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Kiwi e Os Garotos Perdidos Da Praia Da Caveira Ana
Kiwi e Os Garotos Perdidos Da Praia Da Caveira Ana
Ana Jeckel
Para o garoto da cidade.
Mas não adianta, não importa o quanto desejemos, estrelas cadentes sempre
acabam caindo.
PRÓLOGO
Eu Sei que Vai Chover
Que merda eu vim fazer aqui… o pior é que eu sabia bem a resposta.
— O quê?
Abanei de volta. Ela fez sinal para que eu a seguisse. Não sou de,
sabe, confiar em estranhos. Morando em uma cidade que nem São Paulo,
isso é como a regra número um de sobrevivência. Mas situações drásticas
pedem por medidas drásticas.
Por entre tropeços, segui a senhora, correndo pela areia até chegar à
floresta, à grama e às palmeiras. Havia muitos insetos ali, apesar da chuva,
e eu nem queria olhar para ver qual era o estado das minhas pernas nuas. Eu
devia ter optado por calças, era a única coisa que percorria minha mente.
Aquele lugar devia ser o inferno em dias de sol. Ela continuou chamando,
parecendo cada vez mais perto, mas distante também. Eu podia ver melhor
seu rosto agora, olhos claros, cabelos grisalhos, pele pálida. Mas toda vez
que eu tentava alcançá-la, ela desaparecia de vista. Que ótimo seria brincar
de pique-esconde com um fantasma, não? Seria a cereja do bolo do meu
dia.
— Aqui dentro!
— E o que uma criança da capital que nem você está fazendo na ilha
com um tempo terrível desses?
Dessa vez não houve risada e isso me deixou um pouco sem graça.
Capítulo Um
— Mãe!
— Você pode pelo menos fingir que está me ouvindo? — sua voz não
soava brava, pelo contrário. Fazia dias que Nalu não conversava com ela
sobre o que tinha acontecido. Na verdade, não abria a boca para dizer uma
palavra e agora havia virado de cara emburrada para a janela, observando o
ar condensar no vidro em frente às suas narinas. Baixou o boné por cima
dos olhos e cruzou os braços.
Ser mãe de adolescente nunca foi tão difícil assim. Camila suspirou.
— Sinto muito por você ter que passar por isso. Seu pai não é fácil de
lidar.
— Aí você escolhe deixar sua filha com aquele babaca em São Paulo
e fugir para uma ilha do outro lado do estado? Bem pensado, mãe.
— Você não tem mais nada para fazer da sua vida, meliante? —
ele bufou, suspirando logo em seguida. Então abriu a porta de ferro vazado,
que ele nem sequer tinha tido o trabalho de trancar, e com a outra mão
puxou Nalu pela manga do casaco. — Vem, vá fazer sua ligação logo de
uma vez. Não quero ser eu a chamar seus pais de novo aqui.
Nalu não era um cara medroso. Para falar a verdade, ele estaria
muito melhor se estivesse sentindo medo. Pelo menos seria alguma coisa.
Ele era um garoto alto para a idade e nem mesmo Roberto Ramires, que
tinha o dobro do seu tamanho, o fazia estremecer. Na verdade, a única coisa
que se passava na sua cabeça era:
Que saco!
Nalu bufou.
Que saco…
Foi quando deu de cara com aquele telefone enorme em sua frente
que sentiu o estômago embrulhar. Que droga, a última coisa que precisava
naquele momento era ter que meter seus pais nisso. Como se as coisas em
casa já não estivessem péssimas o suficiente. Com uma pontada de preguiça
e seriamente considerando a possibilidade de passar a noite na delegacia
para não ter que dormir pressionando o travesseiro contra as orelhas para
abafar mais uma discussão, discou aquele número que sabia de cor até se
tivesse que digitá-lo de trás para frente.
Um bipe. Dois bipes. Levou três para que aquela voz adocicada,
porém desconfiada, atendesse do outro lado da linha.
— Alô?
— Oi, Yoko…
Ele não precisou ver a cara da irmã para sentir a expressão dela
mudando drasticamente para “eu vou definitivamente matar esse imbecil”.
Ele sabia que tinha estragado tudo e não podia culpar sua mãe pelo o
que estava fazendo. Naquela noite, enquanto seu pai só sabia gritar sobre
como seu filho estava vandalizando propriedade privada, Nalu não
conseguiu olhá-lo nos olhos, muito menos explicar a verdade.
Ren sempre agia daquele jeito. Nunca tinha visto a arte de Nalu como
ele via. Nada nunca era bom o suficiente. E enquanto seu pai gritava,
fazendo todas as paredes da delegacia estremecerem, sua mãe segurou em
seu ombro e, por entre um soluço, soltou apenas três palavras.
— Você se machucou?
Eu quero desaparecer.
— Pai, para de gritar — Yoko tentou acalmá-lo. Eu nem a vi
chegando .
– Não! Ele tem que ouvir mesmo, passar na pele a vergonha que
ele trouxe para a família. Você sabe o que dizem por aí, não sabem? Que eu
tenho um filho bandido. Acha que eu tenho orgulho de ter um filho como
você?
Eu só quero desaparecer.
— JÁ CHEGA!
— Você não vai nunca mais falar assim com o meu filho.
Que saco…
— Sei que começar de novo em outra cidade pode ser difícil, mas o
ano letivo pode ser tão divertido quanto o verão. Pode reencontrar seus
amigos.
Era uma foto dos pés da irmã deitada na cama. As pernas estavam
cruzadas e ao redor das calças vermelhas havia vários livros e apostilas
acadêmicas. Mais ao fundo da foto, dava para ver o reflexo dela no espelho
da parede, toda descabelada com os cabelos presos em um coque alto e uma
camiseta do All Time Low. Bem no meio da foto, havia uma barra cinzenta
de texto.
Era esse o plano, mas Camila ainda não fazia a menor ideia. Ele só
precisava de dinheiro para o ônibus e estaria em São Paulo para o dia do
show.
— “Hoje eu acordei para matar o presidente, hoje tem festa, ela vai
tá, eu vou, vai ser perfeito…” — cantarolou.
Nalu esboçou um sorriso. Tudo bem, aquilo era muito legal. Por um
momento, ele esqueceu que estava chovendo ou que o dia estava horrível ou
que estava em uma balsa indo morar no meio do nada.
Ele não estava muito contente em tirar as malas do carro, isso faria de
tudo aquilo real demais para ele.
Sua avó, Mara, possuía uma casa enorme em frente à Ilha dos
Guaiamus, que também pertencera a família dela em certo momento.
— Bem, então é hoje que você vai conhecer a casa onde eu cresci.
Como se já não bastasse ter que se mudar para uma ilha, Nalu teria
que viver em uma casa que a única maneira de chegar era de barco, de
caiaque ou nadando. Ótimo. as coisas não paravam de piorar.
— Convidativo.
— Preparado?
Capítulo Dois
— Temos dois meses para dar uma olhada em tudo que seus avós
deixaram aqui e esvaziar a casa — fungou. — A prefeitura comprou o
terreno e até junho isso tudo vai ser patrimônio público. Vou precisar muito
da sua ajuda nos próximos dias, está bem? — fungou de novo.
