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Pós-estruturalismo e desconstrucionismo

literário
Prof. Mário Bruno

Descrição

O movimento pós-estruturalista, seus aspectos desconstrucionistas, a


semiologia de Roland Barthes, a função-autor em Foucault e a morte do
autor, na perspectiva barthesiana.

Propósito

Compreender alguns aspectos fundamentais para a crítica literária no


mundo contemporâneo, a partir do pós-estruturalismo e do
desconstrucionismo, para ampliar a perspectiva teórica da literatura.

Preparação

Tenha em mãos um dicionário de literatura para compreender o


vocabulário específico da área. Na Internet, você acessa gratuitamente o
E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, e o Dicionário de cultura
básica, de Salvatore D’Onofrio.

Objetivos
Módulo 1

Desconstrução e Teoria literária


Reconhecer os antecedentes e os aspectos básicos da teoria
desconstrucionista.

Módulo 2

Semiologia de Roland Barthes


Identificar a semiologia barthesiana na sua perspectiva crítico-
literária.

Módulo 3

A função autor e a morte do


autor
Comparar a questão da morte do autor com o contexto da literatura
contemporânea.

Introdução
Em Ensaios críticos, Roland Barthes comparou a prática do escritor
à atividade de um argonauta. De certo modo, influenciado pelo
estruturalismo, ele via o crítico literário também assim (BRUNO, s.
d.).

Podemos perguntar: por que as práticas do escritor e do crítico


podem ser comparadas às dos tripulantes do mitológico navio
grego de Argos?

Comecemos pelo mito dos argonautas. Querendo recuperar o trono


a que tinha direito, o herói grego Jasão aceita a tarefa impossível
de ir ao fim do mundo buscar o velocino de ouro (a lã de um
carneiro alado feita de ouro). Para tal viagem, o amigo de Jasão,
Argos, constrói uma estranha embarcação. Esse navio era feito de
combinações, cada uma de suas peças era sempre renovada e, no
entanto, o barco continuava o mesmo.

O navio Argos, na sua longa história, não comportava nenhuma


criação, apenas combinações: ligada a uma função imóvel, cada
peça era, no entanto, infinitamente renovada, mas o conjunto não
deixava de ser o navio Argos.

A metáfora do navio Argos, utilizada por Barthes, nos ajuda a


compreender a crítica literária do ponto de vista do pensamento
estruturalista, pós-estruturalista e desconstrucionista, que
abordaremos nos módulos a seguir.

Além disso, também vamos estudar os conceitos “função autor”, de


Foucault, e “morte do autor”, de Barthes.

1 - Desconstrução e Teoria literária


Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer os
antecedentes e os aspectos básicos da teoria desconstrucionista.

O estruturalismo
O que define um pensador como
estruturalista?

Teóricos de diversas áreas foram considerados estruturalistas: um


antropólogo como Lévi-Strauss (1908-2009); um psicanalista como
Jacques Lacan (1901-1981); um linguista como Roman Jakobson
(1896-1982); um crítico literário como Roland Barthes (1915-1980) etc.

Nem todos que foram tidos como estruturalistas se consideravam como


tal. E o que havia em comum entre eles?

Inicialmente, vamos definir a noção de “estrutura”. Antes de pertencer ao


repertório teórico francês das décadas de 50 e 60, tal noção surgiu em
1929 nas teses da escola linguística de Praga. O linguista dinamarquês
Louis Hjelmslev (1899-1965) e o linguista russo Nikolay Trubetzkoy
(1890-1938), utilizando a noção de “sistema”, desenvolvida pelo linguista
suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), criaram um “método de
comparação estrutural”. Tratava-se da ruptura com a consistência física
dos objetos, por meio de um método como um sistema de diferenças
(BRUNO, s. d.).

Saiba mais
O estruturalismo pode ser caracterizado como um método aplicado ao
estudo do texto literário com base na estrutura desse texto, ou seja, a
partir dos elementos que constituem o texto e se relacionam entre si
desde um sistema único de significação. Assim, a estrutura
corresponde ao sistema de relações entre os elementos do texto, sendo
que cada elemento tem seu sentido a partir da relação com os demais
elementos do texto.

Os franceses do pós-guerra revisitaram essa teoria. Sendo assim,


encontraram a vantagem de um modelo que se caracterizava pela sua
transponibilidade de fenômeno para fenômeno. Nessa metodologia, os
estudos linguísticos se tornaram fundamentais. Esses teóricos
franceses foram denominados de estruturalistas. Ser estruturalista é
supor que só há estrutura daquilo que é linguagem (BRUNO, s. d.).

Composição 8, por Wassily Kandinsky, 1923.

A antropologia estrutural
Processo suave, por Wassily Kandinsky, 1923.
Um capítulo da obra Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss, afirma que
compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outra, uma vez
que a verdadeira realidade jamais se manifesta. A estratégia de Lévi-
Strauss foi voltar-se para a obra de Saussure. De acordo com Lévi-
Strauss, a língua é menos que o todo social, contudo, esse não todo é
objetivamente universal: a língua é um predicado humano inerente a
todas as sociedades (BRUNO, s. d.).

Saiba mais
A antropologia estrutural está voltada para o modo como se combinam
os elementos de um sistema, em vez de se voltar para o valor inerente
desses elementos. Assim, as relações ou combinações entre esses
elementos, a partir de suas diferenças, apresentam tensões que tornam
a vida social dinâmica. Assim como os textos literários são analisados
como estruturas, por exemplo, a cultura seria considerada um sistema
de comunicação por símbolos que também deveria ser analisada.

A linguística permitiu à antropologia estrutural desenredar esquemas


conceituais ativos na vida social, presentes em instituições como os
mitos ou as relações de parentescos. Pode-se dizer que a pretensão de
Lévi-Strauss era extrair universais humanos. Mesmo quando se tratava
de investigar Corpus regionais extensos, o objetivo era a aplicação de
alguns universais. A preocupação do pensador francês com os símbolos
tinha como origem essa procura de um inventário universal de padrões
mentais.

Introdução ao pós-
estruturalismo
Pós-estruturalismo pode ser entendido como um movimento na filosofia
que teve início na década de 1960. O seu leque de campos temáticos
inclui literatura, política, arte, críticas culturais, história e sociologia.
Dentre os pensadores que compõem esse movimento, podemos
destacar Jacques Derrida (1930-2004), Gilles Deleuze (1925-1995),
Jean-François Lyotard (1924-1998), Michel Foucault (1926-1984) e Julia
Kristeva (1941-2006).

Vários círculos, por Wassily Kandinsky, 1926.

Saiba mais
É comum atribuir o ponto de partida do pós-estruturalismo à conferência
proferida por Derrida, em 1966, na Johns Hopkins University, intitulada
La structure, le sign et le jeu dans le discours des sciences humaines. A
conferência foi uma crítica ao estruturalismo, tanto literário quanto
cultural. Além dessa conferência, podemos destacar o ensaio de Derrida
Força e significação. Tanto o ensaio quanto a conferência foram
publicados em 1967, na obra A escritura e a diferença.

La structure, le sign et le jeu dans le discours


des sciences humaines
A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas.

É difícil estabelecer o denominador comum entre os autores pós-


estruturalistas e por que cada um deles precisou ir além do
estruturalismo.

Um dos pontos que caracterizou o estruturalismo era o padrão repetitivo


dos signos: uma espécie de gramática na qual o conhecimento deveria
começar pela norma. O que irá caracterizar o pós-estruturalismo é
entender o limite da estrutura como uma diferença pura que desafia a
identificação. O semiólogo italiano Umberto Eco já havia percebido isso
em seu livro A estrutura ausente.

Roland Barthes
Capricious, por Wassily Kandinsky, 1930.

Roland Barthes é um estruturalista ou um pós-estruturalista? Ele é um


estruturalista que rompeu com o estruturalismo e se tornou pós-
estruturalista?

O estudo semiológico de Barthes, em 1967, por meio de seu livro


Sistema da Moda, e o seu programa para uma análise estrutural da
narrativa, encontrado no livro Introdução à análise estrutural da narrativa,
de 1966, eram nitidamente propostas estruturalistas. No entanto,
quando analisamos o trabalho S/Z, a classificação começa a vacilar,
pois já possui traços que oscilam entre estruturalismo e pós-
estruturalismo.

O S/Z expõe uma forte tendência metalinguística crítica ao próprio


método que utiliza. Em sua contribuição à poética da ficção, parece
conter traços de tentativas de ir além dos limites positivos do
pensamento estrutural (CULLER, 1997).
A desconstrução da tradição
metafísica na Gramatologia
Agora, vamos tratar da desconstrução na obra de Derrida.

