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KIWI

E Os Garotos Perdidos da Praia da Caveira

Ana Jeckel
Para o garoto da cidade.

De sua garota dos cabelos de maresia.

Somos todos estrelas.

Alguns são mais brilhantes que outros.

E alguns são estrelas cadentes. Surgem de repente no escuro, marcando uma


geração inteira ou uma pessoa que seja.

Mas não adianta, não importa o quanto desejemos, estrelas cadentes sempre
acabam caindo.

Noe foi uma estrela que caiu cedo demais.

PRÓLOGO
Eu Sei que Vai Chover

Now Playing: Senhor do Tempo

(Charlie Brown Jr, Imunidade Musical).

A ilha soava quase misteriosa em meio à neblina. Como se cada gota


de chuva fosse uma promessa sussurrada, tingindo o mundo de prata e
levando segredos que eu nunca descobriria rio abaixo.

Tempestades tropicais eram uma novidade para mim, nunca passei


mais de uma semana fora de São Paulo, capital, onde eu morava em um
pequeno estúdio com a companhia de três gatos que não voltavam para casa
há mais de dois meses. Onde eu vivia, comia, trabalhava e dormia. Não
costumava sair muito de casa. Tudo o que eu precisava estava ali, meus
cadernos e meu computador. Ser escritora parece mais fácil nos dias atuais,
você pesquisa algo no Google e lá aparecem mais de mil fotos por vez e
assim você conhece o outro lado do mundo na velocidade da luz.

Eu devia estar passando por algum colapso nervoso quando resolvi


me meter nessa situação. Peguei um carro, um ônibus e uma balsa para
chegar ao paraíso. O universo devia estar rindo tanto da minha cara naquele
momento…

Desamarrei o casaco corta-vento da cintura e joguei por cima da


cabeça. Nem sei porque fiz aquilo, eu já estava ensopada mesmo. Já foi à
praia com chuva? É péssimo, é nojento e não tem nada que me faça
acreditar que estava no paraíso. Tentei correr pela areia, mas meus tênis
começavam a afundar e a maré a subir. Avistei a ponte por onde cheguei.
Estava embarrada e escorregadia, assim como todo o resto da paisagem.
É nessas horas que você olha ao redor e pensa: que merda eu vim
fazer aqui?

Minhas opções eram tentar voltar pela ponte e possivelmente cair de


traseiro nas pedras da cascata abaixo, ou chorar. A segunda opção não
parecia muito prática, apesar de convidativa. Estreitei os olhos por baixo do
casaco e visualizei o que pareciam ser alguns caiaques amontoados em cima
de um pergolado. Aquilo parecia uma boa opção.

Que merda eu vim fazer aqui… o pior é que eu sabia bem a resposta.

Esbaforida, encolhi o corpo debaixo dos caiaques para me proteger


do vento cortante. Que frio estava. Levei minhas mãos à bolsa carteira que
percorria meu corpo em diagonal, apenas para encontrar todas as minhas
anotações e cadernos encharcados.

— MERDA! — xinguei, sentindo o papel derreter por entre meus


dedos. Droga, não fazia nem um dia que eu estava naquela droga de ilha e
eu já tinha perdido toda a droga da minha pesquisa.

Talvez fosse a raiva, a vontade de dar um chilique ou o desespero,


mas demorei para perceber que minha perna estava sangrando.

— O quê?

De início, pensei que fosse um corte, mas não me lembrava de ter me


cortado em lugar algum. Não sou tão desastrada assim. Nem sequer havia
doído, mas a coceira começava a surgir. Foi quando me dei conta. Talvez
aquela tenha sido minha primeira experiência com os famosos borrachudos,
e o miserável passou despercebido por mim.

Desolada, falida e agora oficialmente comida de inseto. Ótimo.


— Criança! — ouvi uma voz gritar.

Levantei a cabeça para o horizonte, mas não parecia haver mais


ninguém na praia. Ah, espera. Havia uma senhora de vestido na altura dos
joelhos abanando para mim perto das árvores. Ela parecia distante, mas
talvez fosse minha cabeça me pregando uma peça.

Abanei de volta. Ela fez sinal para que eu a seguisse. Não sou de,
sabe, confiar em estranhos. Morando em uma cidade que nem São Paulo,
isso é como a regra número um de sobrevivência. Mas situações drásticas
pedem por medidas drásticas.

Por entre tropeços, segui a senhora, correndo pela areia até chegar à
floresta, à grama e às palmeiras. Havia muitos insetos ali, apesar da chuva,
e eu nem queria olhar para ver qual era o estado das minhas pernas nuas. Eu
devia ter optado por calças, era a única coisa que percorria minha mente.
Aquele lugar devia ser o inferno em dias de sol. Ela continuou chamando,
parecendo cada vez mais perto, mas distante também. Eu podia ver melhor
seu rosto agora, olhos claros, cabelos grisalhos, pele pálida. Mas toda vez
que eu tentava alcançá-la, ela desaparecia de vista. Que ótimo seria brincar
de pique-esconde com um fantasma, não? Seria a cereja do bolo do meu
dia.

— Aqui dentro!

Girei a cabeça e olhei ao redor, tentando entender de onde vinha a


voz. Havia uma porta de madeira escondida atrás de um tronco de árvore
que levava para dentro da casa. Péssima rota de fuga caso isso fosse um
livro de terror. Que bom que esse não é o caso.

Encolhi os ombros e me esgueirei pela pequena passagem. Apesar de


algumas tábuas soltas e esburacadas no teto, era um bom abrigo para
esperar a tempestade passar. Torci o casaco e pendurei em uma cadeira que
parecia ter sido feita à mão. Na verdade, tudo dentro da cabana parecia ser
extremamente… manual. Todos os poucos móveis eram feitos de madeira e,
talvez a única coisa que fugisse do padrão era um sino de metal perto da
porta, decorado com algumas conchas do mar. Ervas de todos os tipos
preenchiam potes de vidros nas prateleiras perto do que parecia ser um
fogão do século retrasado.

— Você não é daqui, não é? — a voz gasta ecoou.

Desviei o olhar da porta para a senhora, que surgia da sombra com


uma bandeja de madeira e canecas de cerâmica que eu apostaria tudo que
tinham sido feitas à mão por ela mesma também. Vapor quente saía de
dentro e eu torci muito para que fosse café, mas para minha tristeza era chá.
Água quente com um sabor terrível, mas eu não comentei isso. Não sou tão
sem noção.

Beberiquei um gole e deixei a caneca nas mãos com o simples intuito


de me esquentar um pouco.

— Sou da capital — respondi.

A senhora deu uma gargalhada e fez menção para que eu sentasse.

— E o que uma criança da capital que nem você está fazendo na ilha
com um tempo terrível desses?

Criança, funguei. Vinte anos na cara.

— Eu sou escritora — expliquei. — Na verdade, essa é a primeira


vez que me aventuro a “sair em campo” — brinquei, mas não sei se ela
entendeu.

— Ah, é sua primeira vez na ilha, então. O que está achando?


Não sou uma boa mentirosa.

— Bem, eu não esperava acabar no meio de um ciclone.

A senhora gargalhou mais uma vez e eu entendi que a resposta estava


estampada na minha cara. Era uma risada gostosa de ouvir, escandalosa de
certa forma, aconchegante também, mas meio “bruxesca”, com um toque
anasalado na voz.

