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Seven Publicações Ltda, declares that the article Interdisciplinary interfaces: Education, society and the
teaching of history, by Maria Antonia Veiga Adrião, was PUBLISHED in the form of an individual chapter of a
book whose theme is: A LOOK AT DEVELOPMENT
ISBN: 978-65-84976-39-
DOI: 10.56238/alookdevelopv1-135.
Publication Link: http://sevenpublicacoes.com.br/index.php/editora/article/view/1676
________________________________________________________________________________________
INTERFACES INTERDISCIPLINARES: EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E O
ENSINO DE HISTÓRIA.
Resumo
Este artigo foi apresentado na “I Jornada Histórica: Conflitos Teóricos Lutas e
Lugares” – Mesa 2: “Professor Historiador: Estratégias da Docência”, proposta pelo Centro
Acadêmico de História do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú
(UVA) ocorrido em maio de 2022. As questões abordadas foram pensadas a partir das
reflexões realizadas com estudantes do primeiro semestre nas aulas de “Metodologia do
Trabalho Científico” quando se refletiu sobre os problemas e as soluções que a ciência
moderna tem colocado à humanidade, e como esta “humanidade” representada aqui por
algumas personalidades que expressaram suas insatisfações publicamente, portanto, como
esta humanidade tensiona mudanças nos paradigmas políticos, sociais, culturais e por
consequência científicos. Com efeito, o ensino de História toma destaque por ser um dos
campos de investigação que se apresenta como problema social e de estado, em vista de lidar
com a memória coletiva. Procurou-se deste modo, através da investigação em bibliografia
crítica entender como a ciência História produz consciência histórica e para quem produz.
Conclui-se que a ciência está presente na sociedade, mas, a maioria das pessoas não está
atenta à produção científica e cultural que ela representa, enquanto se propõe uma forma
diferente de lidar com o currículo universitário e escolar.
Palavras-Chave: Ciência Moderna. Memória social. Currículo Interdisciplinar.

Maria Antonia Veiga Adrião


Doutora em História Social (UFC)
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)

Introdução
Neste artigo traremos algumas reflexões referentes ao ensino de história e as
maneiras em como as ciências escolares, de maneira geral, são colocadas no currículo escolar
sem conexão com as experiências humanas, nem entre elas; sobretudo, sem conexão com as
necessidades humanas no tempo, como se as ciências tivessem surgido pela vontade dos
deuses. Por outro lado, sem se refletir a respeito das razões de nem todas as pessoas
concluírem a escola básica e se interessarem pela ciência, de as mulheres se fazerem ausentes
em boa parte do tempo científico, e neste sentido, da ciência se apresentar com cor, classe
social privilegiada e sexo, mesmo que existam maravilhosas exceções. Portanto, como se a
ciência fosse uma questão da metafísica ou das excepcionalidades do cérebro.
Ficamos nos perguntando, por que a escola sofre dessa desconexão? Talvez por ser
considerada, ou melhor, foi transformada em reprodutora e não em produtora de
conhecimentos? E qual o problema que isso causa? Acreditamos que um dos problemas é
2

que a ciência deixa de ser atrativa o quanto deveria ser, de ser importante no quotidiano
escolar o quanto deveria ser, já que as crianças e os jovens não são ensinados a fazer
perguntas e a investigar sobre as respostas, apenas a admirar, digamos assim, aqueles e
aquelas que passaram pela universidade aprendendo a reproduzir esse sistema de desperdício
que tem sido a escola pública.
Essa é uma ideia que já vem sendo objeto de análise desde as propostas de renovação
que a Escola Nova trouxe. Não pretendo entrar em seu arcabouço teórico e prático, nem
posso neste texto tão introdutório. Apenas venho tentando refletir a respeito, na perspectiva
de encontrar um lugar na mesa dos colegas da educação básica para as saídas que todos
procuramos.
Tivemos oportunidade de debater essas questões com as turmas de Metodologia do
Trabalho Científico em 2022, quando buscamos dialogar sobre como a sociedade percebe a
ciência ou como esta é percebida no quotidiano social.
O Problema
Considerando as reflexões de Santos na obra “Um Discurso Sobre as Ciências”,
quando este autor defende um novo paradigma científico
No paradigma emergente, o carácter autobiográfico e auto-referenciável da ciência
é plenamente assumido. A ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional
do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de
sobrevivência. Hoje não se trata tanto de sobreviver como de saber viver. Para isso
é necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo
e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos. A
incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como limitação
técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do
entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado.
[...] a ciência do paradigma emergente é mais contemplativa do que activa. A
qualidade do conhecimento afere-se menos pelo que ele controla ou faz funcionar
no mundo exterior do que pela satisfação pessoal que dá a quem a ele acede e o
partilha. (SANTOS, 2008, p. 85-86).

A questão posta aos estudantes como se fosse nova foi: como a ciência moderna
aparece nas nossas vidas? Uma pergunta que pode ser considerada até pueril porque existe
uma materialidade bastante visível, bastante palpável no que se refere aos produtos da
ciência moderna. Afinal, ao observar as engenharias, a farmácia, a medicina, a psicologia, a
pedagogia, a ciência política, a arquitetura, existe uma materialidade na produção científica,
no referente ao resultado das pesquisas nas diversas áreas do conhecimento que abrange não
apenas as requisições da indústria ou da economia, da biopolítica1, todavia, abrange
principalmente as necessidades sociais.