Mara Castelo sempre fora uma figura. Ela era cheia de segredos e
costumava contar histórias sobre lendas da ilha para Nalu e Yoko quando
eram pequenos. Contos sobre piratas e fantasmas. Nalu e seus amigos
ficaram obcecado boa parte da sua infância por essas histórias, mas quando
crescemos, vemos que elas estão muito mais próximas de nós do que
podemos imaginar. Piratas não passam de ladrões e fantasmas estão por
toda parte. Eles moram nas nossas cabeças.
Sua avó tinha falecido no fim do ano passado e, desde então, sua mãe
queria vir para a ilha, mas Ren Sakurai sempre arrumava empecilhos idiotas
e sem sentido para a viagem, como o preço da gasolina, conferências
internacionais ou queda de cabelo. Pensando bem, Nalu talvez tivesse feito
um favor para sua mãe.
Sua voz saiu linear e sem vida, mas pensou que a mãe precisava
saber. O brilho de uma lágrima surgiu nos olhos de Camila, então ela
esboçou um sorriso.
— AAHHHH!
Aquelas asas pretas e medonhas bateram no ar ao encontrarem com a
luz e voaram rasante perto da cabeça do garoto, procurando por uma janela
para fugir.
Hilário.
Nalu adorava essas coisas quando era criança. Achava várias caixas e
até baús no sótão do casarão com diários, fotos antigas e objetos brilhantes
que pareciam tesouros perdidos no tempo. Não parecia mais tão atrativo
assim aos dezessete anos, mas ele estava entediado.
5 de março, 1916.
— Eu lembro disso...
— Nano, você viu por aí uma... ai, meu deus, não acredito que
encontrou isso!
Nalu estava curioso demais para dar atenção ao fato de sua mãe ter
usado seu apelido de criança, que era a mistura de Nalu com “mano”, que
Yoko lhe havia dado aos dois anos de idade quando ainda não sabia falar
direito. Camila agachou-se ao seu lado e pôs-se a mexer nos diários.
— Velha e rabugenta.
— Por que a vovó ia guardar essas coisas? Ela ao menos era nascida
em 1916?
— Dizem que ele bateu em um recife na Ponta do Boi, mas ele está
naufragado a quilômetros de distância da ilha — completou Nalu,
desviando o olhar. — Eu e o Riva tínhamos certeza de que foi uma
conspiração da tripulação para roubar os tesouros dos cofres dos
passageiros.
Um único suspiro saído da boca de sua mãe foi necessário para que
Nalu percebesse que ela sabia muito mais do que ele sobre aquela história.
Ou era isso, ou...
— Nós crescemos, mãe. Não nos falamos mais — disse, a voz dura
como pedra. Recolocou a caixa e todo seu conteúdo de onde antes havia
tirado, transformando-a de volta em apenas uma memória no canto do
quarto. — Além do mais, histórias de fantasma são para crianças.
O lado Sul da ilha não tinha a mesma estrutura que o lado Norte. Mal
havia calçada ou ruas que não fossem de terra, o que dificultava um bocado
andar de skate.
Nalu pegou o primeiro ônibus que avistou indo em direção ao centro
comercial e sentou perto da porta. Era fevereiro de 2013 e suas aulas
haviam começado há uma semana. Sua casa ficava longe da escola, o que
significava que tinha que acordar bem mais cedo do que gostaria e dar a
sorte de o barqueiro estar no porto antes das sete da manhã. Estava por um
fio de se mudar antes do prazo para o casarão. Ele era um garoto de cidade
grande. Ter que atravessar o mar para ir à escola todos os dias não era nem
um pouco estimulante.
— Mako — leu mais uma vez. Que intrigante era aquela assinatura.
— Quem é você…
— Nalu Sakurai?
— Não sei como eram as coisas na capital, Nalu, mas aqui prezamos
pela liberdade de expressão artística dos alunos. O que acha que vai ser
mais importante depois na sua vida? Pensar de maneira independente ou
saber o processo de reprodução da samambaia?
Capítulo Três
A melhor parte de estudar pela manhã é que você tem o resto da tarde
livre. Não que Nalu tivesse algo de importante para fazer em uma ilha
tropical, mas tinha ficado intrigado com o trabalho passado pela manhã. E a
melhor parte era que ele não precisaria de livros didáticos idiotas, só de uma
câmera mais ou menos boa e um grupo de gente mais ou menos suportável.
— O senhor Angelos?
— Ai, meu deus, eu vi! O que será que ela fez agora? — perguntou
uma.
— Tentei ouvir uma parte da conversa, mas ela não estava junto na
sala — a outra respondeu.
— Que patética.
— Fiquei sabendo que ela fugiu de casa, por isso o pai dela veio aqui.
Nalu não sabia o porquê exatamente, mas o gosto azedo que lhe subiu
à garganta ao ouvir aquela conversa o deixou enjoado.
Ele tinha quatro semanas para arrumar uma grana para a passagem de
ônibus de volta para São Paulo. Quatro semanas para o show. O tempo
estava passando mais rápido do que tinha planejado.
Naquele dia, Nalu pegou o ônibus de volta para casa, mas não estava
com grandes pressas para voltar às caixas empoeiradas de jornais e bonecas
macabras de sua avó. Então deixou que “acidentalmente” perdesse sua
parada e desembarcasse duas mais longe em direção ao sul.
— Lince?
— Nalu?
Nalu fez uma careta, cerrando os olhos por conta da claridade. Aquilo
era tão a cara dele...
— Sabe que não tem nenhum passarinho voando para você gravar,
não sabe?
— Não. E você?
Talvez Nalu não continuasse igual então. Bem, desde o verão de 2008
ele estava diferente e Lince não podia culpá-lo. Algumas coisas acontecem
e não tem como apagá-las da história com um simples sorriso.
— O que foi?
Riva… Fazia anos que Nalu não pensava naquele nome e, de repente,
lá estava ele em todos os lugares. Por que todo mundo ao seu redor queria
que ele voltasse a falar com seu melhor amigo? Eles haviam crescido,
seguido caminhos diferentes. Machucado um ao outro e, por isso, talvez,
fosse muito mais fácil manter distância.
— Ah… claro…
Que manézão que eu sou , pensou Nalu. Às vezes ele bancava o idiota
e só percebia tarde demais. Tirou o boné do topo da cabeça e enfiou por
cima dos cabelos de Lince, deixando-o um pouco mais maneiro.
— Pode crer.
Um fato curioso sobre a ilha, é que não importa o quanto você olhe.
Você só vai enxergar os detalhes se chegar perto. Se for destemido o
bastante para ver o que ninguém mais vê.
Sim, ele já tinha ouvido falar daquele lugar. Existiam lendas, ele e
Riva adoravam ler sobre o assunto. Diziam que uma feiticeira perversa teria
escondido um tesouro na Cachoeira da Toca e matado todos aqueles que
sabiam do seu segredo. Não sabia se era por causa de superstições idiotas
como aquela, mas a praia se tornara um ponto escondido ao longo dos anos.