Rossano Pecoraro (2009) afirma que a primeira fase autoral de Derrida


(1967-1989) é composta pelo empenho na desconstrução da tradição
metafísica.

Esse desconstrucionismo derridiano tem o seu início com o livro A voz e


o fenômeno (1967), mas encontra o seu desenvolvimento em
Gramatologia.

Saiba mais
A desconstrução de Derrida é, inicialmente, uma crítica ao
estruturalismo. Entretanto, podemos conceituar a desconstrução como
uma crítica ao logocentrismo da metafísica ocidental, especialmente a
crítica a conceitos como “o significado e o significante; o sensível e o
inteligível; a origem do ser; a presença do centro; o logos, etc.” (CEIA,
2009, não paginado), conceitos tidos como estáveis pela tradição
filosófica ocidental. A desconstrução, numa perspectiva da análise
textual, acabou sendo entendida como leitura fechada de um texto, de
modo a revelar as incompatibilidades e ambiguidades retóricas do texto
(CEIA, 2009).

Com lucidez, o crítico literário brasileiro José Guilherme Merquior (1941-


1991) nos fala sobre esse desconstrucionismo presente na obra
Gramatologia, de Derrida. Ele diz que a ambivalência do projeto de
Derrida nada tem de gratuito: traduzir Heidegger, em termos
saussurianos, põe a descoberto os resíduos metafísicos na obra de
Heidegger; e a projeção heideggeriana na teoria linguística expõe alguns
aspectos ingenuamente metafísicos da obra de Saussure (MERQUIOR,
1975).

Em linhas gerais, Gramatologia tem um duplo movimento crítico. Parte


da ideia de que o conceito de escrita foi sempre comandado pelo
etnocentrismo logocêntrico, ou seja, uma visão de mundo fundada na
lógica da predicação, da centralidade da palavra, que a civilização
ocidental quis sustentar como universal, em vez de reconhecê-la como
relativa ao seu modo de experiência histórica.

Dentro dessa mesma perspectiva, o Ocidente passou a conceber a


escrita como linguagem de sons. Desde Platão, a escrita foi considerada
como secundária em relação à fala. É isso que se desdobra na ideia
aristotélica da fala como símbolo dos estados de alma, e da escrita
como símbolo das palavras emitidas pela voz (MERQUIOR, 1975)

Metafisica, por Edmondo Savelli.

Derrida, Foucault e os impasses do


estruturalismo
Para Umberto Eco, em A estrutura ausente, aquele que refletiu sobre o
estruturalismo à luz da sensibilidade filosófica (ou celebrou uma
inexaustiva geratividade do ser) sabe que “as estruturas postas em ação
se garantem como eventos do ser e não como sua trama” (ECO, 1976, p.
343). Nessas atitudes filosóficas, temos dois pensadores que
ultrapassam o estruturalismo: Derrida e Foucault.

Para Derrida, a oposição entre forma e força, entre a estrutura


espacializada e a energia que promana da obra, revela-se na oposição
Apolo e Dionísio, que não reside na história; e a “estrutura” da
historicidade é constitutivamente Diferença, afastamento permanente
(béance) (ECO, 1976, p. 344).

Oposição entre Apolo e Dionísio


Dicotomia que opõe o comedimento, a perfeição, a harmonia e a razão
encontrados no deus grego Apolo ao caos, à loucura, às festas, às alegrias
e aos excessos do deus Dionísio (Baco na mitologia romana).

Apolo e as nove musas, por Jan Van Balen, século XVI.


O triunfo de Dionísio ou Os bêbados, por Diego Velázquez, 1629.

Derrida, em Freud e a cena da escritura, procura explicar o registro


freudiano das lembranças por meio de uma marca conservada por
certos neurônios da excitação que os ativou. Essa marca é uma
Bahnung, uma passagem, uma frayage. A memória seria representada
pela diferença de frayage entre os neurônios, constituída, portanto, por
um sistema de diferenças e oposições. Nesse sentido, a memória como
rastro é pura diferença. A vida psíquica é diferença no trabalho das
forças (ECO, 1976). Derrida caminha na hipostatização de um limiar
diferencial pensando a diferença na origem. Essa falência do original já
estava em Heidegger, que afirma que o que dá origem é a não origem
(ECO, 1976).

Frayage
Frayage é palavra francesa que tem o sentido de traçar ou abrir um
caminho, uma trilha. Na versão em francês das obras de Freud, frayage é o
termo usado para traduzir a palavra alemã Bahnung, utilizada por Freud em
sua obra Projeto para uma psicologia científica, de 1950. Bahnung ou
frayage designam um “certo tipo de marca ou memória produzida nas
barreiras de contato neuronais devido à passagem recorrente da excitação
sensorial” (ASKOFARÉ, 2019, p. 7).

Hipostatização
Atribuição de realidade àquilo que é abstração ou conceito.

Derrida, tal qual Lacan, se deu conta de que a


descoberta freudiana é de um descentramento que não
substitui o centro perdido. A lição freudiana é uma
lição trágica, a psicanálise otimista norte-americana é
uma traição. Nesse sentido, as conclusões de Lacan e
Derrida são muito próximas de Ser e tempo sobre a
“decisão antecipadora”. São linhas de pensamento
colocadas sob o signo da morte (ECO, 1976).
Derrida (ECO, 1976) nos mostra com muita argúcia que o sujeito, ao
perceber que está preso a uma cadeia simbólica (e que não existe
metalinguagem dessa cadeia), se dá conta de que não há
metalinguagem do Outro.

Aviso, portanto, a quem queira ainda


fingir individuar estruturas
definitivas: não só, relatando-as,
vocês estarão sempre relatando
coisa diferente, mas também não
conseguirão fundamentá-las, porque
a linguagem que pretende
fundamentá-las é a mesma cujos
erros as estruturas querem
desmascarar. Compreende-se então
por que muita crítica de base
fenomenológica pode irritar-se e
definitivamente levantar – para os
liquidadores do estruturalismo –
questões que lhes parecem
destituídas de sentido.

(ECO, 1976, p. 346-347)

Por outro lado, Foucault (ECO, 1976), no seu caminhar “com e para além”
da estrutura, nos mostra que a “morte do homem” implica a renúncia à
fundação transcendental do sujeito. Curiosamente, em sua opção de
demolir o estruturalismo a partir do filão Nietzsche-Heidegger, em As
palavras e as coisas, por exemplo, parece elaborar grades estruturais.

Foucault traçou mapas de uma arqueologia das Ciências Humanas, do


Renascimento aos nossos dias, e fez emergir “a priori históricos”,
episteme de determinadas épocas, configurações que deram lugar a
várias formas de conhecimentos empíricos (ECO, 1976).

Sendo assim, As palavras e as coisas, de Foucault, é dividido em três


partes:

Episteme
Conforme o próprio Foucault (2002, p. 218), episteme é o “conjunto das
relações que podem ser descobertas para uma época dada, entre as
ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades
discursivas”. Ou seja, em vez de ser um modo particular de conhecimento,
para Foucault se trata das relações epistemológicas entre as ciências
humanas.

A ideia de semelhança, regendo o mundo simbólico medieval


renascentista.

A ideia setecentista da representação, baseada num parentesco


entre a ordem da linguagem e a ordem das coisas, classificando
os seres por meio de uma homologia dos seus caracteres
visíveis.

As ideias de vida, trabalho e linguagem como energia, que


passam a dominar a partir do século XIX (ECO, 1976).

Na modernidade, o homem faz-se problema para si mesmo e descobre


as impossibilidades paralisantes da sua busca pelo transcendental. A
solução proposta pelas Ciências Humanas é pensar algo que “é
diferente do homem e o atravessa”: na Psicologia, a dialética entre
função e norma; na Sociologia, opõe conflito e regra; e nos mitos e na
literatura, a oposição entre conflito e sistema (ECO, 1976).

Desconstrução e literatura
Acerca do círculo, por Wassily Kandinsky, 1940.

De acordo com o professor Evando Nascimento, em Derrida e a


Literatura (1999), um dos aspectos da obra de Derrida é ser um
constante leitor ou “crítico” dos autores reconhecidos como escritores
(Kafka, Mallarmé, Jabes, Artaud, Baudelaire, Poe, Flaubert, Celan, Ponge,
Blanchot e outros), e para além dos domínios da crítica, da teoria, da
história e da literatura comparada, propõe uma “literatura pensante” que
não se resume à filosofia.

Derrida demonstrou, desde adolescente, o interesse pela literatura. Para


ele, tratava-se de uma instituição que permitia tout dire (tudo dizer) em
dois sentidos: exaurir a suposta totalidade do assunto e falar sobre
qualquer assunto sem constrangimento (NASCIMENTO, 1999).