1
Lembramos de Foucault em O Nascimento da Biopolítica: curso dado no College de France (1978-1979)
(2008)
3

No entanto, e quanto ao reconhecimento social, como a sociedade percebe a ciência,


percebe a produção científica?
No que se refere as coisas do quotidiano que todos conhecemos sem precisar de
muitas explicações como as medicações adquiridas nas farmácias, sobretudo aquelas que
precisam de receita médica, ou às terapias médicas, as vacinações, ao que é ensinado nas
escola, as dietas alimentícias, como a indústria e as pessoas poluem o ambiente, ou a
produção das engenharias com cálculos que movem veículos quer no ar, quer na terra. Os
produtos que usamos na construção das nossas casas, as maneiras em como a TV, o cinema
e a Internet adentram nossas casas, como essas coisas todas que precisam de especialistas
são percebidas socialmente?
Para trazer um exemplo mais comum, vejamos às técnicas da construção civil que
um pedreiro utiliza. São práticas assimiladas na experiência e experimentações quotidianas
da longa duração passadas pelas gerações de pedreiros, ou derivam de orientações e cursos
ministrados por engenheiros nas construções ondem trabalham?
E no referente aos tipos de tijolos, telhas, argamassa, são reveladoras das alterações
técnicas modernas de pesquisas ou do trabalho dos pedreiros e serventes de construções, do
que eles testaram, observaram e realizaram, reverberando em alterações na sua vida prática-
profissional e na indústria da construção civil? Os pedreiros têm consciência dos estudos
que têm sido realizados que transformaram pontes de madeira em pontes de concreto e que
tiraram do artesão milenar a autoria das tecnologias da construção civil?
O que mudou na essência do tijolo produzido em olarias que ainda são fabricados
pelas áreas rurais brasileiras em relação ao produzido nas fábricas modernas de tijolos?
Quais as composições químicas dos dois? Quanto tempo levava a fabricação de milhares de
tijolos artesanais, quantas pessoas empregava, como eram transportados? As construções
eram mais ou menos seguras quando só contavam com essa tecnologia? Quais outras
tecnologias estão sendo esquecidas e quais novas estão sendo adquiridas?
E o que se sabe sobre esse profissional, o pedreiro, como ele se mantém trabalhando
sem muitas vezes ter concluído a escola fundamental? Ou pior, sem muitas vezes ganhar o
suficiente de modo que possa liberar seus filhos para a escolarização necessária? Essa é uma
questão da ciência moderna? É possível fazer relação entre a produção científica moderna e
a pobreza urbana? 2 Como a ciência tem colaborado com a multiplicação das populações3
versus a pobreza urbana? Qual a relação do conhecimento científico e suas tecnologias com
a evasão escolar?
E um agricultor? A agricultura de subsistência sustenta em grande medida a
população urbana brasileira segundo o IBGE, com uma tecnologia talvez pré-histórica
porque compreende uma organização familiar que abrange até as crianças em alguns casos,
enquanto se observa, por exemplo, na região norte do Ceará uma monocultura bem-sucedida
de coco, castanha do caju, entre outros produtos para exportação. No entanto, no que se
refere à agricultura de subsistência não fica muito claro que tipo de intervenção técnico-

2
Para o conceito de pobreza pensamos nas questões levantadas por Milton Santos em “Pobreza urbana”
(2009)
3
Refiro-me a todas as populações vivas de todas as espécies que não se pode maltratar.
4

científica ela sofre quando as pessoas envolvidas escolhem sementes, preparam a terra,
plantam, mantém os roçados, controlam pragas, colhem e armazenam antes e depois de
levarem às feiras.
Pelos instrumentos e maneiras de fazer em todo o processo, a impressão que deixa é
que essa intervenção tem se modernizado de modo quase imperceptível. As técnicas e
tecnologias utilizadas pelos lavradores e lavradoras aparentemente vêm mais dos costumes
e da experiência das gerações de agricultores, do que das proposições da agronomia, por
exemplo.
Apesar disso, é possível dizer que a ciência e as novas tecnologias estão presentes
em todos os lugares revolucionando os costumes e as práticas sociais, e por consequência,
os desejos de consumo, ao ponto de não se acreditar mais que se vivia nas cidades brasileiras
do século XX, utilizando como filtro de água um pano de algodão colocado na boca de um
pote4. Portanto, água que não chegava pelos canos diretamente às residências provindo de
alguma caixa d’água com uso normatizado por uma secretaria municipal, 5 todavia, chegava
através das cabeças das pessoas e de cargas d’água realizadas por comboios de jegues,
extraída de cacimbas dos rios, riachos e lagoas no período chuvoso, e no verão, dos
cacimbões mantidos em terras de fazendeiros ou nos quintais de quem podia construí-los.
Se pensarmos na produção científica podemos aceitar a ideia de que a ciência
moderna e suas tecnologias revolucionaram o mundo como já destacado, ao ponto de não se
acreditar mais que a medicina já se utilizou de técnicas hoje transformadas em receitas de
vovós. Porquanto, em qualquer lugar do mundo ocidental era comum médicos sugerirem
para a cura da tuberculose, por exemplo, repouso, afastar-se da vida urbana e fortalecer-se
com ar puro, leite, sopas, chás, que às vezes até aliviavam os sintomas dependendo do
avançado da enfermidade, no entanto, enquanto não se inventou a vacina e a penicilina, e a
vacinação em massa, essa terapia não oferecia chances de recuperação aos doentes.
Permanecem falecendo pessoas de tuberculose, no entanto, não pelas mesmas razões.
Sendo assim, se os produtos da ciência moderna se apresentam palpáveis, concretos,
consolidados, por que ainda causam dúvidas e negação como a que vivenciamos com a
epidemia da covid-19? Qual o papel da escola com seu currículo que foi transformado no
principal veículo de popularização de alguns campos científicos modernos?
No presente brasileiro se constata a “universalização” do ingresso à escola
fundamental e a erradicação do analfabetismo infanto-juvenil, embora que se apresente um
percentual alto de quase 5% que fica fora da escola e que em média, apenas 25% dos jovens
que adentraram a escola fundamental chegam ao ensino médio público6. Os resultados de
avaliações como as do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)

4
Cf. o dicionário da Porto Editora online, “Grande vaso de barro destinado a conter líquidos”. Disponível
em: <https:www.portoeditora.pt/apps/app-dlp>. Acessado em abr. 2022.
5
Ver o capítulo “A cidade se transforma” do livro “Os Caminhos do Sol: atravessar veredas na cidade
escurece à vista (migração campo-cidade) (Adrião, 2017).

