotélicos. Dito de outro modo, o subdeterminismo das teorias pela ex-
periência – nenhuma teoria pode ser validada pela experiência, pois várias
teorias podem dar conta da mesma experiência –, consequência epistemoló-
gica da lei lógica da validade da inferência do falso pelo verdadeiro, tornava
inofensivo o problema do arremesso enquanto tal para o aristotelismo, que
o colocava, ele próprio, e tentava resolvê-lo.
O movimento da Terra é, quanto a ele, impensável na ontologia aris-
totélica, porque a Terra é um corpo pesado, seu lugar natural é o centro do
mundo; deslocá-la representaria um movimento violento que não se con-
servaria se tivesse que durar; ou ele pararia, ou a Terra explodiria, segundo a
impulsão que lhe fosse dada. Enfim, para decidir se a Terra se move ou não,
basta considerar os movimentos dos corpos que estão separados dela, como
o voo dos pássaros ou a queda de uma pedra do alto de uma torre: se a Terra
se movesse em um mundo aristotélico, a pedra nunca cairia ao pé da torre.
Em outros termos, não é possível conceber o movimento da Terra senão
se se rejeitar a distinção aristotélica entre movimento natural e movimento
violento, o conceito aristotélico de peso como qualidade inerente aos corpos
e sua ideia de lugar natural; senão se se admitir, consequentemente, a rela-
tividade do movimento, em outras palavras, uma ontologia completamente
diferente, em que o movimento já não é concebido como um processo
afetando um corpo, mas como uma simples relação entre os corpos.
Enquanto que a astronomia ptolomaica foi colocada em questão no que
respeita ao que ela deixava impensado – o papel do Sol –, a física aristoté-
lica o foi quanto ao que ela reputava impensável e cujo alcance ontológico
era, com efeito, muito mais considerável. Esta a razão pela qual o sistema
ptolomaico não foi rejeitado como falso: ele constitui uma boa descrição do
movimento dos planetas do ponto de vista do observador terrestre e permite
fazer boas previsões. Assim, Tycho Brahe – que Koyré considera o melhor
observador de seu tempo, em que as observações astronômicas eram feitas

78
a olho nu – pôde rejeitar o sistema copernicano e permanecer fiel àquele
de Ptolomeu. Trata-se mesmo do exemplo canônico da subdeterminação
das teorias. Os fundamentos do sistema ptolomaico – a predominância do
movimento circular – foram retomados por Copérnico; eles não foram de
modo algum abandonados.
Pelo contrário, a física aristotélica foi confrontada àquilo que ela repu-
tava falso, impensável. Seus princípios, que operavam essa discriminação
entre a verdade e o erro, entre o pensável e o impensável, tiveram de ser
abandonados e outros concebidos a fim de se construir uma física compatível
com o sistema copernicano. Ela foi rejeitada conformemente à lei lógica que
estabelece que do verdadeiro ao falso a consequência não é válida.
Compreende-se então por que a revolução copernicana sobreveio de
um só golpe: ela tomou lugar no interior da astronomia ptolomaica. A física
clássica, pelo contrário, não pôde se constituir senão através de uma série
de revoluções ao longo de dois séculos: trata-se de uma física inteiramente
nova que devia ser fundada em princípios radicalmente diferentes a fim de se
pensar aquilo que, precisamente, o aristotelismo não permitia pensar. Mas,
antes disso, a antiga física devia ser destruída, porque ela era falsa, uma vez
que não permitia pensar o movimento da Terra, sobre o qual se sabia que
era pensável. Em seus estudos históricos, Koyré constantemente destacou
estes dois pontos: era preciso destruir e construir. Foi respondendo às obje-
ções aristotélicas que a física clássica constituiu-se sobre novos princípios.
Poder-se-ia datar a realização da revolução científica na idade Clássica
no momento em que os copernicanos deixam de argumentar contra as obje-
ções dos aristotélicos, pois isso significa que eles dispõem de uma ontologia
que lhes permite respondê-las, e sobre a qual eles estão todos de acordo:
princípio de inércia e princípio de relatividade. A partir desse momento, eles
divergem sobre a ontologia que os funda: princípio de plenitude e princípio
de razão suficiente versus princípio de atração universal. Os newtonianos, os
neocartesianos malebranchistas e os leibnizianos vão confrontar-se, desde
então e até a metade do século XViii, em três controvérsias de dois contra
um: neocartesianos e leibnizianos para sustentar a teoria dos turbilhões
contra o princípio de atração newtoniano – impensável, enquanto ação
à distância, em um modelo mecânico do universal, ao qual se limitam os

79
princípios admitidos do movimento; neocartesianos e newtonianos para
defender o princípio da conservação do movimento contra o princípio lei-
bniziano da conservação das forças vivas, que implica a atribuição de forças
à matéria – impensável, do mesmo modo, em um modelo mecanicista do
universo; newtonianos e leibnizianos contra neocartesianos a respeito da
figura da Terra. O paradigma newtoniano não se tornará hegemônico senão
na segunda metade do século XViii, e ainda se distinguirão facilmente
heterodoxias cartesianas, como, por exemplo, em Euler e, de uma maneira
mais geral, em toda a mecânica racional.
Sabe-se que Koyré caracterizou a revolução científica da idade Clássica
por dois traços: a destruição do Cosmos e a geometrização do espaço.
Lembrarei somente que o Cosmos é, para Koyré, um princípio de ordem
total do universo observável, cuja estrutura global pode-se determinar.
Toda cultura tem uma tal cosmologia. A geometrização do espaço, tornada
necessária pela revolução copernicana, conduz a um espaço isótropo que
não implica nenhum princípio de ordem total. A destruição do Cosmos,
correlativa da geometrização do espaço, conduziu, em um século e meio,
a um outro princípio de ordem – matemático este: o princípio da atração
universal, que estrutura a cosmologia moderna. A mudança de cosmologia
é correlativa de uma substituição de princípios, isto é, de ontologia. No que
concerne ao segundo ponto, observarei somente que o princípio de inércia
implica, com efeito, um espaço euclidiano enquanto princípio ontológico.
Mas há um outro traço característico da revolução científica que Koyré
minimizou, e portanto, desconheceu: a matematização da experiência que lhe
confere sua universalidade sobre o modo da reprodutibilidade. Ele duvidava
que as experiências alegadas pelos eruditos da idade Clássica tivessem sido
feitas, a não ser como encenações de um resultado previamente adquirido
e que diriam respeito à prestidigitação, senão à magia. Essa veia foi explo-
rada pela sociologia das ciências, à qual ele teria de bom grado, imagino
eu, deixado o assunto. Para ele, a ciência era essencialmente teórica; em um
certo sentido, a revolução científica não havia conduzido a romper com a
ontologia aristotélica senão para realizar a ontologia platônica, tendo por
consequência o que ele denominava “o desencantamento do mundo”, um
corte entre o mundo do pensamento e mundo da vida, aquilo que Husserl

80
havia designado como “a crise da ciência europeia”. Em outras palavras, se a
atividade científica pode ser geradora de valores deontológicos, a ciência não
o é de modo algum, a partir do momento em que dispensa uma ontologia
teológica que articularia os fatos aos valores, visto que eles seriam sempre
portadores de uma intenção.
Todavia, a matematização da experiência tem um alcance muito mais
profundo, que confere às observações da experiência o estatuto de uma
semântica universal. A matematização da experiência não torna possível
somente a mensuração dos fenômenos, asseguradora de sua reprodutibili-
dade; ela a estrutura e a interpreta. Todos os paradigmas concorrentes da
idade Clássica concordam quanto ao caráter experimental da ciência.
Ao método hipotético-dedutivo dos cartesianos e dos leibnizianos, que
rege sua maneira de fazer ciência e que não exclui a experiência, mas lhe
atribui o papel de determinação do real no campo dos possíveis a priori,
os newtonianos opõem o método experimental que atribui à ciência a ex-
plicação unicamente dos dados observáveis. Em um caso como no outro,
é necessário experimentar e nos dois casos esses dados observáveis devem
ser explicados por um modelo matemático. A diferença entre esses dois
métodos é que se um é dedutivo, o outro é preditivo. Visto que o primeiro
pode tudo deduzir, ele não pode nada predizer, mas trata-se de um método
formidável de descoberta a priori.
A constituição dessa semântica universal conduziu a ciência a se separar
da teologia como ontologia. As matemáticas não constituem senão uma on-
tologia geral formal; a matematização de um domínio do pensável permite
constituir uma semântica universal, e isso basta para uma ciência racional.
Mas essa ontologia, Koyré não a aplica nos autores que estuda; ele a
faz emergir dos pensamentos desses autores, nos textos por ele enfatizados.

A unidade do pensamento
Em sua notícia biográfica de candidatura ao Collège de France, Alexandre
Koyré declarava:
Desde o início de minhas pesquisas, fui inspirado pela convicção da
unidade do pensamento humano, particularmente em suas formas

81
mais elevadas; pareceu-me impossível separar, em compartimentos
estanques, a história do pensamento filosófico e a do pensamento re-
ligioso na qual se banha sempre a primeira, seja para nela se inspirar,
seja para a ela se opor (Koyré, 1966 [1951]: 11).

Desde o início de suas pesquisas, com efeito, visto que, nos anos 1920,
ele concebe a mística especulativa em Santo Anselmo, Descartes, Boehme e
nos místicos alemães do século XVi em termos de unidade de teologia cristã
e de filosofia neoplatônica. A fórmula dessa unidade, ele a encontra no fides
quaerens intellectum, a fé em busca de razão. Essa unidade da teologia e da
filosofia no pensamento escolástico é uma pesquisa sobre aquilo que já se
sabe. O papel da razão não consiste em descobrir ou em estabelecer fatos,
mas em compreendê-los. Essa elucidação do que é dado não é nada mais
do que o método fenomenológico. É verdade que Alexandre Koyré come-
çou suas pesquisas sobre a mística especulativa em Göttingen, no círculo
coordenado por Adolf Reinach, do qual um certo número de membros
judeus converteu-se ao cristianismo. De sua parte, Koyré tentou se deixar
convencer pelas provas da existência de Deus.
Koyré acrescentava na sequência do texto que acabo de citar:
“Rapidamente tive que me convencer que era do mesmo modo impossível
negligenciar o estudo da estrutura do pensamento científico” (Koyré, 1966
[1951]: 11). Ele tinha, com efeito, tentado interpretar o pensamento de Boehme
recorrendo à terminologia alquimista, antes de se dar conta de que seguia a
trilha errada e de que era preciso compreendê-la antes em referência à nova
cosmologia copernicana. Em resumo, no momento de sua tese de doutorado
sobre Jacob Boehme, Koyré acaba por conceber a unidade do pensamento
como unidade da teologia, da filosofia e da ciência, quer se tratasse da alqui-
mia, em um primeiro momento, ou da astronomia, em seguida. Em outras
palavras, o que o positivismo desdobrava, na diacronia, como inúmeros
estágios da evolução do pensamento – a teologia, a metafísica e a física –,
Alexandre Koyré procurou reunir em uma mesma perspectiva, na sincronia.
Em um texto da mesma época, o início dos anos 1950, a respeito da
influência das concepções filosóficas na evolução das teorias científicas
(Koyré, 1961 [1955]), Koyré articula as relações entre esses três domínios;
ele desenha-lhes, de algum modo, a topologia. O pensamento científico,

82
sustenta ele, encontra-se sempre no interior de um quadro de ideias, de
princípios, de evidências axiomáticas, que pertencem de direito à filosofia.
Um quadro de ideias, por exemplo: a ideia de um espaço homogêneo, ao
invés de diferenciado em lugares apropriados a certas entidades; um quadro
de princípios, por exemplo: o princípio da conservação do movimento ou o
princípio de inércia; e um quadro de evidências, por exemplo: de que exista
um Deus criador, de modo que se o mundo é geométrico, então Deus é
geômetra, portanto, racional e não arbitrário, e pode-se conhecer o mundo
que ele criou desde que saibamos dirigir nossa razão. Se Deus pode fazer
tudo, ele não faz qualquer coisa.
Essas ideias, esses princípios e essas evidências são “axiomáticas”, pre-
cisa Alexandre Koyré, isto é, eles são a priori, mas não são puros, visto que
devem ser validados pela experiência. E são eles, esses princípios, essas ideias
e essas evidências, que dão sua unidade ao pensamento, qualquer que seja
seu domínio de exercício – a teologia, a metafísica ou a física. Pois eles são
ontológicos, estruturam o ser e determinam os fenômenos observáveis. Se
Deus é bom, como conceber a existência do mal? Será preciso nada menos do
que uma teodiceia. A priori, esses princípios, ideias e evidências ontológicos
não podem ser apreendidos senão por uma intuição, ou dados senão a uma
intuição. O trabalho do historiador, qualquer que seja sua disciplina, consiste,
segundo Alexandre Koyré, em apreender novamente a intuição ontológica
de um pensador, seja ele místico, filósofo ou cientista, e em reconstruir seu
pensamento a partir daí.
Vejamos dois exemplos: Alexandre Koyré mostra, assim, que é pela
mesma razão, sua intuição ontológica fundadora, que Galileu e Descartes
chegam à verdade e recaem no erro. Um descobre a lei da queda dos corpos,
em que o outro fracassa, mas este descobre o princípio da inércia, que aquele
não pode formular. A intuição ontológica de Galileu é que os corpos são
pesados, os corpos físicos são seguramente corpos geométricos, mas dotados
de gravidade. A física é uma geometria dos graves, é isso o que a distingue
da geometria matemática. A intuição ontológica de Descartes é completa-
mente diferente; ela é aquela das duas substâncias das quais se compõe o
mundo, de uma substância pensante e de uma substância material, o que
torna possível o sujeito transcendental, um sujeito que constitui seu objeto,

83
certamente segundo regras rigorosas, conforme testemunha-o a invenção
da geometria algébrica. O sujeito manipula os deslocamentos dos objetos
no espaço, ele não mais se contenta em observá-los e deduzi-los de suas
observações; ele constrói para esses objetos a fórmula que ele pode fazer
variar, conforme sua vontade. Se, para Alexandre Koyré, eles compartilham,
um e outro, a mesma ontologia arquimediana, cuja fórmula foi dada por
Galileu4, a redução do real ao geométrico que ela implica tem limites em
Galileu, aqueles impostos pelo peso; o mesmo não ocorre em Descartes, pois
o retorno do geométrico ao real está assegurado de facto pela existência de
um Deus verídico. É por essa diferença de intuição ontológica que Koyré
explica tanto a verdade quanto o erro em um e em outro.
Koyré mostra como tanto Galileu quanto Descartes cometem o mesmo
erro em relação à lei de queda dos corpos, mas que Galileu corrigirá graças
a sua intuição ontológica, ao passo que Descartes permanecerá dele prisio-
neiro, em razão de sua intuição ontológica. Porque eles queriam pensar o
movimento geométrico, porque buscavam sua fórmula geométrica, Galileu
e Descartes não podiam evitar eliminar o tempo, as propriedades do mo-
vimento não sendo mais que aquelas de uma figura no espaço. A redução
do real ao geométrico – nisso que consiste seu projeto de uma dinâmica
arquimediana, segundo Koyré – conduzia-os inevitavelmente a substituir
o tempo pelo espaço.
Galileu conhecia a lei de queda dos corpos e sabia que o espaço per-
corrido por um corpo em queda livre era proporcional ao quadrado dos
tempos, e que os espaços percorridos em tempos iguais eram entre si como
a série de números ímpares. Mas esse saber, fenomenológico, não lhe bas-
tava, pois queria descobrir o princípio do movimento de queda dos corpos,
a partir do qual se poderia deduzir essa lei descritiva. O princípio que ele
adotou inicialmente foi aquele de uma velocidade proporcional à distância
percorrida – princípio que, segundo Koyré, não lhe era próprio, mas vinha

4. “La filosofia è scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi
a gli occhi (io dico l’universo), ma non si può intendere se prima non s’impara a intender
la lingua, e conoscer i caratteri, ne’ quali è scritto. Egli è scritto in lingua matematica, e i
caratteri son triangoli, cerchi, ed altre figure geometriche, senza i quali mezi è impossibile
a intenderne umanamente parola; senza questi è un aggirarsi vanamente per un oscuro
laberinto” (Galilei, 1623:15-16).

84
da física do impetus à qual ele havia outrora aderido. Ora, esse princípio não
permite deduzir a lei de queda dos corpos, mas – explica ele pela pregnância
da ontologia arquimediana subjacente –, a explicação do movimento de
queda tendo em vista a razão não da queda, mas das variações de sua velo-
cidade: se um corpo cai de uma certa altura e com uma certa velocidade, ele
cairá de um ponto mais elevado com uma velocidade maior, de modo que a
diferença de velocidade pareça dever ser atribuída ao único parâmetro que
variou, a saber, a altura, portanto o espaço.
Do mesmo modo, quando Descartes se apodera do problema da queda
dos corpos, trata-se para ele, explica Koyré, de determinar a relação entre
duas grandezas geométricas, uma trajetória e uma velocidade uniformemente
variável. A velocidade do movimento uniformemente acelerado aparece-
lhe então proporcional ao caminho percorrido e não ao tempo decorrido.
Descartes representa a sucessão no tempo por um desdobramento no espaço
que engendra o triângulo representativo da velocidade do móvel, ele próprio
engendrado pela trajetória, isto é, o espaço percorrido pelo móvel. E é sua
ontologia que vai impedir Descartes de corrigir seu erro: de um lado, a lei
da queda dos corpos supõe o vácuo; ora, o espaço cartesiano é um espaço
pleno, uma extensão em que os corpos não entram em relação uns com
os outros senão pelo contato do choque. De outro lado, ela pressupõe a
uniformidade da ação do peso; ora, o peso não é para Descartes o efeito da
atração terrestre, mas resulta do impulso das partículas que turbilhonam
ao redor da Terra. O pleno e o choque impedem Descartes de formular a
lei da queda dos corpos.
Koyré mostra como, ao contrário, a intuição ontológica permitirá a
Galileu superar seu erro. Atento à “afinidade [...] entre o movimento e o
tempo”, segundo sua própria expressão, Galileu pode conceber um movi-
mento acelerado como um movimento no curso do qual crescimentos iguais
de velocidade se sobrepõem em tempos iguais, de modo que a velocidade
seja proporcional ao tempo decorrido e não mais ao espaço percorrido.
É porque a física não é inteiramente redutível à geometria, devido ao fato de
os corpos físicos serem corpos graves, que Galileu pode restituir seu papel
ao tempo e não mais subtituí-lo por sua representação espacial.

85
A intuição ontológica de Galileu não lhe permite somente corrigir seu
erro e descobrir a verdadeira razão da lei da queda dos corpos proporcional
ao quadrado dos tempos, mas o conduz a conceber o princípio implicado
por essa mesma razão, um princípio de conservação que, por definição, é
ontológico, visto que estabelece a permanência de uma entidade – no caso,
a quantidade de movimento. Mas esta intuição de que os corpos físicos são
pesados impede-o de conceber o princípio de inércia. Os corpos físicos não
têm, explica Koyré, enquanto graves, nenhuma propensão ao movimento
retilíneo, único movimento que pode ser concebido como movimento iner-
cial. Todo movimento horizontal, para Galileu, inflecte-se necessariamente
em movimento parabólico.
Descartes, pelo contrário, e pela mesma razão pela qual não pôde conce-
ber o princípio da lei da queda dos corpos, formulou o princípio de inércia.
Ocorre que, segundo Koyré, o conceito cartesiano de movimento é um con-
ceito puramente geométrico, não é um conceito dinâmico, mas cinemático,
o movimento do ponto que engendra uma curva, aquele de uma curva que
engendra uma superfície, ou o de uma superfície que engendra um volume,
como Koyré o destaca desde o início do capítulo sete de Do Mundo fechado
ao Universo infinito, no qual se encontra formulado o princípio de inércia
como primeira lei do movimento. Tal princípio não é senão a expressão
do movimento em um espaço infinito, homogêneo e isótropo, o espaço da
geometria euclidiana. Descartes funda-o no princípio ontológico da imu-
tabilidade divina. Um corpo conserva seu estado de movimento enquanto
não for impedido por um outro. Koyré faz observar que, no mundo pleno
de Descartes, não há lugar para o movimento retilíneo, pois os choques dos
corpos entre si os desviam dessa trajetória, de modo que o movimento inercial
retilíneo não é um movimento real, mas uma inclinação ao movimento, um
movimento pontual. Tal como o exemplo da catapulta, que ele toma como
paradigma, Descartes poderia ter concebido a noção de diferencial, mas,
tendo eliminado o tempo, ficou impedido de fazê-lo.
A intuição ontológica primordial permite dar conta da unidade de um
pensamento em sua trajetória [acheminement] em direção à verdade, mas
também inevitavelmente em direção ao erro. Se a ciência é a perseguição
da verdade, a história das ciências, segundo Koyré, é o estudo do erro.

86
A verdade é desinteressante, evidente e trivial. Os erros são, pelo contrário,
interessantes na medida em que é necessário dar conta deles e saber in-
terpretá-los. Koyré considerava precisamente os erros como sintomas não
ambíguos da ontologia que os produziu.
Falta saber como apreender essa intuição ontológica primordial. Adolf
Reinach forneceu a Koyré o método: a empatia, essa faculdade cognitiva
de se colocar no lugar dos outros, de adotar seu ponto de vista e de formar
suas representações para experimentar eventualmente os mesmos afetos. No
caso, trata-se de representar a ontologia de um pensador para reencontrar
suas intuições mais profundas. Trânsfuga de Munique, onde havia seguido,
no início do século XX, o ensino do teórico da empatia, Theodor Lipps,
Adolf Reinach havia encontrado Husserl em Göttingen após ter lido suas
Investigações Lógicas. Tendo se tornado seu assistente, Reinach organizou
um seminário, antes da i Guerra Mundial, que foi seguido por Alexandre
Koyré. Além da empatia, Reinach tratou de Platão, de Descartes, da teoria dos
números e dos paradoxos de zenão, assuntos de que Koyré tratará por sua
própria conta. Se não resta nada dos estudos de Adolf Reinach sobre Platão
e Descartes que permitiriam compará-los àqueles de Koyré, por outro lado,
os dois primeiros artigos de Koyré, sobre a teoria dos números de Russell
e sobre os paradoxos de zenão, podem ser confrontados aos inéditos de
Reinach, publicados postumamente no início dos anos 1920. Enquanto que
nos dois casos, trata-se em Adolf Reinach de uma análise fenomenológica da
essência dos inteiros naturais5 de um lado, e do movimento6 de outro, não
se trata em Alexandre Koyré senão de revelar um paradoxo na concepção
russelliana dos inteiros naturais e de compreender a finalidade ontológi-
ca de zenão de Eléia a partir de seus paradoxos. Dito de outro modo, se
Alexandre Koyré inspirou-se nas temáticas de Adolf Reinach, ele as trabalhou
à sua maneira de historiador, servindo-se da empatia para apreender não
as essências dos fenômenos, mas a intuição ontológica primordial que faz
a unidade de um pensamento.

5. Em “Über den Begriff der zahl” (1989: 515-529), Adolf Reinach sustenta que os inteiros
naturais não são atributos de objetos, mas estados de coisa.
6. Em “Über das Wesen der Bewegung”, Adolf Reinach (1989: 775-786) tenta resolver os
paradoxos de zenão considerando que o movimento não depende do que persevera, mas
daquilo que está nele em devir.

87
Ler Alexandre Koyré é segui-lo em direção ao coração de um pensa-
mento e apreender com ele, graças a ele, a intuição ontológica fundamental
que esclarece toda uma obra. Compreende-se então que uma revolução
científica não seja nele uma outra maneira de fazer, mas sim uma maneira
totalmente outra de pensar.

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88
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por K. Schuhmann e B. Smith. Munique: Philosophia Verlag, 1989, vol. i,
p. 775-786.

89
4

A ordem cartesiana em Alexandre Koyré


Francismary Alves da Silva – UFSB

Cinquenta anos após o falecimento de Alexandre Koyré, em 1964,


muito se tem dito sobre o autor, sobre sua obra ou sobre seu legado para
a História das ciências. Apesar disso, ainda existem poucos trabalhos que
buscam analisar especificamente temas que orbitem em torno da trajetória,
das influências ou da importância da obra e do pensamento de Alexandre
Koyré. Esse movimento de muito dizer ao passo que pouco se estuda sobre
o autor ou sua obra ocorre, nesse caso, principalmente por dois motivos.
Primeiramente, é preciso reconhecer a importância que os trabalhos do
autor ganharam na área da história das ciências e do pensamento científico.
Não teríamos dificuldade em encontrar um trabalho, na referida área do
conhecimento, com alguma referência a Alexandre Koyré, sobretudo em
se tratando de temas clássicos, tais como a revolução científica, as origens
da ciência moderna, a física, o pensamento de Galileu, de Descartes, ou o
pensamento científico como um todo. Também encontraríamos, facilmente,
menções ao trabalho de Koyré nas obras de ícones da história das ciências:
George Sarton, René Taton, Thomas Kuhn, John Henry, Steven Shapin,
entre outros. Mesmo autores que não foram considerados cânones nos es-
tudos sobre as ciências ou que sequer dialogaram com os historiadores das
ciências, debruçaram-se, em algum momento e por motivos diversos, sobre
os estudos de Koyré. Foi o caso, por exemplo, de Michel Foucault, Jacques
Lacan, Jacques Derrida, Lucien Febvre, Fernand Braudel. Trata-se, portanto,
de um autor bastante conhecido nas ciências humanas. Contudo, conforme

91
alertei acima, o fato de ser bastante conhecido não pressupõe um profundo
conhecimento da obra, do legado e das ideias defendidas por Alexandre
Koyré. Pelo contrário, muitas vezes o que se tem são caricaturas, etiquetas
ou rótulos amplamente difundidos sobre o autor e sua obra. Pode-se dizer
que Koyré é quase tão conhecido quanto seu mais recorrente rótulo, o de
ser “internalista”.
Um segundo motivo para explicar o movimento de muito dizer ao passo
que pouco se estuda especificamente a vida ou a obra de Koyré, em correspon-
dência com o primeiro motivo, dá-se pelo fato de que seus trabalhos na área
da história das ciências são considerados datados, ultrapassados. Em outras
palavras, isso quer dizer que seus trabalhos são conhecidos, reconhecidos,
mas enfaticamente superados. Nesse caso, os rótulos servem, em grande
medida, para taxar trabalhos que consideramos ultrapassados, que já foram
“melhorados” pela historiografia posterior. Em síntese, a equação parece
simples: por ser bastante conhecido, torna-se rotulado. Por ser rotulado,
termina por ser datado. Rotular e datar, os dois motivos aqui sugeridos se
fecham num ciclo vicioso de didatismo e de superficialidade acerca da obra
do autor que, apesar de muito lido, permanece sendo parcialmente utilizado,
já que possui uma obra extensa em quantidade e assunto. O que indica uma
carência de estudos aprofundados sobre o todo de sua obra.
Em se tratando de rótulos, o título de “internalista” talvez seja o mais
comumente aplicado ao legado de Alexandre Koyré. O internalismo, sabe-se,
foi um tipo de narrativa histórica acerca das ciências muito difundida até
meados da década de 19601 e que tinha como principal característica descre-
ver a ciência ou o desenvolvimento científico a partir de questões próprias
das ciências, isto é, a partir de conceitos, teorias, fórmulas, experimentos
científicos. Eram narrativas que descreveriam a ciência como se ela se de-
senvolvesse sem qualquer correspondência com seu contexto. Essa vertente,
fortemente criticada e, por isso mesmo considerada ultrapassada, estava em

1. Tem-se aceito que a obra de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, publi-
cada em 1962, em certa medida, resolveu o embate entre o internalismo e o externalismo.
Para uma análise crítica da solução pacificadora entre o internalismo e o externalismo na
obra de Kuhn, ver Maia, 2013.

92
oposição à vertente externalista. Em contraste, os externalistas descreviam
o desenvolvimento das ciências, preponderantemente, a partir dos trâmites
políticos, sociais, econômicos, culturais da ciência e dos cientistas. Grosso
modo, enquanto os externalistas ocupavam-se do contexto, os internalistas
estudavam as questões teóricas, conceituais das ciências. Alexandre Koyré,
que desde muito cedo procurava entender o pensamento ou as formas de
pensamento dos homens – fosse o pensamento religioso, filosófico ou cien-
tífico – foi perfeitamente enquadrado como sendo um internalista. E, de
fato, seus trabalhos enquadravam-se nessa vertente da história das ciências.
São bastante conhecidos os trabalhos em que o autor desenvolveu esse viés
internalista: Do Mundo Fechado ao Universo Infinito; Do Mundo do Mais
ou Menos ao Universo da Precisão; Estudos Galiláicos; a coletânea de artigos
intitulada Estudos de História do Pensamento Científico, entre outros. Tamanha
foi a repercussão e o reconhecimento desses trabalhos do autor que, não por
acaso, Koyré é confundido com seu próprio rótulo; é considerado “ícone do
internalismo” ou ainda “pai do internalismo” (Elkana, 1987).
Certamente a rotulação serve para demarcar o lugar de determinado
trabalho, de determinada vertente. Didatismos à parte, o rótulo amplamen-
te empregado ao trabalho de Koyré serve para alimentar o movimento a
pouco referenciado, aquele que torna o autor muito conhecido, ainda que
parcialmente, e, ao mesmo tempo, pouco estudado, questionado, revisitado
no conjunto de sua obra. Parece-nos que tudo que há para ser dito sobre
Alexandre Koyré cabe em sua qualificação de internalista. Mas, além disso,
Koyré também recebe outras formas de caracterização de seus trabalhos,
formas muitas vezes também relacionadas à etiqueta internalista. Como
muitos dos trabalhos de Alexandre Koyré sobre o desenvolvimento científico
consideram a revolução científica como uma “desforra de Platão” frente ao
mundo organizado e hierarquizado da Escolástica, é bastante comum en-
tender seu trabalho e, portanto, seu pensamento, pelo rótulo de “platônico”.
Também por estudar o pensamento, isto é, o plano das ideias, a caracteri-
zação “platônico” ganhou destaque nas descrições dos trabalhos do autor.

93
Esses dois rótulos – internalista e platônico – não foram dados à toa.
A desforra de Platão e mesmo a utilização das estruturas, unidades ou estilos
de pensamento2 são formas de compreensão da ciência e do desenvolvi-
mento científico comuns na obra de Koyré. Muito embora exista uma forte
tendência a retirar-lhe todas essas qualificações, quase como se lhe fossem
indevidas, é preciso lembrar que foram características aceitas pelo próprio
autor. E mais, são características que o próprio Koyré defendeu contra lei-
turas das ciências que iam de encontro às suas, isto é, leituras externalistas
ou leituras que não levavam em consideração as formas de pensamento no
desenvolvimento da ciência. Um bom exemplo da defesa koyreana em prol
de uma história do pensamento científico pode ser encontrado no texto
denominado Orientação e Projetos de Pesquisa, de fevereiro de 1951:
Desde o início de minhas pesquisas fui inspirado pela convicção da
unidade de pensamento humano, particularmente em suas formas mais
elevadas. Pareceu-me impossível separar, em compartimentos estanques,
a história do pensamento filosófico e a história do pensamento religioso,
do qual o primeiro sempre se serve, quer para nele inspirar-se, quer
para refutá-lo.

Essa convicção, transformada em princípio de pesquisa, mostrou-se


fecunda para a intelecção do pensamento medieval e moderno, mesmo
no caso de uma filosofia, aparentemente tão despojada de preocupa-
ções religiosas, como a de Spinoza. Mas era preciso ir mais longe. Tive
que convencer-me, rapidamente, de que era analogamente impossível
negligenciar o estudo da estrutura de pensamento científico (Koyré, 2011a
[1966] 1). Grifos meus.

2. Ao longo das obras de Koyré, o autor vai alternando a forma como se refere à noção de
“estilo de pensamento”. Apenas a título de elencar alguns exemplos dessa flexibilidade,
cito algumas variações do termo, ressaltando que apesar das alterações, o entendimento
permanece o mesmo: em Estudos Galilaicos, Koyré fala em atitude mental e experiência
do pensamento; no ensaio O Pensamento Moderno, Koyré fala em Zeitgeist, em modo ou
maneira de pensar e, ainda, em estilo de pensamento; em a Contribuição Científica da
Renascença, o autor fala em experimentum; em Do Mundo Fechado ao Universo Infinito,
refere-se a modelos estruturais do pensamento e formas de pensar; em Leonardo da Vinci
500 Anos Depois, Koyré diz estrutura mental; em Galileu e Platão, utiliza a expressão atitude
mental ou intelectual, entre outros. Os artigos aqui elencados podem ser encontrados na
coletânea Estudos de História do Pensamento Científico.

94
Não obstante, existem, ainda, outras características, ou rótulos, menos
conhecidos sobre o autor em questão. Em artigo de 2001, intitulado História
das ciências através das lentes de Koyré, James Stump explica que a caracte-
rização platônica, ou internalista, é a interpretação padrão mais aceita de
Koyré, mas, em sua opinião, não seria a mais oportuna. Segundo Stump
(2001), se vamos mesmo dar uma etiqueta a Alexandre Koyré, melhor do
que chamá-lo ou entendê-lo como internalista ou platônico seria entendê-lo
como um hegeliano. Com Stump, é possível realizar um movimento interes-
sante de aproximação entre o Zeitgeist de Hegel e o pensamento koyreano.
Zeitgeist (“espírito de um tempo” ou “espírito de uma época”), segundo
o filósofo Friedrich Hegel, pode ser entendido, grosso modo, como sendo o
conjunto de ideias, de noções ou o clima intelectual que forma a consciência
de determinada época. É o espírito que paira sob uma época, a consciência
de mundo compartilhada por sujeitos de um tempo histórico específico.
Ainda que Koyré não possa ser considerado um hegeliano, ou mesmo um
importante intérprete da filosofia de Hegel, conforme explica Márcia Silva
(2010), obviamente, Koyré foi um incansável leitor de Hegel. A obra do filó-
sofo alemão aparece em vários planos de curso de Koyré na École Pratique
des Hautes Études e, em geral, são os cursos com maior número de inscritos
(Redondi, 1986). Koyré também teria sido o responsável por introduzir a
filosofia de Hegel na França, muito embora tenha sido Alexandre Kojève, que
substituiu Koyré em seus cursos sobre Hegel na École Pratique des Hautes
Études3, que se consagrou como importante intérprete da filosofia hegeliana
na França. Koyré também publicou alguns textos sobre Hegel no início da
década de 1930, período em que a filosofia hegeliana ainda não encontrava
eco em solo francês. Os ensaios intitulados Hegel em Iena, (publicado na
Revue d´histoire et de philosophie religieuses, em 1934), Nota sobre a língua
e a terminologia hegelianas (publicado na Revue philosophique, em 1934) e
Relatório sobre o estado dos estudos hegelianos na França (publicado nos anais
do Verhandlungen des Ersten Hegelkongresses ocorrido em 1930, na cidade

3. Os programas de curso de Alexandre Kojève na École Pratique des Hautes Études podem
ser encontrados em: Kojève, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2002.

95
de Haag), ressaltam o que podemos chamar de reintrodução dos estudos
hegelianos na França.4
Além de ter sido um leitor de Hegel, além de ter escrito sobre Hegel,
Koyré pode ter se inspirado no Zeitgeist hegeliano para entender a estrutura
(ou estilo, ou unidade) de pensamento que relaciona filosofia, religião e
ciência de determinado tempo histórico. Esse traço da filosofia hegeliana,
presente na obra de Koyré, ajudaria a corroborar a hipótese de James Stump
de que o pensamento koyreano talvez tivesse mais proximidade da filosofia
hegeliana do que do idealismo platônico. A obra de Koyré também se aproxi-
maria do hegelianismo em dois sentidos, por tratar de forma dialética a ideia
de ruptura e continuidade e por descrever os erros e sua relação, também
dialética, entre o conhecimento científico e a irracionalidade (Stump, 2001).
Retrospectivamente, se avaliarmos os primeiros temas de interesse
desenvolvidos por Koyré ao longo de sua trajetória profissional na École
Pratique des Hautes Études, pode-se dizer que os trabalhos de Koyré, na área
da História das ciências, iniciam-se a partir de estudos filosóficos sobre as
religiões, sobre o misticismo. Em seus programas de cursos, vemos temas
como o sistema religioso de Jacob Boehme, os sistemas místico-religiosos
do século XVi, a magia (como na obra de Paracelso), a relação de algumas
doutrinas religiosas com o idealismo alemão, o romantismo alemão, o ra-
cionalismo kantiano, o pensamento de Fichte em oposição ao de Schelling,
a já citada filosofia de Hegel, as teologias reformistas como as de Lutero e
Calvino, entre outros temas concernentes a questões de filosofia da religião
(Redondi, 1986). Ainda que seus programas de ensino e pesquisa na École
Pratique des Hautes Études variassem de objetos (Hegel, Boehme, Descartes
ou Lutero), o objetivo das propostas de trabalhos permanece bastante se-
melhante, a saber: perceber a influência do pensamento filosófico, místico
e/ou religioso nas diversas formas de conhecimento, em determinada tem-
poralidade, por meio de análises históricas. Pensando, então, nessa apro-
ximação entre o Zeitgeist e o estilo de pensamento, podemos entender que
o rótulo hegeliano, dado por James Stump (2001) aos trabalhos de Koyré,
são aceitáveis e, novamente, aproximam Koyré do seu próprio rótulo mais

4. Todos esses artigos podem ser encontrados em (Koyré, 2011b [1961]).

96
conhecido: “internalista”, posto que Koyré era conhecido como internalista
justamente por estudar o pensamento (ou Zeitgeist) científico.
O movimento estabelecido por James Stump é interessante, pois busca
revisitar a obra de Koyré – o que já seria um movimento importante diante
de um contexto de superficialidade e didatismo acerca do legado do autor
– e dar-lhe outro rótulo, outra denominação, ainda que esta se aproxime da
denominação canônica: internalista. Outras formas de entender o trabalho
de Koyré procuraram, mais enfaticamente, retirar-lhe o rótulo internalista,
como se o mesmo fosse indevido, ou como se o mesmo não fosse defendido
pelo próprio autor. Trabalhos desse tipo, que me parecem pouco oportunos,
têm seu representante mais conhecido no texto intitulado Alexandre Koyré:
entre a história das ideias e a sociologia do conhecimento, publicado em 1987.
Neste trabalho, Yehuda Elkana (1987) inicia sua análise contextualizando
Koyré numa tradição cujo maior legado seria o de ter feito uma história das
ciências a partir de ideias desencarnadas, ou seja, uma história das ciências
em que as considerações sociológicas sequer são mencionadas. Assim, Koyré
não é visto apenas como um internalista, e sim como “o internalista”, ou o
“pai do internalismo”.
Contudo, na sequência de sua exposição, Elkana (1987) evidencia como
Alexandre Koyré estava interessado em demonstrar a relação das influências
político-religiosas do conhecimento. Segundo Elkana (1987), os pensamen-
tos estudados por Koyré não foram apenas filosófico-matemáticos, mas
religiosos, políticos. Seriam esses pensamentos que determinariam, que
justificariam as formas de conhecimento. Não fosse essa afirmação por si
só extraordinária, até mesmo para uma revisão historiográfica da década
de 1980/1990, Elkana (1987) ainda afirma, taxativamente, que Alexandre
Koyré estaria entre os criadores da sociologia da ciência, ao lado de Robert
K. Merton, por exemplo. isso poderia ser comprovado porque, em Koyré,
as ideias, as imagens do conhecimento não se formariam do nada, espon-
taneamente, mas a partir de profundas transformações culturais que en-
volveriam a posição do homem diante do universo, diante da sociedade,
diante de deuses e das crenças. As mudanças das estruturas de pensamento
seriam, assim, mudanças socialmente determinadas. E seria justamente
por isso que somente um estudo sócio-político-econômico, tal como o de

97
Koyré, poderia descrever tais transformações. Todos esses fatores, explica
Elkana (1987), eram pilares, temas importantes e de interesse de Koyré e
que contribuiriam para considerá-lo um historiador com relevante leitura
sociológica da ciência. Ora, uma vez que, em Koyré, as formas de se ver as
mentalidade intelectuais implicariam, necessariamente, o contexto cultural
de determinada época, chamá-lo de internalista seria uma redução, e mais,
seria um equívoco. A prova cabal oferecida por Y. Elkana (1987) reside no
fato de que o trabalho de Thomas Kuhn (declaradamente influenciado por
Koyré) iluminou ideias híbridas, internas e externas, já contidas nas obras
de Koyré, muito embora a tradição as tenha negado.
Seria possível concordar com Elkana (1987) em diversos pontos de sua
reflexão. Estou em acordo com o autor quando este afirma que o legado
de Koyré é fruto de uma leitura redutora, por exemplo. Tenho insistido na
potencialidade semântica e epistemológica do termo unidade, estrutura
ou estilo de pensamento. Em Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, a
ampliação do cosmos, descrita por Koyré, é uma ampliação significativa, do
ponto de vista religioso, da ideia de deus (Koyré, 2006 [1958]). Também por
meio do conceito de experimentum, muito utilizado por Koyré em Estudos
Galiláicos, pode-se entender que um campo de indagação e pesquisa só
se abre quando a pergunta motivadora tem legitimidade político-social
(Koyré, 1986). No mesmo sentido, o Zeitgeist hegeliano, citado e utilizado
por Koyré para descrever o espírito de uma época, não era uma concepção
desencarnada, descontextualizada, mas, pelo contrário, servia exatamente
para descrever as múltiplas relações sociais que os homens estabelecem e
que são absorvidas por eles como formas de ver, de entender, de explicar
o mundo (Koyré, 2011a [1966]). Esse raciocínio, essa fórmula poderia ser
aplicada a vários outros trabalhos de Koyré, tais como aos estudos sobre a
destruição do cosmos, sobre a geometrização do espaço, sobre as contrain-
tuitivas leis de Newton, sobre o pensamento renascentista, sobre a noção de
espaço-tempo ou sobre a ideia de infinito. Em todos esses temas, o estudo
do pensamento não é um estudo realizado estritamente pelo viés científico,
teórico, de forma desencarnada ou descontextualizada. Nesse ponto, Elkana
(1987), em consonância com o trabalho de James Stump (2001), possivel-
mente tem razão. A proposta narrativa, epistemológica de Alexandre Koyré

98
não deve ser entendida a partir de uma exclusiva limitação ao internalismo.
Haveria mais em Koyré do que uma leitura internalista da ciência? Haveria.
isso implica que os trabalhos de Koyré poderiam, sim, influenciar trabalhos
de historiadores das ciências, inclusive na contemporaneidade, sem que isso
significasse uma direta, completa e anacrônica adesão ao modo internalista
de descrever o desenvolvimento científico, por exemplo. São, todas estas,
possibilidades interpretativas.
Contudo, algo que Elkana talvez não tenha questionado, mas que é
de grande relevância para um estudo histórico e historiográfico, deve ser
lembrado aqui: por que a tradição se apropriou de Koyré de uma forma
(redutora) e não de outra? O próprio Koyré – e isso fica evidente em seus
planos de cursos, nos debates travados acerca do Galileu teórico versus o
Galileu homo faber, nos cargos institucionais ocupados, nas universidades
(sobretudo nas norte-americanas) em que foi convidado para ministrar
cursos – foi um defensor da chamada corrente internalista. Ainda que seus
argumentos possibilitassem análises culturais, políticas ou econômicas, sua
leitura era preponderantemente teórica, filosófico-matemática. Lembremo-
nos, para Koyré, a experiência era a experiência do pensamento, as trans-
formações lidas por Koyré seriam transformações de enfoques mentais,
ainda que outras nuanças políticas ou religiosas pudessem – e certamente
podem – ser lidas em seus trabalhos.
Assim, ainda que todo esse movimento de releitura dos trabalhos e do
legado de Koyré possa ser feito, é preciso lembrar, tanto no âmbito profissional
quanto no âmbito conceitual e ideológico, que Alexandre Koyré ocupou o
lugar de “pai do internalismo” defendendo essa forma de entendimento do
desenvolvimento científico. Ele certamente desfrutou de tal prestígio, foi
considerado o fundador de uma discursividade, do viés internalista da história
das ciências. Respondeu aos críticos, afirmou seu lugar de pesquisa, reforçou
sua tradição de historiador do pensamento diante de autores que tinham
posicionamentos opostos. Nesse ponto, na fundação de uma discursividade,
isto é, na “função autor” (Foucault, 1997) estabelecida e defendida por Koyré,
talvez esteja assentada a delicadeza da diferenciação que o configura como
um internalista, mais do que na argumentação a partir dos fatores internos
e/ ou externos da tradicional querela. Afinal, nenhum fator pode ser consi-

99
derado, de partida, interno ou externo. Não seria justamente a sutileza da
construção de sentido de uma narrativa histórica que indicaria diferenças
ou semelhanças entre um viés mais internalista e outro mais externalista?
Creio que sim, tanto é que as fórmulas de salvação, de inversão de legados
– tal como Shapin (1988) aplica a Merton em artigo intitulado Entendendo
a tese de Merton, de 1988, e Elkana (1987) aplica a Koyré – são perfeitamente
possíveis, posto que há nuanças, outras possibilidades interpretativas, tanto
nos trabalhos de internalistas quanto nos de externalistas. Salvar Alexandre
Koyré de seu rótulo internalista seria uma estratégia argumentativa possí-
vel. Mas, não é a proposta argumentativa que considero mais viável, an-
tes o contrário, creio que há muito para ser entendido dentro da etiqueta
“internalista”, dentro da própria tradição, da própria discursividade fundada
e defendida pelo autor. Passados cinquenta anos de seu falecimento, talvez
seja historicamente mais útil entender o rótulo internalista aceito e defendido
por Koyré, do que criar outra caricatura, oposta: a de externalista.
Desse modo, buscando argumentar, já em conclusão, proponho en-
tender o internalismo de Alexandre Koyré a partir de uma pequena obra,
com vias a, não simplesmente, incrementar a característica que reforça o
rótulo internalista do autor. Em outros termos, reforçarei outro rótulo que
termina, novamente, reforçando, mas também questionando e revisitando
sua caracterização como internalista, a saber: a ordem cartesiana em Koyré.
Em Considerações sobre Descartes – texto originalmente publicado no ano
de 19385 – a “paixão”, o “encantamento” de Koyré pelo filósofo do racionalis-
mo fica evidente. A postura dita internalista do autor é outra característica
bastante evidente, como se verá adiante. Logo nas primeiras páginas, Koyré
(1980) explica que, apesar dos três séculos que nos separam de Descartes,
este continua um autor atual, sobretudo porque, há três séculos, o pensa-
mento ocidental europeu orienta-se pela ordem cartesiana, pela liberdade
da razão. O Discurso do Método, de 1637, explica Koyré (1980 [1938]), não é o
mesmo que chegou as nossas mãos hoje. Vários apêndices foram retirados e,

5. Em 1938, Koyré publicou Trois leçons sur Descartes, no Cairo. Em 1944, Koyré publica as
mesmas três lições sobre Descartes – a saber: o mundo incerto, o cosmo desaparecido e o
universo reencontrado – com o título de Entretiens sur Descartes.

100
contudo, o que ainda é possível perceber no Discurso do Método é que, além
de um tratado sobre o método, é também uma autobiografia de Descartes.
Apesar de demonstrar toda sua admiração por Descartes, Koyré (1980)
afirma que o método da dúvida não é um método para todos, isto é, não é
um método para multidões, mas apenas um método que Descartes descreve
e que funciona para Descartes. Trata-se de um trabalho de cunho filosófico,
científico, mas também biográfico. Qualquer tentativa de generalização da
dúvida metódica, explica Koyré (1980 [1938]), pode ser considerada uma
interpretação nossa do racionalismo cartesiano. Mas, continua Koyré, o
século XVi foi um século difícil, de muitas transformações nas formas de
entender e interpretar o mundo, o conhecimento do mundo. É o século duro,
de inseguranças, construído sob escombros. Uma época de crise na filosofia,
quando a mesma se volta para o homem. Se Montaigne, diante de tantas
transformações, volta-se para si próprio e termina por encontrar certezas,
Descartes, apesar de seguir o mesmo caminho que Montaigne, vê na dúvida
a chave de sua argumentação. Para Koyré, é mais contra Montaigne do que
contra uma tradição Escolástica que Descartes escreve, apesar deste ter,
certamente, colaborado fundamentalmente para a destruição da hierarquia
da Escolástica.
A segunda comparação de Koyré no referido trabalho, a mais óbvia, é
entre Descartes e Bacon. A crítica à ideia do nascimento da ciência moder-
na a partir do método experimental, crítica muito recorrente nos escritos
de Koyré, reaparece por meio da comparação entre a filosofia de Bacon e
a de Descartes. Para Francis Bacon, o que importava seria a ação antes do
pensamento, pois o homem seria um agente antes de ser um ser pensante.
“Por isso, é na ação, na prática, na experiência que se encontram, para o
homem, as bases seguras e certas do saber. A razão teórica é a louca da
casa” (Koyré, 1980 [1938]: 30). A ação e a experiência seriam bases seguras
para o saber. Mas, alerta Koyré, “a solução de Bacon teve sucesso enorme.
Sucesso puramente literário, de resto. Porque a ciência nova – ciência ativa,
empírica e prática – de que seus livros anunciavam o advento, ele não a tinha
posto em prática” (Koyré, 1980 [1938]: 31). E nem mesmo Bacon a colocou
em prática por uma razão muito simples – a despeito de Bacon ter sido um

101
pensador mais do campo teórico do que um “cientista” prático –, era uma
tarefa impossível, posto que toda experiência pressuponha (e pressupõe,
afirma taxativamente Koyré) uma teoria prévia. Para o autor, a reforma de
Bacon foi um fracasso, pois aprisionava a razão, o pensamento, o espírito;
ao contrário das propostas cartesianas. Nesse sentido, afirma Koyré (1980), a
proposta filosófica que tornaria possível o advento da ciência moderna não
viria de Bacon e da experimentação, mas, pelo contrário, viria de Descartes,
filósofo que, audaciosamente, levou a sério a proposta platônica da dúvida
e da razão essencial. A ciência moderna, lida por Descartes, seria, então,
uma revolução do pensamento, da razão. E, além de um método abstrato,
teórico e racional, Descartes apresentou vários resultados, em um trabalho
ao mesmo tempo filosófico, científico e biográfico, algo inteiramente inova-
dor na concepção koyreana. Descartes não se limitou a anunciar conceitos,
métodos da ciência nova; ele apresentou resultados. “O seu método não
era desenvolvido em abstrato: resumia, formulava, codificava em um uso
realmente experimentado” (Koyré, 1980 [1938]: 14).6
O que Koyré não encontra em Bacon, encontra em Descartes. Segundo
o autor, o Discurso do Método até poderia se chamar “itinerário do espírito
para a verdade”, pois este é o tema de Descartes. A primeira crise cartesia-
na, explica Koyré, demonstra o problema pessoal de Descartes acerca da
verdade: tanto ter estudado, tanto ter se esforçado e não ter alcançado o que
lhe foi prometido, o estado de conhecimento. É preciso reforçar, conforme
explica Koyré, trata-se, antes, de uma autobiografia de Descartes, filósofo
que está pessoalmente desiludido e enganado com o conhecimento escolar
que até então tinha adquirido. O filósofo francês quer menos reformar todo
o pensamento e mais reformar o seu próprio pensamento. De qualquer sorte,
e sintetizando a argumentação koyreana nesse trabalho, de toda a ciência

6. Apesar de admirar Descartes e caricaturar Bacon na intriga entre racionalismo e empi-


rismo (teoria versus prática), Koyré explica que ambos, bem como o próprio Montaigne,
são reflexos do século XVi, uma época importante para a história da transformação das
atitudes espirituais dos homens, isto é, uma época de paixão por descobertas, uma época
de incertezas, de abalos e dissoluções de estruturas do conhecimento antes consideradas
inabaláveis. Nota-se que Koyré está descrevendo o tema pelo qual mais se interessou, a saber,
a história do pensamento científico-filosófico-religioso do período que marca o nascimento
da ciência moderna, da chamada revolução científica.

102
escolar, para Descartes, restam-nos apenas a matemática e a metafísica,
mais especificamente, a questão divina. Do desmoronamento das ciências
escolares, o racionalista salva dois conhecimentos que não precisariam da
filosofia em crise, no século XVi: a crença em deus e a crença na matemática.
E mais, tentará unir e apoiar-se em ambos, na matemática e na religião. De
resto, deve-se aplicar a “dúvida-ação”, que é diferente da dúvida receosa de
Montaigne. Para as demais formas de conhecimento, a dúvida seria o ca-
minho. Descartes supera a ausência de certezas e domina a dúvida; faz dela
sua ferramenta primordial levada às últimas consequências; busca alcançar
as “ideias inatas” ou “essência” de Platão. Assim se construiria um edifício
seguro para o conhecimento. A essa altura, já deve estar claro o motivo
pelo qual Koyré está profundamente interessado no pensamento cartesia-
no. O filósofo demonstra crença em deus e na matemática, pressupostos
que ampliam a proposta platônica em oposição à aristotélica. Também por
esse motivo, Koyré considera Descartes tão importante para o pensamento
moderno, pois concretiza, de fato, a desforra de Platão. O cosmos já abalado
por Copérnico, Galileu e Kepler é definitivamente destruído por Descartes.
Contudo, em seu lugar, o filósofo racionalista apresenta muito pouco.
O universo não está ordenado pelo homem, sequer está ordenado. Não
existe escala humana, só escala do espírito. Assim, o mundo não é o que os
sentidos mostram, mas o que a razão encontra. “O nascimento da ciência
cartesiana é sem dúvida uma vitória decisiva do espírito. É, todavia, uma
vitória trágica: neste mundo infinito da ciência nova já não há lugar nem
para o homem nem para Deus” (Koyré, 1980 [1938]: 68).
No mundo moderno, não há lugar para homem e para deus, que não
devem ser procurados no mundo, mas na alma, na metafísica. A ciência
cartesiana não apenas tem necessidade de uma metafísica, explica Koyré,
como começa pela metafísica. Se a ciência aristotélica conduz a uma me-
tafísica, a ciência cartesiana começa por uma metafísica. A ciência carte-
siana começa pela dúvida, pela reflexão racional, portanto, pelo pensa-
mento. Vale ressaltar, em Considerações sobre Descartes, Koyré retorna ao
tema da religiosidade em Descartes e demonstra como, para esse filósofo,
a “incredulidade” era uma impossibilidade, embora muitas vezes o próprio

103
Descartes tenha recebido tal acusação.7 O ateísmo, para Descartes, era uma
falácia. Duvidar por duvidar não faria da dúvida uma ferramenta viável,
útil. Aliás, a religiosidade em Descartes foi o tema da dissertação defendida
por Koyré, em 1922, na École Pratique des Hautes Études: Essai sur l´idée
de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Para Descartes, não
bastava acreditar em um deus; o filósofo busca provar sua existência. Deus
existe porque o homem existe e tem uma ideia de deus. Koyré nos mostra,
pois, um Descartes excentricamente religioso, que comprova logicamente
a existência de deus. Uma comprovação de existência muito diferente da
crença acrítica. Contra o entendimento de Descartes incrédulo, moderno,
Koyré escreve um trabalho exaustivo sobre o filósofo, um trabalho sobre
o estilo de pensamento cartesiano. Descartes, um homem de seu tempo,
com uma atitude espiritual típica do homem do século XVi, um represen-
tante do estado de espírito da época, um religioso – repete inúmeras vezes
Koyré. Em Considerações sobre Descartes, é interessante perceber a relação
entre Descartes – considerado por Koyré o verdadeiro “espírito moderno”
em detrimento das glórias tradicionalmente recebidas por Bacon – e sua
religiosidade imanente. Novamente, a relação entre a ciência, a filosofia e
a religião, nos trabalhos de Koyré, torna-se evidente. Contudo, apesar da
religiosidade imanente de Descartes, Koyré argumenta que não devemos
desconsiderar o fato de que talvez a declarada religiosidade cartesiana fosse,
em parte, uma resposta receosa frente à condenação de Galileu em Roma.
Finalmente, pergunto: mas por que Descartes, afinal? O Descartes
descrito de forma apaixonada por Koyré é um homem crédulo, que busca
em deus e na matemática, a construção de um prédio seguro para o conhe-
cimento, posto que a Escolástica teria sido construída sob o terreno arenoso
das incertezas, e posto que a filosofia estaria em crise, muito embora a
religiosidade crítica pudesse ser salva das desconstruções cartesianas. É na
credulidade de Descartes que Koyré busca reconfigurar a tradicional ima-
gem do filósofo, embora essa não seja a única busca de Koyré em Descartes.