— Você está odiando, não está?

Fiz uma careta.

— Não estou odiando… eu… cresci na cidade grande, só isso. Não


sou uma garota praiana e as chuvas de São Paulo não costumam deixar meu
cabelo encrostado de areia e outras coisas não identificáveis. Aliás, vocês
têm sanguessugas voadoras por aqui? — indiquei minha perna. — Nem
senti essas coisas chegando perto de mim.

Dessa vez não houve risada e isso me deixou um pouco sem graça.

— Por que veio para a ilha?

A pergunta soou misteriosa, como algo invisível pairando no ar. Por


que eu vim para a ilha? Levei as mãos de volta à minha bolsa, onde todas
as minhas anotações não passavam de uma mistura nojenta de papel e cola
digna de um Art Attack. Não sei o que isso significa, mas é algo que meu
pai costumava dizer.

Suspirei e joguei o corpo para o encosto da cadeira.


— Meus pais se conheceram aqui. Foi onde eles cresceram e se
apaixonaram — senti um nó na garganta. — Eu tenho um prazo com a
minha editora e preciso entregar um livro novo em um mês, mas o bloqueio
criativo pegou pesado dessa vez.

Nenhuma resposta. Limpei a garganta.

— Achei que eu poderia vir dar uma olhada, tentar recriar a


juventude deles. Quem sabe não dá uma boa história para escrever.

Foi só então que percebi aquele sorriso abrindo lentamente nas


sombras. Me deu arrepios e por um momento pensei que teria que exorcizar
a velha na minha frente, mas como eu disse, isso é um livro de aventura.
Não trabalho com demônios.

Aproximou-se da porta e uma leve brisa adentrou o interior da


cabana, fazendo o sino tilintar. As conchinhas bateram umas nas outras e os
tubos de metal soaram como alguma espécie de feitiço da natureza.

— Eu tenho uma boa história para lhe contar — a senhora começou,


o olhar parecendo distante, de repente. — Sobre jovens garotos que
resolveram procurar um tesouro pirata.

Agucei os ouvidos. Aquilo soava interessante, ainda mais para um


dia como aquele, soturno e sombrio. A chuva permanecia forte do lado de
fora e não dava indícios de parar, além do mais, sempre há tempo para uma
boa história e eu não tinha para onde ir. Instintivamente, agarrei meu
caderninho das páginas enrugadas e grudentas, e uma caneta.

A senhora levantou uma das sobrancelhas.


— Você quer aventura? Essa é das boas — inspirou fundo, deixando
o cheiro de orvalho entrar nos pulmões. — Tudo começou em um dia como
este, com um ciclone e um forasteiro.

Capítulo Um

Rua de Concreto, Sangue Nobre, Água do Mar


Now Playing: Quebra-Mar

(Charlie Brown Jr. 100% Charlie Brown Jr – Abalando A Sua Fábrica)

“Tem pra mandar trazer, tem

Tem pra mandar buscar, vai!

Tem pra mostrar poder, tem… ”

— Mãe!

Camila Castelo arrancou os fones de ouvido da cabeça do filho com


uma só mão, sem nem mover a outra do volante.

— Você pode pelo menos fingir que está me ouvindo? — sua voz não
soava brava, pelo contrário. Fazia dias que Nalu não conversava com ela
sobre o que tinha acontecido. Na verdade, não abria a boca para dizer uma
palavra e agora havia virado de cara emburrada para a janela, observando o
ar condensar no vidro em frente às suas narinas. Baixou o boné por cima
dos olhos e cruzou os braços.

Ser mãe de adolescente nunca foi tão difícil assim. Camila suspirou.

— Sinto muito por você ter que passar por isso. Seu pai não é fácil de
lidar.
— Aí você escolhe deixar sua filha com aquele babaca em São Paulo
e fugir para uma ilha do outro lado do estado? Bem pensado, mãe.

Que teimoso, suspirou Camila.

Amelia Yoko Sakurai era a filha mais velha de Camila e Ren. Ao


contrário de Nalu, que era a cara da mãe, Yoko, como a chamavam, tinha os
cabelos tão pretos quanto os do pai e uma personalidade bem mais pacífica
que a do caçula apocalíptico.

— Sua irmã faz faculdade, sabia? Ela tem responsabilidades e vale


lembrar a você que foi uma escolha dela ficar lá.

— Pelo menos ela teve uma escolha — Nalu resmungou e repôs os


fones de ouvido por cima do boné.

Ele não conseguiu se despedir. Assim como não conseguiu explicar a


história completa para nenhum deles. Não tinha que dar satisfação para seus
pais sobre sua arte e muito menos se importava com o que Ren Sakurai
pensava. Fazia anos que o relacionamento de seus pais estava por um fio,
mas Nalu sabia que a gota d’água tinha sido sua culpa. Poderia passá-la
toda para a droga da despersonalização e a droga do diagnóstico que tinha
recebido anos atrás, mas, de qualquer forma, não podia culpar um
transtorno mental por ter ido parar na delegacia na semana anterior.

O oficial Ramires fechou a cela igual a um brutamontes, o barulho


das barras de metal ecoando por todo lugar. Ele queria o quê, acordar um
defunto por acaso? Se Nalu se concentrasse, ainda conseguiria ouvir, dias
depois.
Já era a terceira vez no mês.

— Já é a terceira vez neste mês.

É eu sei, você já falou isso, Nalu revirou os olhos. A próxima


coisa que sairia de sua boca, o garoto tinha certeza de que seria algo
parecido com “você não tem mais nada para fazer não, seu meliante?”

— Você não tem mais nada para fazer da sua vida, meliante? —
ele bufou, suspirando logo em seguida. Então abriu a porta de ferro vazado,
que ele nem sequer tinha tido o trabalho de trancar, e com a outra mão
puxou Nalu pela manga do casaco. — Vem, vá fazer sua ligação logo de
uma vez. Não quero ser eu a chamar seus pais de novo aqui.

Nalu não era um cara medroso. Para falar a verdade, ele estaria
muito melhor se estivesse sentindo medo. Pelo menos seria alguma coisa.
Ele era um garoto alto para a idade e nem mesmo Roberto Ramires, que
tinha o dobro do seu tamanho, o fazia estremecer. Na verdade, a única coisa
que se passava na sua cabeça era:

Que saco!

— Eu estava entediado — resmungou, jogando a cabeça para trás.

Ramires juntou as sobrancelhas em sua direção.

— Já pensou em arrumar um hobby diferente de vandalismo?

Nalu bufou.

— Não era vandalismo, era arte!


— Pichação é crime.

— Era grafite, seu ignorante!

— Se quer tanto passar a noite na cela, eu posso providenciar


para você — ele rosnou, apressando o passo e levando o garoto com ele.

Que saco…

Foi quando deu de cara com aquele telefone enorme em sua frente
que sentiu o estômago embrulhar. Que droga, a última coisa que precisava
naquele momento era ter que meter seus pais nisso. Como se as coisas em
casa já não estivessem péssimas o suficiente. Com uma pontada de preguiça
e seriamente considerando a possibilidade de passar a noite na delegacia
para não ter que dormir pressionando o travesseiro contra as orelhas para
abafar mais uma discussão, discou aquele número que sabia de cor até se
tivesse que digitá-lo de trás para frente.