6
Cf. os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio, parte 1 – bases legais, publicado pelo MEC em
2000.
5

apresentam fortes indícios do quão a escola tem estado de certa forma, em desfavor da
ciência moderna. 7 Questão muito complexa que não vamos poder explorar aqui.
O lugar da memória
No nosso caso específico, a ciência História, qual o produto palpável da ciência
História ou o que ela produz de visível, de sólido, de respeitável, que mereça reconhecimento
social? Mais claramente, o que produz a História?
É bom lembrar que essa pergunta obviamente já foi feita e respondida. Para citar
Certeau no artigo “A operação Histórica” vemos o seguinte: “O que fabrica o historiador
quando ‘faz história’? Em que trabalha? Que Produz? [...] saindo para a rua, se pergunta: o
que é este trabalho? Eu me interrogo a respeito da enigmática relação que estabeleço com a
sociedade presente e com a morte, pela mediação de atividades técnicas. (Id.,1995, p. 17).
Essa relação que estabelecemos com a sociedade na produção historiográfica
colabora com a preservação da memória? Qual memória? Ou talvez a pergunta seja: a relação
que a sociedade estabelece consigo mesma e com a memória pauta a produção do
conhecimento histórico? Como o conhecimento histórico tem dialogado com as identidades
sociais? Se fôssemos vacinar as pessoas contra o vírus do esquecimento, o que estaria em
pauta? Quais mutações o vírus sofreria?
Marquez em “Cem anos de Solidão” reflete sobre a convivência com o esquecimento
provocado pela “doença da insônia”. Neste sentido propôs algumas soluções ou “fórmulas”
para a convivência com essa perigosa enfermidade: primeiro, escrever o nome dos objetos e
pessoas e tudo que fazia parte dos seus significados, depois, deixa claro que se tratava de um
recurso muito difícil de continuidade pela falta de objetividade que mantinham nomes e
significados, sem contar que se todas as pessoas perdessem a memória, em algum momento
ela também seria esquecimento. A solução seria a “máquina da memória”. (MARQUEZ,
2019, p. 46) Poderíamos interpretar a história como essa grave enfermidade a qual propõe
esquecimento com sua escrita? 8 Não podemos nos aprofundar nesse debate neste momento,
todavia, é preciso concordar que a escrita da história é lugar de esquecimento mais do que
de rememoração.
Certeau (1995, p. 22) defendeu que: “Em história, é abstrata toda ‘doutrina’ que
rechaça sua relação com a sociedade. Assim procedendo, renega aquilo em função do que
ela se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que de fato
a situa [...]”. Nesta perspectiva pode-se dizer que a história tem se negado a uma relação
mais complexa com a sociedade por ter-se constituído em narrativa de governantes e seus
interesses?

7
Ver os artigo VERTENTES SOBRE AVALIAÇÃO EM LARGA ESCALA E POLÍTICA
EDUCACIONAL: POSSÍVEIS LACUNAS À SE PREENCHER de Emilly Gonzales Jolandek et al.,
publicado em Revista Valore, Volta Redonda, 3 (Edição Especial): 390-402., 2018.
8
Cf. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury.
Projeto História. São Paulo, vol. 10, p. 7-28, dez. 1993.
6

Já Cunha (2001, p. 6) chama atenção para o fato de que: “Embora apareça na equação
determinante do Brasil, tanto cultural como da constituição do povo, a idéia das três raças,
estranhamente, somente uma aparece localizada como possuidora e depositária de processo
civilizatório.” Se considerar que, os parâmetros historiográficos brasileiros também foram
proposições dos colonizadores, como nossa escrita histórica poderia ter-se feito diferente e
insurgir de forma a dar lugar à diversidade da memória?
Todavia, Nascimento (1980, p. 45-46) citando Diop lembrou-nos “de que um sistema
de ciência humana ou histórica para a África” não pode partir das formas de fazer ciência no
e do ocidente. Radicaliza defendendo que “o mais importante: é nunca partir do caminho
científico” existente, porquanto: “As razões desse acientificismo são obvias, já que grande
parte da ‘ciência’ tem-se provado apenas como instrumento de distorção, de opressão e de
alienação.”. Defende assim que possamos ver a ciência sob outra orientação que não a dos
ocidentais pois
[...] convém insistir neste ponto: as culturas africanas, além de conterem sua
intrínseca e valiosa ciência, também oferecem uma variedade de sabedoria
necessária pertinente a nossa existência orgânica e histórica. O mínimo que se
pode dizer é que seria um desperdício recusar os fundamentos válidos de nossos
ancestrais. Eles são o espírito e a substância do nosso amanhã [...].
(NASCIMENTO,1980, p. 46).

Circunstância que atinge não apenas os povos africanos e afrodescendentes, porém,


é também um problema dos povos originários que ainda estão sob o colonialismo. É um
problema dos vários povos indígenas que resistem não apenas defendendo seus corpos
unidos aos outros corpos que compõem a Terra, mas, com um dos elementos mais
importantes que nos constituem como pessoas, a memória.
Destacamos neste sentido este relato bem conhecido de Krenak (2018, p. 7)
A primeira vez que desembarquei no aeroporto de Lisboa, tive uma sensação
estranha. Por mais de cinquenta anos, evitei atravessar o oceano por razões afetivas
e históricas. Eu achava que não tinha muita coisa para conversar com os
portugueses — não que isso fosse uma grande questão, mas era algo que eu
evitava. Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e
companhia, recusei um convite para vir a Portugal. Eu disse: ‘Essa é uma típica
festa portuguesa, vocês vão celebrar a invasão do meu canto do mundo. Não vou,
não’. Porém, não transformei isso numa rixa e pensei: ‘Vamos ver o que acontece
no futuro’.
Pode-se dizer que a consciência histórica dos povos indígenas representada aqui neste
excerto do livro “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” não se deixou colonizar. Os indígenas
sabem que sua sobrevivência depende também da preservação das suas memórias.
E por que essa questão é importante? Porque gostaríamos de destacar a consciência
histórica defendida por Nascimento acima, das escolhas que são feitas a partir dessa
consciência e sua relação com a ciência História.
Pode-se dizer que a consciência histórica de Krenak provém da ciência história
ensinada nas escolas ou das pesquisas universitárias? Em alguma medida talvez porque
afinal, ele teve a sua dose de escolarização. Não obstante, seus biógrafos o colocam como
ambientalista, filósofo, escritor, jornalista, poeta, deste modo, sua consciência histórica tem
7

diversas fontes, possibilidades que se somam à luta a qual ele se insere em defesa de seu
povo.
Agora, observemos Jesus (2014, p. 121)
14 de setembro.... Hoje é o dia da pascoa de Moysés. O Deus dos judeus. Que
libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da
noite. E o judeu porque é inteligente. Moysés quando via os judeus descalços e
rotos orava pedindo a Deus para dar-lhes conforto e riquezas. É por isso que os
judeus quase todos são ricos.
Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós.