Passara todos os verões de sua infância na ilha, mas os Garotos Perdidos
nunca haviam se aventurado na Praia da Feiticeira.
Que esquisito, pensou, sem controlar seus pés. O céu estava tomando
tons de rosa flamejante como uma paisagem de fogo, ao passo que o sol se
punha em mar aberto, criando um horizonte dourado em um enorme
espelho d’água.
A praia não era muito diferente das outras, um pouco mais selvagem
talvez. Não havia casas ao redor, a não ser as ruínas do que já fora uma em
algum momento no tempo. A extensão de areia era grande e o mar parecia
calmo. O que era mais intrigante estava do outro lado, uma formação
rochosa que fechava a praia em um formato de meia-lua, pedras que de
longe, assemelhavam-se com presas de algum monstro marinho.
Nalu não era um garoto de praia, então permaneceu de tênis nos pés.
Sua mãe, se estivesse junto, provavelmente teria retirado até as meias e
caído dentro do mar. E, obviamente, o teria levado junto.
Espera.
O quê?
Não, aquilo não poderia estar certo. Não havia nenhum lugar que a
figura misteriosa pudesse ter ido a não ser voltar por onde veio. Estava
ficando maluco?
Sentiu um respingo, mas não era chuva. Não deu tempo que desse
meia volta, pois antes que Nalu percebesse, estava cercado de água. Como...
A maré tinha subido rápido demais e não havia por onde voltar. O mar,
revolto, de repente, nem parecia mais a calmaria misteriosa de minutos
atrás. As ondas batiam nas pedras, chamando-o para se juntar a elas, como
seres das profundezas cantam para os humanos. O pânico tomou conta de
seu peito, o coração acelerado tentando pensar em alguma saída. Tentou
descer, calmamente pelas rochas, mas sua mochila foi a primeira vítima.
— MERDA!
— AAAHHH!
Uma onda bateu de encontro com seu rosto, fazendo Nalu engolir
água e encharcando todas as suas roupas. Nunca entendemos o quanto mar
é forte, até levarmos uma bela surra dele. Ouviu o som de algo
escorregando ao seu lado.
— NÃO!!!!
Seu skate caiu, batendo entre duas rochas e foi engolido pelas ondas.
Não deu tempo para sentir nada além de raiva, nem um segundo para pensar
em um plano B. Nalu tentou levantar, as pernas bambas, os joelhos
tremendo. Por onde sair, por onde...
Mas a natureza tinha outros planos e Nalu não conseguiu escapar, até
ver-se cercado pelas águas revoltas. Uma onda puxou-o para dentro do mar
como um espírito maligno puxa o pé de uma criança à noite. Não tinha
como lutar contra algo do tamanho do oceano. Sentiu-o dentro de seus
pulmões e a água misturava-se, dando-lhe socos no rosto, no estômago, no
pescoço, sem deixar que voltasse para a superfície. Abriu os olhos. Ele
precisava encontrar uma saída, senão... nem queria ver o rosto de sua mãe
com o que ela veria no noticiário naquela noite.
Sua mãe. Ele precisava sair dali. Por ela. Não poderia fazê-la passar
por aquilo de novo. Sem mais funerais.
Parecia um monstro.
...tudo escureceu.
Capítulo Quatro
Seus dentes batiam uns nos outros, tremendo para tentar se aquecer,
suas roupas cheias de areia, como se alguém o tivesse arrastado até ali.
Espera, paralisou por um instante e olhou ao redor. Sua mochila e seu skate
estavam distribuídos próximo ao seu corpo e qual era a chance de a
natureza ter feito tudo isso sozinha?
— Que ótimo…
O caminho de volta não foi fácil, mas pelo menos não era difícil de se
localizar. Havia apenas uma rua que cortava a ilha inteira e correr por uma
calçada infinita era o menor de seus problemas no momento. A chuva não
parecia querer cessar a nenhum momento, pingando em seus cílios
dificultando a visão naquela noite nebulosa. Ele sabia para onde ir e quando
avistou a loja de conveniências, suspirou aliviado. Estava aberta com as
luzes ligadas e uma Camila Castelo trabalhava no caixa.
Sim. Seu filho estava encharcado da cabeça aos pés em sua frente,
embarrado e esfolado e a primeira coisa que ela percebeu foi a meia com
um furo no dedão. Nalu balançou a cabeça, parecendo um vira-lata se
secando depois de um banho a contragosto.
— Pisei em uma poça.
Engraçadinha.
A sineta soou mais uma vez e uma garota alta e bronzeada adentrou a
loja. Devia ser um pouco mais velha, dezenove anos talvez, e tinha porte de
surfista.
— Bela bermuda.
— An… valeu.
— Você me paga.
Camila Castelo deu uma gargalhada.
MITO DESVENDADO?
Sentiu um arrepio e a imagem daquela figura misteriosa voltou a
atormentar sua memória. Aqueles cabelos flutuantes, aquele peixe
enorme… será que…
…será?
Não... ele devia estar mesmo perdendo a cabeça, sereias não existem
.
Então, por que, a garota que ele viu no mar aquele dia estava sentada
bem em sua frente na sala de aula?
Sua mãe o internaria na mesma hora. Certo que pensaria que o filho
estava usando alucinógenos, drogas pesadas e adeus show do Charlie
Brown Jr.
Nalu coçou a cabeça. Muitos dos links que apareceram em frente aos
seus olhos ele reconhecia da época que lia as revistas locais. A lenda da
feiticeira, do bando de piratas de Thomas Cavendish e o butim do Mary
Dear, o naufrágio misterioso do Aurora Armada... o que não faltava em
Ilhabela eram histórias sensacionalistas, sem falar nos fantasmas das
cavernas e nas pedras que soavam como sons de sinos. Mas uma em
específico chamou sua atenção:
Alternava seus dias entre ficar até mais tarde na biblioteca da escola
para ver se encontrava alguma coisa sobre o assunto, e, bem... seguir Kiwi,
a garota dos pés descalços, de volta para casa. Já não bastava as outras
alunas do colégio comentarem o tempo todo sobre ela, Kiwi era mesmo
suspeita.
Nalu resolveu retirar todas as caixas de sua avó para fora do armário
e espalhar tudo pelo chão do quarto. Mara Castelo, a desbravadora de
lendas urbanas e folclóricas seria a sua solução. Tinha que ser. Não havia
nada que aquela mulher não soubesse. A maioria dos diários eram confusos
e ele não conseguia entender direito, bem diferente dos que lia no casarão
quando era criança. Eram mais antigos também e por alguma razão parecia
que sua avó estava aprendendo a falar português, porque certas palavras, ele
tinha certeza de que não existiam. Mas o assunto mais recorrente era o
naufrágio do Aurora Armada e o tesouro do capitão Thomas Cavendish.