Por outro lado, a literatura, de acordo com Derrida, é uma instituição


ligada a um direito bastante recente enquanto texto impresso como
propriedade de um autor específico.

Aspectos da teoria literária


desconstrucionista
O pós-estruturalismo, sobretudo na versão norte-americana, apresentou-
se, em linhas gerais, como introdução aos estudos literários dos
princípios fundamentais do pensamento de Derrida. A conferência, de
1966, Estrutura, signo e jogo no discurso das ciências humanas e os
diversos cursos ministrados nas universidades Johns Hopkins e de Yale
se tornaram os núcleos institucionais do desconstrucionismo (LOPES,
1994, p.306).

Silvina Lopes Rodrigues (1994) nos afirma que o pensamento derridiano


da suplementaridade, do qual faz parte a impossibilidade de totalização,
vem de um campo infinito de substituições no fechamento de um
conjunto finito. Daí resulta que os estudos literários abrem para temas
inesperados. O desconstrucionismo, por meio de uma teoria da
textualidade, tende a um alargamento que abrange as disciplinas da
Filosofia, do Direito, da Antropologia e da História.

A institucionalização do desconstrucionismo na
América do Norte se deu a partir dos estudos literários,
concebendo uma teoria do texto, rompendo com a
crítica e a teoria anteriores.

Apesar das muitas diferenças, a Desconstrução encontrou destaques


nos nomes Paul de Man, J. Hillis, Barbara Johnson, Jonathan Culler,
Cristopher Norris, Geoffrey Hartman, Harold Bloom, Samuel Weber e
outros. Esses autores, na esteira de Derrida, recusavam-se à busca de
um sentido pleno fundada na concepção fenomenológica de
intencionalidade (LOPES, 1994).

Acordos recíprocos, por Wassily Kandinsky, 1942.

Dos “desconstrucionistas”, cabe assinalar os trabalhos do crítico e


teórico literário belga Paul de Man, que visam pensar a teoria literária
como um “método” que revela a negatividade dos textos numa
epistemologia que rompe com as consciências totalizadoras do autor e
do texto caindo num sistema de oposições irresolúveis (LOPES, 1994).

A afirmação derridiana de que não existe algo como “presença plena”


assinalando uma origem da linguagem (apenas existe um originar-se
como “arqui-escrita”) é uma vertente antilogocêntrica. Sobretudo,
podemos ver aí a base de uma teoria desconstrucionista da ideologia: a
ideologia como confusão da realidade linguística com a realidade
natural, a ideologia defendida como uma crença num significado
transcendental, crença metafísica na existência de um termo final no
jogo da significação (LOPES, 1994).

De Man aproxima-se das


concepções que assimilam a
ideologia à ilusão, ao erro, à falsa
representação. Assim, a ideologia
corresponde, de certo modo, ao
Imaginário, segundo a tripartição
lacaniana entre o Imaginário, o
Simbólico e o Real. Essa distinção
estabelece, no entanto, questões tão
importantes como as que resultam
da impossibilidade de sair do
Imaginário e, portanto, de lhe admitir
limites, de traçar as suas fronteiras.

(LOPES, 1994, p. 314)

A confusão entre “realidade linguística” e “realidade


natural” parece inevitável ao desconstrucionista e a
literatura é onde se desfaz essa ilusão. Existe uma
aparente vocação da literatura em desfazer as ilusões
do senso comum e criticar a ideologia. Parece que a
cultura já tem uma propensão a se tornar ideologia
(LOPES, 1994).

Para De Man, a linguística da literariedade pode ocupar o lugar da


economia política que o marxismo colocou no comando de todo
pensamento. De Man vê na análise linguística um campo privilegiado
para análise das formações ideológicas. Afirmando que a análise
poética pode derivar para análise política, aponta para a crítica literária
como uma desmontagem da ilusão ideológica referencial:

Essa técnica, que desmascara a


ideologia enquanto falsa
consciência, enquanto consciência
errada, consiste tanto em
desmontar a ilusão referencial, ou a
necessária adequação entre a
linguagem e um referente que seja
exterior, como em estabelecer a
distinção entre uma retórica
cognitiva e uma retórica persuasiva.

(LOPES, 1994, p. 317)

Para De Man, a análise crítico-linguística coloca questões políticas que


permitem uma compreensão minuciosa da realidade social e histórica.

Diálogo entre De Man e Derrida


Finalizando este módulo, ainda baseado em Lopes (1994), vamos
ressaltar alguns aspectos que caracterizaram esse diálogo de De Man
com Derrida, ambos dentro dessa perspectiva da desconstrução:

O projeto de desmitificação, de De Man, entra numa tradição que


pretende depurar a voz, afastando-a de qualquer contaminação
com o visível e o sensível. A literatura corresponde ao paradigma
linguístico que serve de base para desmistificação, ou
desconstrução.

É a oposição entre o fenomenal e o literário que está na base do


estatuto privilegiado de texto literário.

O objetivo da leitura é o objetivo negativo de saber que ler é


sempre uma interminável prosopopeia na qual “construímos” a voz
dos mortos, permitindo-nos interpretá-los.
A desconstrução resiste ao historicismo, pois este é constituído na
ilusão da presença a si de um sujeito.

O romance exige do leitor uma “reforma do entendimento”, ele está


diretamente associado às mudanças das formas de vida. Ele é
fundamental na descrição dos estados de coisas e nos processos
de subjetivação.

Na forma romanesca, a pesquisa da verdade, assim como a do


absoluto, torna-se sujeita às multiplicidades incontroláveis de
disseminação dos sentidos.

A ideia de filosofia literária decorre de uma autorreflexividade,


entendida como distância, entre o dizer e o dito, uma filosofia “sem
conceito”. Podemos aproximar esse tipo de filosofia da ideia
kantiana de juízo reflexivo a partir do livre jogo entre o
entendimento e a imaginação.

A desconstrução inverte o filosofema hegeliano da “morte da


arte”. A literatura ganha um lugar de autoridade e passa a legitimar
e enunciar o filosófico da filosofia.

video_library
A desconstrução de Derrida
e a literatura
Assista agora a um vídeo que aborda os pressupostos teóricos da
desconstrução de Derrida e suas implicações sobre o fazer literário.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Analise a as afirmativas a seguir:


I. Roland Barthes foi influenciado por uma metodologia de pesquisa
denominada “estruturalismo”.
II. Roland Barthes desenvolveu atividades de crítica literária de
modo independente, sem ter sofrido influência do estruturalismo.
III. O antropólogo Lévi-Strauss, o linguista Roman Jakobson e o
psicanalista Jacques Lacan nunca foram considerados
estruturalistas.
IV. A noção de estruturalismo surgiu antes das décadas de 50 e 60
enquanto “método de comparação estrutural”.
V. O método estruturalista apresenta a vantagem da possibilidade
de transporte de fenômeno para fenômeno.
VI. O método estruturalista é totalmente empírico, não comporta
nenhum aspecto abstrato e preocupa-se com a consistência física
dos objetos.

Apenas está correto o que se afirma em

A I, IV e V.

B III, II e VI.

C I, II e III.

D I, III e V.

E I, II e VI.

Parabéns! A alternativa A está correta.


As afirmativas I, IV e V estão corretas porque a obra de Barthes foi
influenciada pelo estruturalismo, corrente de pensamento que
vigorou, sobretudo, nas décadas de 50 e 60, baseada em conceitos
linguísticos que poderiam ser transportados para outros fenômenos
humanos. Seus primeiros idealizadores foram Lévi-Strauss e Roman
Jakobson.

Questão 2

A partir do conceito de escrita no desconstrucionismo, considere as


afirmativas a seguir.
I. A desconstrução da tradição metafísica não tem relação com o
conceito de escrita em Derrida.
II. A projeção heideggeriana na Linguística, operada por Derrida,
expõe alguns aspectos metafísicos nos estudos de Saussure.
III. Para Derrida, o conceito de escrita foi comandado no Ocidente
por algo que ele nomeia de etnocentrismo logocêntrico.
IV. Segundo Derrida, desde Platão, a escrita foi considerada como
secundária em relação à fala.
V. Kafka, Baudelaire, Poe e Ponge não foram autores estudados por
Derrida.

Está correto apenas o que se afirma em

A I, II e III.

B II, III e IV.

C II, III e V.

D III e V.

E IV e V.

Parabéns! A alternativa B está correta.