Trata-se de um excerto do livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” de


Carolina Maria de Jesus, escritora, poetisa, catadora de papel, moradora da cidade de São
Paulo que foi “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas ao fazer uma reportagem na
“favela de Canindé”, situada à margem do Tietê nesta cidade. Esse jornalista ao deparar-se
com Jesus e conhecer seus relatos escritos em forma de diário a respeito de suas vivências
em São Paulo, mas, sobretudo na favela onde morava, alçou seu diário em 1960 a um dos
livros mais lidos do mundo publicado em 13 línguas. Possibilidade que, quem leu o livro
sabe que era um dos seus objetivos, ela queria que as discriminações que sofria fossem
conhecidas através da publicação do seu livro.
Pode-se dizer que, a consciência histórica dessa autora tão original provém da escola
estudando História? Seus biógrafos destacam que seu percurso escolar foi de apenas 2 anos.
Neste sentido, sua consciência histórica não pode ser comparada com aquela adquirida nos
bancos escolares. Na verdade, nem se ela tivesse estudado o suficiente, porque a consciência
que se adquire na escola é de outra ordem, segundo Rüsen “pode-se recorrer a diferenciações
tipológicas do aprendizado histórico na âmbito da didática, e, com isso, elaborar uma
tipologia das formas do aprendizado histórico, que pode ser utilizada como um instrumento
ideal-típico para a análise e a interpretação de processos concretos de aprendizado.” (Id.,
2011, p. 45)
Os estudos desse autor num primeiro momento aparecem como uma fórmula a ser
seguida, um método que encontraria facilmente seus objetivos, como se a consciência
histórica pudesse ser quantificada, como se estivéssemos todos falando de um mesmo lugar,
com um mesmo passado, com um mesmo presente, por sua vez, com uma mesma perspectiva
de futuro num tempo que obedeceria a uma ordem material.
No entanto, antes ele ressalta
Como tal apropriação se dá por interações, o conhecimento histórico,
hipoteticamente pré-delineado e empiricamente adquirido, deve ser ainda
formatado, tornando questionável e negociável intersubjetivamente, para
finalmente se transformar, dessa forma, em elemento de um discurso, no qual se
constrói a identidade histórica dos sujeitos que interagem, entre si. (Id., 2011, p.
44).

Portanto, para Rüsen


Na forma de aprendizado de construção genética do sentido da experiência
temporal serão empregadas experiências temporais em temporalizações da própria
orientação das ações. Os sujeitos aprendem, na produtiva aquisição da experiência
histórica, a considerar sua própria autorrelação como dinâmica e temporal. Eles
8

compreendem sua identidade como ‘desenvolvimento’ ou como ‘formação’, e ao


mesmo tempo, com isso, aprendem a orientar temporalmente sua própria vida
prática de tal forma que possam empregar produtivamente a assimetria
característica entre experiência do passado e expectativa de futuro para o mundo
moderno nas determinações direcionais da própria vida prática. (Ibid., p. 46).

Esse autor nos coloca problemas importantes e necessários para que pensemos sobre
a produção da ciência História, uma vez que, parte dessa produção acontece em sala de aula
na ação educativa que segue uma ordem curricular e cultural, no tipo de identificação
positiva ou negativa a qual o ensino de história pode proporcionar. Todavia, muitas outras
partes acontecem fora dela, como ele assinala.
Deste modo, talvez a questão principal a ser refletida ao ler o problema colocado por
este autor e pelos autores supracitados seja entender que, o ensino de história não é o único
ensino na escola onde a consciência histórica se elabora e se relaciona com as ações humanas
no tempo. Somam-se ao conhecimento histórico os outros conhecimentos ensinados na
escola e os saberes que chegam das experiências e que, portanto, corroboram com a
consciência histórica e com a memória. Conhecimentos que provém como já cogitado com
os relatos de Krenak e de Jesus, de fontes as mais dessemelhantes, as quais, o historiador
circunscrito aos textos, nunca alcançará.
No entanto, e se passarmos a colocar essa matemática quotidiana como problema real
no quotidiano das classes escolares para se aprender a ler, interpretar, multiplicar, dividir?
Acreditamos que, a matemática trazida da experiência social ou da política oficial poderia
talvez resolver a tão almejada proficiência em matemática. Porque pode ser uma boa maneira
de entender como a consciência histórica de quem não cumpriu com o tempo escolar
acontece, afinal, pode ser um maravilhoso exercício formar conjuntos com o que nos falta:
pessoas, coisas, lugares, culturas, territórios. Que matemática compunha um território negro
no Brasil colonial, que matemáticas os compõem no presente?
O tempo social é um problema matemático incrivelmente interessante. Falar de
tempo é falar de simultaneidades, de relações, de quem está dentro, de quem está fora, ou de
quem ficou dentro, de quem ficou fora. De quantos conjuntos podemos formar com o que se
constitui nosso passado, nosso presente, é falar do que se viveu ou se vive, sentiu, sonhou,
imaginou também, portanto, é falar de inclusão e exclusão de possibilidades quer materiais,
quer imateriais. O que está em formulação numa mesma hora, é problemas de matemática,
embora que aqui seja dia e ali seja noite, mais ainda. Como explicar essas relações e
quantificá-las dentro de contextos diversos e adversos?
Concluo que, estudar história passa pela matemática humana no tempo, pelo que ela
soma ou subtrai, assim como passa por outras ciências.
Neste sentido, se as experiências humanas se apresentam entre números que subtraem
e números que somam, números que dividem e números que multiplicam, números que
esclarecem e números que confundem, números pares e números ímpares, números que
equacionam, relativizam, desvalorizam, supervalorizam, que, deste modo, colocam as
experiências humanas nos seus tempos próprios, enquanto deixam vestígios, fragmentos de
memórias os quais não precisamos escavar muito fundo para que os cacos saltem aos olhos
e se transformem em números, lugares, cargos, projetos governamentais e pessoais também.
9