— Vê só? Você não entende porque está em holandês, mas sua bisavó
descreve tudo o que passou naquela noite, como foi resgatada pelas pessoas
da ilha e criada por uma família daqui. Depois disso, ela ficou obcecada nas
lendas locais, dizia o tempo todo que ouviu alguém da tripulação conspirar
naquela noite. Ela tinha certeza de que todo o desastre foi uma armação
completa.
Meu avô... Nalu caiu para trás, deixando a gravidade fazer seu
trabalho. Sua cabeça esvaziou-se por completo durante um mero segundo,
para tentar organizar as informações. Ele não tinha conhecido seu avô.
Quando era pequeno estava sempre fora, em alguma expedição e não
morreu muito depois disso.
— Mané.
Jogou-se por cima dos jornais mais uma vez. Tinha uma única
informação faltando no quebra-cabeça, algo que viraria o jogo ao avesso e,
quando encontrou, sentiu a energia formigando em seus dedos. Ali estava.
Bingo.
Capítulo Cinco
Lince morava em uma das praias mais famosas por sua canoagem e
seus fabricantes de barco. Seu pai mesmo era um carpinteiro especialista em
canoas e isso significava que ele tinha material suficiente para emprestar
um pouco para dois garotos sem skates.
Deu play em Charlie Brown Jr. e assim a tarde se estendeu. Com dois
moleques fazendo uma bagunça na praia e, de vez em quando, uma
dancinha ridícula como se estivessem dentro de algum clipe musical.
Respingos de azul pintavam a areia e Lince parecia exausto, mas feliz. Nalu
deu-lhe um cascudo por cima do boné.
Como o dia passou rápido ao lado dele. Nalu sentia falta desses
momentos, de alguma forma. Ele tinha se divertido, mas sabia que não
guardaria o momento nas suas memórias. A despersonalização fazia isso
com ele. Desde 2008, era raro que ele conseguisse se conectar
emocionalmente com alguma coisa. O vento da noite começava a soprar e o
frio de um outono ainda distante começava a aparecer. Os garotos ficaram
um tempo sentados na areia, com as pernas e olhos voltados para o mar.
— Bem, não muito. Sei que ela dançou uma vez em cima das
carteiras e parou na diretoria. Foi tão esquisito... Por quê? Você gosta dela?
Lince ajeitou a postura. Ele era um cara esperto, sabia onde Nalu
queria chegar com aquela conversa.
Nalu riu.
— Vai em frente.
Como era fácil ver um nerd feliz. Lince folheava tudo com cautela,
apesar do entusiasmo, os dedos nervosos por estar segurando uma relíquia
como aquela.
— Você fala com o Pedro, eu falo com a Kiwi. Se Bartel Van Dijk e
Phillip Angelos eram tão próximos assim, ela deve saber de alguma coisa.
Deve conhecer meu avô melhor do que eu.
— E o Riva? — perguntou.
Que estranho… ela ainda não havia descido. Não havia muitas
paradas depois daquelas. O ônibus não podia continuar por muito tempo,
afinal ele só ia até onde a prefeitura havia asfaltado. Os últimos passageiros
desceram na Praia do Veloso. Nalu freou o skate e observou as poucas
pessoas que tinham sobrado dentro do ônibus descerem. Uma mãe com uma
criança e um senhor de idade.
E então Kiwi.
Bingo. As portas do ônibus se fecharam e ele deu meia volta para
dirigir até o centro comercial outra vez. Em contrapartida, Kiwi seguiu em
frente caminhando pelas ruas de barro. Não era possível continuar em cima
do skate, então Nalu esperou trinta segundos para começar a caminhar. Não
haviam quase casas por ali e, por todas que eles passavam, Kiwi ignorava.
Seguia em frente, indo de encontro com a mata.
Quer dizer, era bem óbvio com quem ela estava falando, mas Nalu
franziu a testa em confusão. Cara de pau.
Kiwi fez uma careta em direção a Nalu, que teve que segurar um
sorriso maroto nos lábios. Entendi. Vai ser um jogo difícil. Legal, legal. E as
coisas ficavam um pouco mais interessantes quando aquela garota em sua
frente era tão astuta quanto ele. Aqueles olhos verdes, tão enigmáticos, não
paravam de o encarar.
Então era isso. Uma garota tinha o feito ficar totalmente sem graça.
Kiwi desceu ladeira abaixo, sem nem olhar para trás, deixando um
Nalu plantado a vários metros de distância.
— Ei, ei, ei! — Ele armou uma corrida. — A gente pode conversar?
Eu sou neto do Bartel Van Dyjk. Provavelmente você conheceu o cara. Eu e
uns amigos vamos ir atrás do tesouro do Cavendish. Você sabe se o seu pai
por acaso...
O garoto poderia ter entendido aquilo como um fora bem direto, uma
surra no estômago, mas, por alguma razão, Nalu não conseguia parar de
sorrir.
Ela sabe meu nome. Aquilo bastava para ele. Pelo menos por ora.
— Não era o que seu pai e meu avô achavam... — provocou Nalu,
sem se distanciar. Nenhum dos dois cedeu, até que Kiwi deu um leve passo
para trás.
— Uau...
Os Garotos Perdidos.
Sentou-se.
— Depois que você parou de vir, o Riva não apareceu mais na escola.
Foi só eu e o Pedregulho por muito tempo... até que um dia ele também
parou de aparecer.
Lince franziu o nariz. Nalu sem graça limpou a mão na lateral das
calças.
— Ah, bem. Sabe, ele é um cara meio incomunicável, sabe como é...
— Sei muito bem — Nalu revirou os olhos. — Já sei até o que vou te
dar de aniversário.
— Você disse que os ônibus não chegavam lá, mas que haveria
uma estrada!
Suspirou.
Se bem que não tinham visto nenhum carro passar por ali.
— E depois disso?
— Vou comprar uma casa para mim e pra Yoko. Ela vai
continuar indo à faculdade e eu... sei lá. Vou continuar pintando, eu acho —
bebeu um gole da garrafa. — E você?
— Vou levar meus pais para o Rio. Eles nunca saíram da ilha.
Vou para a faculdade e... acho que vou comprar uma câmera melhor
também.
— Ei!
Os pneus frearam em sua frente, jogado barro nos pés dos garotos,
mas Nalu não estava preocupado com isso. Seus olhos estavam mais
vidrados na pintura feita na lataria, uma explosão de cores e a palavra que
ele vinha procurando por tanto tempo estampada no lugar da porta do
motorista.
MAKO
— Entrem logo.
Lince poderia estar paralisado dos pés à cabeça, mas isso não
impediu Nalu de carregar o amigo praticamente no colo para dentro do
veículo. Ele estava perturbadoramente sorridente.
Ou não.
— Não.
— Parecia.
— ...valeu?
— O quê?
— É por isso que você leva vida de fugitiva? O que você fez?
Comeu morangos silvestres sem o consentimento da prefeitura?
— Cala a boca.
Capítulo Sete
— Eu? Com ciúmes desses caras? — Nalu cuspiu uma risada que
não soou nada convincente. — E daí que eles são bronzeados e viciados em
academia? Meu cabelo é muito mais maneiro.