7. interessante notar a semelhança entre a análise revisionista da incredulidade de Descartes,


tal como realizada por Koyré, em contraposição à revisão da incredulidade em Rabelais,
realizada por Lucien Febvre no célebre O problema da incredulidade no século XVI: a
religião de Rabelais, de 1942.

104
O filósofo racionalista é o personagem perfeito para Koyré. Voltemos ao
internalismo, portanto. Como já foi dito, Koyré foi um internalista, e mais
do que isso, foi um defensor da corrente internalista na história das ciências.
Ainda que seus argumentos possibilitassem análises contextuais, fossem cul-
turais, políticas ou econômicas, sua leitura era preponderantemente teórica,
filosófico-matemática – essa foi a discursividade estabelecida pelo autor.
A experiência do pensamento, as transformações de enfoques mentais, o
estilo de pensamento de uma época (Zeitgeist), o pensamento científico que
conduziu às transformações dos séculos XVi-XVii e que levaram ao método
experimental, a desforra de Platão, que levou à ciência moderna – enfim,
todos esses são temas que fomentaram os estudos de Koyré e que podem
ser vistos em Descartes. Este filósofo estava interessado na dúvida, não na
dúvida prática do homo faber, tal como o Galileu descrito nos trabalhos de
Henryk Grossmann,8 mas na dúvida racional, do pensamento que se ques-
tiona para se livrar dos erros dos sentidos. A experiência, para Koyré, é a
experiência do pensamento, o experimentum. Para Descartes – e não para o
reconhecido ícone moderno, Francis Bacon – toda experiência pressupunha
uma teoria prévia. Personagem perfeito para Koyré: toda experiência, todo
conhecimento pressupõe uma teoria prévia. Para ambos, Descartes e Koyré,
é no pensamento que se opera o conhecimento, portanto, foi no pensamen-
to que se operou a chamada revolução científica. A escolha por trabalhar
Descartes certamente não se deu por acaso, mas antes o contrário, Koyré
busca o objeto que melhor se ajusta a sua forma de pensar, de entender a
ciência. Por esse motivo, busca Descartes, apaixonadamente. Descartes teria
levado a sério a proposta platônica da dúvida e da razão essencial. Seria
em Descartes que Koyré leria a ciência moderna como uma revolução do
pensamento, da razão, da crença. Seria, portanto, pela ordem cartesiana,
novamente, uma leitura internalista da ciência moderna.

8. Segundo Grossmann (2009 [1935]), não seria possível desconsiderar que Galileu seria um
engenheiro, um criador de inventos práticos, de máquinas, antes mesmo de ter se tornado
um filósofo-natural stricto sensu. Galileu deduziria dos inventos um argumento teórico
e, seria, portanto, um artífice. O Galileu descrito por Grossmann (2009 [1935]) é o exato
oposto da imagem de Galileu desenhada por Koyré, para quem a experiência inovadora do
florentino seria eminentemente teórica, isto é, uma experiência do pensamento.

105
Tão entusiasmado Koyré está pela história do pensamento científico,
e por Descartes, que termina sua breve reflexão sobre o filósofo afirmando
que, após três séculos, Descartes é atual, pois não prende nosso pensamen-
to, mas liberta a razão. Descartes é atual, explica Koyré, porque evita que
submetamos nosso pensamento a uma autoridade qualquer, senão à razão
e à verdade. Ao final de Reflexões sobre Descartes, resta-nos, a nós leitores,
a pergunta: será que, a essas autoridades, devemos nos submeter? Koyré
parece desconsiderar (propositadamente ou não, isso agora pouco importa)
que a razão, a razão ocidental, moderna, bem como a verdade revelada –,
ou seja, a física-matemática e deus – são formas de submissão e de autori-
dade, justamente desde René Descartes. Ao fim e ao cabo, diante da nossa
ciência moderna, parece que ou não nos submetemos devidamente à ordem
cartesiana, ou não a entendemos bem. Koyré parece acreditar na segunda
opção, pois insiste em Descartes, insiste que há uma leitura equivocada do
filósofo. Pelo sim, pelo não, sabemos – e isso está longe de ser uma novidade
ou uma conclusão inovadora – que a razão, que a ciência, o pensamento
lógico-matemático, bem como deus, ou a ideia de deus (as duas formas de
conhecimento primeiras, em Descartes e em Koyré) nos aprisiona há, no
mínimo – para sermos cartesianos como Koyré – três séculos.

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108
5

Teoria da história e história da ciência


em Alexandre Koyré
Veronica F. B. Calazans – UTFPR

Parece haver um consenso, entre aqueles que se aventuram em estudar a


história das ciências a partir de uma perspectiva filosófica, de que Alexandre
Koyré é um autor incontornável. isso, não apenas por oferecer uma linha
teórica, cujo componente inovador não pode ser ignorado, para se fazer
história das ciências, mas também por oferecer, ele mesmo, um estudo
detalhado do pensamento científico, especialmente da modernidade. Desse
modo, pode-se afirmar que a obra de Koyré nos oferece duas perspecti-
vas distintas embora complementares. De um lado, consideramos o Koyré
teórico da história do pensamento científico que conduz o historiador a
reconstruir as teorias passadas a partir da coerência que elas guardam com
suas respectivas filosofias; de outro, deparamo-nos com a extensa obra de
Koyré como historiador, que pretende justamente fazer uma história do
pensamento científico ancorada nesse pressuposto. A pretensão de traçar
um paralelo entre esses dois projetos que se complementam mutuamente foi
delimitada, neste texto, em uma meta mais modesta, qual seja, a de expor
a análise de Koyré a respeito da relação entre Descartes e Newton – como
duas das mais importantes figuras da ciência moderna – com vistas a estabe-
lecer uma comparação dessa análise com a descrição koyreana do papel do
historiador das ciências. Os Études newtoniennes (Estudos newtonianos) são
uma reunião de ensaios escritos (alguns em inglês, outros em francês) por
Alexandre Koyré em um intervalo de doze anos e publicados pelo próprio
autor em 1964, numa edição americana. Em 1968, foi publicada a edição

109
francesa, utilizada aqui, em que os textos originalmente escritos em inglês
receberam sua versão em francês. É o caso do ensaio que nos interessa
prioritariamente, Newton et Descartes, traduzido por GeorgetteVignaux.

Koyré teórico: qual o papel do historiador das ciências?


Em uma conferência realizada em 1955, na Associação Americana para
o Progresso da Ciência, em Boston1, Koyré analisa a influência do que ele
chama de subestrutura, ou horizonte filosófico, no pensamento científico.
Em casos como o de Aristóteles, ou qualquer outro autor anterior ao pe-
ríodo revolucionário, essa influência é patente, visto que a filosofia não se
distinguia, realmente, das ciências. Já na ciência moderna, caracterizada
justamente por haver se libertado da filosofia e buscado suas bases firmes
na “empiria”, julga-se que essa influência pode ser desprezada. Koyré não
compartilha desse julgamento:
A história do pensamento científico nos ensina, portanto (pelo menos
é o que eu tentarei sustentar):
1. Que o pensamento científico nunca se separou inteiramente do pen-
samento filosófico;
2. Que as grandes revoluções científicas foram sempre determinadas
por reviravoltas ou mudanças de concepções filosóficas;
3. Que o pensamento científico (refiro-me às ciências físicas) não se
desenvolve in vácuo, mas se encontra sempre no interior de um quadro
de ideias, princípios fundamentais, evidências axiomáticas que, habi-
tualmente, têm sido considerados como pertencentes ao que é próprio
da filosofia (Koyré, 1955: 58).

Koyré compreende que essa não é a posição da maior parte dos teóri-
cos. Segundo ele, M. Burtt (Koyré, 1979 [1955]: 56) é praticamente uma voz
isolada ao admitir que o pensamento filosófico exerce alguma influência no
pensamento científico. Porém, essa influência encontra um limite, no modo
como é descrita por Burtt. Ele utiliza, como analogia, a figura dos andaimes.

1. Conferência intitulada Sobre a Influência das Concepções Filosóficas na Evolução das


Teorias Científicas. Utilizo, aqui, a tradução de J. E. Rodrigues Villalobos, na Revista da
Faculdade de Educação (USP), São Paulo.

110
Os pensamentos filosóficos seriam como andaimes cuja necessidade não
pode ser ignorada, mas que se justifica apenas no período de construção.
Assim que a teoria científica alcança a sua maturidade, os andaimes não
seriam mais necessários: eles podem ser descartados. Koyré avalia como
louvável que Burtt reconheça essa necessidade, mas extrapola o uso da fi-
gura dos andaimes. Para Koyré, os andaimes jamais são descartados. Se eles
são retirados, são substituídos por outros, de caráter igualmente filosófico;
pode acontecer, também, que eles sejam esquecidos – a exemplo das regras
gramaticais que são esquecidas no uso comum da língua – mas isso não
quer dizer que deles se possa abrir mão.
Não se trata de afirmar que todas as concepções ultracientíficas de um
cientista determinam seu pensamento científico: “a obra de Faraday não se
explica por sua adesão à obscura seita dos sandemanianos, ou a de Gibbs por
seu presbiterianismo, assim como a de Einstein por seu judaísmo” (Koyré,
1979 [1955]: 57). Porém, se, por um lado, nem todo aspecto ultracientífico é
determinante, por outro, nenhuma obra científica pode prescindir comple-
tamente dele. Em alguns casos, isso é inegável, por exemplo, na disputa entre
Leibniz e Newton que, segundo Koyré, é uma batalha entre duas filosofias.
Assim, Koyré adverte que não nega a importância, no desenvolvimento
científico, dos valores técnicos (descobertas de fatos novos, formulações
de teorias, fórmulas etc.), traduzidos na capacidade explicativa da ciên-
cia. Entretanto, esses valores técnicos estão, invariavelmente, inseridos em
um quadro de ideias e princípios que lhes extrapolam. Portanto, qualquer
tentativa de se fazer uma história desse aspecto técnico do pensamento
científico não pode deixar de lado o quadro filosófico, que é indispensável
a esse pensamento. Se tal elemento for ignorado, a história das ciências será
aquela defendida não pelo pensador criativo, nos termos de Koyré, mas pelo
técnico. Ou seja, o passado científico visto como um cemitério de erros e
monstruosidades encarnadas pelas teorias esquecidas.
Essa atitude perante a história é extremamente comum, normal, segundo
o próprio Koyré, mas ela não é inevitável. Nesse ponto, Koyré traz à discussão
uma belíssima imagem para ilustrar o verdadeiro papel do historiador do
pensamento científico: a “Bela Armeira” de Rodin. Enquanto que a maioria
das pessoas enxerga nessa figura a velhice esclerosada aparente no momento

111
de sua morte, o historiador, e somente ele, “a reencontra em sua primeira e
gloriosa juventude, em todo o esplendor de sua beleza” (Koyré, 1979 [1955]:
60). A sua tarefa é justamente a de refazer e reconstituir a evolução da ciência
aprendendo as teorias do passado em seu nascimento. Apenas o historiador
é capaz desse movimento que faz viver, ao lado dessas teorias do passado,
o impulso criador do pensamento. Fica evidente, assim, que fazer história
das ciências é, necessariamente, fazer história do pensamento científico.
O grande “campo de aplicação” dessa teoria a respeito da história das
ciências é a revolução científica do séc. XVii. É através da descrição desse
evento, seu período precedente e, principalmente, a nova ciência nascente,
que Koyré põe à prova sua teoria mostrando que é possível uma abordagem
da história das ciências que não se reduz a inventariar os erros e acertos
das teorias passadas. Ele localiza, na revolução científica, o nascimento da
ciência moderna, caracterizado por dois elementos. O primeiro consiste
na destruição do Cosmos, ou seja, na substituição de um mundo finito,
hierarquicamente organizado, por um mundo infinito, caracterizado pela
uniformidade das leis. O segundo pode ser resumido no projeto de geome-
trização do espaço: substituição do espaço concreto pelo espaço abstrato
tomado, daí em diante, como o espaço real. Em outras palavras, é a substi-
tuição do modelo de mundo de Aristóteles pelo modelo da modernidade.
É a revolução que representa a ruptura conceitual entre esses dois modelos,
ainda que o próprio Koyré alerte-nos para o fato de que, historicamente,
mesmo essa ruptura foi preparada por um longo esforço de pensamento.
Uma das descrições da revolução científica e seu caráter de total ruptura
pode ser encontrada na seguinte passagem:
O que os fundadores da ciência moderna (...) tinham que fazer não era
criticar e combater certas teorias erradas, para corrigi-las ou substituí-las
por outras melhores. Tinham de fazer algo inteiramente diverso. Tinham
de destruir um mundo e substituí-lo por outro (Koyré, 2011 [1943]: 170).

Se a revolução científica se oferece como uma grande chave de leitura


da história da ciência moderna, é o segundo elemento que evidencia uma
das grandes contribuições de Koyré como teórico da história do pensamento
científico. Ou seja, o modo como Koyré caracteriza a física aristotélica –
fundamento do período anterior à revolução – expõe o cerne de seu método:

112
A física de Aristóteles, bem entendido, é falsa e completamente caduca.
Não obstante, é uma ‘física’, isto é, uma ciência altamente elaborada,
embora não o seja matematicamente. Não se trata de imaginação pueril
(...), mas de uma teoria, ou seja, uma doutrina que, partindo natu-
ralmente dos dados do senso comum, os submete a um tratamento
extremamente coerente e sistemático (Koyré, 2011 [1943]: 173).

Nessa passagem, os adjetivos “coerente” e “sistemático” estão intima-


mente relacionados. A coerência da física de Aristóteles é a coerência com
a sua respectiva metafísica, coerência validada precisamente pelo caráter
sistemático do pensamento aristotélico. Entra em cena a figura, evocada por
Koyré, da Bela Armeira de Rodin. O historiador é capaz de reencontrá-la em
sua beleza juvenil ou, em outras palavras, capaz de refazer ou reconstruir a
evolução da ciência, aprendendo as teorias do passado em seu nascimento.
Assim, o historiador não deve considerar as teorias passadas de um ponto
de vista do presente, que apenas enxerga o momento de sua morte, como
uma velha ressequida e esclerosada.
Koyré destaca o caráter sistemático da física aristotélica e, de certo
modo, a coerência com a metafísica. Ele alerta para o fato de que o his-
toriador moderno do pensamento científico frequentemente negligencia
esse aspecto. Porém, devemos esperar a mesma generosidade com relação
à física de Descartes, ou, em outras palavras, que ela seja avaliada em seu
caráter sistemático e pela coerência com a metafísica que lhe corresponde?
Em princípio, sim. As físicas cartesiana e newtoniana são caracterizadas,
no início dos Études newtonnienes, como rivais contemporâneas. Por essa
razão, cada uma das partes põe em evidência os principais limites da ou-
tra, com o propósito e evidenciar a própria superioridade. Koyré pede que
tentemos ser mais imparciais, ainda que consideremos a física de Descartes
ultrapassada e a de Newton atual. Ele inicia, então, uma espécie de defesa
do pensamento de Descartes.
O que chamamos aqui de uma teoria koyreana a respeito da história
filosófica das ciências se resume pela juventude e beleza da teoria antiga,
que o historiador é capaz de reconstruir, e pelo caráter indissociável da
relação entre filosofia e pensamento científico. Todavia, vale ressaltar que,
no que se refere a tais pressupostos, Koyré está constantemente se referindo

113
às grandes revoluções científicas, em especial a do séc. XVii. Entretanto, ao
considerar dois autores pertencentes ao mesmo período (nesse caso, logo
após a revolução), seriam válidas as mesmas orientações teóricas e o papel
do historiador continuaria o mesmo? Assim, resta-nos tomar o texto dos
Études newtoniennes, a fim de investigar a prática de Koyré como historiador
das ciências – ainda que restrita a esse exemplo – e compará-la aos seus
pressupostos teóricos. Em outras palavras, trata-se de perguntar se Koyré
pretende estabelecer uma comparação entre o pensamento de Descartes e
o de Newton. E, quanto à natureza de tal comparação, investigar se o que
foi dito a respeito da revolução se aplica também a autores tão próximos.

Koyré historiador: a relação entre Descartes e Newton


Primeiramente, é preciso justificar a escolha desses dois autores, entre
os tantos que poderiam ser considerados nesse período, quando se pretende
caracterizar a unidade da ciência moderna. Koyré inicia o ensaio descreven-
do o séc. XVii como o século dos gênios e compara esses gênios – Kepler,
Galileu, Descartes, Pascal, Newton e Leibniz – a uma galáxia. Afirma que,
assim como no céu, nem todas as estrelas brilham com a mesma glória.
Nesse caso, as estrelas que se destacam são Descartes e Newton e a razão
pela qual eles se destacam nos fornece importantes elementos para pôr em
evidência a relação atribuída a eles por Koyré. Descartes teria tido o grande
mérito de conceber o ideal – e Koyré se pergunta se não seria um sonho – da
ciência moderna, ou seja, da ciência reduzida à geometria. Newton, de sua
parte, destaca-se por “reestabelecer solidamente a física sobre suas próprias
bases” (Koyré, 1968 [1964]: 87). Entretanto, ainda que essas características
destaquem individualmente cada um dos autores e sejam suficientes para
Koyré considerar interessante o exame da relação entre eles, acrescenta-se a
isso que o séc. XViii foi palco de incansáveis comparações e confrontações
entre os pensamentos de Descartes e Newton, incorporados por seus res-
pectivos partidários. Segundo Koyré, esse não é mais o cenário atual porque,
para nós, a ciência cartesiana pertence integralmente ao passado, enquanto
consideramos que a ciência newtoniana está viva, mesmo que tenha sido
substituída por teorias posteriores, como a mecânica relativística de Einstein
e a mecânica dos quanta. Porém, de um ponto de vista histórico, não há

114
como negligenciar essa relação e o impacto que a confrontação entre esses
dois pensamentos provocou na ciência moderna.
Ao relatar os ataques dos newtonianos ao que eles consideravam uma
ridícula quimera – os vórtices cartesianos –, Koyré afirma que, embora o
modelo dos vórtices não fosse tão frágil quanto pregavam os newtonianos,
deveríamos nos concentrar em outros aspectos da física cartesiana, segundo
ele, mais duráveis que os vórtices. O primeiro deles reside no fato de que
Descartes oferece o primeiro ensaio coerente de cosmologia racional, embora
infrutífero. No entanto, guardaria, ainda assim, o mérito de identificar as
físicas celeste e terrestre e considerar forças centrífugas no céu. Além disso,
embora Newton nunca tenha admitido, ele tomou de Descartes a noção de
quantidade de movimento e, ainda mais relevante, a formulação das leis
da natureza.
Assim, a defesa de Descartes baseia-se, fundamentalmente, no desta-
que àquilo que ele antecipou do pensamento de Newton, sem ter recebido
o devido crédito: a unificação das físicas celeste e terrestre, o conceito de
quantidade de movimento e a formulação das leis do movimento (em especial,
a de inércia). Ou seja, a passagem de Descartes para Newton não é anali-
sada, por Koyré, seguindo os moldes da “revolução”: a defesa de Descartes
não essa está fundamentada na coerência com a metafísica como no caso
de Aristóteles, ainda que a sua coerência interna tenha sido mencionada.
Se, por um lado, os aspectos positivos da física cartesiana não se encon-
tram nela mesma, mas naquilo que ela antecipa do pensamento newtoniano,
o que dizer dos pontos fracos da física de Descartes? Basta retomar aquela
definição inicial da contribuição de Newton e Descartes. O primeiro tem o
mérito de assentar a física em suas próprias bases, enquanto que o segundo
deve ser reconhecido por estabelecer o ideal (sonho, nas palavras de Koyré)
de uma física reduzida à geometria, sem, entretanto, ter cumprido o projeto.
A questão que se impõe é a de saber se efetivamente trata-se do mesmo projeto
de uma física matematizada. Koyré parece convicto de que sim: Descartes
estabeleceu o projeto, mas apenas Newton teria conseguido atingir o resul-
tado buscado e sonhado por Descartes. Se for assim, faz sentido atribuir
a Descartes o mérito por aquilo que ele conseguiu antecipar da realização
desse projeto. Porém, isso não parece ser suficiente para reconstruir a beleza
dessa teoria, em sua juventude.

115
Descartes e a “Bela Armeira”: em busca da beleza
e juventude perdidas
Este movimento do texto separa-se completamente da análise de Koyré
nos Études newtoniennes. É uma tentativa de expor a tensão que parece haver
entre o privilégio concedido a Aristóteles, de ter seu pensamento considerado
em termos da coerência interna, especialmente com a metafísica do autor,
e a análise da física cartesiana, pautada na comparação com o pensamento
de Newton. Ou seja, é uma tentativa de estender a Descartes o mesmo pri-
vilégio, com o propósito de investigar as razões pelas quais o próprio Koyré
não o fez. O primeiro aspecto a ser esclarecido diz respeito à metafísica
que sustenta o projeto cartesiano de ciência e seu caráter autônomo com
relação ao projeto newtoniano e suas respectivas implicações metafísicas.
Ao mesmo tempo, convém esclarecer em que consistiu o projeto cartesiano
de matematização da natureza. O texto das Regras para a direção do espírito
nos oferece o material necessário para empreender essa dupla tarefa.
Se as quatro regras iniciais têm por objetivo apresentar as bases episte-
mológicas que servirão de guia para boa parte da metodologia cartesiana, a
Regra i, em particular, condensa o objetivo geral da obra: “Os estudos devem
ter por meta dar ao espírito uma direção que lhe permita formular juízos
sólidos e verdadeiros sobre tudo que se lhe apresenta” (Descartes, 1999 [1628]:
1). É a metodologia que vai possibilitar a operacionalização desse objetivo;
ela é a direção que possibilita ao espírito atingir sua pretensão.
Embora o enunciado da Regra i ocupe-se em apresentar o objetivo
principal das Regulae, o texto que o acompanha trata de outro aspecto não
menos importante: a inversão do foco do conhecimento. O foco deixa de
ser a multiplicidade dos objetos a serem conhecidos e converte-se na razão
una que os conhece. Segundo Descartes, os homens fazem uma aproximação
errônea entre as ciências (que dependem apenas de conhecimento intelectual)
e as artes (que exigem algum esforço do corpo). No caso destas últimas, é
preferível dedicar-se a uma delas de cada vez, pois o desenvolvimento de uma
segunda arte pode implicar a necessidade de habilidades que atrapalhem a
primeira. Seguindo o exemplo do texto, o cultivo da terra e o aprendizado

116
da cítara exigem habilidades manuais incompatíveis. Entretanto, não é este
o caso das ciências. Já que todas elas fazem parte da sabedoria humana,
o estudo de uma contribui para o aprendizado das outras, não obstante a
multiplicidade dos seus objetos. O argumento de Descartes parece seguir
o seguinte percurso: se todas as ciências nada mais são do que sabedoria
humana; se a sabedoria humana permanece uma e a mesma, seja qual for
a diferença dos assuntos aos quais ela é aplicada; e, se ela não confere mais
distinções aos assuntos aos quais ela é aplicada do que a luz do sol confere às
coisas que ilumina; então, “não é necessário impor ao espírito nenhum limite”
(Descartes, 1999 [1628]: 2). Com isso, ficam estabelecidos dois elementos
básicos necessariamente interligados: a unidade da razão e sua ausência de
limites. Pelo que foi dito, a fim de procurar seriamente a verdade, não se deve
escolher uma ciência em particular; todas elas estão ligadas e dependem
umas das outras. Assim, como fruto metodológico mais importante desse
percurso, está a possibilidade de se estabelecer um método único aplicável
a todas as ciências.
Tendo estabelecido o fator que unifica as ciências, a Regra i não fornece,
entretanto, uma definição de ciência, o que será apresentado na Regra ii.
A ciência é “um conhecimento certo e evidente” (Descartes, 1999 [1628]:
5). Essa definição limita o domínio dos objetos a serem tomados na inves-
tigação da verdade; eles devem ser apenas “aqueles que os nossos espíritos
parecem ser suficientes para conhecer de uma maneira certa e indubitável”
(idem). Ora, a Regra i proclamara a ausência de limites para a razão; porém,
é estabelecido, agora, um limite para o escopo dos objetos. De que maneira
essas duas regras podem ser entendidas sem que pareçam inconciliáveis?
O limite admitido na Regra ii diz respeito ao domínio dos objetos que,
como estabelece a Regra i, não exerce qualquer influência sobre o domínio
do sujeito, ou melhor, da razão. Ao contrário, é a razão que estabelece os
critérios pelos quais ilumina seus objetos e um deles, talvez o primeiro
(critério), seja justamente este: desprezar os objetos que não podem ser
conhecidos com clareza e distinção. Sendo assim, a Regra ii não contraria
a autonomia da razão, mas fornece as condições para que a razão produza
o conhecimento.

117
É também na Regra ii que Descartes apresenta a matemática como
modelo de conhecimento certo e seguro: “a aritmética e a geometria são as
únicas [disciplinas conhecidas] isentas de qualquer defeito de falsidade ou
de incerteza” (Descartes, 1999 [1628]: 8), ou seja, são as únicas que cumprem
o requisito aqui estabelecido. Nas demais ciências, por outro lado, vê-se que
seus estudiosos não conseguem entrar em acordo mesmo quando se trata de
questões corriqueiras. O motivo para isso está nos objetos das matemáticas,
que são puros e simples, isto é, dispensam suposições da experiência tendo,
então, suas consequências deduzidas racionalmente. isso não quer dizer que
a razão não possa atingir os objetos cujo conhecimento depende da via da
experiência, mas que, mesmo nesse caso, “não deve se ocupar com nenhum
objeto sobre o qual não se possa ter uma certeza tão grande quanto aquela
das demonstrações da aritmética e da geometria” (Descartes, 1999 [1628]:10).
Consequentemente, essa regra confere ao método a possibilidade de se
ampliar o domínio do conhecimento para além das disciplinas matemáticas,
contanto que se respeite o critério exposto pela regra. Em outras palavras,
para lograr esse êxito, o método deve excluir do campo da ciência aquilo
que é apenas provável e o que não é certo e evidente.
Finalmente, a Regra iV encerra esse conjunto de regras preliminares,
afirmando a necessidade do método: “O método é necessário para a busca da
verdade” (Descartes, 1999 [1628]: 11). Além disso, é nessa regra que Descartes
expõe a definição e a função do método e mostra seus antecedentes históricos
e também apresenta a mathesis universalis.
Descartes afirma que a maior parte dos estudiosos, nas mais diversas
áreas, procura a verdade às cegas, de modo aleatório, como quem quer en-
contrar um tesouro e vagueia sem rumo. Às vezes alguns deles têm sucesso,
não por possuírem uma habilidade especial, mas por pura sorte. Assim
agindo, eles obscurecem a luz da razão, pois se acostumam a estudar sem
ordem e a produzir “meditações confusas”. Por isso, seria preferível não
buscar o conhecimento a buscá-lo sem método.
Porém, até esse ponto, Descartes não apresentou nenhuma definição
do que seja esse método, cuja importância e necessidade são tão categorica-
mente afirmadas. É o que ele faz a seguir, caracterizando o método como um
conjunto de regras que devem ser certas e fáceis. Qualquer um que observe

118
essas regras com exatidão deve ser capaz de colher dois proveitos: jamais
tomar algo que é falso por verdadeiro, e alcançar o “verdadeiro conhecimento
de tudo quanto for capaz de conhecer”, através de um processo gradual e
contínuo e sem “despender inutilmente nenhum esforço de inteligência”
(Descartes, 1999 [1628]: 20). A primeira parte (não tomar o falso por ver-
dadeiro) é garantida pela intuição, e a segunda (alcançar o conhecimento
verdadeiro de tudo), pela dedução.
Tendo definido o que ele entende por método, Descartes passa a con-
siderar os antecedentes históricos desse método. Tais antecedentes, porém,
não devem ser tomados como um reconhecimento de que outros, antes dele,
tivessem desenvolvido os princípios de um método que Descartes levou a
termo. Muito longe disso, Descartes toma para si a autoria do método e
afirma que, durante a história que o precedeu, alguns perceberam a utilidade
desse método como um fruto espontâneo da inteligência humana: “isso
porque a inteligência humana tem não sei quê de divino, onde as primeiras
sementes de pensamentos úteis foram lançadas de tal modo que, em geral,
por mais desprezadas e por mais sufocadas que sejam por estudos mal feitos,
produzem um fruto espontâneo” (Descartes 1999 [1628]: 21).
O exemplo que Descartes utiliza para apoiar sua tese é de suma impor-
tância para a compreensão dos fundamentos matemáticos desse método, pois
é retirado das “mais fáceis das ciências, a aritmética e a geometria” (idem).
Os geômetras antigos dominavam uma “espécie de análise” que podia ser
estendida à solução de todos os problemas. Entretanto, não deixaram que a
posteridade a ela tivesse acesso. O procedimento analítico dos antigos figura,
então, entre aquelas “primeiras sementes de pensamentos úteis” que foram
sufocadas. Outro exemplo, este mais recente, é a álgebra, que permite que
“se faça com os números o que os antigos faziam com as figuras”. Os dois
exemplos são retirados das matemáticas, pois sendo seus objetos mais simples,
seus estudiosos teriam alcançado maior êxito. O propósito de Descartes, no
entanto, que começa a tomar forma no texto, é o de dar consistência a essas
conquistas e estendê-las a assuntos mais complexos:
E não me espanto que seja nessas artes, cujos objetos são muito simples,
que eles cresceram até agora com mais felicidade do que nas outras,
em que maiores obstáculos comumente os sufocam, mas em que, não

119
obstante, tomando um cuidado extremo em cultivá-los, nós os fare-
mos infalivelmente alcançar uma perfeita maturidade (Descartes, 1999
[1628]: 22).

Alcançar a maturidade no que diz respeito àquelas ciências cujos ob-


jetos são mais complexos que os objetos matemáticos é, de certo modo, o
projeto das Regulae. A aritmética e a geometria servem de modelo para essa
empreitada, que poderia ser resumida na tarefa de conferir inteligibilidade
e revelar o significado epistemológico daquelas conquistas alcançadas pelas
matemáticas e estendê-las às demais ciências.
Lê-se na Regra ii que “a Aritmética e a Geometria são as únicas discipli-
nas isentas de qualquer defeito de falsidade ou de incerteza”. Essa afirmação
pode parecer, a uma primeira leitura, a corroboração da tese, anunciada
acima, de que a matemática fornece o modelo metodológico para as ciências.
De certa forma é assim, mas são necessárias algumas distinções. Descartes
opta por admitir, entre os objetos da ciência, apenas aqueles que possam ser
conhecidos de modo certo e indubitável. O objeto da matemática cumpre
esse requisito por ser tão puro e simples a ponto de dispensar as suposições
cuja certeza é abalada pela experiência. Por isso, não há como se enganar na
Aritmética e na Geometria: elas são inteiramente compostas de consequên-
cias deduzidas racionalmente, sem qualquer interferência da experiência.
Assim, se o objeto de uma pretensa ciência não fornece a possibilidade de
uma certeza tão grande quanto a daqueles cujas propriedades e relações
são suscetíveis de demonstrações matemáticas, não se deve ocupar-se dele.
Entretanto, adiante, Descartes observa:
Alguns deles (mortais possuídos por uma curiosidade cega) são como
um homem que arderia de um desejo tão estúpido de encontrar um
tesouro que ficaria incessantemente vagueando por praças públicas para
procurar se, por acaso, não encontrasse algum perdido por um viajan-
te. É assim que estudam quase todos os Químicos, a maior parte dos
Geômetras e grande número dos filósofos (Descartes, 1999 [1628]: 19).

Como pode o geômetra, dedicando-se a uma ciência cujo objeto pos-


sibilita tamanha clareza, vaguear sem método em seus estudos? É possível
porque, embora a Aritmética e a Geometria sejam modelos de certeza, nem

120
sempre a clareza e a exatidão de uma demonstração trazem consigo um bom
método. Descartes desvincula esses dois aspectos.
Portanto, não será qualquer uso das matemáticas que poderá servir
como instância exemplar do padrão metodológico visado por Descartes,
ainda que todos os casos sejam igualmente isentos da falsidade e da incer-
teza. É preciso considerar, aqui, a distinção entre as matemáticas comuns
e a verdadeira matemática, chamada de mathesis universalis. Ela fica ainda
mais clara na afirmação de que as Regras não têm como propósito “resolver
os vãos problemas que servem normalmente de jogo para os Calculadores
ou para os Geômetras em seus lazeres” (Descartes, 1999 [1628]: 22). O que
se diz dos problemas é que eles são vãos; não se põe em cheque a certeza
dos seus resultados ou a clareza dos seus objetos. Descartes, em seguida,
acrescenta que tratará de figuras e números “porque não se pode pedir a
nenhuma das outras disciplinas exemplos tão evidentes e tão certos” (idem).
Ainda assim, tudo isso se refere às matemáticas comuns. Elas são as vestes,
e não as partes, da mathesis universalis. As matemáticas comuns são as ves-
tes porque seus objetos são simples e fazem com que amathesis universalis
apresente-se de modo mais adaptado ao espírito humano. Porém, elas não
podem ser partes dessa disciplina porque deixaram perder justamente o
procedimento que faz da mathesis universalis o modelo metodológico: a
análise. “Essa disciplina deve, de fato, conter os primeiros rudimentos da
razão humana e estender sua ação até fazer jorrar as verdades de qualquer
assunto que seja” (Descartes, 1999 [1628]: 23). Estender sua ação é o mesmo
que emprestar o método. Ela é a fonte das demais disciplinas, na medida
em que, nela, todas encontram o modelo segundo o qual devem proceder.
Quanto às matemáticas comuns, visto que são as “mais fáceis das ciên-
cias”, sua história mostra que alguns antigos já haviam percebido a utilidade
desse método, o que se deixa transparecer na espécie de análise que os
geômetras utilizaram, de modo a estendê-la à solução de todos os proble-
mas. Todavia, essa análise não foi preservada. Por outro lado, embora as
matemáticas comuns estejam plenas de sequências que evidenciam conse-
quências rigorosas, a demonstração da solução de um problema, por mais
certeza que carregue, não mostra, necessariamente, por que é assim e como
se chega a ela. O estudo dessas disciplinas, feito desse modo, é fútil, pois não

121
ensina o entendimento a resolver outros problemas e, em alguma medida,
faz com que se perca o hábito de utilizar a razão. A mathesis universalis é
analítica – condição para que possa servir como modelo metodológico. Já
as matemáticas comuns, embora sejam exemplos de verdade e clareza, por
serem sintéticas, isto é, limitam-se às demonstrações ou provas das desco-
bertas feitas anteriormente na análise, são incapazes de converterem-se em
qualquer tipo de orientação metodológica.
Descartes reconhece, não propriamente as fontes, mas traços da mathesis
universalis, ou melhor, do método que a define, entre os antigos geômetras
gregos ou inseridos na tradição dos gregos.
E, por certo, parece-me que alguns traços dessa verdadeira matemá-
tica ainda aparecem em Pappus e em Diofanto, que, sem serem dos
primeiros anos, viveram, porém, numerosos séculos antes do nosso
tempo. Quanto a ela, eu acreditaria de bom grado que, mais tarde,
os próprios autores a fizeram desaparecer com uma espécie de ardil
censurável. (...) e preferiram, para fazer-se admirar, apresentar-nos, em
seu lugar, algumas verdades estéreis demonstradas com um sutil rigor
lógico como efeitos de sua arte (...). Houve, por fim, alguns homens
muito engenhosos que se esforçaram em nosso século para ressuscitar a
mesma arte, pois aquela que é designada pelo nome bárbaro de álgebra
não parece ser outra coisa (Descartes, 1999 [1628]: 26).

Para fornecer uma definição mais precisa da mathesis universalis,


Descartes utiliza-se da seguinte questão: o que precisamente se entende
por matemática? Em outras palavras, por que a astronomia, a música, a
óptica, a mecânica e tantas outras se dizem partes das matemáticas? O que
há em comum entre todas elas e que as faz reconhecidamente matemáticas
é o fato de que, nelas, se examinam a ordem e a medida de seus objetos. Esse
ponto em comum é que deve ser a base de uma ciência que se pretende geral
a ponto de abarcar todas as demais. Daí a definição da mathesis universalis
como aquela “ciência geral que explica tudo quanto se pode procurar refe-
rente à ordem e à medida, sem as aplicar a uma matéria especial” (Descartes,
1999 [1628]: 27).

122
O cerne da mathesis universalis, a ordem e a medida, não é tomado de
empréstimo, segundo o que pudemos ver acima, das matemáticas comuns
(pois elas não constituem um modelo metodológico, mas apenas de certeza e
precisão). Ele vem, isto sim, da constatação do elemento mais geral e comum
a todas as disciplinas que se pretendem matemáticas. Por isso, a mathesis
universalis estende-se a todas elas contanto que se domine as regras de sua
operacionalização. Não por acaso, a Regra V apresenta a seguinte definição
para o método: “O método todo consiste na ordem e na organização dos
objetos sobre os quais se deve fazer incidir a penetração da inteligência para
descobrir alguma verdade” (Descartes, 1999 [1628]: 29). Vê-se, então, que a
mathesis universalis é definida por seu método, e não poderia ser diferen-
te, pois ela nada mais é que um conjunto de procedimentos metodológi-
cos inspirados no potencial heurístico sui generis típico das matemáticas.
É justamente a partir da Regra V que Descartes passa a fornecer uma “teoria
do método” propriamente dita. O comentário que se segue ao enunciado
da regra é curto, porém enfático ao destacar o caráter absoluto do método
e a extrema importância que lhe deve ser atribuída:
O método todo consiste na ordem e na organização dos objetos sobre
os quais se deve fazer incidir a penetração da inteligência para descobrir
alguma verdade. Nós lhe ficaremos ciosamente fieis, se reduzirmos
gradualmente as proposições complicadas e obscuras a proposições
mais simples, e, em seguida, se, partindo da intuição daquelas que são
as mais simples de todas, procurarmos elevar-nos pelas mesmas etapas
ao conhecimento de todas as outras (Descartes, 1999 [1628]: 29).

Para descobrir algo de verdadeiro, é preciso ordenar e dispor os objetos:


eis o resumo do método. Ordenar significa operar uma redução das propo-
sições complicadas às mais simples e, em seguida, proceder a uma elevação
das mais simples, percorrendo os mesmos passos, até as mais complexas.
A nova complexidade que surge daí está, então, reconstituída e totalmente
compreendida. Esse procedimento, portanto, não está restrito ao caráter
analítico, pois contempla uma parte sintética: aquela que vai do simples ao
complexo. A Regra Vi acrescenta à descrição dessas duas etapas do método
a noção de disposição dos objetos em forma de séries, fornecendo os meios

123
para que se possa submeter ao método ordens mais complexas, nos termos
do texto, ordens obscuras e intrincadas. isso porque nem sempre o problema
possui um grau de facilidade tal que sua ordem seja por si evidente. Segundo
Descartes, a disposição dos objetos em séries é, ao mesmo tempo, a grande
utilidade e o segredo do método.
O método, considerado assim, não nos autoriza o acesso direto à na-
tureza de cada coisa a fim de encerrá-las em categorias ou, nas palavras de
Descartes, “gêneros de ser”, pois ele é relação entre coisas. Ao deduzir um
objeto desconhecido de outro já conhecido, não se chega a um novo gênero
de ser, pois, para que haja qualquer tipo de comparação, um objeto deve
participar, de algum modo, da natureza do outro. Mas, a fim de melhor
caracterizar o conhecimento como um processo de comparação, é neces-
sário estabelecer uma diferença entre as comparações simples e as outras
(complexas). As primeiras são aquelas em que o que se procura e o que é
fornecido participam de modo idêntico de uma certa natureza. Nesse caso,
praticamente não resta ao espírito nenhuma operação. Porém, pode ocor-
rer que a natureza comum, requisito para a comparação entre os objetos,
não se encontre de maneira idêntica em ambos, mas seguindo relações ou
proporções. A tarefa do espírito, então, é transformar essas proporções
de maneira a evidenciar o que há em comum entre o que se procura e o
conhecido. “Quase toda a indústria da razão humana consiste em preparar
essa operação” (Regra XiV).
Ora, evidenciar o que há em comum entre os objetos significa, de
alguma forma, reduzi-los a uma unidade. Para proceder a tal redução, não
podemos prescindir do conceito de grandeza. Descartes entende por gran-
deza aquilo que comporta o mais e o menos. Assim, pode-se dizer de uma
grandeza que ela é maior ou menor que outra, ou seja, pode-se estabelecer
entre duas grandezas uma comparação. Essa comparação pode ser tanto
de desigualdade (maior ou menor) quanto de igualdade. Por essa razão,
de nada se pode afirmar a igualdade se não comportar o mais e o menos.
A fim de esclarecer qual noção de grandeza Descartes necessita para
colocar em marcha seu método de redução das relações à igualdade – aquilo
que futuramente se tornará conhecido pelo nome de “equações” –, considero,
aqui, a Regra XiV. Em primeiro lugar, o que se diz das grandezas em geral

124
pode-se dizer também daquelas particulares. Descartes tem em mente uma
espécie de grandeza em especial, a espécie representada com mais facilida-
de na imaginação: a extensão.2 A ela pode-se aplicar tudo o que couber às
grandezas em geral ou a qualquer outra grandeza. O que se aplica a todas as
grandezas, aquilo que é sua característica mais geral, é exatamente a possi-
bilidade de comparação exposta no parágrafo anterior; em outras palavras,
qualquer que seja a grandeza, o que inclui a extensão, pode-se supor sua
capacidade de estabelecer relações com outras grandezas. Entretanto, se é
assim, todas as grandezas, tomadas isoladamente, seriam capazes de man-
ter essa relação com as demais – o que suscita a questão de saber em que a
extensão é preferível às outras. O que ocorre, segundo Descartes, é que na
extensão se veem com mais clareza todas as diferenças nas proporções. Por
exemplo, considerando um objeto mais ou menos branco que outro, ou mais
ou menos agudo que outro; como podemos tornar precisa a diferença entre
eles? Como dizer se essa diferença é dupla, tripla etc.? O único modo de
saber é recorrendo a uma analogia com a extensão de um corpo figurado.
A extensão serve, nesse caso, para mensurar a grandeza com a qual ela é
comparada. Assim, não importam quais sejam as grandezas em questão,
já que reduzir as proporções a igualdades significa reduzir as grandezas à
extensão, evidenciando e fornecendo precisão às suas diferenças para que,
só então, seja possível encontrar o que há de comum entre elas. Desse modo,
o método estende seu domínio para além das disciplinas matemáticas,
permitindo que todas as demais grandezas sejam ordenadas e medidas em
virtude da mensurabilidade que lhes é conferida pela extensão.
Assim, se há algum sentido em atribuir a Descartes um projeto de ma-
tematização da natureza, que inaugura a modernidade, esse projeto consiste,
obrigatoriamente, em submeter os objetos – que se pretende matematizar – ao
tratamento metódico, à ordem e à medida. Nesse sentido, todo projeto que
pretenda atingir o conhecimento de algo é um projeto de matematização,
pois as matemáticas fornecem o modelo metodológico para esse propósito.
Ou seja, só há conhecimento através desse método em particular. Feito esse
percurso, fica claro que o projeto de matematização que Descartes tinha em

2. Refere-se, aqui, à extensão real do corpo excluindo-se todo o resto, exceto a figura.

125
vista não pode ser descrito em termos de aplicação das matemáticas, como
disciplinas comuns, às demais disciplinas. Ao contrário, sua inspiração
metodológica fornece, como mathesis universalis, a própria condição de
todo o conhecimento.
A possibilidade desta “ciência universal”, chamada de mathesis uni-
versalis, está inteiramente assentada em um requisito básico: a unidade
do método. Esse, por sua vez, tem por fundamento último a unidade da
própria razão. Ao inverter o referencial do conhecimento, que se desloca
dos objetos desse conhecimento para a razão que os conhece, Descartes
confere à razão a capacidade ilimitada de manipular todos os objetos. Se,
do ponto de vista da razão, não há limites a serem estabelecidos, sobre
o domínio dos objetos incide um critério segundo o qual nem todos os
objetos se prestam ao conhecimento, apenas aqueles dos quais o espírito
possa ter um conhecimento “certo e indubitável”, como ensina a Regra ii.
Esse é, ao mesmo tempo, um critério ontológico, na medida em que não há
sentido em considerar qualquer objeto que não se submeta à razão como
objeto do conhecimento. Resta saber, pois, se, diante da imposição desse
novo critério, o caráter representativo do conhecimento adquire um status
secundário para Descartes.
isso não quer dizer, absolutamente, que os objetos matemáticos e suas
propriedades sejam avessos a qualquer pretensão sobre seus correspondentes
ontológicos, para Descartes. Quer dizer, somente, que a mathesis universalis,
ou, em outros termos, a ciência que se funda no método cartesiano, não
depende dessa correspondência para estabelecer a validade de qualquer
conhecimento. Como está posto acima, a Regra iii apresenta a intuição e a
dedução como as únicas operações do entendimento que se pode utilizar a
fim de adquirir ciência. Ora, essas são operações puramente intelectuais e
são elas que determinam a legitimidade de todo o conhecimento. Segundo
Marion, as Regulae retiram da coisa o seu fundamento próprio construin-
do, em seu lugar, um objeto medido pela inteligibilidade, ou, da mesma
forma, pela sua cognoscibilidade. Mas, ao mesmo tempo, elas formulam,
ou pretendem fazê-lo, uma ontologia do objeto, uma ontologia que é pri-
meiramente negativa ao sujeitar o Ser ao entendimento. No entanto, a essa
ontologia negativa, segue-se uma “recuperação dos ‘lugares’ da ontologia”.

126
A partir da mathesis universalis, o que fornece fundamento ao Ser não é
mais o seu caráter individual ou de espécie, mas o seu caráter relacional,
visto que o ser do objeto é pensado como ordem e medida. O sujeito do
conhecimento reconstrói o objeto por meio do ordenamento das relações
que o consideram. O princípio desse objeto, então, é destituído da própria
coisa e retido pelo sujeito que o reconstrói, ou seja, que o ordena, tornando-
se seu fundamento último.
Pode-se dizer, então, que a suposta unidade presente na natureza está
inteiramente submetida à unidade da razão, à unidade do espírito humano.
Porém, a unidade da natureza é reconstruída pela operação de ordenamento
realizado pela razão una. A consequência disso é que o sucesso da aplica-
ção do método não depende de que própria natureza seja matemática. Ao
contrário, considerando-se o que Marion chama de “translação do centro
de gravidade da relação epistêmica”, basta que o espírito possa proceder
matematicamente na ordenação dos objetos do conhecimento.
As regras iniciais, ao fornecerem as bases epistemológicas para a me-
todologia, garantem a possibilidade de se estabelecer um método único
aplicável a todas as ciências. Nisto se resume o grande projeto da mathesis
universalis: uma ciência geral que pretende investigar a ordem e a medida,
qualquer que seja o objeto considerado. A realização desse projeto no campo
das matemáticas é tida como certa e imediata, já que seus objetos são os
mais simples de todos. Entretanto, Descartes confere ao método a possibi-
lidade de se ampliar para além das disciplinas matemáticas, expandindo o
domínio do conhecimento.
No que diz respeito às demais ciências do mundo físico, a noção de
matematização da natureza que se pode retirar das Regulae deve ser enten-
dida não como uma simples duplicação matemática dos objetos físicos ou de
suas propriedades. A inspiração matemática do método de Descartes exige
que os objetos sejam organizados em certas séries e conhecidos uns pelos
outros. O que se pode disso depreender pouco tem a ver com a natureza
intrínseca de cada um dos membros da série tomados individualmente ou
como espécies. Um modo alternativo de compreender o ideal mecanicista
– segundo o qual todos os mecanismos da natureza devem ser explica-
dos em função do movimento e das qualidades geométricas da matéria

127
– é tomá-lo como um desdobramento da ontologia relacional das Regulae.
A aplicação dos métodos matemáticos ao mundo físico não resultaria senão
na explicitação das relações entre os seus objetos e suas propriedades. Se
tais relações são reais ou não, pouco ou nada se pode decidir a esse respeito
com base apenas no método ou na matemática – a esse tipo de questões se
dedica virtualmente a metafísica. O decisivo, entretanto, é que não se possa
fazer de outro modo, se desejamos nos conduzir pelo método.

Koyré teórico e Koyré historiador: pode-se desfazer a tensão?


Se aceitarmos que o projeto cartesiano de matematização da natureza
guarda uma coerência inegável com a sua respectiva metafísica e, além disso,
que ele estabelece um objetivo autônomo, alcançado segundo essa coerência,
parece inevitável perguntar se Koyré deixou de seguir seus próprios princí-
pios ao negar a Descartes essa autonomia. Com o que foi exposto acima, fica
evidente que Koyré não concede a Descartes o mesmo privilégio concedido
a Aristóteles, qual seja, o de ter sua teoria reconstruída em sua juventude,
de acordo com os parâmetros estabelecidos em sua própria metafísica e
consistência interna. Se o mesmo fosse concedido a Descartes, seria preciso
considerar que seu projeto de matematização se difere do newtoniano assim
como diferem suas metafísicas.
No entanto, o que acontece nos Études newtoniennes é algo bem diverso.
O projeto moderno de matematização da natureza é identificado ao projeto
newtoniano. Por essa razão, Descartes apenas participa dele na medida em
que lhe antecipa alguns elementos. Parece que Koyré ignora as diferenças
mais essenciais entre esses dois projetos. A título de ilustração, a conside-
ração pormenorizada dos passos demonstrativos, utilizados por Newton
na solução dos problemas relativos à mecânica, permitir-nos-ia observar
o processo de abstração de termos originalmente situados no âmbito da
natureza. Ao identificar, por exemplo, a velocidade a um segmento, a fim
de colocá-la em proporção com outros termos, Newton não se compromete
com a descrição qualitativa da velocidade em termos físicos. No caso dos
problemas de determinar a força centrípeta, Newton estabelece, como resposta
final, uma sentença que afirma: “a força centrípeta é inversamente como...”.

128
Ou seja, a força centrípeta estabelece com esse valor – que, na realidade, é
uma combinação de segmentos ou outros elementos da curva – uma relação
inversa de proporcionalidade. O percurso que conduz a essa relação inclui,
necessariamente, a construção da figura que descreve o movimento e seus
elementos característicos, como tangente da curva, corda, segmentos paralelos
aos primeiros e, frequentemente, a construção de triângulos semelhantes
que comportem tais elementos característicos. A novidade, com relação
à geometria dos antigos, é que os segmentos e elementos característicos
estão associados a quantidades físicas e, através da relação geométrica que
eles mantêm entre si, relacionam também essas quantidades físicas. Ainda
que tratadas matematicamente, as grandezas consideradas nos problemas
permanecem como grandezas físicas.
Desse modo, são estabelecidos dois projetos diferentes de aplicabi-
lidade da matemática à natureza. Enquanto que o projeto cartesiano é,
essencialmente, metodológico, Newton utiliza a matemática como recurso
para demonstrar as relações que as grandezas físicas guardam entre si. Por
isso mesmo, o que se exige no projeto cartesiano é apenas que o estudo da
natureza, assim como qualquer outra área do conhecimento, espelhe-se no
“verdadeiro método matemático” (a análise, como entendida por Descartes)
e, aplicando fielmente o método, extraia as relações que seus objetos guar-
dam entre si. Tais relações são fundamentadas pelos procedimentos da
razão. Newton, por outro lado, não está em busca de um método matemá-
tico de descoberta, mas pressupõe que a matemática pode ser aplicada ao
mundo físico, com o objetivo de provar as leis da mecânica que, direta ou
indiretamente, são formuladas a partir da experiência. Não há, ao menos
no texto dos Principia, uma tentativa de justificar a correspondência entre
a matemática e os fenômenos da mecânica. Entretanto, o encaminhamento
dado aos problemas evidencia a confiança de que tal correspondência é
válida. Então, a diferença estabelecida por Descartes entre a matemática
como modelo metodológico e a matemática como disciplina acaba sendo
extremamente útil para diferenciar esses dois modelos de aplicabilidade da
matemática à natureza.

