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LINGUA E HIPERLINGUA Sylvain Auroux Laboratério de Histéria das Teorias Lingiifsticas Universidade de Paris VII-CNRS ENS - Fontenay/St.-Cloud RESUMO: Reflete-se, neste texto, sobre os limites de uma concep¢dao de gramdtica enquanto teoria cientifica que descreve @ gramdtica que estaria na mente dos falantes. Opondo-se a esta posigdo, 0 autor sustenta e desenvolve seu conceito de hiperlingua, que toma a lingua em funcionamento em um espago/tempo. Um dos elementos deste espaco/tempo sdo os instrumentos da gramatizagdo como gramdtica e diciondrio, por exemplo. A partir do conceito de hiperlingua sustenta-se a externalidade da referéncia e a historicidade da linguagem. Um Axioma do Senso Comum DE MANEIRA geral temos tendéncia em pensar que se os homens falam, é porque eles tém um “gramatica na cabeca”. O lingiiista chega mesmo a considerar que seu trabalho tedrico (a elaboragdo de uma gramética ou gramdtica 2) é 0 conhecimento desta gramatica (ou gramdtica 1). Essa é, inclusive , a hip6tese de Chomsky Um dos elementos fundamentais do que se chama vagamente “conhecimento lingiiistico” é (...) 0 conhecimento da gramdtica, ou seja, de uma estrutura de regras, de princtpios e de representagdes existentes no esptrito(...) A gramdtica representada no esptrito(...) é um “objeto real”; (...) E-em fungdo desta gramdtica que deve ser definida a lingua (...) Tomaremos cuidado em distinguir entre a gramdtica postulada no espirito e a gramdtica do lingiiista, teoria articulada explicita que se esforca por exprimir precisamente as regras e os principios da ily gramdtica presente no espérito do locutor ouvinte-ideal. Esta Gramdtica do lingitista é uma teoria cientifica, exatamente na medida em que ela corresponde @ gramdtica interiormente representada (Chomsky 1980: 88, 114, 207). Esta hipétese ndo € propria A gramética gerativa. Se Chomsky a formula com vigor e se ela constitui 0 fundamento da maior parte das reflexdes cognitivistas, pode-se dizer que ela est subjacente as teorias gramaticais as mais tradicionais. Ela tem quase o estatuto de um axioma do senso comum em matéria de linguagem (0 que se chama por vezes “lingiifstica popular”). Propomos algumas observagées rapidas que visam, ndo exatamente a refutar este axioma, mas a mostrar seus limites na explicagio lingiiistica. Lingua Gramatical, Lingua Empirica e Hiperlingua Sabemos aproximadamente o que é uma gramitica 2, pois trata-se de um objeto empirico do qual podemos tracar a histéria: Esta remonta, no Ocidente, & Tekhné de Dionfsio da Tracia. Uma gramatica 2 € tradicionalmente composta de ingredientes caracterfsticos: exemplos canénicos, paradimas ¢ regras. Ela permite construir frases, freqiientemente com a condigao de suplementar uma boa dose de conhecimentos que permaneceram implicitos. © conjunto das frases que permite construir uma gramdtica é uma lingua gramatical. Se nomeamos lingua empirica 0 conjunto das frases efetivamente pronunciadas por um grupo de seres humanos ¢ seus descendentes, é possfvel mostrar que lingua gramatical e lingua empirica sao incomensurdveis (ver Auroux, 1994 a): uma gramética 2 no permite predizer as frases que serdo efetivamente pronunciadas, se nos damos um tempo suficientemente longo para a observagio. Se a gramitica 2 € 0 conhecimento da gramatica I, esta tiltima deve ter a mesma propriedade gerativa quanto A lingua gramatical e, por conseguinte, as mesmas limitagdes quanto a lingua empirica. Este resultado € paradoxal se a gramatica 1 é 0 que permite ao individuo falar. Com efeito, € melhor fazer a hipétese de que o modelo é pouco realista. Podem-se opor dois modelos, 0 modelo da competéncia gramatical que acabamos de descrever, ¢ um modelo mais complexo, que coloca em jogo um outro elemento, que propomos chamar, por falta 18 de outro melhor, a hiperlingua: Modelo da competéncia gramatical: - uma mesma gramatica | semelhante ao que conhecemos como