Pois os fragmentos são representativos de circunstâncias do passado, comprovam em qual


cultura ou contextos estavam imersos: a idade, o lugar, a técnica, a tecnologia, a fábrica, a
indústria, os valores sociais e culturais, ou o objetivo que destaca a empresa política.
Problemas de equação determinada ou indeterminada? Quem nomeia, esclarece,
conceitua, apaga, silencia os números das vidas que interessam ou das que podem ser
subtraídas e tornadas restos? Vidas das cidades, nações, número de vivos, número de mortos,
de crianças, jovens, adultos. Biopolíticas e investimentos dos governos, onde sobra, onde
falta; estatísticas? Podemos perceber desta forma, onde os números parecem brincar com a
dor ou com a alegria, quando brincam de pular de casas e comer as pedras restantes de uma
só vez.
Não obstante, os matemáticos simplificam o entendimento ou nem buscam os
contextos dos problemas, dos números em que estão implicados os produtos. Os produtos
representam outros números que são apresentados apenas como resultados de cálculos. Não
se cobra dos matemáticos que os resultados entejam alinhados a consciência social, histórica,
cultural do seu tempo e que se “respeite” o tempo passado, que não se julgue o passado. Não
se exige “cuidado” com os ressentimentos quando matemáticos analisam quantidades que
deveriam ser compreendidas no curso da história, principalmente dos que sobraram,
faltaram, ou dos que ganharam e dos que perderam, dos excluídos e dos incluídos. Ninguém
pergunta aos estudiosos e estudiosas da matemática de que lado se colocam quando
apresentam números negativos como se fossem positivos, não importando como se
apresentam as mortes, as perdas, os ganhos, as equações das guerras, colonizações,
migrações, epidemias, políticas de extermínio, isso cabe aos historiadores.
Números que refazem a memória histórica, os estados, a geografia, as sociedades, a
política, a economia. Com efeito, se resta à História apurar, refletir, fazer entender, esse é o
nosso produto, o produto da ciência História? E das demais ciências presentes na escola?
Como lidar com um conhecimento que se propõe à construção de identidades a partir
de números que só interessaram a um lado? Precisamos concluir que se existe um erro
metodológico, ele reside em não sabermos como lidar com a interdisciplinaridade natural
que apresentam as ciências para que insurjam “situações – problemas”9 ligadas aos contextos
presentes na matemática cotidiana que colaborariam com o entendimento conceitual dos
discentes.
Um ensino de história em interlocução com o ensino de matemática ainda poderia
trabalhar os sentimentos, quanto valiam os sentimentos dos povos escravizados? Na época
nada, e hoje, qual valor lhes damos, qual valor lhes dão seus descentes? Tenho curiosidade
para saber como se pode medir as saudades, a alegria da vitória, a tristeza da derrota?
Alegria, tristeza, raiva, horror, repulsa, tendo por exemplo as ações políticas como
interlocutoras? Provavelmente se garantiria uma consciência histórica mais reflexiva sobre
o passado, ou sobre o presente.

9
Núñez e outros autores defenderam concordando com a psicologia da aprendizagem desenvolvida por P.
Ya. Galperin que o conhecimento acontece pela formação de conceitos que sua vez é facilitada quando o
ou a professora consegue que os/as estudantes desenvolvam situações-problemas com os conceitos
apreendidos no processo da aprendizagem que não é natural, é para acontecer com o planejamento do
trabalho docente que deve acompanhar as fases da aprendizagem.
10

Portanto, se passarmos a trabalhar de forma interdisciplinar eu proporia um diálogo


com os matemáticos. É preciso entender objetivamente como as somas entram em nossas
vidas. As subtrações, as divisões, multiplicações, equações. Quantas fontes de memória
importantes elas produzem, significam, intermediam, para que possam ser utilizadas para
que a educação escolar fique mais interessante, para quem tem no seu passado a marca da
subtração geográfica, matemática, histórica, artística, filosófica, biológica, possa quem sabe
deixar de evadir-se da escola.
Neste sentido, podemos perguntar, o que é um conjunto social, político, econômico?
Assim, se utilizarmos os conceitos que compõem os conjuntos, se utilizarmos a linguagem
dos conjuntos, ou a linguagem da conjunção e mesmo da conjugação de coisas, de pessoas,
lugares, eventos, metas, desejos, tensões, projetos, sonhos, que tipo de resultado obteríamos
no aprendizado da leitura e da escrita, por exemplo? Como se somam coisas imateriais, como
podemos mensurá-las? Como acontecem as disjunções de conjuntos que fizeram ou fazem
percursos opostos embora na mesma direção, com o objetivo matemático de parar no mesmo
território?
Quantas equações matemáticas poderiam resultar o sequestro de africanos para o
Brasil nos séculos que se seguiram à chegada da empresa colonial moderna? Quantas
conjugações de números poderíamos tirar? Perdão, mas este tema decididamente nos
interessa. Portanto, quem ficou de fora, quem ficou dentro, quantos morreram no percurso?
Quanto custou à empresa colonial os conjuntos e subconjuntos que se formaram conforme
os séculos foram se passando? Quantos embarcaram na costa africana, quantos chegaram à
costa brasileira? Quantas interseções, frações, equações derivaram na revisão das perdas e
dos ganhos? Quantas conjunções e disjunções se pode analisar a partir do primeiro navio
negreiro que aportou no Brasil quando comparado com o que restava em 13 de maio de
1888?
Santos (2022) em uma aula intitulada “Descolonizar a História”, transmitida pelo
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra através do Youtube, apresentou
algumas proposições e críticas para a escrita da história assinalando que, a escrita da História
termina por ser pouco relevante socialmente no sentido do quem ela representa. Deste modo,
defendeu que: “para além de muitas outras coisas que nos dividem e que nos unem, as
sociedades estão divididas entre dois polos ou grupos de pessoas: os que que não querem
recordar e os que não podem esquecer”.
Destacou, portanto que, “o primeiro grupo olha para o passado e diz, é verdade,
houve muita violência, muito sofrimento, mas no final valeu a pena, estamos bem, só nos
resta olhar para o futuro”. Para ele esse grupo já vive o futuro porque experimenta às
vantagens das conquistas do passado e não se importa com os números negativos, uma vez
que se beneficia deles. Porém, “o segundo grupo, o grupo vencido, tem o passado como algo
que não pode ser esquecido. É um passado que foi vivenciado junto, em comum com o grupo
vencedor, contudo, de forma muito diferente”, não se trata da mesma memória, nem do
mesmo passado, é outra temporalidade. Redundando, “o passado para quem foi espoliado,
humilhado, derrotado, não pode ser visto da mesma forma, não pode ser simplesmente
esquecido” (SANTOS, 2022)
11

