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lugar, um orat6rio dedicado a sao Pedro. A segunda opgao, nao menos eficaz procura pontos de contato que permitam que o cristianismo recubra o paganis- mo de um modo menos brutal. Pode-se, por exemplo, tolerar a crenga na virtu de protetora dos amuletos, desde que estes carreguem a cruz. Mas é sobretudo co culto dos santos que tem aqui o papel decisivo, permitindo uma cristianizagio relativamente facil de numerosas crengas e ritos pagios: mais do que destruir St um lugar de culto antigo, confere-se-Ihe uma sacralidade legftima, afirmando que se trata de uma Arvore benzida por siio Martinho ou de uma fonte onde se vé 0 trago do casco de seu asno. Assim, 0 culto dos santos deu ao cristianismo uma excepcional maleabilidade para iniciar, com uma mistura de sucesso e de realismo, sua luta, sempre renovada contra 0 paganismo. Para dizer a verdade, essa maleabilidade marea também o limite da conversdo do Ocidente medieval ao cristianismo e da formagao de uma sociedade c sta no seio da qual a Igreja comega a adquirir uma posicado dominante. Sua luta contra 0 paganismo é, ao mesmo tempo, um triunfo — a imagem dos santos abatendo os dragdes — e uma meia vit6ria, pois ela se impde somente ao prego de um sério compromisso com uma visio de mundo enraizada no mundo rural, animada por ritos agrarios e impregnada por um sobrenatural onipresente. O RENASCIMENTO CAROLINGIO (SECULOS VIII E IX) Os defensores da visio obscurantista da Idade Média surpreender-se-do ao cons- tatar que uma expressdo amplamente consagrada pela tradi¢do historiografica evoca um renascimento em pleno coragio dos séculos mais sombrios das trevas medievais. Mas, como se disse, a Idade Média é um longo rosario de “renascimen- tos”, € 0 desejo de um retorno a Antiguidade, que é a esséncia desse ideal, nao é © apandgio dos séculos xv e xvi — ele se manifesta desde o fim do século vu. A alianga da Igreja e do Império Ahist6ria dos carolingios é, de inicio, a da ascensao militar de uma familia aris- tocrética franca. Carlos Martel, 0 prefeito do palicio, espécie de vice-rei dos havia adquirido um grande prestigio militar depois de sua vit6ria con- ta 6s mugulmanos em Poitiers. Tal prestigio recaiu sobre seu filho Pepino, o Breve, que continuou sua obra de unificagiio militar e adquiriu tal poder que A civitizagao FeupaL 69 imperial, que oeorreu nesse dia, desenrola-se em circunstdncias ambiguas ¢ pouco claras, a tal ponto que alguns historiadores sugerem que papa teria posto ‘a coroa imperial sobre a cabega de Carlos Magno de surpresa e quase a sua reve Em todo es iniciativa de Ledo 11 do que a uma intengao de Carlos Magno. Com efeito, além de confirmar a alianga ja estabelecida em 751, 0 papa sinaliza ao franco que este 10, € provivel que a coroagao imperial respondesse mais a uma tem sua dignidade a partir da Igreja. Ele se esforga, com isso, em manter seu con trole sobre um poder que se tomnou considerdvel ¢ que se exercia excessivamen te longe de Roma para o seu gosto. Além do mais, para o bispo de Roma, trata -se de uma maneira de romper os lagos com o imperador de Constantinopla, que deixa de encarnar a universalidade ideal da ordem crista a partir do momento em que reina um outro imperador legitimado por Roma. ‘Tal distanciamento nao poderia ter ocorrido se Constantinopla nao se encontrasse enfraquecida, como se vera abaixo, pela crise iconoclasta ¢ pela pressio mugulmana. Mas sao as con- sequéneias que importam aqui: 0 bispo de Roma deixa de estar sob a dependéncia de uma autoridade longinqua (a partir de 800, ele nao mais data seus documen- tos em fungao dos anos de reinado do imperador do Oriente, como havia feito Isli, BizAncio ¢ o Império no inicio do século IX. wizacko Feupat 71) crista, especialmente no que diz respeito as estruturas de parte, capftulo V). Voltemos, Ro entanto, ao Império, do qual a Igreja nao é 0 Gnico pilar. Entre 9s poderes do imperador, o principal é, sem duivida, 0 de convoc maio de cada ano, todos os homens livres para o comb ns meses de campanha, 0 exército ao qual o imperador deve suas conquis tas, Mas é duvidoso que se