As afirmativas II, III e IV estão corretas porque Derrida, partindo de
conceitos operados no campo da Linguística e de questões
formuladas por Heidegger, na Filosofia, pôde indagar sobre os
aspectos etnocêntricos e logocêntricos da escrita no Ocidente.
2 - Semiologia de Roland Barthes
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar a semiologia
barthesiana na sua perspectiva crítico-literária.

Barthes: do “grau zero” à


semiologia
Em 1953, Roland Barthes, em O grau zero da escritura, traz para o centro
da problemática literária o conceito de escritura, que seria o germe da
subversão barthesiana semiológica e, futuramente, pós-estruturalista.
Nesse trabalho, faz intervir sua preocupação teórica e crítica. Somente
mais tarde iria considerar a literatura do ponto de vista linguístico e
semiológico (SEABRA, 1980).

Em O grau zero da escritura, além de uma


rigorosa análise das escritas políticas e suas
relações com a Revolução, Barthes propõe
um caminho crítico muito singular na
orientação de seus estudos sobre os textos
romanescos.
Ele detecta que a escrita do romancista francês Gustave Flaubert (1821-
1880), autor de Madame Bovary, constituiu definitivamente a literatura
em objeto, o que culminaria na solidificação progressiva de uma escrita
que ele nomeará de “escrita branca” em escritores como Albert Camus,
Maurice Blanchot e Jean Cayrol.

Barthes cria o conceito de “grau zero” para uma escrita puramente


“indicativa” e “amodal”; uma escrita que existiria no seu silêncio ou
numa “equação pura” de “linguagem indefinida”. Barthes tentava retratar
a solidão do escritor contemporâneo, dividido entre a necessidade e a
liberdade. Começava, naquela época, uma nova forma de manifestação
romanesca que ficou conhecida como o “novo romance” (SEABRA,
1980).

Ilustração de Charles Léandre para a obra Madame Bovary de Flaubert, 1931.

O grau zero da escritura é, acima de tudo, uma reflexão sobre “uma certa
dificuldade da literatura”, por significar sempre a si própria, por meio da
escrita. Por outro lado, dois elementos germinais já estavam aí
presentes, o problema da “significação”, que será, posteriormente,
desdobrado em sua obra Mitologias, e o conceito de “conotação”, que,
ulteriormente, será desenvolvido em seu livro Elementos de semiologia
(SEABRA, 1980).

Barthes reconheceu mais tarde que o conceito de escritura, em O grau


zero da escritura, era, acima de tudo, uma noção sociolinguística. Ainda
estavam ausentes no conceito de escritura a dispersão do sujeito no
trabalho e no prazer, temas que surgiram no final do percurso
barthesiano.

A literariedade da escritura
Em artigos como Literatura objetiva e Literatura literal, de 1954 e 1955,
respectivamente, Barthes se dedicou a analisar o surgimento do “novo
romance”.

Relógio derretendo, por Salvador Dalí, 1954.

Ele percebia que uma mutação decisiva estava se consumando na


escrita romanesca. O escritor e cineasta francês Alain Robbe-Grillet
(1922-2008), com sua obra, já havia atacado o último bastião da escrita
tradicional — a organização do espaço literário. Na perspectiva
barthesiana, a escrita objetiva de Robbe-Grillet restituía, como o dasein
de Martin Heidegger, a condição do objeto de estar aí. A escrita do “novo
romance” era sem álibi, sem espessura, fugia aos quadros dos
romances românticos e realistas, criando uma estranha cronologia, um
tempo circular, um movimento sem tempo.
O romance encontrava o fim do seu caráter de fábula, o “grau zero” da
história (SEABRA, 1980).

Sobre os estudos de Barthes analisando a obra de Robbe-Grillet, Seabra


pontua:

Ao pôr-se perigosamente em causa,


‘nessa zona muito estreita, nessa
vertigem rara em que a literatura
quer destruir-se sem o poder’, é
sempre como escrita que a
linguagem literária renasce,
enquanto forma (significante)
desalienada de qualquer fundo
(significado) tutor.

(SEABRA, 1980, p. 34)

Barthes já anunciava o que delinearia mais tarde, ou seja, a


sobreposição dos significantes, sem qualquer fundo de linguagem, que
servissem de referentes ou de significados.

Da distância brechtiana à
análise dos mitos
Apesar do seu radicalismo formalista, Barthes admitia uma dimensão
ideológica e política da literatura. Os estudos sobre a obra do
dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956) demonstram
claramente isso.

Barthes via uma revolução na obra de Brecht, uma ruptura com a


ancestralidade aristotélica que propunha a imitação (mimesis) da ação
(da natureza) pela arte cênica e a identificação total do espectador aos
atores. Brecht propõe a identificação parcial e o distanciamento.

De acordo com Barthes, a obra brechtiana apresenta uma “anti-fisis”, ou


seja, uma antinatureza, uma resistência à falsa aderência Natural da
burguesia e pequena burguesia. Numa sociedade alienada, a arte deve
cortar toda ilusão, mesmo a da Natureza (SEABRA, 1980).

No artigo de 1956, A l’avant-garde de quel théàtre?, Barthes sublinha a


conjunção necessária do político e do formal, medindo a necessidade e
os perigos do teatro político.

O dia cinza, por Georg Grosz, 1921.

O medo de cair no formalismo burguês fazia com que o teatro


sucumbisse ao conformismo da linguagem.

A teoria de Brecht sobre o distanciamento acentua um


problema semiológico, uma certa distância entre
significante e significado, mostrando que a arte de
Brecht visa menos exprimir o real do que significá-lo.

O caráter polifônico do teatro atraiu Barthes desde muito cedo, sua


escrita chegou a ser caracterizada como dramática. Nesse jogo, Barthes
vai da identidade à alteridade (a pluralidade) que o relacionava ao
discurso do desejo (SEABRA, 1980).

Na mesma época em que conciliava formalismos aparentemente


inconciliáveis (Brecht e Robbe-Grillet), Barthes dedicou-se a alguns
artigos que publicara sob o título de Mitologias, que será caracterizado,
por ele próprio, como uma crítica ideológica dos mitos da vida
quotidiana francesa.

Partindo de uma noção vulgar de mito, que não se pretendia


objetivamente científica, Barthes parte para uma espécie de ajuste de
contas com a pequena burguesia. Nesse ensaio, analisará os mitos
como linguagens (representações verbais ou visuais). Barthes tratará da
mesma forma escrita e imagem, uma vez que ambas serão entendidas
em seus estudos como signos.

Crítica, psicanálise e
semiologia
O estruturalismo barthesiano foi se delineando por meio de diversos
textos, nos quais sua consciência teórica foi sendo colocada à prova,
aplicando-se a diferentes objetos semiológicos. Seus trabalhos em
Ensaios críticos e Sobre Racine caracterizam essa época.
Em Sobre Racine, o primeiro dos três ensaios que compõem o livro,
parte de uma análise antropológica estrutural do universo raciniano.
Partindo do pressuposto “a tragédia reside exclusivamente na
linguagem”, a tragédia em Racine, nos mostra Barthes, é antes de tudo
uma linguagem da linguagem, uma metalinguagem. Barthes vê nessa
tautologia a razão poética dos escritos de Racine. O logos raciniano
permanece numa espécie de clausura ou imanência circular (SEABRA,
1980).

Por outro lado, Barthes — na leitura de Racine — vai da linguagem


psicanalítica à semiologia. Recorrendo a uma expressão sua, Barthes vê
na transparência raciniana uma espécie de “grau zero” do objeto crítico,
um lugar vazio oferecido à significação.

Raciniano
Referente à obra do dramaturgo e poeta francês Jean-Baptiste Racine
(1639-1699), importante representante da dramaturgia clássica na França.

A circularidade da
linguagem
Dois dos aspectos muito criticados na obra de Barthes, conforme
Seabra (1980), são:

a pluralidade significante de sua escrita;


a abertura do jogo infinito dos espelhos ao fazer sempre uma
segunda escrita com a primeira.

A escrita de Barthes é uma espécie de “escrita em suspenso”, na qual o


escritor-crítico estabelece um vaivém constante entre a teoria e a
prática, e vice-versa.

Comentário
Nessa circularidade infinita, Barthes, constantemente, afirma ambas as
vocações (a de crítico e de escritor) no plano ontológico (do ser) e não
axiológico (do valor, da ética). Como todo escritor, furta-se à última
palavra sobre a sua própria escrita, oferecendo, desde sempre, a última
réplica ao seu leitor.

Trata-se de uma constante metamorfose de leitura em escrita e de


escrita em leitura, nas suas palavras: “fala criada” e “fala recebida”.
A escrita era para ele, em todos os níveis, uma relação com o outro, com
a fala do outro. Não há significado primeiro da escrita senão essa
relação com o outro, enquanto relação de desejo, escrever é um modo
de Eros.