Um bipe. Dois bipes. Levou três para que aquela voz adocicada,
porém desconfiada, atendesse do outro lado da linha.

— Alô?

O garoto suspirou, querendo pôr a cabeça dentro da privada para


desaparecer.

— Oi, Yoko…

Ele não precisou ver a cara da irmã para sentir a expressão dela
mudando drasticamente para “eu vou definitivamente matar esse imbecil”.

— Eu vou cometer uma atrocidade contra você.


— É, eu sei…

— Você foi parar em qual unidade dessa vez?

— Na do bairro mesmo — respondeu com a voz arrastada. —


Yoko, dessa vez eu juro. Eu não estava…

— Eu sei — ela interrompeu e Nalu pôde ouvir a irmã mais


velha puxando o ar e enchendo os pulmões para se acalmar. — Mas o papai
e a mamãe não estão nem aí para o que você estava fazendo ou não. Já é a
terceira vez em menos de um mês, Nalu.

— Me desculpe — foi a única coisa em que conseguiu pensar


em falar.

Amelia Yoko fungou o nariz do outro lado da linha. Ela era a


pessoa mais forte que ele conhecia e lhe apertou o coração quando a ouviu
segurando o choro. Não a ouvia chorar desde... bem, desde o que aconteceu
em 2008. Suas palavras seguintes saíram cansadas e foram elas que o
lembraram que eram quatro e meia da manhã.

— Vai ficar tudo bem, estamos indo.

A voz entrecortada dela o golpeou como um soco direto no


maxilar e aquele enjoo no estômago voltou. Nalu pôde ter certeza por um
segundo de que vomitaria ali mesmo ao telefone.

— Eu sei que não, mas beleza — respondi, baixinho.

Yoko suspirou e Nalu só quis mergulhar no colo dela e ficar lá


para sempre.
— Não importa o que aconteça, eu não vou soltar a sua mão, tá
legal? Isso é uma promessa.

Ele sabia que tinha estragado tudo e não podia culpar sua mãe pelo o
que estava fazendo. Naquela noite, enquanto seu pai só sabia gritar sobre
como seu filho estava vandalizando propriedade privada, Nalu não
conseguiu olhá-lo nos olhos, muito menos explicar a verdade.

— Eu não quero SABER o que você estava fazendo vadiando


pelas ruas sozinho de madrugada. Não quero saber com quem você estava,
na verdade, não quero mais ter que olhar para essa sua cara imprestável.
Você acha que eu pareço um imbecil? Acha que eu queria estar a essa hora
aqui gastando tempo e dinheiro para tirar você mais uma vez desse lugar?

Ren sempre agia daquele jeito. Nunca tinha visto a arte de Nalu como
ele via. Nada nunca era bom o suficiente. E enquanto seu pai gritava,
fazendo todas as paredes da delegacia estremecerem, sua mãe segurou em
seu ombro e, por entre um soluço, soltou apenas três palavras.

— Você se machucou?

Nalu sentiu um nó se formar na garganta.

— Só para você saber, eu só vim por causa dela — continuou


Ren, cerrando os dentes, o dedo indicador tão perto do nariz do filho que
Nalu ficaria vesgo se estivesse olhando para ele. Mas não estava. Não
queria ter que olhar para a cara do pai, assim como Ren não queria olhar
para a do filho. — Vim pela sua mãe e sua irmã, que não merecem se
importar tanto com o vagabundo que você se tornou, porque se dependesse
de mim, você apodrecia atrás das grades, você está me entendendo?

Eu quero desaparecer.
— Pai, para de gritar — Yoko tentou acalmá-lo. Eu nem a vi
chegando .

– Não! Ele tem que ouvir mesmo, passar na pele a vergonha que
ele trouxe para a família. Você sabe o que dizem por aí, não sabem? Que eu
tenho um filho bandido. Acha que eu tenho orgulho de ter um filho como
você?

Eu só quero desaparecer.

— HEIN? Olhe para mim e responda!

— JÁ CHEGA!

Nalu assustou-se com aquela voz estridente cortando a barreira do


som como uma súplica. Camila Castelo levantou-se, os olhos ardendo em
fogo.

— Você não vai nunca mais falar assim com o meu filho.

Os filhos da família Sakurai poderiam continuar ali, tentando


absorver alguma daquelas palavras que soavam tão distantes. Nalu não
estava ali de verdade. Estava em algum lugar do outro lado do mundo,
provavelmente. Sua cabeça não estava no bairro ou na cidade e ele queria
tanto que seu corpo acompanhasse sua cabeça viajante. Mas ele estava ali,
sentado na poltrona desconfortável da delegacia, assistindo os pais brigando
mais uma vez como se em câmera lenta ou algum tipo de sonho.

De repente, como um sussurro, seus dedos entrelaçaram-se.


Yoko apertou sua mão contra a do irmão.

— Não vou soltar, lembra?


E era por isso que agora ele estava há quatro horas em um carro com
sua mãe tentando animá-lo sobre como seria legal arrumar a casa nova.
Nova era a única coisa que aquela casa não era.

— Sua avó era tão acumuladora… você lembra de quando


passávamos o verão na ilha e você se escondia no sótão para brincar de caça
ao tesouro?

Que saco…

— Sei que começar de novo em outra cidade pode ser difícil, mas o
ano letivo pode ser tão divertido quanto o verão. Pode reencontrar seus
amigos.

Que situação… A única coisa que poderia animá-lo naquele


momento era Charlie Brown Jr. tocando o IPod. Ele tinha um ingresso para
assistir ao show da banda em cinco semanas na capital. Que agora estava a
quilômetros de distância.

Notificação: Snapchat de Yoko.

Era uma foto dos pés da irmã deitada na cama. As pernas estavam
cruzadas e ao redor das calças vermelhas havia vários livros e apostilas
acadêmicas. Mais ao fundo da foto, dava para ver o reflexo dela no espelho
da parede, toda descabelada com os cabelos presos em um coque alto e uma
camiseta do All Time Low. Bem no meio da foto, havia uma barra cinzenta
de texto.

“Você quer que eu tente vender para alguém?”


Nalu suspirou, embaçando o vidro do carro e desenhando uma
carinha triste na janela. Tirou uma foto em resposta, enquadrando um terço
do seu rosto, uma mecha de cabelo castanho, uma ponta da aba do boné e a
carinha triste. Digitou rapidamente na barra cinzenta:

“NÃO! Vou dar um jeito de escapar daqui a tempo”.

Era esse o plano, mas Camila ainda não fazia a menor ideia. Ele só
precisava de dinheiro para o ônibus e estaria em São Paulo para o dia do
show.

A paisagem da viagem pelo litoral era para ser deslumbrante, mas o


tempo chuvoso e a cerração simplesmente deixavam tudo ainda mais merda
do que era para ser. Depois de trinta minutos em uma fila, entraram com o
carro na balsa. Com a visibilidade baixa, mal dava para ver a ilha, que mais
parecia um borrão no meio do oceano, mas, mesmo assim, Nalu abriu a
porta do passageiro e saiu. Apoiou-se na borda da balsa, os olhos vidrados
no mar.

Não dava para acreditar que aquilo estava realmente acontecendo.