revinam, a cada ver, todos os homens com os quais o imperador pode teoricamente contar (cerca de 40 mil). De resto, logo ele renuncia a exigir de todos tal obrigagao, sobretudo porque numerosos homens livres, bastante pobres, nao dispéem dos recursos necessérios para adquirir um armamento pesado e custoso. Quanto a imagem de uma administragao bem organizada ¢ fortemente centralizada, como sugerem as capitulares (nome dado As decis6es imperiais transmitidas para as provincias), ela é, sen divida, ilus6- ria. O Império é, de fato, dividido em trezentos pagi, a frente dos quais esto os (ses. Mas, na verdade, o essencial do controle das provincias € confiado as aris- tocracias locais ou, por vezes, a guerreiros que o imperador quer compensar € que vivem dos rendimentos de seus cargos. O controle dos territ6rios repousa, no essencial, sobre os lagos de fidelidade pessoal, solenizados por um juramen- to ou pela recomendacao vassélica entre o imperador ¢ os aristocratas encarre- gados das provincias. De fato, a ideologia carolingia, formulada pelos clérigos, subordina 0 grupo aristocratico ao soberano, considerado a Gnica fonte das *honras” (em particular o encargo das provincias): o fato de deter tais honras € de servir ao imperador torna-se, entéo, um elemento fundamental do poder da aristocracia, que define e legitima sua posi¢ao. A despeito da fraqueza politica do Império, a unidade reencontrada permi- te importantes avancos. Além de um primeiro desenvolvimento das zonas rurais, acompanhado de um salto demografico desde os séculos Vill e IX, observa-se uma retomada do grande comércio. Mas este é obra, sobretudo, de mercadores exteriores ao Império: no Sul, os muculmanos, que ainda abastecem de produ- __ 8s orientais as cortes principescas ou imperiais; no Norte, os navegadores ‘scandinavos, que importam madeiras, peles e armas. Assim, Dorestad, no mar Norte, se torna o principal porto da Europa, onde se estabelecem as trocas ‘6 continente, as IIhas Britdnicas ¢ os reinos escandinavos Embora elas . No essencial, exteriores ao Império, tais correntes comerciais obri- |uma reorganizagtio monetdria, De fato, Carlos Magno toma ee dee = importancia para os séculos medievais, renunciando a cunhagem do Sendoeim sistema fundado sobre a prata, metal menos raro ¢ mais a0 nivel real das trocas. A libra de prata é, entio, fixada em 491 gra- Parentesco (segunda ar, no més de pate. Forma-se, assim, por A civitizacao Feupat 73 separar as palavras umas das outras, assim como as frases, gragas a um sistema de pontuagao, a0 contrario do sistema antigo, que o ignorava totalmente Essas inovagdes, de aparéncia modesta, constituem, na verdade, histria das técnicas intelectuais. Gragas a essas modificagdes e a uma melhor organizacao dos scriptoria, onde os monges que se dedicam as e6pias dos manuscritos trabalham agora em equipes, partilhando entre si as diversas segdes de uma mesma obra, a procu- cao de livros aumenta de modo considerdvel (estima-se que cerca de 50 mil manuscritos foram copiados na Europa do século 1x). O essencial dessas obras responde 4 necessidade do culto cristéo, mas outras, menos numerosas, é ver- dade, pertencem a literatura latina classica. Elas so copiadas porque permitem aprender as regras do bom latim; é por isso que Loup de Ferriéres, um abade do século IX, preocupa-se em encontrar os melhores manuscritos de Cicero. Mas esses livros informam também sobre 0 passado pagio, que os cristaos tém necessidade de conhecer, certamente para melhor afastarem-se dele, quer se trate do passado de Roma, quer do dos povos germanicos (do qual da testemu- nho, por exemplo, a Hist6ria de Amiano Marcelino, que nao conhecerfamos hoje se um monge de Fulda nao a tivesse copiado no século Ix). E preciso, entao, relembrar este fato em geral esquecido: é aos clérigos copistas da Alta Idade Média e a seu trabalho obstinado, em um meio, nao obstante, pouco favoravel, que devemos a conservagao do essencial da literatura latina antiga. Outro instrumento decisivo da propagacao dos textos antigos é a manuten- ao de um conhecimento satisfatério das regras do latim, o que faz da gramati- “ Tetérica as disciplinas mestras do saber carolingio. Em um momento em que a lingua latina evolui de modo diferente segundo as regides, os clérigos carolingios tomam uma decisao que sela o destino lingufstico da Europa. Eles optam por restaurar a Ifngua latina, nao exatamente em sua pureza classica, mas a0 menos em sua versao corrigida, ainda que simplificada. Eles consideram esta escolha indispensavel a transmisso de um texto biblico correto e & compreen- sao dos fundamentos do pensamento cristao. Mas, ao mesmo tempo, eles reco- nhecem que as linguas faladas pelas populagdes distanciam-se inexoravelmen- te do bom latim, a ponto de recomendarem que os sermGes sejam traduzidos para as diferentes Iinguas vulgares de suas audiéncias. Assim, eles abrem a via aq bilinguismo que caracteriza toda a Idade Média, com, de um lado, uma mul- tiplicidade de linguas verndculas faladas localmente pela populagio e, de oun uma lingua erudita, aquela do texto sagrado e da Igreja, tornada incompreensi- vel para o comum dos figis. Essa dualidade linguistica aprofunda, entdo, 0 fosso €ntte os clérigos e os laicos, assegurando, ao mesmo tempo, uma unidade mar- cante A Igreja ocidental. grandes avangos na esbogar reformas que favoregam 0 acesso dos fi , elas impregnam-se de reminiscéncias cl is As relfquias. Quanto as ima lissicas, especialmente | pian © gosto pelos plissados delicados, que conferem as figuras dos evangelisias, co fn : angelistas, com fre quéncia representados nos manuscritos biblicos com um aspecto de cccei aspecto de escribas antigos. um dinamismo poderoso ¢ uma forte energia corporal, evo intensidade da inspiragao divina (figura 2, na p. 37). Poderacia, ean Inulkiplicar os exemplos no domfnioliterdri, Assim, Eginharde chen fia de Carlos Magno, tomando como modelo a Vida de Aupusio, de Sucre, poeta Angilberto faz-se chamar de Homero, enquanto o cfrculo de letades corte imperial, orgulhosos por possufrem obras clAssicas, como Cicero, Saldstio ‘ou Teréncio, é comparado a Academia ateniense por Aleuino Horacio. Enfim em todos os dom{nios, em Aix-Ravena e em torno de Carlos Magno-Augusto. morte-se de vontade de fazer reviver a Antiguidade, pois ela é, por exceléncia, a época do esplendor do Império. ‘Trata-se de multiplicar os sinais que sao tam- bém reivindicagées politicas da restauragao imperial (renovatio imperii) e que fazem de Carlos Magno e de seu filho os dignos sucessores dos imperadores de Roma (estando entendido que tal referéncia encontra sua legitimidade na uni- dade finalmente realizada do Império e da Igreja) Aexperiéncia carolingia foi de curta duracao. Ela mantém-se e consolida- se, em certos aspectos, durante o reinado de Luts, 0 Piedoso (814-40), mas, com a sua morte, a concepgao patrimonial do poder conduz a partilha de Verdun, em 843, que divide o Império entre seus trés filhos. Se este tratado € importante para a Francia ocidental (esbogo do futuro reino da Franga, do qual fixa por varios séculos as fronteiras orientais no eixo Rédano-Saéne), ele ndo chega a apaziguar as rivalidades no seio da dinastia carolingia, que apenas se ampliam. A estas dificuldades somam-se as desordens provocadas pelas incur- ses normandas e a pressao sobre a fronteira oriental, bem como 0 rapido agra- vamento das fraquezas internas do Império, cujas provincias se revelam cada vez ‘mais incontrolaveis. O imperador nao consegue assegurar a fidelidade dos con- ‘des e de outros aristocratas encarregados das unidades territoriais, mesmo a0 "Peco de concessies importantes, como a promessa de nao destituir o dignité- " F0 ou 0 compromisso de escolher seu filho apés sua morte. Nada funciona, a centrifuga ¢ irreversivel. Desde meados d 9 sécuilo IX, os condes come- speito das interdicdes imperiais, a erigir suas proprias torres ag bases de um poder autdnomo. Em 888, quando morre ninguém se preocupa em Ihe dar um sucessor Sdio tem seus admiradores incondicionais ¢ seus mais céticos Juizes, an ‘como um breve paréntese ou até mesmo como um aden ° ee de unificagao politica, mas, sem dtivida, muito modesto ‘A civitizagdo Feupal 77

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