Para Barthes, ao escritor é dada, dentro de certas formas codificadas, a


dimensão “amorosa da escrita”. Nessa prática, a única liberdade do
escritor é de combinar: a escrita é uma atividade de variação e
combinação — não há criadores, apenas combinadores.

Eros
O termo nos remete ao mito de Eros e, também, à teoria psicanalítica. Mas
nos interessa aqui o fato de que Eros é utilizado para fazer referência ao
aspecto erótico da literatura, que pode ser entendido a partir do desejo de
escrever, ou da relação do escritor com a escritura — uma relação amorosa.
Eros nos remete ao mito.

A escrita como atividade combinatória foi, durante


algum tempo, o leitmotiv, o “motivo condutor”, como
ocorre na música por meio de uma frase curta
recorrente. Aliás, a metáfora musical cabe bem na
experiência barthesiana de escrita. Para Barthes, a
prática da literatura, e principalmente a do crítico, é o
diálogo infinito.

O crítico ocupa o papel daquele que, ao esperar, preenche a sua obra


com a espera de uma obra a mais. Trata-se de uma relação desejante
nomeada por Barthes de “um escritor em suspenso”.

A suspenção da escrita, enquanto “rastro sinalético” do percurso do


desejo por meio da aventura linguística e semiológica. Barthes, não
acreditando no mito do “bem-escrever”, retoma o escritor tcheco Franz
Kafka (1883-1924) que, em um de seus ensaios, afirmava que o ser da
literatura não é outro senão o da sua técnica.

Rastro sinalético
Relativo à ideia de registrar os sinais específicos que permitem identificar
alguém ou alguma coisa.

Reflexão
O escrever é um trabalho que constitui um fim em si mesmo (daí sua
intransitividade). O “como escrever” é sempre mais importante para o
escritor do que “para que” ou “para quem” escreve. Para o escritor, a
escrita é um fim, mas o mundo lhe reenvia como meio.

A questão do que escreve um escritor está sempre em aberto. O escritor


escreve seguindo o seu desejo, condenado a isso. Quanto ao ser
escritor, temos o aforismo barthesiano “é escritor quem quer sê-lo”
(SEABRA, 1980, p. 59).

O homo significans
Mulher invisível adormecida, por Salvador Dalí, 1930.

Barthes rompeu com o estatuto neutro e universal da metalinguagem


crítica. Constantemente, ele confrontava a sistematização semiótica do
escritor com a escrita do crítico. Por outro lado, a imagem barthesiana
do crítico foi a escolha de ser o homo significans voltado para a
fabricação de sentido, produzir sentido como algo mais importante do
que o próprio sentido (SEABRA, 1980).

Claro que Barthes conhecia os riscos da prática crítica


que abraça os movimentos da literatura e da
significação. Quase na contramão desse percurso,
temos as obras Elementos de semiologia e Sistema da
moda. Digamos que ambos foram os resíduos de
cientificidade a partir de seus encontros com a
linguística e a semiologia.

Para Barthes, Saussure desbordou para a escrita uma força que fez a
ciência ser “uma outra coisa”. É incalculável o papel que o linguista
francês Émile Benveniste (1902-1976) exerceu na obra barthesiana.
Barthes também incorporou com uma intuição fina a semântica
estrutural do linguista lituano Algirdas Greimas (1917-1992).

Algumas noções preciosas balizaram as pesquisas de Barthes em


semiologia:

As principais oposições estruturais da linguística saussuriana,


como língua/fala; significante/significado etc.

Os conceitos paradigmático e sintagmático, de Jakobson.

A ideia de conotação de Hjelmslev.


Cabe assinalar que a obra Elementos da semiologia é uma espécie de
súmula de trabalho, além de ser extremamente didática. Fica clara
nessa obra a tentativa de assimilar a semiologia numa “translinguística”,
como propõe Barthes.

Vale assinalar que havia uma preocupação de Barthes, fugindo do


campo da estilística, em pautar a escrita para “além da linguagem”. Por
isso, a análise semiológica lhe permitiu encontrar instrumentos que
entrassem no campo dos objetos não linguísticos, concomitantemente
aos objetos (textos) literários. Isso fica claro em Sistema da moda
(SEABRA, 1980).

Figuras deitadas na areia, por Salvador Dalí, 1926.

Desde o Grau zero, Barthes fez cruzar os caminhos da narrativa com os


do discurso da história, e Mitologias já abria os seus estudos para
campos semiológicos exteriores à linguagem. Mais tarde, sem renegar a
semiologia, Barthes procurará traçar a história de suas dificuldades
nesse percurso. Para ele, os atalhos “científicos” remeteriam seu
trabalho para vias sinuosas e algumas encruzilhadas. Notaremos que
Barthes parece ter se decepcionado com esses caminhos que, no início,
lhe pareceram cheios de promessas.

Vejamos algumas palavras de José Augusto Seabra sobre Sistema da


moda:

Mas, tratando-se de um objeto ambíguo, pois


‘não incide a falar verdade nem sobre o
vestuário nem sobre a linguagem, mas de
uma certa forma sobre a ‘tradução’ de um na
outra’, ei-lo que ‘escapa consequentemente
ao mesmo tempo à linguística, ciência dos
signos verbais, e à semiologia, ciência dos
signos objectais’. A partir da sua concepção
de uma ‘translinguística’, em que a linguística
englobaria a semiologia, pela inversão da
proposta saussuriana, Barthes conclui, com
plena coerência, pela inevitabilidade da
mediação da escrita na Moda: ‘desde que se
observa a Moda, a escrita aparece como
constitutiva’. Se, enquanto ‘imaginário
colectivo’, ela é suscitada como um desejo
(para efeitos evidentemente comerciais),
importa precisar que ‘não é o objecto’, é o
nome que faz desejar, não é o sonho, é o
sentido que faz que faz vender’.

(SEABRA, 1980, p. 64-65)

Barthes apresentou o Sistema da moda como um vitral ingênuo, no qual


fica exposto o seu sonho de cientificidade. Porém, sente esses atalhos
pela cientificidade linguística como um caminho quase perdido, por isso,
tentou outros caminhos em que o conceito de “conotação” o fará
regressar à literatura. Em 1970, Barthes lançou um dos seus principais
trabalhos sobre literatura, o S/Z.

A análise de Sarrasine
Podemos considerar o texto S/Z como um momento importante da obra
de Barthes. Trata-se de uma proposta de análise estrutural na qual já
encontraremos vários traços do ultrapassamento do estruturalismo.

Nesse trabalho, fugindo às preocupações filológicas do escritor francês


Honoré de Balzac (1799-1850), Barthes segue no seu caminho, dando
privilégio ao sistema e ao código da língua na sua leitura-escrita do
texto.

Um casal cujas cabeças estão cheias de nuvens, por Salvador Dalí, 1936.

Na década de 1970, o estruturalismo sofreu vários abalos de Althusser a


Foucault; de Lacan a Derrida; de Todorov a Kristeva. A vaga
estruturalista, que partira da antropologia de Lévi-Strauss, dava sinais de
novas irradiações. Lacan com a “descentração” do sujeito; Derrida com a
“Reconstrução” do conceito de signo por meio da escrita; Kristeva com
os modelos do “dialogismo”.

Em Roland Barthes por Roland Barthes, ele revela as influências desses


autores de perspectiva pós-estruturalista na sua obra, como mostrado
no quadro a seguir. Considera a obra S/Z e o livro Sade, Fourier, Loyola
como a entrada no que nomeia de estudos da textualidade.

Intertexto Gênero Obras

(Gide) (desejo de Le degré zéro


Sartre escrever) Escritos sobre o
Intertexto Gênero Obras

Marx Mitologia social teatro


Brecht Mythologies

Eléments de
sémiologie
Saussure Semiologia
Système de la
mode

S/Z
Sollers
Sade, Fourier,
Julia Kristeva Textualidade
Loyola
Derrida Lacan
L’Empire des sign

Le plaisir du Tex
(Nietzsche) Moralidade
R.b. par lui-mêm

Quadro: Influências pós-estruturalistas.


Elaborado por: Mário Bruno.

O que mudou em S/Z?

Barthes, assim como alguns dos pós-estruturalistas, procura fundar


uma avaliação dos textos a partir do “paradigma da diferença”. Começa
a buscar por “uma diferença” que não se detinha sobre o infinito dos
textos, das linguagens e dos sistemas. Percebemos aí algumas
influências, sobretudo de Derrida e de Kristeva, na forma como passa a
abordar a questão da escrita.