Veja como temos um problema de matemática interessante para ser resolvido! Para
Santos o passado daqueles que representam os “vencedores” passa a naturalizar os
problemas advindos, é um passado naturalizado porque é um passado que justifica o presente
e presente que por sua vez, justifica o passado. Porquanto, esse grupo defende que as coisas
ocorreram como ocorreram porque não havia como ser de outro modo. Aqui temos
novamente uma parábola matemática pois: como uma situação que submete populações
inteiras à vala dos feridos e mortos poderia ocorrer diferente? Pode ser um exercício de
literatura também!
Portanto, para Santos (2022) o passado dos segmentos “derrotados pela história” não
pode ser simplesmente esquecido. Ele não está morto, a memória não está morta. Essa
memória se renova, tem como função não deixar esquecer as injustiças, as perdas, os mortos,
mesmo porque, no caso brasileiro se vive as consequências muito duras desse passado.
Assim, destaca esse autor, “para aqueles e aquelas que ficaram longe da distribuição das
riquezas e das glórias do passado, este não pode ser esquecido porque não passou, está
presente na vida dos sobreviventes”.
Lembrando que estamos falando de experiências diversas que constituem a memória
social, no entanto, não é possível colocar na mesma equação essa memória, ela forma
conjuntos diversos. Embora que a memória se torne em fragmentos muitos vezes confusos
na relação de alteridade com o tempo, porém, os grupos vencidos viveram de certa forma
uma não-relação de alteridade com o tempo, diante dos deslocamentos, expropriações e
silenciamentos. 10
A consciência histórica desta parte da história, tendo como exemplo os dois citados
acima Krenak e Jesus, necessariamente se move de modo a deixar claro sua insatisfação com
o passado. Não que a consciência histórica ou a memória dos grupos que foram sendo
silenciados não sofra de incoerências, buscando talvez uma verdade ou uma memória que os
favoreça diante de uma realidade sempre muito complexa e sempre renovada pelo presente,
outra questão abordada por Santos (2022) na aula referida transmitida repetimos, pelo
YouTube. Contudo, essas ambiguidades são colaboradas pela luta contra o silenciamento,
indubitável na empresa colonial citada como exemplo pelo autor, considerando aqui, as
narrativas representativas que mencionamos antes, as quais passaram à história como se não
tivessem direito à memória, os registros são na maior parte exógenos, portanto, de fora das
suas experiências e pontuais.
A materialidade da memória no nosso caso, celebra os vencedores, comunica sua
visão, sua perspectiva. A memória material dos povos expropriados pela empresa colonial
sofreu de espoliação, pois em alguns casos não chegou a ser produzida, ficou apenas no
desejo e na luta realizada pelos mortos, na forma como passaram à história.
Não obstante, estamos falando da consciência histórica que representa quem foi
silenciado circunstancialmente, que sabe que precisa lutar para que o passado não se repita,
para que “o fim do mundo seja adiado”, advertido por Krenak, porque para quem considera
isso uma bobagem, é preciso lembrar que o fim do mundo tem sido adiado algumas vezes
para os povos subalternizados de modo a deixar claro seu lugar no mundo e sua luta. De todo

10
A respeito ver a obra de Franz Fanon “Pele Negra, Máscaras Brancas”.
12

modo, não podemos esquecer que existe uma dívida histórica, da produção da escrita da
história que reverbera no currículo escolar com esses povos.
Ontem a professora Gleidiane Ferreira lembrou-nos sobre essa possibilidade, da
crítica que tem sido realizada aos militantes da história oral, por exemplo, porque saíram
defendendo a possibilidade de “dar voz aos vencidos”, diante das dificuldades de
reconstituição do passado em relação a alguns grupos, ou diante da dificuldade da
materialidade das suas memórias. Isso porque lembrou-nos a professora “que não temos que
dar voz a ninguém, as pessoas podem buscar se colocar da forma como querem se colocar;
e assim tem-no feito?”.
Pergunto, e ao fazerem essas pessoas ou povos estão assegurando seu lugar na escrita
da história e no currículo escolar, e por conseguinte, que se estude sobre seu passado e seu
presente?
Importante lembrar que, não é tão simples, a não ser que elas consigam escrever seus
próprios livros, porque só assim se oportunizam ao currículo, todavia, direcionado ao
conhecimento histórico próprio, nas suas próprias escolas, solução praticada inclusive no
Brasil.11 A política curricular brasileira, sobretudo no que se refere aos estudos históricos
para a escola básica perpassa os interesses governamentais ao ponto de ser o único tópico
curricular de merece destaque na LDB/1996, pois no artigo 26 parágrafo 4º sublinha: “O
ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
europeia.” (BRASIL, 2017, P. 20).
No entanto, como já assinalado acima, essa defesa que é recorrente não serviu para
orientar as pesquisas para evitar que indígenas, africanos e afrodescendentes estivessem
numa equação de desigualdade na escrita da história, e por sua vez, nos currículos escolares
e universitários.
Sem uma revisão epistemológica fora do âmbito historiográfico como propuseram os
já citados Nascimento (1980); Cunha (2001); Boaventura (2020; 2022), sem se garantir
autonomia curricular, mesmo com as diretrizes curriculares expressadas nas leis 10.639/200
e 11.645/2008, provavelmente não veremos tão cedo alterações substanciais nos currículos,
porque estamos falando além disso das disputas pela memória histórica.
Nessa perspectiva, o currículo de história quer universitário, quer da escola básica
está em correlação com as escolhas de pesquisas que são da autonomia dos pesquisadores e
pesquisadoras, mas por outro lado, as escolas dependem de algumas tecnologias para
funcionarem como os livros didáticos, nisso vão insurgindo outras interlocuções como as
empresas produtoras de livro didático, as avaliações externas etc.
Nesta perspectiva não devemos esquecer dessas complexidades que constituem a
política educativa e científica brasileira.