Camila abriu a porta do carro e foi ao seu encontro. Pôs a mão em


seu ombro da mesma forma que fizera naquela madrugada na delegacia.
Nalu sabia que ela falaria algo maternal como “filho, se quiser conversar eu
estou aqui”, “filho, vou tentar dar espaço para você, mas precisa voltar para
a terapia”.

Ele nunca esteve tão surpreso em estar errado.

— Charlie Brown Jr.? — ela perguntou, indicando os fones. — Posso


ouvir também?
Um brilho passageiro tomou conta dos olhos do garoto. Seu pai
odiava a banda, dizia que tudo o que Nalu fazia de ruim aos olhos dele era
por causa dessa péssima influência. O skate, o grafite… dizia que estrelas
do rock sempre morrem cedo porque são vagabundos e por isso Nalu
gostava tanto da banda. O vocalista retrucava seu pai com unhas e dentes
nessa teoria. Antes que pudesse ter qualquer reação, Camila roubou-lhe os
fones e pôs ao redor da cabeça. Estava tocando “Hoje Eu Acordei Feliz”,
por alguma ironia do destino.

— “Hoje eu acordei para matar o presidente, hoje tem festa, ela vai
tá, eu vou, vai ser perfeito…” — cantarolou.

Nalu estava boquiaberto. Tinha feito voto de silêncio em casa nos


últimos dias e não pensou que sua mãe o deixaria sem palavras de verdade
algum dia.

— Você gosta de Charlie Brown?

— Você fica tão bonitinho ingênuo — ela apertou-lhe as bochechas.


— Quem você acha que te apresentou a banda quando você era criança? Eu
era punk no início dos anos oitenta.

Nalu esboçou um sorriso. Tudo bem, aquilo era muito legal. Por um
momento, ele esqueceu que estava chovendo ou que o dia estava horrível ou
que estava em uma balsa indo morar no meio do nada.

— Você é muito desafinada. Devolve, é minha vez de escutar.

— “Hoje eu acordei feliiiiz, sonhei com ela a noite inteira eu sempre


quiiis… ” — E Camila saiu pela balsa, cantando mais estridente que uma
gaivota, saltitando por entre os carros.

— Ei, volta aqui, mulher! Os fones são de marca!


A viagem de balsa pareceu muito mais rápida do que vinte minutos.
Quando Nalu percebeu, estava ao lado de sua mãe no carro, dirigindo pelas
ruas estreitas para o sul da ilha. O tempo não queria parecer melhorar
quando chegaram à Praia das Pedras Miúdas, uma faixa de areia tão
pequena que na visão de Nalu não deveria nem ser chamada de praia.

Ele não estava muito contente em tirar as malas do carro, isso faria de
tudo aquilo real demais para ele.

Sua avó, Mara, possuía uma casa enorme em frente à Ilha dos
Guaiamus, que também pertencera a família dela em certo momento.

— Você nunca foi até a ilhazinha, não é? — perguntou Camila. Era


assim que eles chamavam aquela pequena ilha, dentro da grande ilha.

Nalu deu de ombros.

— A gente veraneava na casa principal, a vó nunca deixou a gente ir


até lá.

Camila Castelo abraçou a cintura do filho.

— Bem, então é hoje que você vai conhecer a casa onde eu cresci.

Como se já não bastasse ter que se mudar para uma ilha, Nalu teria
que viver em uma casa que a única maneira de chegar era de barco, de
caiaque ou nadando. Ótimo. as coisas não paravam de piorar.

Depois de uma travessia rápida, Camila ancorou o barco no pequeno


porto construído às margens da floresta. O barco não era deles, o que
significava que toda vez que Nalu quisesse sair daquele lugar teria que dar
outro jeito ou chamar o senhor que alugava caiaques na praia por sinal de
luz, como os maias faziam.

Retiraram as malas e puseram-se a caminhar. A Ilha dos Guaiamus


era tão pequena se você fosse caminhar ao redor dela, talvez desse menos
de cinco minutos. Só havia espaço para a casa deles, para um pedaço
considerável de Mata Atlântica e para um deque com uma piscina e um
canhão histórico ao lado.

— Convidativo.

Seguindo o caminho de pedras, Nalu deparou-se com o casarão. Era


ainda maior do que o que havia na praia à frente. Majestoso e sombrio de
certa forma. Pelo o que ele sabia, desde que seu avô milionário morreu, sua
avó só utilizava a casa da Praia das Pedras Miúdas e nunca mais havia ido
para a ilhazinha, deixando aquela casa à mercê do tempo para virar história.

Camila Castelo suspirou. Então apertou forte a mão de Nalu.

— Preparado?
Capítulo Dois

Logo Eu que Sempre Achei Legal Ser Tão Errado

Now Playing: Vícios e Virtudes

(Charlie Brown Jr. Acústico Ao Vivo)

Sua mãe tentava esconder o rosto com a franja, mas só pela


rouquidão em sua voz dava para perceber que estava emotiva. Ou era rinite.
Seus olhos lacrimejavam e seu nariz estava com a ponta pintada de
vermelho, quando começou a passar a mão pelos móveis.

— Temos dois meses para dar uma olhada em tudo que seus avós
deixaram aqui e esvaziar a casa — fungou. — A prefeitura comprou o
terreno e até junho isso tudo vai ser patrimônio público. Vou precisar muito
da sua ajuda nos próximos dias, está bem? — fungou de novo.

— Aham — respondeu Nalu, apesar de não ter ouvido uma palavra


sequer. Estava intrigado com a casa, com os barulhos que ela fazia e com
todas aquelas coisas deixadas para trás por tantos anos. Era quase
encantador de tão excêntrico.

— Pode se acomodar onde quiser, filho. Têm dois quartos no


andar de cima. Quando terminarmos de empacotar tudo, podemos levar a
mudança para o casarão na praia.

Mara Castelo sempre fora uma figura. Ela era cheia de segredos e
costumava contar histórias sobre lendas da ilha para Nalu e Yoko quando
eram pequenos. Contos sobre piratas e fantasmas. Nalu e seus amigos
ficaram obcecado boa parte da sua infância por essas histórias, mas quando
crescemos, vemos que elas estão muito mais próximas de nós do que
podemos imaginar. Piratas não passam de ladrões e fantasmas estão por
toda parte. Eles moram nas nossas cabeças.

Sua avó tinha falecido no fim do ano passado e, desde então, sua mãe
queria vir para a ilha, mas Ren Sakurai sempre arrumava empecilhos idiotas
e sem sentido para a viagem, como o preço da gasolina, conferências
internacionais ou queda de cabelo. Pensando bem, Nalu talvez tivesse feito
um favor para sua mãe.

— O dono do condomínio me contratou — falou, finalmente


em voz alta.

Camila, que estava já com a cabeça entre caixas e caixas de papelão,


aguçou os ouvidos.

— Desculpe, querido, o que você disse?

O garoto deu de ombros.

— Me contratou para que eu fizesse um grafite na lateral do prédio.


Ele viu minha arte no Tumblr e me chamou para o serviço. Ia me pagar
depois que eu terminasse. Era em homenagem aos dez anos do prédio ao
algo assim... tinha que estar pronto sexta-feira de manhã. O único horário
que encontrei foi de madrugada. Aparentemente algum vizinho que não
tinha concordado na reunião de condomínio me entregou para a polícia.