gramética 2 € “implementada” em todos os individuos que falam uma mesma Ifngua (gramatica ¢ um termo geral; é evidente que a mesma coisa vale para o “diciondrio”). Modelo da hiperlingua: - diferentes individuos tém entre si relages de comunicagao; - estas relagdes se efetuam sobre a base de competéncias lingiifsticas; competéncia deve ser tomada no sentido mais trivial do termo: trata-se das aptiddes atestadas por sua realizagao; ~ as competéncias lingiifsticas individuais nao so as mesmas; - os individuos podem ter acesso a instrumentos lingiiisticos (ver seccdo seguinte); - 08 individuos tém atividades sociais; ~ as relagées de comunicagio tém lugar em certos ambientes; - definig&o: chamamos hiperlingua um espago/tempo estruturado pelos elementos que acabamos de enumerar. A Ifngua em si nfo existe. Nao existem, em certas porgdes de espago-tempo, senio sujeitos, dotados de certas capacidades lingiifsticas ou ainda de “gramdticas” (nao necessariamente idénticas) envolvidos por um mundo e artefatos técnicos, entre os quais figuram (por vezes) graméticas e diciondrios. Dito de outro modo, o espago- tempo, em relagiio a intercomunicacao humana, nao é vazio, ele dispde de uma certa estrutura que os objetos ¢ os sujeitos que o ocupam Ihe conferem. Para que os individuos possam comunicar, néo é certamente necessario que compartilhem a mesma “gramética” (a qual, de fato, ndo sabemos 0 que é, com a condigao de tratd-la no modelo da gramatica 2), € necessario que pertengam a uma mesma rede de comunicagao, a uma mesma hiperlingua. O interesse da nocio de hiperlingua é de levar 19 em conta, na determinagao da atividade lingiifstica, de um lado, os sujeitos falantes e suas diferengas de competéncia, de outro, 0 ambiente cultural e a realidade nao-lingiifstica. ‘A hipotese da hiperlingua nao é certamente trivial. Para poder defendé-la, € necessdrio que sejamos capazes de trazer alguns elementos empiricos a favor da realidade. Apresentarei quatro: o papel dos instrumentos lingtifsticos, a participagao do mundo na referéncia, a cegueira verbal, a necesséria dualidade da competéncia lingiifstica ¢, enfim, o valor explicativo da hiperlingua na historia da lingiifstica. Os Instrumentos Lingiiisticos Qual é a natureza das diferentes realizagées do que chamamos gramdtica 2? Ja vimos a hipétese segundo a qual se trataria de uma representagdo da competéncia dos individuos, igualmente distribufda em cada um deles. Uma outra hipétese consiste em Ihe atribuir um valor descritivo; ela nao € mais irrealista que a precedente. Mas convém entdo determinar do que ela poderia ser a descricio. Evidentemente, s6 pode ser de algo que preexiste. Os homens falam antes da elaboragao de qualquer gramética 2; se esta é uma descrigo nao pode ser sendo deste estado oral da fala antes de qualquer trabalho de gramatico ou de lingiiista. Sabemos aproximadamente como se deu o longo processo que conduz a construgdo das gramaticas e dos diciondrios, o que chamamos de processo de gramatizagao (ver Auroux, dir., 1992 e Auroux, 1995 b). Nao se trata de um simples proceso de descrigiio, mas de uma verdadeira “instrumentagao” das linguas. Para o francés, nés o seguimos desde as primeiras tradugdes das graméticas do latim, as primeiras listas de palavras, as primeiras tentativas de traduzir sistematicamente os autores latinos, etc. A virada decisiva é 0 aparecimento do primeiro dicionario monolingiie da Academia (1694). Nunca serd demais se colocar a questo sobre a utilidade a que poderia corresponder um dicionério & intengao dos usuérios de uma lingua. De um lado, supde-se que eles a conhecem; de outro, se cada um dentre eles jd tivesse 0 dicionério “na cabega”, este nao serviria para nada. A Ginica solugdo € admitir que o diciondrio nao corresponde a competéncia de nenhum dos locutores. Segundo a expressio de Collinot e Maziére (1997), ele é um verdadeiro “prét A parler” ou ainda uma “prétese”, um “instrumento lingiifstico” que permite