— Quem sabe um dia não te ensino a surfar. Mas vai ter que
melhorar essa sua cara emburrada.
— Sei.
— Snack-surf? ...Snacks-urf?
Kiwi, significados.
Nova Zelândia?
/Ki.wi//: ?
Mako, significados.
“Mako, palavra de origem maori, com tradução para ‘tubarão’ ou
‘dentes de tubarão’. Mako é considerado o tubarão mais rápido do mundo.”
Phillip Angelos.
Nalu levantou o olhar para Kiwi mais uma vez. Era como um ímã.
Ela era tão enigmática, mas agora ele sabia um pouco mais sobre a garota
dos cabelos de maresia. Kiwi... aquele era mesmo seu nome?
— Pedro, oi! A gente… quer dizer… viemos até aqui para falar
com você sobre…
— Conheçam a Nanda!
— Quem é a garota?
— E aí, cara.
Foi por um mero segundo, mas seu tom de voz mudou e Nalu
soube de todas as entrelinhas que estavam ali escondidas. Mas Riva sempre
foi bom de esconder seus sentimentos. Puxou ar para os pulmões e afastou-
se, analisando mais de perto aquela situação ridícula.
Sorriu.
KAIA?
— Sim, esse é meu nome. Não acredito que você ainda não
sabia.
— Tá com você.
— Eu já volto.
Seus olhos embaçaram. Não poderia ter lido certo, afinal havia
um show marcado em pouco tempo. Ele sabia, ele tinha ingresso. Não
poderia ser verdade. Piscou duas vezes e olhou novamente para a televisão,
mas as palavras continuavam as mesmas.
Ele está em luto, a terapeuta havia dito em 2008. Vai voltar para
a realidade quando estiver pronto.
Eu quero desaparecer...
Sozinho.
Kiwi fungou.
Foi só então que entendeu. Aquilo não estava dentro da sua cabeça,
era real. Estivera prestes a fazer algo real e machucar alguém que agora
estava chorando por ele. Sentiu as lágrimas queimarem em seus olhos,
formando-se como bolsas de água fervente e escorrendo por sua bochecha.
A ficha caiu. Engoliu em seco e balançou a cabeça, em negação.
Definitivamente não queria conversar sobre aquilo e tornar mais real do que
já era.
Por entre soluços, Nalu deixou que Kiwi guiasse seus movimentos,
ela virando seu corpo em direção ao dela e o abraçando ternamente. Nalu
gritou, chorou, pressionando sua testa contra o ombro da garota, afundando
no coração de alguém que esteve ali antes que fosse tarde demais. Kiwi
segurou seus cabelos, movendo os dedos gentilmente para cima e para
baixo, tentando acalmá-lo. Ele merecia chorar. Merecia sofrer.
Ela beijou sua testa e levou sua mão à dele, entrelaçando seus dedos.
“Tô juntando uma grana. Logo que eu puder, dou um jeito de ver
você.”
“Estou indo. Aguente firme. Não vou largar sua mão, lembra?”
Mas ele não respondia nenhuma. Não queria a pena de ninguém. Não
queria ser um fardo na vida de sua irmã ou de sua mãe como já era na vida
de seu pai. Então, simplesmente ignorava e voltava a dormir.
— Eu estou bem...
Meu boné?
Kaia?
— Não acredito que você vai desistir tão fácil assim! — ela
gritou, indignada.
— ...Cala a boca...
— Não era você que era neto do grande Bartel Van Dijk e blá blá blá?
— ela continuava a falar naquele tom de voz amedrontado e alto.
— Eu já superei isso. Não quero mais voltar para São Paulo e muito
menos perder meu tempo com uma história de criança. Você mesma disse!
Não existe tesouro nenhum na ilha.
Não lembrava de ter lido nada a respeito da carga que havia no navio,
mas fazia sentido. Uma carga preciosa, um plano armado desde a Europa
por clandestinos que tinham contatos na ilha. Estava tudo planejado. E,
mesmo assim... por que o tesouro ainda não havia sido encontrado? Era no
mínimo intrigante.
Kiwi cruzou os braços. Ela odiaria por aquelas palavras para fora,
mas era a verdade.
Nalu sabia que não era legal sair bisbilhotando, mas sentiu
curiosidade ao ver aquela pequena garotinha sorridente ao lado do pai.
Tinha sido tirada ao lado de uma âncora, provavelmente durante a
despedida entre os dois antes de uma nova expedição de Phillip. Nalu
perguntou-se se alguma vez ele tinha levado Kaia para ver tudo de perto.
Será que eles eram parceiros de mergulho? Será que... bem, ele deve saber
que a filha transforma as pernas em uma cauda.
— Saúde.
— Cala a boca, cara — retrucou Nalu, fechando a escotilha
atrás de si. — O pai dela é um mergulhador famoso pra caramba. E ele tem
o mapa de que a gente precisa.
— Ei, e como o mapa foi parar justo nas mãos do SEU pai? —
e encarou Kiwi.
Todos se calaram. Algo coçou atrás da orelha de Nalu, algo que
ele ainda não tinha parado para pensar e raciocinar direito. Verdade, por que
Phillip Angelos teria um mapa que foi a causa de um ataque pirata há quase
cem anos atrás?
Nalu deixou o corpo cair para trás. Não era possível. Tudo o
que sua família, seu avô e sua avó tinham batalhado, todos os estudos, tudo.
Bartel Van Dijk tinha sido enganado.
— Sinto muito.
— Tá me tirando...
— Está tudo aqui. Todos nós. Não pode ser uma mera
coincidência. O segredo sobre o tesouro, o naufrágio do Aurora Armada... É
quase como se tudo isso tivesse sido...
— Eu sabia disso.
Capítulo Onze
Guerra!
Now Playing: Proibida Pra Mim (Grazon)
— Tem uma trilha que leva até o mar, então podemos entrar
pelos fundos sem sermos vistos. Meu pai deixa as portas de vidro abertas
durante o dia para arejar a casa, não vai ser difícil de entrar.
— Anotado.
— Coisa feia.
Mas Nalu sabia que não era só aquilo. Soube na hora em que Kiwi
mirou os olhos nele.
Um fundo falso.
— Droga.
— Todos os artefatos que ele roubou dos naufrágios. Foi assim que
eu descobri que ele era falsário. Ele guarda quase tudo lá a sete chaves...
Nalu ouviu roncos altos e foi só então que percebeu que havia um
enorme cão branco de orelhas pontudas, vestindo uma grossa coleira
vermelha no pescoço, dormindo esparramado depois do último degrau. O
famoso Sargento.
— Abortar plano? — perguntou tão baixo que poderia ter sido em sua
própria cabeça, afinal Kiwi não parecia ter ouvido, mas estava determinada.
Queria pelo menos causar um pouco mais de caos naquela casa antes de
partir.
Seus olhos verdes pediam a ele que ficasse, mas Kiwi apenas rosnou
em resposta:
— Vão AGORA!
— AUAUAUUUUUUUUU!
— Tinha que ter visto a cara do Riva quando a gente achou que plano
tinha ido por água abaixo — Nalu jogou as costas no assento.