129
Quanto mais explícita essa diferença entre os dois projetos, mais parece
aumentar a tensão entre aquele preceito de reconstruir a teoria passada em sua
beleza e juventude e a análise koyreana da relação entre Descartes e Newton.
Entretanto, tal situação nos exige uma cota redobrada de prudência. O para-
lelo entre o Koyré teórico e o Koyré historiador da ciência põe em pauta essa
tensão, mas encaminha também para a revisão e o esclarecimento de conceitos
importantes da obra desse autor. Não podemos tomar Aristóteles e Descartes
em condições de igualdade e exigir que eles recebam o mesmo tratamento
por parte do historiador koyreano. isso porque eles não estão “do mesmo
lado” da revolução. É a revolução científica que estabelece o divisor de águas
entre o que consideramos como passado do pensamento científico e o que
chamamos de atualidade: a ciência moderna. Essa suposta tensão aponta para a
conclusão de que a ciência moderna pode reivindicar uma unidade justamente
pelo fato de que está assentada sobre um mesmo projeto, em alguma medida
partilhado por diversos cientistas. Enquanto que Aristóteles, por ser anterior
a esse projeto, faz parte do passado das ciências, Descartes, como pertencente
ao projeto da ciência moderna, tem seu mérito avaliado de acordo com o que
Koyré considera a plena realização do projeto: a física newtoniana.
isso não desfaz totalmente a tensão. Primeiramente, Koyré não deixa
claro, ao descrever a tarefa do historiador da ciência, que ela supõe um distan-
ciamento histórico demarcado pela revolução. A imagem da “Bela Armeira”
nos faz crer que toda teoria, considerada superada, pode beneficiar-se da
mesma generosidade. Poderíamos afirmar, então, que a prática de Koyré como
historiador – avaliando a física de Descartes a partir do projeto newtoniano –
permite-nos delimitar o alcance do que ele considera como “teoria do passado”,
restringindo esse conceito ao período anterior à revolução.
Em segundo lugar, porém, a tentativa de reconstruir o projeto cartesiano
de matematização da natureza, em sua juventude e de acordo com a coerên-
cia mantida com a metafísica que o sustenta, mostra-se não apenas possível,
mas extremamente promissora. Entretanto, se levada a cabo, essa tentativa
sacrifica, em algum grau, a unidade da ciência moderna. Visto que esse não
é um elemento negociável na obra de Koyré, resta-nos aceitar que o preceito
da “Bela Armeira” não se aplica no interior da ciência moderna, mas apenas
nos casos anteriores à revolução.

130
Referências bibliográficas
DESCARTES, R. [1628]. Regras para a Orientação do Espírito. Trad. Maria
E. Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
KOYRÉ, A. [1964]. Études newtoniennes. Paris, Gallimard, 1968.
KOYRÉ, A. [1943]. “Galileu e Platão”. in: Estudos de História do Pensamento
Científico. Trad. Márcio Ramalho. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2011.
KOYRÉ, A. [1955]. “Sobre a influência das concepções filosóficas na evo-
lução das teorias científicas”. Trad. J. E. Rodrigues Villa lobos. São Paulo,
Rev. Fac. Educ., 1979.
MARiON, Jean-Luc Sobre a Ontologia Cinzenta de Descartes.Trad. Armando
Pereira de Silva e Teresa Cardoso. Lisboa, instituto Piaget, 1975.
NEWTON, i. [1687]. The Principia: Mathematical Principles of Natural
Philosophy. Tradução, introdução e notas i. B. Cohen e A. Whitman. Berkeley:
University of California Press, 1999.

131
6

De um ponto de vista estruturalista: uma revisão


das bases filosóficas do internalismo de Koyré
Eduardo Salles de O. Barra – UFPR

O grande Koyré, que foi o Fustel de Coulanges da história da ciência, ao


lhe impor a leitura atenta dos textos, não pôde projetar sua investigação
para muito mais além dos conceitos e sistemas. E ele permanecerá
sempre um filósofo, um tipo de sábio com o qual, ao menos na França,
os historiadores jamais conseguem estabelecer um diálogo, em virtude
da desconfiança que reservam à filosofia da história (Le Goff, 1983:412).

Nada é mais emblemático no imaginário comum sobre a historiografia


de Koyré do que o seu manifesto internalismo. Suas reações às posições de
historiadores tais como Henry Guerlac e Pierre-Maxime Schuhl contribu-
íram sobremaneira para a consolidação dessa imagem. Ocorre, entretanto,
que o internalismo de Koyré esteve, na maioria das vezes, mais associado
a uma determinada epistemologia do que propriamente a uma filosofia da
história. Neste artigo, procurarei mostrar que esse equívoco contribuiu,
entre outras coisas, para turvar os nexos entre a historiografia da ciência
de Koyré e uma certa escola historiográfica da filosofia conhecida como
estruturalismo, protagonizada por Martial Gueroult e Victor Goldschimidt,
nos anos 1950. A epistemologia a que me refiro tem raízes no platonismo, ao
passo que a filosofia da história aqui evocada pertence à tradição hegeliana.
Num artigo publicado há mais de uma década, James Stump realizou uma
bem-sucedida tentativa de mostrar que os argumentos ditos internalistas
de Koyré o aproximam bem mais do hegelianismo do que propriamente do

133
platonismo. Com base nisso, Stump sustentou que a imagem de Koyré como
o “arquétipo do internalismo” deveria ser relativizada a ponto que pudesse
se equilibrar com o que chamou de “contextualismo”.
Neste artigo, assumirei inteiramente a tese interpretativa proposta por
Stump, mais ou menos à mesma maneira como fizeram muitos outros comen-
tadores, mas procurarei levá-la um pouco mais adiante. O contextualismo de
Koyré, nos termos em que ele foi descrito por Stump, está amparado numa
defesa da unidade e da sistematicidade do conhecimento – que, além da
ciência propriamente dita, deveria abarcar as demais crenças ditas “trans-
científicas”, cujos exemplos são a filosofia, a religião e a metafísica. Mas,
nessa interpretação de Stump, não há qualquer tentativa de aprofundar os
possíveis nexos entre o internalismo e o contextualismo assim concebidos.
Essas duas orientações persistem externas entre si, à maneira de típicas
opções metodológicas que, mesmo sem nenhuma dependência mútua,
podem coexistir em nome apenas de um propósito comum. Nas palavras
de Stump, “essas duas tendências opostas – o rastreamento da lógica interna
por meio da análise conceitual e a importância do contexto devido à uni-
dade do pensamento – estão sintetizadas no corpo do trabalho histórico do
próprio Koyré, onde elas produziram uma das mais importantes imagens
do desenvolvimento científico que nos foram oferecidas” (Stump, 2001:261).
Procurarei mostrar que “essas duas tendências opostas” talvez não
sejam tão opostas quanto sugere Stump, de tal modo que a aproximação
entre internalismo e contextualismo possa corresponder a algo mais que a
meras virtudes pragmáticas ou a meros arranjos metodológicos. Ao con-
trário disso, procurarei mostrar que o hegelianismo de Koyré deve ser mais
bem caracterizado como uma genuína tomada de posição no terreno da
filosofia da história. Nesse ponto, Koyré seria solidário da historiografia
estruturalista da filosofia, cuja opção por um certo hegelianismo se torna
inescapável, se ela for desafiada a sustentar o sentido filosófico da tarefa de
reconstruir a história da filosofia. Creio que o mesmo se poderá dizer de
Koyré, de tal modo que a sua historiografia da ciência será, em si mesma,
uma tomada de posição sobre a natureza da história e, por conseguinte,
sobre a natureza da ciência.

134
Em defesa do internalismo e do contextualismo
Para a minha tentativa de reconciliar “essas duas tendências opostas”,
o primeiro passo será esclarecer cada uma delas e avaliar suas primeiras
consequências. Do lado do internalismo, é importante saber de que modo
ele foi inicialmente associado ao platonismo. Do lado do contextualismo,
é indispensável compreender o seu escopo, pois, em princípio, ele poderia
ser tão amplo que toda tentativa de reconciliá-lo com o internalismo seria
mesmo impossível, ainda que por motivos meramente pragmáticos. Portanto,
o desafio será restringir com precisão o âmbito dos contextos admitidos na
historiografia internalista de Koyré, de tal modo que internalismo e con-
textualismo não se excluam mutuamente ex vi terminis.
Embora possa parecer ocioso dizer isto mais uma vez, é importante
reconhecer que a quase generalizada imputação de uma orientação platônica
à historiografia internalista de Koyré não é, de modo algum, destituída de
sólidos fundamentos. Nas palavras de um dos seus mais autorizados leitores,
(...) um nome entre todos resume a filosofia do conhecimento à qual
aderiu Alexandre Koyré: a de Platão. De Copérnico a Newton – e de
Newton a Einstein – a ciência moderna se apresenta como a desforra de
Platão sobre Aristóteles, da matematização sobre o sensível, do espírito
inato a si mesmo sobre toda espécie de sensualismo (Belaval, 2010:33).

indubitavelmente, a dedicação de Koyré aos estudos da ciência mo-


derna ofereceu elementos decisivos para a extrapolação de uma versão
historiográfica dessa “filosofia do conhecimento”. Assim como Galileu lidava
em abstrato com seus objetos de investigação – corpos em movimento –,
também a explicação de Koyré do desenvolvimento da ciência seria uma
explicação puramente intelectual, abstraída dos detalhes confusos dos siste-
mas econômicos, das estruturas de poder e das contribuições dos artesãos.
Suas análises consideraram o desenvolvimento da ciência em situações
idealizadas para cujo acesso é suficiente o modo como Galileu sustentava
suas teorias, a saber, por meio da análise conceitual. A narrativa da história
da ciência que emerge dessa análise conceitual supõe, pois, que os conceitos
se mostram segundo sua própria lógica interna, assim como as leis da física

135
governam a trajetória de um projétil – embora, tanto num caso quanto no
outro, os fatos reais possam não corresponder às suas descrições idealizadas.
A seguinte passagem parece ser uma evidência inconteste do modo como o
internalismo historiográfico emergiu de seus estudos da ciência moderna:
Nosso enfoque tem a vantagem de enfatizar a lógica inerente aos pro-
cessos históricos que, de outro modo, podem parecer bastante fortui-
tos. Com efeito, muitas das influências externas que os historiadores
identificam como pontos de inflexão na história da ciência são com-
pletamente ilusórios. O aparecimento do canhão, por exemplo, não
pode ser considerado a causa da nova dinâmica – era precisamente
o comportamento dos projéteis dos canhões que Leonardo Da Vinci,
Tartaglia e Benedetti eram incapazes de explicar. As necessidades dos
navegadores, dos calculadores do calendário eclesiástico e dos astrólogos
poderiam ter levado à correção das tábuas astronômicas existentes, mas
elas não produziram tal efeito; nempersuadiram Copérnico a mudar
a ordem tradicional das esferas celestes posicionando o sol ao centro.
(...). Todavia, embora a série de eventos que constituem a evolução da
matemática, astronomia e física não possa ser explicada isoladamente
– é sempre vão ‘explicar’ uma invenção ou uma descoberta –, pode-se
ao menos torná-las inteligíveis. A história do pensamento científico
não pode se contentar com menos nem exigir mais (Koyré, 1964: 11).

Esse verdadeiro credo internalista incorpora os principais elementos


que inspiraram a sua identificação com o platonismo: a ênfase nas disci-
plinas suscetíveis de idealizações (sobretudo, aquelas que registravam a
desforra, nas palavras de Belaval, “da matematização sobre o sensível”) e
na inteligibilidade (leia-se racionalidade) em detrimento da explicação
(presumidamente, causal).
A mesma passagem, entretanto, faz menção às virtudes da ênfase na
“lógica inerente aos processos históricos”. Se os primeiros elementos são
mais de caráter epistemológicos ou metodológicos, esse último aspecto
supõe uma certa metafísica dos processos históricos, que lhes confira uma
determinada “lógica inerente”. De algum modo, na passagem dos primeiros
a esse último, transita-se de uma filosofia do conhecimento a uma filosofia

136
da história. Esse fato é ilustrativo da revisão das bases filosóficas do inter-
nalismo de Koyré que aqui pretendo propor. Todavia, deixarei esse ponto
de lado por um momento, para traçar algumas considerações preliminares
sobre o contextualismo do nosso autor.
Embora isto não seja evidente à primeira vista, a ênfase na lógica in-
terna na compreensão da “evolução da matemática, astronomia e física”
requer relativizar a exigência de que isso seja realizado “isoladamente”. Essa
relativização, por sua vez, deve ser muito criteriosa e parcimoniosa, uma
vez que, entre os equívocos da explicação, está justamente o seu caráter
holista. Stump resume essa orientação metodológica consecutiva da ênfase
na lógica inerente do seguinte modo: “compreender as teorias científicas
em seus contextos históricos, evocando o modo como as coisas eram então
concebidas, é uma questão de encarar aquelas crenças situadas em meio ao
complexo de outras crenças que foram condicionadas pelas suas circunstân-
cias históricas” (Stump, 2001:254). Disso segue-se que, para compreender os
objetos da história da ciência do mesmo “modo como as coisas eram então
concebidas”, não se pode omitir os seus contextos próprios. É isso que se
depreende, por exemplo, das seguintes palavras do próprio Koyré narrando
uma característica marcante dos seus objetos de estudo preferenciais:
(...) [os protagonistas de uma revolução científica] não descobriram
nem estabeleceram essas leis simples e evidentes, mas conceberam e
construíram a estrutura que tornou essas descobertas possíveis. Eles
tiveram que, de início, reformular e reformatar o nosso próprio intelecto;
tiveram que lhe dar uma série de novos conceitos, desenvolver uma nova
abordagem para o ser, um novo conceito de natureza, um novo concei-
to de ciência, em outras palavras, uma nova filosofia (Koyré, 1968:3).

Pode-se interpretar essas últimas palavras como uma versão da tese de


que nenhuma das nossas crenças sustenta-se sozinha, livre da influência das
demais; ao contrário, elas conectam-se e dependem umas das outras para
a sua justificação e mesmo para a sua formulação. A racionalidade de uma
dada crença depende largamente da sua coerência com as demais crenças
com as quais se relaciona formando um sistema ou uma rede. Somente quan-
do a estrutura (framework) do pensamento é revisada para acomodar uma

137
nova crença, essa crença pode ser admitida como racional. Na medida em
que mudam algumas das crenças interconectadas a outras em redes, outras
revisões são forçadas sobre as demais – sob pena de toda rede degenerar-se
em mera justaposição. Portanto, quanto mais firmemente entrincheirada
uma crença se encontra, isto é, quando mais conexões ela tiver com outras
firmemente sustentadas, tanto mais difícil será removê-la. Todavia, é possível
que as palavras de Koyré limitem drasticamente as crenças que devem ser
consideradas para essa finalidade: “o contexto das crenças ancilares admitidas
como influentes no desenvolvimento da ciência limita-se àquelas transcientí-
ficas por ele mencionadas: filosofia, metafísica e religião” (Stump, 2001:255).

Os limites do contextualismo
O contextualismo de Koyré é, segundo Stump, uma manifestação do
seu compromisso mais fundamental com a unidade do pensamento, que,
por sua vez, é um signo inconteste da sua adesão ao hegelianismo e relativo
distanciamento do platonismo. Nada tenho a obstar a essa linha de racio-
cínio. Tudo é bastante crível e sustentável nas palavras e nas práticas do
próprio Koyré. Outros autores, além de Stump, perceberam as dificuldades
de lidar com a tensão proveniente dessas “duas tendências opostas”, a saber,
internalismo e contextualismo:
O espírito se manifesta na história. Viu-se de qual maneira A. Koyré
concebe sua tarefa de historiador. Contra toda idealização, importa
destacar a originalidade de cada época, de cada gênio, quanto mais for
possível em sua própria língua, abstendo-se de modernizar – se não se
compreende mais, por exemplo, que para um Paracelso, permanecia
‘perfeitamente razoável’ crer na influência dos astros. Nessa desco-
berta do ‘pensamento concreto’, não se deverá negligenciar a opinião
dos contemporâneos, mesmo negado pela posteridade. Não se trata
de dispor um catálogo de erros ou de sucessos, mas de descrever ‘os
esforços do espírito humano em sua marcha para a verdade’. A história
do espírito parece começar senão em um certo nível, quando se libera
do empirismo (Belaval, 2010:34).

138
Belaval parece sugerir que a contextualização é condição para renunciar
a “toda idealização” e promover a “descoberta do ‘pensamento concreto’”,
de tal modo que pouco importa saber se um determinado pensamento
representou um erro ou um sucesso. O importante é compreender cada
época, cada gênio em seus próprios termos – se “possível em sua própria
língua” – e segundo sua “lógica inerente”, sem modernizá-lo e, assim, julgá-lo
anacronicamente.
Há, todavia, importantes questões que devem ser respondidas, para
que essa modalidade de relativismo contextual faça algum sentido. Qual
o escopo da “unidade do pensamento” que se pretende assim promover?
O que é digno de ser incluído na descrição dos “esforços do espírito humano
na sua marcha para a verdade”? Quais são os critérios para traçar as fronteiras
das crenças transcientíficas? Na hipótese de ignorarmos essas questões, há
um risco real de todo internalismo ser subsumido a um externalismo de
segunda ordem ou, se preferir, a um certo transexternalismo.
A meu ver, o modo de traçar os limites do que está incluído e do que
está excluído da unidade do pensamento de uma maneira admissível por
Koyré é levar um pouco mais adiante a sua virtual adesão a uma certa filo-
sofia da história de inspiração hegeliana. Para tanto, o primeiro passo será
explorar seus possíveis pontos de convergência com a própria crítica de
Hegel à “história exterior” da filosofia.
A exterioridade que interessa a Hegel – é importante que se diga logo de
início – nada tem a ver com a exterioridade que Koyré recusou nas análises
historiográficas de seus contemporâneos, tais como Boris Hessen e Henry
Guerlac. A exterioridade hegeliana tem um caráter relacional e diz respeito
ao tipo de nexo que reúne as várias filosofias sucessivas no tempo. Esse
tipo de exterioridade tem uma consequência cética importante, na medida
em que a multiplicidade e a sucessão das filosofias do passado convertem-
se em justificativa da impossibilidade de realizar uma escolha entre elas.
A exterioridade decreta que, mesmo na hipótese de haver uma determina-
da filosofia que mereça ser considerada como mais verdadeira do que as
demais, não haverá meios para reconhecer qual possa ser essa tal filosofia.
Para contornar essa “aporia exterior”, Hegel recomenda:

139
Temos que considerar as filosofias individuais (particulares) como os
graus de desenvolvimento de uma ideia. Cada filosofia se apresenta
como uma determinação necessária de uma ideia. Na sucessão das
filosofias não há lugar para arbitrariedades; a ordem em que surgem
está determinada pela necessidade. Como esta é condicionada, vai
se mostrar diretamente na realização da história da própria filosofia.

Cada momento resume a totalidade da ideia numa forma parcial (uni-


lateral), cancela-se por causa dessa unilateralidade e, refutando-se assim
como algo último, une-se com sua determinação oposta, que lhe faltava,
e faz-se mais profundo e mais rico. isto é dialética das determinações.
Porém, este movimento não terminou em nada, mas as determinações
canceladas (absorvidas, anuladas) são também de natureza afirmativa.
É neste sentido que devemos tratar a história da filosofia (Hegel,
1976:80-81).

Não há, portanto, nenhuma exterioridade nem entre as filosofias indi-


viduais, nem entre a filosofia em geral e sua história. Sendo formas parciais
de uma única totalidade, a multiplicidade e a sucessão das filosofias não
ameaçam degenerar a história da filosofia num relativismo desvairado,
num contextualismo sem limites. Ao contrário, anulada toda chance de
exterioridade absoluta, resta apenas uma interioridade inexorável, de tal
modo que “não há lugar para arbitrariedades”.
Todavia, é muito evidente que o contextualismo de Koyré tem mais a
ver com a tópica do que com a doutrina hegeliana. isso significa que, ao
buscar em Hegel a inspiração para limitar a contextualização de Koyré, não
é preciso supor que nosso autor tenha aderido à ontologia ou à metafísica
hegeliana, emblematicamente representada na passagem acima pela alusão
à “dialética das determinações”. Ao contrário, basta apenas que o procedi-
mento de Koyré corrobore a abordagem hegeliana para a “aporia exterior”,
que consiste basicamente em interiorizar aquilo que, à primeira vista, po-
deria parecer externo, tal como seriam as sucessivas teorias científicas num
mesmo campo e, principalmente, a relação entre a ciência e sua história.
Se isso for admitido, será preciso relativizar a pretensão de Stump de que
filosofia, religião e metafísica sejam crenças transcientíficas. Não importa que

140
o processo de interiorização não seja suficiente para anular indistintamente
os limites entre as crenças trans e as crenças intracientíficas em cada época
particular. O importante é que ele seja suficiente para anular os limites entre
as suas respectivas histórias. De outro modo, talvez não se possa legitima-
mente exigir que o historiador admita “que para um Paracelso permanecia
‘perfeitamente razoável’ crer na influência dos astros”.

O internalismo à maneira estruturalista


Conforme vimos acima, a historiografia da filosofia hegeliana promove
a conciliação entre a filosofia e sua história tornando-as conceitualmente
indistintas, isto é, anulando toda exterioridade entre elas. Assim, o histo-
riador da filosofia possui, enfim, um recurso conceitual para justificar o
sentido filosófico do seu ofício. Vê-se, contudo, que essa justificativa “não é
filosoficamente neutra”, de tal modo que “é situado em um ambiente inte-
lectual muito preciso – banhado, se não pela doutrina, pela tópica hegeliana
– que o historiador da filosofia vai exigir que a história da filosofia tenha
o que dizer para a filosofia” (Ribeiro de Moura, 1988:157).Contudo, nada
disso se diz a propósito da historiografia hegeliana. Essas considerações
são endereçadas à historiografia estruturalista da filosofia preconizada por
Guéroult e Goldschmidt e erigida com base no método ad mentis autoris –
algo bem próximo do ideal da compreensão dos autores do passado em seu
“pensamento concreto” e “se possível, em sua própria língua”, que Belaval
atribuiu a Koyré. Sob a influência da tópica hegeliana, a exigência de rele-
vância filosófica para a história da filosofia será uma preocupação central
da historiografia estruturalista, viabilizada pela restrição incondicional da
tarefa do historiador ao sistema da obra à qual se dedica. Nisso consistirá
todo internalismo intransigentemente recomendado pela historiografia
estruturalista. Creio que no detalhamento dessa orientação encontraremos
pistas ainda mais convincentes para não dissociar como “duas tendências
opostas” o internalismo e o contextualismo na historiografia de Koyré.
O pressuposto básico do historiador inspirado nos ideais de Guéroult
e Goldschmidt é que a unidade legítima de interpretação de uma filoso-
fia particular é o seu sistema, entendido como uma unidade indissociável

141
entre método e doutrina. A interpretação consiste, assim, em refazer os
movimentos concretos do pensamento do autor, inscritos exclusivamente
na estrutura interna de sua obra. A tarefa do historiador é compreender o
sistema conforme a intenção do autor, atendo-se, sobretudo, à sua estrutura,
isto é, ao conjunto de procedimentos de investigação, descoberta, exposição
e demonstração que conferem coerência e inteligibilidade à obra. A noção
de estrutura não é, contudo, um simples expediente metodológico, pois
deve favorecer a compreensão do que é uma filosofia particular e, através
disso, o que é a própria filosofia – não é, pois, a filosofia presente que confere
significado à história da filosofia, mas justamente o oposto. Em virtude de a
noção de estrutura implicar a irredutibilidade de cada sistema, o historiador
estruturalista deve renunciar à avaliação da “verdade material” das doutrinas
do passado a fim de concentrar os seus esforços interpretativos na tentativa
de revelar a “verdade intrínseca” a cada uma delas.
Nada mais estranho e irreconciliável com a historiografia estruturalista
do que os apelos a um contextualismo irrestrito. A imposição da “verdade
intrínseca” como um limite à atividade interpretativa elimina a possibilidade
de considerar quaisquer contextos mais amplos do que os sistemas tomados
em si mesmos, isto é, segundo a sua própria “estrutura”. A título de ilustração,
vale notar que as pretensões contextualistas coincidem com as tentativas
de reduzir toda e qualquer doutrina a um número restrito de teses, com o
objetivo de torná-las homogêneas e comensuráveis às de quaisquer outras
doutrinas. Para Goldschmidt, a irredutibilidade e a incomensurabilidade
de cada sistema são ambas “uma função inelutável da estrutura da obra na
qual se exprime”. Uma dissimulação dessa irredutibilidade está na raiz do
“sofisma do progresso”, que consiste em construir, para um conjunto de
teses, uma série progressiva ou decadente, cujos termos são fornecidos por
diferentes sistemas filosóficos. Novamente, “a irredutibilidade dos sistemas,
opondo-se à confrontação equalizadora de suas teses, torna vã toda tentativa
de aplicar-lhes, enquanto tais, a noção de progresso” (Goldschmidt, 1990:238).
Conforme se observa, o sistema visado pela historiografia estruturalista
da filosofia mostra-se, no final das contas, como um sucedâneo à altura da
“lógica inerente aos processos históricos”, à qual Koyré pretendia limitar as
suas análises interpretativas da história da ciência. Portanto, o estruturalismo

142
pode ser uma expressão tão bem acabada quanto o próprio hegelianismo
de um internalismo historiográfico – talvez por isso eles compartilhem
tópicas tão similares. Por outro lado, o estruturalismo não pode dispensar
um contextualismo entendido explicitamente como a expressão da “unidade
do pensamento”, conforme desejava Koyré para a sua historiografia. O fato
de se restringir aos procedimentos de investigação, descoberta, exposição e
demonstração, que conferem coerência e inteligibilidade à obra, impede que
os seus contextos se tornem demasiadamente amplos, irrestritos e fragmen-
tados. Da mesma forma que a busca da “unidade do pensamento”, a busca da
“verdade intrínseca” parece oferecer os padrões para definir as condições de
contorno e os nexos internos dos objetos destinados à investigação histórica.
A noção de estrutura, antes de ser um achado metodológico puro e
simples, não está no início, mas no final da reflexão crítica do histo-
riador: ela é a noção a que se chega para resolver a antinomia entre
a filosofia e sua história, entre uma história científica e uma história
filosófica da filosofia, conciliando exigências oriundas de horizontes
intelectuais opostos (Ribeiro de Moura, 1988:168).

Da doutrina à tópica hegeliana


Jacques Le Goff, na citação escolhida como epígrafe deste artigo, reparou
precisamente nisto que é a marca distintiva do estruturalismo incidental
de Koyré: “a leitura atenta de textos” e, neles, a valorização dos “conceitos
e sistemas”. A meu ver, essa aproximação teve consequências importantes
para, por exemplo, a surpreendente recepção que a obra de Koyré teve entre
os historiadores da filosofia em países como o Brasil, onde a tradição estru-
turalista havia deitado raízes profundas na comunidade filosófica nacional,
por influência das missões acadêmicas franceses que, a partir dos anos 1930
e com participação direta do próprio Guéroult, nortearam a formação dos
departamentos de filosofia nas universidades brasileiras. Um conhecido
episódio transcorrido após o retorno de Koyré à França, no pós-Segunda
Guerra, pode ter sido o motivo para que as proximidades historiográficas
entre Koyré e o estruturalismo não tenham alcançado plena visibilidade. Em
1951, Koyré e Guéroult disputaram a nomeação para a cátedra de História

143
do Pensamento Científico no Collége de France, em substituição a Étienne
Gilson. Coube a Guéroult a pretendida nomeação, ainda que a candidatura
de Koyré fosse apoiada por Lucien Lebvre, um dos expoentes da escola dos
Annales, que reunia a maioria dos historiadores aos quais se dirigem as ob-
servações de Le Goff transcritas no início deste artigo (cf. Dosse, 1997:78-79;
Chimisso, 2008: 132-135).
Deixando de lado essa breve digressão externalista, desejo concluir essas
minhas especulações sobre as bases filosóficas do internalismo de Koyré
fazendo um balanço das vantagens de associá-lo mais ao estruturalismo
do que ao hegelianismo ou, dito de outro modo, mais à tópica do que à
doutrina hegeliana. Embora isso não seja, à primeira vista, evidente, as duas
principais razões para Stump enquadrar Koyré no hegelianismo emergem
do núcleo doutrinário da “dialética das determinações”. Primeiro, ele des-
taca o especial interesse por uma certa “fundamental e inerente oposição”
(Stump, 2001:258): “creio que a principal evidência para considerar Koyré
um hegeliano provém do seu contentamento em permitir que persista uma
oposição profundamente arraigada em seu pensamento: a oposição entre
a lógica interna das ideias e a relevância do contexto em que elas se inse-
rem” (Stump, 2001:260). Segundo, conforme vimos logo de início, Stump
declara sua expectativa de que essas “duas tendências opostas” encontrem
finalmente a sua síntese: “essas duas tendências opostas – o rastreamento da
lógica interna por meio da análise conceitual e a importância do contexto
devido à unidade do pensamento – estão sintetizadas no corpo do trabalho
histórico do próprio Koyré...” (Stump, 2001:261).
A mim, parece que nenhuma das duas pretensões de Stump sejam de fato
sustentáveis. Primeiro, se a “lógica interna” for interpretada na perspectiva
dos sistemas ou das estruturas, não há qualquer oposição entre internalismo
e contextualismo. Este último terá limites bem precisos, que serão aqueles
traçados pelo “pensamento concreto”, entendido então como o conjunto de
procedimentos de investigação, descoberta, exposição e demonstração que
conferem coerência e inteligibilidade aos conceitos. Segundo, todo pensa-
mento concreto instaura por si mesmo a sua unidade, que assume um caráter
prático (ou tópico) e não teórico (ou doutrinário). Sendo assim, torna-se
obsoleto qualquer esforço adicional para promover uma síntese superveniente.

144
Essa síntese prática não pode abarcar nada que seja minimamente exterior
ou transcendente. Se ela deve incluir, por exemplo, a filosofia, a magia ou a
religião, é porque nenhuma delas deve ser considerada como propriamente
crenças transcientíficas, pois ou bem são alcançadas pela lógica interna da
ciência ou bem não lhe dizem respeito absolutamente, nem mesmo à sua
história. Uma externalidade absoluta impossibilita a comunicação e, por
conseguinte, a compreensão. Compreender um cientista do passado tanto
quanto “possível em sua própria língua” não pode ser um simples preceito
do método. Bem mais do que isso, deve ser o único modo de conferir sentido
à tarefa do historiador, conforme a tópica hegeliana inerente e fundamental
ao mais genuíno estruturalismo historiográfico. À luz dessa mesma orien-
tação, o sentido do trabalho historiográfico, nesse campo de investigação,
outro não poderia ser que identificar a lógica interna que sustenta o mais
recôndito e enigmático dos seus conceitos: o conceito de ciência.

Referências bibliográficas
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Salomon (Org.) Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia:
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STUMP, J. B. “History of Science through Koyré’s Lenses”.Studies in History
and Philosophy of Science, vol. 32, n. 2, 2001, p. 243-263.

145
7

Koyré e o realismo
Patrícia Kauark-Leite – UFMG

O percurso filosófico de Alexandre Koyré parece regular-se por duas


correntes de pensamento a princípio inconciliáveis: o realismo científico e o
historicismo. O realismo científico é, grosso modo, uma concepção filosófica
que afirma que as entidades postuladas por uma teoria científica existem
independentes desta, estabelecendo um nexo ontológico entre termos teó-
ricos e mundo. Essa é uma definição forte de realismo científico respaldada
pela tese clássica da verdade como correspondência. O historicismo, por
sua vez, afirma que as teorias, fatos, conceitos e procedimentos que cons-
tituem o conhecimento científico de uma época determinada resultam de
desenvolvimentos históricos específicos. O historicismo parece implicar
necessariamente a tese antirrealista por supor que as entidades postuladas
por uma dada teoria científica são historicamente condicionadas. Nesse
sentido, não haveria como estabelecer qualquer correspondência entre os
termos da teoria, sempre cambiantes, e as entidades ou processos perma-
nentes do mundo real.
As análises de Koyré sobre a ciência moderna parecem oscilar entre
uma posição nitidamente historicista e uma posição realista. Elas se fizeram
notáveis pela sua crítica à concepção positivista do conhecimento científico.
Tal concepção creditava o sucesso da nova ciência surgida nos séculos XVi
e XVii a uma maior aproximação da teoria com os fatos, graças à adoção
do chamado método experimental, neutralizando a influência danosa de
princípios metafísicos extracientíficos. Koyré procurou evidenciar justamente
o contrário, ao reconhecer, por um lado, o caráter histórico do desenvol-
vimento do pensamento científico (concepção historicista) e, por outro, a

147
existência de vínculos estreitos entre a teoria física em desenvolvimento e
a adoção de princípios ontológicos fundamentais (concepção realista). isso
nos coloca diante de um impasse ao tentarmos classificar o pensamento de
Koyré, seja dentro da vertente realista, seja dentro da sua oponente, a vertente
historicista, por natureza antirrealista. O objetivo deste trabalho é propor
uma interpretação coerente que permita conciliar essas duas concepções a
princípio antagônicas.
Koyré se apresenta, antes de tudo, como um historiador da ciência.
As suas principais obras versam sobre um período particular do desenvol-
vimento científico: a chamada revolução científica do século XVii. Em 1939,
ele publica os Estudos Galilaicos, em três volumes: o primeiro, sobre a aurora
da ciência clássica; o segundo, sobre a lei da queda dos corpos – Descartes
e Galileu; o terceiro, sobre Galileu e a lei da inércia. Em 1957, publica Do
Mundo Fechado ao Universo Infinito; em 1961, A Revolução Astronômica:
Copérnico, Kepler, Borelli; em 1965, Estudos Newtonianos; e, em 1966, Estudos
de História do Pensamento Científico. Tendo em vista o caráter eminente-
mente historiográfico da sua pesquisa, cabe perguntar se é lícito referir-se a
Koyré como um filósofo da ciência. Seria pertinente atribuir teses filosóficas
originais às suas obras de história da ciência, que se referem a um período
particular do desenvolvimento das ideias da física?
Para responder adequadamente a essa questão é preciso considerar
as diferenças entre as atividades historiográfica e filosófica. Herdamos de
Aristóteles a definição de que a história, como narrativa de fatos que aconte-
ceram, diz respeito sempre ao particular, enquanto a filosofia, como ciência
dos primeiros princípios, diz respeito ao universal. Comparando a história
e a poesia em relação à filosofia, Aristóteles afirma em sua Poética:
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso
ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de
Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em
verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas
que sucederam, e outro, as que poderiam suceder. Por isso a poesia é
algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta, o particular (Aristóteles, Poética,
iX, 1451a-b).

148
Se tomamos essa definição como referência, o reconhecimento de Koyré
como um historiador da ciência, isto é, como um pesquisador que busca
narrar, através dos registros científicos históricos, o que se sucedeu no episó-
dio particular da assim chamada revolução científica do século XVii, parece
não se coadunar com a identificação dele como um filósofo da ciência. isso
porque, em contraposição à história, a filosofia, e particularmente, sua área
específica, a epistemologia, objetiva fornecer critérios universais acerca do
que é o conhecimento científico em geral, que se aplicam a todos os casos
e não somente a um episódio científico particular, buscando em especial
elementos racionais que permitam justificar nossas afirmações científicas.
Nesse sentido, falar da epistemologia de Alexandre Koyré, identificando-a a
uma corrente filosófica como a do realismo científico, parece conflitar com
a sua prática de pesquisa como historiador da ciência.
No entanto, Koyré é um dos grandes nomes da chamada epistemolo-
gia histórica, junto a outros como Gaston Bachelard, Thomas Kuhn e Paul
Feyerabend. Tal corrente de pensamento é marcada justamente pela crítica
às pretensões universais da epistemologia filosófica, sobretudo a de cunho
positivista, e busca compreender a ciência a partir de contextos específicos,
sejam eles de cunho social, histórico, material, filosófico ou psicológico. Nessa
perspectiva, a epistemologia não pode se permitir ignorar esses contextos.
A epistemologia histórica deve suas origens aos trabalhos de Bachelard
que, na França, a partir dos anos 20 do século passado, desenvolveu uma
maneira bem francesa de praticar filosofia das ciências, tendo sua identidade
marcada por uma abordagem fundamentalmente histórica da ciência.1 Na
mesma época, essa prática histórico-filosófica ganha força com as publicações
de Koyré, esse historiador francês de origem russa e, posteriormente, com
os trabalhos de Georges Canguilhem e Michel Foucault, que inauguraram
um novo estilo de se fazer filosofia da ciência. Essa corrente passou a ser
nomeada como epistemologia francesa em contraposição a outra corrente
epistemológica de cunho eminentemente lógico e não historiográfico, em
franco desenvolvimento na Áustria, Alemanha e países anglo-fônicos: o
positivismo lógico. A epistemologia francesa propunha uma abordagem
histórica da ciência, irredutível a uma análise formal. Ela se opôs igualmente

1. Ver, a propósito da epistemologia de Bachelard, Fenati (1991).

149
ao esforço dos positivistas lógicos de reconstruir a ciência a partir de dados
sensoriais, considerando, ao contrário, que a experiência só adquire signi-
ficação em um quadro teórico dado.
No caso específico da abordagem de Koyré, é possível destacar três teses
epistemológicas centrais pressupostas em suas análises históricas. São elas:
Tese 1: A tese da unidade do pensamento humano;
Tese 2: A tese da descontinuidade histórica da ciência;
Tese 3: A tese do primado da teoria sobre a experiência.
A primeira tese, da unidade do pensamento humano, implica afirmar
a inseparabilidade da ciência de outras dimensões teóricas do pensamento
humano, como por exemplo, a filosofia. Assim em sua análise histórica da
revolução científica do século XVii, Koyré busca identificar as inter-relações
e mútuas implicações entre essas duas dimensões da racionalidade huma-
na. Nesse sentido, ele afirma em sua obra Do Mundo Fechado ao Universo
Infinito: “Pode-se dizer, aproximativamente, que essa revolução científica e
filosófica – é de fato impossível separar o aspecto filosófico do puramente
científico desse processo, pois um e outro se mostram interdependentes e
estreitamente unidos” (Koyré, 2006 [1957]: 6). Koyré estabelece, no entan-
to, uma hierarquia entre essas duas dimensões do pensamento humano,
uma vez que as ideias filosóficas são mais fundamentais que os preceitos
científicos. A ciência assentar-se-ia, portanto, em bases metafísicas por não
poder prescindir de princípios que dizem respeito à natureza ontológica
da realidade. Em seu texto de 1956, “As Origens da Ciência Moderna: Uma
Nova interpretação”, Koyré declara: “Todo método científico implica uma
base metafísica ou pelo menos alguns axiomas sobre a natureza da reali-
dade” (Koyré, 1982 [1966]: 62). No caso da revolução científica do século
XVii, nosso autor avalia que as bases da nova física de Galileu, Descartes e
Newton assentavam-se na adoção de duas ideias metafísicas originais em
substituição às antigas visões de mundo aristotélicas. Em primeiro lugar,
a concepção grega de um cosmos finito e hierarquizado deu lugar à ideia
moderna de um universo aberto e infinito submetido às mesmas leis físicas.
Em segundo lugar, uma nova concepção abstrata e geométrica de espaço
passou a vigorar em substituição ao espaço concreto e material da física
aristotélica. Nas palavras de Koyré:

150
Quanto a mim, tentei em meu livro Galilean studies definir os modelos
estruturais da antiga e da nova concepção do mundo, e determinar as
mudanças acarretadas pela revolução do século XVii. Essas mudanças
me pareciam ser redutíveis a duas ações fundamentais e estreitamente
relacionadas entre si, que caracterizei como a destruição do cosmos e
a geometrização do espaço (Koyré, 2006 [1957]: 2).

Essas duas ideias ou atitudes revolucionárias – a destruição do cosmos e a


geometrização do espaço – não são fruto de investigações empíricas, próprias
da atividade científica, mas resultam do trabalho filosófico de elaboração de
concepções metafísicas absolutamente inéditas. Elas se apresentam assim
como instanciações da primeira tese que afirma a unidade do pensamento
e, nesse sentido, são exemplos da impossibilidade da dissociação entre as
investigações científica e filosófica.
Koyré procura ainda estabelecer, para além da unidade entre ciência
e filosofia, a unidade entre física e astronomia proporcionada pela ciência
galileana. Assim ele afirma em seu texto, de 1957, “Galileu e a revolução
científica do século XVii”: “A física moderna não deve sua origem somen-
te à Terra. Ela a deve também aos céus. E é nos céus que ela encontra sua
perfeição e seu fim” (Koyré, 1982 [1966]: 182). Essa aliança é também algo
inédito introduzido pela ciência moderna, que rompe com a antiga concepção
aristotélica que caracterizava física e astronomia como duas áreas totalmente
separadas do conhecimento, sem a menor interconexão entre elas.
As análises que Koyré empreende sobre as origens da ciência moderna
têm ainda como pressuposto a segunda tese, a da descontinuidade histórica
da ciência. Tal tese vincula-se à primeira na medida em que considera que
o desenvolvimento científico não se dá por uma evolução contínua ou por
um acúmulo de descobertas e fatos científicos novos, mas por rupturas e
revoluções essencialmente marcadas pela adoção de novas visões de mundo
que refletem concepções metafísicas sobre a natureza última da realidade.
Conforme ele mesmo diz em relação a vários períodos da história do pen-
samento científico:
As grandes revoluções científicas do século XX, tanto quanto as do
século XVii ou do século XiX, embora naturalmente assentadas na
descoberta de fatos novos – ou na impossibilidade de verificá-los –,

151
são fundamentalmente revoluções teóricas, cujo resultado não foi a
melhoria da conexão entre elas e os “dados da experiência”, mas a
aquisição de uma nova concepção da realidade profunda subjacente
àqueles “dados”(Koyré, 1982 [1966]: 77).

E sobre o caso específico da ciência do século XVii, ele salienta o ca-


ráter revolucionário do seu surgimento: “A ciência moderna não saiu, per-
feita e completa, como Atene da cabeça de zeus, dos cérebros de Galileu e
Descartes. Pelo contrário, a revolução galileana e cartesiana – que, apesar
de tudo, permanece como uma revolução –, foi preparada por um longo
esforço de pensamento” (Koyré, 1982 [1966]: 181).
As duas ideias anteriormente mencionadas – a destruição do cosmos
e a geometrização do espaço – apresentam-se assim também como ins-
tanciações da segunda tese, por assinalarem a profunda descontinuidade
com a ciência anterior e o caráter revolucionário da nova ciência: “É este
aspecto da revolução do século XVii, a história da destruição do Cosmos
e da infinitização do universo, que tentarei narrar aqui, pelo menos em sua
principal linha de desenvolvimento” (Koyré, 2006 [1957]: 6). O impacto e a
importância da segunda tese de Koyré sobre a epistemologia contemporâ-
nea foi reconhecida por grandes historiadores da ciência como i. Bernard
Cohen (1985) e Hendrik Floris Cohen (1994). Ambos reconhecem a ori-
ginalidade de Koyré quanto ao uso do termo “revolução científica” como
noção epistêmica estruturante. Para Cohen, “pelo menos uma década antes
de Butterfield, Koyré fez uso efetivo da noção de Revolução Científica como
princípio central organizador” (i. B. Cohen, 1985: 397. Tradução nossa).2
E ainda segundo Hendrik Floris Cohen, “como uma ferramenta conceitual
para o entendimento do nascimento da ciência moderna inicial, [o termo
“Revolução científica”] foi criado por Alexandre Koyré nos anos trinta”
(H. F. Cohen, 1994: 21. Tradução nossa).3
O próprio Thomas Kuhn reconhece – na introdução intitulada “Um
papel para a História”, da sua obra mais importante e conhecida, A estrutu-

2. “At least a decade before Butterfield, Koyré had made effective use of the notion of the
Scientific Revolution as a central organizing principle” (B. Cohen, 1985: 397).
3. “As a conceptual tool for understanding the birth of early modern science, [the term
“scientific Revolution”] was created by Alexandre Koyré in the thirties” (H. F. Cohen, 1994: 21).

152
ra das revoluções científicas – uma verdadeira revolução historiográfica no
estudo da ciência proporcionada pelos escritos de Koyré:
Vista através das obras que daí resultaram, cujo melhor exemplo talvez
sejam os escritos de Alexandre Koyré, a ciência não parece em abso-
luto ser o mesmo empreendimento que foi discutido pelos escritores
da tradição historiográfica mais antiga. Pelo menos implicitamente,
esses estudos históricos sugerem a possibilidade de uma nova imagem
da ciência. Este ensaio visa delinear essa imagem ao tornar explícitas
algumas das implicações da nova historiografia (Kuhn, 1978 [1962]: 22).

E, na entrevista concedia a Aristides Baltas, Kostas Gavroglu e Vassiliki


Kindi, na Grécia, em 1995, Kuhn volta novamente a reconhecer o impacto
da nova e original maneira de se fazer história da ciência introduzida por
Koyré no seu próprio trabalho: “por sugestão de Bernard Cohen, eu peguei
os Études galiléennes [Estudos galileanos], de Koyré, e adorei. Quer dizer,
isso me mostrava uma maneira de fazer as coisas que eu simplesmente não
tinha imaginado que existisse” (Kuhn, 2006 [2000]: 345).
Diferente de T. Kuhn, que é explícito em considerar o contributo do
nosso autor para o legado da epistemologia histórica, a influência de Koyré
na filosofia de Feyerabend é matéria controversa.4 Feyerabend cita-o em
poucas e breves passagens de sua extensa obra. Conforme levantamento
exaustivo realizado por Luiz Henrique Abrahão (2015), não há qualquer
referência a Koyré nos ensaios feyerabendianos publicados nos anos 1950 e
1960, compilados nos Philosophical Papers 1. Feyerabend também não cita
Koyré em qualquer das muitas cartas com Lakatos (1968-1974/1999) ou nas
seis cartas escritas a Kuhn no início dos anos 60 (Hoyningen-Huene, 1995,
2006). Também sem presença de Koyré em: Adeus à Razão (1987/2010),
Three Dialogues on Knowledge (1976-1990/1991), A Conquista da Abundância
(1989-1994/2006), The Tyranny of Science (1992/2011) e Matando o Tempo
(1994/1996). Há apenas no corpus feyerabendiano nove referências explícitas
a Koyré em sua maioria em notas de rodapé, que estão longe de evidenciar
uma real influência do historiador franco-russo no desenvolvimento do

4. Cf., a propósito, Abrahão (2015).

153
pensamento de Paul Feyerabend.5 No entanto, considero que a presença
implícita da segunda tese de Koyré é corroborada em muitas passagens dos
textos feyerabendianos, como por exemplo, quando ele afirma:
A ciência tem assistido a revoluções metodológicas lado a lado com
revoluções no conteúdo de suas teorias. A transição da abordagem
aristotélica para a de Galileu é um exemplo. Tais revoluções derrubam
não apenas um ponto de vista ou outro, mas todas as ideias que foram
fundadas nas bases de certos procedimentos, incluindo juízos básicos
(Feyerabend, 1999: 163. Tradução nossa)6.

Tentarei mostrar, no final deste trabalho, que a influência de Koyré


no pensamento de Kuhn e de Feyerabend se faz notar principalmente pela
aliança comum compartilhada por esses autores entre historicismo e realismo.
A terceira tese, exemplificada em várias passagens da vasta obra de Koyré,
diz respeito ao primado da teoria sobre a experiência, em franca oposição
à concepção empirista e positivista de análise da ciência moderna. Assim
afirma Koyré nos Estudos de História do Pensamento Científico:
O conceito galileano do movimento (como também o de espaço) nos
parece tão natural que chegamos a crer que a lei da inércia deriva da

5. As breves menções a Koyré aparecem nos seguintes textos: 1) No artigo “Classical


Empiricism”, de 1970: citação de Koyré (1965), Newtonian Studies, em nota de rodapé, dis-
cutindo a origem e a influência metodológica da Regra iV (“Não finjo hipóteses”), de Newton
(Feyerabend, 1981b, 42); 2) No artigo “On the limited validity of Methodological Rules”, de
1972, duas pequenas referências a Koyré (Feyerabend, 1999, p. 139 e 154): Nota 4: A. Koyré,
Newtonian Studie e Nota 54: no contexto do “caso Galileu”, Feyerabend refere-se à obra de
Koyré, Methaphisics and Measurement(1968); 3) Na primeira edição de Contra o Método,
publicada em 1975 (Feyerabend, 1977, 137, 148, 251 e 434): Nota 19 do Capítulo Vii: A. Koyré,
Metaphysics and Measurement; Nota 12 do Capítulo Viii: A. Koyré, Études Galiléennes,
1939; Nota 12 do Capítulo Xiii: A. Koyré, Etudes Galilléennes; Nota 136 do Capítulo XVii:
A. Koyré, “The Significance of the Newtonian Synthesis” in Newtonian Studies; 4) No seu
projeto de Naturphilosophie, que reúne textos 1974-1976, Feyerabend, no Cap. 6, cita Koyré,
Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (1957), a respeito do debate entre Newton e Leibniz
(Feyerabend, 2013, p. 268); 5) E, por último, em A ciência em uma sociedade livre, publicado
originalmente em 1978, Koyré aparece citado Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (1957),
quanto à influência da religião na física de Newton (Feyerabend, 2011b).
6. “Science has seen methodological revolutions side by side with revolutions in the content
of its theories. The transition from the Aristotelian to the Galilean approach is an example.
Such revolutions overthrow not only one point of view or another, but all ideas which were
founded on the grounds of certain procedures, basic judgments included” (Feyerabend,
1999, p. 163).

154
experiência e da observação, embora, evidentemente, ninguém nunca
tenha podido observar um movimento de inércia, pela simples razão
que um tal movimento é inteiramente impossível.

Também (...) não estamos conscientes do caráter paradoxal [da] decisão


[de Galileu] de tratar a mecânica como um ramo das matemáticas,
isto é, de substituir o mundo real da experiência quotidiana por um
mundo geométrico hipostasiado e de explicar o real pelo impossível
(Koyré, 1982 [1966]: 184).

E, de forma categórica, ele declara: “Pois é o pensamento, o pensamento


puro e sem mistura, e não a experiência e a percepção dos sentidos que
está na base da “nova ciência” de Galileu Galilei” (Koyré, 1982 [1966]: 193).
Mesmo diante de evidências contrárias a essa tese – como o clássico
caso a favor da concepção empirista de que as leis de Kepler teriam sido
derivadas dos registros de observação de Tycho Brahe em relação ao pla-
neta Marte – Koyré contra-argumenta a favor do primado da teoria sobre
a observação. Ele alega que a diferença de oito minutos entre as previsões
da teoria copernicana e as observações de Brahe só fazia sentido dentro
do quadro teórico da Nova Astronomia, concebida por Kepler como física
celeste, e que era irrelevante do ponto de vista da cinemática astral adotada
por Tycho Brahe. Koyré tenta ainda demonstrar, com base nos estudos de
caso, que o mesmo conjunto de dados empíricos era compatível tanto com
a astronomia copernicana quanto com a ptolomaica, corroborando assim a
chamada tese Duhem-Quine da subdeterminação da teoria pelas evidências
empíricas. Assim ele declara:
É muito estranho que a revolução astronômica, não só no que diz res-
peito a sua origem – os dados observacionais de Copérnico são quase
os mesmos que os de Ptolomeu –, mas também no que se refere ao seu
desenvolvimento, foi quase inteiramente independente do desenvolvi-
mento da astronomia observacional. Kepler nos diz que a diferença de
oito minutos entre teoria e observações de Tycho Brahe está na raiz de
sua Astronomia Nova ... mas, de fato, essa diferença foi de importância
para ele só porque ele estava tentando explicá-la no âmbito de uma

155
astronomia que ele descreve como (...) física celestial concebida muito
antes de ter acesso às observações de Tycho Brahe. interpretados no
âmbito da cinemática astral – o âmbito de Tycho Brahe – a diferença
em questão não teria nenhuma consequência grave (Koyré, 1973: 9.
Tradução nossa)7.

Diante das três teses anteriormente apresentadas, cabe então perguntar


se o historicismo de Koyré acarretaria necessariamente a adoção de uma
posição antirrealista em filosofia da ciência. Para responder a essa questão,
vejamos as implicações de cada uma das três teses em relação às distintas
posições nesse debate.
A tese 1, relativa à unidade do pensamento humano, envolve, como
vimos, uma inter-relação ineliminável entre concepções metafísicas e teorias
científicas. Ela tem como subtese a sobredeterminação da teoria científica
pela ontologia metafísica. Essa subtese parece implicar uma posição realista
segundo a qual toda teoria científica possui bases extraempíricas que dizem
respeito a características essenciais do universo. Tal posição se contrapõe à
posição antirrealista clássica, conhecida como instrumentalismo, segundo
a qual as teorias científicas não descrevem nenhuma propriedade essencial
do mundo, sendo meros instrumentos de previsão dos fatos.
A tese 2, por sua vez, ao afirmar a descontinuidade histórica da ciência,
tem como subtese a ideia, nomeada e desenvolvida por Feyerabend e Kuhn,
da incomensurabilidade entre teorias científicas rivais. Koyré, apesar de
não ter usado o termo ‘incomensurabilidade’, ao cunhar o termo ‘revolu-
ção científica’ como característica fundamental da sua nova historiografia,
demonstrou ser impossível retraçar um progresso genuíno na história do
desenvolvimento das teorias. A incomensurabilidade, que passou a ser um

7. “it is rather strange that the astronomical revolution not only as regards its origin – the
observational data of Copernicus are almost the same as those of Ptolemy – but also as
regards its development, was almost entirely independent of the development of obser-
vational astronomy. Kepler tells us that the eight minutes difference between theory and
Tycho Brahe’s observations are at the root of his Astronomia Nova… but, in fact, this
difference was of importance to him only because he was trying to explain it within the
framework of an astronomy which he describes as (…) a celestial physics conceived long
before he had access to Tycho Brahe’s observations. interpreted within the framework of
astral kinematics – the framework of Tycho Brahe – the difference in question would have
had no serious consequence” (Koyré, 1973: 9).