O S/Z é um magnífico estudo sobre a novela Sarrasine, de Balzac, na


qual Barthes apresenta a ideia de neutro como diferença e desenvolve
um detalhado estudo do que nomeou de lexias (no total de 561 lexias),
desenvolvendo quase uma “metodologia” de análise textual.

De certo modo, a escolha de Sarrasine parte de uma questão já


desenvolvida por Barthes na conclusão de Crítica e verdade, na qual
distinguia dos tipos de textos:

“escrevíveis”
Textos absolutamente plurais.

“legíveis”
Textos cuja abertura para a pluralidade era menor.
No caso da novela de Balzac, era um texto “legível”, cujo desafio para
estabelecer as lexias de análise era muito maior. Barthes parecia querer
provar que mesmo um texto legível (clássico) comporta um potencial de
abertura à diferença quase infinito.

Do significante ao satori
zen
Relatividade, por Toko Shinoda.

Ao lado de S/Z, O império dos signos, de 1970, se configura como um


dos grandes momentos da semiologia francesa. O livro nasceu de uma
viagem de Barthes ao Japão.

Naquele momento, o Oriente se apresentou a Barthes como um


conjunto de sistemas simbólicos inauditos: o livro de Barthes sobre o
Japão estabelece uma alternância de textos e imagens que visam
provocar uma vertigem, tendo como princípio o satori, entendido como
“perda de sentido”.

Comentário
O império dos signos é um texto apaixonado em que Barthes mergulha
na circulação dos signos e na troca de significantes. Nessa obra,
Barthes se distancia da preocupação científica em constituir uma
semiologia e se deixa tomar pela significância num estilo vacilante,
sugestivo, cheio de interstícios e desembaraçado de qualquer busca de
sentido pleno.

Em belas passagens, Barthes se volta para a escrita japonesa e a


interpreta à luz do satori e do que irá nomear de “tremura do
significante”. Fora isso, a forma ideográfica dá ao significante escrito
algo que permite ao leitor ocidental lê-la como uma pintura.

Do desejo ao prazer
Ao estudar, na obra Sade, Fourrier, Loyola, os papéis do libertino, do
utopista e do santo, Barthes encontrou uma nova ordenação ritual do
texto. Talvez já viesse daí a preocupação com o texto como objeto de
prazer. Isso o conduziria a um dos seus principais trabalhos – O prazer
do texto.
Barthes escolheu amar a linguagem, o que não era
possível sem odiar as suas formas alienadas. De certo
modo, isso está implícito em O prazer do texto. Num
trabalho extremamente original, e fazendo valer a
distinção “lacaniana” de prazer e gozo (jouissance),
Barthes procura se mover num espaço de ambiguidade
e duplicidades significantes. O texto se constrói na
falha ou no interstício que se abre entre esses dois
significantes: prazer e gozo (SEABRA, 1980).

Se reportando a Lacan, Barthes apresenta o texto de prazer como dizível


e o de gozo como o inter-dito. O interessante é que essa obra no campo
do hedonismo, e para além dele, aponta para um jogo perverso no qual
nos damos conta de que nenhum escritor possui verdadeiramente as
rédeas que conduzem o seu texto na direção do prazer ou do gozo.

Movendo-se nas fronteiras entre o prazer e o gozo, Barthes se situa,


sempre provisoriamente, ora no lado do prazer, ora no lado do gozo.

O nascimento de desejos líquidos, por Salvador Dalí, 1932.

O prazer do texto é uma belíssima obra em fragmentos, na qual, por


meio de uma série de inscrições breves, Barthes flutua à deriva. Um fio
liga e religa esses fragmentos à palavra “textura”.

Num texto de pura subversão, temos a reivindicação do prazer e do


gozo, buscando a sua utopia na qual a sensualidade do prazer e do gozo
deportaria o significado para bem longe. E, por um viés absolutamente
novo, Barthes parece fazer reencontrar os seus estudos sobre a
textualidade que começara a buscar em O grau zero.

video_library
A semiologia de Barthes
Assista agora a um vídeo que aborda os pressupostos teóricos da
semiologia de Barthes a partir de suas obras.
Falta pouco para atingir seus objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Barthes trouxe uma grande contribuição para a semiologia e os


estudos da linguagem em geral. Em virtude disso, analise as
afirmações a seguir.

I. Barthes escreveu uma obra que nasceu da sua viagem ao Japão e


nela, o Oriente se apresenta ao leitor como um sistema simbólico.
II. Em O império dos signos, Barthes se debruça sobre signos que
provocam uma vertigem próxima do satori (perda de sentido).
III. O império dos signos foi um texto teórico escrito por Barthes a
partir de uma novela de Balzac.
IV. O S/Z é um excelente estudo a partir da novela Sarrasine.
V. Barthes desistiu de analisar a novela Sarrasine, pois não havia
como estabelecer “lexias” para uma análise estrutural.
VI. Em Elementos de semiologia, Barthes já havia abandonado
completamente o pensamento estruturalista.

Está correto apenas o que se afirma em

A I, II e III.

B II, IV e VI.

C I, III e IV.

D I, II e IV.

E II, III e IV.


Parabéns! A alternativa D está correta.
As afirmativas I, II e IV estão corretas porque Barthes, um autor
marcado pelo estruturalismo, sobretudo em Elementos de
semiologia, começou a romper com essa metodologia em obras
como o S/Z e O império dos signos. Nesta última, escrita a partir de
sua experiência no Japão, onde ele identifica um sistema simbólico,
trabalha tanto com a escrita quanto com a imagem, produzindo
uma vertigem (satori).

Questão 2

Tendo em vista os estudos realizados por Roland Barthes, observe


as afirmações a seguir:

I. Barthes foi um semiólogo francês que nunca se dedicou a


estudos sobre a escrita.
II. Na obra de Barthes, o conceito de “grau zero” pode ser aplicado a
certos aspectos da escrita contemporânea.
III. A “conotação” e a “significação” foram elementos germinais que
estavam presentes desde os primeiros estudos de Roland Barthes.
IV. Barthes nunca se dedicou a estudar o “novo romance”.
V. De acordo com Barthes, o teatro de Brecht apresentava uma
resistência à concepção de natureza adotada pela burguesia.

Está correto apenas o que se afirma em

A II, III e V.

B III, IV e V.

C II e V.

D III e IV.

E IV e V.
Parabéns! A alternativa A está correta.
As afirmativas II, III e V estão corretas porque Roland Barthes
dedicou uma boa parte de sua obra aos estudos sobre a escrita,
tendo como ponto de partida conceitos como “conotação” e
“significação”. Fora isso, Barthes viu no teatro de Brecht uma nítida
crítica ao conceito burguês de natureza.

3 - A função autor e a morte do autor


Ao final deste módulo, você será capaz de comparar a questão da
morte do autor com o contexto da literatura contemporânea.

A função autor de Foucault


Em 1969, no Centro Universitário Experimental de Vincennes, Michel
Foucault apresentou uma conferência que recebeu o título “O que é um
autor?”.

Foucault inicia a conferência dizendo que apresentará um projeto. Logo


de início, comenta sobre os autores que cita em seu livro As palavras e
as coisas. Ele afirma que, nessa obra, buscava certas regras que
permitiram a esses autores desenvolverem alguns conceitos: pretendia
desenvolver uma teoria sobre as práticas discursivas específicas. É
nesse ponto que Foucault faz referência à sua nova pesquisa, desejava
falar sobre “o que é um autor?”.
Ao afirmar que a noção de autor constitui um momento
crucial da individualização na história das ideias, do
conhecimento, da literatura, da filosofia e das ciências,
e, deixando de lado uma análise histórico-sociológica
da personagem do autor, Foucault comenta que a
autoria começou a importar quando as pesquisas de
atribuição e de autenticidade passaram a ser
valorizadas.

Observando que a escrita contemporânea se libertou do tema da


expressão e passou a ser vista como um jogo, no qual a prática no nível
do significante importa mais que o conteúdo ou significado, Foucault
nos diz que a escrita deixou de ser a amarração de um sujeito a uma
linguagem, na qual o sujeito que escreve não para de desaparecer.

Foucault (2001) lembra que o conceito de obra estava sendo revisto e


que a crítica já não se preocupava em estabelecer relações da obra
com o autor. Ela deveria, antes, analisar a obra em sua arquitetura e em
sua estrutura.

Seguindo o raciocínio dessa conferência, ele indaga sobre o que


constituiria a obra de um autor. Nesse momento, faz uma pergunta
irônica: as notas de lavanderia escritas por Nietzsche pertenceriam à
sua obra?