a cada um 20 (intermediando a aquisigfo de uma competéncia segundo a manipulagdo do dicionario) aceder a uma competéncia objetiva maior que a sua. Os resultados de um estudo detalhado (Nunes, 1996) da gramatizagio do portugués do Brasil pode nos permitir ver exatamente 0s limites de nosso propésito. Pode-se imaginar que os portugueses desembarcando no Brasil, depois organizando a colonizacao e, enfim, sua independéncia, falavam sua prépria lingua. Era, no entanto, em um contexto diferente daquele da Europa, pois estavam em um outro ambiente natural (ver secgao seguinte) e, sobretudo, porque eles eram submetidos a trocas plurilingiies (Iinguas indigenas, tupi notadamente, e linguas africanas). Enfim, eles se puseram a questo da identidade de seu modo de falar (questdo da lingua nacional). Ora esta questo corresponde a um processo de gramatizagao perfeitamente identificdvel. Os diciondrios monolingiies foram desenvolvidos no Brasil durante todo o século XVIII. Apareceram igualmente diciondrios de regionalismos; diciondrios do vocabulario literdrio; diciondrios técnicos (por exemplo o diciondrio da construgdo naval de Antonio Alves Camara, 1888); enfim, dicionérios que reagrupam todos (Diciondrio de Vocdbulos Brasileiros de Baurepaire-Rohan, de 1889 e Diciondrio Brasileiro da Lingua Portuguesa de Macedo Soares, 1889). E a partir destes trabalhos que se poe verdadeiramente a questao do “brasileiro” e dos “indigenismos” que o caracterizam. Sem o trabalho de gramatizacao (no qual é preciso compreender, por exemplo, os estudos do tupi), a resposta de um Camara ou de um Baurepaire- Rohan seria impossfvel. Para nosso problema a situagdo é clara: esta empresa é simplesmente a descrigfio da maneira pela qual as pessoas falavam fora dela (cla teria por Gnica fungao permitir sua representago) ou ela criou alguma coisa? Nao hé razo para considerar que este caso difere fundamentalmente do da gramatizacao francesa. A gramatizacao nao deixa os espacos de comunicagao inalterados: ela produz instrumentos lingiifsticos que figuram na hiperlingua e modificam sua estrutura. Ela permite notadamente uma maior estabilidade lingiifstica, como se vé nos casos como 0 do sAnscrito, do latim e, de modo mais geral, das grandes linguas modernas (comparemos, por exemplo, a evolugio do francés entre os séculos XIV e XVII, por uma lado, e 0 século XVII e XX por outro). Toda gramitica - toda representagdo que analisa enunciados 21 lingUfsticos - contém um conjunto de hip6teses sobre a estrutura de uma certa hiperlingua. Uma hiperlingua pode ser estdvel ou instavel, ela pode ser isot6pica ou nao, os sujeitos que af se encontram podem ser extremamente puristas ou muito tolerantes, etc. Em todo caso, ela 6 esta realidade que engloba e situa toda realizaco lingiifstica e limita concretamente toda inovagao. A participagdo do Mundo na Referéncia A linguagem nao é auténoma, nao se trata de uma esfera de atividade em si e por si. Para funcionar como meio de comunicagao, ela deve estar situada em um mundo dado e entre outros habitos sociais. E nao hé linguagem humana possfvel sem hiperlingua. E facil ilustrar esta tese a contrario. Suponhamos um individuo qualquer X, monolingiie, deixado em uma ilha deserta e dispondo de um rddio; este ultimo faz uma emissio em uma lingua desconhecida para nosso personagem. Entio é claro que X nao poderd jamais compreender qualquer coisa das emissdes que ouve. Isto ndo tem nada a ver com limitagdes de sua inteligéncia; o lingitista mais dotado que possamos imaginar no se daria melhor se a lingua em questo nao tem parentesco com as linguas das quais 0 lingilista conhece os princfpios. Para saber aquilo de que as pessoas falam temos necessidade de uma ligaco com 0 mundo do qual elas falam e do conhecimento da ligagdo de sua lingua com o mundo. Estes dois tipos de ligago nao sao, certamente, independentes e os aprendemos geralmente no curso de um mesmo processo global. Mas a lingua nao gera ela mesma sua referéncia. O conhecimento gramatical do francés nos € suficiente para compreender que as duas expressGes seguintes so bem formadas: (i) Université Libre de Bruxelles (ii) Ecole Libre Todavia para compreender estas expressées, € necessdrio conhecer os hdbitos sociais, as realidades culturais que fazem com que a palavra “libre” signifique em um caso mais ou menos 0 contrério do outro. Este 6 um processo sobre 0 qual os dialetélogos tém prestado atengdo. 