156
traço distintivo tanto da epistemologia de Feyerabend quanto da de Kuhn,
apesar das diferenças específicas no emprego do termo entre esses dois
autores, parece ter sido derivada da ideia original de Koyré de ‘revolução
científica’. E mais ainda, em Kuhn, o termo ‘paradigma’ expressa a visão de
mundo mais abrangente na qual a teoria científica se insere e uma ‘mudan-
ça de paradigma’ acarreta sempre uma “revolução científica”. Uma vez que
concepções científicas sucedem-se sem qualquer vínculo linear de progres-
so, não há como estabelecer qualquer estabilidade – tanto dos conceitos
científicos quanto das explicações – na sucessão histórica de teorias. Nesse
sentido, conceitos científicos não podem expressar e, portanto, descrever
características essenciais e permanentes do mundo. Essa subtese parece ser,
portanto, a expressão inconteste de uma posição antirrealista.
Da mesma forma, a tese 3, que assevera o primado da teoria sobre a
experiência, parece implicar uma posição antirrealista, ao ter como consequ-
ência a subdeterminação da teoria pela evidência empírica. Se a evidência dos
fatos disponíveis não é suficiente para determinar nossas escolhas teóricas,
não há como estabelecer a verdade de uma teoria com base em uma maior
correspondência com os fatos. A opção pela concepção instrumentalista foi
justamente a solução que Pierre Duhem (1914) encontrou para o problema
da equivalência empírica entre teorias científicas alternativas.
Se tomamos as três teses de Koyré, em seu conjunto, elas parecem não
estabelecer uma posição coerente seja a favor do realismo ou do antirre-
alismo. A tese 1 implicaria uma posição realista, e as teses 2 e 3, posições
antirrealistas. Talvez essa falta de coerência esteja ligada a uma certa fluidez
ou mesmo a uma polissemia no emprego da expressão “realismo científi-
co”. Assim devemos partir de uma definição que nos permita unificar de
forma consequente realismo e historicismo. A nossa aposta é a de que uma
definição mais fraca de “realismo científico” nos permita compatibilizar as
referidas teses de Koyré, que parecem a princípio inconciliáveis à luz de
uma definição forte.
É de Bas van Fraassen (1980) a formulação mais minimalista de realismo
científico. Segundo ele, para o “realismo científico”: “a ciência objetiva nos
oferecer, em suas teorias, uma história literalmente verdadeira de como é o
mundo; e a aceitação de uma teoria científica envolve a crença que ela seja

157
verdadeira” (van Fraassen, 1980: 8). Assim, é ainda possível ser um realista
científico, mesmo reconhecendo que a tese realista forte de correspondência
entre termos científicos e mundo não possa de fato ser estabelecida. Ela
permanece apenas como uma intenção ou um ideal regulador. O que o
realista científico não pode abandonar é a certeza de que em todo processo
de aceitação de teorias há sempre a crença em sua verdade.
Vejamos agora se as três teses de Koyré, em seu conjunto, são compatíveis
com a definição minimalista de realismo científico dada por van Fraassen.
A dúvida recai sobre as teses 2 e 3, uma vez que a tese 1 implicitamente
assume que toda teoria científica, em cada época histórica, ao basear-se
em concepções metafísicas sobre a natureza da realidade, envolve sempre
a crença de que ela é uma descrição verdadeira sobre o mundo. A tese 2,
baseada no conceito de “revolução científica”, vincula-se à tese 1 na medida
em que assume que toda revolução envolve a adoção de novos conteúdos
ontológicos que vão orientar o novo desenvolvimento científico. Assim
declara Koyré:
Eu estou convencido de que a ascensão e o crescimento da ciência
experimental não são a fonte, mas, ao contrário, o resultado da nova
abordagem teorética ou metafísica da natureza que forma o conteúdo
da revolução científica do século XVii, um conteúdo que temos que
entender antes que possamos tentar uma explicação (o que quer que
isso seja) de sua ocorrência histórica (Koyré, 1965: 6. Tradução nossa)8.

Apesar desses conteúdos ontológicos acima referidos serem sempre


historicamente condicionados, eles envolvem sempre a crença de que são
verdadeiros em relação aos anteriores, manifestamente falsos. Assim, a tese
2 de Koyré, que à luz da definição forte seria manifestamente antirrealista,
de acordo com a formulação fraca de van Fraassen, expressaria uma posição
nitidamente realista.

8. “i am convinced that the rise and growth of experimental science is not the source but,
on the contrary, the result of the new theoretical, that is, the new metaphysical approach
to nature that forms the content of the scientific revolution of the seventeenth century, a
content which we have to understand before we can attempt an explanation (whatever this
may be) of its historical occurrence” (Koyré, 1965: 6).

158
A tese 3, por sua vez, da contaminação teórica da experiência, é neutra
em relação ao realismo. Ela tanto pode servir de apoio à defesa da tese da
relatividade ontológica, como encontramos em Koyré, mas também em Kuhn
e Feyerabend, quanto de apoio para posições tipicamente antirrealistas ou
instrumentalistas como a de Duhem.
Assim, com base na definição minimalista de realismo científico dada
por van Fraassen, concluímos que o historicismo é perfeitamente compa-
tível com um tipo de realismo, presente nos textos de Koyré, que enfatiza,
sobretudo, a relatividade ontológica das teorias científicas. Trata-se de uma
forma bem particular de realismo, o realismo historicista, que encontra
fortes consonâncias com as concepções de Kuhn e Feyerabend. Apesar de
Koyré não ter propriamente escrito sobre o tema das relações entre realismo
e historicismo, Kuhn (1978: 251-253; 2006) tratou-o de forma sistemática,
como também Feyerabend (1981a, 1993, 1999, 2006), que fartamente es-
creveu sobre o realismo e, particularmente, sobre de que forma o realismo
historicista é preferível em relação tanto ao realismo metafísico quanto ao
instrumentalismo ou ao relativismo.9

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162
8

Metzger e Koyré: diálogos e escolhas


Ronei Clécio Mocellin – UFPR

Ao alertar sobre os perigos historiográficos do “vírus do precursor”,


Georges Canguilhem apresentava, em seu apoio, o testemunho de Alexandre
Koyré que em La révolution astronomique (1961) fizera uma severa crítica
ao conceito de precursor (Canguilhem, 1983). Curiosamente, Canguilhem
não se lembrou de uma análise crítica semelhante feita por Hélène (Bruhl)
Metzger em uma conferência realizada em 1939, no Institut d’histoire des
sciences et des techniques da Universidade de Paris (Metzger, 1987 [1939]).
Certamente, não foi mais que um esquecimento, pois o texto de Metzger foi
publicado na revista Thalès, órgão oficial desse Instituto criado por Abel Rey
em 1932 e que, na época em que Canguilhem pronunciou sua conferência
(1966) ele próprio era diretor do instituto.1
Sem dúvida, nos anos 1960, evocar a chancela de Koyré era bem mais
significativo para a plateia canadense de sua conferência, dado o reconhe-
cimento internacional alcançado pelo filósofo franco-russo. Os trabalhos
em história das ciências de Koyré também eram mais recentes do que aque-
les de Metzger. Enquanto Koyré publicou seu primeiro livro consagrado
inteiramente ao tema em 1939 (Estudos Galilaicos), Metzger publicou sua
última grande obra em 1938 (Atração universal e religião natural em alguns
comentadores ingleses de Newton).
Os textos de Metzger eram bem conhecidos. O próprio Canguilhem
ressaltava, em sua conferência, a exemplaridade da descrição feita por ela dos
diferentes discursos sobre os cristais em La genèse de la science des cristaux.

1. Acerca de Abel Rey e o Instituto de história das ciências e das técnicas, ver Braunstein (2006).

163
Porém, com uma trajetória paralela à institucionalidade acadêmica como
a de Metzger, que não formou uma “escola”, que não deixou “herdeiros de
pensamento”, não é surpreendente o seu relativo esquecimento pelas novas
gerações de historiadores e filósofos das ciências.
Não será meu objetivo aqui apresentar uma descrição abrangente do
pensamento de Metzger e de Koyré, tampouco procurar traçar comparações
em busca de prioridades. O que proponho é investigar, dentro de um ter-
ritório intelectual que lhes era comum, suas aproximações e afastamentos,
tanto na adoção e na interpretação de determinados conceitos, quanto em
relação à própria atividade do historiador das ciências. Para isso, sugiro um
diálogo entre esses autores acerca de alguns conceitos-chave para a história
das ciências, enfatizando, primeiro, suas convergências e, a seguir, suas
divergências. Parece-me que a própria possibilidade desse diálogo concei-
tual é oferecida por uma concordância de base entre Metzger e Koyré: a do
diálogo hermenêutico.
Enfim, considero que, a partir desses diálogos, seja possível lançar luz
sobre algumas escolhas intelectuais desses autores, bem como perceber
alguns eixos de investigações filosóficas e historiográficas – explorados ou
não – sugeridos por eles.


Qual poderia ter sido o interesse de Metzger ao propor a candidatura
de Koyré como novo membro da Sessão de história das ciências do Centre
international de synthèse em 1935?2
Ora, até então Koyré pouco tinha produzindo em história das ciências,
salvo um estudo sobre Paracelso e uma tradução comentada de Copérnico
(Taton, 1965). Como diretor da Va Sessão (História das ideias religiosas
na Europa moderna) da École pratique des hautes études a partir de 1932,
Koyré era, profissionalmente, um historiador da filosofia e do pensamento
religioso. Também era o editor do anuário Recherches Philosophiques, criado
por ele em 1931, que foi o principal disseminador, na França, da filosofia

2. “Séance du 23 janvier 1935”, Archeion, 17, 1935: 81.

164
fenomenológica de Edmund Husserl, seu antigo professor em Göttingen.3
Metzger, por sua vez, era essencialmente uma historiadora e filósofa da
química e não ocupava nenhum posto acadêmico. Sua formação univer-
sitária foi em cristalografia e sua cultura filosófica tinha sido obtida junto
ao seu tio Lucien Lévy-Bruhl, professor da cátedra de história da filosofia
na Sorbonne, e seguindo os cursos dos colegas dele, como André Lalande
e Léon Brunschvicg4.
De fato, se lembrarmos dos principias textos publicados por Metzger e
Koyré até então, não temos muitas pistas sobre possíveis convergências. Se
Koyré tinha se feito remarcar pelo meio intelectual parisiense com obras como
Essai sur l’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes (1922),
L’idée de Dieu dans la philosophie de saint Anselme (1923), La philosophie de
Jacob Boehme (1929), Metzger, por sua vez, tinha conquistado o respeito
de importantes filósofos (Lalande, Lévy-Bruhl, Brunschvicg, Meyerson) e
historiadores da ciência (Berr, Sarton, Rey, Tannery, Mieli) com La genèse
de la science des cristaux (1918), Les doctrines chimiques en France au début
du XVIIe à la fin du XVIIIe siècle (1923), Les concepts scientifiques (1926),
Newton, Stahl, Boerhaave et la doctrine chimique (1930), La chimie (1930).
Quer dizer, se quisermos conjecturar sobre as razões que levaram Metzger
a defender a entrada de Koyré no Centre de synthèse será necessário irmos
além das etiquetas dos títulos.
Um primeiro traço comum talvez seja a forma com que eles liam os
textos que estudavam e interpretavam. Ao escrever a história do pensamento
religioso, Koyré procurava reativar as ideias, as teorias e os conceitos dos
autores estudados dentro de suas próprias estruturas cognitivas; ele fazia-se
intérprete de um pensamento, de um modo de ver o mundo. A explicação
de um texto dentro de seu próprio universo intelectual era, assim, o núcleo
de seu método. Essa busca pela inteligibilidade de um texto a partir de seus
próprios termos também era o método praticado por Metzger que, aliás,
já era empregado por autores como Duhem, Meyerson, Lévy-Bruhl ou
Brunschvicg. Quando aplicado por Koyré, esse método hermenêutico fazia

3. Acerca da trajetória intelectual de Koyré, ver Salomon (2010).


4. Para uma breve biografia de Metzger, ver Freudenthal (2006).

165
reviver os pensamentos filosóficos e religiosos; quando aplicado por Metzger
trazia à tona os processos de construção das doutrinas científicas do passado.5
Essa concordância quanto à maneira de ler e reconstruir um pensamento
de outra época aponta para outro elemento comum. Fosse científico ou fosse
religioso, tratava-se de pensamento, de modo que o interesse principal de
ambos era com uma história do pensamento humano. Compartilhar a ideia
de que o pensamento era fruto de um tempo histórico, que era passível de
mudanças, por processos contínuos ou abruptos, aproximava-os; também
na recusa da existência de constâncias racionais atemporais, um ponto im-
portante da filosofia de Émile Meyerson, de quem ambos eram próximos.6
Metzger e Koyré também partilhavam a tese da unidade do pensamento.
“Desde o início de minhas pesquisas, dizia Koyré, fui inspirado pela convic-
ção da unidade do pensamento humano, particularmente em suas formas
mais elevadas” (Koyré, 1982 [1951]: 10, grifos meus). Mas essa unidade, esse
caráter fundamental de semelhança, não significa uma homogeneidade de
pensamentos, pois, lembrava Metzger:
(...) se provavelmente existe uma armadura imutável, as atitudes que ele
[o pensamento] pode tomar e que determina efetivamente a orientação
da mentalidade dos homens são diversas e muito variadas (...) é essa
heterogeneidade de orientações de mentalidade, a principal fonte da
heterogeneidade de opiniões professadas pelos pesquisadores (Metzger,
1987 [1937]: 60).

A história desse pensamento unitário não era, porém, como queriam os


historiadores positivistas, a descrição das etapas sucessivas que explicariam
a evolução do pensamento humano rumo a seu estado positivo. Essa atitude
antipositivista de Metzger e Koyré aponta para outro ponto comum, a grande
influência que as ideias de Lévy-Bruhl tiveram sobre ambos. Em seu Les
fonctions mentales dans les sociétés inférieures, Lévy-Bruhl propunha uma
tese original acerca da existência e da singularidade de uma “mentalidade
primitiva” (Lévy-Bruhl, 1910).

5. Acerca do uso do método hermenêutico pela história das ciências, ver Freudenthal (1988).
6. Para uma introdução à filosofia de Meyerson, ver Lévy (2006).

166
A questão a responder era se as representações coletivas das sociedades
primitivas eram produto de funções mentais semelhantes às do homem
branco ocidental, ou se derivavam de uma mentalidade distinta. Lévy-Bruhl
propunha substituir a concepção segundo a qual o pensamento primitivo seria
irracional, pois não obedeciam às leis da lógica, pela ideia de que ele teria
sua própria organização e coerência. Ou seja, ele tinha uma racionalidade
interna que se articulava a partir de uma lei de participação. Essa participação
consistia em uma associação entre pessoas e coisas no pensamento primitivo,
a ponto de significar identidade e consubstancialidade (Tambiah, 2013:194).
No início de um texto sobre Paracelso, Koyré sublinhava que:
(...) quando estudamos um pensamento que não é mais o nosso (...) é
necessário não apenas esquecer verdades que se tornaram parte inte-
grante de nosso pensamento, mas mesmo adotar certos modos, certas
categorias de raciocínio ou ao menos certos princípios metafísicos que,
para as pessoas de uma época passada eram tão válidos e constituíam
bases tão seguras de raciocínio e de pesquisa quanto são para nós os
princípios da física-matemática e os dados da astronomia. Seria preciso
assim admitir o princípio da equivalência da parte com o todo, prin-
cípio cuja importância, para o pensamento primitivo, foi estabelecida
por Lévy-Bruhl e para o pensamento metafísico, por Hegel (Koyré,
1997 [1955]: 10).

Contudo, Lévy-Bruhl considerava que existiam duas mentalidades, uma


pré-lógica e outra lógica. O pensamento primitivo ou pré-lógico era uma
representação coletiva que não obedecia a regras lógicas, tais como a da não
contradição ou a da dedução e prova. Ele traçava uma linha demarcatória
entre a mentalidade primitiva e o pensamento lógico; esta mentalidade seguia
outras regras e leis. Tanto Metzger quanto Koyré rejeitaram essa dicotomia
defendida por Lévy-Bruhl, mas ambos aprenderam com ele a necessidade de
se compreender os hábitos, os comportamentos, as ideias e os pensamentos
nos contextos mentais em que foram gerados.7
Metzger não considerava que houvesse “(...) um abismo intranspo-
nível entre o pensamento do selvagem e aqueles dos civilizados. No lugar

7. Sobre a relação entre Koyré e Lévy-Bruhl, ver zambelli (1995).

167
de fixar entre um e outro uma diferença de natureza, nós admitimos uma
diferença de grau” (Metzger, 1987 [1930]: 118). Apesar dessa divergência,
ela considerava que a teoria de Lévy-Bruhl era de grande utilidade para o
historiador das ciências:
Nós acreditamos que a teoria do pensamento espontâneo tal como
formulada pelo Sr. Lévy-Bruhl, que se apoia sobre fatos estranhos à
nossa mentalidade pode, se ela for convenientemente aplicada, ajudar
o historiador das ciências a penetrar no espírito dos cientistas cujas
obras ele analisa (Metzger, 1987 [1930]: 123. Tradução nossa).8

Enquanto a noção de mentalidade de Lévy-Bruhl possibilitava a Metzger


expor as doutrinas químicas e alquímicas dentro das estruturas mentais de
seus autores, a Koyré ela permitia compreender a racionalidade da filosofia
de um Jacob Boehme ou de um Paracelso, bem como suas diferenças em
relação ao pensamento de um Descartes ou de um Galileu. Seguindo a trilha
aberta por Lévy-Bruhl, Metzger e Koyré tinham por objetivo reconstruir as
estruturas doutrinais, em suas singularidades e diferenças, a partir de seus
termos originais. Sabiam também que não deveriam projetar suas próprias
formas de raciocínio e crença no estudo do pensamento de outras épocas,
tampouco julgar seu valor de verdade a partir de um pensamento exterior
a seu contexto teórico-prático.
Após seu retorno do Cairo, para onde tinha partido para ensinar na
Universidade durante o ano letivo 1933/34, Koyré retomou suas atividades na
École pratique des hautes études e Metzger passou a frequentar seus cursos
sobre Galileu. Se eles já estavam de acordo quanto ao método de estudo dos
textos antigos, essa aproximação institucional mostra mais um elemento
comum: o objeto da história das ciências.
A história das ciências era a história do pensamento científico. Essa for-
mulação tinha sido proposta por Federigo Enriques durante o III Congresso
internacional de história das ciências, realizado em Coimbra em 1934 (Redondi,
1996: 141). Uma história do pensamento científico teria por objeto analisar e des-
crever o pensamento dos cientistas, suas teorias, suas ideias e suas concepções:

8. Embora anacrônico, traduzo aqui o termo “savant” por “cientista”.

168
Quando eu falo em história das ciências, dizia Metzger, eu falo da
história do pensamento científico e não falo mais do que disso. Todo
o restante da ciência, que compreende a observação, a experimenta-
ção, a medida, os processos de cálculo ou a técnica da construção dos
aparelhos de laboratório, ou não intervêm em nada, ou não intervêm
senão como auxiliares no papel de ajuda do pensamento, ou de sua
criação (Metzger, 1987 [1937]: 58).

Koyré não dizia outra coisa quando afirmava que “(...) a história do
pensamento científico, tal como a entendo e me esforço por praticar, visa a
dominar a trajetória desse pensamento no próprio movimento de sua atitude
criadora” (Koyré, 1982[1951]: 13). Na perspectiva historiográfica de Metzger e
Koyré, uma história do pensamento científico não era, como na historiografia
positivista, uma narrativa dos sucessos e do progresso da ciência, mas uma
análise hermenêutica das teorias científicas. Chegamos então a mais uma
concordância entre eles: o pensamento científico é antes de tudo teórico.
Mais tarde, Koyré deixará isso bem claro em sua resposta a Henri Guerlac:
(...) creio que a ciência, a ciência de nossa época, como a dos gregos,
é essencialmente theoria, busca da verdade, e que, por isso, ela tem e
sempre teve uma vida própria, uma história imanente, e que é somente
em função de seus próprios problemas, de sua própria história, que ela
pode ser compreendida por seus historiadores (Koyré, 1982 [1963]: 377).

isso não significava desconsiderar os instrumentos científicos, a expe-


rimentação ou, no caso da química, a importância dos reagentes e materiais
de laboratório? Não, pois como afirmava Metzger:
(...) todos os reagentes que encontramos nos frascos etiquetados dos
laboratórios de química, todos os instrumentos de trabalho que en-
contramos nos laboratórios são produtos materializados da teoria,
com a ajuda dos quais podemos verificar a teoria, mas que devem ser
compreendido, aliás, que não podem ser compreendidos senão em
função desta teoria (Metzger, 1987 [1937]: 59).

Parece-me que essa materialização da teoria nos instrumentos e práti-


cas científicas de que fala Metzger é semelhante à posição posteriormente

169
defendida por Koyré. Em 1948, ele publicará seus clássicos artigos “Les
philosophes et la machine” e “Du monde de ‘l’à-peu-près’ à l’univers de la
précision”, nos quais analisava, justamente, a relação entre ciência e técnica
e o nascimento da tecnologia (Koyré, 1971 [1948]). Mesmo se referindo a
ciências distintas, eles estavam de acordo com o caráter eminentemente
teórico do trabalho científico.
As razões para o crescente interesse de Koyré pela história das ciências
podem ser encontradas, certamente, em sua própria trajetória intelectual
(Vignaux, 1965). Não deixa de ser interessante notar, todavia, que a partir
de sua convivência com Metzger seus projetos de pesquisa serão majorita-
riamente nessa área. Da mesma forma, é curioso o crescimento do interesse
de Metzger pela relação entre ciência e religião, particularmente na obra de
Newton. Não se trata aqui de afirmar categoricamente essa dupla influência,
mas apenas de conjecturá-la. O esforço de Koyré para que Metzger o subs-
tituísse (juntamente com Alexandre Kojève) na École pratique des hautes
études quando ele partiu para uma nova temporada na Universidade do
Cairo (1937-38) demonstra, ao menos, uma grande confiança e proximidade
intelectual (Chimisso, 2001: 224).
Os cursos dados por Metzger na École foram publicados em 1938, em
três fascículos da coleção Actualités scientifiques et industrielles, dirigida
por Enriques – o Études galiléennes de Koyré também foi publicado nessa
coleção. Com o seu Attraction universelle et religion naturelle chez quelques
commentateurs anglais de Newton, o objetivo de Metzger era o de se con-
trapor à interpretação positivista de Léon Bloch da filosofia de Newton,
particularmente em relação à hipótese da atração universal. Seu propósito
era estudar as “repercussões que a descoberta da lei de atração universal teve
sobre o pensamento religioso de alguns comentadores ingleses de Newton”
(Metzger, 1938, v. 1, 3). Ou mais precisamente, “(...) definir as atitudes mentais
que determinaram os aspectos do pensamento religioso dos comentadores
ingleses de Newton que se dedicam à religião natural” (Metzger, 1938, v. 3:195).
O Centre de synthèse, uma instituição à margem do sistema universitário,
era dirigido desde sua fundação, em 1925, por Henri Berr. Era composto por
quatro Sessões (história geral, ciências da natureza, síntese geral, história das
ciências) e sua função era a de aperfeiçoar a pesquisa favorecendo a integração

170
entre disciplinas. A história das ciências tinha uma importância fundamental
no quadro das “sínteses históricas” de Berr, que estava interessado, sobre-
tudo, na história do progresso do pensamento (Blay, 1996: 126). Sua relação
com Metzger era afetuosa, mas ele não estava de acordo com a importância
dada por ela ao pensamento “irracional” e à metafísica na constituição das
doutrinas científicas. Esta reticência também era partilhada por Aldo Mieli,
outro membro importante do Centre de synthèse (Gemelli, 1988).
Assim, as afinidades intelectuais e a busca de um equilíbrio de poder
dentro do Centre de synthèse parecem ter sido decisivos para o apoio de
Metzger à candidatura de Koyré. O até então historiador da filosofia e do
pensamento religioso seria um grande aliado contra as reminiscências positi-
vistas que dominavam o Centre (Chimisso, 2008: 130). Enfim, por caminhos
insuspeitos e mesmo sendo o “dernier venu”, como disse Mieli ao criticar o
que chamava de “elucubrações de Koyré” sobre o papel da experiência na
obra de Galileu, foi Koyré que, após a morte de Berr, em 1959, tornou-se
diretor da Sessão de história das ciências do Centre de synthèse (Redondi,
1996: 150-53). No entanto, esses elementos de convergência entre Metzger
e Koyré não devem ofuscar as divergências significativas entre suas formas
de conceber a natureza do pensamento científico e sua história.


Em seu discurso de posse, Koyré já apontava uma diferença importante
entre ele e os demais membros do Centre de synthèse, incluindo Metzger,
acerca da relação entre a história das ciências e a filosofia. Segundo Koyré,
“(...) ele iria mais longe que o Sr. Berr e, talvez, o contradiria. A história das
ciências apresentava para o filósofo mais interesse do que a própria ciência.
(...) A história das ciências era também mais importante do que pensava a
Sra. Metzger”.9
Ora, esse comentário de Koyré parece contradizer a proximidade inte-
lectual entre ele e Metzger, que tentei descrever acima. Todavia, visto mais de
perto, ele não pretende demarcar uma diferença quanto ao modo de se fazer

9. Processo verbal da sessão de 23 de janeiro de 1935. Archeion, 17, 1935: 82-84.

171
história das ciências, mas apontar que a margem da qual eles partiam para
essa aventura investigava era distinta. Enquanto Koyré analisava a história
do pensamento científico como filósofo, Metzger se lançava na reconstrução
das mentalidades científicas do passado como uma historiadora tout court.10
Abordarei essa diferença mais adiante. Antes, gostaria de chamar a
atenção para o fato de que, embora estejam de acordo quanto à unidade
do pensamento humano, Metzger e Koyré divergem quanto ao significado
dessa unicidade. Da mesma maneira, embora compartilhem a ideia de que o
pensamento científico caracteriza-se por critérios distintos de outras formas
de pensar, a porosidade entre as ontologias (científica/não científica) de
uma época era concebida de forma distinta. Certamente, tanto em Metzger
quanto em Koyré, as fronteiras entre ciências, metafísica e religião são fluidas.
Todavia, enquanto Metzger não traça uma separação rígida entre os tipos
de ontologia, Koyré aponta as especificidades de uma ontologia científica.
“Para evitar todo mal-entendido, dizia ele, não admitimos absolutamente a
variabilidade das formas de pensamento, nem a evolução da lógica” (Koyré,
1997 [1955]: 11).
O pensamento humano é único, universal e intemporal, mas se realiza
de forma variada devido a contextos históricos particulares. Quanto a isso
eles estariam de acordo, porém, enquanto Metzger considerava essa unidade
sem distinção entre níveis de cultura, Koyré pensava a unidade, sobretudo, a
partir de uma alta cultura, “particularmente em suas formas mais elevadas”
(ciência, teologia, metafísica). Para ele, a alta cultura de uma época expres-
sava uma mesma estrutura conceitual (Chimisso, 2001:227). Se levarmos
em conta que o tema de pesquisa de predileção de Koyré em história das
ciências era a revolução teórica na física dos séculos XVi e XVii, enquanto
o de Metzger era a emergência do pensamento químico na modernidade,
talvez já tenhamos um indício das razões dessa discordância de fundo.
Propondo uma interpretação diferente daquela dos historiadores posi-
tivistas para a origem da ciência moderna, Koyré apontava que, ao contrário
de uma revolução empírica, a nova ciência de Galileu era, antes de tudo,
uma revolução filosófica. No artigo “Galileu e Platão” (1943), ele retomava

10. Para uma análise da historiografia de Metzger, ver Christie (1988).

172
argumentos já apresentados em Estudos Galilaicos acerca da estrutura emi-
nentemente matemática da experimentação e do papel fundamental que o
princípio da inércia tivera na dissolução da cosmologia aristotélica:
Podem-se resumir e exprimir essas duas características da seguinte
maneira: a matematização (geometrização) da natureza e, por con-
seguinte, a matematização (geometrização) da ciência. [...] O que os
fundadores da ciência moderna, entre os quais Galileu, tinham de fazer
não era criticar e combater certas teorias erradas, para corrigi-las ou
substituí-las por outras melhores. Tinham de fazer algo inteiramente
diverso. Tinham de destruir um mundo e substituí-lo por outro (Koyré,
1982 [1943]: 155).

A ruptura fundamental entre a forma antiga de compreender o mundo


físico e a forma moderna estava, assim, na decisão filosófica de Galileu de
empregar a matemática e a geometria para, não somente dar conta da rea-
lidade da nova física, mas também para conceber os próprios instrumentos
necessários ao seu estudo. Quer dizer, o método de Galileu implicava:
(...) uma predominância da razão sobre a experiência simples, a substi-
tuição de uma realidade empiricamente conhecida por modelos ideais
(matemáticos), a primazia da teoria sobre os fatos. [...] Um método no
qual a teoria matemática determina a própria estrutura da pesquisa
científica (Koyré, 1982 [1956]: 74).

Para Koyré, o pensamento científico não nascia com a modernidade,


pois a física aristotélica “não era um amontoado de incoerências, mas, pelo
contrário, era uma teoria científica, altamente elaborada e perfeitamente
coerente” (Koyré, 1982 [1955]: 185). O que ele pretendia mostrar era que a
estrutura teórica da nova ciência era fundamentalmente diferente da an-
terior; que o nascimento da ciência moderna tinha sido “uma revolução
teórica, cujo resultado não foi a melhoria da conexão entre elas e os ‘dados
da experiência’, mas a aquisição de uma nova concepção da realidade pro-
fundamente subjacente àqueles ‘dados’” (Koyré, 1982 [1956]:77).
O traço característico das explicações de Koyré para as revoluções
científicas é o de considerá-las como mudanças de ontologia, ou como o

173
surgimento de um novo modo de distinguir o pensável do não pensável, o
racional do não racional. O racional era o que uma ontologia permitia pensar,
de modo que o pensamento era sempre racional. isso não queria dizer que
as ontologias fossem equivalentes, pois embora todas tratassem do ser, elas
não estruturavam apenas suas representações, mas também suas maneiras
de fazer. A diferença, então, era a de que a nova ontologia físico-matemática
tornava a racionalidade científica muito mais eficaz. Assim, o que distinguia
a racionalidade científica moderna da antiga era a forma de seus princípios:
eles eram matemáticos (Jorland, 2006: 163).
Se a base a priori da física aristotélica era formada a partir da percepção
sensível e da experiência de senso comum – o que a tornava uma ciência
empírica –, os a prioris da física galilaica eram de natureza geométrico-ma-
temática. Mas, considerar a ciência física como matemática pressupunha
também a afirmação de que os fenômenos naturais e a própria realidade
eram matemáticos. Ou seja, de que o nascimento da ciência moderna era
resultado de uma decisão filosófica, a de considerar que a estrutura profunda
da Natureza possuía um caráter matemático (Salomon, 2010: 88).
Não se trata de negar as influências sobre a ontologia científica de
uma época de outros domínios intelectuais (teologia, metafísica), mas o
de estabelecer uma fronteira entre o que é pensado como sendo ciência
e o que não o é. Metzger estava certamente de acordo com Koyré quanto
à singularidade formal dos a prioris de uma racionalidade científica, mas
ela não acreditava que se pudesse traçar uma linha divisória entre a prioris
científicos e a prioris não científicos. Na verdade, não era seu objetivo com-
parar as diferenças entre a prioris científicos durante revoluções teóricas,
tampouco explicar a natureza dos processos revolucionários. Seu principal
objetivo era o de explicitar os processos de criação do pensamento científico
e, neste sentido, a história das ciências contribuiria à elaboração de uma
“teoria do espírito humano”.
Cabia então ao historiador das ciências estudar os processos através
dos quais se formavam as ideias científicas, “de capturar o pensamento
em estado nascente, o pensamento no momento em que ele se formava, o
pensamento que surgia no pensador no instante preciso em que, por assim
dizer, ele se dava conta do pensado” (Metzger, 1987 [1937]: 60). Por isso, o

174
historiador das ciências deveria se fazer contemporâneo do cientista que
estudava, quer dizer:
Quando ele estuda os trabalhos dos químicos cartesianos, dos químicos
newtonianos, dos químicos stahlianos, e dos químicos condillaquia-
nos que trabalharam e fizeram progredir a química do século XViii,
ele deve se fazer sucessivamente cartesiano, newtoniano, stahliano e
condillaquiano (Metzger, 1987 [1933]: 11).

Koyré também se esforçava para se fazer contemporâneo dos textos


que estudava, mas parece-me que o seu objetivo era distinto daquele de
Metzger. Enquanto Koyré se preocupava em distinguir e analisar as estruturas
formais de pensamento, Metzger procurava demonstrar a existência de um
continuum intelectual entre o “pensamento espontâneo” ou “expansivo” e
o “pensamento refletido”, bem como a permanência de uma “imaginação
criativa” irrefletida, mesmo em doutrinas científicas matematizadas como
a física newtoniana.
Talvez não seja sem propósito um brevíssimo comentário sobre, justa-
mente, o que Metzger chama de a prioris que atuariam na construção dos
pensamentos. Ela bem sabia da diversidade de empregos dessa expressão,
por isso esclarecia aos ouvintes de uma conferência que deu no Centre de
synthèse em 1935, que não se tratava:
(...) nem da querela das ideias inatas, nem da oposição entre raciona-
lismo e empirismo, nem da disputa sempre renovada do idealismo e
do realismo, nem da crítica kantiana, nem das hipóteses evolucionistas,
nem da causalidade, nem do tempo, nem do espaço [...], nem das múl-
tiplas teóricas do conhecimento científico (Metzger, 1987 [1936]: 42).

Seu propósito, dizia ela, era ampliar a definição de a priori dada por
Lalande em seu Vocabulaire technique et critique de la philosophie, segundo
a qual a prioris eram noções “independentes da experiência”, que só tinham
“aplicação na experiência”, embora as “experiências não fossem suficientes
para explicá-las”. Além disso, “o a priori não designava uma anterioridade
cronológica, mas uma anterioridade lógica”. Segundo Metzger, sua pro-
posta de ampliação derivava da maneira de ver própria ao historiador das

175
ciências, “que ao longo de seu trabalho adquiriu a convicção que certas
formas de doutrina derivam tanto da experiência e da observação, quanto
da mentalidade do pesquisador”. Ela distinguia dois tipos de a prioris, um
próprio ao “pensamento expansivo” e outro, estruturado na lógica, próprio
ao “pensamento reflexivo”. Além disso, os a prioris de pensamento não eram
constantes no tempo, quer dizer “não existe um a priori, mas múltiplos,
muito diferentes uns dos outros e, às vezes, heterogêneos e incompatíveis”
(Metzger, 1987 [1936]: 46).
Enfim, para Metzger, a unidade básica do pensamento humano estava
na partilha comum do “pensamento expansivo” que se manifestava, por
exemplo, através das inferências analógicas (semelhante com semelhante)
que predominavam na “mentalidade primitiva”. A passagem do “pensamento
expansivo” para um “pensamento refletido”, que fundamentava as mentalida-
des científicas, não significava, contudo, a extinção dessa potência criadora
primitiva. Koyré não recusaria a existência dessa unidade de base e admitiria
mesmo que ela predominava em algumas épocas (como na Renascença), mas
não me parece que estivesse disposto a admitir sua presença na estrutura
ontológica do pensamento científico.


Retornemos ao discurso de Koyré. Quais poderiam ser as razões para
ele considerar que a importância da história das ciências para a filosofia
escapava a Berr e a Metzger?
É preciso não esquecer, primeiramente, que no momento em que Koyré
fazia esse julgamento ele era responsável por cursos de Hegel, particularmente
sobre sua filosofia da religião, na École pratique de hautes études. Em 1934 ele
também tinha escrito seu importante artigo “Hegel em iena”. A frequência
do termo síntese, em sentido dialético, nos documentos de ensino de Koyré
(síntese aristotélica, síntese tomista, síntese newtoniana...) não era certamente
um acaso. Todavia, Koyré jamais adotará a concepção neo-hegeliana da
história como lógica do espírito absoluto no mundo (Redondi, 1996:147).
Ora, embora essa aproximação não fizesse dele um hegeliano, é interessante
notar que Koyré acentuava, em sua interpretação de Hegel, a dimensão do

176
espírito e a questão do tempo, do tempo enquanto espírito, isto é, da história,
pois era no tempo que a história acontecia (Silva, 2010:118-19).
Além disso, a própria leitura que Koyré fazia de Hegel o remetia à
sua formação filosófica de base, aquela que nutria muitas de suas reflexões
histórico-epistemológicas: a fenomenologia. Seu pensamento era herdeiro
da fenomenologia husserliana. Koyré também partilhava com Husserl um
problema comum, a pergunta pelo sentido da história. Mas, enquanto Husserl
preocupava-se com o sentido da história de uma idealidade objetiva, Koyré
interrogava-se sobre esse sentido a partir de uma reflexão acerca das rupturas
na história do pensamento. Em resumo, era a partir do método fenome-
nológico que Koyré pretendia explicar a difícil articulação entre ciência e
verdade, e ele via na história das ciências o lugar para uma experiência de
compreensão da verdade histórica (Marques, 2010).
Embora Koyré considerasse que havia uma prioridade filosófica sobre
a história, ele não pretendia propor uma filosofia da história. isto por uma
razão simples: a enorme limitação teórica da ciência histórica. Para Koyré,
“uma boa epistemologia se faz baseada em medidas, e ela se faz em função
de uma ontologia”, mas enquanto “a estrutura ontológica da realidade física
parece começar a ser bem apreendida” ignoramos largamente o “estatuto
ontológico da realidade histórica” (Koyré, 2010 [1946]: 58-9). Quer dizer, as
reconstruções históricas eram interpretações, assim como as teorias científi-
cas, mas com a diferença de que estas estavam fundamentadas em ontologias
melhor estruturadas. Portanto, a história das ciências era fundamental no
enriquecimento da ontologia histórica, pois permitiria avançar investigações
filosóficas sobre o devir histórico do pensamento humano.
No mesmo dia do discurso de Koyré, também estava programada uma
comunicação de Metzger. Seu tema era justamente sobre qual deveria ser
“a relação entre a história das ciências e as teorias do conhecimento”. Ela
colocava à plateia a seguinte questão: “O tribunal da história tem qualidade
para oferecer julgamentos que permitam concluir discussões suscitadas por
filósofos partidários das diversas teorias do conhecimento científico?” Sua
resposta era negativa, não havia tribunal da história, e diante da alternativa
entre uma história positivista e uma história filosófica, Metzger optava por
uma terceira, a via da história:

177
A história das ciências deve se decidir entre ser um amontoado erudito
e sem valor de fatos quaisquer e inesperados que divertem um velho
sábio em um domingo à tarde, ou se fazer soldado de uma teoria fi-
losófica concernindo o mundo físico, a estrutura do espírito humano,
ou a organização social, abandonando assim, com esta atitude devota
e servil sua personalidade própria e seu esforço autônomo? Entre es-
ses dois lados do dilema, habilmente posto por uma dialética sutil e
segura dela mesma, nós tentaremos uma via real ou uma trilha rude
que permitirá à história das ciências mostrar que, se ela não pode
esperar substituir a filosofia, se ela não pode abandonar inteiramente
o a priori sem tornar-se inconsistente, ela pode ao menos esclarecer
as meditações dos filósofos que constroem teorias do conhecimento
(Metzger, 1987 [1935]: 27-8).

A história das ciências poderia auxiliar as teorias filosóficas descrevendo


as estruturas formais do conhecimento científico, mas ela não deveria ser
guiada por nenhuma teoria do conhecimento em particular. Para Metzger,
o historiador das ciências deveria ser antes de tudo um historiador. “Eu não
proibirei, dizia ela, ao historiador das ciências de ser, ele mesmo, filósofo
ou partidário de uma doutrina filosófica; eu lhe pedirei simplesmente que
pense como historiador quando ele fizer história” (Metzger, 1987 [1933]: 17).
Para ela, a história das ciências estaria mais próxima da etnologia do que da
filosofia, de maneira que “a etnologia e a história das ciências colaborarão
estreitamente para nos dar uma visão mais exata da estrutura do espírito
humano” (Metzger, 1987 [1930]: 123).
Sua função era a de tornar o passado visível enquanto tal, de restituí-lo
e de reanimá-lo a fim de compreendê-lo em sua integridade histórica. Com
isso, ele poderia conhecer as perspectivas intelectuais dos cientistas e captar
“as diferentes orientações de mentalidade” (Metzger, 1987 [1933]: 11). A tarefa
do historiador das ciências também não era a de triar os bons argumentos
ou as boas posições em função daquilo que viria a ser. Ao contrário, seu
triunfo era o de fazer perceber a importância daquilo que estava perecido,
mergulhando-o nas condições em que ele tinha sido concebido e sustentado,
ou seja, no quadro mental em que ele fazia sentido. Deste ponto de vista,

178
o passado perecido da ciência era antes de tudo culturalmente interessante
(Schlanger, 1988:190).
Em seu primeiro livro, Metzger já afirmava que “(...) a história da ciência
dos cristais, como a de toda a ciência, conectava-se com as grandes linhas
da história geral da humanidade” (Metzger, 1969 [1918]: 224). A história das
ciências não se distinguia, portanto, da história dos historiadores, ela era
parte da história geral, assim como eram a história sociopolítica, a história
literária, etc. De fato, as reflexões teóricas de Metzger mostram que sua con-
vicção historiográfica mais profunda era a de fazer uma história total. Seu
programa para a história das ciências estava em sintonia com a renovação
historiográfica dos fundadores da École des Annales, Lucien Febvre e Marc
Bloch (Chimisso, 2008:121).
Em um exercício especulativo, poderíamos nos perguntar qual teria
sido a posição de Metzger na ulterior querela envolvendo Koyré e Febvre, a
propósito da interpretação sobre as origens da ciência moderna e da tecno-
logia ocidental (Salomon, 2014). Por um lado, parece-me que ela estaria mais
próxima de Koyré quanto à primazia, na ciência, do pensamento teórico em
relação ao conhecimento experimental. Vimos acima que ela considerava
até mesmo os reagentes contidos nos frascos de laboratório como “produtos
materializados” de uma teoria. Por outro lado, parece-me que ela estaria mais
próxima da monogênese do tempo a que levava a análise de Febvre do que
da heterogênese do tempo derivada da análise de Koyré. Também estaria de
acordo com Febvre de que a análise de Koyré tendia a um “idealismo total”.
Parece-me ainda que ela não se oporia, como o fez Koyré à noção
de mentalidade, o conceito de pensamento, embora também discordasse
como ele da análise de Louis Rougier, que dissolvia o segundo na primeira
(Metzger, 1987 [1936]: 55). No entanto, essa opção por uma monogênese do
tempo, resultante da noção de mentalidade, talvez deva ser relativizada no
caso de Metzger, pois ela diferenciava as especificidades da “mentalidade
científica” de uma época. Sua posição era então intermediária. Quer dizer,
se a hipótese da atração universal de Newton não era uma simples consequ-
ência da mentalidade do século XVii, o pensamento científico não evoluía
à margem da mentalidade de seu tempo, como pensava Koyré.

179
Talvez pudéssemos estender esse exercício especulativo para outro
diálogo do qual Metzger foi privada de participar.11 Trata-se daquele entre
Koyré e Bachelard acerca do papel da ciência atual na estruturação do dis-
curso do historiador das ciências. Bachelard exprimiu suas ideias na famosa
conferência no Palais de la Découverte, em 1951, enquanto Koyré expôs as
suas em uma conferência pronunciada em Boston, em 1954.12 Ao resenhar
o La formation de l’esprit scientifique, Metzger já tivera ocasião de expressar
sua discordância do método bachelardiano de pautar a história das ciências
a partir da ciência do presente (Metzger, 1987 [1938]: 189-96).
Assim, ela certamente estaria de acordo com o objetivo de Koyré de
fazer reviver as teorias científicas do passado a partir de seus próprios au-
tores. Todavia, Metzger talvez apontasse que ainda restava uma influência
presentista que pautava as escolhas de Koyré: sua vivência intelectual da nova
síntese einsteiniana. Ao contrário de Koyré, que tinha grande interesse pela
história das revoluções científicas, Metzger não considerava que este conceito
devesse ter prioridade na descrição da história das mentalidades científicas.


Disse acima que a escolha do domínio de investigação histórica talvez
nos indicasse uma razão de fundo para as divergências entre Metzger e Koyré.
De fato, enquanto Metzger concentrava grande parte de suas pesquisas nas
ciências da matéria (química, cristalografia), Koyré se dedicava ao estudo
das estruturas formais das ciências físico-matemáticas. Ele certamente não
recusaria a existência de outros níveis de racionalidade (químico, biológico,
etc.), mas o seu modelo de análise se concentrava nos domínios matema-
tizados da ciência. A química que interessava a Metzger era a dos séculos

11. Hélène Émile Bruhl (Metzger de seu casamento com o historiador Paul Metzger, morto
em combate na Primeira Guerra) era, como Koyré, de origem judaica. Com a ocupação
alemã, ela deixou Paris em 1941, rumo a Lyon. Foi presa em fevereiro de 1944 e transferida
para Drancy (periferia de Paris) e a seguir deportada para Auschwitz. Muito provavelmente
morreu em março.
12. Conferência de Bachelard: “L’actualité de l’histoire des sciences” (Bachelard, 1972).
Conferência de Koyré: “De l’influence des conceptions philosophiques sur l’évolution des
théories scientifiques” (Koyré, 1971).

180
XVii e XViii, que estava longe de ser escrita em linguagem numérica e cuja
evolução doutrinal era heterogênea.13
Mas, em que sentido suas escolhas disciplinares poderiam influenciar
suas conclusões epistêmicas? Ora, a própria natureza dos problemas episte-
mológicos e históricos mudava. Os procedimentos cognitivos não eram os
mesmos na busca, por exemplo, das razões para uma determinada trajetória
planetária e das causas que atuavam durante uma transformação material.
Além disso, não bastava ao químico oferecer uma explicação teoricamente
bem argumentada, pois era necessário passar pelo crivo do laboratório. Ele
precisava transformar a teoria em materiais guardados em frascos de sua
prateleira. Embora os laboratórios químicos dos séculos XVii e XViii não
fossem modelos de precisão, os químicos não permaneciam no mundo do“à
-peu-près”.14 Em resumo, enquanto as qualidades primárias eram suficientes
para dar conta do mundo físico-matemático, a explicação da substanciali-
dade e da ação dos corpos materiais era indissociável da sensorialidade e
da subjetividade do próprio químico. No século XViii, a diferença entre os
projetos epistemológicos de Diderot e d’Alembert é um caso exemplar das
consequências dessa dicotomia disciplinar.15
A proximidade de Metzger com a química não era um caso isolado na
tradição histórico-filosófica francesa. Se a filosofia experimental de Diderot
já era tributária do conhecimento químico, personagens mais próximos de
Metzger, como Comte, Duhem, Meyerson e Bachelard, também tinham,
neste território do saber, uma fonte privilegiada de suas reflexões. Seus ob-
jetivos eram distintos, mas é interessante notar que a química sempre teve
um lugar de destaque na filosofia francesa, particularmente como terreno
para um debate de longa duração entre teorias sobre a matéria (Bensaude-
Vincent, 2005). No caso de Metzger, seu interesse eram as teorias da matéria
de Lémery, de Newton, de Stahl, de Boerhaave, de Macquer e de Lavoisier
(Metzger, 1974 [1930], 1935, 1987 [1936]).

13. A respeito da concepção de Metzger sobre a química do século XVii, ver Golinski
(1988); sobre sua interpretação das teorias químicas do século XViii, ver Kubbinga (1988);
sobre os limites de seu método historiográfico na descrição da química do século XiX, ver
Bensaude-Vincent (1988).
14. Acerca dos laboratórios nos séculos XVii e XViii, ver Eklund (1975) e Perkins (2013).
15. Sobre a relação de Diderot com a química, ver Pépin (2012).

181
Essa proximidade do pensamento de Metzger com a ciência química
não contribuiu, certamente, para sua permanência nos debates filosóficos
sobre a ciência. É bem conhecida a absoluta hegemonia das ciências físi-
co-matemáticas nos debates em filosofia da ciência, particularmente em
língua inglesa, durante boa parte do século XX (Schummer, 2006). Neste
caso, mesmo procedendo de maneira muito diferente, os trabalhos de Koyré,
que em parte foram realizados nos Estados Unidos, estavam mais em sin-
tonia com a época. Além disso, havia outra característica de Metzger que a
distanciava dessa corrente dominante: ela era historiadora, enquanto Koyré
era filósofo. Mesmo com o chamado “giro histórico”, essa tensão entre uma
abordagem de historiador e uma abordagem de filósofo da história das
ciências permanecerá latente (Kuhn, 2003).
Não deixa de ser curioso, enfim, que ao fazerem um balanço sobre o estado
da relação entre história e ciência ou, mais precisamente, entre história e his-
tória das ciências, os herdeiros dos fundadores dos Annales não se lembraram
da historiadora das ciências cujas ideias estavam mais próximas daquelas de
Febvre e Bloch (Annales, 1975). Talvez Metzger tenha oferecido uma feuille
de route que, se explorada e desenvolvida, teria aproximado a história das
ciências da história tal como praticada pelas sucessivas gerações dos Annales.
Quem sabe, com isso, teria nuançado a conclusão de Jacques Le Goff
que, em 1983, constatava que “historiadores das ciências e historiadores das
mentalidades mostravam uma ignorância recíproca dos trabalhos e das pro-
blemáticas de seus parceiros” (Le Goff, 1983: 407). No caso da história química,
ao menos, essa relação com uma historiografia à moda dos Annales será mais
tarde recuperada por Bernadette Bensaude-Vincent e isabelle Stengers que,
em seu Histoire de la chimie, propuseram-se a apresentar a química como um
sujeito histórico, “tal como o historiador do Mediterrâneo” (Bensaude-Vincent
& Stengers, 1993).

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186
9

Gaston Bachelard e Alexandre Koyré:


a Ideia na História
Fábio Almeida – UFG

imre Lakatos inicia seu artigo “História das ciências e suas reconstruções
racionais”, com esta fórmula, tantas vezes repetida: “a filosofia das ciências
sem história das ciências é vazia; a história das ciências sem filosofia das
ciências é cega”. Ela aparentemente nos coloca num ambiente bem preciso:
o das ciências. Mas se levarmos a sério a paráfrase da célebre sentença kan-
tiana, veremos que, na verdade, estamos aqui diante de duas continuidades:
por um lado, entre história e história das ciências, por outro, entre filosofia e
filosofia das ciências. Deste modo, o que a história precisa enxergar é, como
na intuição kantiana, conceitos que o entendimento coloca nas coisas para
que possam ser conhecidas, assim como o que preenche a filosofia nada
mais é que conteúdos, que ganham peso e volume pela sensibilidade e esta,
por sua vez, dá sentido às sensações. E, com efeito, não é precisamente esta
continuidade que permite a Lakatos, por exemplo, postular a distinção entre
história internalista e externalista? Não é desta continuidade entre o que se vê
o que se pensa, desta recuperação da experiência comum pelo pensamento
científico que decorrem os “programas” estabelecidos por esta filosofia das
ciências que, não sendo histórica, preenche esta história das ciências com
fatos e rivalidades metodológicas? E não é com estes mesmos olhos com que
todos percebemos os fenômenos que esta história, não sendo filosófica, quer
enxergar as theorias? Glorificação da visão: com esta filosofia (das ciências)
entramos, de fato, no mundo que, como tal, é sem profundidade; nele, o
dado (histórico) tem a força insuperável do silogismo.

187
Estas duas continuidades determinam, no entanto, uma ruptura deci-
siva. Com ela, entre história e filosofia das ciências parece abrir-se o mesmo
abismo que separa o particular e o universal; a mesma distância que separa
as duas extremidades do espírito, ou seja, a que se mantém no fundo escuro
e indeterminado da contingência do mundo sensível e da realidade dos
fatos, e a que consegue se libertar da sujeição às coisas à nossa volta para,
enfim, enxergar a luz branca e reta da verdade. Uma incompatibilidade
marca, portanto, essa relação, e o que a fórmula de Lakatos sugere é que há
aí um problema que, de algum modo, é o problema com o qual filósofos
e historiadores têm se debatido. Dele surgem então filosofias da história,
teorias e metodologias com que se estabelecem ciências históricas e, com
isso, ideias de história que tentam resolver a questão. O que parece ficar
esquecido neste debate é a questão do objeto mesmo de uma história que
só pode ser filosófica; a pergunta, aparentemente trivial, pelo objeto próprio
da história das ciências. Podemos, então, perguntar se se trata, com efeito,
de preencher a filosofia das ciências, se se trata de dar a ela a robustez e a
gravidade dos homens e das coisas, e, por outro lado, se se trata, de fato, de
curar a história das ciências, para o que teremos à disposição os diagnósticos
que já são bem conhecidos: objetivismo, cientificismo, psicologismo e até
naturalismo. Talvez devêssemos nos perguntar se não é este um debate por
demais filosófico para fazer-nos enxergar. Entre Homero e Heródoto, quem
foi o maior historiador? Qual dos dois terá enxergado melhor a antiguidade
grega, o poeta cego ou o “pai da história”?
O que os trabalhos de Gaston Bachelard e de Alexandre Koyré ensinam
é, por um lado, superar aquela continuidade, pois o pensamento científico
deve romper com a experiência sensível se quiser alcançar este elemento que
lhe é fundamental e que escapa ao âmbito que, pela crítica, Kant delimitou
para a ciência: a liberdade. Por outro lado, com tal superação, ultrapassa-se
pelo mesmo movimento esta descontinuidade entre filosofia e história das
ciências. Assim, a epistemologia de Gaston Bachelard será fundamentalmente
histórica, pois é do presente de uma ciência, é a partir de sua atualidade, que
se poderá julgar o passado e avaliar a efetiva novidade do espírito. Do mes-
mo modo, a história de Alexandre Koyré será fundamentalmente filosófica,
pois sua exigência é a de apreender a novidade do espírito em cada época,

188
ou seja, mostrar porque revoluções intelectuais foram, de fato, revoluções.1
Como bem destaca Georges Canguilhem, para ambos, a história das ciências
é “um esforço em buscar e explicar em que medida noções, ou atitudes, ou
métodos ultrapassados foram, cada um em sua época, um ultrapassamento
e, por conseguinte, em que o passado ultrapassado permanece o passado de
uma atividade para a qual é preciso preservar o nome de científica”. Mesma
démarche filosófica, portanto, indicada ainda por Canguilhem quando conclui:
“Compreender o que foi a instrução do momento é tão importante quanto
expor as razões da conseguinte destruição” (Canguilhem, 1975 [1966]:14).
Nascimento e destruição, a hipótese que gostaria de desenvolver aqui
é a de que este movimento, que é o movimento mesmo do pensamento,
está ligado, como quer sugerir o título, à inserção da ideia na história, à
presença deste elemento novo em seu interior. Hipótese que tem um cará-
ter filosófico que, semelhante àquele apresentado por Koyré em seu artigo
“Filosofia da história”, se funda na perspectiva de que a história como tal,
de fato, transforma-se e, transformando-se, renova-se constantemente. Por
certo, ninguém duvida de que existiu um Galileu e que este foi o inventor
do telescópio; ninguém duvida que existiu uma prisão Bastilha e que foi
tomada pela Revolução, mas o que muda a história é a ideia que, nela, a
constitui e, assim, personagens e fatos históricos são sempre construções do
espírito. isso certamente tem a ver com Bergson e não é por acaso que, neste
artigo de 1946, Koyré destaca algo decisivo: “a história – a dos historiadores,
a ciência histórica – está para a humanidade assim como a memória está
para o homem” (Koyré, 2010 [1946]:49). Não se trata, portanto, para Koyré,
como também não para Bachelard, de filosofia da história, e menos ainda
de filosofia da história das ciências. Trata-se, antes, ousaria dizer, de uma
filosofia do presente, da atualidade. Galileu e Bastilha: dois exemplos apenas
para recusar à filosofia qualquer espírito de gravidade, recusar-lhe o peso
que, desta perspectiva, sempre necessariamente aumenta; dois exemplos para
também recusar à história que os tome como um dado, como fato sempre

1. Aqui é importante mencionar que, logo no início de seus Études Galiléennes, Koyré, ao
ressaltar a importância do “estudo histórico da ciência” que mostra “quanto de esforço so-
bre-humano custou à ciência cada passo no caminho da intelecção do real”, reconhece que
“toma de G. Bachelard a noção e o termo mutação intelectual” (Ver Koyré, 1980:11, nota 2).