As peças de William Shakespeare, por John Gilbert, 1849.

E, ainda, diz Foucault (2001) que o nome próprio, enquanto nome do


autor, tem outras funções além de indicativa. Mas o nome de um autor
não é apenas um nome próprio como outros.

Se descobrirmos que o filósofo e político inglês Francis Bacon (1561-


1626) também teria escrito os sonetos de Shakespeare, o
funcionamento do nome do autor se modifica. Um nome de autor não é
somente um nome que pode ser substituído por um pronome, ele exerce
certo papel em relação ao discurso, assegura uma função
classificatória.

O nome do autor não está localizado no


estado civil dos homens, não está localizado
na ficção da obra, mas na ruptura que
instaura um certo grupo de discursos e seu
modo singular de ser. Consequentemente,
poder-se-ia dizer que há, em uma civilização
como a nossa, um certo número de discursos
que são providos da função ‘autor’ enquanto
outros são dela desprovidos. Uma carta
particular pode ter um signatário, ela não tem
autor; um contrato pode ter um fiador, ele não
tem autor. Um texto anônimo que se lê na rua
em uma parede terá um redator, não terá um
autor. A função autor é, portanto,
característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de certos
discursos no interior de uma sociedade.

(FOUCAULT, 2001, p. 274)

Segundo Foucault, há, em nossa cultura, uma função autor e essa


função não é exercida de forma universal.

Numa conferência realizada no Collège de France, em 1970, intitulada A


ordem do discurso, Foucault (2014) fala de um princípio de rarefação
interna ao discurso: o autor (a função autor).

Esse princípio não se faz presente em toda parte e nem é constante,


existem muitos discursos que circulam sem receber o seu sentido ou
significado de um autor. Alguns discursos, inclusive, precisam de
signatários e não de autores.

Mas na literatura, na filosofia e na ciência, o autor se tornou regra, porém


não teve sempre o mesmo papel ao longo da história da cultura
ocidental. Essa função, em virtude de cada época, se enfraqueceu ou se
reforçou.

E qual seria o papel do autor? Foucault diz que o autor é o que dá


unidade à inquietante linguagem da função, seus nós de coerência, sua
inserção no real. De acordo com Foucault, a função autor limita o “acaso
pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade do eu”
(FOUCAULT, 2014, p. 28).

A morte do autor em
Barthes
Em A morte do autor, Barthes (1988, p. 65) indaga sobre de quem seria a
seguinte fala em Sarrasine, novela de Balzac: “Era a mulher, com seus
medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações
instintivas, suas audácias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa
fissura de sentimento”.

Após indagar sobre a autoria, Barthes (1988, p. 65) conclui que seria
impossível saber, pela simples razão de que “a escritura é a destruição
de toda voz, de toda origem”. A escritura, então, seria “esse neutro, esse
composto, esse oblíquo onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto
onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que
escreve”.

Para Barthes (1988), sempre foi assim, desde que a escritura foi usada
para fins intransitivos. Quando a escrita sai da sua função simbólica,
nesse desligamento, o autor entra na sua própria morte e a escritura
começa.

Nas sociedades etnográficas, a narrativa nunca é assumida por uma


pessoa, mas por um mediador, xamã ou recitante, diz Barthes (1988).

As reflexões do caminhante solitário, por René Magritte, 1926.

Fora isso, nas palavras de Barthes:

Mesmo com a sua “dita morte”, o autor reina nos manuais de história,
nas biografias de escritores e na própria consciência dos literatos que
desejam juntar autor e obra em seus diários pessoais.
A explicação da obra é buscada do lado de quem a produziu: “a obra de
Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a
loucura, a de Tchaikovsky é o seu vício” (BARTHES, 1988, p. 66). É como
se a voz fosse de uma só pessoa, o autor entrega a sua confidência.

Mesmo o império do autor sendo muito poderoso, certos escritores


procuraram abalá-lo.

Stéphane Mallarmé (1842-


1898)
Para este poeta francês, a proprietária é a voz que fala e não o
autor que fala por meio da impessoalidade. Mallarmé suprime o
autor em proveito da escritura (BARTHES, 1988).

Paul Valéry (1871-1945)


O filósofo e poeta francês, mesmo envolto numa psicologia do
Eu, não cessou de colocar em dúvida a figura do autor. Para ele,
toda recorrência à interioridade do autor lhe parecia mera
superstição.

Marcel Proust (1871-1922)


Este romancista francês, mesmo com a aparência psicológica de
suas análises, fez dos escritos aquele “que vai escrever e não
pode”. O romance acaba quando a escritura se torna possível
(BARTHES, 1988, p. 67).

O surrealismo, nessa pré-história da Modernidade, à medida que


considerava a linguagem como sistema, código, deu a ela um papel
soberano. No surrealismo, as escritas automática e coletiva contribuem
para a dessacralização do autor (BARTHES, 1988).

De acordo com Barthes (1988, p. 67), a linguística ofereceu, para a


destruição do autor, um argumento precioso de que a enunciação, em
seu todo, é um processo vazio e funciona sem que se precise preenchê-
lo com a pessoa do interlocutor: “a linguagem conhece um ‘sujeito’, não
uma ‘pessoa’, esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta
para sustentar a linguagem, isto é, para exauri-la”.

Barthes vê no “distanciamento” em Brecht, por exemplo, uma diminuição


do autor, e para ele, isso aconteceu radicalmente no texto moderno:
[...] O escritor moderno nasce ao mesmo
tempo que seu texto; não é, de forma alguma,
dotado de um ser que precedesse ou
excedesse a sua escritura, não é em nada o
sujeito de que o seu livro fosse o predicado;
outro tempo não há senão o da enunciação, e
todo texto é escrito eternamente aqui e
agora. [...] O escritor moderno, tendo
enterrado o Autor, não pode mais acreditar,
segundo a visão patética dos seus
predecessores, que tem a mão demasiado
lenta para o seu pensamento ou para a sua
paixão, e que, consequentemente, fazendo da
necessidade lei, deve acentuar esse atraso e
‘trabalhar’ indefinidamente a sua forma; para
ele, ao contrário, a mão, destacada de
qualquer voz, levada por um puro gesto de
inscrição (e não de expressão), traça um
campo sem origem – ou que, pelo menos,
outra origem não tem senão a própria língua,
isto é, aquilo mesmo que continuamente
questiona toda a origem.

(BARTHES, 1988, p. 68)

Para Barthes (1988), um texto não é uma sequência de palavras a


produzir um sentido único, que seria a mensagem de Deus-Autor. Ao
contrário, o texto é um espaço onde se casam e se cruzam escrituras
variadas das quais nenhuma é original.

Um espírito cômico, por René Magritte, 1927.

O texto é um tecido de citações que não têm origem, porque são saídas
de mil focos de cultura. As imagens de Bouvard e Pécuchet, dois
personagens do romance de Flaubert que são eternos copistas e
cômicos, servem para a ausência de verdade da escritura.

Fora isso, Barthes (1988) nos diz que, uma vez afastada a figura do
autor, a pretensão de decifrar um texto torna-se inútil. Dar ao texto um
autor é impor uma trava para prover-lhe de significado último. Cria-se a
ilusão de que, ao encontrar o autor, o texto estará explicado.
Na compreensão barthesiana de escritura múltipla, tudo está para ser
deslindado, mas não para ser decifrado. Por isso, a proposta de
substituir literatura por escritura.

Bouvard e Pécuchet
Bouvard e Pécuchet são os personagens principais do romance que tem o
mesmo nome. Trata-se de um romance inacabado, publicado em 1881, um
ano após a morte de Flaubert. Os dois personagens são copistas que
acabam se conhecendo por acaso e resolvem se mudar para o interior, a
fim de estudar e até fazer experiências sobre tudo que existe. Devido à
mediocridade e ao simplismo desses dois personagens, essa empreitada
acaba fracassando e o tom da narrativa é fortemente cômico.

A literatura parece guardar a ideia de que o livro tem um segredo; a


escritura, por sua vez, é contrateológica, recusa Deus e suas formas de
realidade permanente: a razão, a ciência e a lei.

Um texto é feito de escrituras múltiplas provenientes de culturas


diversas e que entram em diálogo umas com as outras. Essas
multiplicidades não se reúnem no autor, mas no leitor. Não se trata de
uma pessoa, ou de um destino pessoal, o leitor é um homem sem
história, sem biografia; é apenas alguém que reunirá os traços que
constituem o escrito: “sabemos que, para devolver à escritura o seu
futuro, é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se
com a morte do Autor” (BARTHES, 1988, p. 70).