22 Assim, no que diz respeito & palavra maquis, segundo Dumont, para o francés da Africa: Céte d'Ivoire: restaurant semi-clandestin oi l’on consomme surtout du gibier fourni para les braconniers Sénégal: Bar dancing ou hotel fréquenté par les prostituées et le mauvais garcons Mali et Sénégal: ensemble des lieux mal famés d’une ville. Le maquisard est celui que fréquente les mauvais lieux et la maquisard la tenanciére d'un bar mal famé Podemos compreender bem a referéncia de “maquis” com a ajuda de pardfrases do francés corrente, como em geral 0 fazemos, mas nao so estas pardfrases que criam a referéncia. A externalidade da referéncia é um principio que vai além da simples constatac&o segundo a qual os objetos dos quais fala a linguagem estdo fora dela. E preciso compreender até este ponto ultimo onde se deve admitir que 0 préprio mundo externo participa do sentido. Um habitante do Quebec (ou um brasileiro) utiliza bem a mesma expresso que o francés (ou o portugués) quando fala de uma “grande 4rvore”. No entanto, por muitos indfcios textuais notaremos que as express6es nfo tém o mesmo sentido: a lingua gramatical nao mudou, € 0 mundo que mudou, provocando uma mudanga da hiperlingua. Considere um sujeito dotado de capacidades lingiifsticas dadas e 0 desembarque em um outro mundo, supondo inclusive que nenhuma capacidade lingiifstica nova figura em seu ambiente (por exemplo, um jesufta do século XVII que desembarca em uma ilha inabitada do caribe ou um astronauta em um novo planeta). Suponha que exista neste mundo um objeto que nao conhecemos. Ele o designaré por uma palavra qualquer, nova ou que pertenga a seu vocabulario, por exemplo, “or”. Se, permanecendo em nosso mundo, possufmos as mesmas capacidades lingiifsticas que as que tinha no infcio, ento seremos, sobre a base das capacidades lingiifsticas proprias, incapazes de predizer o novo valor referencial de “or Da mesma maneira, o Francés habituado a referir 0 sintagma “école libre” as escolas privadas (geralmente catélicas) nio pode predizer o valor atribuido pelos belgas ao mesmo adjetivo “libre” no titulo de 23 “Université libre de Bruxelles” no qual se trata, inversamente, de designar uma instituigdo do Estado, livre de qualquer restrigao confessional. A evolugéo da hiperlingua nfo € marcada necessariamente na estrutura morfoldgica. E impossivel aprender a falar uma lingua sem aprender a se mover em uma hiperlingua. Esta situagdo tem conseqiiéncias profundas para qualquer teoria da referéncia. Um dos impasses da filosofia analitica da linguagem provém de que ele tentou construir uma teoria da referéncia em um contexto totalmente abstrato, no nivel do que chamamos a lingua gramatical. Existe certamente a este nivel procedimento de referenciagZo (Quine é um dos primeiros a ter insistido sobre este ponto, reencontrando por isto o que um lingilista como Benveniste considerou sob a categoria do aparelho formal da enunciag@o). Mas isto nao implica uma relagdo estavel entre a entidade lingiiistica ¢ um tipo de objeto do mundo. Isto implica ainda menos que a estrutura da entidade lingiifstica determina sua prépria relagao com anatureza dos objetos do mundo. Putnam, depois de ter explorado uma quantidade de hipdteses coerentes com este ponto de vista acabou por renunciar a eles. Ele conclui daf que é necessdrio rejeitar o operacionalismo (a significacao de uma expressio € identificado a seu uso), 0 verificacionismo (a significagdo de um expresso € identificada a suas condigées