189
aí. Quando se fala, portanto, em epistemologia histórica, em história das
ciências, está-se falando, a um só tempo, da vitalidade do pensamento e de
uma vitalidade do passado. E isso também tem a ver com Bergson: é sub
specie durationis que devem ser vistos tais acontecimentos, e não sub specie
aeternitatis. E talvez valha como injunção para este tipo de história e filosofia
das ciências, sem nenhuma paráfrase, esta outra fórmula conhecida: enxergar
a ciência sob a óptica do artista, e a arte sob a óptica da vida...
Mas nossa hipótese tem também um caráter histórico, uma vez que esta
entrada da ideia na história parece poder ser bem concretamente localizada;
ela tem data, personagens e obras. Partiremos, portanto, deste contexto que
torna possível falar de ideia na história para, finalmente, procurar compre-
ender como Bachelard e Koyré ultrapassam a distinção que, pelo menos até
o final do século XiX, fazia da história uma espécie de ancilla philosophia.
Disso, Ernst Cassirer nos oferece uma interessante análise em sua confe-
rência de 1944, intitulada “A filosofia da história”. Depois de destacar que
uma filosofia da história só se tornou possível a partir do século XViii,
identificando como os pioneiros neste campo Vico e Herder, Cassirer afirma:
O que em nossos dias chamamos de filosofia da história apareceu pela
primeira vez no sistema de Hegel. Se estudamos o desenvolvimento do
pensamento de Hegel e se lemos seus primeiros escritos, dos quais o
que há de mais essencial permaneceu inédito, constatamos que, des-
de muito jovem, Hegel enfrentou o mesmo problema. Como Santo
Agostinho, ele era um pensador religioso, mas seu ideal de religião e
sua concepção do sentido do cristianismo não eram mais os mesmos
da idade Média. Ele não aceitava mais qualquer diferença entre “razão”
e “fé”. De acordo com Hegel, a religião não podia apoiar-se sobre meras
emoções ou sentimentos, ela tinha que apoiar-se no pensamento. Esta é
a forma mais elevada, a única forma digna de uma verdadeira religião
(Cassirer, 1988:55).

A união de fé e razão no jovem Hegel é o que confere intensidade ao


seu pensamento, e se o amigo de Hölderlin pode ser considerado, como
queria Deleuze, filósofo da identidade, não será por outra razão senão por
este desejo – avassalador, violento e fervoroso – de unificação. Hegel, como

190
místico, só podia pensar racionalmente. E por causa da clareza da visão e do
agudo sentimento que tinha de sua época, certamente era para ele angus-
tiante esta divisão tão íntima e tão profunda, esta fratura que afasta as duas
ordens fundamentais: a do tempo e a da eternidade. “Para ele”, escreve ainda
Cassirer, “não basta mostrar certa conformidade da história com a razão;
ele tentou provar uma verdadeira identidade entre a vida histórica, por um
lado, e a vida espiritual ou racional, por outro” (Id.,56). É por isso que, no
mesmo sentido da leitura de Cassirer, Koyré enxergou em Hegel um “visio-
nário do espírito”. Para Koyré a filosofia hegeliana parece, “em suas intuições
mais profundas, ter sido uma filosofia do tempo. E precisamente por isso,
uma filosofia do homem” (Koyré, 2006: 163). Esta relação tempo-homem,
segundo a visão de Koyré do hegelianismo, parece esclarecer-se no final do
ensaio “Hegel em iena”. Que nos seja permitido transcrever integralmente
este luminoso parágrafo:
Mas voltemos uma vez mais ao tempo, a esse tempo hegeliano que não
é, como bem sabemos, nem “imagem móvel de uma eternidade imóvel”,
nem meio homogêneo, nem número do movimento. A esse tempo
que, renegando-se a si mesmo, lança-se para o porvir antes de recair
no passado; a esse Chronos todo-destruidor, essencialmente oposto à
persistência e à manutenção, porque essencialmente princípio de cria-
ção, do novo; voltemos, enfim, ao tempo que, ele apenas, é eterno por
ser espírito, e que, ele apenas, é real por ser essencialmente presente.
Presente dialético, tenso, dramático. Presente vitorioso do passado,
englobando-o e tornando-o presente: esse tempo, vamos repetir, não é
o tempo das fórmulas e dos relógios. Esse tempo é o tempo histórico, o
tempo essencialmente humano. Pois, diz Hegel, nós é que nos projetamos
no porvir, negando nosso presente e fazendo dele um passado. E somos
nós que, em nossa memória retomamos e revivificamos esse passado
morto e consumado. É em nós, é em nossa vida que se realiza o presente
do espírito. A dialética do tempo é a dialética do homem. É porque o
homem é essencialmente dialético – o que quer dizer, essencialmente
negador – que a dialética da história, ou antes, que a própria história
é possível. É porque o homem diz não ao seu agora – ou a si mesmo –

191
que ele tem um porvir. É porque ele se nega que ele tem um passado.
É porque ele é tempo – e não apenas temporal – que ele tem também
um presente. Presente vitorioso do passado (Id.:187-8).

A leitura que Koyré faz de Hegel é significativa, e particularmente para


os propósitos que nos fixamos aqui. O ensaio “Hegel em iena” foi publicado
em 1934, na Revue d’histoire et de philosophie religieuse. O ano nos fornece
pistas para que compreendamos aspectos decisivos dessa leitura. Em pri-
meiro lugar, o privilégio que é dado aos textos inéditos de Hegel que, à parte
controvérsias historiográficas e exegéticas a este respeito, Koyré situa em seu
período de iena, período do jovem Hegel, anterior ao desencantamento do
filósofo que, não acreditando mais na ação, em lugar de reformar o mundo
contenta-se, numa maturidade talvez precoce, em explica-lo; é quando co-
meça a pesar a frieza cortante do lógico e a aridez do sistema. A convicção de
que a chave do hegelianismo devia ser buscada neste período de juventude,
em sua “fase romântica”, é que permite a Koyré fazer afirmações taxativas,
como a de que “o sistema hegeliano está morto e bem morto”; ou esta, talvez
ainda mais aterrorizante para esta figura com a qual, e especialmente em
nossos dias, corremos constantemente o risco de encontrar nos corredores
de nossas Universidades: o “especialista”, que pode ser da Ciência da lógica
ou da Enciclopédia:
Bem se vê, a “dialética” hegeliana é uma fenomenologia. E Hegel, uma
vez mais, apenas teve que se dar conta do que ele efetivamente fazia
para conceber a ideia da Fenomenologia do espírito que, pelo menos
em suas melhores partes, não é mais que uma descrição visionária da
realidade espiritual, análise das estruturas essenciais do espírito humano,
da constituição no e pelo pensamento, bem como a atividade do homem
no mundo humano no qual ele vive (Id.:178-9).

Com efeito, a leitura koyreana de Hegel é fenomenológica, o que permite


ao autor dos Estudos galileanos afirmar, numa nota apensa à passagem que
acabamos de citar, que “a Fenomenologia do espírito é uma antropologia”.
De fato, se para Hegel, o tempo é essencialmente humano, se “a dialética
do tempo é a dialética do homem”, ao desencantar-se da ação aferrando-se
à explicação é que o hegelianismo sucumbe àquilo que, algumas décadas

192
depois da publicação do ensaio de Koyré, Michel Foucault chamará de
“sono antropológico”. “A filosofia da história – e, por isso mesmo, a filosofia
hegeliana, o “sistema” – só seriam possíveis se a história estivesse terminada;
se não existisse mais porvir; se o tempo pudesse se estancar”, afirma Koyré
(Id.:189). E de fato, não é a idade da história, para lembrar aqui o belo livro
de José Ternes, a idade do homem?
Com isto, se lembrarmo-nos novamente do ano em que Koyré publica
seu ensaio, parece que podemos afirmar que é em Husserl que devemos bus-
car as fontes desta leitura de Hegel, ratificando, de certo modo, o implacável
veredito da história que, na curva do século XiX, condenou o hegelianismo
a um quase esquecimento na França.2 E foi o que permitiu que, nesse solo,
a fenomenologia florescesse e desse frutos, pois ela, ao contrário da antro-
pologia hegeliana, “soube encarar a ‘árvore’ do cartesianismo tal com ela se
desenvolveu a partir de suas raízes científicas”. Desprovido desta capacidade
nova, o hegelianismo – a filosofia da história, a dialética, o “sistema” – tornou-
se, como a partir de Brunschvicg mostra Koyré, “anacrônico antes mesmo
de nascer; constituiu uma filosofia da natureza... condenada a perder-se da
realidade [manquer la réalité]” (Id.:228).
Lembremo-nos rapidamente da história. Em 1928 Koyré se encontra
com Husserl na Alemanha para preparar os detalhes de sua vinda a Paris
para uma série de conferências, a convite de Henri Lichtenberger. São as
Conferências de Paris, que Husserl profere em 1929, no Anfiteatro Descartes,
da Sorbonne, e em alguns outros centros acadêmicos, como Strassbourg. No
mesmo ano, Koyré recebe os manuscritos destas conferências revisados por
Husserl e ampliados a partir das discussões que se deram nestes seus encon-
tros com o público francês. Em 1930 Koyré retorna à Alemanha, agora para
discutir com Husserl a tradução de Gabrielle Peiffer e Emmanuel Lévinas
desses textos que viriam a constituir as Meditações cartesianas, publicadas
em 1931. importante notar que há quem considere “um eufemismo atribuir
a Koyré apenas a revisão da tradução, pois Husserl, em mais de uma ocasião,
afirmou que Koyré era o seu verdadeiro tradutor” (Salomon, 2010:196).

2. Refiro-me aqui ao outro artigo de Alexandre Koyré, também incluído na coletânea Études
d’histoire de la pensée philosophique, “Relatório sobre a situação dos estudos hegelianos
na França”.

193
O “Relatório sobre a situação dos estudos hegelianos na França” de
Koyré, ao analisar o recuo do espírito francês diante do hegelianismo em
ligação direta com um retorno a Kant no século XiX, retorno cujo principal
representante é Léon Brunschvicg, ajuda-nos a melhor compreender o suces-
so que a fenomenologia husserliana conheceu ali no período entreguerras.
Em 1930 é publicada a tese de doutorado de Emmanuel Lévinas, intitulada
Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl. Vale lembrar ainda
que, à mesma época, Sartre, que havia frequentado, ao lado de figuras como
Bataille, Lacan e o próprio Lévinas, os célebres cursos de Kojève, parte para
a Alemanha, incitado por Raymond Aron, com o propósito de aprofundar
estudos da fenomenologia husserliana, publicando, em 1936, os ensaios
L’imagination e La transcendence de l’ego, fortemente influenciado por ela.
A fenomenologia, a partir de então, terá um desenvolvimento próprio e
marcará definitivamente a filosofia francesa a partir de então, e se isso não
significa uma proscrição de Hegel (além dos estudos de Kojève, temos que
lembrar das contribuições de Jean Hyppolite entre outros), significa a entrada
da ideia na história que, de acordo com nossa hipótese, está na origem dos
trabalhos de Bachelard, Koyré e outros.
Não sejamos ingênuos. Assim como nunca foi hegeliano, Koyré nunca
foi husserliano, nunca foi fenomenólogo. Sua história, entretanto, como
temos ressaltado desde o início, não é sem filosofia, e quase somos tentados
a recorrer, para caracterizar seus estudos, às palavras com as quais Husserl
apresenta sua fenomenologia, na introdução ao livro Ideias para uma feno-
menologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de 1913: a fenomenologia
representa, para o filósofo, “uma nova maneira de se orientar na experiên-
cia e no pensar, inteiramente diferente da orientação natural; aprender a
mover-se livremente aí, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de se
orientar, aprender a ver, distinguir, descrever o que está diante dos olhos, o
que exige, ademais, estudos próprios e laboriosos” (Husserl, 2006:27). Ora,
o que distingue a epistemologia francesa não é precisamente esta mesma
exigência de estudos próprios e laboriosos? E não é por esta exigência que
se rompe com a atitude da orientação natural precisamente para aprender
(zu lernen, expressão que não nos parece trivial) a ver? Parece ser isso que

194
marca o ramo que, a partir da fenomenologia de Husserl,3 desenvolveu-se
na França tendo como principais representantes precisamente Bachelard e
Koyré. É esta exigência que coloca, no lugar do sujeito, o conceito; no lugar
da subjetividade, a racionalidade; e porque não dizer, no lugar da linguagem,
do discurso, a ação. Este ramo – mais clandestino e mais incisivo, que se
ocupa com questões bem precisas, “regiões” para utilizar o termo epistemo-
lógico – poderia ser caracterizado por aquilo que Gaston Bachelard, numa
conferência de 1949 sobre “O problema filosófico dos métodos científicos”,
chamou de “ação racionalizante”.
Esta ação racionalizante, escreve Bachelard, nós lhe enxergaremos ainda
melhor a função quanto mais precisamente nos situarmos entre teoria
e experiência, neste centro onde os metafísicos tentam determinar as
relações entre o espírito e as coisas. Relendo recentemente o belo livro
de Koyré sobre Galileu, encontrei um pensamento que explicita bem
esta situação dialética do pensamento científico moderno. Koyré lem-
brava primeiro, de acordo com a temática habitual, que as proposições
teóricas buscavam naturalmente sua verificação experimental. Mas ele
indicava, com muita sutiliza, a existência, completamente moderna,
do movimento inverso. E sua expressão condensada sugere ao filósofo

3. De tão clara e precisa, vale citar aqui esta conhecida observação de Foucault, no Prefácio
à edição americana de O normal e o patológico, de Georges Canguilhem: “Sem desconhecer
as clivagens que puderam, durante estes últimos anos e desde o fim da guerra, contrapor
marxista e não marxistas, freudianos e não freudianos, especialistas de uma disciplina e
filósofos, universitários e não universitários, teóricos e políticos, parece-me que bem se
poderia distinguir uma outra linha de divisão que atravessa todas estas oposições. É a que
separa uma filosofia da experiência, do sentido, do sujeito, de uma filosofia do saber, da
racionalidade e do conceito. De um lado, uma filiação que é a de Sartre e Merleau-Ponty;
e, em seguida, uma outra, que é a de Cavaillès, de Bachelard, de Koyré e de Canguilhem.
Esta clivagem vem, sem dúvida, de longe, e poderíamos seguir suas marcas através do
século XiX: Bergson e Poincaré, Lachelier e Couturat, Maine de Biran e Comte. Em todo
caso, ela estava a tal ponto constituída no século XX, que a fenomenologia foi recebida na
France através dela. Proferidas em 1929, modificada, traduzidas e publicadas pouco depois,
as Meditações cartesianas, muito cedo, ensejaram duas leituras possíveis: uma que, na di-
reção de uma filosofia do sujeito, buscava radicalizar Husserl e não tardaria a encontrar as
questões de Sein und Zeit (é o artigo de Sartre sobre “A transcendência do ego”, em 1935); a
outra remontaria aos problemas fundadores do pensamento de Husserl, os problemas do
formalismo e do intuicionismo (e aí aparecem, em 1938, as duas teses de Cavaillès sobre
o Método axiomático e sobre A formação da teoria dos conjuntos)” (Foucault, 2008:1583).

195
infinitas meditações. É preciso, diz ele, que um fato, para ser verdadei-
ramente um fato científico, seja verificado teoricamente. Entendamos:
é preciso que um fato encontre seu lugar, seu justo lugar, numa teoria
racional (Bachelard, 1972:43).

O primeiro capítulo da primeira seção de Ideias I tem por título exa-


tamente “Fato e essência”. Ainda que não pretendamos aqui desenvolver a
relação Bachelard-Husserl, o que nos levaria para muito longe do tema que
nos interessa examinar, talvez possamos considerar isso uma importante
indicação acerca da orientação que, ao lado de Koyré, Bachelard assume
em sua filosofia. O fato de que, evocando Koyré, nos fala Bachelard, não é
o “fato” que Husserl quer explicar, não é a intuição empírica que do nos dá
o objeto “in seiner ‘leibhaftigen’ Selbstheit”4; a realidade não é, enfim, a do
mundo à nossa volta, não se trata, aliás, de uma “volta”, de um “retorno” ao
mundo, como prescreve a famosa máxima fenomenológica, mas de alcançar
o “acontecimento científico”.5 E não se pode aqui desconsiderar a palavra
“alcançar”, pois, malgré lui, Bachelard é um platônico. Alcançar o “aconte-
cimento científico” significa, com efeito, dar-se conta da dialética própria
do pensamento científico. Neste retorno da noção de dialética, que poderia
nos remeter novamente a Hegel, ela aparece imbuída de um sentido muito
especial: por paradoxal que possa parecer, bem mais próximo de Platão.
Será necessário lembrar novamente aqui que o sistema de Hegel está morto
e bem morto? Neste sentido, o belo artigo que abre o livro O engajamento
racionalista, Bachelard é bem explícito:
Por maior que seja a tentação de ligar o racionalismo dialético aos temas
hegelianos, é preciso, certamente, resistir a ela. A dialética hegeliana,
com efeito, nos coloca diante de uma dialética a priori, diante de uma
dialética em que a liberdade de espírito é demasiado incondicionada,
demasiado desértica. Ela pode, talvez, conduzir a uma moral e a uma
política gerais. Ela não pode conduzir a um exercício cotidiano das
liberdades do espírito, detalhadas e renascentes. Ela corresponde a

4. Na tradução de Márcio Suziki: “em sua ipseidade ‘de carne e osso’” (Husserl, 2006:37).
5. O termo “acontecimento” também não é trivial. Ele parece carregar o os sinais da
fenomenologia.

196
essas sociedades sem vida onde se é livre para fazer de tudo, mas onde
não há nada a fazer. Então, somos livres para pensar, mas não temos
nada em que pensar. Bem superior é a dialética instituída no nível de
noções particulares, a posteriori, após o acaso ou a história terem trazido
uma noção que permanece, por isso mesmo, contingente (Bachelard,
1972:8). Grifos meus.

Noção importante para Bachelard, dialética, como vemos aqui, é, como o


fato, “científica”. E o que isso significa? Significa, fundamentalmente, abertura.
Significa aquilo que o platônico Bachelard afirmava, já na introdução de sua
obra de 1934, O novo espírito científico: que com a ciência contemporânea o
vetor epistemológico tem um sentido muito nítido, “ele vai seguramente do
racional ao real e de modo algum, o contrário, da realidade ao geral, como
professavam todos os filósofos de Aristóteles até Bacon” (Bachelard, 1934:4).
E que nos seja permitido ainda ressaltar esta outra passagem emblemática,
agora do artigo “La dialectique philosophie des notions de la Relativité”, em
homenagem a Einstein, de 1949:
Com a ciência einsteiniana começa uma sistemática revolução das
noções de base. É no próprio detalhe das noções que se estabelece um
relativismo do racional e do empírico. A ciência experimenta então o
que Nietzsche denomina “um abalo dos conceitos”, como se a Terra, o
Mundo, as coisas assumissem outra estrutura pelo fato de colocarmos
a explicação sobre novas bases. Toda organização racional “treme”
quando os conceitos fundamentais são dialetizados (Bachelard, 1972:121).

Não nos encontramos aqui, mais uma vez, diante daquela outra con-
sequência da exigência filosófica de estudos próprios e laboriosos? Não nos
encontramos aqui, enfim, diante da exigência de teoria, tão característica da-
quela vertente da filosofia francesa na qual se encontram Cavaillès, Bachelard,
Koyré, Canguilhem? Diríamos que a relação dialética que a epistemologia
histórica de Bachelard estabelece entre racionalismo e materialismo é a mes-
ma que Alexandre Koyré, historiador do pensamento científico, identifica
entre theoria e experimentum. Mas o que é mais importante é perceber que
esta dialética só fará sentido se admitirmos o postulado epistemológico que
Bachelard enuncia em seu livro de 1940, A filosofia do não: “o espírito pode

197
mudar de metafísica, ele não pode ficar sem metafísica” (Bachelard, 2002
[1940]:13). É o que está em jogo, o espírito, isto que nem é um dado mera-
mente histórico, nem um conceito puramente filosófico. E a psicanálise do
conhecimento de Bachelard não faz mais que evidenciar, sob esta convergência
filosófica fundamental, um desnível de démarche: Bachelard não vê ciência lá
onde Koyré enxerga uma; e para Koyré, não há teoria “perecida” (périmée) que
se contraponha a uma “sancionada”. A diferença entre as duas perspectivas,
não é propriamente uma, pois, como escreve Bachelard: “O historiador das
ciências deve considerar as ideias como fatos. O epistemólogo deve considerar
os fatos como ideias, inserindo-os num sistema de pensamento. Um fato mal
interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o
epistemólogo, é um obstáculo, é um contra-pensamento” (Bachelard, 1970
[1938]:17). Por isso é que a epistemologia deve ser histórica; por isso é que
a história das ciências só pode ser epistemológica. Por isso também é que
Bachelard e Koyré se encontram no mesmo espaço; espaço que, ao fim e ao
cabo, a filosofia de Husserl inaugura na episteme moderna.
E o que significa esta modernidade para o conhecimento? Com esta
questão abre-se um campo vastíssimo de investigação. A arqueologia de
Michel Foucault procurou, em última instância, elaborar uma resposta a
esta pergunta. Mas, com Bachelard e Koyré, mantemo-nos num espaço
outro, o espaço epistemológico. Ele não é menos moderno que aquele em
que se situam saberes como a economia, a linguística, a biologia. No entre-
cruzamento da arqueologia com a epistemologia, na teia de relações que se
estabelece entre as duas perspectivas, não se podem confundi-las: história,
racionalidade, conhecimento, métodos, valores, são termos que trafegam
entre as duas disposições, mas permanecem profundamente distintos numa
e noutra. E o que determina tal mudança? Diríamos, numa palavra, que é o
objeto. Canguilhem chama a atenção para o fato de que os críticos de Foucault
pouco atentaram para o significado que, em As palavras e as coisas, o termo
arqueologia assume. E, de fato, o que o determina é a noção de empiricidade,
isto é, aquilo que se constitui sobre as camadas moventes que determinam
o saber de uma determinada época. O “objeto” da arqueologia, portanto, é
o que provisoriamente se situa abaixo de certas práticas e que, desde este
ponto muitas vezes secreto, irradia para a superfície sinais, acenos, fazendo

198
sentir aí sua pulsação, suas vibrações, sua presença inelutável.6 O mesmo
Canguilhem, noutro lugar, esclarece bem o objeto da história das ciências:
mais cultural que natural, ele, em todo caso, não está dado aí, é construído.
E esta busca é que coloca para o historiador a exigência de estudos “próprios
e laboriosos”. Deste modo, “a história das ciências é a explícita tomada de
consciência, exposta como teoria, do fato de que as ciências são discursos
críticos e progressivos para a determinação do que, na experiência, deve
ser tomado como real” (Canguilhem, 1975 [1966]:17). Este desnível entre o
empírico e o real – eis aonde aquela hipótese pretendia conduzir –, é a ideia
que determina. Parece ser por isso que Bachelard pode afirmar, como em
sua conferência no Palácio da Descoberta, sobre “a atualidade da história
das ciências”:
A história das ciências não pode ser uma história como as outras.
Pelo próprio fato de que a ciência evolui no sentido de um manifesto
progresso, a história das ciências é, necessariamente, a determinação
dos sucessivos valores de progresso do pensamento científico. Nunca
se escreveu verdadeiramente uma história, uma ampla história, de uma
decadência do pensamento científico. Ao contrário desenvolveram-se
abundantemente histórias da decadência de um povo, de uma nação,
de um Estado, de uma civilização (Bachelard, 1970 [1938]:138).

Parece ser desta mesma posição que Koyré enxerga, por exemplo, a
figura de Leonardo Da Vinci para nos fornecer dele um excelente retrato na
conferência “Leonardo Da Vinci 500 anos depois”. A realidade desta figura
enigmática é moderna, e isso não porque tenha sido um homem à frente
de seu tempo, mas precisamente por ter sido um homem de seu tempo.
É também neste mesmo sentido que ele escreve, não sem ironia, sobre “as
origens da ciência moderna”:
Não acredito que o nascimento e o desenvolvimento da ciência moderna
possam ser explicados pelo fato de que o espírito se tenha desviado para
a práxis em detrimento da teoria. Sempre pensei que esta explicação

6. Ver Canguilhem, G. Michel Foucault, morte do homem ou esgotamento do Cogito? Goiânia:


Edições Ricochete, 2012.

199
não concordava com o verdadeiro desenvolvimento do pensamento
científico, mesmo no século XVii; parece que ela concorda menos
ainda com seu desenvolvimento no século Xiii e XiV. Não nego, bem
entendido, que, apesar de seu suposto – e muitas vezes real – afasta-
mento, a idade Média, ou, para ser mais exato, certo número e até
um número bastante grande de pessoas da idade Média, se tenham
vivamente interessado pela técnica, tampouco nego que elas tenham
dado à humanidade certa quantidade de invenções altamente impor-
tantes, das quais algumas teriam provavelmente podido, se tivessem
sido feitas pelos Antigos, salvar a antiguidade do desmoronamento e da
destruição devida às invasões pelos bárbaros. Mas, de fato, a invenção
da charrua, do arado, da biela-manivelada e do leme à ré nada tem a
ver com o desenvolvimento científico; maravilhas tais como o arco
gótico, os vitrais, as engrenagens e as cordas dos relógios do fim da
idade Média, não foram os resultados do progresso das teorias cien-
tíficas correspondentes, e tampouco as suscitaram. Por curioso que
possa parecer, uma descoberta tão revolucionária como a das armas de
fogo teve tanta incidência científica quanto careceu de base científica.
As balas de canhão derrubaram o sistema feudal e os castelos medievais,
mas a dinâmica medieval não foi alterada (Koyré, 2007 [1966]:74-5).

Com efeito, a história das ciências não pode ser uma história como as
outras. A relação é de outra ordem; a perspectiva, diríamos, é a da abstra-
ção: a realidade do acontecimento é a força da ideia, da teoria. “Assim, a
história das ciências, história da relação progressiva da inteligência com a
verdade, secreta ela própria seu tempo, e ela o faz diferentemente segundo
o momento do progresso a partir do qual ela se dá como tarefa reavivar,
nos discursos teóricos anteriores, aquilo que a linguagem presente permite
ainda compreender” (Canguilhem, op. cit., 20). É o tempo da ideia, da “ação
racionalizante”. Nesta relação da inteligência com a verdade, abre-se o espaço
em que, de novo, é possível pensar. Como a literatura, não é o impensado que
a ciência pensa? Não era impensável, no século XVii, pensar o que pensara
Galileu? Copérnico já poderia tê-lo feito, mas Copérnico não é copernicano. E
Einstein não permaneceu, até o fim, inconformado com este impossível que

200
a física pensava então, isto é, com o sucesso da teoria quântica? Neste espaço
de pensamento que a filosofia de Husserl inaugura, o impensado só cabe na
ideia que configura, de seu interior, a história, história teórica, conceitual,
como foi a que fizeram Bachelard e Koyré. E tal espaço só se tornou possível
quando, no vazio deixado por esta figura que ainda assombra laboratórios,
equipes de pesquisa, negociações por financiamento, publicações, indústria,
governos. E que figura é esta? O sociólogo? O historiador das ciências? Não,
o homem! Mas a cité scientifique não se esvazia e não dorme. Seu tempo é
outro, é um tempo próprio. E seu espaço é o da ideia.

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SALOMON, Marlon (Org.). Alexandre Koyré, historiador do pensamento.
Goiânia: Edições Ricochete, 2010.

202
10

Koyré e a “epistemologia histórica” de Kuhn


e Feyerabend
Luiz Henrique de Lacerda Abrahão – CEFET- MG

A tese da dívida intelectual


Conforme opinião amplamente aceita, a obra do historiador franco-rus-
so Alexandre Koyré (1892-1964)1 exerceu um papel capital na formação da
filosofia histórica da ciência (Laugier, 2002, 964-965, 984-986). Esse “novo”
enfoque se caracterizaria, basicamente, por dois movimentos simultâneos:
(1) a renúncia da análise estritamente formal do conteúdo lógico das ideias
científicas e (2) a inserção de estudos históricos atinentes à dinâmica dos
processos de formulação, comparação e aceitação das hipóteses (Suppes,
1974: 119-232; Rheinberger, 2010:52-56). Manuais introdutórios, coletâneas
de artigos, ensaios críticos, estudos especializados etc. reproduzem essa
leitura orientada para a centralidade da contribuição koyreniana na reforma
da filosofia da ciência. Um caso paradigmático de tal perspectiva – cujo
conteúdo específico raramente é definido – consta no volume editado por
Jacob (1980):
Em torno do final da década de 1950, e, especialmente, no curso dos
anos 1960, um ar de revolta contra o empirismo irrompeu na filosofia
das ciências anglo-americana. Tal reação […] se define, em primeiro
lugar, por uma retomada do interesse pela história (quando não pela
sociologia) das ciências. Contrariamente ao que procedeu na França,

1. Murdoch (1965), Herivel (1965) e Gillispie (2007) resumem a obra e a biografia de Koyré.

203
até 1945, a história e a filosofia das ciências, na inglaterra e nos Estados
Unidos, eram duas disciplinas bastante separadas. Paul Feyerabend,
Norwood Russell Hanson (falecido em um desastre de avião, que ele
mesmo pilotava), Thomas Kuhn, imre Lakatos (finado em 1974) e
Stephen Toulmin se orientaram na direção da nova historiografia de
Alexandre Koyré e Herbert Butterfield (Jacob, 1980:40).

Assim, propaga-se no senso comum filosófico a didática impressão de


que as propostas de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend carregariam, de forma
inequívoca e homogênea, uma ‘dívida intelectual’ 2 com a historiografia da
ciência de Koyré.3 indubitavelmente, vários trabalhos de Kuhn confirmam
a perspectiva em foco, a qual também foi esmiuçada por especialistas como
Hoyningen-Huene (1993) e Friedman (2003). Entretanto, a atribuição do
legado koyréano a Feyerabend é mais problemática, não obstante ser pre-
sumida por Preston (1997) e outros intérpretes do corpus feyerabendiano.
Nesse horizonte, pretendemos realizar uma leitura crítica da referida tese
da dívida intelectual. Para tanto, em primeiro lugar, catalogamos elementos
textuais que assinalam tais traços da herança de Kuhn e Feyerabend com o
historiador russo; em seguida, exploramos a ideia segundo a qual as ideias
de Koyré e Feyerabend convergem na recusa de reconstruções empiristas
da Revolução Científica. Esse trajeto nos permitirá, de resto, apreciar mais
atentamente o ajuste teórico das leituras habituais sobre o impacto da obra
de Koyré na guinada historicista dos estudos contemporâneos sobre a ciência
(Moulines, 2006:24-25).

Kuhn leitor de Koyré


A influência intelectual de Koyré em Kuhn é inequívoca e onipresente,
sendo, ademais, amplamente reconhecida por especialistas no corpus kuh-
niano. Os trabalhos de Koyré são referidos pelo menos uma dezena de vezes
no A Revolução Copernicana (Kuhn, 1990 [1957]: 304-308). Nesse livro, o

2. A ideia subjacente à tese da dívida intelectual consta em Palma (2008:121).


3. Para uma comparação das propostas filosóficas de Kuhn e Feyerabend, ver Abrahão
(2013) e Abrahão (2014a), bem como os capítulos 1 a 3 de Hoyningen-Huene, incluídos em
Abrahão (2014b).

204
historiador franco-russo surge como uma referência essencial para diversos
tópicos ligados ao desenvolvimento da ciência moderna.4 No “Prefácio” do
A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), Kuhn comentou que, por três
anos, ocupou um posto de pesquisador em Harvard. Durante esse “período de
liberdade,” o pensador estadunidense teria se dedicado a estudar a “História
da Ciência propriamente dita”. Quanto a isso, ele esclareceu: “Continuei a
estudar especialmente escritos de Alexandre Koyré” (Kuhn, [1962] 2001:10).
Kuhn relata que a obra koyreniana mais impactante naquele contexto foi
Estudos Galileanos (Kuhn, [1962] 2001:10, n. 1). Em seguida, expressa que os
escritos de Koyré seriam o “melhor exemplo” da “revolução historiográfica no
estudo da ciência” que pretendeu atribuir às ideias científicas do passado “o
máximo de coerência interna e a maior adequação possível à natureza” (Kuhn,
[1962] 2001:21-22). Koyré reaparece no A Estrutura das Revoluções Científicas
quando são abordados os seguintes assuntos: (i) as “normas legítimas para
a ciência” sugeridas pelas “Mecânicas de Galileu e Newton” (Kuhn, [1962]
2001: 73); (ii) os “elementos medievais presentes no pensamento de Galileu”
(Kuhn, [1962] 2001:95); (iii) a importância do “neoplatonismo” na gênese
da “atenção de Galileu para a forma circular do movimento” (Kuhn, [1962]
2001:158); e (iv) a teoria cinética de Aristóteles (Kuhn, [1962] 2001:160 n.
15). Então, no livro kuhniano de 1962, o historiador franco-russo desponta
como fonte para episódios da história da ciência moderna, como inspiração
metodológica e como expoente da “nova historiografia” da ciência. Mas a
controversa noção de que mudanças revolucionárias na ciência seriam aná-
logas a transformações nas “cosmovisões”5 também parece remontar a Koyré.
O trecho abaixo permite vislumbrar a conexão entre a tese da “constituição
de mundos” e a “nova” historiografia da ciência:

4. Por exemplo: 1) a “transmissão de ideias escolásticas aos primeiros fundadores da ciência


moderna”; 2) a “atitude de Platão para com a matemática” e “os efeitos dessa atitude, na sua
forma neoplatônica, sobre a ciência”; 3) o A Revolução das Órbitas Celestes, de Copérnico;
4) as “ideias copernicanas e pré-copernicanas acerca da infinidade do universo”; 5) os “pro-
blemas físicos apresentados aos físicos terrestres pela teoria copernicana”; 6) a “mecânica
celeste de Kepler”; 7) o “sistema de Borelli”; 8) o “trabalho de Robert Hooke” e sua “relação
com Newton”; e 9) o “atomismo de Newton” e a “subestrutura metafísica dos Principia”.
5. “[…] após uma revolução, os cientistas trabalham em um mundo diferente” (Kuhn,
[1962] 2001:171).

205
O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir
da perspectiva da historiografia contemporânea pode sentir-se tentado
a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o
próprio mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam
novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que
é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas veem
coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares,
olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente (Kuhn,
[1962] 2001:145).6

Koyré também é mencionado muitas vezes na compilação kuhniana


A Tensão Essencial (1977). O autor alude aos trabalhos do historiador quan-
do trata: (i) do experimento do plano inclinado de Galileu (Kuhn, [1979]
2009:229, n. 23); (ii) do uso galileano dos trabalhos de Arquimedes (Kuhn,
[1979] 2009:251, n. 54); e (iii) da atitude dos astrônomos setecentista em relação
aos dados quantitativos de registros celestes (Kuhn, [1979] 2009:12, n. 260).
Contudo, destacamos as passagens nas quais Kuhn reconhece, explicitamente,
seus débitos intelectuais com o autor dos Estudos Galileanos (Kuhn, [1979]
2009:12, n. 3). Kuhn menciona que, segundo Koyré, as “novidades essenciais
da ciência do século XVii só se compreenderiam se a ciência medieval fosse
primeiramente explorada nos seus próprios termos e, depois, como a base
de onde a ‘nova ciência’ brotou” (Kuhn, [1979] 2009:139). Essa seria uma
das bases da ideia de que a “transformação das ciências clássicas durante a
Revolução Científica atribui-se mais adequadamente a novas maneiras de
olhar os velhos fenômenos do que a uma série de descobertas experimentais
não previstas” (Kuhn, [1979] 2009:73). Ao mesmo tempo, Kuhn seguia as
considerações históricas de Koyré acerca da “astronomia e a mecânica de

6. Ver Hoyningen-Huene (2014:76-80) para uma excelente análise dessa ideia. Kuhn desen-
volveu a tese da “constituição de mundos” no capítulo iX do A Estrutura das Revoluções
Científicas. Nesse capítulo, a obra de Koyré é mencionada duas vezes, ambas relativas aos
Estudos Galileanos. Todavia, a passagem kuhniana que afirma que “os cientistas veem coisas
novas e diferentes” nos remete, imediatamente, ao capítulo iV da obra Do Mundo Fechado
ao Universo Infinito. Discutindo os usos de Galileu para o telescópio, Koyré afirmou que
o cientista teria revelado “coisas que nenhum olho humano jamais havia visto, e nenhum
intelecto jamais havia concebido” (Koyré, 1957: 90; Koyré, [1957] 2006: 81). A proximidade
de tais ideias e expressões de Kuhn e Koyré é aceitável porque o livro de Koyré foi citado
por Kuhn ([1962] 2001:73, n 6).

206
Newton” (Kuhn, [1979] 2009:142). Todas essas influências levaram Kuhn a
considerar Koyré como seu “maître” (Kuhn, [1979] 2009:46). Um último con-
junto de referências a Koyré no Tensão Essencial engloba certos traços dessa
“nova historiografia” da ciência koyreniana. Kuhn aponta que os estudos de
Koyré tornariam a ciência uma “empresa histórica completa” (Kuhn, [1979]
2009:183). A propósito, o filósofo estadunidense destaca que os “homens
que mais fizeram para estabelecer a florescente tradição contemporânea
da história da ciência […] eram filósofos, antes de se terem voltado para a
história das ideias científicas” (Kuhn, [1979] 2009:34). Kuhn compreende
essa singularidade partindo do fato dos “novos” historiadores da ciência
terem se formado em “escolas continentais”, onde a “divisão entre história e
filosofia não é, sem dúvida, tão profunda como no mundo de língua inglesa”
(Kuhn, [1979] 2009:168). Portanto, de forma geral, Koyré legitimaria uma
compreensão “das ciências individuais” voltada para “o desenvolvimento
científico das ideias extracientíficas” (Kuhn, [1979] 2009:58). A despeito dos
antagonismos entre as abordagens “institucionais e socioeconômicas” do
conhecimento, o pensador franco-russo minimizaria, na opinião kuhniana,
“a importância dos aspectos não intelectuais da cultura para os desenvolvi-
mentos históricos que consideram” (Kuhn, [1979] 2009:140).
Kuhn voltou a comentar sobre a influência de Koyré em seu pensamen-
to na entrevista biográfica concedida em 1995, incluída na obra póstuma
O Caminho desde A Estrutura ([2000] (2006). O entrevistado revelou que
o estilo historiográfico praticado por ele aspirava “ler os textos e entrar na
mente” dos cientistas do passado (Kuhn, [2000] (2006): 334). A inspiração
para esse modo “restrito e peculiar” de analisar a ciência seria, exatamente,
Koyré. O autor de A Estrutura das Revoluções Científicas revela que leu os
Estudos Galileanos de Koyré “por sugestão de Bernard Cohen” e salienta
que o livro koyréano o estimulou a “descobrir quais haviam sido as crenças
anteriores” à revolução científica do século XVii. Assim, Kuhn atribuiu ao
trabalho de Koyré uma inovadora maneira de conceber a história das ideias
científicas: “Mas que você pudesse fazer isso [análise histórica dos conceitos]
com a ciência não tinha exatamente me ocorrido, e era isso o que Koyré,
em certo sentido, me mostrava”. Kuhn conclui rememorando a favorável
acolhida de Koyré relativamente ao livro kuhniano de 1962, sobretudo quan-

207
to à aproximação entre as “histórias interna e externa da ciência, que no
passado estiveram muito separadas”. Entretanto, Kuhn sublinha que, apesar
disso, ambos não estreitaram os laços: “não foram as interações pessoais que
fizeram diferença” (Kuhn, [2000] (2006):346).
Os livros de Kuhn mencionados confirmam a centralidade da obra de
Koyré na construção do pensamento de Kuhn.7 No entanto, Kuhn também
resenhou obras de Koyré;8 publicou um importante ensaio na coletânea
dedicada a Koyré;9 e redigiu o ensaio-resenha intitulado “Alexandre Koyré
& the History of Science: On an intellectual Revolution”. Nesse breve escrito,
de 1970, discutiu as mudanças nos estudos historiográficos sobre a ciência
tendo como ensejo a coletânea Metaphysics and Measurement (1968), de
Koyré.10 O impacto da obra koyreniana na historiografia da ciência se expres-
saria, em linhas gerais, em um olhar alternativo à dicotomia entre “história
das ideias científicas” e “história social da ciência”. Conforme Kuhn, Koyré
realizava exegese de fontes primárias, mas tais pesquisas não buscavam
por trechos que pudessem “provar” conteúdos “verdadeiros” das teorias.
O “empreendimento” koyréano era, segundo Kuhn, “mais problemático”
(Kuhn, 1970:69). A compreensão adequada das ideias científicas exigiria
circunscrever os conteúdos científicos em seu contexto histórico. Então, o
entendimento de uma dada teoria precisaria de um estudo dos “predecessores,
contemporâneos e sucessores” da ideia. O ensaio kuhniano insiste, ainda,
que a “nova historiografia” abolia descrições gerais do desenvolvimento
científico, apostando em estudos “restritos a um período particular”. Mas o
ensaio-resenha em questão comporta, por fim, reservas quanto à perspectiva
de Koyré. Kuhn destacou que o historiador “tinha pouca simpatia pelos es-
tudiosos os quais almejam explicar o desenvolvimento científico em termos
sociais”. E arrematou: “É possível que a ênfase estrita nas ideias tenha sido

7. Não detectamos referências a Koyré em Black-Body Theory and the Quantum Discontinuity:
1894-1912, de 1978.
8. Por exemplo, em 1958, Kuhn resenhou de Koyré: “A Documentary History of the Problem
of Fall from Kepler to Newton; de motu gravium naturaliter cadentium in hypothesi terrae
motae” e Do Mundo Fechado ao Universo Infinito.
9. “Uma Função para as Experiências Mentais”, de 1964, publicado em L’aventure de l’espirit
– Mélanges Alexandre Koyré (Kuhn, [1979] 2009, 277; ver também Kuhn, [2000] 2006, 390).
10. Trata-se de uma coletânea de seis artigos – publicados, respectivamente, em 1943 (caps.
i e ii), 1960 (cap. iii) 1953 (cap. iV), 1955 (cap. V) e 1956 (cap. Vi) – que tem a “revolução
científica” como temática.

208
o pré-requisito para a transformação historiográfica induzida pela obra de
Koyré, mas, não obstante, é uma limitação dela”.
Trechos e referências espalhadas pelo corpus kuhniano ratificam a tese
da dívida intelectual de Kuhn com Koyré. Mas a herança koyreniana do
autor de A Estrutura das Revoluções Científicas também foi explorada em
pesquisas especializadas. Por exemplo, Hoyningen-Huene (1993) sugere que
a ligação de Kuhn com a historiografia de Koyré “remonta ao neokantismo”
(Hoyningen-Huene, 1993: xviii). Kuhn consideraria Koyré o “mais importante”
representante da “historiografia da ciência do início dos anos 1920 e 1930”,
cujas origens estariam no “historicismo do século XiX” (Hoyningen-Huene,
1993:18). Entretanto, a mais expressiva influência koyreniana envolveria um
tema metodológico e filosófico específico: a hermenêutica. O comentador
aponta que uma “reconstrução historicamente acurada de um sistema con-
ceitual antigo” demanda um considerável “esforço por parte do historiador”
(Hoyningen-Huene, 1993:21). O trabalho historiográfico consistiria, portanto,
em esmiuçar obras originais “de maneira hermenêutica”. Por sua parte, Kuhn
endossaria essa perspectiva ao aceitar estes pressupostos hermenêuticos:
(1) um texto é passível de diversas interpretações; (2) nem todas as interpre-
tações possuem igual valor; (3) “maior plausibilidade e coerência” consiste
no critério para avaliar interpretações alternativas; (4) o texto mais antigo é o
que está mais próximo da melhor interpretação para o leitor moderno; e (5)
o aprimoramento da interpretação envolve definir as passagens textuais que
parecem mais errôneas, implausíveis e absurdas. Diante disso, Hoyningen-
Huene explica que a visão kuhniana teria se acercado de tais diretrizes
metodológicas como meio de entender adequadamente a filosofia natural
aristotélica: “Kuhn (re) descobriu a hermenêutica para a história da ciência
em 1947, estudando a Física de Aristóteles”. Assim, a herança koyreniana de
Kuhn remontaria à aquisição das orientações metodológicas necessárias para
proceder um estudo acurado de bibliografias primárias: “Kuhn primeiro
encontrou a hermenêutica prioritariamente no trabalho de Alexandre Koyré”
(Hoyningen-Huene, 1993:21). De forma similar, Friedman (2003) recorda que
os escritos koyréanos auxiliaram Kuhn na recusa do modelo acumulativista
de avanço do conhecimento (Friedman, 2003:29). Essa rejeição do cumulati-
vismo situaria Kuhn na “tradição iniciada por Koyré, em seus estudos sobre

209
Galileu publicados inicialmente em 1939 – uma tradição que estabeleceu a
história da ciência como uma disciplina autônoma no período imediata-
mente pós-guerra”. Para o autor do A Estrutura das Revoluções Científicas, o
afastamento em relação à crença no progresso contínuo e linear da ciência
remontaria à historiografia do século XiX. Dentre outras características, a
nova atitude historiográfica primava por um “estudo genético” (fomentado
por epistemólogos neokantianos, como Meyerson, a quem Koyré dedicou
seus Estudos Galileanos) de conceitos científicos. Destarte, reencontramos a
impressão segundo a qual a ideia kuhniana de “reconstrução histórica” das
ideias científicas procederia, prioritariamente, de Koyré (Friedman, 2003:30).

Feyerabend leitor de Koyré


A presença de Koyré no corpus de Feyerabend também é bastante expres-
siva, contudo, a relevância e a penetração dela permanecem indeterminadas.
O autor de Estudos Galileanos não é mencionado em obras fundamentais de
Feyerabend, tais como: Adeus à Razão (1987), Three Dialogues on Knowledge
(1991), Matando o Tempo (1996), A Conquista da Abundância (1999) ou The
Tyranny of Science (2011). O austríaco também não aludiu a Koyré em qualquer
das cartas enviadas a imre Lakatos – entre 1968 e 1974 (Motterlini, 1999);
ou na correspondência com Kuhn – entre 1958 e 1964 (Hoyningen-Huene,
1995, 2006). De forma similar, nenhum dos seminais artigos feyerabendianos
publicados nas décadas de 1950 e 1960 mencionam Koyré.11 Aparentemente,
o austríaco citou textualmente somente uma única passagem de Koyré – e,
ainda assim, em uma obra publicada postumamente. No sexto capítulo da
compilação de estudos historiográficos intitulada Naturphilosophie (redigi-
dos entre 1971 e 1976), Feyerabend analisa problemas do mecanicismo nas
visões de Newton, Leibniz e Mach, com ênfase na divergência leibniziana
com a ideia newtoniana da necessidade de uma “intervenção divina” para

11. Por exemplo: “An Attempt at a Realistic interpretation of Experience” (1958), “On
the interpretation of Scientific Theories” (1960), “Das Problem der Existenz theoretis-
cher Entitäten” (1960), “Explanation, Reduction and Empiricism” (1962), “Problems of
Microphysics” (1962), “How to Be a Good Empiricist” (1963), “Realism and instrumentalism:
Commensts on the Logic of Factual Support” (1964), “Reply to Criticism. Comments on
Smart, Sellars, and Putnam” (1965), “On the improvement of the Sciences and Arts, and the
Possible identity of the Two” (1967), “On a Recent Critique of Complementarity: Part i/ii”
(1968-1969) ou “Outline of a Pluralistic Theory of Knowledge and Action” (1969).

210
o movimento do cosmos. Nesse contexto, Feyerabend cita a seguinte passa-
gem de Koyré (retirada da versão alemã de Do Mundo Fechado ao Universo
Infinito, lançada em 1964):
O deus de Newton age no mundo como o Deus bíblico nos primeiros
seis dias da Criação e esta ação é necessária para manter o cosmos. Mas
o Deus de Leibniz e de Descartes é ‘o Deus bíblico no sábado, o Deus
que terminou sua obra e a quem ela parece boa, mais ainda, o melhor de
todos os mundos possíveis’ (Koyré, 1957: 217) (Feyerabend, 2009a:307).12

As demais alusões a Koyré nas páginas feyerabendianas trazem, basica-


mente, indicações bibliográficas. Em 1970, no artigo “Classical Empiricism”,
Feyerabend remeteu aos Newtonian Studies (1966:269), de Koyré. O contexto
da referência é a discussão acerca da origem e da influência metodológica da
Regra IV (“Hypotheses non fingo”) da filosofia natural de Newton (Feyerabend,
1981b: 42). Exatamente a mesma referência consta no artigo “On the limited
validity of Methodological Rules”, de 1972 (Feyerabend, 1999: 139). Nesse
instrutivo trabalho, Feyerabend menciona também o livro Metaphysics and
Measurement (1968:89 e segs), de Koyré. Ao considerar o contexto geral do
‘caso Galileu’, indica o capítulo iV “An Experiment in Measurement”, de 1953.
No livro de 1978, A Ciência em uma Sociedade Livre, Feyerabend se referiu a
Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (também na edição alemã de 1964),
ao debater a influência da religião na física de Newton: “A Bíblia ainda de-
sempenhava um papel importante para Newton, que usou tanto a obra em
si quanto a palavra divina para explorar os planos de Deus” (Feyerabend,
2011:57, n. 26). Todavia, quando voltamos nossa atenção para a obra mais
conhecida de Feyerabend, o polêmico Contra o Método, o cenário adquire
contornos mais complexos. Na primeira edição do livro, de 1975, existem,
fundamentalmente, quatro referências à obra de Koyré – todas em notas de

12. A passagem no original inglês difere parcialmente da citada por Feyerabend: “[…] o
Deus de Leibniz não é o Senhor newtoniano que cria o mundo conforme quer e permanece
agindo nele como fez o Deus bíblico nos seis primeiros dias da Criação. Seguindo nessa
analogia: Ele é o Deus bíblico no Sabá, o Deus que concluiu os trabalhos e os julgou bons,
ou seja, o melhor dos mundos possíveis, e quem, portanto, não mais age sobre ele, ou nele,
mas unicamente conserva e preserva a existência do mundo” (Koyré, 1957: 240-241; ver
tradução da edição brasileira em Koyré, [1957] 2006: 212-213).

211
rodapé. A primeira (capítulo Vii) retorna ao Metaphysics and Measurement
para discutir o tema do suporte factual do geocentrismo. Feyerabend usou
essa obra para destacar que “o problema não se presta facilmente a uma
solução experimental. Experimentos foram feitos, mas ficaram longe de
ser concludentes” (Feyerabend, [1975] 1977:137, n. 19). A segunda (capítulo
Viii) envolve a análise dos argumentos dinâmicos contrapostos à ideia do
movimento da Terra. O austríaco lança mão dos Estudos Galileanos como
fonte para “um exame das reações diante das dificuldades físicas oferecidas
pelo movimento da Terra” (Feyerabend, [1975] 1977:148). A terceira (capí-
tulo Xii) repete essa mesma indicação (Feyerabend, [1975] 1977: 251, n. 12).
Aqui, o autor de Contra o Método entende que as considerações de Koyré
sobre Galileu mostram como a “propaganda é fundamental” para “despertar
o interesse” da comunidade científica em relação a ideias carentes de um
“estreito ajustamento ao empírico” (Feyerabend, [1975] 1977:241-242). Por
fim, a quarta (capítulo XVii) concerne a uma discussão sobre a teoria do
impetus, sobretudo quanto à questão da existência de uma causa para o
movimento inercial (Feyerabend, [1975] 1977: 434, n. 136). Para fundamen-
tar sua leitura, Feyerabend retoma o primeiro texto dos Newtonian Studies
(“The Significance of the Newtonian Synthesis”), a respeito da formulação
newtoniana para a primeira lei do movimento:
A transformação do conceito de movimento, substituindo o conceito
empírico pelo conceito matemático hipostasiado, é inevitável, quando
temos de submeter o movimento ao número para lidar com ele mate-
maticamente, para construir uma física matemática. Mas isso não basta.
inversamente, a própria matemática tem de ser transformada; haver
conseguido essa transformação foi o mérito imorredouro de Newton.
As entidades matemáticas têm de ser, em certo sentido, aproximadas
da física, submetidas ao movimento e vistas não em seu ‘ser’, mas em
seu ‘devir’ ou em seu ‘fluxo’ (Koyré, 2002: 89; Koyré, 1965: 10).

Apenas duas dessas referências a Koyré (especificamente, aquelas inclu-


ídas nos capítulos Vii e Xii da edição de 1975 do livro) permanecerão nas
reedições (em 1988 e 1993) do Contra o Método. Com efeito, esses comentá-

212
rios – adicionalmente a passagens incidentais que citam Koyré13 – impedem
uma admissão inadvertida daquela tese da dívida intelectual de Feyerabend
com Koyré. Preston (1997) tentou preencher essa lacuna interpretativa.14
Segundo ele, “Feyerabend é considerado como um dos membros da nova
escola de filósofos historiadores da ciência que floresceu após a derrocada do
Positivismo Lógico” (Preston, 1997: 6). A história usual indicaria que, entre
1920 e 1950, as reflexões epistemológicas teriam sido dominadas por uma
abordagem analítica. Os componentes do Círculo de Viena e da escola de
Karl Popper entenderiam a atividade científica como “produtos intelectuais”
cujo desenvolvimento poderia ser racionalmente reconstruído logicamente.
A leitura prestoniana sublinha que a tradição analítica predominou até meados
do século XX, quando a “nova escola de historiadores” teria “renovado os
estudos históricos da ciência”. A transformação da historiografia da ciência
remontaria, em primeiro plano, aos estudos de P. Duhem; e, posteriormente,
às abordagens de A. Koyré, H. Butterfield e V. Ronchi. O principal impacto
epistemológico dessa mudança, porém, ocorreria somente após a apari-
ção de um “novo grupo” de filósofos interessados em uma “imagem mais
acurada da ciência”. Naturalmente, Kuhn e Feyerabend seriam expoentes
daquele novo grupo. Contudo, o comentador reconhece: “no que concerne
a Feyerabend, isso é, ao menos em parte, um mito”. Afinal, a gênese da car-
reira de Feyerabend (nos anos 1950) traria uma investigação detalhada dos
fundamentos da mecânica quântica. A reputação de Feyerabend como um
daqueles filósofos-historiadores teria, pois, uma origem específica: “algu-
mas observações que ele [Feyerabend] fez, em seus escritos iniciais, foram,
originalmente, extraídas ou inspiradas por historiadores que, efetivamente,

13. “A propósito posso citar a opinião de Alexandre Koyré. Em conjunto com outros his-
toriadores da ciência como Burtt, Kuhn e Sabra, Koyré sustenta que a ciência e a lógica
não coincidem, em absoluto, quando as coisas são consideradas sob a ótica histórica”
(Feyerabend, 2012: 77).
14. Dissakè (1999:28,50) escreveu que Feyerabend utilizou das “lições fornecidas pela história
da ciência contemporânea” para erigir suas propostas epistemológicas. Assim, Koyré seria
um dos “mais representativos” historiadores da ciência a influenciar o autor de Contra o
Método. Por sua parte, Silva (1998: 221, 226) recorreu à obra de Koyré para reconstruir as
considerações históricas que, em 1962, Feyerabend elaborou em favor da incomensurabili-
dade de teorias. Em Abrahão (2009) também seguimos essa questionável linha expositiva,
que, no entanto, traz vantagens didáticas.