— Ué — Riva atirou-se em cima dos garotos em um sanduíche
humano para chegar até as costas de Kiwi. — Sua namorada quase me
infartou quando abriu aquele armário sem nada!
E mais uma vez, rolaram de rir nos bancos de trás. Nalu esboçou um
sorriso e olhou de relance para Kaia. Ela estava sorridente também, mas
aquele silêncio o preocupava. Parece que visitar sua antiga casa tinha aberto
algumas cicatrizes.
Idiota.
— AY, CAPITÃO!
— O quê?
— O que, não gosta dos meus pés? — e chutou água nos garotos,
dando uma risada. Então aproximou-se do ouvido de Nalu como espíritos
da água enfeitiçavam piratas nas antigas histórias. — Relaxa... sereias só
aparecem à noite.
— Moscou, dançou!
— Esquisita.
— Eu tô bem, eu tô bem...
Terra-firme, enfim.
Riva e Nadi conversavam não muito longe dali. Tinham feito mais
uma viagem ao M.S. Nereu para carregar as cargas e levar o barco para o
rio.
Capítulo Treze
— Tio Kadu, conta pra nós. Eles estão doidos pra saber sobre a
história do Thomas Cavendish na ilha.
— Isso é...
— Precisamos correr.
Capítulo Quatorze
— Eu sei, mas tem alguém que pode ganhar um pouco para a gente
— Riva movimentava o gargalo da garrafa, tentando chamar a atenção de
Nadi. Ele esperava que ela pudesse perceber o sinal de luz daquela distância
e torcia para que não chamasse atenção da pessoa errada.
— Isso!
— Espera, e como você pretende fazer isso? Seu barco está ancorado
em alto-mar — retrucou Nalu.
— Eu vou com ele.
Riva segurou um riso. Ele não precisava, fazia isso o tempo todo
sozinho, mas não queria estragar o ato de coragem do amigo na frente de
Lince, que tinha os olhos brilhantes de orgulho.
— Ela não vai ficar uma fera de vocês deixarem o barco dela no
meio do mar? — perguntou Kiwi. Riva deu de ombros.
— Nadi tem umas dívidas a pagar comigo. Vocês esperam aqui até
darmos o sinal — e fez mais uma vez o sinal de luz, mirando sem querer
nos olhos de Lince, que caiu para trás. — Opa.
Então Pedregulho.
— É sua vez.
Estendeu a mão.
— Ele vai todas as tardes lá em casa… disse que não tinha mais
certeza de que herdar a lanchonete da família era o sonho dele — disse
Lince, brincando com as pedrinhas do chão. — Ele viu meu material de
estudo do vestibular e acho que quer tentar também. Sabe… assim nós dois
poderíamos estudar juntos no Rio.
Kiwi sorriu.
Kiwi ficou de pé, sentindo o vento passando por entre suas roupas e
fazendo sua saia voar. Olhou para baixo. Sua respiração parecia
determinada.
— Confia em mim.
— Segurem firme.
— Nada não, eu só não falei com a minha mãe que não voltaria para
o jantar. Ela deve estar preocupada achando que aconteceu alguma coisa.
Lince corou.
Lince bufou.
Nalu espreguiçou-se.
— Acha mesmo que foi Thomas Cavendish que pôs isso lá? Pode ter
sido qualquer casal nos últimos quatrocentos anos, não temos como saber se
está ligado ao tesouro.
Mais uma delas bateu contra o casco. Pareciam estar ficando furiosas.
Os baques estavam ficando mais fortes. O navio não aguentaria por muito
tempo. Nalu agarrou-se em sua mochila.
A briga estava feia, envolta por uma discussão frenética e caótica dos
dois. As orcas continuavam a empurrar o barco como se fosse uma
dobradura de papel boiando em uma banheira, mas, mesmo assim, nenhum
dos dois dava o braço a torcer.
— KAIAAA!
Foi quando sentiu algo ao redor de sua cintura. Nalu não saberia dizer
o que era, sua consciência começava a escapar por entre seus dedos.
Seus ouvidos ainda pareciam trancados, mas podia jurar que ouvia a
voz de Riva não muito longe dali.
— A culpa é sua! Por que você não fez o que eu mandei? — ele
berrava.
— Era só um barco.
Um vulto surgiu na beira do mar. Nalu voltou seu rosto para Kiwi,
que se arrastava em direção à areia, com sua cauda de sereia.
— Kaia?
— Riva, vai embora daqui — sua voz soou grossa e imponente como
a de um trovão.
— Você ficou maluco? — Kiwi gritou. Sua voz estava rouca e fraca.
Por que ela estava gritando? — Não conhecemos essa parte da mata. Não
podemos nos separar.
— ME DEIXA EM PAZ!
...
...
O som do silêncio reinou por tempo demais, até Nalu perceber que
estava sozinho. Mais uma vez. Kiwi engoliu suas dores e desapareceu em
mar aberto. Riva esvaiu-se como fumaça adentrando a floresta. Pedregulho
e Lince... eles, eles...
Não..., Nalu abafou um grito, encolhendo os joelhos.
Eu chorei quando você disse que me amava e que estaria sempre ao meu
lado.
Chorei porque no fundo do meu coração, doía saber que você estava
mentindo.
Capítulo Dezesseis
— Me desculpe.
O silêncio da noite era o único som entre eles. Até que uma
brisa voou dos lábios da garota ao seu lado.
— Da tempestade?
— Entendi.
— Cala a boca.
— Esquisito?
Foi a vez de Nalu querer aliviar suas dores. Levou sua mão à
dela, arrastando os dedos por cima dos ossinhos saltados até chegar em seu
pulso. Então segurou-o gentilmente, dando um pouco de carinho para
aquela garota perdida.
— Você nem imagina — ela suspirou, tirando aquele peso das costas.
— Eu o ajudei a encontrar a maioria das coisas que ele falsificou quando eu
ainda era criança. Mergulhávamos o tempo todo juntos. Eu achava o
máximo poder levar artefatos perdidos para o museu, até que eu descobri a
verdade.
— Você é ridículo.
— Pelo que?
Ela era linda. Tão linda que fazia Nalu sentir-se nervoso
simplesmente por estar ali com ela e lembrar o que tinha acontecido noite
passada. Mas ao mesmo tempo, Kaia o deixava calmo, em paz. Era uma
sensação difícil de pôr em palavras.
Aproximou-se e pressionou levemente seus lábios em sua testa, um
gesto de carinho que a fez acordar aos poucos com um sorriso no rosto.
— Bom-dia, esquisito.
— Bom-dia, esquisita.
Pedregulho suspirou.
— Minha mochila...
— RIVAAAAA!
Ele também estava sofrendo. Por todos esses anos, Riva sofrera em
silêncio. Nalu nunca mais deixaria ele sozinho outra vez. Nunca se
perdoaria se algo acontecesse ao seu melhor amigo por causa de uma briga
idiota. Fechou os olhos e rezou para qualquer deus ou entidade que existisse
lá em cima. Por favor... me ajudem a encontrá-lo uma última vez.