de verdade) e o funcionalismo (a significagio é um estado mental que tem um papel causal no comportamento). Em matéria semantica “o ambiente contribui para fixar a referéncia” (1990, p. 77). E necessério acrescentar ao ambiente a seqiiéncia dos comportamentos humanos. Nao hd, com efeito, referéncia senao no seio de uma hiperlingua, nado na estrutura abstrata (geralmente morfossintatica e fonolégica), minima e nao dinamica, que nossos gramaticos descrevem. A mudanga de hiperligua ndo leva necessariamente a absoluta incompreensio que corresponde as relagdes que engendram a longa passagem das protolinguas a suas longiquas descendentes. Mas quando se muda de natureza e se constituem espagos novos para a comunicagio, a vida e a historia dos homens (por exemplo quando se escuta a hiperlingua protuguesa, espanhola, francesa ou inglesa em territérios americanos) produz-se uma nova estrutura local da hiperlfngua, que se observa muito rapidamente nas diferencas de estrutura discursiva. De resto, enquanto os comparatistas nos habituaram a que o papel do lingiiista seja explicar como as Ifnguas 24 mudam, casos como estes que acabamos de citar nos convidam a conceber que, compreender como a extensao da hiperlingua possa nao desembocar na incomunicabilidade, € um problema tedrico e empirico muito importante. A Hiperlingua e a cegueira verbal A xternalidade da referéncia que estabelece a hiperlingua pode ser apoiada sobre fenémenos patolégicos bem conhecidos, desde que Charcot (1883) Ihes deu o nome de “cegueira verbal”. O célebre alienista tinha observado o caso de um comerciante vienense (Kiissmaul) que tinha perturbagdes importantes de visio: ele via, mas no podia reconhecer concretamente os objetos. Isto no o impedia de falar, muito ao contrdrio: a auséncia do sentido concreto das imagens, fazia que suas representagdes fossem puras combinagdes de palavras (“mes raves se sont également modifiés. Aujourd’hui, je réve seulement en paroles” ibid). Mais préximo de nés, 0 caso de O. Sacks, documentado pelas préprias obras do paciente (Sacks 1988, 1990), resulta de uma patologia andloga. Ele sofria de uma espécie de agnosia que Ihe interditava a visio das coisas. Capaz de definir as formas ¢ as fungdes de uma luva, de imaginar seus usos possiveis, no chegava a reconhecé-la, a afirmar “isto é uma luva”. Segundo ele, ele funcionava exatamente como uma méquina, um computador, servindo-se de caracteristicas chaves e de relagdes esquematicas. Em outras palavras, ele possufa uma espécie de gramatica, uma sintaxe, mas nfo conseguia ligé-la ao mundo. A representacio abstrata da Ifngua que reproduz a gramatica contém sem diivida um niicleo essencial das atividades lingiifsticas, mas estas atividades nao existiriam sem 0 substrato psicofisiolégico que faz da fala humana uma realidade vivida no mundo. Se os sujeitos no se compreendem, nfo haveria hiperlingua. A hip6tese de uma lingua is6topa leva a supor que eles se compreendem perfeitamente e que eles tém igual acesso a todos os lugares da hiperlingua. Se cla fosse valida sem restrigdo, entdo lingua empfrica ¢ lingua gramatical, quero dizer manifestag6es lingiifsticas reais ¢ enunciados engendrados por uma gramética, coincidiriam e ndo haveria hist6ria. Nao é pela lingua que ha hist6ria (a lingua gramatical pode ser datada, mas o tempo nao é uma de suas dimensées intrinsecas), € 25 pela hiperlingua. Sendo a hiperlingua um sistema dinamico, a subdeterminagao das atividades lingtifsticas pelas gramticas (Auroux, 1994 a) pode ser derivada de um resultado matemético bem conhecido. Nao hé em geral projecio “can6nica” de uma dindmica sobre um sub-espaco, ou seja, nao ha aplicagio de uma dinamica de um espaco multidimensional sobre dois sub-espacos suplementares, tal que 0 dado das duas dinamicas obtidas possa permitir reconstruir a dinamica inicial. Hé forcosamente perda de informacao quando se estuda um fondmeno deste tipo sobre sub-espacos de dimensdo