Sua voz saiu linear e sem vida, mas pensou que a mãe precisava
saber. O brilho de uma lágrima surgiu nos olhos de Camila, então ela
esboçou um sorriso.

— Obrigada por me contar.

— Tanto faz — respondeu e largou o skate no chão.


Se ele pensava que o casarão era entulhado de coisas, era porque
ainda não conhecia a ilhazinha. Pilhas e pilhas de livros se espalhavam por
toda parte, exemplares enormes de capa dura e folhas amareladas que
deviam ter quase um século de vida. Decorações estranhas que ele nem
sabia dizer o que eram, móveis e móveis repetidos, duas mesas de jantar,
três sofás, tapetes persas enrolados em cada canto e sinceramente aquilo
parecia uma cena de crime. Poderia muito bem ter três ou quatro cadáveres
enrolados ali. Caixas de papelão guardavam roupas, câmeras antigas,
prataria, brinquedos macabros e porta-retratos. A casa era bem arejada, com
muitas janelas e uma claraboia no teto. A luz do dia era suficiente para
iluminar todo o ambiente.

Nalu deixou as malas e a mochila em cima de uma poltrona e subiu


as escadas vazadas que eram um perigo à humanidade e faziam um barulho
diabolicamente alto. Ou talvez fosse porque ele estava saltando de um
degrau para outro. Ele só podia imaginar o tanto de poeira que tinha caído
no andar inferior.

Com certeza era menos do que a quantidade que tinha lá em cima.

O andar superior era bem menor e, logo de cara, havia um espaço


comunitário com um mezanino que dava para a sala lá embaixo. Então tinha
a porta dos quartos e a do banheiro no fim do corredor. Não havia janelas lá
em cima e as teias de aranha ajudavam no ar fantasmagórico. Nalu teve
quase certeza em certo momento que viu um morcego no teto.

Abriu a primeira porta, então o andar iluminou-se de repente. Um


som estridente ensurdeceu o garoto por um instante, fazendo-o segurar as
orelhas.

— AAHHHH!
Aquelas asas pretas e medonhas bateram no ar ao encontrarem com a
luz e voaram rasante perto da cabeça do garoto, procurando por uma janela
para fugir.

— Merda. Mãe, você não disse que teria morcegos!

— Qual seria a graça da vida se ela não fosse uma caixinha de


surpresas? — Camila gritou em resposta do andar inferior.

Hilário.

A nuvem de poeira que subiu quando Nalu adentrou o cômodo só


podia ser brincadeira. Parecia um véu transparente cheio de ácaros
voadores. Lutando contra a tosse alérgica, o garoto analisou o quarto.
Parecia grande demais para pensar que alguém dormiria sozinho ali dentro.
Havia uma cama de casal jogada no canto mais escuro e uma marca
comprida no carpete, o que indicava que ela tinha sido arrastada até ali e
que devia ser extremamente pesada. Além da cama, havia só mais um
armário de madeira rústica no outro extremo do quarto. Uma das portas
tinha caído ou sido arrancada e estava encostada na parede. O que era de
fato interessante eram os muitos livros e caixas que estavam guardados ali
acumulando teias de aranha.

Nalu adorava essas coisas quando era criança. Achava várias caixas e
até baús no sótão do casarão com diários, fotos antigas e objetos brilhantes
que pareciam tesouros perdidos no tempo. Não parecia mais tão atrativo
assim aos dezessete anos, mas ele estava entediado.

Estendeu os braços para acima da cabeça e agarrou a primeira caixa


que conseguiu, jogando-a no chão. Quanta tralha... Ele nunca entendeu
porque a avó era uma acumuladora de coisas aleatórias. Cruzou as pernas
compridas e sentou-se no chão, tirando o boné da cabeça e deixando os
cabelos emaranhados à mostra.
Começou a vasculhar. Havia uma boneca de porcelana medonha lá
dentro e Nalu nunca tinha visto coisa mais horrenda do que aquilo. Havia
fotos de família de sua mãe, a filha única do casal Castelo, de quando eles
iam pescar ou acampar; havia cartões postais de vários cantos do mundo,
colares de pérola e correntes grossas e alguns anéis também. Mas no geral
eram apenas anotações em papel perdidas, diários e livros de bolso em
outro idioma. Ele chutava que fosse algo como holandês. Muitas palavras
estavam manchadas, as páginas gastas pelo tempo. Um dos diários estava
completamente enrugado como se tivesse sido mergulhado em uma
banheira e, quando Nalu abriu, não entendeu nada do que estava escrito. Era
uma caligrafia de criança em outro idioma, isso sem contar os rabiscos.

Deviam ser memórias da infância de sua mãe. Bobagem.

Foi quando pegou aquela boneca tenebrosa em mãos, que percebeu


que havia jornais dobrados no fundo da caixa. Edições antigas demais.
Agarrou um em mãos.

5 de março, 1916.

O naufragio do Aurora Armada. Uma grande catastrophe


maritima.

Caramba. Nalu perdeu o fôlego. Antigas pra caramba.

Quase um século depois da “catastrophe”, Nalu procurou o celular no


bolso das calças cargo e foi correndo para o navegador. Digitou correndo as
palavras “Aurora Armada” no buscador. Para sua falta de surpresa, não
carregou. Ótimo, que merda de sinal. Voltou seus olhos para os artigos da
época. Havia vários.
Quinta-feira, 9 de Março, 1916

O Paquete Aurora Armada na altura da Ponta do Boi, bate num


recife e sossobra em cinco minutos.

Uma sobrevivente do Aurora Armada relata-nos como se salvou.

Chega no Rio: mais uma senhora escapa do naufrágio do


“Aurora Armada”.

— Eu lembro disso...

Passos pesados do lado de fora indicavam que sua mãe tinha


lembrado onde ficava a escada e adentrou o quarto mais rápido que um
furacão.

— Nano, você viu por aí uma... ai, meu deus, não acredito que
encontrou isso!

Nalu estava curioso demais para dar atenção ao fato de sua mãe ter
usado seu apelido de criança, que era a mistura de Nalu com “mano”, que
Yoko lhe havia dado aos dois anos de idade quando ainda não sabia falar
direito. Camila agachou-se ao seu lado e pôs-se a mexer nos diários.

— Você e os garotos eram obcecados por esse mistério. Sabia que


foi o segundo maior naufrágio do mundo, depois do Titanic?

— Não éramos obcecados — retrucou o garoto.


Camila riu.

— Eu lembro que você ficava contando moedas para comprar


aquelas revistas de banca cheias de teorias da conspiração. Era bonitinho.

— Era bobagem de criança desocupada. Crianças brincam de


Scooby-Doo e velhos colecionam tralha. É a lei da vida. Você mesma já está
toda entusiasmada com esse monte de lixo.

Camila levantou-se em um impulso, batendo o jornal no traseiro do


filho.

— Você acabou de me chamar de velha?

— Velha e rabugenta.

Desaforado, pensou Camila.

Eita, pensou Nalu, engolindo em seco. E os dois começaram um


jogo incansável de pique-pega pelo quarto, caindo, por fim, gargalhando na
cama. Fazia tempos que ele não se divertia daquele jeito. Então Nalu deu
mais uma espiada no conteúdo intrigante daquela caixa.

— Por que a vovó ia guardar essas coisas? Ela ao menos era nascida
em 1916?