11
A respeito ver o artigo de Henrique Cunha Jr. Africanidade, Afrodescendência Educação. Importante a
pesquisa de SILVA, Adriane Costa da. Versões Didáticas da História Indígena (1870-1950).
Dissertação de Mestrado. (Programa de Pós-Graduação Faculdade de Educação) Universidade de São
Paulo, São Paulo, 200, 153p.
13

Sobre o que produz a história


Ontem ouvimos nossos colegas destacarem que quem estuda história precisa assumir
uma postura crítica de ação, de intervenção na sociedade. Se concordarmos com essa
proposição, e não há razão para não concordarmos, como seria essa intervenção? Ela não
pode ficar na abstração discursiva obviamente.
Quando Rüsen (2011) ressalta conforme já citado acima que “tal apropriação se dá
por interações, o conhecimento histórico, deve ser ainda formatado, tornando questionável
e negociável intersubjetivamente, para finalmente se transformar, dessa forma, em elemento
de um discurso, no qual se constrói a identidade histórica dos sujeitos que interagem, entre
si,” está nos lembrando que existem diferentes tipos de consciência histórica dependendo,
portanto, daquilo que Santos (2022) ressaltou na aula aludida, quando se percebe que a
consciência dos grupos vencedores fica de uma lado e a consciência dos grupos
subalternizados fica de outro.
Para Rüsen (2011) pensar a prática histórica no ensino e na pesquisa é fundamental
porque podemos encontrar a chave com a qual podemos completar nosso objetivo, do que
fazemos e como fazemos. Entretanto, se pensarmos nas desigualdades sociais, nas
iniquidades sociais, o problema permanece. Se a consciência histórica é um dos trunfos da
ciência história, é preciso repensar como temos trabalhado porque essa consciência não
parece imbuída de princípios revolucionários como advertiu professor Karnal em uma de
suas aulas públicas postadas no Youtube sobre o ensino de história, quando assinala que
temos feito exatamente o contrário.
Segundo Cara (2019) em um artigo intitulado Contra a barbárie, o direito à
educação
[...] é possível afirmar que Educação é apropriação de cultura, de tudo aquilo que
o ser humano criou e cria para além da natureza. As comunidades, as sociedades,
os Estados, as línguas, as linguagens, os valores, as religiões, as artes, as ciências,
os esportes, a democracia (ou por que não os regimes e as práticas políticas?) e
todas as outras formas de deliberação e de organização da administração pública
e do poder; enfim, tudo que é criado pelos seres humanos pode ser chamado de
cultura e são expressões vivas da história de um povo, de alguns povos, de muitos
povos e, em alguns casos, de toda a humanidade. (CARA, 2019, p. 26).
Neste sentido, ao concordar com esse autor, estamos assinalando que “tudo que é
criado pelos humanos e humanas pode ser chamado de cultura e são expressões vivas da
história de um povo, ou de muitos povos”. Dito isto, podemos perguntar o que temos
estudado e o que temos ensinado que vá nesta perspectiva? Se formos mais longe e lembrar
que essa produção cultural é temporal, deste modo, o que os povos produziram
preteritamente falando foi se modificando, entenderemos facilmente que estudamos muito
pouco do que a humanidade produziu até o presente.
Pode-se deduzir que as coisas produzidas pela humanidade são tantas, foram tantas
que não se pode estudar tudo que foi produzido no passado, menos tudo o que é produzido
no presente, é preciso fazer escolhas. Portanto, nem todas as coisas pensadas e realizadas
pela humanidade cabem nos currículos escolares e universitários, no caso específico da
história, nem tudo cabe nos programas de história seja da escola básica seja da universitária,
obviamente.
14

No entanto, se pensarmos nos currículos como frutos de escolhas das autoridades


educativas, chegaremos facilmente a conclusão de que estamos lidando com um sistema de
escolhas que envolve as orientações curriculares vindas do Mec e secretarias de educação,
mais as escolhas docentes. Mais ainda, pode-se cogitar que a proposta curricular é sobretudo
escolha docente. Conforme nos lembra Arroyo, trata-se de
A mesma lógica que vem operando, sacrificando por séculos os coletivos
diferentes pensados como deficientes. A construção da nação civilizada, culta,
letrada, moderna exigiu sacrificar os coletivos pensados incultos, primitivos,
iletrados, atrasados (inurbanos). Quantos extermínios justificados em defesa da
civilização e da educação. (2013, p. 65).

Para situarmos melhor a questão, estamos lidando com um sistema de poder que
escolhe o que se deve aprender, por qual razão se deve aprender, e mais ainda, como se deve
aprender. Lembrando que, é com o ensino de história desde que foi implantado com a criação
do Colégio Pedro II em 1837, que se iniciam as defesas do que ensinar e a quem,
objetivando-se instituir a civilidade brasileira.
Estamos lidando com um sistema de escolhas poderoso, que nos envolve a todos e
todas porque um dos dispositivos de poder que ele mobiliza, é a naturalização dessas
escolhas. Por que ensinar isso e não aquilo, por que estudar isso e não aquilo, e por
conseguinte, por que pesquisar isso e não aquilo?
Imagina se a escola deixasse de ensinar sobre a democracia grega, sobre as disputas
nas cidades-estados gregas, sobre o império de Alexandre, o império romano, as invasões
bárbaras, a respeito do império bizantino, imaginem se as crianças podem deixar de aprender
sobre até onde foi o império português, a dominação espanhola, sobre o iluminismo, a
reforma protestante, sobre a revolução inglesa, a revolução francesa, revolução industrial
europeia, sobre como o mundo se tornou cristão, o capitalismo, o socialismo, o império do
Brasil, inventa-se até impérios?
Mas alguém dirá, essa crítica está superada porque não se estuda mais como os
“homens de escol”12, são outros paradigmas. Diremos, sim, ainda se estuda como os
“homens de escol” e ainda se aprende esse arcabouço colonizador, e ainda se ensina esse
currículo “universal”, e para isto se utiliza de várias justificativas sendo algumas
ininteligíveis pois as reformas não podem nem pensar em retirar do currículo de história os
problemas europeus. Recentemente ouvi de uma professora como justificativa “que é esse
o nosso campo de atuação, se não o defendermos quem o fará?”
Pergunto, por que este é o nosso campo de atuação e de ação, de opção política
curricular? Por que o currículo de história e os estudos de história precisam carregar essa
filiação cultural e civilizatória? Vejamos nós aqui, quais são as nossas pesquisas? Por que
não podemos ensinar e aprender mais sobre o que pesquisamos e sobre o que nossos
estudantes desejam aprender, pesquisar?
Fanon no seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) chamou atenção para o
racismo que pode ser lido como uma linguagem, por sua vez, a História pode ser lida como