inferior, mesmo se se combinam os resultados obtidos sobre cada sub-espago. Toda projecao (Saussure compara os aspectos sincrénicos e diacrénicos a projegdes transversais e longitudinais de um mesmo sistema dinamico multidimensional) diacrénica (uma gramatica histérica) ou sincrénica (uma gramética, no sentido usual) € menos rica que a hiperlingua. A Dualidade da Competéncia Lingiiistica Que falar nao seja meramente ¢ simplesmente calcular, mas situar- se em uma hiperlingua, explica certas dificuldades da hipotese da composicionalidade do sentido. Quando se defende esta hipdtese, supdem-se duas coisas. A primeira é que se é capaz de construir uma representagao semantica de cada uma das unidades lingiifsticas que seja tal que o valor semantico de toda combinacao destas unidades € uma fungdo daquela de seus componentes. A segunda, que decorre da primeira, € que a representacfo semAntica prediz verdadeiramente 0 valor de toda ocorréncia possfvel. E esta coergao que impede que se possa compreender 0 que isto é para a criatividade. Quando se introduz um termo no cAlculo do valor de uma ocorréncia, € 0 tipo do termo (sua representagaio no “diciondrio”) que se € obrigado a introduzir. Isto nao colocaria problema se a representagdo do tipo equivalesse a esta ocorréncia. Como nao € o caso (homon{mia e polissemia), 0 cdlculo consiste em encontrar um processo que nos faga passar do valor do tipo ao da ocorréncia, por exemplo, admitindo que a representacao do tipo € formada de elementos disjuntos, tais que quando dois tipos sao contextualizados para formar uma seqiiéncia, opera-se uma selecao de seus elementos que dé o valor das unidades lingiifsticas nesta seqiléncia (Dominicy, 1984, 106). De qualquer forma, em toda seqiiéncia que 26 constitui uma ocorréncia lingiifstica, cada unidade lingiifstica representa, ao mesmo tempo, seu tipoe o valor, que, selecionado neste tipo, € o que Ihe é atribufdo na ocorréncia. Este processo, esquematizado em [1], quando fazemos um modelo da produgao da linguagem humana, torna-se uma hipétese racionalista e mesmo idealista (0 tipo precede a ocorréncia como as idéias platénicas precedem o sensivel no qual se encarnam). Voltamos a hipétese que criticamos: para falar, é necessdrio ter algo como um diciondrio na cabega. C1] [Lxy2Z] ipo L86CH ipo] —> [00], CO]a] scortencia Empiricamente, no entanto, nao temos senao seqiiéncias de ocorréncias e a situagio se apresenta sobretudo como [2] (2) {EY}, [Lelecontncia 1? (EI, CoIaocansacinar &€C- Devemos nos colocar algumas perguntas: i) 0 que memorizamos, tipos ou ocorréncias?; ii) se memorizamos tipos, nao é em seguida & memorizagao de ocorréncias, como uma representagao secundaria, até mesmo utilizando algumas dentras elas como protétipos (hipétese empirista)?; iii) o autor de diciondrios produz generalizag6es a partir de [2] para construir suas entradas, é possfvel que 0 locutor aja parcialmente da mesma maneira, ele o faz e em que medida? A hipotese empirista da hiperlingua ndo pressup6e que estas questdes sejam definitivamente resolvidas. Ela se apoia (entre outras coisas) sobre 0 fato de que certas ocorréncias so incompreensiveis se no se considera que clas tém, notadamente, por significagao a remissdo a outras ocorréncias, ou seja, a representagdo de outras ocorréncias, falas como as trocas de todo dia, mas acontecimentos lingitésticos, no sentido em que os novos historiadores especializados em andlise de discurso (Guilhaumou) empregam esta expressio, ou seja, f6rmulas elaboradas em circunstancias precisas e que fazem época na meméria coletiva (“Liberté, égalité, fraternité”). Podemos aprender linguas gramaticais, mas vivemos e trocamos falas, em um ambiente dado, com a meméria dos discursos e dos acontecimentos lingiifstiscos. Um homem que nao soubesse se situar na realidade de uma hiperlingua nao falaria mais que um computador incapaz de responder ao teste de Turing, ou que um doente atingido pela cegueira verbal. Seria