213
foram membros da nova escola” (Preston, 1997:7). A opinião prestoniana
sinaliza que “apenas gradualmente, em partes, e mesmo tardiamente em sua
carreira, Feyerabend se tornou um genuíno filósofo ‘histórico’ da ciência”.
Ademais, conforme assevera o excerto abaixo, o estudioso considera que
o próprio uso feyerabendiano da expressão ‘revolução científica’ seria (i)
idêntico ao presente em Kuhn e (ii) procederia diretamente da perspectiva
historiográfica de Koyré, para quem uma mudança científica significa uma
reconstrução de padrões científicos:
Feyerabend tomou esse termo [‘revolução científica’] dos novos histo-
riadores da ciência. O termo foi originalmente aplicado a um evento
singular, ‘a’ revolução científica (localizada por Koyré no século dezes-
sete, por Butterfield no período de 1300 a 1800). Kuhn explicitamente
ampliou o conceito, aplicando-o a eventos diferentes na história da
ciência. Para ele e Feyerabend, uma revolução científica é um evento
no qual antigos padrões de pensamento são totalmente derrubados e
a atividade intelectual é reconstruída a partir de seus fundamentos.
Para tais filósofos, tais eventos são os mais importantes na história do
pensamento (Preston, 1997: 51).

Em 1957, Kuhn lançou o estudo histórico A Revolução Copernicana.15


Em alguma medida, tal título já o conectava à tradição historiográfica vol-
tada para descontinuidades categoriais e rupturas conceituais/explicativas
na história das ideias (Kragh, 1987:16-19).16 Naturalmente, na composição
do livro de 1962 – e mesmo em trabalhos posteriores –, Kuhn empregou
diversos textos historiográficos de Koyré.17 Como vimos, Feyerabend também

15. Já em 1947, Kuhn havia entrado em contato com o conceito de “revolução científica”
como um modo de descrever mudanças científicas (Kuhn, [1979] 2009: 15). Posteriormente, o
preceito de mudanças científicas “revolucionárias” se converteu em uma das teses basilares
do livro kuhniano de 1962, quando afima: “após uma revolução, os cientistas trabalham em
um mundo diferente” (Kuhn, [1962] 2001: 171).
16. Kuhn também utilizou historiadores de orientação “continuísta”, como A. C. Crombie
(Augustine to Galileo, 1952), G. Sarton (Introduction to History of Sciences, 1927-47; A History
of Science: Ancient Science Through the Golden Age of Greece, 1952; Ancient Science and
Modern Civilization, 1954) ou P. Duhem (Le Système du monde, 1913-54). Ver Kuhn ([1957]
1990: 301-303).
17. Temos em vista estes textos: “Galileu and Plato” (1943), “Galileu and the Scientific
Revolution of the Seventeenth Centure” (1943), “Some General Aspects of Physics in the

214
estava plenamente familiarizado com os trabalhos de Koyré.18 No entanto,
tal congruência bibliográfica não justifica presumir uma coincidência das
perspectivas historiográficas de Kuhn e Feyerabend. incontestavelmente, o
autor de Contra o Método conhecia de perto a visão ‘revolucionária’ do de-
senvolvimento científico (Feyerabend, 1981a: 182, n. 14, 318, n. 53, 324, n. 66).
Também sabemos que ele utilizou as expressões ‘revolução científica’ e
‘Revolução Copernicana’ em seus escritos.19 Entretanto, nas páginas feyeraben-
dianas, elas aparecem, com frequência, precedidas pela atenuadora fórmula
“a assim chamada…” ou grafadas entre aspas (por exemplo, a “Revolução
Copernicana”) (ver Feyerabend, [1993] 2007: 80, n.20, 120, n.2, 201, 206).
O austríaco também expressava profundas reservas com relação às deriva-
ções mais radicais das narrativas revolucionárias do avanço científico (ver
Feyerabend, 1981b. cap. Viii; Hoyningen-Huene 2014a). Assim, em 1991,
ele colocou em discussão – em um dos seus diálogos filosóficos – a tese
(kuhniana) segundo a qual as “passagens entre diversas formas de pensa-
mento revolucionam os critérios, os princípios e tudo o mais” (Feyerabend,
2001: 29).20 Partindo exatamente do episódio da revolução copernicana, o
personagem Charles – que encarnaria algumas das opiniões feyerabendia-

Middle Ages” (1948), “Le vide et l’espace infini au XiV siècle”, “The Significance of the
Newtonian Synthesis” (1950) e “La gravitation universelle, de Kepler à Newton” (1951),
além dos clássicos Estudos Galileanos (1939) e Do Mundo Fechado ao Universo Infinito
(1957). Tais escritos de Koyré se repetem em outras obras kuhnianas. Por exemplo: (a)
Estudos Galileanos: no “Prefácio”, 10, n. 1; cap. Vi, 95, n. 2 – que cita, adicionalmente, o
“A Documentary History of the Problem of Fall from Kepler to Newton” (1955); e cap. iX,
159, n. 15, 17 de A Estrutura das Revoluções Científicas; “Prefácio” n. 3, cap. iii, 73, n. 16; cap.
Viii, 229, n. 23; cap. Viii, 251, n. 54 – onde também cita “An Experiment in Measurement”
(1953) –, em A Tensão Essencial; ou (b) Do Mundo Fechado ao Universo Infinito: no cap. iV,
73, n. 6 do A Estrutura das Revoluções Científicas.
18. A exemplo dos livros koyréanos de 1939 e 1953, o artigo sobre a síntese newtoniana e “An
Experiment in Measurement” (1953).
19. “Um passo decisivo no desenvolvimento da ciência foi a chamada revolução científica dos
séculos dezesseis e dezessete” (Feyerabend 1999: 119; Feyerabend, 1981b: 220-225; ver também
Feyerabend, 1999: 127, 194, 196, 206); ou: “Muitas diferentes personalidades, profissões e
grupos guiados por crenças diferentes e sujeitos a restrições diferentes contribuíram para
o processo do que agora está sendo descrito, um tanto sumariamente, como a ‘Revolução
Copernicana’” (Feyerabend, [1993] 2007: 194; ver também páginas 19, 37, 71, 204, 292).
20. Sobre a “filosofia da conversão” subjacente a certas concepções historiográficas revolu-
cionárias, ver Kuhn ([1962] 2001:191). Uma resposta feyerabendiana mais elaborada a essa
perspectiva pode ser encontrada em Feyerabend ([1999] 2006: 352), discutida em Abrahão
(2013: 178-179).

215
nas – anunciou: “Não houve, aqui, uma mudança completa do ‘sistema’
[…] Não, as coisas não podem ser tão simples” (Feyerabend, 2001:29-30;
ver também Feyerabend, [1999] 2006:351-353). Por isso, diferentemente de
Kuhn, vemos que Feyerabend não endossou todas as implicações de uma
visão revolucionária da história da ciência à la Koyré. inclusive porque
Feyerabend jamais aspirou ser um historiador da ciência (ver Hoyningen-
Huene, 2006:619, 622).21 Em vez disso, ele buscava por exemplos históricos
como uma forma de “dar lastro” à defesa da tese filosófica da inexistência
de “padrões e elementos estruturais para todas as atividades científicas”.
O suporte factual não conseguiria, por si, estabelecer a posição epistemológica,
mas somente torná-la “plausível” (Feyerabend, [1993] 2007:20).
Preston (1997) exprimiu que algumas ideias feyerabendianas foram
“extraídas ou inspiradas” na nova escola de filósofos historiadores da ciência
vinculada a Koyré. Essa filiação acarretaria um distanciamento da abordagem
analítica da filosofia da ciência típica do Positivismo Lógico. Primeiro, o
comentador não oferece evidências textuais que suportem tal interpretação.
Segundo, a lista de historiadores da ciência citados por Feyerabend é mais
extensa do que a apresentada pelo estudioso: além de P. Duhem, A. Koyré,
H. Butterfield e V. Ronchi, o autor de Contra o Método recorreu bastante
às pesquisas de M. Clagett, i. B. Cohen, R. S. Westfall, M. Jammer, i. Sabra,
S. F. Mason, M. Panofsky e outros (Feyerabend, 1999:94-96; Feyerabend,
2009b: 109; Feyerabend, [1993] 2007:51; Feyerabend, 1996:148; Feyerabend,
1981b:40-41). Terceiro, e mais importante, não é consensual a leitura se-
gundo a qual as ideias feyerabendianas foram “extraídas ou inspiradas” de
uma tradição que emergiu após a “derrocada do Positivismo Lógico”. Em
contraposição a isso, Stadler (2006) se empenhou em reconstruir as raízes
austríacas da obra feyerabendiana. Nessa mesma direção, destacamos que
umas das referências fundamentais de Feyerabend sobre a própria Revolução
Científica advém do cerne do Empirismo Lógico: o matemático, físico e filó-
sofo vienense Philipp Frank (Feyerabend, [1993] 2007:343-344; Feyerabend,
[1978] 2011:139; Feyerabend, 1996:110-111; ver também Stadler, 2001:631-636;
Stadler, 2008:15). Então, a origem das considerações históricas feyeraben-

21. Aqui, partilhamos da opinião expressa por Victor Gijsbers.

216
dianas sobre a defesa galileana do sistema de Copérnico não remontaria a
Koyré, mas à lição histórica aprendida, ainda nos anos 1950, com aquele
membro do Círculo de Viena:
[Philipp Frank] elaborou uma exposição da ‘revolução copernicana’
que, apesar de simplista e linear, defrontava grande parte das concep-
ções usuais. Frank argumentou que a dinâmica de Aristóteles estava
mais próxima à experiência do que a (sempre incompleta) ‘dinâmica’
de Galileu; discutiu os argumentos físicos que se podiam oferecer a
favor da imobilidade da Terra e nos deixou com o problema de conci-
liar Copérnico com a experiência. Tudo isso nos parece, hoje, muito
trivial, mas não devemos esquecer que, no entanto, até pouco tempo,
se renegava Aristóteles e se louvava Galileu sem que se conhecessem
profundamente as conquistas de nenhum desses pensadores, e devemos
ter claro que a revolução copernicana ainda carece de uma exposição
satisfatória. Naquele tempo, minha única reação foi de espanto. A lição
de Frank se impôs muito lentamente (Feyerabend, 2009b: 133).

Dois Críticos da concepção empirista


Os apontamentos das seções acima evidenciaram elementos da dí-
vida intelectual de Kuhn com Koyré, bem como mostraram que o débito
de Feyerabend com o autor dos Estudos Galileanos permanece rodeado
por incompreensões. No geral, tais constatações ajudam a enfraquecer o
alcance do pressuposto relativo à centralidade e similaridade da obra de
Koyré nas propostas de Kuhn e Feyerabend. Contudo, percebemos a exis-
tência de vínculos entre os trabalhos de Koyré e Feyerabend.22 A original
e, ao mesmo tempo, textualmente defensável alternativa interpretativa que
aventamos recupera a leitura de ambos acerca das contribuições de Galileu
para a Revolução Científica do século XVii. Reconhecido o papel da lição
frankiana na compreensão feyerabendiana sobre o tema, indicamos que a
historiografia de Koyré ocupa um lugar destacado na visão do austríaco
quanto à relação entre as inconsistências empíricas da nova dinâmica de

22. Fuller (2005: 107-108) e Finnochiaro (2010) também analisaram as ideias de Koyré e
Feyerabend.

217
Galileu e a fundação da ciência moderna.23 Revisitando as principais men-
ções a Koyré no corpus feyerabendiano – sobretudo as incluídas no Contra
o Método –, localizamos o historiador franco-russo como base para duas
importantes teses historiográficas adotadas por Feyerabend:
1. A discussão sobre a justificação da ciência moderna não foi rematada
com o recurso a experimentos que atestaram a validade das novas ideias.24
2. Galileu empregou táticas publicitárias (‘propaganda’) no intuito de
enfraquecer obstáculos (psicológicos e conceituais) antepostos à as-
tronomia copernicana.25

23. Uma descrição introdutória da leitura de Philipp Frank sobre a revolução copernicana
pode ser encontrada no capítulo Xiii da obra Modern Science and Its Philosophy (1949). Esse
capítulo, no entanto, corresponde ao artigo “The Philosophic Meaning of the Copernican
Revolution” que Frank publicou em 1944. Frank defende que existem dois critérios funda-
mentais de cientificidade: “adequação aos fatos” e “adequação a princípios filosóficos”. Ele
afirma que o desenvolvimento da ciência moderna consiste em um esforço por alcançar
uma teoria unificada desses princípios, mas aponta a falha em cumprir essa tarefa. Nesse
sentido, a “revolução copernicana” não seria mais do que um “primeiro passo” no sentido de
uma “serie de revoluções as quais tiveram seu ponto máximo” no estabelecimento de uma
“ordem democrática do Universo no qual todos os corpos celestes ocupam uma porção igual”
(Frank, 1944: 386). Vale ressaltar, no entanto, que no texto “influence of Philosophic Trends
on the Formulation of Scientific Theories” o próprio Koyré discutiu diretamente com Frank
acerca da questão da validação das teorias científicas, tema que Frank havia abordado, em
dezembro de 1953, na conferência “Validation of Scientific Theories” no encontro anual da
American Association for the Advancement of Science, Boston, Massachusetts (ver Stadler,
2001: 635). Os respectivos textos de Koyré e Frank foram originalmente publicados nas
edições da revista The Scientific Monthly (1954/1955), e, em seguida, foram compilados no
volume The Validation of Scientific Theories, editado por Frank. O empirista lógico discorda
da opinião segundo a qual a aceitação de teorias deve seguir o critério do “acordo das teorias
com os fatos”. Segundo ele: “Nunca ocorreu que todas as conclusões extraídas de uma teoria
científica concordaram com todos os fatos observáveis” (Frank, 1956:8). Frank assinala a
existência de outros parâmetros de avaliação de teorias, entretanto, aponta que o estabe-
lecimento dos limites desses parâmetros epistêmicos envolve uma “escolha” que coloca os
cientistas “para além dos limites da ciência física” (Frank, 1956:9). Enfim, Frank considera
que a “efetiva aceitação de teorias pelos humanos sempre esteve comprimida entre o uso
tecnológico e social da ciência” (Frank, 1956:16). Essa tensão seria o “fator determinante na
história da ciência como atividade humana”. Por sua parte, Koyré (1956:192) concorda com
Frank quanto à ideia de que a aceitação de teorias não se reduz a considerações de “valor
técnico”, envolvendo “uma série de outros fatores”. Contudo, o historiador franco-russo
considera que a visão frankiana negligencia a relevância do “escopo filosófico das teorias
conflitantes”. Por sua parte, Koyré argumenta que esse elemento filosófico exerce uma
função central no “desenvolvimento” científico.
24. Feyerabend se baseia no ensaio “Uma Experiência de Medida” (1953).
25. Feyerabend se baseia no livro Estudos Galileanos (caps. 3-4, volume i). Nossa exposição
parte de ideias similares concentradas em Koyré (1953).

218
A) Duas teses historiográficas de Koyré
A primeira tese historiográfica contesta a visão empirista segundo a
qual a “essência e a estrutura” da ciência moderna residem no “caráter em-
pírico e concreto” (Koyré, 1953:222). Tal perspectiva afirma que a pesquisa
baseada na “observação e na experiência” refutaria dogmas (científicos e
filosóficos) da tradição pré-copernicana. De um lado, Koyré reconhece
que uma “considerável fecundidade da experiência e da observação direta”
levou ao incremento do “número de ‘fatos’” disponíveis. Mas, por outro
lado, defende que a “mera acumulação de um certo número de fatos” não
caracteriza plenamente a ciência moderna. O historiador baseia essa crítica
na ideia de que os fatos em questão “precisam ser ordenados, interpretados,
explicados”. O estabelecimento de uma ciência exigiria, pois, a disposição
das experiências no interior de um sistema explicativo: “o conhecimento
dos fatos se torna uma ciência apenas quando é submetido a um tratamento
teórico”. Koyré também aponta que “a observação e a experiência” tiveram
uma “reduzida participação na edificação da ciência moderna”. Ele pondera
que a observação e a experiência do senso comum foram, pelo contrário,
“obstáculos” para a nova ciência. Então, o elemento que teria promovido
a “revolução espiritual” do século XVii seria a experimentação: “O empi-
rismo da ciência moderna não reside na experiência; ele é experimental”.
Nesse caso, deparamo-nos com a distinção conceitual entre experiência e
experimento. O primeiro conceito corresponderia às “observações do senso
comum, rudimentares”; o segundo traria a demanda pela “elaboração de
uma teoria”. O “experimento” precisaria de uma “pergunta feita à natureza” a
partir de uma “linguagem na qual é formulada”: “A experimentação consiste
em um processo teleológico cujo fim é definido pela teoria”. A partir disso,
Koyré acrescenta que o “padrão de pensamento” típico da ciência moderna
é matemático. A ciência moderna introduziria uma profunda transforma-
ção nos padrões epistêmicos e, por conseguinte, nos quadros conceituais
da ciência: o “sistema de conceitos flexíveis e semiqualitativos” do senso
comum e do pensamento aristotélico é substituído pela busca de “acurácia
quantitativa” em um “Universo de medida e de precisão” (Koyré, 1953:223).
Porém, essa mudança levaria a uma “situação paradoxal” no nascimento da
ciência moderna: aspira-se a precisão matemática como princípio da expe-

219
rimentação científica, contudo, os “meios instrumentais” para se aproximar
dos fatos evidenciavam apenas uma validade bastante aproximada, grosseira
e imperfeita. Os percussores da ciência moderna tinham “conhecimento
das leis matemáticas exatas”, entretanto, enfrentavam a “impossibilidade
de aplicá-las” (Koyré, 1953: 233). Koyré conclui, então, que a aceitação das
“novas ideias” científicas dos séculos XVii, e sua correspondente transfor-
mação no “sistema de pensamento”, não seria um mero efeito do recurso
a “experimentos”.
A segunda tese historiográfica concorda com essa leitura ao afiançar que
o caminho até a emergência da ciência moderna foi “longo” e atravessado
por várias “dificuldades” (Koyré, 1943: 333). Koyré menciona uma luta “sem
tréguas” travada com o objetivo de suplantar obstáculos de diversos tipos,
não apenas empíricos. Os “instrumentos e ferramentas” necessários para
superá-los foram forjados apenas “lenta e progressivamente”. Consoante à
máxima koyreniana: “A ciência moderna não surgiu perfeita e completa”.
Segundo Koyré, essa “longa e arrebatadora história” da revolução científica
do século XVii envolveu, em larga medida, a introdução e a fundamentação
da noção de movimento inercial. O historiador da ciência relembra que a
física aristotélica é “não matemática”, mas baseada na “percepção sensível”
(Koyré, 1943:338). Os “dados da experiência comum” não poderiam, então,
ser compreendidos por uma simples “abstração geométrica”. O “domínio
eterno das figuras e dos números” não explicaria o “processo de mudança”.
Ele mostra que Aristóteles concebia o processo de movimento como oposto
ao estado de repouso. Logo, toda mudança se orientaria para a imobilidade,
e apenas uma “violência” externa tiraria o corpo de seu estado “natural” de
repouso. Por conseguinte, o “processo de mudança” não poderia se prolongar
“espontânea e automaticamente” (Koyré, 1943:339). Todo movimento pre-
cisaria de uma causa externa para ocorrer e, uma vez desfeito esse contato
com o motor, o objeto voltaria ao estado de repouso.26 Vemos de que modo,
na reconstrução koyreniana, a física aristotélica conceberia um “tipo de
movimento que é postulado pelo princípio da inércia” como algo “absolu-

26. Para uma visão geral de tais traços da teoria do movimento de Aristóteles, consultar os
seguintes trechos da Física: iV, 8, 215a 15-20; Vii, 4, 241b 24; Viii, 4, 255b 30; Viii, 4, 266a 5.

220
tamente impossível e até mesmo contraditório”. Koyré salienta também que
as objeções pré-copernicanas à hipótese do movimento da Terra partiam
de princípios aristotélicos arraigados no senso comum.27
O historiador franco-russo acrescenta que somente a “consumada habi-
lidade” de Galileu teria forças para contornar as críticas filosóficas e físicas ao
modelo heliocêntrico. Especificamente, os “inimigos poderosos” do cientista
italiano foram a autoridade de Aristóteles, a tradição medieval e o senso
comum. A propósito, Koyré resume: “É inútil, por exemplo, apresentar provas
a intelectos inaptos a apreciar o valor delas” (Koyré, 1943:345). Galileu teria
buscado “educar” os anticopernicanos, mas o processo de formação de uma
“nova mentalidade” científica não seria um processo espontâneo: “É preciso
avançar lentamente, um passo por vez” (Koyré, 1943:346). Por isso, Galileu
“discutiu e rediscutiu velhos e novos argumentos”, tentou apresentá-los “de
diversas maneiras”. Além disso, Galileu “multiplicou os exemplos” e inventou
situações “inusitadas e mais persuasivas” do que as disponíveis à época. Koyré
insiste que somente com procedimentos desse tipo Galileu lograria êxito
em tornar plausível uma ideia aparentemente “paradoxal” e “incomum”. isso
mostra que, ao invés de justificar a “nova ciência” seguindo a “percepção
dos sentidos”, Galileu se empenhou em “pensar” a questão do movimento
do planeta. Portanto, Koyré reforça a tese de que a base da ciência moderna
não estaria na experiência. A defesa galileana do “princípio da relatividade
física do movimento” não faria “qualquer apelo à experiência”. Para Galileu,
resume Koyré, a “boa física é feita a priori” (Koyré, 1943:347). Galileu recu-
peraria a premissa epistemológica platônica segundo a qual o conhecimento
das coisas verdadeiras residiria “em nossa alma”. E essa filiação sustentaria
filosoficamente a admissão de provas “pura e estritamente” numéricas para
questões concretas e físicas, o que aponta como a fundação da “nova física”
não teria envolvido uma refutação do “mundo qualitativo da percepção”.

27. O Argumento da Torre afirma que objetos em queda em direção ao solo de um planeta
em rotação são projetados no sentido oposto ao do movimento do planeta. Porém, como
observamos um deslocamento perpendicular em direção ao centro da Terra, logo a tese da
mobilidade do planeta se mostraria incorreta.

221
B) Galileu “embusteiro”
No Contra o Método, Feyerabend discute o exemplo de Galileu como
“ilustração concreta” de uma tese epistemológica: a prática científica violou
e deve violar regras metodológicas universais (Feyerabend, [1993] 2007:90;
Feyerabend, [1978] 2011:19).28 Prioritariamente, o austríaco debate o caso
pretendendo criticar o ditame metodológico empirista segundo o qual a
experiência (a “adequação aos fatos”) determina a seleção entre teorias
concorrentes. Em linhas gerais, o austríaco analisa como o cientista italiano
teria “desarmado” o famoso Argumento da Torre e, assim, contornado a
incompatibilidade entre o modelo cosmológico heliocêntrico e a explicação
tradicional da cadência dos corpos: “Sugiro que o que Galileu fez foi permitir
que teorias refutadas se apoiassem mutuamente; que ele construiu dessa
maneira uma nova concepção de mundo” (Feyerabend, [1993] 2007:175).
Feyerabend considera que o passo inicial de Galileu consiste na tentativa de
revelar e substituir os pressupostos semânticos incorporados ao “conteúdo
sensorial da observação” impregnado na mentalidade científica e popular
da época. Aos olhos de Galileu, a interpretação natural tradicional relativa
à queda dos corpos era correta em termos perceptuais, mas não habilitava
uma desqualificação da hipótese da mobilidade da Terra. Feyerabend ex-
plica que, nesse caso, “o enunciado sugerido pela impressão é examinado,
e consideram-se outros enunciados em seu lugar. A natureza da impressão
não é alterada em nada por esse procedimento” (Feyerabend, [1993] 2007:
92). Mas essa crítica dos “componentes conceituais” associados a um núcleo
sensorial exigia “examinar a validade daquelas interpretações” estreitamente
“ligadas às aparências”, além de apreciar o caráter “composto” do movimento
(Feyerabend, [1993] 2007:94). Assim, o cientista italiano distinguiu entre:

28. Restringimos nossa exposição aos capítulos Vi a Xi da terceira edição do Contra o


Método, os quais diferem dos respectivos capítulos da edição de 1975. Note-se que Feyerabend
dedica ao menos oito capítulos do livro (no total de vinte capítulos) para discutir o que
genericamente pode ser chamado de “caso Galileu”. Tomando como referência a 3ª edição
inglesa do Contra o Método, o autor redige sobre o tema cerca de 84 páginas, acompanhadas
de 181 notas de rodapé. Mas Feyerabend também discutiu as contribuições de Galileu para
a revolução copernicana em outros trabalhos: A Ciência em uma Sociedade Livre (Parte i,
seção 5), Adeus à Razão (cap. iX), The Tyranny of Science (cap. ii) “Machamer on Galileo”
(1974), “Galileo’s Observations” (1980), “Galileo as a Scientist” (1981) e “Der Galileiprozess
– einige unzeitgemässe Betrachtungen” (1983).

222
(i) o perceptível movimento relativo de queda vertical em direção ao cen-
tro da Terra (expresso pelo princípio de relatividade do movimento) e (ii)
o imperceptível movimento absoluto compartilhado pela Terra, a torre, a
pedra, o observador etc. Tal separação galileana entre o caráter relativo e o
caráter absoluto do movimento pressupõe, contudo, uma diferença entre a
compreensão tradicional do fenômeno e o próprio fenômeno. “Movimento
aparente e movimento real nem sempre são identificados”, diz Feyerabend
([1993] 2007: 96). isso implicaria, de fato, em uma nova interpretação natural
para a queda dos graves:
Se uma interpretação natural causa dificuldades para uma concep-
ção atraente, e se sua eliminação remove a concepção do domínio da
observação, então o único procedimento aceitável é utilizar outras
interpretações e ver o que acontece. A interpretação que Galileu reco-
loca os sentidos em sua posição de instrumentos de exploração, mas
apenas com respeito à realidade do movimento relativo […] O primeiro
passo de Galileu, em seu exame conjunto da doutrina copernicana e
de uma interpretação natural familiar, mas oculta, consiste, portanto,
em substituir esta última por uma interpretação diferente. Em outras
palavras, ele introduz uma nova linguagem observacional (Feyerabend,
[1993] 2007: 99-100).

Galileu teria tentado validar a noção de movimento compartilhado


elaborando duas ideias: (1) o pressuposto epistemológico – o movimento com-
partilhado é sempre conhecido, mesmo que não percebido; e (2) o princípio
dinâmico – objetos conservam o movimento se não houver intervenção que
cause o repouso. Então, para legitimar a tese do movimento rotacional da
Terra, Galileu buscou tanto formular como conjugar duas noções carentes de
suporte experimental: o princípio de relatividade do movimento e o princípio
da inércia circular – o qual estabeleceria que um objeto que se move ao redor
do centro da Terra com velocidade angular em uma esfera livre de atrito
continuará a mover-se para sempre com essa mesma velocidade angular
(Feyerabend, [1993] 2007:113-114). Entretanto, postulação de movimentos
parabólicos imperceptíveis e movimentos circulares perpétuos é ad hoc e
independente de qualquer teoria factualmente embasada. “A ‘experiência’,

223
isto é, a totalidade de todos os fatos de todos os domínios, não é capaz de
forçar-nos a realizar a mudança que Galileu deseja introduzir”, comen-
ta Feyerabend ([1993] 2007:111). E complementa: “É uma sugestão nova e
ousada, envolvendo um enorme salto de imaginação” (Feyerabend, [1993]
2007:115). Então, o Contra o Método insiste que a fundamentação da ciência
galileana não derivou de “experiências”, mas de “sofisticadas especulações”
(Feyerabend, [1993] 2007:117). A substituição galilena das interpretações na-
turais teria lançado mão de ideias “absurdas e contra indutivas” (Feyerabend,
[1993] 2007:103). Nesse caso, Galileu não teria utilizado de demonstrações e
argumentos para justificar as novas ideias científicas. Feyerabend encerra:
“Galileu usa propaganda. Usa truques psicológicos, além de quaisquer razões
intelectuais que tenha a oferecer. Esses truques são muito bem sucedidos:
conduzem-no à vitória”.
O autor do Contra o Método avalia que Galileu empregou expedientes
retóricos (analogias, experimentos de pensamento, esboços de desenhos
etc.) para “enfraquecer velhos hábitos” (Feyerabend, [1993] 2007:119). “Essa
é a essência do artifício de Galileu”, ele afirma ([1993] 2007:107). O para-
digmático exemplo do objeto em queda do alto do mastro de um navio
funcionaria, exatamente, nesse sentido, isto é, oferece uma analogia que
possibilita a introdução da nova base empírica para o antigo argumento
contrário à ideia de mobilidade da Terra: “[Galileu] nem aponta fatos novos
que oferecem apoio indutivo à ideia da Terra em movimento, nem menciona
nenhuma observação que refutaria o ponto de vista geocêntrico”. Feyerabend
conclui deste modo essa etapa de sua leitura sobre as estratégias de Galileu
referentes aos pressupostos semânticos incorporados à visão tradicional da
cadência dos corpos: “Uma experiência que parcialmente contradiz a ideia
do movimento da Terra é transformada em uma experiência que a confirma,
pelo menos no que diz respeito às ‘coisas terrestres’. isso é o que realmente
acontece” (Feyerabend, [1993] 2007:110). A “nova espécie de experiência”
inventada por Galileu envolveria um nível de especulação (e de “ingre-
dientes metafísicos”) muito superior ao contido na experiência segundo
aristotélicos e o senso comum (Feyerabend, [1993] 2007:116). Portanto, a
propaganda seria indispensável para tornar aceitáveis as novas ideias, e tais
procedimentos retóricos seriam parte da racionalidade dos processos que

224
produzem grandes mudanças conceituais: “o ‘embuste’ de Galileu era neces-
sário para um entendimento apropriado da nova cosmologia” (Feyerabend,
[1993] 2007:117, n. 22).
Uma parte adicional da leitura feyerabendiana sobre Galileu concerne
à produção e ao uso do telescópio (e a crítica na confiabilidade dos sentidos
ordinários): “O telescópio elimina o conflito ‘ainda mais evidente’ entre as
mudanças no brilho aparente de Marte e Vênus, tal como predito com base
no esquema copernicano e tal como visto a olho nu” (Feyerabend, [1993]
2007:124). Feyerabend esclarece que o recurso àquele “sentido superior”
suscitava disputas quanto à credibilidade da percepção artificial no entendi-
mento de fenômenos astronômicos. Assim, destaca que, no início do século
XVii, o telescópio ainda não contava com uma sólida fundamentação teórica:
“há sérias dúvidas quanto ao conhecimento de Galileu daquelas partes da
óptica física de sua época” (Feyerabend, [1993] 2007:125). isso indica que o
uso científico do perspicillum requeria a formulação de ciências auxiliares à
óptica que estavam indisponíveis quando Galileu divulgou suas novidades
celestes (satélites de Júpiter, fases de Vênus, manchas solares, irregularida-
des no solo da superfície da Lua): “O êxito terrestre do telescópio estava,
portanto, assegurado. Sua aplicação às estrelas, contudo, era uma questão
inteiramente distinta” (Feyerabend, [1993] 2007: 128). Enquanto instrumento
de observação celeste, a luneta telescópica e seus resultados também não
eram consensuais, afinal, aristotélicos adotavam uma distinção entre os
materiais e as leis dos corpos celestes e terrestres:
Só uma nova teoria da visão, contendo tanto hipóteses a respeito do
comportamento da luz no telescópio quanto hipóteses a respeito da
reação do olho em circunstancias excepcionais, poderia ter feito uma
ponte sobre o golfo entre o céu e a Terra, que era, e ainda é, um tal
fato óbvio na física e na observação astronômica (Feyerabend, [1993]
2007: 132).

Galileu tinha apenas conhecimento superficial da teoria óptica de sua


época. Seu telescópio forneceu resultados surpreendentes na Terra, e
tais resultados foram devidamente elogiados. Era-se de esperar dificul-
dades no que concerne ao céu, como agora sabemos. E as dificuldades

225
sem demora surgiram: o telescópio produziu fenômenos espúrios e
contraditórios, e alguns de seus resultados podiam ser refutados por um
simples olhar desarmado. Apenas uma nova teoria da visão telescópica
podia trazer ordem ao caos (que pode ter sido ainda maior, em virtude
dos diferentes fenômenos vistos na época mesmo a olho nu) e separar
aparência de realidade (Feyerabend, [1993] 2007: 148).

O Contra o Método esclarece que Galileu alterou pressupostos teóricos


da física aristotélica relacionados à queda dos corpos, além de ter modificado
a própria noção de “movimento”: “o procedimento de Galileu reduz dras-
ticamente o conteúdo da dinâmica […] Assim uma teoria empírica muito
abrangente é substituída por uma teoria restrita acrescida de uma metafí-
sica do movimento” (Feyerabend, [1993] 2007: 120). Feyerabend também
considera que o recuso galileano ao telescópio como instrumento científico
estava cercado por dificuldades: “o telescópio produz fenômenos estranhos e
novos, alguns dos quais podem ser revelados como ilusórios” (Feyerabend,
[1993] 2007:153). As observações telescópicas convergentes com a doutrina
de Copérnico – como o brilho dos planetas – careciam de base teórica.
Contudo, as dificuldades (empíricas, técnicas e filosóficas) da hipótese he-
liocêntrica não impediram Galileu de adotar e espalhar o copernicanismo.
Táticas retóricas e publicitárias ajudaram-no a “criar interesse” pelo novo
sistema: “o estilo, a elegância de expressão, a simplicidade de apresentação,
a tensão de trama narrativa e a sedução do conteúdo tornam-se aspectos
importantes do nosso conhecimento” (Feyerabend, [1993] 2007:171). Em
termos diretos: “a propaganda é essencial”. Assim, a aposta galileana na
capacidade da faculdade Razão em reconfigurar o veredicto da experiência
emerge como um traço fundamental do enfrentamento das inconsistências
entre as explicações dos fenômenos físicos e astronômicos. E Feyerabend
utiliza tal episódio como forma de evidenciar a improcedência da ideia
acumulacionista que estabelece a prioridade da experiência como critério de
escolha teórica e a adequação factual como ditame para o progresso cientí-
fico. Pelo contrário, o nascimento da Scienza Nuova demonstra a relevância
metodológica de procedimentos “contraindutivos”, jogadas publicitárias e
de atitudes oportunistas:

226
O leitor compreenderá que um estudo pormenorizado de fenômenos
históricos como esse cria dificuldades consideráveis para a concepção
de que a transição da cosmologia pré-copernicana para aquela do século
XVii constitui na substituição de teorias refutadas por conjecturas mais
gerais que explicavam as instâncias refutadoras, faziam novas predições
e eram corroboradas por observações realizadas com o fito de testar
essas novas predições.29

Considerações finais
A obra de Koyré desponta como uma das referências indispensáveis dos
estudos historiográficos voltados para rupturas nas “estruturas de pensamento”
(Stump, 2001:244). Consoante essa perspectiva, o avanço do conhecimento
não englobaria um acúmulo gradual e contínuo de dados factuais. Assim,
o historiador considera que uma genuína reorientação científica acarreta
profundas viradas teóricas, produzindo, em certos casos, trocas de “visões de
mundo” (Elkana, 1987:138). Koyré aprofundou tal ponto de vista ao estudar
em pormenor diversos elementos relacionados ao nascimento da ciência
moderna. Em particular, frisou que a adesão ao copernicanismo implicou,
em larga medida, uma vagarosa renúncia de premissas essenciais do siste-
ma filosófico de Aristóteles – cuja teoria do movimento foi posteriormente
alterada, de forma ad hoc, pela noção medieval de impetus – em favor de
uma nova metafísica do movimento inercial:
Quanto a mim, tentei em meu livro Estudos Galileanos definir os modelos
estruturais da antiga e da nova concepção de mundo, e determinar as

29. Na década de 1980, Feyerabend adicionou a tais reflexões epistemológicas uma discussão
sobre as consequências éticas e sociais da defesa galileana da doutrina copernicana. O aus-
tríaco afirmou: (1) que a autoridade da igreja não diferia das instituições científicas atuais; e
(2) que os julgamentos de Galileu (em 1613, por ensinar a veracidade do heliocentrismo; em
1633, por descumprir a proibição de difundir o copernicanismo) foram um evento comum
para o século XVii – e acrescentou que Galileu teria inclusive recebido “um tratamento
bastante suave, apesar de suas mentiras e tentativas de trapacear” (Feyerabend, [1993]
2007:183). A polêmica ficou por conta da defesa feyerabendiana da atitude da igreja frente
ao objetivo galileano de transformar a cosmologia: “a igreja fez a coisa certa: as ciências não
têm a última palavra em assuntos humanos, incluindo aí o conhecimento” (Feyerabend,
[1993] 2007: 184). Para detalhes, ver McMullin, 2008; Santos Terra, 2008; Hickey, 2009.

227
mudanças acarretadas pela revolução do século XVii. Essas mudanças
me pareciam ser redutíveis a duas ações fundamentais e estreitamente
relacionadas entre si, que caracterizei como a destruição do cosmos e
a geometrização do espaço, ou seja, (a) a substituição da concepção do
mundo como um todo bem definido e ordenado, no qual a estrutura
espacial materializava uma hierarquia de perfeição e valor, por um uni-
verso indefinido ou mesmo infinito, não mais unido por subordinação
natural, mas unificado apenas pela identidade de seus componentes
supremos e básicos; e (b) pela substituição da concepção aristotélica
do espaço, um conjunto diferenciado de lugares intramundanos, pela
concepção de geometria euclidiana – uma extensão essencialmente
infinita e homogênea –, a partir de então considerada como idêntica ao
espaço real do mundo. A mudança espiritual que descrevi não ocorreu,
naturalmente, em uma mutação súbita (Koyré, [1957] 2006: 2).

Os seminais escritos “filosófico-históricos” que Kuhn e Feyerabend pu-


blicaram em 1962 discutem exatamente aquele episódio histórico (ver Kuhn,
[1962] 2001:155; Feyerabend, 1981a: 62-69).30 Então, à primeira vista, esse fato
poderia alimentar a crença de que uma das mais profícuas teses daqueles
dois filósofos da ciência – a saber: a incomensurabilidade de teorias – eviden-
ciaria o conteúdo da “lição” de Koyré para a filosofia “histórica” da ciência.
É indiscutível que o percurso de Kuhn até a incomensurabilidade espelha esse
encontro (semanticamente mediado pelas ideias historiográficas de Koyré)
com a Física de Aristóteles (Kuhn, 2007: 27). Mas o caminho de Feyerabend
até sua formulação de uma imagem não acumulativista do avanço científico
não dependeu minimamente de estudos históricos (Feyerabend, 2006:286-288;
Oberheim 2005; Abrahão, 2009): “Ao contrário de Kuhn, minha pesquisa co-
meçou de certos problemas na área [conceitual] e referindo-se apenas a teorias”
(Feyerabend, [1978] 2011:83). Por mais que a teoria revolucionária da ciência de
Kuhn siga pressupostos oriundos da historiografia da ciência francesa (como

30. importa lembrar que o historiador da ciência que Kuhn e Feyerabend acompanham
nessa discussão foi um discípulo de Koyré, o historiador norte americano Marshall Clagett
(The Science of Mechanics in the Middle Ages, 1959). Ver Kuhn ([1962] 2001:155, n. 12) e
Feyerabend (1981a:62).

228
Émile Meyerson, Anneliese Maier, Hélène Metzger e, claro, Alexandre Koyré),31
esse quadro não encontra respaldo nas páginas feyerabendianas. Portanto,
divergimos da genérica referente à dívida intelectual daqueles autores com
a produção koyréana. De forma resumida, notamos que a herança koyréana
de Kuhn parece incluir pelo menos três elementos principais: (i) informações
históricas gerais sobre o surgimento e estrutura da Revolução Copernicana;
(ii) a inspiração para uma “nova metodologia” de estudo histórico de ideias
científicas; e (iii) o alicerce teórico para a elaboração da tese da “constituição
dos mundos”. Porém, ainda que Feyerabend também se aproxime do pensador
franco-russo quanto ao elemento (i), não há evidências dos tópicos (ii) e (iii) no
corpus feyerabendiano. Nesse horizonte, objetamos também a influente leitura
de Preston (1997). Contudo, propusemos uma aproximação das posições de
Koyré e Feyerabend partindo da influência – declarada no Contra o Método e
em outros escritos – de duas teses historiográficas koyrenianas: (1) “dificuldades
técnicas” dos “instrumentos de precisão” impedem a explicação do surgimento
da ciência moderna como consequência de descobertas empíricas derivadas
de experimentos científicos; e (2) Galileu empregou táticas “publicitárias” para
contornar as “dificuldades teóricas (conceituais) e psicológicas” levantadas
contra o copernicanismo (Koyré, 1953: 223).32
Críticos assinalam exageros nas leituras de Koyré e Feyerabend sobre
as contribuições do cientista italiano para a ciência moderna (Naylor, 1989;
Stengers, 2002:130; Machamer, 1974; Achinstein, 2000:37). Não obstante, o
Galileu “platônico” e o Galileu “embusteiro” convergem enquanto tentativas
de desqualificar reconstruções empiristas da estrutura e do desenvolvimento
científico.33 Concluindo: (a) Koyré e Feyerabend (e também Kuhn) argumentam
que mudanças científicas genuínas ocasionam guinadas cosmológicas – logo,

31. Essa influência francesa foi reconhecida por Kuhn: “Com efeito, o vínculo com a França
sempre foi muito importante para mim, não precisamente pela filosofia, mas pela história,
e o personagem que me foi mais próximo foi sem dúvida o historiador Alexandre Koyré”
(Borradori, 2003:216).
32. Ver também a excelente análise de Butts (1978).
33. É importante lembrar que, diferentemente da historiografia de Koyré, todo o olhar
feyerabendiano para a história da revolução científica do século XVii almejava um objetivo
metodológico e epistemológico definido: validar historicamente a concepção pluralista do
conhecimento baseada nos princípios de proliferação de teorias e de métodos (para detalhes,
ver Oberheim, 2006:250).

229
tais modificações teóricas demandam prioritariamente esforços argumenta-
tivos, retóricos e propagandísticos para desarmar hábitos mentais arraigados;
(b) Koyré e Feyerabend (e também Kuhn) insistem que revoluções científicas
não são trajetos ininterruptos marcados por acréscimos observacionais, mas
longos processos de mutação lexical e ontológica; e (c) Koyré e Feyerabend
(e também Kuhn) renunciam à descrição positivista do avanço da ciência
enquanto um processo de reorganização dos dados factuais, abraçando, por
seu turno, a ideia de que variações gnosiológicas operam uma consequente
transformação “espiritual”. Enfim, todos eles buscam desconstruir idealiza-
ções empiristas acerca do papel crucial de experiências ou de descobertas
observacionais no avanço científico. Contudo, é questionável considerar
que a historiografia de Koyré influenciou as ideias de Feyerabend com a
mesma profundidade que influenciou o pensamento de Kuhn. Com efeito,
as didáticas reconstruções impressas em manuais introdutórios, coletâneas
de artigos, ensaios críticos, estudos especializados etc. simplificam – porque
homogeneízam – o conteúdo substantivo da dívida intelectual de Kuhn
e Feyerabend com o autor do magistral Do Mundo Fechado ao Universo
Infinito; e, ademais, impedem uma apreciação adequada da própria herança
da historiografia de Koyré na denominada “guinada historicista” dos estudos
contemporâneos sobre a ciência.

Agradecimentos
Ao Prof. Olímpio Pimenta (UFOP), pela introdução à leitura dos es-
critos de Koyré, Kuhn e Feyerabend; à Profa. Patrícia Kauark (UFMG), por
suscitar as reflexões que originaram este trabalho; e ao Prof. Mauro Condé
(UFMG), pelo convite para colaborar com esta coletânea.

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235
11

Koyré e Wittgenstein: o internalismo reconsiderado


a partir de uma perspectiva pragmática
Mauro Lúcio Leitão Condé – UFMG

Introdução
Neste capítulo, em uma perspectiva epistemológica, analisarei o pro-
blema do internalismo na concepção de história da ciência de Koyré a
partir de alguns pontos da filosofia da linguagem de Wittgenstein. Embora
não seja usual a associação entre Koyré e Wittgenstein, esses pensadores,
pertencentes a tradições diferentes, já foram citados, em um mesmo livro,
por importantes historiadores e filósofos da ciência (Kuhn, 1970 [1962]:
vii-viii, 44-45; Feyerabend, 2001 [1975]: 75, 96, 118, 254, 260). Contudo, uma
aproximação entre eles ainda não foi estabelecida. Embora possa parecer
estranha essa associação, não foi diferente quando, em um de seus magis-
trais artigos, Koyré colocou lado a lado autores aparentemente diferentes,
como Platão e Galileu (Koyré, 1973 [1966]:166-195), ensinando-nos assim o
valor heurístico trazido por esse tipo de aproximação. Ainda que Koyré e
Wittgenstein não tenham tido influências unilaterais ou recíprocas, os dois
livros mais importantes de Wittgenstein estavam presentes na biblioteca
pessoal de Koyré.
No início do século XX, Koyré (1912, 1921) e Wittgenstein (1913, 1921)
começaram suas carreiras filosóficas com um grande interesse no problema
dos fundamentos da matemática, antinomias e paradoxos. Ambos tinham
um fascínio pelo realismo matemático. Naquele momento, eles estavam
ligados a importantes lógicos e filósofos da matemática, como Russell, Frege

237
(Wittgenstein) e Husserl (Koyré). No entanto, após o fim dos anos 30, eles
estabeleceram posições opostas. Em suas Investigações Filosóficas1 (1953),
Wittgenstein rejeitou completamente sua primeira filosofia presente no
Tractatus (1921) e fez uma crítica severa ao realismo matemático em suas
Remarks on the foundation of mathematics (1956). Na direção oposta, Koyré
não só desenvolveu sua história da ciência reafirmando o realismo mate-
mático como uma chave para a leitura das obras de Galileu (Koyré, 1966
[1939]) e Newton (Koyré, 1965), mas também estendeu essa concepção a
autores como Maxwell e Einstein (Koyré, 1971 [1961]:267).
De acordo com Koyré, “a ciência, esta de nossa época, como aquela
dos gregos, é essencialmente theoria” (Koyré, 1973 [1966]:399). A ciência é a
racionalidade que organiza fatos e experiências. A natureza está escrita em
linguagem matemática, como foi afirmado por Galileu, e o realismo matemá-
tico por trás dessa afirmação foi o elemento principal, de acordo com Koyré,
na construção da ciência moderna. Baseado neste realismo matemático,
Koyré afirmou a perspectiva que iria se tornar conhecida como internalismo,
isto é, a concepção de que a ciência encontra suas justificativas nela mesma,
independente de influências de contextos sociais. Consequentemente, ele
se tornou extremamente crítico quanto à real importância dos aspectos
técnicos e sociais (externalismo) na fundação da ciência moderna, como
defendido à época por zilsel, Hessen, Grossmann, etc. (Koyré, 1965:6; 1966
[1939]:12-13 e 1973 [1966]:167), apesar de ele próprio ter trabalhado extensi-
vamente o problema da técnica e da interpretação sociológica (Koyré, 1971
[1961]:305-362).
Em posição diametralmente oposta, rejeitando o realismo matemáti-
co, Wittgenstein escolhe exatamente a técnica (pragmática da linguagem)
como um princípio de articulação do conhecimento. Para ele, as regras da
linguagem em si são técnicas; “compreender uma linguagem significa domi-
nar uma técnica” (iF§ 199). A racionalidade em si mesma é um produto da

1. A partir daqui vou me referir às Investigações filosóficas e ao Tractatus logico-philosophi-


cus de Wittgenstein da seguinte forma: Investigações Filosóficas no corpo do texto apenas
como Investigações e as citações como iF, seguido pelo número do parágrafo a que se refere.
O Tractatus Logico-Philosophicus no corpo do texto apenas como Tractatus e nas citações
Tract., seguido pelo número do parágrafo a que se refere. Os trabalhos de Koyré seguirão
o modo de citação tradicional.

238
gramática, isto é, da linguagem. A gramática nos diz o que algo é (iF§ 373).
E, como a gramática (enquanto conjunto de regras) surge no “solo áspero”
da pragmática dos nossos jogos de linguagem, isto é, de nossas práticas
sociais, concluimos que a racionalidade é também produto da pragmática
(técnicas) (iF§§ 204, 520, 528). Em outras palavras, na segunda filosofia de
Wittgenstein, a racionalidade – e a ciência – emergem das práticas sociais.
Assim, em uma perspectiva wittgensteiniana, este capítulo procura
reconsiderar o internalismo de Koyré, especialmente por meio da análise
do problema do internalismo versus o externalismo (ou as interpretações
sociológicas que afirmaram a importância decisiva dos fatores sociais e
da tecnologia – máquinas – no surgimento da ciencia moderna). Como
sintetizado por Koyré, trata-se do problema dos “filósofos e a máquina”
(Koyré, 1971 [1961]: 305-339) que tem a difícil tarefa de conciliação entre a
theoria, de um lado, e a praxis, de outro. irei concluir que a pragmática da
linguagem de Wittgenstein pode ser usada para lançar uma nova luz sobre
o problema do internalismo na história da ciência de Koyré.2 Onde Koyré
vê theoria, realismo matemático e as bases metafísicas da ciência, a partir
de Wittgenstein podemos ver a ciência como um tipo de gramática regida
por regras, decorrentes dos jogos de linguagem presentes em uma forma de
vida (sociedade). No entanto, apesar de Wittgenstein, com sua gramática
e pragmática da linguagem, distanciar-se de Koyré, de alguma forma ele
acaba se aproximando do internalismo koyréano, ao estabelecer a sua ideia
de autonomia da gramática. O que pode ser interpretado, na perspectiva
de Koyré, como uma espécie de autonomia da ciência. O confronto entre
essas duas importantes abordagens nos permite encontrar bons subsídios
para enfrentarmos adequadamente o problema do internalismo versus ex-
ternalismo na ciência.
Com esse propósito, este capítulo estruturar-se-á da seguinte forma: em
um primeiro momento, farei uma análise desse ambiente inicial das carreiras

2. A querela internalismo versus externalismo se estruturou, em grande medida, tendo Koyré


como uma figura ícone do internalismo. Para uma visão geral da questão internalismo e
externalismo cf. (Shapin, 1992). De acordo com Shapin, embora essa tenha sido uma questão
presente na história e sociologia da ciência, sobretudo do final da segunda guerra ao fim
da guerra fria, ela ainda demanda novas reflexões (Shapin, 1992:334). O objetivo aqui não é
situar Koyré nesse debate de um modo mais amplo, mas apenas caracterizar seu interna-
lismo para, em seguida, discuti-lo em uma perspectiva pragmática.

239
de Koyré e Wittgenstein, dominado pelas questões sobre os fundamentos da
matemática e os paradoxos. Procuro mostrar como essas questões estiveram
presentes no pensamento de juventude de ambos e como, em certo aspecto,
marcaram suas filosofias posteriores. Em seguida, abordarei o que ficou
conhecido como o internalismo de Koyré, em especial através da afirmação
de seu realismo matemático e suas críticas às abordagens sociológicas e às
técnicas como elementos determinantes na formação da ciência moderna
(externalismo). Em um terceiro momento, abordarei os aspectos centrais da
pragmática da linguagem na obra de maturidade de Wittgenstein. Por fim,
procurarei mostrar em que medida a proposta de Wittgenstein se constitui
em uma boa possibilidade de reconsideração do internalismo de Koyré
superando os seus aspectos negativos e o requalificando para que ele possa
ser entendido como a afirmação da autonomia da ciência e não o isolamento
entre ciência e sociedade.
Desse modo, além da obra dos autores, o pano de fundo aqui é a pro-
blemática epistemológica colocada pela questão do internalismo versus
externalismo, tal qual foi debatida na historiografia da ciência. A aproxi-
mação entre Koyré e Wittgenstein mostra que essa questão vista pelos seus
extremos parece ser uma posição equivocada.

Fundamentação da matemática, paradoxos e racionalidade


Koyré (1892-1964) e Wittgenstein (1889-1951) viveram praticamente
no mesmo período, sofreram as consequências históricas dos conflitos na
Europa e – ainda que pertencentes a tradições filosóficas diferentes – com-
partilharam o mesmo entusiasmo pela filosofia, envolta em uma atmosfera
científica marcada pelas grandes transformações das ciências no período,
em especial para ambos, no campo da lógica e da matemática. A partir de
finais do século XiX, tanto o desenvolvimento da matemática quanto o
nascimento da lógica-matemática trouxeram a necessidade de se repensar
os fundamentos da matemática. Contudo, os paradoxos3 que surgiram desse

3. O “paradoxo de Russell” será o centro dessas discussões. Assim ele é relatado por Russell
em carta a Frege, em 1902: “Seja w o predicado: ser um predicado que não pode ser predi-
cado dele mesmo. Pode w ser predicado dele mesmo?”. “Letter to Frege”. in (Heijennoort,
1981:125). A contradição que surge aqui é chamada de paradoxo de Russell.