Camila fechou a expressão, pegando a pequena Boneca Medonha em


mãos. Seus cabelos de linha eram ralos e sua cabeça de porcelana estava
cheia de buraquinhos, o que era bizarro porque o resto do corpo era feito de
pano e era todo molenga. Fazia a cabeça pesada e medonha pender de um
lado para o outro.
— Ela não te contava a história quando você era um menino? Eu
ouvia o tempo todo antes de sair de casa. Minha mãe era maluca pelo
mistério do Aurora Armada.

— Dizem que ele bateu em um recife na Ponta do Boi, mas ele está
naufragado a quilômetros de distância da ilha — completou Nalu,
desviando o olhar. — Eu e o Riva tínhamos certeza de que foi uma
conspiração da tripulação para roubar os tesouros dos cofres dos
passageiros.

Um único suspiro saído da boca de sua mãe foi necessário para que
Nalu percebesse que ela sabia muito mais do que ele sobre aquela história.
Ou era isso, ou...

— Você podia tentar contatar o Riva e os outros garotos. Juntar o


grupo de novo. Ia ser muito legal.

Nalu fechou a expressão e pegou a caixa em mãos.

— Nós crescemos, mãe. Não nos falamos mais — disse, a voz dura
como pedra. Recolocou a caixa e todo seu conteúdo de onde antes havia
tirado, transformando-a de volta em apenas uma memória no canto do
quarto. — Além do mais, histórias de fantasma são para crianças.

Como alguns marinheiros costumam dizer: o que afundou não


era para ser descoberto.

O lado Sul da ilha não tinha a mesma estrutura que o lado Norte. Mal
havia calçada ou ruas que não fossem de terra, o que dificultava um bocado
andar de skate.
Nalu pegou o primeiro ônibus que avistou indo em direção ao centro
comercial e sentou perto da porta. Era fevereiro de 2013 e suas aulas
haviam começado há uma semana. Sua casa ficava longe da escola, o que
significava que tinha que acordar bem mais cedo do que gostaria e dar a
sorte de o barqueiro estar no porto antes das sete da manhã. Estava por um
fio de se mudar antes do prazo para o casarão. Ele era um garoto de cidade
grande. Ter que atravessar o mar para ir à escola todos os dias não era nem
um pouco estimulante.

Descendo no ponto de ônibus e com música tocando nos fones de


ouvido, era hora de se divertir um pouco. Subiu no skate e remou rua
abaixo, sentindo o vento tropical batendo em seu rosto. Ele adorava
velocidade. Não era a mesma adrenalina de andar por entre os carros de São
Paulo, mas lançar um Ollie para saltar as muretas da ilha era até que
maneiro. Olhou para o relógio de pulso. Já estava atrasado, mas tinha uma
coisa que ele precisava fazer no caminho para a escola.

Três esquinas antes, deslizou o pé direito no chão, freando o skate e


parando em frente a um alto muro de tijolos. Baixou a mochila das costas e
abriu-a a procura de suas tintas em spray. Roxo, rosa e azul, suas cores
favoritas. Sorte dele que tinha conseguido trazê-las escondido para a
mudança, mesmo que depois de toda a confusão. Sua mãe não era contra
sua arte, mas Nalu tinha que admitir que era muito mais eletrizante fazer
grafite na surdina. Pergunte para o Banksy. Provavelmente ele concordaria.

Ele tinha dois caps , como chamava a ponteira do spray. Um “skinny”


e um “fat”. Dava para fazer algum desenho legal. Seu sonho era trabalhar
com stencil , seria bem mais rápido e prático e provavelmente teria mais
tempo de fugir caso fosse pego no flagra. Pergunte para o Banksy outra vez,
se conseguir achá-lo. Mas, por enquanto, sua marca registrada era uma onda
de tsunami, em homenagem ao significado de seu nome, Nalu. Seu pai não
gostava muito, mas Camila tinha escolhido com sabedoria. Talvez soubesse
que o moleque seria indomável.
Prestes a terminar e cinco minutos já atrasado para sua primeira aula,
guardou o material de volta na mochila e remou o skate em direção à
escola. Mas não tardou a frear uma segunda vez, o coração parando de
repente.

Tirou os fones de ouvido.

Virando à esquina, o muro continuava e ali estava. Um grafite em


verde, magenta e amarelo. Uma explosão de tinta, com cores passando em
cima das outras, uma intervenção artística que Nalu tinha certeza que faria
qualquer um parar para apreciar por um momento. Pelo menos era isso que
ele queria passar com sua arte. Deixar a cidade mais colorida, lembrar as
pessoas, por pelo menos um instante, de que estão vivendo no presente.
Contemplarem a vida.

A palavra “Mako” estampava a superfície dos tijolos de uma maneira


tão rebelde, mas graciosa também, como um singelo sussurro gritado. Nalu
perdeu o fôlego e puxou um sorriso. Pelo visto a ilha não era tão careta
assim.

— Mako — leu mais uma vez. Que intrigante era aquela assinatura.
— Quem é você…

“É foda ser tachado de doido


Vagabundo, mas, como tudo deve ser”

Nalu só conseguia ouvir alguns murmúrios por baixo dos fones,


alguma professora possivelmente chamada Rosa queria obrigar todos os
alunos do último ano a fazer algum tipo de trabalho em grupo e o garoto
não podia estar menos interessado. Algo sobre gravar um vídeo pela ilha ou
escrever poesia. Aquela não era a sala de biologia? Parecia coisa de
segunda série.

Rabiscava alguns esboços em seu caderno, desenhos de grafites que


ele tinha em mente para fazer da próxima vez. Talvez eu consiga chamar a
atenção dele… ponderava, assistindo aquela palavra tão enigmática nas
folhas pautadas em sua frente. “Mako”.

— Nalu Sakurai?

A voz da senhora Rosa retumbou, fazendo todos os outros barulhos


cessarem imediatamente. Nalu retirou os fones de ouvido em um reflexo
rápido ao levar um susto. Fechou o caderno rapidamente ao ver a mulher de
cabelos presos por grampos, apesar de muito curtos, aproximar-se dele de
olhos vidrados como uma entidade, sem fazer barulho algum.

— Espero que o senhor já tenha um grupo para o trabalho, senão


ficará sem metade da nota na minha matéria no fim do trimestre.

— Não devíamos estar estudando para o vestibular? — retrucou.

Professora Rosa juntou as sobrancelhas, ouvindo o silêncio


ensurdecedor que a turma fazia ao redor dos dois.

— Não sei como eram as coisas na capital, Nalu, mas aqui prezamos
pela liberdade de expressão artística dos alunos. O que acha que vai ser
mais importante depois na sua vida? Pensar de maneira independente ou
saber o processo de reprodução da samambaia?

Nalu deixou o queixo cair. A velhota tem um ponto.

Professora Rosa abriu um leve sorriso.


— Sugiro que arrume um grupo, senhor Sakurai. Antes que acabe
sozinho. — e deu meia volta, lentamente.

Capítulo Três

Foi Quando Te Encontrei, Ouvindo Um Som e Olhando O Mar


Now Playing: Como Tudo Deve Ser

(Charlie Brown Jr. 100% Charlie Brown Jr – Abalando a Sua Fábrica)

A melhor parte de estudar pela manhã é que você tem o resto da tarde
livre. Não que Nalu tivesse algo de importante para fazer em uma ilha
tropical, mas tinha ficado intrigado com o trabalho passado pela manhã. E a
melhor parte era que ele não precisaria de livros didáticos idiotas, só de uma
câmera mais ou menos boa e um grupo de gente mais ou menos suportável.