absurdo resolver a competéncia lingiifstica humana na 27, “capacidade das ocorréncias”. Quando digo “bom dia”, quando manejo a morfologia ordinéria de minha lingua, em geral nao penso nisto. Nao tenho lembranga de tal ou qual ocorréncia que provém de um acontecimento lingiifstico conservado na meméria coletiva. Minha competéncia provém de algum modo do habito. Nao é sempre assim. Se digo “liberdade”, isto pode ser uma citagao de Eluard, ou algo associado a uma circunstancia de minha vida. Isto néo provém do hébito, mas da lembranga. Pode-se referir a lingua gramatical ao hdbito. O habito nao é suficiente para comunicar. O Valor Explicativo da Hiperlingua: 0 caso do Songhai A gramética hist6rica do século XIX desenvolveu-se segundo modalidades que levam a fazer a hipétese de que a estrutura do que chamamos a hiperlingua ndo tem influéncia sobre o devir das linguas. #0 sentido do modelo arborescente de divergéncia das linguas, mesmo atenuado pelas concepgées difusionistas da teoria das vagas. Ora, sabe-se que este modelo se depara com sérios problemas sobre certas Ifnguas, como as Iinguas amerindias ou africanas. Admite-se, em geral, que estas dificuldades provém do fato de que o caréter oral das culturas concernidas nao permite que permanegam tragos da evolucdo das Iinguas. Em outras palavras, nao se coloca em causa nem o modelo arborescente, nem 0 fato de que se possa compreender a mudanga lingiifstica. Ora, em um livro recente, um africanista chegou a uma contribuigao tedrica admirdvel. Trata-se do songhai, Ifngua falada principalmente no cotovelo do Niger, do qual nenhum pesquisador até agora tinha conseguido determinar o parentesco. Nicolai resume assim suas conclusdes: a lingua da qual procuramos o parentesco era o resultado da evolugdo de uma forma pidgnizada do touareg na estrutura tipoldgica de uma lingua mandé; é esta lingua que se torna o songhai desenvolvendo sua prépria tradigao normativa (1990, p. 19). O modelo arborescente € evidentemente colocado em causa (como em todos os casos de pidgnizagao): 0 songhai nao descende de uma nica proto-lingua. E a argumentacao de Nicolai que nos interessa 28 principalmente. Primeiro, ele ressalta que o songhai corresponde a uma verdadeira dispersao geogréfica de varias formas dialetais. Em seguida, ele nota que o songhai deve ter tido um papel veicular nas trocas saharo- shaelo-sudanesas. Enfim, cle constata que a maior parte das variedades atuais do songhai, “resultantes do songhai veicular sao (re)vernacularizadas e que as populagdes que as utilizam, necessariamente bilingties na origem, se elas nfo abandonaram o uso de sua lingua materna inicial, pelo menos inverteram as fungdes sociolingiiisticas atribuidas aos cédigos de seu repertério” (idib. p. 34). Em outras palavras, o que se chama 0 songhai encontra-se engajado em estruturas de hiperlinguas muito diferentes, nas quais se reconheceria, notadamente, os sujeitos bilingiies. Tais hiperlinguas sio diferentes das que conheceram as Iinguas européias, com seus sistemas de escrita homogeneizantes e, mais tarde, aos Estados-nag&o ao monolingiifsmo coercitivo. Nao é porque a escrita ndo deixou tracos que o modelo arborescente nao explica 0 caso do songhai, é porque com ou sem escrita as hiperlinguas nao tém a mesma estrutura. Tradugdo: Eduardo Guimaraes BIBLIOGRAFIA AUROUX, S. (em coloboraci0)(1996). A Filosofia da Linguagem. Campinas, Editora da Unicamp, 1998. AUROUX, S. (1994a). La Révolution Technologique de la Grammatisation. Lidge, Mardaga. AUROUX, S. (1994b) “L’hypothése de I’Histoire et la Sous- détermination Grammaticale”. Langages, 114, p. 15-40. AUROUX, S. (Dir.)(1992). Histoires des Idées Linguistiques, V. Il. Lidge, Mardaga. CHARCOT (1883). Sur un Cas de Cécité Verbale. Oeuvres Completes. Montpellier, Paris, 1885-1890, t. III, pp. 155-165. COLLINOT, A. e MAZIERE, F. (1997). le Prét a Parler. Paris, PUF. GUILHAUMOU, J. 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