240
projeto de fundamentação ameaçaram, mais que a matemática, a própria
ideia de racionalidade científica. Como salienta Koyré,
No século XX, os paradoxos lógico-matemáticos desempenharam um
importante papel, como é bem conhecido, na evolução do pensamento
matemático, ou mais exatamente, meta-matemático. Foi a descoberta
dos paradoxos que determinou a ‘crise dos fundamentos’ da mate-
mática; e nós devemos o rico desenvolvimento da lógica simbólica, o
intuicionismo de Brouwer, a axiomática de zermelo e Hilbert ao desejo
de resolvê-los ou evitá-los. Em seu brilhante e importante artigo, A.
Fraenckel (1939) afirma que a descoberta teve um efeito ‘terrível’. Os
mais seguros fundamentos da ciência, de fato, da própria razão, pare-
ciam estar minados (Koyré, 1946:344).

Diferentes foram as reações a esse “terrível” efeito dos paradoxos: resol-


ver, evitar ou mesmo buscar novos rumos para a racionalidade. Paradoxos
como o do “mentiroso” ou de “Aquiles e a tartaruga” são conhecidos desde
a antiguidade grega, mas, nesse novo contexto apresentado pela lógica-ma-
temática, os novos paradoxos passam a ter uma importância decisiva não
porque têm a mesma estrutura lógica dos paradoxos tradicionais, mas porque
a fundamentação da matemática e, consequentemente, a própria ideia de
racionalidade estariam em xeque. Os trabalhos de Frege, Russell e Husserl
foram centrais para essa reflexão sobre os fundamentos da matemática e
a busca pela solução dos paradoxos. Estabeleceu-se uma estreita conexão
entre esses pensadores, que pode ser avaliada pelas críticas e influências que
exerceram uns sobre os outros, presentes não apenas em suas obras, mas
nas inúmeras cartas que eles trocaram.

Na realidade, Cantor identificou o paradoxo da teoria dos conjuntos em 1896. zermelo e


Russell, entre 1900 e 1901, respectivamente. Entretanto, o “paradoxo de Russell” ficou mais
conhecido, uma vez que ele foi identificado por Russell no volume 1 dos Grundgesetze de
Frege – em um episódio dramático – , pouco antes da publicação do volume 2. O drama
sentido por Frege de ver abalado seu projeto de fundamentação da aritmética pelo para-
doxo foi relatado por ele em resposta à carta na qual Russell anunciava a descoberta do
paradoxo em sua obra. Afirma Frege, “não apenas os fundamentos de minha aritmética,
mas também o único possível fundamento da aritmética parece desaparecer”. “Letter to
Russell”. in: Heijenoort, 1967:128.

241
O pano de fundo das questões de lógica e filosofia da matemática –
ameaçadas pelo paradoxo – tratadas por eles, diz respeito à afirmação ou
à negação de uma essência do pensamento formal. Um realismo matemá-
tico em moldes platônicos. A matemática seria uma “descoberta” ou uma
“invenção”? Para todos eles, seria uma descoberta. O logicismo de Frege
e Russell defendia a ideia de que havia uma identidade entre a lógica e a
matemática. A matemática seria derivada de alguns princípios lógicos fun-
damentais. A tradição de uma filosofia da matemática que se originou em
Platão, passando pela mathesis universalis cartesiana poderia, finalmente,
com a nova lógica-matemática, não apenas fundamentar a matemática, mas
também efetivar o projeto de uma linguagem universal da ciência como foi
proposta por Leibniz com sua ideia de characteristica universalis. Mesmo
Husserl, que não defendia, inicialmente, o platonismo matemático em sua
Filosofia da aritmética (1891) termina por assumi-lo no volume 1 de suas
Investigações lógicas (1900). Finalmente, para esses autores, o que estava
em jogo com a ameaça dos paradoxos sobre o realismo matemático não
era apenas a fundamentação da matemática, mas a própria racionalidade
científica moderna baseada na ideia de mathesis universalis.
Ao iniciaram suas carreiras ligados a esses filósofos-matemáticos, de
algum modo, Koyré e Wittgenstein pautaram suas filosofias por esse conjunto
de questões nas quais o problema dos paradoxos, em especial, assumirá grande
importância. Tentando preservar o realismo matemático, Koyré compreende
que os paradoxos não conseguiram abalar a racionalidade tradicional. Com
efeito, todo o seu esforço será no sentido de minimizar o “terrível” efeito dos
paradoxos, afirmando, desse modo, o realismo matemático que garantiria
não apenas os fundamentos da matemática, mas, como veremos à frente,
a fundamentação de sua futura concepção de história da ciência. Por sua
vez, em sua filosofia de juventude, Wittgenstein – ainda que tenha criticado
a solução lógico-matemática do paradoxo apresentada por Russell – acaba
por afirmar o importante aspecto metafísico apontado pelos paradoxos.
Koyré e Wittgenstein, portanto, iniciam tendo posições semelhantes quanto
ao paradoxo e à fundamentação da lógica, mas terminam por se distanciar.

242
Na Alemanha, o jovem russo Alexandre Koyré apresentou a Husserl
uma proposta de doutoramento sobre questões relativas à matemática. Como
Husserl não aceitou sua proposta, (zambeli, 1999) Koyré deixou Göttingen
para fixar-se em Paris. Contudo, a relação entre os dois será mantida por
longo tempo, seja por cartas ou visitas, mostrando a grande influência de
Husserl sobre Koyré. Wittgenstein, por sua vez, após estudar engenharia
aeronáutica, procurou Frege para desenvolver seus estudos sobre lógica
e filosofia da matemática, mas foi orientado pelo autor do Begriffsschrift a
procurar Bertrand Russell na inglaterra. Assim, em Cambridge, Wittgenstein
tornou-se o principal discípulo de Russell, ainda que posteriormente eles
tenham se distanciado tanto na amizade quanto em suas perspectivas filo-
sóficas. No prefácio de seu primeiro livro, o Tractatus, Wittgenstein deixou
claro essa importância de Russell e Frege em seu pensamento. Portanto, as
primeiras reflexões filosóficas de Koyré e Wittgenstein foram fortemente
direcionadas pelas preocupações desse círculo lógico-matemático. Como
já observado por zambelli (1999), esse grande interesse em matemática
permitirá Koyré analisar, posteriormente, as obras de Galileu e Newton.
Contudo, mais que isso, pode-se acrescentar que Koyré encontra no realismo
matemático, sustentado por esse círculo, um forte elemento na fundamen-
tação de sua posterior concepção de história da ciência, como dito acima.
Em sentido oposto, Wittgenstein voltou-se contra o realismo matemático
presente nessa orientação lógico-matemática fazendo uma severa crítica
à sua própria filosofia de juventude buscando, desse modo, novos rumos
para o seu pensamento.
O primeiro texto publicado pelo jovem Koyré, uma pequena nota in-
titulada “Sur les nombres de Bertrand Russell” (1912),4 fazia uma crítica aos
Principles of mathematics de Russell, publicado em 1903. Com o “paradoxo
de Russell” já identificado, neste livro, é o próprio Russell que apresenta sua
solução para eliminá-lo através da doutrina dos tipos lógicos, posteriormen-

4. Wittgenstein fez sua primeira publicação em 1913 com uma nota crítica a um livro de
lógica (Wittgenstein, 1913). Contrariamente a Koyré, que publicou muito ao longo da vida,
Wittgenstein, além dessa nota de 1913, publicou apenas o Tractatus e mais um pequeno
artigo chamado “Some remarks on logical form”, em 1929. Portanto, a maioria de suas
publicações são póstumas.

243
te também utilizada nos Principia Mathematica.5 Em seu texto inaugural,
Koyré já anunciava o que ele entenderia como o epicentro da questão ao
longo de toda a sua longa reflexão sobre o paradoxo: refutar a ideia de que
o paradoxo pudesse ameaçar o realismo matemático, consequentemente, a
fundamentação da matemática, da lógica e da racionalidade científica. Aqui
também já surgiam suas primeiras críticas às possíveis soluções do para-
doxo apontadas pela lógica-matemática, sobretudo quando ele não aceita
a solução proposta por Russell para evitar os paradoxos, entendendo que
a própria definição que visava exatamente solucionar o problema, também
seria paradoxal. Conclui Koyré,
A definição do Sr. Russell, sendo paradoxal, não pode servir como
fundamento da matemática, e seu número não existe, do que resulta
que ele não é número ordinário da aritmética. O problema da defi-
nição do número e até mesmo a possibilidade de tal definição deve
ser considerado um problema não resolvido (Koyré, 1992 [1912]:452).

Em “Réponse a M. Koyré” (Russell, 1912),6 Russell afirmará que as res-


postas aos problemas levantados por Koyré estavam exatamente na adoção
de sua “teoria dos tipos”. Como demonstrado pelo “paradoxo de Russell”,
alguns conjuntos conduzem a paradoxos (conjuntos de todos os conjuntos)
apenas se não usamos a teoria dos tipos. Assim conclui Russell: “Podemos e
devemos, portanto, aceitar todo o detalhado argumento de M. Koyré, mas
a conclusão que deve ser extraída a partir dele não é que a definição do
número deve ser abandonada, mas que a lógica não pode se realizar sem a
teoria dos tipos” (Russell, 1992 [1912]:59).
Em 1922, Koyré retorna ao tema do paradoxo e publica um extenso artigo
intitulado, “Remarques sur les paradoxes de zénon”7 (Koyré, 1971 [1961]:9-

5. A teoria dos tipos aparece como o apêndice B em Principles of mathematics, em 1903. Em


1908, Russell publica um extenso artigo sobre o tema “Mathematical logic as based on the
theory of types” (Russell, 1908).
6. Russell, que imaginou que Koyré fosse húngaro, leu o manuscrito com a crítica a seus
Principles of mathematics enviado pelos editores da Révue de métaphysique et de morale
para sua avaliação quanto ao real valor da publicação da nota. Resolve então dar uma
resposta que é publicada no mesmo número (Russell, 1912), após o texto de Koyré (Koyré,
1912). Tanto o texto de Koyré quanto o de Russell foram republicados em (Russell, 1992).
7. inicialmente publicado em alemão no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische
Forschung, vol. V, 1922. É interessante notar que, próximo ao período em que Koyré escreveu

244
35), centrado na análise dos clássicos paradoxos de zenão. Entretanto, dessa
vez ele não aborda a problemática na perspectiva da lógica-matemática, mas
analisa como diferentes pensadores entenderam esse paradoxo. Aqui dois
são os pontos centrais para Koyré: (1) afirmar que o problema do paradoxo
é formal e não material; (2) afirmar a supremacia da filosofia da matemá-
tica cartesiana frente aos novos problemas apresentados pelos paradoxos
e antinomias na matemática. Quanto ao primeiro ponto, para Koyré, o
movimento realizado por Aquiles até a tartaruga, em si não seria o ponto
principal, isto é, não se trata de uma ciência do movimento (foronomia)
que estuda um corpo e as causas de seu movimento, pois “os paradoxos
não têm uma significação e um valor puramente foronômico” (Koyré, 1971
[1961]: 22). É certo que, ao andar, Aquiles ultrapassa a tartaruga, mas o as-
pecto central apontado por esse paradoxo seria uma questão formal e não
material. “O problema levantado por zenão revela um nível mais profundo,
o da matemática pura. O nível em que o movimento se coloca não mais
existe” (Koyré, 1971 [1961]:29).
Koyré concebe o epicentro da racionalidade nas possibilidades in-
trínsecas ao sistema formal e não propriamente nas características físicas
apresentadas pelo movimento. Aqui já se prefigura a concepção que dará
fundamentação à sua futura história da ciência. Em outras palavras, a ideia
de que na ciência é essencialmente a teoria que orienta o nosso entendi-
mento do mundo físico. Não é a experiência que dita as normas, mas é a
teoria que organiza e orienta a experiência. Esta dimensão formal peculiar
à matemática – garantida pelo realismo matemático – está muito distante
da imprecisão da experiência ou do “mundo do mais ou menos”, como es-
clarecerá Koyré anos mais tarde (Koyré, 1971 [1961]:341-362). Dessa forma,
quando Aquiles caminha em direção à tartaruga, para Koyré, “trata-se de
uma divisibilidade virtual e não de uma divisão em ato” (...), pois “o movi-
mento não é uma simples mudança de lugar” (Koyré, 1971 [1961]:15-16). Com

sobre o problema dos paradoxos (Koyré, 1912, 1922), Husserl também escreveu sobre essa
temática. Segundo Haddock, no manuscrito A i 35, que consiste de duas partes α, datada de
1912, e β, datada de 1920, Husserl abordou os paradoxos. A primeira parte desse manuscrito,
“concerned with different ways to solve Russell’s paradox” (Haddock, 2006:218). Na segunda
parte, “Husserl tries to show that the way to avoid the paradoxes consists in a constructive
axiomatization of set theory” (Haddock, 2006: 219).

245
efeito, “se é admitido, segundo Descartes, que o movimento é um estado do
corpo análogo ao estado de repouso” (Koyré, 1971 [1961]:19), o que constitui
a possibilidade de criação de um sistema formal – no qual se fundamenta
a racionalidade – não é propriamente a existência do movimento, mas o
quadro de possibilidades que emerge da contraposição entre movimento e
repouso. Parece já estar aqui um ponto importante da leitura que Koyré fará
da mecânica clássica quando, inspirado em Descartes, tomará o movimento
e o repouso como ontologicamente equivalentes, fazendo dessa posição um
dos pilares de sua interpretação (Koyré, 1973 [1966]:185).
O segundo aspecto importante nesse artigo de 1922 – a defesa da mate-
mática cartesiana em oposição aos novos problemas levantados pela mate-
mática – se dá contra a posição de Cantor, que “definiu o conjunto infinito
por uma propriedade de ser equivalente a uma de suas partes” (Koyré,
1922:27). Entretanto, ainda que se oponha a Cantor, Koyré não faz a ele uma
crítica matemática propriamente, mas filosófica. Para ele, o argumento de
Cantor seria inferior ao que já tinha sido apresentado por Descartes (Koyré,
1971 [1961]:26), segundo o qual, “o infinito é a noção primeira e positiva e
o finito pode apenas ser compreendido pela negação do mesmo” (Koyré,
1971 [1961]: 28).
Na segunda metade da década de 40, já como um importante histo-
riador da ciência, Koyré revisitará a problemática dos paradoxos em dois
extensos artigos, “The liar” (Koyré, 1946) e “Manifold and category” (Koyré,
1948), que servirão de base para seu livro, Epimenides, le menteur (Koyré,
1947). Ainda que aparentemente ele retome a problemática no âmbito da
lógica-matemática,8 sua intenção continua sendo a mesma, isto é, criticar
filosoficamente os problemas trazidos pela abordagem lógico-matemática
e minimizar o impacto dos paradoxos na fundamentação da matemática e

8. Os artigos e o livro de Koyré tiveram uma recepção extremamente negativa entre os


lógicos (cf. Bar-Hillel, 1947; Black, 1948). Embora fizesse incursões no terreno da lógica
-matemática, Koyré não era um lógico com o domínio das complexas tecnicalidades dessa
área. Contudo, seu objetivo principal não era discutir tais tecnicalidades, mas compreender,
em um sentido filosófico mais amplo, a possível ameaça dos paradoxos à racionalidade. Na
realidade, ainda que tenha defendido radicalmente o realismo matemático, Koyré sempre
o fez de um ponto de vista filosófico e histórico ao longo de todo a sua obra em história da
ciência e não propriamente de um ponto de vista lógico ou matemático.

246
da lógica clássica. Paradoxos não seriam propriamente antinomias, ainda
que pudessem gerar contrassensos, sofismas ou dúvidas. Contudo, afirma
Koyré, “estender estas dúvidas à dúvida sobre a validade das leis da lógica é
um exagero” (Koyré, 1946:349). Por mais que trouxessem dificuldades com
suas contradições e falta de sentido, a partir dos paradoxos “não temos o
direito a incriminar as regras da lógica clássica” (Koyré, 1946:356). Ainda
que os paradoxos apresentassem dificuldades para a lógica e a matemática,
a superação dessas dificuldades não estaria entre os tipos ou níveis, como
pretendeu Russell com sua teoria dos tipos, e por isso ele falhou em sua
solução – bem como a metalinguagem de Tarski e Carnap também teriam
falhado. De acordo com Koyré, seria necessário entender os paradoxos como
estruturas que conduzem a nonsense ou contrassenso (counter-sense), como
sustentado por Husserl, no volume 1, de suas Investigações lógicas (Koyré,
1946:362). Um contrassenso localizado, para Koyré, não comprometeria toda
a estrutura da lógica. isso estaria muito longe de ser algo tão drástico como,
por exemplo, pensou Frege, ao se deparar com o paradoxo na sua tentativa
de fundamentar a aritmética.
Em “Manifold and category”, Koyré continua sua análise do paradoxo
de Russell. Seu esforço ainda é no sentido de (1) superar a teoria dos tipos
e (2) mostrar que, apesar dos paradoxos, uma reforma da lógica não seria
necessária (Koyré, 1948:7, 14). Após discutir exaustivamente o paradoxo de
Russell e a teoria dos tipos, de modo semelhante ao artigo anterior, ele conclui
novamente que o paradoxo é algo “sem sentido” ou um contrassenso (counter-
sense) (Koyré, 1948: 14). Sua inspiração para essa conclusão continua sendo
Husserl. Nesse artigo, Koyré argumenta que as perplexidades trazidas pelas
estruturas paradoxais deveriam ser consideradas “noções vazias” (Koyré,
1948:19, 20), algo como apresentado por Husserl, desta vez, em sua Formale
und transzendentale logik, de 1929. Com efeito, não haveria sentido nessas
estruturas paradoxais, isto é, elas seriam algo semelhante às constantes que
expressam o pensamento, o ser, a lógica e a ontologia – como já era conhe-
cido pela lógica medieval. E ainda que estas sejam noções reflexivas, elas não
nos impedem de ter julgamentos corretos sobre as coisas e não confundem

247
nossa razão. Essa compreensão dos paradoxos guarda alguma semelhança
com o que Wittgenstein, já em 1921, tinha apresentado no Tractatus.9
Seguindo o logicismo de Frege e Russell, no Tractatus, Wittgenstein
afirma a lógica como ponto central. “A lógica não é um corpo de doutrina,
mas uma imagem especular do mundo. A lógica é transcendental” (Tract.
6.13). Com base no logicismo, a lógica fundamenta a matemática. “A ma-
temática é um método da lógica” (Tract. 6.234). No entanto, mais que a
fundamentação da matemática, o objetivo central do Tractatus era criar uma
teoria da linguagem que se fundamentasse nessa essência lógica. Podemos
expressar o mundo porque a lógica é o elemento comum entre linguagem
e mundo. Assim, a partir dessa referência central da lógica e de sua teoria
da linguagem como representação do mundo, o paradoxo será visto por
Wittgenstein por, pelo menos, três perspectivas diferentes: (1) o paradoxo
não como a negação, mas como a afirmação da lógica pela sua concepção
de forma lógica; (2) a reavaliação crítica da teoria dos tipos de Russell como
possível solução para os paradoxos; (3) e o paradoxo em sua dimensão ética,
estética e mística (paradoxo da escada).
Para o jovem Wittgenstein, enquanto imagem especular do mundo, a
lógica fornece a essência ou a “forma lógica” (Tract. 2.18) que permitiria à
linguagem representar o mundo, ainda que sobre essa forma lógica nada
pudéssemos falar. Fato esse que já mostra a condição paradoxal da lógica:
não poder ser dita, ainda que se mostre.
A proposição pode representar toda a realidade, mas não pode repre-
sentar o que deve ter em comum com a realidade para poder repre-
sentá-la – a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica,
deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer
dizer, fora do mundo (Tract. 4.12).

9. É mesmo curioso o fato de Koyré não citar o Tractatus em suas análises, uma vez que,
nesse livro, Wittgenstein aborda boa parte dos assuntos discutidos por Koyré: paradoxos,
teoria dos tipos, a importância da lógica, da matemática e dos limites da razão, além dos
Principles of mathematics (Tract. 5.5351) de Russell e dos Principia mathematica (Tract.
5.452) de Russell e Whitehead. Talvez o Tractatus estivesse mais próximo dos interesses de
Koyré, pois além dessas questões lógicas, aborda ainda questões de ética, ontologia, etc.

248
Em última instância, ao invés de simplesmente nos confundir, essa
condição paradoxal apontaria o caráter metafísico ou transcendental da
lógica (Tract. 6.13). Assim, ao invés de ver aqui uma antinomia, com a teoria
da “forma lógica” Wittgenstein incorpora essa condição paradoxal a favor
da afirmação da própria essência da lógica. Ele transforma esse paradoxo
em algo propositivo, pois ainda que não se possa “dizer” nada dele, algo
pode ser “mostrado”. “A proposição não pode representar a forma lógica,
esta forma se espelha na proposição. O que se espelha na linguagem, esta
não pode representar. O que se exprime na linguagem, nós não podemos
representar por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade.
Ela a exibe.” (Tract. 4.121). Contudo, “o que pode ser mostrado, não pode ser
dito” (Tract. 4.1212).
Entretanto, ainda que compactue com o logicismo de Frege e Russell,
Wittgenstein critica a solução dada ao paradoxo pela teoria dos tipos.
Analogamente à forma lógica da qual nada podemos dizer, Wittgenstein
parte do pressuposto de que “na sintaxe lógica, o significado de um sinal
nunca pode desempenhar papel algum; ela deve poder estabelecer-se sem
que se fale do significado de qualquer sinal, ela pode pressupor apenas a
descrição das expressões”. (Tract. 3.33). Assim, o autor do Tractatus conclui
que, na “teoria dos tipos de Russell: o erro de Russell revela-se no fato de
ter precisado falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras nota-
cionais” (Tract. 3.331). Portanto, Russell teria ferido o princípio central da
forma lógica. “Nenhuma proposição pode enunciar algo sobre si mesma,
pois o sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo (isso é toda
a ‘teoria dos tipos’)” (Tract. 3.332). Wittgenstein explicita essa posição em
termos da notação lógica ao asseverar que
Uma função não pode ser seu próprio argumento, porque o sinal da
função já contém o protótipo de seu argumento e não pode conter a
si próprio. Suponhamos, pois, que a função F(fx) pudesse ser o seu
próprio argumento; haveria, nesse caso, uma proposição “F(F(fx))”
e nela a função externa F e a função interna F devem ter significados
diferentes; pois a interna tem a forma (fx) e a externa, a forma ψ(
(fx)). Ambas as funções tem em comum apenas a letra “F”, que sozi-

249
nha, porém, não designa nada. isso fica claro no momento em que, ao
invés de “F(Fu)”, escrevemos “( ):F( u). u = Fu”. Liquida-se assim o
paradoxo de Russell (Tract. 3.333).

Contudo, mais do que uma reflexão lógica, Wittgenstein entende que


o paradoxo aponta para uma dimensão metafísica e ética. Dito de outro
modo, se, para alguns, o paradoxo era uma deficiência da essência lógica
que comprometeria a lógica, o fundamento da matemática ou da própria
racionalidade, no Tractatus, ele seria a possibilidade de vislumbrar a essência
transcendental da lógica – que se mostra –, ainda que o preço a pagar fosse
a limitação da nossa linguagem ao estipular o que podemos e o que não
podemos falar. É célebre o paradoxo da escada na conclusão do Tractatus:
Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba
por reconhecê-las como contrassensos, após ter escalado através delas
– por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada
após ter subido por ela. Deve sobrepujar essas proposições, e então verá
o mundo corretamente (Tract. 6.54).

Em suma, a lógica fundamenta a linguagem que, por sua vez, reflete o


mundo, e na medida em que não podemos nada falar sobre a essência lógica
(forma lógica) – ainda que essa forma lógica fundamente nossa linguagem
– nossa linguagem se mostra limitada e esse limite termina por ser o limite
de nosso mundo (Tract. 5.6). O limite do nosso mundo é o limite do que
podemos falar, ainda que possa haver algo além que apenas se mostra. Assim,
Wittgenstein conclui o Tractatus com a afirmação síntese de sua obra: “sobre
aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (Tract. 7). Consequentemente, a
interpretação de Wittgenstein do paradoxo da escada sugere que deva existir
algo transcendental (lógica, ética, místico) que apenas se mostra, mas sobre
o qual não podemos nada falar.
Notamos aqui que o jovem Wittgenstein já tinha, pelo menos em parte,
concebido algo semelhante ao que posteriormente foi formulado por Husserl
e inspirou Koyré, isto é, a concepção de que o paradoxo é uma estrutura “sem
sentido”, é uma “noção vazia”. Koyré e Wittgenstein viam nessa interpretação
do paradoxo a possibilidade de continuar afirmando a essência lógica ou o
realismo matemático. Portanto, eles se posicionaram de modo contrário àque-

250
les que viam no paradoxo a falência da racionalidade. Entretanto, enquanto
Koyré sustenta essa concepção ao longo de toda a sua vida, como veremos
à frente, Wittgenstein muda radicalmente de posição. Dessa forma, após
abordar a importância que as questões trazidas pelo círculo lógico-matemá-
tico (paradoxos, fundamentação da lógica e da matemática, racionalidade,
etc.) acarretaram nas obras de juventude de Koyré e Wittgenstein, tratarei,
na próxima seção, do internalismo de Koyré herdado, pelo menos em parte,
do realismo matemático inerente a esse círculo matemático.

O internalismo de Koyré
Se o Koyré preocupado com questões de lógica e paradoxos é relati-
vamente pouco conhecido, de meados dos anos 1930 em diante, começará
a surgir a parte de sua obra mais conhecida, isto é, suas extraordinárias
contribuições sobre a história do pensamento científico, que farão dele um
dos mais proeminentes historiadores da ciência do século XX. A concepção
de história da ciência formulada por Koyré guardará uma estreita relação
com as suas convicções sobre os fundamentos da matemática, presentes em
sua juventude. Em outras palavras, da mesma forma que, para ele, havia um
realismo matemático que fundamentava a lógica e a matemática, também a
história da ciência deveria ser feita com esse pressuposto. A ciência moderna
não se fez pelo mero acúmulo de experiências, mas pelas ideias, pelo primado
da teoria que se orienta por um realismo matemático. Assim sintetiza Koyré
sua concepção filosófica subjacente à ciência moderna: “a atitude filosófica
que, em última instância, bem se prova não é a do empirismo positivista
ou pragmatista, mas ao contrário, a do realismo matemático. Em resumo,
não a de Bacon ou Comte, mas a de Descarte, Galileu e Platão” (Koyré,
1971 [1961]:267). Ao longo de toda a sua obra em história da ciência, Koyré
defenderá apaixonadamente a perspectiva de que a ciência é, sobretudo,
teoria. Em um dos seus últimos textos, escrito em 1961, ainda defende o
primado da teoria sobre a prática e assume o idealismo subjacente a essa
concepção (Koyré, 1973 [1966]:399).
Ao introduzir essa nova perspectiva de análise das ideias científicas,
Koyré criou uma alternativa ao forte positivismo presente na história da

251
ciência, que prevalecia até então. Em grande medida, o pano de fundo dessa
nova concepção de história da ciência foi o realismo matemático ou o pla-
tonismo advogado por Koyré. (Koyré, 1973 [1966]:187-188, 191, 193) Ainda
que as circunstâncias que o levaram para a história da ciência (pensamento
religioso, filosófico, etc.) e suas possíveis influências (Platão, Descartes,
Hegel, Husserl, etc.) tenham sido muito variadas, a defesa de um realismo
matemático certamente é um dos elementos-chave na sua concepção de
história da ciência. Mais que isso, esse é um importante aspecto na compo-
sição de seu internalismo. Talvez, esse realismo matemático ou platonismo
subjacente à obra de Koyré seja exatamente o elo que dialoga com todas as
suas demais influências.
Ao atribuir uma posição determinante ao papel das ideias na constituição
da ciência, Koyré minimizou aspectos sociais, históricos e tecnológicos en-
volvidos na construção do conhecimento científico. A afirmação do realismo
matemático como orientador das ideias científicas e essa compreensão dos
aspectos sociais e tecnológicos como secundários na produção da ciência
caracterizaram o seu internalismo. Como assinalado, contrariamente à visão
de Koyré, no mesmo período, autores como zilsel, Hessen, Grossmann e
Merton produziram diferentes interpretações da ciência moderna, formula-
das prioritariamente a partir da afirmação desses fatores históricos, sociais
e tecnológicos, posições que posteriormente seriam caracterizadas como
externalismo. Portanto, diferentemente de Koyré, esses autores procuraram
compreender a construção do conhecimento científico como a relação entre
a sociedade e a natureza em um tempo histórico específico. Com maior ou
menor ênfase, esses autores consideravam as interações sociais e históricas
– nas quais se configuram os diferentes usos das técnicas e das práticas
científicas – como algo determinante na estruturação da ciência moderna.
Entretanto, essa tese sociológica baseada no desenvolvimento prático e
tecnológico do conhecimento, em um contexto social e econômico de início
da modernidade, encontrou dificuldades para enfrentar as críticas de Koyré
quando ele, enfaticamente, afirma pontos como: “se o interesse prático fosse
a condição necessária e suficiente do desenvolvimento da ciência experi-
mental – na nossa concepção dessa palavra – esta ciência teria sido criada

252
mil anos antes (...) pelos engenheiros do império romano, senão pelos da
república romana” (Koyré, 1973 [1966]:75).
Koyré caracteriza o pensamento moderno como um novo “estilo de
pensamento”, uma revolução ou uma “mutação” no pensamento (Koyré, 1973
[1966]:18). Para ele, a ciência está no epicentro dessa mudança. A revolução
científica seria um evento absolutamente extraordinário. Contudo, ainda
assim a ciência é essencialmente teoria (theoria). Esta capacidade teórica
interpretativa do mundo não está baseada em uma coleção de fatos, mas no
entendimento das leis universais que são estritamente matemáticas. O uso
da linguagem matemática para compreender a natureza revela-nos o mundo
racional da precisão contra o “mundo do mais ou menos” da experiência
(Koyré, 1971 [1961]:341-362). O método experimental implica, sobretudo,
no uso da razão sobre a experiência. Caracteriza-se, assim, o primado da
teoria sobre os fatos, práticas e técnicas. Com efeito, mesmo a lei de inércia
teria se dado a partir do desenvolvimento de ideias e não do acúmulo de
experiências. Os gregos caracterizaram o repouso como a condição primária
do ser. Os modernos, partindo dessa ideia, complementaram-na colocando
o movimento no mesmo nível ontológico (Koyré, 1973 [1966]:185). Essa
equiparação ontológica entre repouso e movimento permitiu criar a com-
preensão da máquina do mundo, isto é, a mecânica clássica. Assim, para
Koyré, isso se deu muito mais por haver conexões entre as ideias de Platão
e Galileu (Koyré, 1973 [1966]:167-195) do que pelo fato de Galileu procurar
resolver problemas de balística no arsenal.
Koyré não estabelece uma crítica individualizada a cada um desses
historiadores de perspectiva social, mas, em diferentes oportunidades cri-
tica as concepções que atribuem aos artesãos-engenheiros, às cidades, às
criticas à tradição, etc., os elementos centrais da formação da ciência mo-
derna. Reproduzirei uma passagem de Koyré que, embora longa, sintetiza
sua crítica a esses autores e, ao mesmo tempo, reforça sua própria posição:
Alguns insistem no papel da experiência e da experimentação na ciência
nova, a luta contra o saber livresco, a nova fé do homem moderno em
si mesmo, em sua capacidade de descobrir a verdade por seus próprios
meios, pelo exercício de seus sentidos e de sua inteligência, fé que ex-

253
primiram com tanta força Bacon e Descartes se opondo à crença que
prevalecia até então no valor supremo e esmagador da tradição e da
autoridade consagrada. Outros sublinham a atitude prática do homem
moderno que se volta contra a vita contemplativa que a idade média e a
antiguidade consideravam, alega-se, como o apogeu da vida humana,
para se voltar para a vita activa, operativa, como Bacon a chamava ou
dizia Descartes, uma ciência que faria o homem senhor e possuidor da
natureza. A ciência nova, somos por vezes informados, é a ciência do
artesão e do engenheiro, do trabalhador comerciante, empreendedor
e calculador, em suma, da classe burguesa ascendente na sociedade
moderna (Koyré, 1968:28-29).

Uma vez exposta essa síntese das teses sociológicas para o advento
da ciência moderna, Koyré reconhece que elas são parcialmente corretas,
mas insatisfatórias. Em outras palavras, reconhece que elas são “condi-
ções necessárias”, mas não “condições suficientes” para a construção da
ciência moderna.
Existe certamente verdade nessas descrições e explicações; é claro que
a crença da ciência moderna pressupõe as cidades; é evidente que o
desenvolvimento das armas de fogo, sobretudo o da artilharia, chamou
atenção sobre os problemas de balística; que a navegação, sobretudo para
a América e as Índias, favoreceu a construção de relógios etc.; contudo,
devo reconhecer que essas explicações não me parecem satisfatórias.
Não sei o que a scientia ativa teve a ver com o desenvolvimento do
cálculo, nem a ascensão da burguesia com a astronomia copernicana
ou kepleriana. Quanto à experiência e à experimentação – duas coisas
que devemos não apenas distinguir, mas mesmo opor uma à outra
– estou convencido de que a ascensão e o crescimento da ciência ex-
perimental não é a fonte, mas, bem ao contrário, o resultado da nova
concepção teórica ou, antes, metafísica da natureza que forma o con-
teúdo da revolução científica do século XVii, conteúdo que devemos
compreender antes de tentar a explicação (seja ela qual for) deste fato
histórico (Koyré, 1968:28-29).

254
Enfim, para Koyré, a revolução cientifica não é derivada dos fatos,
técnicas, experimentos, aspectos históricos e sociais. Mesmo que essas
possam ser condições necessárias, a emergência da ciência moderna, em
última instância, é antes de tudo, uma mudança no pensamento, uma ati-
tude metafísica. Entretanto, ainda que afirme essa perspectiva, ele não se
descuidou de examinar exaustivamente a questão da tecnologia e mesmo os
aspectos centrais da tese sociológica. Em especial, nos artigos de 1948, “Les
philosophes et la machine” [Os filósofos e a máquina] e “Du monde de l’
“à-peu-près” à l’univers de la précision” [Do mundo do ‘mais ou menos’ ao
universo da precisão], Koyré tratou o problema da técnica e da concepção
psicossociológica, como ele denomina, de modo mais direto, para consolidar
sua afirmação de que a ciência é teoria. É o resultado de “uma mudança de
atitude metafísica” (Koyré, 1966 [1939]:13) e não propriamente do desenvol-
vimento social e tecnológico. Assim, afirma que é “incontestável, mesmo
impossível, como acredito, dar uma explicação sociológica do nascimento
do pensamento científico, ou à aparição de grandes gênios que revoluciona-
ram o desenvolvimento da ciência – Siracusa não explica Arquimedes, não
mais que Pádua ou Florença explicam Galileu” (Koyré, 1971 [1961]:323-324).
Para combater as teses sociológicas que afirmam o destacado papel
dos fatores sociais e tecnológicos na fundação da ciência moderna, Koyré
formula uma série de argumentos, embora reconhecendo que essa questão
não parece ter uma solução satisfatória (Koyré, 1971 [1961]:341). Sempre
afirmando o primado das ideias científicas, argumenta que uma solução (de
conveniência) mostra-nos que a tecnologia apenas deixou de ser técnica e
passou a ser tecnologia com o advento da ciência. Portanto, a ciência foi um
evento anterior à tecnologia. Seria impossível o surgimento da tecnologia sem
o desenvolvimento da ciência, ainda que, naturalmente, haja conexão entre a
história da técnica e do pensamento intelectual (Koyré, 1971 [1961]:345). Em
outras palavras, a história da técnica é conexa à da ciência e, certamente, a
ciência se aproveitou da técnica, mas a ciência não foi criada por técnicos e
engenheiros (Koyré, 1966 [1939]:11, 13). Na Grécia, a técnica era rudimentar
e a física inexistente. Após a modernidade ter criado a física abriram-se as
condições para o surgimento da tecnologia e, por consequência, para os
impactos tecnológicos daí advindos.

255
À primeira vista, segundo Koyré, o relógio, por exemplo, parece-nos
meramente um objeto tecnológico, mas, por traz dele, existe toda uma
concepção científica (e mesmo cultural) que foi criada antes do relógio
em si. Portanto, a criação do relógio deve muito mais a Galileu, Huygens
e Hooke do que a técnicos, ainda que os relojoeiros tenham sido exímios
construtores desse artefato, que se tornou presente na vida cotidiana. isto
nos mostra que “um objeto teórico pode tornar-se objeto prático” (Koyré,
1961 [1971]:357). A própria mudança do tempo natural para o tempo artifi-
cial do relógio seria, antes de técnica, uma mudança cultural (Koyré, 1961
[1971]:354). Da mesma forma, o fabricante de luneta é um artesão e não um
óptico. Assim conclui Koyré sobre “a função própria do instrumento que,
nele mesmo, não é um prolongamento do sentido, mas, na acepção mais
forte e mais literal do termo, é a encarnação do espírito, materialização do
pensamento” (Koyré, 1961 [1971]:352).
Dessa forma, parodiando o seu próprio título, “Les philosophes et la
machine”, poderíamos dizer que Koyré caracteriza a figura do “filósofo”
como aquele que se opõe às “máquinas” e às “técnicas” entendidas pelos
historiadores de perspectiva social como primeira força motriz e símbolo
de toda uma transformação histórica, social e epistemológica no coração
da ciência moderna. Em síntese, ainda que a ciência moderna tenha sido
revolucionária, para Koyré, a força motriz dessa revolução não seria os
aspectos sociais e tecnológicos, mas, ao contrário, esses aspectos seriam
derivados de mudanças teóricas, influenciadas pela filosofia (Koyré, 1971
[1961]:255-256) e pela religião.
Ao afirmar esse importante papel da teoria na história da ciência – inse-
rido no quadro mais amplo das concepções metafísicas –, Koyré compreende
que há um entrelaçamento entre ciência, religião (teologia) e filosofia (me-
tafísica) formando, assim, uma “unidade do pensamento” humano (Koyré,
1973 [1966]:11). Não são as técnicas e os comportamentos sociais que cons-
troem o estilo de pensamento de uma época, mas as convicções metafísicas,
as ideias religiosas, filosóficas e científicas. Em síntese, Koyré caracteriza
seu internalismo afirmando o realismo matemático, a atitude metafísica e
o primado da teoria sobre a experiência, a prática e a tecnologia. Tanto a
experimentação quanto a tecnologia já seriam frutos dessa condição teórica,

256
mas não o contrário. Entretanto, ao sustentar a unidade de pensamento entre
ciência, filosofia e religião, isto é, ao afirmar que a ciência tem interfaces
com outras áreas – além de ainda se preocupar em analisar detalhadamente
os aspectos sociais e tecnológicos envolvidos no processo de produção da
ciência – Koyré mostrou-se como alguém que não pode ser caracterizado
como um mero internalista.10
Na medida em que Koyré afirma uma “unidade de pensamento” (ciência,
religião e filosofia) que garante a autonomia das ideias cientificas, mas deixa
de fora os aspectos sociais e tecnológicos, na perspectiva pragmática de
Wittgenstein, emerge uma importante questão na superação do internalismo
de Koyré: onde nascem essas ideias que compõem a unidade de pensamento?
Não seriam exatamente das práticas sociais? Como incorporar os contextos
sociais como peça efetiva na construção da ciência sem perder a autonomia
da ciência? Com efeito, na próxima seção, abordarei os aspectos centrais da
pragmática da linguagem de Wittgenstein e, a partir deles, analisarei essas
questões que emergem do internalismo de Koyré.

Wittgenstein e a gramática da ciência


Entre os anos trinta e quarenta, enquanto Koyré desenvolve sua his-
tória da ciência e ainda aborda o problema do paradoxo tendo como pano
de fundo o realismo matemático, Wittgenstein elabora uma nova filosofia
cuja característica é opor-se fortemente ao realismo matemático e à me-
tafísica, que ele próprio afirmara na juventude. Em sua obra de maturida-
de, sobretudo representada pelas Investigações, Wittgenstein reconsidera

10. Baseado nessas premissas, Elkana (1987) chegou mesmo a afirmar que, ao mostrar muitos
dos aspectos sociais que dão contorno à história da ciência, Koyré teria sido um dos “fun-
dadores da sociologia da ciência”, em que pese todas as suas fortes teses epistemológicas na
defesa do realismo matemático e na afirmação preponderante das teorias na composição
da ciência. Por sua vez, Stump acredita que, ainda que a tese de Elkana lhe pareça pouco
convincente (Stump, 2001:256), entender Koyré baseado apenas em seu platonismo seria um
equívoco. Na medida em que o autor do Estudos Newtonianos está preocupado com a unidade
de pensamento entre ciência, filosofia e religião, talvez fosse melhor compreendê-lo como
hegeliano (Stump, 2001:257). Entretanto, ainda que seja possível aceitar a tese de Stump, o
internalismo de Koyré ainda não estaria a salvo, isto é, ainda teríamos a crítica de Koyré ao
papel da tecnologia e às influências sociais como elementos determinantes na construção
da ciência. Enfim, ainda teríamos a rígida separação entre o “filósofo e a máquina”.

257
sua concepção de linguagem, de lógica, de matemática e dos paradoxos
defendidas anteriormente por ele no Tractatus. Abordar a linguagem na
perspectiva do logicismo seria agora uma atitude vista como reducionista
perante as muitas funções da linguagem (iF§ 23). Mais ainda, acreditar na
existência dessa essência lógica como se ela fosse o mais puro e forte cris-
tal – enquanto algo transcendental –, seria uma ilusão (iF§ 97). Assim, a
partir dessa crítica, Wittgenstein formula uma nova filosofia da linguagem,
em suas Investigações. No escopo dessa nova filosofia, ele irá também ter
um novo entendimento do funcionamento da matemática, em especial,
em seu livro Remarks on the foundation of mathematics. Por consequência,
sua segunda filosofia pode ser usada como uma nova forma de entender
o funcionamento da própria racionalidade científica. Esse novo modelo
wittgensteiniano de racionalidade científica está baseado em suas noções
de gramática e pragmática da linguagem.
Portanto, ainda que o autor das Investigações não tenha refletido prima-
riamente sobre a ciência, mas sobre a linguagem, encontramos elementos
que podem ajudar-nos a estabelecer uma teoria da ciência para responder os
vários problemas de natureza epistemológica. Para o segundo Wittgenstein,
a linguagem não é mais vista essencialmente como uma “representação” do
mundo, mas, mais que isso, como uma “interação” com o mundo. Sua nova
abordagem pragmática baseia-se nas noções de “significado como uso” e
“jogos de linguagem”. Segundo ele, os usos que fazemos da linguagem em
diferentes contextos, situações e eventos permitem os significados das expres-
sões, isto é, “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (iF § 43).
Este aspecto pragmático presente no uso diário que fazemos de expressões
nessas diferentes situações e contextos em que elas aparecem conduziu
Wittgenstein a formular a noção de “jogos de linguagem” (Sprachspiele).
Esta noção envolve não só palavras, mas também as atividades com que
essas expressões estão interligadas (iF § 7). Assim como algumas caracte-
rísticas aparecem e desaparecem de um jogo para outro, o mesmo ocorre
entre os jogos de linguagem. Nos múltiplos e variados jogos de linguagem,
as únicas conexões que eles possuem são como que as similaridades entre
os membros de uma família. Os jogos de linguagem são similares uns com

258
os outros de variadas formas, e é devido a essas similaridades ou semelhan-
ças de família (Familienänhlichkeiten) que eles são chamados de jogos de
linguagem (iF §§ 65-7).
No entanto, embora o uso de uma palavra em um jogo de linguagem
forneça o seu significado, essa não é uma prática indiscriminada. Ainda
que relativamente livre, o uso é regido por regras que distinguem o uso
correto do uso incorreto das palavras nos diferentes contextos. O conjunto
de regras compõe a gramática. Com efeito, a gramática é constituída como
um conjunto de regras que é formado a partir dos múltiplos e variados jogos
de linguagem. Estas regras não são apenas regras linguísticas, mas também
regras pragmáticas, isto é, elas envolvem ações (iF § 7). No conjunto de tais
regras há um aspecto dinâmico, o que cria um fluxo contínuo de múltiplas
conexões estabelecendo a gramática. Para além dos aspectos sintáticos e se-
mânticos da gramática – como ocorria no Tractatus –, aspectos pragmáticos
também são incorporados, já que a gramática necessariamente emerge das
práticas sociais. Uma regra só pode ser eficaz enquanto regra na medida em
que se insere na práxis social. A gramática é um produto social. Da mesma
maneira que o uso afeta uma regra, a regra determina se o uso está correto
ou não. No entanto, como a gramática é um conjunto de regras que está
em aberto, novas regras podem ser adicionadas ou velhas regras alteradas.
A noção de gramática no segundo Wittgenstein tem algumas caracterís-
ticas centrais das quais, possivelmente, a mais importante é a de considerar
a regra como um produto da práxis social. Com base nesse ponto, segue-se
que a regra é uma convenção social que surge da prática social e, portanto,
poderia ser diferente se essa práxis fosse outra (ou poderia ser mudada de uma
sociedade – ou forma de vida – para outra). A regra como uma “invenção”
ou uma criação social não reflete nenhum tipo de essência transcendental.
Ela é uma criação “arbitrária” e, nesse sentido, é uma “invenção”. No entanto,
a regra não pode ser completamente arbitrária porque ela deve manter a
sua coerência com todas as outras regras e práticas, isto é, com o restante da
gramática como um todo, pois “se o que é regra se torna exceção e a exceção,
regra; ou se as duas se tornassem fenômenos de frequência mais ou menos
igual – então nossos jogos de linguagens normais perderiam seu sentido”

259
(iF § 142). Portanto, as regras vêm de nossos “padrões” de comportamento,
de nossos hábitos, costumes e instituições (iF §§ 142, 199, 202, 226, 227).
Quando entendemos a regra como o produto de um jogo de linguagem,
podemos concluir pelo caráter operante da regra. Seguir uma regra é uma
operação – este é o caráter pragmático da regra. “Compreender uma lin-
guagem significa dominar uma técnica” (iF § 199). Este não é um processo
mental isolado. “‘Seguir a regra’ é uma práxis. E acreditar seguir a regra não
é seguir a regra, daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque,
senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra” (iF § 202).
Nas Investigações, Wittgenstein distingue dois níveis da gramática: A
“gramática de superfície” e a “gramática profunda” (iF § 664). A gramática
de superfície aborda as características específicas de expressões sem ter em
conta o contexto gramatical geral em que essas expressões são geradas. Por
outro lado, a gramática profunda (poderíamos dizer, a gramática panorâmica)
é uma gramática na qual as regras do uso da linguagem são engendradas
em sua relação com todo o conjunto de regras. Assim como em um jogo
de linguagem em cuja prática são geradas as várias expressões linguísticas
e seus significados, a gramática, enquanto somatória de múltiplos jogos de
linguagem, ao gerar significados gera racionalidade. Sendo mais abrangente,
a gramática profunda leva em consideração não apenas os aspectos especí-
ficos de um determinado jogo de linguagem, mas tudo o que está envolvido
na prática da linguagem: usos, ações, produção de regras, enfim, múltiplos
jogos de linguagem. A racionalidade é produto desse processo.
Talvez o sentido geral da noção de gramática em Wittgenstein pudesse
ser expresso da seguinte forma: a lógica está expressa nas regras da gramá-
tica. Cada possibilidade lógica é gramatical. Nas Investigações, a gramática
possibilita a lógica. Mais que isso, a gramática é a própria lógica. A gramá-
tica nos diz o que é lógico, isto é, o que está dentro e o que está fora dos
limites do sentido. “Portanto, depende inteiramente de nossa gramática o
que é (logicamente) possível e o que não é” (iF § 520). Como consequência
mais imediata, a racionalidade é, antes de tudo, gramatical. A gramática é,
portanto, o conjunto de todas as normas erigidas a partir da interação entre
a linguagem e as ações de um modo regular, determinando aí o que é racio-
nal – lógico – e o que não é. Assim, a noção de gramática de Wittgenstein é

260
uma noção central na formulação de sua nova racionalidade. A gramática
aparece como um tipo peculiar de sistema que tem como um dos seus
principais aspectos uma perspectiva holística, embora não seja um sistema
metafísico totalizante.
Podemos estender essa concepção de racionalidade linguística de
Wittgenstein para a ciência. A ciência em seu modus operandi também é
um tipo de gramática. Esta “gramática da ciência” – como uma caracteri-
zação da racionalidade científica – pode ser concebida como uma teoria
da ciência. Ao contrário da racionalidade científica moderna – com base
na ideia de mathesis universalis – essa nova noção de racionalidade não se
constitui a partir de uma estrutura hierárquica ou de uma ordem metafí-
sica a priori. Pelo contrário, ela é vista como uma “teia”, uma rede flexível
e multidirecional que se estende por meio de semelhanças de família (iF
§§ 67, 77, 108). Não é totalizante porque, além de não ter um fundamento
último, não se propõe a fornecer “uma” inteligibilidade total e completa do
mundo, como se todas as visões de mundo devessem convergir umas para
as outras. No entanto, é holística, pois apresenta uma visão panorâmica
(Übersichtlichkeit) do mundo, constituindo um tipo de sistema aberto e
descentralizado no qual a racionalidade não está baseada em nenhum lugar
especial privilegiado, mas, em vez disso, é configurada a partir das múltiplas
relações dentro do sistema. Embora seja um sistema autônomo, a gramática
não é fechada como em um sistema de relativismo extremo, uma vez que
ela permanece aberta para a interação com outros sistemas de pensamento
e ações (outras gramáticas).
Não é apenas através da possibilidade de utilizar o conceito de gramática
em muitas áreas (gramática de cores, usos), mas também através da associação
da gramática com a noção de instituições formulada pelo filósofo austríaco –
instituições do dinheiro (iF § 584); da escrita e leitura (iF § 156); do sistema
de medidas (iF § 50), etc. – que podemos pensar a própria instituição da
ciência como uma gramática, isto é, como uma instituição com um con-
junto de regras e práticas que encerram em si sua racionalidade, ainda que
esteja aberta para se conectar com outras gramáticas. Em outras palavras,
como a gramática, a ciência tem os seus valores em si, mesmo que ela tenha
“semelhanças de família” com outras gramáticas (política, artes, religião).

261
Embora Wittgenstein não tenha sido propriamente um filosofo da
ciência, ele aplicou a sua segunda filosofia na compreensão da matemática
constituindo, por assim dizer, uma “gramática da matemática”, que segue
os mesmos critérios de sua concepção de gramática e pragmática da lin-
guagem. Com efeito, para Wittgenstein, na matemática o “critério de ver-
dade” é estabelecido não mais em termos do que seja verdadeiro ou falso,
mas do que está ou não de acordo com a regra. Esse aspecto é importante
na crítica ao realismo matemático ou à concepção de uma matemática a
priori, ou essencialista. Fazer matemática não é descobrir essências, mas
operar com regras, tendo como parâmetro o conjunto de todas as regras do
sistema. Assim, grande parte do esforço de Wittgenstein, em suas Remarks
on the foundation of mathematics, é mostrar que a busca de uma essência
matemática foi uma ilusão que povoou a cabeça de filósofos e matemáticos.
“O matemático é um inventor, não um descobridor” (Wittgenstein, 1956:47).
Portanto, diferentemente de Koyré, para o segundo Wittgenstein, o
que permite a matemática funcionar não é nenhum tipo de essência me-
tafísica ou realismo matemático. Na medida em que o cálculo matemático
é um “operar com regras” ele é um tipo específico de jogo de linguagem.
As inferências de um cálculo matemático são estabelecidas pelas regras,
pelos jogos de linguagem próprios à matemática. “As regras de inferência
lógica são regras do jogo de linguagem” (Wittgenstein, 1956, 181). Medir, seja
como ato de medição ou referência para a própria medição, é produto de
uma instituição (iF§§ 50, 199, 380) (Wittgenstein, 1956:80), de uma forma
de vida, do mesmo modo que “se não existisse a técnica de jogar xadrez,
eu não poderia ter a intenção de jogar uma partida de xadrez” (iF§ 337), se
não houvesse a técnica de medir – instituição –, não seria possível medir.
Enfim, em uma perspectiva wittgensteiniana, se não existisse a instituição
de fazer ciência, não seria possível fazer ciência.
A partir dessa nova perspectiva, Wittgenstein repensa antigos pro-
blemas, como o paradoxo de Russell e a teoria dos tipos. Agora, para ele,
o equívoco da teoria dos tipos de Russell, ou de qualquer metalinguagem,
está na tentativa de resolver os paradoxos lógicos partindo exclusivamente
dos aspectos formais e semânticos, ignorando a pragmática da linguagem.

262
A concepção de linguagem do Tractatus, na medida em que tinha a função
de representação como função privilegiada, não conseguiu lidar com a sua
autorreferência, acarretando a impossibilidade da linguagem de falar sobre
si mesma. Como um dos resultados disso, Wittgenstein convidou-nos ao
silêncio (Tract. 7). Contudo, essa impossibilidade não é exclusividade do
Tractatus, mas, de modo geral, é devida à dificuldade de uma concepção
descritiva ou representacionista em lidar com a sua autorreferência. Qualquer
proposição declarativa tem dificuldades em dizer algo sobre a sua forma
lógica ou sua relação com os fatos. Assim, a solução desse impasse parece
encontrar-se “fora” da imagem do mundo descrita ou representada pela
proposição declarativa, isto é, fora da própria representação do mundo, uma
vez que essa proposição declarativa não consegue lidar com a referência a
si própria, conduzindo a paradoxos, antinomias, etc.
De acordo com Wittgenstein, para fugir desses paradoxos e antinomias
é preciso romper com a perspectiva da linguagem como representação e
perceber as múltiplas funções da pragmática da linguagem. Antinomias e
paradoxos impostos à razão “dissolvem-se” quando vistos em uma perspectiva
pragmática, isto é, quando se mostra sua completa inserção nos jogos de
linguagem (práticas sociais) e em sua gramática (regras que regem as práticas
sociais). Quando Aquiles anda, ele alcança a tartaruga “dissolvendo”, assim, o
paradoxo que nos atordoava. Enfim, “o paradoxo desaparece apenas quando
rompemos radicalmente com a ideia de que a linguagem funciona sempre
de um modo; serve sempre ao mesmo objetivo: transmitir pensamentos –
sejam esses pensamentos sobre casas, dores, bem e mal, ou o que seja” (iF§
304). É preciso romper essa barreira semântica e formal e incorporar os
aspectos pragmáticos. Como vimos, se Wittgenstein e Koyré inicialmente
defendiam posições similares, passaram a se distanciar radicalmente em
suas concepções. Koyré jamais aceitou que a questão do paradoxo fosse re-
solvida em uma perspectiva pragmática. O fato de Aquiles andar e alcançar
a tartaruga, para ele, era indiferente, já que a questão formal (matemática)
continuaria sem ser resolvida. Enfim, Koyré jamais aceitaria a matemática
como uma invenção, uma construção criada no “solo áspero” das práticas
sociais. No entanto, veremos como essa gramática da ciência pode ser usada
para compreender o internalismo de Koyré.