— Vocês viram o pai da Kiwi na diretoria essa manhã?

— O senhor Angelos?

No caminho para os armários, algumas garotas conversavam um


pouco alto demais. Não parecia ser o tipo de conversa que alguém gostaria
de gritar sobre, mas para elas parecia mais interessante que todos ficassem
sabendo da pequena fofoca delas.

— Ai, meu deus, eu vi! O que será que ela fez agora? — perguntou
uma.

— Tentei ouvir uma parte da conversa, mas ela não estava junto na
sala — a outra respondeu.

Nalu não as conhecia de vista e imaginou que fossem da outra turma.


Tirou o skate do armário e o segurou debaixo da axila para pegar mais
alguns materiais. Ele odiava estudar, não conseguia acompanhar os métodos
comuns de ensino e matéria alguma entrava direito na sua cabeça. Talvez
fosse culpa do TDAH, mas Camila o mataria se ele reprovasse nas
primeiras provas da escola nova.

Ouch! Alguém trombou com seu ombro, fazendo-o derrubar o skate


e alguns cadernos no chão. O baque foi tão grande que seu boné foi parar a
três metros de distância.

— Ei, qual foi, mano? — levantou, revoltado, esperando encontrar


algum idiota brutamontes do time de futebol o encarando, mas
aparentemente, sua agressora era apenas uma garota apressada demais que
esqueceu de pedir desculpas.

O quê? Nalu estreitou os olhos levemente confuso. Tinha os cabelos


cacheados com aspecto de maresia presos em um rabo de cavalo, de um
marrom avermelhado alguns tons mais escuros que sua pele. Estava usando
uma regata cor de salmão, uma saia longa e…

Pés descalços??? O garoto teve que piscar algumas vezes para se


convencer de que estava enxergando corretamente, enquanto o grupo de
meninas fofoqueiras ria perto da porta do banheiro masculino.

— Que patética.

— Fiquei sabendo que ela fugiu de casa, por isso o pai dela veio aqui.

O… quê? Nalu aguçou os ouvidos.

— Mas onde ela está morando agora?

Uma delas deu de ombros.


— Ninguém sabe. Talvez com os lagartos no mato — e elas
gargalharam de um jeito maldoso. — Nossa, se eu morasse em uma mansão
daquelas, briga nenhuma com meu pai iria me fazer sair de lá.

Nalu não sabia o porquê exatamente, mas o gosto azedo que lhe subiu
à garganta ao ouvir aquela conversa o deixou enjoado.

O sol de verão brilhava intensamente e Nalu podia sentir o calor no


topo da cabeça, boné de aba voltada para trás bem preso à cabeça para não
voar. Deslizava suavemente, sentindo a sola do All Star de cano alto bater
no concreto e cortar o ar, inúmeras e inúmeras vezes, enquanto as rodas do
skate o levavam para ver a ilha. A brisa acariciava seu rosto e era disso que
ele mais gostava. A sensação de liberdade e o jeito que seu cabelo ficava
bagunçado depois de um dia vadiando por aí.

Uma ciclovia acompanhava boa parte da cidade e do centro


comercial, contornando toda a beira-mar, o que era uma delícia. Nalu
movia-se com destreza por entre as palmeiras altas enquanto observava
aquelas faixas de areia branca surgindo e desaparecendo. Diferente do mar
que estava sempre lá, lembrando-o que não tinha para onde correr.

Ele tinha quatro semanas para arrumar uma grana para a passagem de
ônibus de volta para São Paulo. Quatro semanas para o show. O tempo
estava passando mais rápido do que tinha planejado.

O muro de um restaurante acabou com sua paisagem praiana por um


instante. E, mesmo naquela velocidade, ele pôde ver. Aquelas mesmas
palavras de cores agora diferentes, estampando os tijolos.

“Mako”, em azul, laranja e roxo.


Abriu um sorriso. Talvez alguém pudesse o ajudar a conseguir uma
grana fácil para ir ao show e o pessoal da ilha parecia curtir um bom grafite.

Naquele dia, Nalu pegou o ônibus de volta para casa, mas não estava
com grandes pressas para voltar às caixas empoeiradas de jornais e bonecas
macabras de sua avó. Então deixou que “acidentalmente” perdesse sua
parada e desembarcasse duas mais longe em direção ao sul.

Ele foi o único a descer. A parada era de frente para um conjunto de


três pequenas casas, que se amontoavam umas em cima das outras de frente
para um deque de madeira com uma passarela que levava ao mar. Havia
uma placa de trânsito que indicava que aquela era a “Praia do Portinho” e o
nome fazia jus ao lugar. A entrada da praia era tomada por enormes pedras
que seguravam varas de pescar apontando para o céu. Canoas de madeira
decoravam um terço da extensão de areia, não tão branca quanto à das
outras praias, mas, mesmo assim, era um lugar muito bonito de se apreciar e
Nalu resolveu dar uma explorada.

Pequenas ondas quebravam na beira, indo de encontro com as pedras.


Era o lugar perfeito para relaxar e pescar, se essa era a sua praia. Ou
observar pássaros também, sempre existia essa opção, e foi essa visão que
capturou a atenção de Nalu, completamente desavisado.

Um pouco mais para frente, um garoto um pouco mais baixo e


desajeitado segurava uma câmera digital em frente a um dos olhos, o outro
espremido, criando dobras de pele na lateral do rosto. Parecia concentrado,
observando algo por trás de suas lentes, algo que voava no céu. Nalu jogou
a cabeça para visualizar o que parecia tão interessante para aquele moleque
afinal.

Mas não viu nada. Que garoto esquisito… espera .


Curioso, aproximou-se um pouco mais. Cabelos castanhos, pele
vermelha, corpo magricela e roupas que com certeza tinham sido
compradas pela mãe dele sem o seu consentimento.

— Lince?

O garoto baixou a cabeça, confuso ao ouvir aquela voz tão familiar,


um pouco mais grave e rouca por conta da puberdade, mas mesmo assim…

— Nalu?

Lince abriu um sorriso tímido, mas visivelmente feliz em sua direção.


Ele usava bermudas ridículas e isso fez com que Nalu cuspisse uma risada
ao reencontrar o velho amigo.

— Desde quando você voltou para a ilha?

— Cheguei na semana passada — aproximou-se, chutando areia. —


O que você está fazendo?

— Observando pássaros migratórios.

Nalu fez uma careta, cerrando os olhos por conta da claridade. Aquilo
era tão a cara dele...

— Sabe que não tem nenhum passarinho voando para você gravar,
não sabe?

Lince deu de ombros.


— Eles vão aparecer. E quando aparecerem, meu dedo estará pronto
para apertar o botão. Se eu esperasse alguma ave aparecer para tirar a
câmera da mochila, não ia conseguir imagem alguma e seria perda de
tempo, você concorda?

— Não — Nalu franziu o nariz, achando graça.

— Bom, eu prefiro não arriscar...