Do fim da função autor à


“autobiografia” de Barthes
De acordo com Mário Bruno (2008), a escritura moderna produziu um
desligamento, a narrativa não é mais assumida por uma pessoa. Há
uma incompatibilidade entre a aparição da linguagem em seu “ser” e a
consciência de si em sua identidade.

As palavras se movem sem conteúdo e em direção ao que Foucault


chamou de dehor (o Fora). Isso tudo pode parecer muito hermético, de
difícil acesso ou compreensão, mas não é se observarmos as narrativas
contemporâneas, nas quais o autor deixa de ser o sujeito da sua escrita
e o texto assume que é escrito a todo instante pelos seus leitores. Aqui
é abandonada a função “transcendente” do autor que não pode mais
prover o texto de seu significado último. É como se a literatura
contemporânea não tivesse mais fundo, apenas uma superfície de
sentido em que os significantes flutuam livres a partir dos leitores.

Como já vimos, o mundo atual nos oferta uma interpessoalidade prévia


na qual é a linguagem que age e não o “eu”.

Um amigo da ordem, por René Magritte, 1964.

O autor é suprimido em proveito da escritura. A linguagem não conhece


a pessoa, mas o sujeito que não tem existência fora da enunciação
(BRUNO, 2008).

A autoria é uma fé personalista da Idade Clássica, que


existiu até meados do século XVIII. O autor era o dono
da sua voz, e a voz é uma substância regida pelo
princípio de identidade (não contradição). Todavia,
atualmente, as palavras não conhecem mais uma voz
única, elas oscilam soltas como se circulassem sobre
o impessoal. A escritura, e com Barthes, o texto, é o
que torna vã a identificação do autor, separando a voz
de sua origem e constituindo o neutro na linguagem
(BRUNO, 2008).

Em outras palavras, quem escreve hoje sabe que sua voz é atravessada
por uma multiplicidade de vozes. Cada um de nós é uma polifonia. No
que dizemos, somos atravessados pelas vozes dos nossos parentes,
amigos, professores, as falas das redes sociais, os discursos políticos
que ouvimos, os “autores” que lemos etc.

A recompensa do poeta, por René Magritte, 1956.

Assim, uma identidade, um rosto por trás do texto, se apaga. A função


autor exigia uma adequação entre o ‘eu digo’ e o ‘eu sou’. A função autor
exigia uma reflexão adequada, uma transparência no plano do
enunciado. O autor era o agente que representava a exterioridade e a
interioridade (BRUNO, 2008).

É claro que temos noção de que essas sofisticadas indagações da


crítica literária coincidem apenas com uma parte da literatura de
vanguarda.

Talvez, para a maioria dos escritores, sobretudo, os que escrevem best-


sellers, a função-autor continua sendo um valor precioso, até porque
desta depende a arrecadação de direitos relativos à obra.
Voltemos a Roland Barthes, que, paradoxalmente, escreveu uma notável
“autobiografia”. Roland Barthes por Roland Barthes é uma estranha
escrita sobre si.

Barthes (1977) escreve em fragmentos para falar da impossibilidade de


um eu coerente e centrado. Por isso, esse livro inicia com imagens
recortadas quase ao acaso. Um modo de apresentar a teoria e a
literatura de forma não separadas. Roland Barthes por Roland Barthes é
uma “autobiografia”, discutindo as verdades possíveis da linguagem: o
que a linguagem finge dizer nos seus códigos (BRUNO, 2008).

video_library
A função autor e a morte
do autor
Assista agora a um vídeo que apresenta as concepções sobre a função
autor de Foucault e a morte do autor de Barthes.
Falta pouco para atingir seus objetivos.
Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Quanto à questão literária da autoria, analise as afirmativas e


assinale a alternativa que contém as corretas:

I. O filósofo Michel Foucault se preocupou com o problema


contemporâneo da função autor.
II. Na escrita literária contemporânea, o papel da autoria não foi
colocado em questão.
III. Na literatura contemporânea, o autor deixou de ser o sujeito
absoluto da sua escrita.
IV. É possível afirmar que uma parte da literatura contemporânea
caminha para uma escrita de superfície em que os significantes se
tornam flutuantes.
V. A autoria é uma questão da escrita contemporânea; na Idade
Clássica, a escrita literária era predominantemente impessoal.
VI. A identidade de si e a fé personalista na autoria não foram
objetos da crítica literária contemporânea.

A I, II e IV.

B I, III e V.

C I, III e IV.

D I, IV e V.

E II, IV e VI.

Parabéns! A alternativa C está correta.


As afirmativas I, III e IV estão corretas porque o problema da função
autor interessou a pensadores como Roland Barthes e Michel
Foucault, tendo em vista que dizia respeito a certas mudanças que
a literatura sofreu no mundo contemporâneo.

Questão 2

Tendo em vista que Roland Barthes foi um dos mais significativos


teóricos da literatura, observe as afirmativas e assinale a alternativa
que contém as corretas:

I. Por não acreditar na função autor, Barthes nunca escreveu uma


autobiografia.
II. Roland Barthes por Roland Barthes é um livro em fragmentos
falando da impossibilidade de um eu coerente e centrado.
III. Barthes escreveu uma “autobiografia” questionando as verdades
possíveis.
IV. Barthes desenvolveu, em um pequeno artigo, reflexões
importantes sobre a morte do autor.
V. Elementos de semiologia é uma obra em que Barthes rompeu
com o estruturalismo.
VI. A função autor não exige uma adequação entre o ‘eu digo’ e o ‘eu
sou’.

A II, III e IV.

B II, III e V.

C III, IV e V.

D II, IV e VI.

E III, IV e VI.

Parabéns! A alternativa A está correta.


Embora Barthes tenha escrito sobre a morte do autor, em um curto
ensaio, ele escreveu também uma obra autobiográfica com
aspectos demasiadamente paradoxais, o livro Roland Barthes por
Roland Barthes, por isso, as afirmativas II, III e IV estão corretas.

Considerações finais
O pós-estruturalismo, que foi aclamado e atacado por posições
extremas do espectro político, é, ao mesmo tempo, uma ruptura e, sob
certos aspectos, uma continuidade do pensamento “dito” estruturalista.

Assim, procuramos apresentar o pós-estruturalismo, sobretudo, na sua


perspectiva desconstrucionista, a partir de algumas de suas
problemáticas e questões.

O pós-estruturalismo, em seus múltiplos desafios, nos permite


compreender alguns aspectos das dúvidas e dos caminhos
epistemológicos do mundo contemporâneo.
Por fim, problematizamos o conceito de autor, discutindo sua função e
sua morte, ou extinção.

headset
Podcast
Ouça agora a um podcast que apresenta uma síntese dos principais
conceitos relacionados com o pós-estruturalismo, o
desconstrucionismo, a função autor e a morte do autor.

Explore +
Leia as seguintes obras:

Seis personagens à procura de um Autor, de Luigi Pirandello.


Roland Barthes por Roland Barthes, de Roland Barthes.

Leia os seguintes textos:

Verbetes “Desconstrução”, “Pós-estruturalismo” e “Morte do autor”, do E-


Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, disponível na Web.
Assista aos seguintes vídeos disponíveis no canal da Univesp, no
YouTube:

Teoria da Literatura – Estruturalismo e Pós-Estruturalismo.


Introdução à Teoria da Literatura #10 com Paul Fry, de Yale, palestra sobre
a desconstrução de Derrida.

Referências
ASKOFARÉ, S. Com Lacam... Ou ser seu contemporâneo. Revista
Lacuna, 8 dez. 2019.

BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix,


1977.

BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BRUNO, M. O inconsciente estrutural. Revista Mente e Cérebro.


Filosofia. São Paulo. Ediouro-Segmento-Duetto-Editorial. s.d.

BRUNO, M. Escrita, Literatura e Filosofia: Derrida, Barthes, Foucault e


Deleuze. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

CEIA, C. Desconstrução. In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos


literários. Lisboa, 30 dez. 2009.

CULLER, J. Sobre a desconstrução. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos


Tempos, 1997.

FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. 3.

FOCAULT, M. Arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2002.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2014.

ECO, U. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1976.

LOPES, S. R. A legitimação em literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1994.

MERQUIOR, J. G. O idealismo do significante (a Gramatologia de


Jacques Derrida). In: ______. O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

NASCIMENTO, E. Derrida e a Literatura. “Notas” de Literatura e Filosofia


nos textos da desconstrução. Rio de Janeiro: Eduff, 1999.
PECORARO, R. Derrida. In: PECORARO, R. (Org.) Os filósofos: clássicos
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SEABRA, J. A. Poiética de Barthes. Porto: Brasília Editora, 1980.

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