— ...Nalu? — choramingou.
Fungou o nariz.
Era estreita e sinuosa, mas os garotos não tiveram opção a não ser
seguir a garota dos cabelos de maresia floresta adentro. A flora era densa e
as árvores criavam um teto de sombra, com poucos feixes de luz corajosos
passando por entre as folhas. O ar era impregnado de um aroma terroso e
misterioso, preenchido pelo som dos passos apressados do grupo pisando
nas folhas secas.
Nalu abriu espaço para que Riva fosse em sua frente. Ele ainda
parecia nervoso e um pouco atordoado também.
Ninguém atendeu. Nalu olhou ao redor. Não era uma simples casa de
um morador da praia que gostava de viver isolado longe da civilização.
Não. Havia um teto solar e várias outras geringonças no teto, antenas e
parabólicas, cataventos e outras coisas que nem mesmo Lince sabia dizer o
que eram. Nas janelas haviam totens estranhos e uma linha de sal grosso
havia sido posta em frente à porta. Kiwi bufou e bateu mais uma vez, mais
forte e mais incisiva.
— Olá? — bateu mais três vezes com os nós dos dedos na madeira
envelhecida.
— ...pai?
E desabou no chão.
Capítulo Dezoito
— Você não tem que ter medo de cobras e serpentes. Elas são
legais — ela dizia. — Vou te ensinar uma coisa, está bem? Para estar
preparado a qualquer momento. Sabe o que fazer se você encontrar a
serpente mais venenosa do Brasil?
— ...mãe?
— Ele acordou!
Foi então que Riva percebeu que havia um soro preso em seu braço e
seu pé havia sido enfaixado. O homem aproximou-se com os passos
pesados até chegar em uma cadeira perto da janela e se sentar de frente para
o garoto da ilha.
— Você cresceu.
— Pai?
Martim sorriu por trás dos óculos e foi dar um abraço desajeitado no
filho.
— Ela morreu.
Não sabia se tinha sido o jeito que Martim tinha perguntado ou o fato
de ele não fazer ideia sobre nada da vida do próprio filho, mas Nalu sentiu a
raiva subir. Ele sempre fora impulsivo e se tivesse tido uma oportunidade,
tinha dado um soco no estômago daquele cara. Onde ELE estava esse
tempo todo e por que tinha deixado Riva sozinho daquele jeito?
— Ah... entendi — falou baixinho. Não pareceu triste, mas sem graça
por ter feito a pergunta. Aquilo sim deixou Nalu irritado.
— Quer dizer que esse tempo todo você estava na ilha? — perguntou
o garoto da cidade, intrometendo-se entre pai e filho. — Por que não entrou
em contato nenhuma vez? O que faz aqui?
O senhor peculiar soltou um riso, parecendo se divertir com a
situação.
Poderia?
Martim deixou que o silêncio falasse por ele. Olhou um por um dos
garotos e lentamente abriu um sorriso, como se estivesse prestes a contar o
maior dos segredos.
Odiava admitir isso, mas Riva não sabia nada sobre o homem em sua
frente.
— Eu e Van Dijk escavamos toda a área nos anos noventa, mas sem o
roteiro... — Martim engasgou-se, indo em busca de uma garrafa de bebida.
— Desculpem, eu falo demais quando o assunto é esse. Faz alguns anos que
não recebo visitas.
Nalu mirou a besta de caça em cima da mesa, com uma careta.
— Corre, menor!
— Precisamos ir.
Nalu sentiu o peso daquelas palavras, mas não afrouxou suas mãos.
Segurou seu rosto, implorando para que Kaia prestasse atenção. Era a vez
de ele trazê-la de volta.
Riva soltou o soro do braço e, sem hesitar, saltou para cima de seu
pai, tentando desarmá-lo.
— FUJAM! — gritou.
Nalu assentiu com a cabeça e levou Kiwi para o lado de fora. Martim
enfureceu-se, empurrando Riva contra a bancada.
Ed Young.
— Você… encontrou.
— VOLTEM JÁ AQUI!
Nalu segurou ainda mais firme a mão de Kiwi ao ouvir aquele berro
vindo de trás. Pedregulho e Lince os seguiam de perto, enquanto Riva era o
último a correr pela trilha. Seus corações batiam com força, as pernas
moviam-se o mais rápido que conseguiam, mas mesmo o mais rápido às
vezes não escapa de um covarde por trás de uma arma.
— AAAAHH!
— KAIAAAA!
— Consegue se mexer?
Martim riu ao acertar sua presa e mirou mais uma vez, determinado
em disparar uma última flecha contra aquela que ele chamava de monstro.
Mas antes que tivesse a chance, Riva saltou em frente aos garotos, abrindo
os braços em uma onda de coragem. O caçador rangeu os dentes.
— Se afasta, Riva...
— ...Eu chorei por você. Pensei que tinha morrido. Eu estava sozinho
quando ela seu foi — Riva engoliu o choro. — Você não tem o direito de
aparecer de novo na minha vida para machucar mais pessoas que eu amo!
— Já chega.
— ...F-f-fantasma!
Capítulo Dezenove
Quando Tudo Se Torna (Im)Previsível
Nalu fungou.
— ...nada bem.
— É esse o lugar.
— Oi, esquisita.
Ela tossiu, contorcendo o peito, com uma força que ela nem tinha
mais.
— Você vai ficar bem — e levou seus dedos de encontro com os dela
em uma promessa. — Não vou soltar, lembra?
— AAAH!
— Onde estamos?
Pedregulho grunhiu.
— Que merda!
— Galera, acho que vocês vão querer dar uma olhada nisso.
Lince não se aproximou. Só pelo jeito que tropeçou nas palavras, era
óbvio que estava morto de pavor.
— Elora.
— É isso. Elora... ela ficou esperando esses anos todos para Thomas
voltar, mas...
— É você, Riva. Por isso meu pai ou o seu ou Bartel Van Dijk nunca
encontraram nada. Elora esperou esses anos todos por um descendente do
próprio Cavendish reencontrá-la.
O garoto da ilha olhou ao redor mais uma vez. Talvez não em sonho,
mas talvez a lembrança daquele lugar, sua curiosidade pela história, pelo
tesouro, sua sede por encontrar o butim do Mary Dear... talvez tudo aquilo
estivesse em seu sangue.
— Espera um momento.
Riva fez uma careta, intrigado. Era quase hilário pensar naquilo.
Uma equipe formada por dois bombeiros e uma médica desceu por
cordas até o fundo da câmara. Kaia foi a primeira a ser socorrida, apesar de
Nalu demorar para entregá-la. Lince subiu logo em seguida, percebendo que
a operação de resgate era muito maior do que haviam imaginado, como se
toda a ilha tivesse parado por conta deles. Seus pais estavam ali, abraçados
e preocupadíssimos quando avistaram o filho.
Como aquele monte de veículos e pessoas tinham chegado até ali era
um mistério, mas o Parque Estadual era cheio de atalhos secretos pela
floresta.
Nalu suspirou.
— Eu prometo.