12
A respeito consultar o artigo O ensino de história no Brasil: do Colégio Pedro II aos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Ivan A. Manoel.
15

uma linguagem? E como uma linguagem o que ela nos ensina? O que o passado nos ensina?
O que o movimento humano no tempo nos coloca? O que o movimento historiográfico nos
ensina? Por que tememos nosso próprio aprendizado? Por que não defendemos o que
aprendemos, o que concluímos com nossas pesquisas?
Considerações para outras reflexões
Se hoje pudéssemos sugerir um currículo, perguntaríamos como Pacheco: “o que
você quer aprender?” Se nos fosse feita essa pergunta responderíamos: tudo o que está fora
do escopo tradicional, quando não faltaria política governamental e luta social.
Também teríamos a sugerir que a Universidade Estadual Vale do Acaraú a qual nos
filiamos precisa de uma mudança epistemológica descolonizada.
A UVA poderia ser uma universidade de destaque se ela tivesse uma identidade
própria. Pergunto, por que as universidades brasileiras precisam defender currículos
padronizados? Por qual razão a UVA não pode organizar suas próprias linhas de pesquisas
de modo a responder interesses locais, ao tempo em que acrescentaria proposições nacionais
e internacionais também? Por que os cursos de história, no nosso caso específico, precisam
defender o mesmo currículo? O que o curso de História da UVA poderia acrescentar ou
aprender com os cursos de história situados em Fortaleza e nas outras regiões do Ceará, e
com os cursos de história de outras regiões do país e do mundo?
Veja bem, a UVA está situada na cidade de Sobral que se localiza na região Vale do
Acaraú, uma região que compreende dezenas de municípios e ao mesmo tempo se situa na
região noroeste cearense, o isso significa? O que sabemos sobre esse território brasileiro?
Quem morava nessas terras, quem permanece morando? Quais suas características humanas,
fisiográficas, históricas, culturais, econômicas, educacionais? O que existe deste lado de cá
do Brasil que não se encontra no vale do São Francisco, no vale do Rio Negro, ou vale do
Paraíba?
O que sabemos do movimento populacional colonial, monárquico, republicano desta
região, da ocupação das terras devolutas? O que sabemos sobre as nações indígenas
sobreviventes? A respeito do movimento quilombista antes e depois da abolição? 13 Uma
chave de discurso regional ligava a migração de camponeses à questão do clima e do
desemprego, por consequência, a outras regiões do país, outra chave relaciona também o
latifúndio ao desemprego da população sem-posses e por sua vez, à migração para os centros
urbanos dessa região e de outras regiões brasileiras, o que mudou no movimento migratório
intermunicipal, inter-regional, sazonal? As políticas de açudagem e irrigação por um lado, e
por outro, de industrialização promovidas pela Sudene14 agenciaram mudanças no
desenvolvimento econômico, social e cultural do Ceará, de que tipo? O que se pode dizer 50
anos depois? No concernente a escolarização e qualificação da população, qual a
contribuição da UVA?

13
Cf. Abdias do Nascimento: O Quilombismo: uma alternativa política afro-brasileira. Afrodiáspora, ano
3, n.6-7, 19-41, 1985.
14
A respeito confira a criação da Sudene em FURTADO, Celso. A Fantasia Desfeita. 3 ed. São Paulo: Paz
e Terra 1989.
16

Portanto, qual o balanço que se faz da criação da Sudene, da Embrapa? O que a


Sudene aliada ao Dnocs15 promoveu de fato? E a Embrapa? 16 Qual o objetivo social de duas
pesquisas?
E o nosso bioma?
Não estamos afirmando que não existem pesquisas individualizadas a respeito, no
entanto, a UVA poderia criar um programa de pós-graduação interdisciplinar de modo que
contemplasse alguns eixos de pesquisas, com garantia de financiamento seria melhor ainda.
Programa que pudesse atrair pesquisadoras/pesquisadores de dentro e de fora para
investigarem problemas que conjugassem essas questões com outras do interesse das
populações moradoras dessa região, seus saberes e conhecimentos também.
Pode-se partir do princípio que interessa à UVA estudar essas e outras questões como
as energias limpas, já que estamos em uma região com bastante sol praticamente o ano inteiro
e um bioma vegetal muito resistente. A UVA neste sentido poderia ofertar cursos com novos
objetos de estudos que poderiam se somar aos existentes a nível de pós-graduação em
diálogo com a sociedade local e suas necessidades.
Lembrando que a “interculturalidade crítica” tem o objetivo segundo Salinas e Núñez
de questionar as relações de poder naturalizadas, portanto, de refletir “sobre as diferenças e
desigualdades construídas ao longo da história entre distintos grupos socioculturais, étnico-
raciais, de gênero e de orientação sexual, entre outros.” (2020, p. 14, tradução livre).
Nesta perspectiva
Se parte da afirmação de que a interculturalidade aponta para a construção
de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da
democracia mas sejam capazes de construir novas relações, na verdade
igualitárias entre os diversos grupos socioculturais, na qual supõe-se
incorporar questões que foram historicamente consideradas inferiores. (Id.,
2020, p. 14, tradução livre).

Logo, trata-se de criar condições para o conhecimento fora do escopo do ditado pela
ciência moderna, ou pelo menos, de incorporar para estudos os problemas que nos legou a
colonização e a colonialidade em âmbito local e sua relação com outros contextos.
Embora concorde com a crítica que autores como Albuquerque Junior realizam sobre
a questão da “identidade regional”, no entanto, não estamos propondo que a UVA se
transforme em uma Universidade regional legitimadora do poder político dominante, a
proposta é exatamente o oposto, é nos transformarmos em referência regional de diálogo
intercultural visando o salvar o futuro.
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identidades profissionais. In: ______. Currículo, território em disputa. 5 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013, p. 21-67.

15
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
16
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Emprapa).
17

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18

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