263
Internalismo e gramática da ciência
O internalismo de Koyré angariou muitas críticas, mas também fervo-
rosos adeptos. Certamente que o grande volume de trabalhos publicados
a partir de abordagens sociais da ciência – sobretudo após A estrutura das
revoluções científicas de Kuhn – muito contribuiu para a desvalorização da
perspectiva epistemológica defendida por Koyré, em que pese todo o valor
de suas abordagens históricas. Ainda assim, Koyré continuou a ser lido
por sua contribuição histórica sobre a ciência, mas pouco discutido pela
epistemologia aí subjacente. Koyré passou simplesmente a ser sinônimo de
internalismo e, por sua vez, o internalismo sinônimo de uma epistemologia
fossilizada. Entretanto, os que defendem a concepção de que teorias e leis
científicas estão em um diálogo direto com a natureza e que os aspectos
sociais são secundários nesse processo, ainda encontram no internalismo
de Koyré uma forte referência. Sobretudo entre os cientistas, desejosos ou
não, conscientes ou não de reflexões epistemológicas, a ciência é entendida
como o conhecimento que tem a exclusividade da produção de objetivi-
dade – ou verdade, conforme prefere Koyré, (Koyré, 1973 [1966]:399) – e
isso seria a principal justificativa para a afirmação do internalismo. Nem
sempre é claro para esse cientista em que medida seu fazer é perpassado
por um condicionante histórico e social porque, para ele, a confirmação de
sua teoria estaria na objetividade presente na bancada de seu laboratório.
O cientista que ainda tem a referência do internalismo em sua prática
científica demanda se não uma independência da ciência frente aos fatores
sociais, pelo menos uma autonomia científica diante desses fatores. Contudo,
se parece relativamente fácil refutar os elementos metafísicos presentes
no internalismo de Koyré, torna-se difícil compreender como a ciência
segue seu próprio caminho, suas ideias e teorias com autonomia (embora
não independência) desses fatores sociais. Parece, assim, que ao refutar o
internalismo, de modo puro e simples, corremos o risco de jogar fora da
bacia a água suja e o bebê. Talvez, esse internalismo presente no imaginário
científico, em uma época em que a ciência é tão marcada por fatores sociais,
pudesse ser traduzido da seguinte forma: como compreender que a ciência,
mesmo sendo um produto social – portanto, sujeita às influências externas –,
possui regras próprias de comportamento que lhe conferem autonomia

264
em relação a esses mesmos fatores sociais? Em outras palavras, ainda que,
diante das abordagens sociais da ciência em voga, seja difícil aceitar o in-
ternalismo assentado no realismo matemático ou em atitudes metafísicas,
isso não implica em dizer que a necessidade de compreender a ciência em
sua lógica “interna” não mais exista.
Assim, se, por um lado, a partir de Wittgenstein podemos ter boas
razões para ver a ciência como uma instituição, ou um tipo de gramática
que emerge das práticas sociais, por outro, o internalismo de Koyré, pelo
menos em parte, ainda parece ser atual na medida em que nos alerta para
a necessidade de pensarmos a autonomia da ciência com relação a essas
práticas sociais. Com efeito, mesmo que adormecida, como advertiu Shapin,
a questão do internalismo versus externalismo não parece ser uma questão
inteiramente resolvida (Shapin, 1992). Embora meu objetivo aqui não seja
abordar essa questão em toda a sua complexidade, mas compreender em
que sentido o internalismo de Koyré ainda nos coloca importantes pontos
não suficientemente esclarecidos nessa querela, reavaliarei alguns desses
pontos do internalismo à luz da “gramática da ciência”, como exposto na
seção anterior. O esforço é no sentido de esclarecer que os pressupostos
metafísicos de Koyré são, para Wittgenstein, pressupostos gramaticais ou
institucionais da ciência. Não se trata, assim, de estabelecer uma atitude
metafísica, mas de entender nossas “considerações gramaticais” (iF§ 90).
Por fim, analiso certa convergência entre internalismo e gramática da ciência
na questão da autonomia da ciência.
Pelo que foi abordado até aqui, podemos concluir que Koyré e Wittgenstein
tinham muito em comum em suas obras de juventude, mas o autor das
Investigações, ao abraçar uma perspectiva pragmática em sua obra de ma-
turidade, muito se distanciou de Koyré. Até em seus últimos textos, Koyré
reafirmou seu realismo matemático exatamente sobre a crítica do pragma-
tismo, “a atitude filosófica que, em última instância, bem se prova não é a do
empirismo positivista ou pragmatista, mas ao contrário, a do realismo mate-
mático” (Koyré, 1971 [1961]:267). Contrariamente, em sua segunda filosofia,
Wittgenstein defende uma completa inversão de perspectiva. Portanto, não se
trata aqui de “conciliar” a proposta de Koyré com o pragmatismo, mas utilizar
o pragmatismo para buscar equacionar impasses colocados pelo internalismo
de Koyré e “dissolvê-los” a partir da gramática da ciência.
265
O que Koyré entendeu como a emergência da ciência moderna, en-
quanto uma mudança do modo de pensar baseado em uma atitude me-
tafísica, Wittgenstein compreenderia como uma mudança no modo de
pensar possibilitado pela gramática e pela pragmática da linguagem de
uma forma de vida, isto é, pelas estruturas sociais de um dado contexto e
as práticas cognitivas aí engendradas. Enfim, a ciência moderna seria uma
gramática assentada em práticas sociais, em uma forma de vida. Contudo,
conhecimentos não se desenvolvem necessariamente em uma relação de
evolução ou progresso. Não existe um telos prefixado da gramática. Com
efeito, por essa perspectiva, a ciência não estaria pré-determinada a surgir
na modernidade, mas acabou por encontrar aí – e não em outro tempo ou
contexto – as “condições necessárias” e a partir delas estabeleceu as “con-
dições suficientes” para se efetivar.
A partir da perspectiva wittgensteiniana, podemos abordar a questão
colocada por Koyré do “por que engenheiros romanos não produziram a
ciência?”. Entretanto, antes de procurar responder questões como essa, é
preciso distinguir diferentes aspectos subentendidos nesse tipo de ques-
tão. Koyré está interessado em responder a um “porquê” metafísico e não
a um “porquê” histórico da emergência da ciência. Daí as suas críticas às
abordagens sociológicas. Para Koyré, esse “porquê” histórico apresenta as
condições necessárias, mas apenas o “porquê” metafísico forneceria as con-
dições suficientes. Para Wittgenstein, um porquê em termos metafísicos,
como pretendido por Koyré, seria uma ilusão gramatical (iF§ 110), uma
falta de compreensão da nossa linguagem (iF§ 111). Com efeito, a gramática
da ciência não pergunta pelo “porquê” metafísico, mas busca pelo “como”
epistemológico. Este “como” fornece as condições suficientes assentadas no
“porquê” histórico das condições necessárias.
Como sabemos, algumas sociedades preferiram dedicar-se mais ao
conhecimento mágico, religioso, à constituição de castas políticas e não
se interessaram por ciência, como salientou Koyré (1971 [1961]:324). Fazer
ciência não é uma meta a ser seguida a priori por nenhuma sociedade –
como pretendeu algumas leituras positivistas –, mas uma construção que se
estabeleceu a partir de necessidades, condições e interesses de dada sociedade
em certo contexto histórico. Nesse sentido, o fato da ciência ter se constituído

266
nos primórdios da modernidade é, sob certos aspectos, uma contingência
formada pelos condicionantes daquele contexto histórico.
Uma vez estabelecido um evento histórico – em suas variadas cir-
cunstâncias motivadoras ou condições necessárias – podemos analisá-lo
enquanto um (1) fenômeno histórico, procurando entender “por que” ele
se deu naquele tempo e espaço, mas também – para a perspectiva wittgens-
teiniana – enquanto um (2) fenômeno social, no qual podemos procurar
compreender “como” se deu ali a produção do conhecimento. O “porquê”
diz respeito às “condições necessárias” e o “como” às “condições suficien-
tes”. Assim, ao analisar o surgimento da ciência moderna e da tecnologia,
devemos procurar compreender não apenas o “porquê”, mas também o
“como” se deu a tessitura social e linguística (gramática) desse fenômeno.
Com efeito, vista pela pragmática da linguagem de Wittgenstein, a interação
entre teorias, ideias e práticas científicas em um contexto específico (forma
de vida) no início da modernidade – como abordadas pelos historiadores
de vertente social da ciência, por exemplo – possibilitou tanto a produção
de práticas, artefatos e produtos quanto a produção de linguagens e teorias,
uma vez que a própria linguagem (teoria) é também uma técnica (iF§ 199).
Desse modo, sobre o “porquê” dos aspectos históricos, uma perspectiva
wittgensteiniana, talvez, tivesse nada ou muito pouco a dizer. A pragmática
da linguagem não recai sobre o “porquê”, mas sobre o “como”, em termos
das práticas sociais, se dá esse processo de produção de conhecimento. Em
outras palavras, não se trata de justificar, em termos da gramática da ciência,
o porquê histórico que formou o desenho de macro eventos sociais, políticos,
econômicos, etc., que articularam as condições necessárias para a emer-
gência da ciência, mas compreender em que medida aquela sociedade, em
sua dinâmica de práticas sociais e cognitivas, produziu suas próprias regras
de constituição de seu conhecimento (gramática), ainda que esse processo
possa influir no desenho histórico e reciprocamente por ele ser influenciado.
Portanto, precisamos fazer essa distinção entre esses diferentes aspec-
tos da questão para compreendermos o que está em jogo em algumas das
importantes questões de Koyré sobre o nascimento da ciência e da tecno-
logia. Boa parte das questões colocadas por ele são, na realidade, questões
de um “porquê” metafísico e, assim, ele rechaça o “porquê” histórico que

267
pode oferecer respostas relacionadas às circunstâncias políticas, sociais,
econômicas, do contexto em que os eventos ocorreram. indaga Koyré: “por
que o pensamento técnico da antiguidade não se desenvolveu?”; “por que os
inventores da episteme não a aplicaram à práxis?”; “por que (...) a ciência
grega não desenvolveu uma tecnologia, já que formularam essa ideia?”
(Koyré, 1971 [1961]:338). Quanto ao “porquê” histórico, a abordagem psi-
cossociológica – criticada por Koyré – oferece respostas bem plausíveis,
ainda que essas não sejam necessariamente respostas epistemológicas que
visassem compreender “como” se engendrou a produção do conhecimento
naquele contexto. Certamente, existem fatores históricos que confluíram para
explicar o nascimento da técnica, da tecnologia e da ciência. As explicações
psicossociológicas propostas por Schuhl e Meyerson (Koyré, 1971 [1961]:318)
poderiam ser boas razões quando afirmam que a falta da tecnologia no
mundo antigo foi devida à presença do escravismo, do preconceito contra
o trabalho manual, da sociedade aristocrática, etc. Nas palavras de Koyré,
(...) a explicação psicossociológica nos afirma que, devido a razões
históricas e sociais determinadas, o sábio grego desprezou o trabalho
e as questões “mecânicas”; em outros termos, porque a ciência grega
não constituiu uma tecnologia, que a técnica antiga não passou certo
nível, relativamente primitivo, e subdesenvolvido no curso dos séculos
(Koyré, 1971 [1961]:337).

Em síntese, a tese sociológica que Koyré procurou refutar afirma que a


antiguidade não precisou de máquinas (Koyré, 1971 [1961]:308). interessado
no “porquê” metafísico, Koyré recusa essas explicações, pois elas não seriam
nem adequadas e nem satisfatórias. Koyré estaria certo em sua crítica se a
pretensão sociológica fosse responder ao “porquê” metafísico ou mesmo ao
“como” epistemológico, mas essas não eram as intenções dessa abordagem.
Elencar razões históricas pelas quais a antiguidade não criou a tecnologia
e nem a ciência experimental pode nos fornecer respostas plausíveis, mas
essas seriam sempre respostas pelo “porquê” histórico e não pelo “como”
esses conhecimentos surgiram. Ao desqualificar as respostas psicossocio-
lógicas, Koyré conclui que a Grécia não usou a tecnologia, mas apenas a
técnica, porque para criar a tecnologia era preciso antes criar a ciência, e

268
essa, apenas os modernos criaram. Em certo sentido, essa resposta de Koyré
está no âmbito da “gramática da ciência” inspirada em Wittgenstein e com
a qual podemos dizer que existem paralelos entre conhecimento científico
e tecnológico, pois ambos são produtos da mesma gramática. Certamente,
a tecnologia não poderia ser criada antes da ciência. Não podemos com-
preender ciência e tecnologia isoladamente, já que o sentido de ambas é
peculiar ao contexto da ciência moderna, na qual se desenvolveram con-
juntamente. A ciência moderna é um tipo de propriedade emergente que
surge da somatória destas duas formas de conhecimento: o saber prático e
o saber teórico. A gramática da ciência moderna mostra-nos exatamente o
modo “como” esses conhecimentos se institucionalizaram dentro de certo
contexto (forma de vida) propício para tal, ainda que essa gramática tenha
pouco a nos dizer sobre o “porquê” histórico disso ter ocorrido.
Quando a explicação sociológica abandona o “porquê” da dimensão
histórica e esboça uma possível resposta ao “como” as relações sociais con-
tribuíram para o nascimento da técnica, Koyré também não aceita essa res-
posta. Para ele, a partir de uma mera explicação sociológica, Siracusa jamais
poderia conceber Arquimedes, assim como Florença não conceberia Galileu
(Koyré, 1971 [1961]:323-324), pois, mesmo que as condições institucionais
“necessárias” para se produzir a ciência estivessem ai presentes, segundo
Koyré, estas ainda não seriam “condições suficientes”. Contudo, contraria-
mente à posição de Koyré, na perspectiva da gramática da ciência (que vai
além da abordagem psicossociológica), essas sociedades – ao produzirem
as estruturas institucionais que possibilitaram a existência desses pensado-
res – estabeleceram aí também as condições suficientes de formação desses
pensadores. Arquimedes e Galileu são frutos de suas respectivas sociedades.
Da mesma forma que Wittgenstein salienta que não se pode jogar xadrez
sem a instituição do jogo de xadrez, ou medir sem a instituição da medição,
seria impossível também fazer ciência ou filosofia sem a institucionalização
da ciência ou da filosofia. Mesmo com estruturas institucionais mínimas,
Siracusa e Florença produziram as condições de possibilidade (necessárias
e suficientes) de formação de seus pensadores através de dispositivos insti-
tucionais práticos e intelectuais (que para Wittgenstein são indissociáveis).
Eles seriam impensáveis em outros contextos; ou seriam outros pensadores.

269
É certo que, conforme salienta Koyré, algumas civilizações preferiram
um conhecimento mágico ou religioso (Koyré 1971 [1961]:324), não insti-
tuindo nenhum mecanismo que possibilitasse o advento de uma reflexão
crítica, filosófica ou científica, isto é, não criaram instituições necessárias
que permitissem algum tipo de reflexão científica. Nessas civilizações, a
ciência certamente não poderia surgir. Contudo, mesmo que, na sociedade
grega, o ideal da juventude não fosse alcançar o conhecimento, mas sim
obter o poder e o gozo (Koyré, 1971 [1961]:330), ainda assim foi esta mesma
sociedade grega que, diferentemente de outras, criou as condições de pro-
dução do conhecimento racional, que inventou a própria ideia de ciência,
muito embora esse não fosse um conhecimento disseminado para toda a
população da Grécia.
Mas em que medida, em uma perspectiva wittgensteiniana, as práticas
sociais são não apenas condições necessárias, mas também condições suficien-
tes? É certo que a ciência precisa dessas condições sociais necessárias para se
desenvolver (apenas em certas condições sociais valoriza-se o conhecimento,
criam-se escolas científicas, etc.), mas onde estariam as condições suficientes
para a formação da ciência? Vimos que, segundo Koyré, condições sociais
são necessárias, mas não são condições suficientes. Contudo, de acordo
com a ideia de gramática da ciência, mesmo a tese central de Koyré – que
defende o primado da teoria sobre a técnica ou a supremacia de Descartes
sobre Bacon – não pode ser concebida sem as profundas implicações das
condições sociais, também como condições suficientes. Koyré observa que
o empirismo baconiano fundamenta a ciência no registrar, classificar e co-
locar em ordem os fatos, mas “Descartes, por sua vez, tira uma conclusão
exatamente oposta, a saber, a de fazer penetrar a teoria na ação, isto é, da
possibilidade da conversão da inteligência teórica ao real, da possibilidade
tanto de uma tecnologia quanto de uma física” (Koyré, 1971 [1961]:346).
No entanto, ainda em uma perspectiva wittgensteiniana, a distinção entre
teoria e prática não seria tão nítida assim. Mesmo o aspecto mais teórico
de um conhecimento como, por exemplo, o filosófico, já seria sustentado
por esses condicionantes das práticas sociais. O próprio cogito cartesiano
seria um jogo de linguagem que se insere em uma instituição, a saber, a de

270
fazer filosofia (ou ciência). Descartes apenas pôde se encontrar na profunda
subjetividade de seu cogito porque ele lá entrou socialmente. Foi socializa-
do, educado conforme os princípios educacionais de La Flèche, nos quais
se inseriu na instituição do fazer filosofia e aprendeu as regras (gramática)
do jogo de linguagem do filosofar, a partir das quais criou a sua filosofia
da consciência.
Entretanto, uma atividade prática não se transforma espontaneamente
em uma atividade teórica, e Koyré está, em alguma medida, certo em dizer
que “não é do desenvolvimento espontâneo das artes industriais, por aque-
les que as exercem, é da conversão da teoria à prática que Descartes espera
os progressos que irão fazer do homem ‘mestre e possuidor da natureza’”
(Koyré, 1971 [1961]:346). Contudo, na medida em que, em uma perspectiva
wittgensteiniana, a teoria é uma orquestração gramatical que emerge do
“solo áspero” das práticas sociais, não haveria teoria sem esses condicio-
nantes sociais. Existe uma conexão entre o “saber fazer” técnico e o “saber
pensar” teórico, ainda que mediadas por muitos e complexos mecanismos
sociais e institucionais. A linguagem e as práticas sociais, como postos por
Wittgenstein, estão imbricadas nos jogos de linguagem (iF§ 7). Contudo,
Koyré reconhece que existe uma relação direta entre a técnica e a linguagem.
É possível, aliás, que a técnica, propriamente falando, não tenha origem
tanto ou quanto a linguagem: o homem sempre possuiu ferramentas, da
mesma forma que ele sempre possuiu a linguagem. Parece mesmo que o
homem foi sempre capaz de fabricar. É mesmo por isso que a definição
do homem pela linguagem (parole) pode opor-se a do trabalho: o ho-
mem enquanto homem seria essencialmente faber, fabricador de coisas,
fabricador de ferramentas (...). Poderia ser perguntado, no entanto, se
esta oposição é legítima, e se a linguagem (parole) e a ferramenta não
vão necessariamente em conjunto (Koyré, 1971 [1961]:316-317).

Ao analisar essas questões, Koyré está em diálogo com Lucien Febvre.


Entretanto, talvez, Febvre esteja muito mais próximo de Wittgenstein do que
de Koyré quando o historiador da escola dos annales sustenta a ideia de que
“a história da técnica está inseparavelmente ligada à história intelectual e não
pode dela ser separada” (Koyré 1971 [1961]:345). Mais ainda, segundo Febvre,

271
cada contexto tem a sua “ferramenta material e mental” (Outillage matériel
et mental). E eis aí um preceito totalmente de acordo com a perspectiva da
gramática da ciência de inspiração wittgensteiniana. As ferramentas mentais
e materiais são forjadas conjuntamente em um contexto. Assim, não apenas
práticas, mas a teoria que orienta essas práticas tende a ser construída parale-
lamente. Nesse sentido, Koyré está certo em afirmar que uma sociedade que
não desenvolve tecnologias também não desenvolve as linguagens (teorias)
que orientam os usos dessas tecnologias. “É igualmente verdade que não são
apenas os instrumentos de medida que faltam, mas a linguagem que poderia
servir para exprimir os resultados” (Koyré 1971 [1961]:349). Portanto, Koyré
também entende que há um paralelismo entre técnica e teoria, ainda que,
para ele, o ponto central é a afirmação do primado da teoria sobre a técnica
ao passo que, para Wittgenstein, a própria teoria seria um tipo de técnica.
Assim, para explicar uma técnica que não tenha conseguido se desenvolver,
afirma Koyré, “não é a insuficiência técnica, é a falta de ideia que nos fornece
a explicação” (Koyré, 1971 [1961]:351). Sem ideias certamente não haveria
explicações, mas, em uma perspectiva wittgensteiniana, ideias e técnicas
são produtos da gramática, da pragmática da linguagem em uma forma de
vida onde técnica e linguagem, teoria e prática acontecem simultaneamente.
Com efeito, indo além da interpretação psicossociológica, para
Wittgenstein, as práticas sociais não são apenas as condições necessárias
para a formulação do conhecimento, mas também as condições suficientes.
O “como” tais práticas estabelecem as instituições em uma dada sociedade
também formam as condições suficientes para os nossos critérios sobre o
que esteja certo ou errado quando produzimos conhecimento. Em suma,
onde Koyré vê a teoria assentada em uma atitude metafísica, Wittgenstein vê
as possibilidades gramaticais a partir de onde vemos o mundo. A gramática
nos diz o que o mundo é. “Que espécie de objeto alguma coisa é, é dito pela
gramática” (iF§ 373). Enfim, “a essência está expressa na gramática” (iF§ 371).
No entanto, se existem diferenças entre Wittgenstein e Koyré quanto
ao real papel das práticas sociais na formulação de teorias científicas, parece
haver pontos de convergência com relação à questão da autonomia da ciência.
Em uma perspectiva wittgensteiniana, podemos entender a sociedade como

272
o conjunto de complexos mecanismos institucionais nos quais operam as
diferentes gramáticas: gramática da ciência, da arte, da filosofia, da religião,
etc. em que essas gramáticas interagem entre si no todo da sociedade. No
entanto, ainda que haja “semelhanças de famílias” (iF§ 67) entre essas várias
gramáticas, cada uma em si tem sua autonomia, dada pelas suas próprias
regras. Com efeito, para uma perspectiva pragmática, a gramática da ci-
ência tem sua autonomia, ainda que seja permeada por outras gramáticas
ou outras instituições. Ao afirmar que a ciência compõe uma “unidade de
pensamento”, juntamente com a filosofia e a religião, Koyré salienta algo
neste sentido da interação entre diferentes gramáticas. Em outras palavras,
ainda que a ciência tenha sua razão de ser nela mesma, ela está em constante
relação com essas outras áreas das quais, muitas vezes, provêm ideias que
auxiliam na constituição da própria ciência, ainda que, em última instância,
essas influências de outras esferas fiquem fora da prática e do discurso final
da ciência. Como salienta Koyré,
(...) quaisquer que sejam as ideias paracientíficas ou ultracientíficas que
tenham guiado um Kepler, um Descartes, um Newton ou mesmo um
Maxwell em direção às suas descobertas, tais ideias não têm, no final
das contas, senão pouca ou nenhuma importância. O que conta é a
descoberta efetiva, a lei estabelecida, a lei dos movimentos planetários
e não a harmonia do mundo. A conservação do movimento e não a
imutabilidade divina (Koyré 1971 [1961]:255).

Certamente, aqui Koyré procura ressaltar a “unidade de pensamento”


entre a ciência e as outras áreas de conhecimento mostrando, quase em tom
de denúncia, a forte presença desses fatores não científicos na ciência, que
são muitas vezes deliberadamente ignorados. Entretanto, ainda que procure
afirmar o papel da unidade de pensamento, Koyré acaba fazendo uma dis-
tinção entre o cientifico e o não científico. Entretanto, para Wittgenstein,
não existiria aqui propriamente uma dicotomia. Antes de tudo, qualquer
conhecimento é um ato social, mas a função da gramática é exatamente
construir a especificidade dos diferentes conhecimentos. Arte e ciência, por
exemplo, nascem do mesmo solo das práticas sociais, mas se distanciam
tecendo suas diferentes gramáticas.

273
A ciência é certamente permeada por outras esferas de conhecimento,
e nesse sentido faz parte de um tipo de unidade do pensamento como pre-
tendeu Koyré, mas, em uma perspectiva wittgensteiniana, na medida em
que as regras que compõem a gramática da ciência estabelecem também
seus próprios critérios de julgamento – ainda que possua semelhanças de
família com outras formas de conhecimento – a ciência é autônoma. Em
certo sentido, a ciência encontra “internamente” seus critérios e, assim, é
internalista, ainda que todo e qualquer conhecimento nasça das práticas
sociais (externalista).
Se a ciência justifica suas condições suficientes em si mesma, a partir
do seu desenvolvimento enquanto uma instituição que tem suas regras
próprias (gramática), com teorias e práticas legitimadas no seu próprio
atuar – ainda que seja influenciada por outras instituições ou gramáticas
como as da política, arte, religião, etc., –, então, podemos concluir que, no
contexto romano de produção do conhecimento, essas regras de constituição
da instituição ciência, isto é, a gramática da ciência não foi “suficientemen-
te” estabelecida para que os engenheiros romanos pudessem desenvolver a
ciência. Portanto, ainda que, naquele contexto, muitas fossem as situações
favoráveis, enquanto “condições necessárias”, não houve a institucionalização
(gramática) do fazer ciência a ponto de desenvolver as “condições suficientes”
para o surgimento da ciência. Com efeito, a ciência jamais poderia surgir
com os engenheiros romanos, mas não pelas razões (metafísicas) elencadas
por Koyré. Portanto, entre os romanos, não faltou propriamente uma “atitude
metafísica” ou uma teoria científica baseada no realismo matemático, mas
faltaram práticas sociais com a complexidade “suficiente” para estabelecer
o lócus institucional, criar ideias, teorias, técnicas, objetivos e, assim, pos-
sibilitar a emergência da ciência.

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276
Índice remissivo

Índice onomástico Benveniste, Émile, 76, 88


Bergson, Henri, 71, 189-190, 195
Abrahão, Luiz Henrique, 153, 204,
Birkenmajer, L. A., 26, 40
213, 215, 228
Black, Max, 246, 275
Alberto, o Grande, 34
Bloch, Léon, 170
Apelt, E. F., 35
Bloch, Marc, 45, 67, 179, 182
Aquiles Ganarus, 31
Boehme, Jacob, 15, 72, 82, 96, 168
Aristarco de Samos, 23, 34
Borelli, 68, 148, 161, 205
Aristóteles, 26, 34, 38-39, 53, 110,
Brahe, Tycho, 29, 36, 78, 155-156
112-113, 115-116, 128, 130, 135, 148,
Braunstein, Jean-François, 163
197, 205, 209, 217, 220- 221, 227, 228
Brudzewo, Alberto de, 26-27
Aron, Raymond, 45, 194
Brunschvicg, Léon, 18, 56, 165,
Arquimedes, 34, 206, 255, 269
193-194
Bachelard, Gaston, 11-12, 46, 48- Butterfield, Herbert, 152, 204, 213-
49, 54, 56-57, 62, 64, 67, 72, 149, 214, 216
159-160, 180-181, 183, 185, 187-190, Caillois, Roger, 72
194-199, 201 Calvino, 15, 96
Bacon, Francis, 101-102, 104-105, Campanella, 30-31
197, 251, 254, 270 Canguilhem, Georges, 12, 55, 67,
Bacon, Roger, 30, 39 149, 163, 189, 195, 197-200, 285
Baltas, Aristides, 153 Cantor, Georg, 241, 246
Bar-Hillel, Jehoshua, 246, 274 Cassirer, Ernst, 190-191, 201
Beckmann, F., 32, 39 Castelli Gattinara, Enrico, 68
Belaval, Yvon, 64, 67, 71, 88, 135- Cavaillès, Jean, 195, 197
136, 138-139, 141, 145 Certeau, Michel de, 64, 67
Bensaude-Vincent, Bernadette, Cohen, Bernard, 18, 20, 131, 152-153,
181-183. 160, 207, 216, 233

277
Cohen, Hendrik Floris, 152, 160 Feyerabend, Paul, 11-12, 149, 153-
Colombo, Cristovão, 23, 55 154, 156-157, 159-161, 203-204, 210-
Comenius, 24 218, 222-235, 237, 275
Copérnico, Nicolau, 5, 8, 15-17, 21-39, Forti, Umberto, 69
55, 72, 79, 103, 135-136, 148, 155, 164, Foucault, Michel, 57, 59-60, 62, 67-
200, 205, 217, 226 68, 91, 99, 106, 149, 161, 193, 195,
Coulanges, Fustel, 45, 51, 60, 67, 133 198-199, 201
Cristovão Colombo, 23, 55 Frank, Philipp, 216-218, 232
Curtze, Maxilimilian, 29 Frege, Gottlob, 237, 240-243, 247-
Cuvier, Georges, 61, 62, 67 249, 275-276
Da Vinci, Leonardo, 94, 136, 182, 199 Friedman, Michael, 204, 209-210,
Delambre, J. B., 21, 25, 32, 40 232
Delaporte, François, 57-58, 67 Galileu, Galilei, 12, 15, 18, 24-25, 53,
Deleuze, Gilles, 190 55, 69, 72, 77, 83, 84-86, 88, 91, 94,
Descartes, René, 10, 15, 53, 72, 75, 82- 99, 103-105, 107, 114, 131,135, 148,
87, 91, 96, 100-107, 109-110, 113-131, 150-152, 154-155, 168, 171-173, 184,
148, 150, 152, 161, 165, 168, 193, 211, 189, 195, 200, 205-206, 210-212, 214,
246, 252, 254, 270-271, 273 217-218, 221-227, 229, 235, 237-238,
Dreyer, J. L. E., 25, 33-35, 39, 40 243, 251, 253, 255-256, 269
Duhem, Pierre, 16, 21, 30, 34, 38-40, Gavroglu, Kostas, 153
155, 157, 159-160, 181, 183, 213-214, 216 Giese, Tiedmann, 29, 31-32
Dumézil, Georges, 72 Goldschimidt, Victor, 10, 133
Eddington, Arthur, 55, 69 Grossmann, Heinryk, 105-106,
Einstein, Albert, 9, 53, 55, 57, 88, 111, 238, 252
114, 135, 197, 200, 238 Guéroult, Martial, 10, 133, 141,
Elias (Profeta), 30 143-144
Elkana, Yehuda, 10, 93, 97-100, 106 Hartog, François, 67
Erígena, J. Scoto, 34 Heath, Thomas, 34, 40
Eudoxo, 28 Hegel, George Wilhem Friederich,
Farge, Arlette, 65, 67 167, 176-177, 186, 190-194, 196, 252,
Febvre, Lucien, 16-17, 20, 45, 53, 68, 257
70, 91, 104, 106, 179, 182, 186, 271 Heidegger, Martin, 65, 68, 72,
Fenati, Ricardo, 149, 159 76-77
Heisenberg, Werner, 55, 70

278
Herder, Johan Gottfried von, 190 Marcel, Gabriel, 72
Hessen, Boris, 139, 238, 252 Martianus Capella, 34-35
Hippler, Franz, 32, 40 Maxwell, James, 238, 273
Holton, Gerald, 72-73, 88 Mazon, Brigitte, 68
Hoyningen-Huene, Paul, 153, 204, Melanchton, Ph., 24, 40
206, 209, 210, 215-216, 23, 233 Menzzer, 25, 32, 40
Husserl, Edmund, 71, 77, 80, 87, Mersenne, Padre Marin, 71, 88
165, 177, 193-196, 198, 201, 238, 241- Merton, Robert, 97, 100, 108, 252
243, 245, 247, 250, 252, 275 Metz, André, 69
Jakobson, Roman, 72 Metzger, Hélène, 11, 46, 163-172,
Kant, immanuel, 188, 194 174-184, 186, 229
Kepler, Johannes, 17, 25, 31-32, 40, Meyerson, Émile, 18, 21, 25, 40, 56,
59, 68, 72, 88, 103, 114, 148, 155-156, 69, 72, 165-166, 181, 183, 185, 210,
161-162, 205, 208, 215, 254, 273 229, 268
Kindi, Vassiliki, 153 Michelet, Jules, 45, 64
Kojève, Alexandre, 71, 95, 170, 194 Mieli, Aldo, 16, 165, 171
Koyré, Alexandre, Passim Newton, isaac, 53, 55, 57, 68, 72,
Kuhn, Thomas, 7, 11, 12, 56, 70, 72, 98, 109-111, 113-116, 128-131, 135,
89, 91-92, 98, 107, 149, 152-154, 156- 150, 154, 162-163, 165, 170, 179, 181,
157, 159, 161-162, 182, 184, 203-210, 185-186, 205, 207-208, 210-212, 215,
213-217, 228-234, 237, 264, 275, 278 233, 238, 243, 273
Lacan, Jacques, 72, 91, 194 Novara, Domenico Maria de, 27
Lactâncio, 33 Ophir, Adi, 63
Lakatos, imre, 153, 161, 187-188, Osiander, Andreas, 31-32
202, 204, 210, 234 Papa Clemente Vii, 29
Lalande, André, 165, 175 Papa Paulo iii, 25, 33
Le Goff, Jacques, 133, 143-145, 182, Paracelso, 69, 96, 138, 141, 164,
184 167-168
Lenoble, Robert, 46, 70 Pascal, 24, 63, 114
Lévinas, Emmanuel, 193-194 Paulo de Middelburg, 28
Lévy-Bruhl, Lucien, 49, 165-168, Peurbach, 26, 31, 39
185-186 Platão, 18, 27, 53, 87, 93-94, 103, 105,
Lipps, Theodor, 87 107, 131, 135, 172, 184, 196, 205, 237,
Macrôbio, 34 242, 251-253

279
Prowe, Leopold, 26, 29, 40 Tycho Brahe, 26, 29, 32, 35-36, 78,
Ptolomeu, 25, 28, 31, 34, 38, 49, 155-156
79, 155, Van Fraassen, Bas, 11, 157-159, 162
Puech, Henri-Charles, 72 Veyne, Paul, 17, 18, 20
Ramus, 32 Vico, Giambattista, 190
Rancière, Jacques, 65 Wahl, Jean, 72
Redondi, Pietro, 16, 18-21, 44, 50, Waldau, G., 29, 41
55, 70, 95-96, 107, 168, 171, 176 Watzelrode, Lucas, 26-27
Reinach, Adolf, 9, 82, 87, 89 Weber, Max, 17
Reinhold, Erasmus, 31, 41 Widmanstadt, Johann, 29
Rey, Abel, 21, 163, 165, 183 Wittgenstein, Ludwig, 12, 237-240,
Rheticus, Joachim, 27, 30-32, 34-35 242-243, 248-251, 257-263, 265-267,
Riccioli, G. B., 38 269-274
Rodin, Auguste, 47, 57, 59, 111, 113 zambelli, Paola, 167, 243
Russell, Bertrand, 87, 204, 237, 240- zilsel, Edgar, 238, 252
245, 247-250, 262, 275-276
Santo Anselmo, 15, 82
São Tomas de Aquino, 34
Sarton, Georges, 56, 91, 165, 214
Sartre, Jean-Paul, 72, 194-195
Schiaparelli, 25-26
Schönberg, Nicolas, 29
Schöner, Johannes, 30
Schuhl, Pierre-Maxime, 133, 268
Shapin, Steven, 19, 91, 100, 239, 265
Spaier, Albert, 72
Stengers, isabelle, 182-183, 229, 235
Stump, James, 10, 95-98, 108, 133-
134, 137-138, 140, 144-145, 227, 235,
257, 276
Ternes, José, 193
Tiraboschi, V., 29

280
Índice temático Ciência moderna, 16, 91, 101-102,
105-106, 109-110, 112, 114-115, 130,
A Tensão Essencial, 70, 89, 206,
135-136, 147, 150-152, 154, 172-174,
215, 234
179, 184, 186, 199, 205, 218-221, 227,
Alquimia, 71, 74, 82
229, 235, 238-240, 251-256, 266-267,
Antiguidade, 23, 25, 188, 200, 241,
269
254, 268
Círculo de Viena, 213, 217
Antirrealismo / antirrealista, 11,
Collège de France, 19, 81, 144
147-148, 156-158
Cometa Halley, 77
Antropocêntrico, 24
Conceitos científicos, 157, 210
Antropologia / antropológico,
Concílio de Latrão, 28
192-193
Condições necessárias, 254-255,
Arremesso, 77-78
266-267, 270, 272, 274
Arte, 17, 26, 119, 122, 190, 261,
Condições suficientes, 254, 266-
273-274
267, 269-270, 272, 274
Astrobiologia, 39
Considerações Sobre Descartes, 10,
Astrologia, 30-31, 71, 74
100, 103-104, 107
Astronomia, 21, 24-29, 31-36, 38-
Contextualismo, 134-135, 137-138,
39, 71, 74, 77-79, 82, 122, 136-137, 151,
140-144
155-156, 167, 206, 218, 254
Contra o Método, 154, 160, 211-213,
Atitude metafísica, 12, 255-256,
215-216, 218, 222, 224, 226, 229, 231,
265-266, 272, 274
232
Atração universal, 79-80, 163, 170
Crenças transcientíficas, 139-140,
Atual / inatual / Virtual, 9, 44-45,
145
47-48, 50-51, 53, 61, 63, 66, 100,
Criação / invenção, 17, 19, 30, 51,
106, 180
58, 84, 136, 169, 174, 191, 200, 211,
Atualidade, 9, 43-44, 46-48, 50-51,
235, 242, 246, 256, 259, 263
53-54, 57, 62, 66, 130, 188-189, 199
Cristo (retorno à Terra), 30
Autonomia da ciência, 12, 239-240,
Cumulativismo, 209
257, 265, 272
Descoberta, 16, 17-18, 23, 29, 48,
Cemitério, 47, 59, 66, 111
52, 64, 81, 102, 111, 122, 129, 136-
Centre international de synthèse,
139, 142-144, 151, 170, 199-200, 206,
164, 183
229-230, 241-242, 273
Ciência, Passim

281
Descontinuidade histórica, 150- 168, 174, 176-178, 188-189, 191-192,
151, 156 194-199, 256
Destruição do cosmos, 80, 98, 112, Estilo de pensamento, 94, 96, 98,
151-152, 228 104-105, 253, 256
Determinismo, 74 Estrutura das Revoluções Científicas,
Deus / Deuses, 57, 75, 82-84, 97, 98, 12, 92, 107, 162, 205-207, 209-210,
103-104, 106, 211 215, 234, 264
Dialética, 96, 140, 144, 178, 191- Estrutura de pensamento, 7, 94,
193, 197 96-97, 98, 104-105, 227
Dinâmica copernicana, 37-38 Estruturalismo, estrutura, méto-
Do Mundo Fechado ao Universo do estruturalista, 10, 12, 18-19, 44,
Infinito, 86, 93-94, 98, 107, 148, 150, 51-52, 56, 66, 72, 76, 80-83, 92-94,
154, 162, 206, 208, 211, 215, 230, 234 96-98, 102, 107, 133-135, 137, 141-145,
Empatia, 9, 72, 87 151, 162, 165, 168, 172-178, 180, 184,
Ensino de história das ciências, 65 192, 197, 205-207, 209-210, 215-216,
Epiciclos, 29, 33-35 219, 227-230, 234, 239, 241, 247, 250,
Episteme, 198, 268 261, 264, 266, 269
Epistemologia, 8, 10, 11-12, 46, 49, Estudos de História do Pensamento
55, 57, 133, 149, 152-153, 157, 159-160, Científico, 8, 20, 69, 88-89, 93-94,
177, 188, 190, 194, 197-198, 203, 264 107, 131, 148, 154, 161, 184, 233
Epistemologia histórica, 12, 46, 49, Estudos Galilaicos, 9, 15, 44, 56, 68,
149, 159, 190, 197, 203 93-94, 98, 107, 148, 162-163, 173, 233
Epistemológico – obstáculo/fron- Études Newtoniennes, 109, 114, 116,
teira, 64, 120, 139, 172, 174, 198, 128, 131
218-220 Evidências, 65, 83, 110, 155, 216, 299
Equantes, 29, 34 Excêntricas, 33-34
Escola dos Annales, 144, 271 Exegese, 71, 208
Esfera das Estrelas Fixas, 39, 136 Experimentum, 94, 98, 105, 197
Esfericidade da Terra, 33, 37 Externalismo, 92, 139, 238-240,
Espaço infinito, 39, 69, 86 252, 265
Espírito, 23, 35, 45, 49, 57, 62, 64, Fantasmas / Espectrologia, 57-58,
66, 95, 98, 102-104, 107, 116-117, 121, 62, 64-65
124, 126-127, 131, 135, 138-139, 159, Fenomenologia, 9, 12, 25, 107, 177,
185, 192-196, 201

282
Filosofia da história, 10, 68, 133- 172, 182, 186, 204-210, 213, 217, 228-
134, 139, 177, 184, 189-190, 193, 201 230, 240
Física aristotélica, 52-53, 58, 77-79, idade Clássica, 72-73, 77-81
112-113, 150, 173-174, 220, 226 idade Média, 23, 39, 75, 88, 190,
Física do Impetus, 77, 85, 212, 227 200, 254
Formas, 9, 43, 48, 51, 56-63, 66, 81, ideal regulador, 158
93-94, 96-98, 101, 103, 106, 140, 166, ideia, 8, 9, 11, 12, 15-16, 26, 28, 34-
168, 171-172, 176, 215, 259, 269, 274 35, 38, 45, 51-52, 56, 65, 71, 75, 78,
Fósseis, 60-63 83, 92-93, 95-98, 101. 103-104, 106,
Fundamentos da matemática, 237, 110-111, 140, 144, 148, 150-152, 154,
240-242, 251 156-157, 164-168, 172, 174-175, 180,
Geocentrismo, 212 182, 187-190, 192, 194, 196, 198-201,
Geologia, 60, 62-63, 203-208, 210, 212, 214, 216-224, 226,
Geometrização do espaço, 80, 98, 228-230, 235, 239, 241-242, 244-245,
112, 151-152, 228 251-253, 255-257, 261, 263-264, 267,
Gramática, 76, 239, 258-267, 269, 268, 270-274
271-274 impensável, 9, 75-80, 200
Gramática da ciência, 257, 261, 263- incomensurabilidade (teórica, de
267, 269, 272-274 teorias), 142, 156, 213, 228, 230-231,
Gramática universal, 76 233
Gravidade, 76, 78, 83, 127, 188-189 Institute for Advanced Study, 72
Hegelianismo, 71, 96, 133-134, 138, instrumentalismo, 156, 159
143-144, 191-194 internalismo, lógica interna, 10,
Heliocentrismo, 227 12-13, 92-93, 97, 99-100, 105, 133-
Heliolatria, 39 139, 141, 143-145, 237-240, 251-252,
Hermenêutica, 11, 169, 209 256-257, 263-265
História da física, 21, 75 internalista, 10, 19, 54, 92-95, 97-
História da química, 182 100, 105, 133, 135-136, 187, 257, 274
História natural, 60 intuição, intuição ontológica, 9, 71,
História proscrita, 69 83-88, 119, 123, 126, 187, 196
Historicismo, 11, 147, 154, 156-157, Jogos de linguagem, 239, 258-260,
159, 209 262-263, 271
Historiografia, 7, 8, 10, 16, 45, 64, La Philosophie de Jacob Boehme,
92, 133-135, 141-143, 153, 156, 169, 21, 46, 165.

283
La Révolution Astronomique, 22, Movimento dos Planetas, 78
56, 68-69, 161, 163 Movimento Natural, 37, 78
Língua natural, 76 Movimento Retilíneo, 37, 86
Linguagem, 12, 47, 50, 53, 56, 59-60, Movimento violento, 37, 78
63-64, 181, 195, 200, 219, 223, 237- Movimentos celestes, 29, 33
240, 242, 247-250, 253, 257-260, Museu, 48, 57, 59
262-263, 266-267, 270-271, 272 Nambiquaras, 73
Lógica, 78-79, 134-137, 139, 142, Natureza, 36-37, 57, 60, 62, 75-76,
144-145, 167, 172, 175-176, 192, 213, 114-116, 124, 127-130, 134, 137, 140,
240-251, 258, 260, 262-263, 265 148, 150-151, 158, 168, 170-171, 173-
Lógica clássica, 247 174, 181, 193, 205, 219, 222, 238, 252-
Lógica matemática, 240-242, 254, 258, 264, 271
244-246 O Caminho desde A Estrutura, 162,
Mathesis universalis, 118, 121-123, 184, 207, 234
126-127, 242, 261 Objetividade / Conhecimento
Mecânica clássica, 246, 253 objetivo, 45, 57, 64, 264, 288
Mentalidades, 167, 172, 176, 180, 182 Ofício, 26, 48-49, 141
Metafísica da luz, 39 Ontologia (mudança de), 72-74
Metaphysics and Measurement, Ontologia científica, 172, 174,
154, 208, 211-212, 282 Ontologia formal, 77
Método, 131, 72, 81-82, 87, 101-102, Ontologia mágica Pangeometrismo,
105-106, 112, 117-129, 141-142, 145, 75
147, 150, 165-166, 168, 173, 177, 180- Palácio da Descoberta, 199
181, 187-189, 195, 198, 211 Paleontologia, 60-61
Modernidade, 44, 49, 109, 112, 125, Paradigma, 72, 80-81, 86, 157, 206
172-173, 196, 252, 255, 266-267 Paradoxo, Paradoxos, 87, 237, 240-
Monstros / Teratologia, 47, 54, 57- 251, 257-258, 263
58, 62, 64-65, 67 Paradoxos de zenão, 87, 245
Mossi, 73 Paradoxos lógico-matemáticos,
Movimento Circular, 33-34, 36- 72, 241, 245
37, 79 Passado, 16-18, 43-55, 58-60, 63-66,
Movimento da Terra, 29, 33-36, 92, 111-114, 130, 139, 141-142, 145,
77-79, 212, 221, 224 166, 172, 178-180, 188-192, 205-208

284
Pensamento primitivo / pensa- 106, 116-118, 121-122, 124, 126-127,
mento expansivo / pensamento 129, 173, 180, 190, 191, 226, 241, 248,
refletido, 167, 175-176 253, 263, 273
Pensável / impensável, 9, 75-81, Realismo científico / realista, 11,
174, 200 147-149, 156-159
Plano de pensamento, 51, 54, 57, 65 Realismo historicista, 11, 159
Platão / Platônico / Platonismo, Realismo matemático, 237-240,
10, 18, 27, 53, 87-88, 93-96, 103, 105, 242-246, 250-252, 256-257, 262,
107, 131, 133-136, 138, 172, 184, 196- 265, 274
197, 205, 229, 237, 242, 251-253, 257 Realismo metafísico, 159
Positivismo lógico, 149, 213, 216 Relatividade ontológica, 159
Positivismo / antipositivismo, 15, Relatividade ótica, 36
82, 166, 251 Relativismo, 139-140, 159, 197, 261
Possível / impossível, 25, 36, 53-54, Renascimento, 62, 74
58, 74-75, 82, 94, 100-102, 112, 120, Representação, 16, 26, 85, 167, 248,
135, 139, 155-156, 191, 200-201, 205, 258, 263
221, 241, 255, 260, 262, 269 Retórica, 226
Pragmática da linguagem, 238- Revolução científica, revoluções
240, 257-258, 262-263, 266-267, 272 científicas, 16, 44, 46, 51, 62, 71-73,
Prélogismo, 58, 167 77, 79-80, 88, 91, 93, 102, 105, 110,
Primado da teoria, 150, 154, 157, 112, 114, 130, 137, 148-152, 156-158,
251, 253, 256, 270, 270 173, 180, 204, 206-208, 214-217, 220,
Propaganda, 212, 218, 224, 226, 231 229-230, 253-255
Queda dos corpos (Lei de), 75-76, Revolução copernicana, 8, 12, 39,
78, 83-86, 148, 222, 226 79-80, 215, 217-218, 222, 229
Racionalidade, 76, 77, 96, 136-137, Revolução Copernicana, 204, 214,
150, 167-168, 174, 180, 195, 198, 224, 234
238-242, 244-246, 250-251, 258, Roma (império, República,
260-261 Monarquia), 27, 29-30, 104, 253,
Racionalismo, 47, 56, 96, 100-102, 266
175, 196-197 Salvar os Fenômenos (Aparências),
Razão, 19, 37-39, 46-48, 56, 58, 66, 31
73, 76, 79, 82-83, 86, 100-103, 105- Semelhanças de família, 259, 261,
273-274

285
Ser / Devir, 60, 73-75, 177, 212 Universidade de Bolonha, 27
Síntese aristotélica, 74, 176 Universidade de Wittenberg, 30-31
Síntese histórica, 171 Verdade / Erro, Verdadeiro / Falso,
Sistema do mundo (sistemas as- 17-18, 23-24, 32-33, 36-37, 44-47, 49,
tronômicos), 28, 33 53, 57-60, 63-64, 73, 76, 78-79, 82-
Sobrenatural, 74 87, 96, 102, 104-106, 111-112, 116-119,
Subjetividade, 181, 195, 271 121-123, 129, 136, 138-139, 142-143,
Sujeito, 83-84, 95, 117, 127, 182, 195, 147, 153, 157-158, 167-169, 177, 188,
215 190-192, 196, 199-200, 208, 221,
Tábuas astronômicas, 31, 136 249, 253-254, 262, 264
Técnica, 28, 169-170, 200, 226, 229, Vida, 8, 26, 28, 45, 47, 51, 53, 62,
238-240, 252-253, 255-256, 260, 262, 66, 80, 92, 169, 190-191, 197, 243,
267-272, 274 251, 254, 256
Tecnologia, 170, 179, 239, 255-257, Visão de Mundo, 8, 157
267-270, 272 Zeitgeist, 94-98, 105
Tecnológico, 218, 252, 255-257, 269
Telescópio, 189, 206, 225-226
Tempos Modernos, 23
Teoria (theoria), 15, 18, 21, 28, 31,
33-36, 43-50, 52-53, 55, 58-60, 65-
66, 75, 78-79, 82, 87-88, 92, 102, 105,
109-115, 123, 128, 130, 135, 137, 140,
147-148, 150, 154-159, 165, 168-169,
173-174, 177-181, 187-188, 195-201,
205, 208, 212-213, 218-220, 222-223,
225-229, 238, 239, 241, 244-245,
247-249, 251, 253, 255-258, 261-262,
264, 267, 270-272, 274
Teoria Fenomenista da Ciência, 31
Tese Duhem-Quine, 155
Unidade do pensamento, 9, 16, 81,
82, 134, 138-139, 143-144, 150-151,
156, 166, 172, 256, 274
Universidade da Cracóvia, 26-27

286
Sobre os autores

Eduardo Salles de O. Barra


Professor de Filosofia da Ciência da UFPR.
Doutor em Filosofia pela USP.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7 e FE/Unicamp.
Organizador do livro paradidático O papel do dogma na investigação cien-
tífica, de Thomas Kuhn e um dos idealizadores e coordenadores da Escola
Paranaense de História e Filosofia da Ciência, evento bianual voltado à for-
mação de professores e pesquisadores, atualmente na sua terceira edição.

Fábio Ferreira de Almeida


Professor de Filosofia da UFG.
Doutor em Filosofia pela UERJ.
Tem colaborado com as Edições Ricochete, de Goiânia, para a qual traduziu
os livros Lautréamont, de Gaston Bachelard (2013) e Michel Foucault, morte
do homem ou esgotamento do Cogito?, de Georges Canguilhem (2012). Por
essa mesma editora, em 2010, organizou e traduziu a publicação de Georges
Canguilhem, um estilo de pensamento, de Pierre Macherey.

Francismary Alves da Silva


Professora de História da UFSB.
Doutora em História da Ciência pela UFMG.
Autora de Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas
Kuhn e Steven Shapin. São Bernardo do Campo: EdUFABC, 2015.

287
Gérard Jorland
Diretor de pesquisas do CNRS e professor no Centro de Pesquisas Históricas
(CRH) da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris.
Autor de La science dans La philosophie: les recherches epistemologiques
d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard, 1981.

Luiz Henrique de Lacerda Abrahão


Professor de Filosofia do CEFET- MG.
Doutor em Filosofia pela UFMG .
Organizador e tradutor do livro Kuhn, Feyerabend e Incomensurabilidade.
Textos selecionados de Paul Hoyningen-Huene. São Leopoldo: UNiSiNOS, 2014.

Marlon Salomon
Professor de História da UFG.
Doutor em História pela UFSC.
Pós-Doutor pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais – Paris
Bolsista de Produtividade do CNPq.
Organizou, entre outros, as edições de Alexandre Koyré, historiador do pen-
samento (Goiânia: Edições Ricochete, 2010), Saber dos arquivos (Goiânia:
Edições Ricochete, 2011) e História, verdade e tempo (Chapecó: Argos, 2011).

Mauro Lúcio Leitão Condé


Professor de História e Filosofia da Ciência da UFMG.
Doutor em Filosofia pela UFMG.
Pós-Doutor pela Universidade de Boston.
Autor do livro Um papel para a história: o problema da historicidade da
ciência. No prelo. Organizador do livro Ludwik Fleck: estilo de pensamento
na ciência. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012 e, juntamente com Marcelo
Penna-Forte, organizador do livro Thomas Kuhn e a Estrutura das Revoluções
Científicas [50 anos]. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.

288
Patrícia Kauark-Leite
Professora de Filosofia da Ciência da UFMG.
Doutora em Epistemologia pela Escola Politécnica – Paris
Pós-doutora pela Universidade de Stanford.
Agraciada com o prêmio Louis Liard – 2012, da Académie des sciences mo-
rales et politiques da França pelo seu livro Théorie quantique et philosophie
transcendantale: dialogues possibles. Paris: Hermann, 2012.

Ronei Clécio Mocellin


Professor de Filosofia da Ciência da UFPR.
Pós-doutor pela USP.
Doutor em Filosofia da Ciência pela Universidade de Paris X.
Autor de Louis-Bernard Guyton de Morveau: Chimiste et Professeur au Siècle
des Lumières. Sarrebruck: Editions Universitaires Européennes, 2011.

Veronica F. B. Calazans
Professora de Filosofia da Ciência da UTFPR.
Doutora em Filosofia da Ciência pela USP.

289
FORMATO: 15,5 x 22,5cm | 292 p.
TIPOLOGIAS:Minion Pro, Myriad Pro
PAPEL DA CAPA: Supremo 250g/m2
PAPEL DO MIOLO: Offset 90g/m2

PRODUTORA EDITORIAL: Lilian Lopes


CAPA & DIAGRAMAÇÃO: Peter de Andrade
FOTO DE CAPA:
REVISÃO DE TEXTOS: Beth Lara

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