Mas havia um dos garotos ali que não havia uma mãe ou uma família
para abraçar, apenas um pai que estava prestes a ir para trás das grades. Um
garoto que Camila reconheceria de longe mesmo que não o visse desde os
doze anos de idade. Sorriu, abrindo os braços em direção a Riva.
— Ouch.
— Você é um grande imbecil sabia? — ela choramingava.
Capítulo Vinte
Fazer Histórias Tristes Virarem Melodia
— Me frustra saber que ela vai passar esse tempo todo trancada
dentro de casa só com ele — Nalu resmungou no último dia de aula.
— Quem?
— Pode deixar!
Yoko chegou à ilha alguns dias depois. Seu cabelo estava mais
comprido do que nunca e ela tinha feito uma tatuagem no rosto. Uma
carinha feliz ao lado de um dos olhos. Camila quase a matou, mas a saudade
bateu mais forte. Era bom estar todo mundo junto outra vez. Passavam as
tardes frias e chuvosas fazendo bolinhos de chuva, assando pão de queijo ou
queimando brigadeiros de panela. Yoko convenceu o irmão a assistirem
toda a franquia de Jogos Mortais. Em troca, Nalu a fez assistir H2O –
Meninas Sereias. Foram férias caseiras, mas muito divertidas. Quando o
tempo melhorou um pouco, Nalu levou a irmã para conhecer o cinema
municipal e ele riu um monte com a careta que ela fez quando as pessoas
bateram palmas depois de uma sessão de Crepúsculo.
— AAAHHHHHH!
— AAAHHHHHH!
— Onde estamos?
— Obrigado.
As primeiras cores já pintavam o horizonte indicando a vinda de um
novo dia, quando os garotos voltaram pela trilha até chegarem à grande
pedra da cruz. Sentaram-se e esperaram o sol chegar. Riva deu a Nalu uma
de suas pulseiras coloridas, uma memória que ele tinha com a mãe desde a
infância.
— Tem certeza?
— Não é pra leiloar, seu imbecil. Você não entende? Se aquele era
mesmo o esqueleto de Thomas Cavendish, qual a probabilidade de ele ter
espetado o próprio crânio com uma espada daquele jeito e ainda ter escrito
uma carta?
Nalu mirou seus olhos em Riva. Tudo parecia tão óbvio de repente.
— Você é maluco.
Capítulo Vinte e Um
Livre Pra Poder Sorrir
— Oi, esquisita.
— Oi...
— Você não vai acreditar, mas eu encontrei uma sereia uma
vez aqui, exatamente nesse lugar — ele alertou, inclinando o corpo. — Eu
se fosse você ficava atenta.
— Pelo mesmo motivo que meu pai nunca foi atrás do tesouro
e que ele deu o mapa falso para o seu avô — ela olhou para o garoto,
estreitando os olhos claros por conta da claridade. — Logo que o encontrou
no naufrágio do Aurora Armada, foi a uma vidente, perguntar sobre o butim
do Mary Dear. Ela se assustou e gritou, dizendo que o mapa estava “cheio
de sangue”... o que quer que houvesse escondido, ele achou melhor manter
em segredo por medo do que poderia encontrar. Por isso, mandou a guarda
costeira atrás de nós — explicou, enchendo os pulmões de oxigênio. —
Enfim, depois de toda essa explicação, ele prometeu que entregaria tudo
para o museu e responderia pelos crimes — deu de ombros. — Acho que já
é um começo.
— Ah, não.
Riva foi o primeiro a jogar suas roupas para longe e cair com tudo
na água. Sem hesitar, o resto dos garotos fez o mesmo, revelando trajes de
banho engraçados. As garotas pularam juntas, atirando as camisetas para o
alto das árvores. A água refrescante da cachoeira os envolveu, trazendo uma
paz para aquele dia de verão no inverno. Era revigorante. Os garotos
nadaram, mergulharam e esquematizaram sustos nas garotas, quando Yoko,
que era a profissional em filmes de terror, foi quem deu o maior deles. Riva
e Pedregulho gritaram por quase um minuto inteiro depois daquilo. Pularam
das pedras e brincaram o dia todo em pura alegria e liberdade em um
mundo sem preocupações ou responsabilidades.
Eram férias afinal das contas. Tudo mudaria depois que as aulas
voltassem.
Lince sentiu uma pontada no peito e ligou sua câmera. Era como um
daqueles momentos que se deseja com força para que dure para sempre. E
assim, talvez, durasse mais do que um simples piscar de olhos.
Nalu ajudou Kiwi a subir perto de uma caverna fascinante que havia
nas margens do lago. O lugar perfeito para esconder alguns segredos por
algumas centenas de anos. O clima úmido e gelado que vinha das
profundezas era com certeza amedrontador. Mas que tipo de aventura seria
aquela se não houvesse um pinguinho de medo envolvido?
— Preparado?
Epílogo
O quê? Ajeitei a postura. Ela não teria como saber, teria? Olhei
pela janela. Já estava escuro e eu nem percebi a noite chegando.
Estreitei os olhos.
Meu coração parou por um instante. Quem era aquela mulher? Como
ela sabia meu nome? Como se pudesse ler meus pensamentos desde o
início, contou a história sobre meus pais.
— Por quê?
...onde eu estava?
— Ai, meu deus, você está bem? — ela me segurou pelos braços.
Seus olhos eram castanhos e gentis e minha memória começava a ficar
engraçada.
NOTAS DA AUTORA
Eu não lembro a primeira vez que vi o mar, mas tenho certeza de que
foi amor à primeira vista. Aos dezesseis anos de idade eu tinha certeza de
que seria oceanógrafa e moraria em Ilhabela. Em 2023 resolvi fazer uma
loucura e comprei uma passagem de avião por impulso no meio da
madrugada porque eu queria escrever um livro que se passasse lá. Foi aí que
comecei a pesquisar. Eu lembro da sensação que foi pisar meus pés na ilha
pela primeira vez. Enquanto escrevo essa página, quero que saibam que
chorei de saudades de Ilhabela. Eu chorei, entrei em prantos de saudades de
um lugar. Como isso é possível? Eu não sei, mas a sensação de estar perto
do mar, a paz que aquele lugar me trouxe é indescritível.
AGRADECIMENTOS
Obrigada a mim, por ter sido firme e não ter desistido de escrever
apesar de terem sido 15 dias intensos de muitas emoções, muitos surtos e
choros, obrigada à menina do Museu Náutico que me contou sobre os
descendentes de Thomas Cavendish, sobre o naufrágio do Príncipe de
Asturias e sobre um monte mais de coisas. Obrigada à Kaia por ter sido tão
receptiva com a gente no hostel, obrigada ao Riva por ter nos ajudado com
a questão dos passeios e por ter me apresentado esse nome maravilhoso que
deu origem ao melhor amigo de Nalu.
Obrigada ao alemão por ter nos levado até a Praia do Bonete mesmo
quando minha família inteira queria minha cabeça por eu ter metido todos
nós dentro de um barquinho no meio de um mar cabuloso. Você foi um
herói.