Nalu jogou a mochila dentro de uma canoa e sentou-se em uma das


pedras. Lince era um garoto esguio que se parecia mais com um suricato do
que um lince de fato, mas recebera o apelido quando eram crianças e um
dos garotos pronunciou seu nome errado. A mãe de Vinícius o chamava de
“Vince” toda vez que eles iam o visitar, então o apelido pegou.

Ele continuava o mesmo de quando tinha doze anos.

— E aí — Nalu apontou para a câmera. — Isso tudo é para a aula da


senhora Rosa?

— Sim. Você já tem um grupo?

— Não. E você?

Lince suspirou, encolhendo os ombros para a frente, envergonhado.

— Ainda não. Você quer montar uma dupla?

Era um pouco tentadora a ideia. Um brilho passageiro tomou conta


dos olhos de Nalu pela possibilidade de passar um tempo com Lince de
novo, como nos velhos tempos, mas logo a vontade passou. Fungou o nariz.
— Não sei ainda se vou fazer o trabalho. Na verdade, estou
procurando um emprego. Sabe de alguém que queira estilizar as paredes de
casa?

O garoto da bermuda engraçada suspirou.

— Você continua igual.

Nalu abriu a boca em protesto.

— Você que continua igual! Essa é a mesma bermuda que ganhou de


aniversário em 2008.

— Por que eu iria comprar roupas novas se as antigas ainda cabem?

E os dois se puseram a rir. Lince sempre fora o menorzinho do grupo


e a puberdade não tinha sido muito eficiente durante sua adolescência,
aparentemente. Então era isso. Por isso se parecia tanto com o Lince de
doze anos. Os dois usavam as mesmas malditas roupas.

Lince fechou a câmera e guardou-a na mochila, caminhando até o


amigo para sentar-se ao seu lado. Ele usava meias amarelas de cano alto e
chinelo de dedo por cima, sem comentar a gola em V. Quem não o
conhecesse, talvez pensasse que é algum turista estrangeiro.

— Tô juntando uma grana para voltar pra São Paulo — explicou


Nalu, jogando uma pedrinha no mar. — Tenho um ingresso para o show da
minha banda favorita no mês que vem e eu não vou perder. Na verdade, se
eu pudesse, fugia de uma vez daqui e não olhava para trás.

O garoto ao seu lado baixou a cabeça, com um singelo “ah” saindo de


sua boca. Era um pouco frustrante reencontrar um dos seus melhores
amigos depois de cinco anos e ouvir que ele queria ir embora de novo.
Principalmente quando Lince não era a pessoa mais sociável do mundo. Sua
vida sempre fora os estudos e sempre fingiu que era o suficiente para ele,
mas sentia falta das amizades que tinha aos doze anos. Dos garotos perdidos
e das suas aventuras na casa da árvore.

Talvez Nalu não continuasse igual então. Bem, desde o verão de 2008
ele estava diferente e Lince não podia culpá-lo. Algumas coisas acontecem
e não tem como apagá-las da história com um simples sorriso.

Mas isso não significava que ele não poderia tentar.

— Qual é a banda? — perguntou, curioso.

Nalu esboçou um sorriso, procurando os fones dentro da mochila.

— Charlie Brown Jr. Você conhece?

Lince não conhecia.

— Claro. Eles são bons — respondeu.

— São mesmo. Você tem bom gosto — Nalu deu-lhe uma


cotovelada, fazendo Lince encolher-se mais do que já estava. — Como vão
os preparativos para o vestibular? Sei que você sempre quis passar na
federal do Rio.

Ele lembra, Lince sentiu um conforto no peito.

— Tudo bem — respondeu animado, mas sem desenrolar a conversa.


Nalu concordou com a cabeça. Tinha algo na comunicação silenciosa
dos dois que sempre fora mágica, desde a infância. Eles não precisavam de
muito para se entender. Lince era o garoto de poucas palavras e Nalu
sempre fora a borboleta social do grupo. Claro, antes de 2008.

— Minha avó faleceu no início do ano e aí viemos dar uma olhada


nas coisas dela — explicou.

Lince sentiu a garganta apertar e engoliu em seco.

— Sinto muito — respondeu. Ele nunca sabia o que falar em


situações de luto. Principalmente para Nalu que já havia passado por tantos
funerais.

O amigo deu de ombros e continuou.

— Encontrei um monte daqueles artigos que costumávamos ler


quando éramos crianças. Alguns diferentes, é claro. Estamos ficando na
casa da ilhazinha e tem muita bizarrice por lá. Vários diários e jornais sobre
o naufrágio do Aurora Armada — parou ao perceber que tinha se
entusiasmado um pouco demais. — A casa na árvore ainda existe?

Foi a vez dos olhos de Lince brilharem.

— Claro que sim! A gente podia… — as palavras morreram em sua


boca tão rápido quanto se formaram. — Esquece.

— O que foi?

O garoto dos olhos castanhos murmurou:


— Achei que seria legal se os Garotos Perdidos se juntassem de
novo. Por uma tarde só.

Nalu deixou o sorriso murchar ao ouvir aquele nome. Eles tinham se


intitulado como Garotos Perdidos e a referência era óbvia quando você
imaginava um bando de pirralhos sedentos por aventuras e tesouros piratas.
O garoto dos olhos pretos coçou a nuca. Não queria dar falsas esperanças a
ninguém, mas nunca havia visto Lince falar tanto de uma só vez.

— O Pedro anda meio distante, sabe… — Lince mordeu as


bochechas. Ele sempre fazia isso. — Não é fácil atravessar daqui até o
Norte todos os dias e ele não tem um celular. Você ainda fala com o Riva?

Riva… Fazia anos que Nalu não pensava naquele nome e, de repente,
lá estava ele em todos os lugares. Por que todo mundo ao seu redor queria
que ele voltasse a falar com seu melhor amigo? Eles haviam crescido,
seguido caminhos diferentes. Machucado um ao outro e, por isso, talvez,
fosse muito mais fácil manter distância.

Ou talvez Nalu fosse um grande de um covarde.

Levantou, apoiando-se nos joelhos.

— Papo legal, Lince. A gente se vê na escola?

— Ah… claro…

Que manézão que eu sou , pensou Nalu. Às vezes ele bancava o idiota
e só percebia tarde demais. Tirou o boné do topo da cabeça e enfiou por
cima dos cabelos de Lince, deixando-o um pouco mais maneiro.

— Te ensino a andar de skate qualquer dia desses.


— A fazer manobras também?

Nalu achou engraçado só de pensar em Lince, desengonçado daquele


jeito, tentando lançar um Ollie com o skate no ar.

— Pode crer.

Um fato curioso sobre a ilha, é que não importa o quanto você olhe.
Você só vai enxergar os detalhes se chegar perto. Se for destemido o
bastante para ver o que ninguém mais vê.

Era fim de tarde e, mesmo depois de se apresentar para vários donos


de estabelecimento em busca de trabalho e até mesmo ganhar um almoço
cortesia, Nalu ainda não queria voltar para casa. A ilhazinha ficava a duas
praias de distância em sentindo norte, mas tinha uma coisa que ele
precisava ver um pouco mais ao sul.

Depois de muito caminhar, encontrou o muro perfeito. Era comprido


e alto, perfeito para explorar o espaço e deixar sua marca grande o
suficiente para chamar a atenção de Mako. Não tinha conseguido emprego
ainda nem tido sorte na área artística, mas se mostrasse o que sabia fazer, as
pessoas mudariam de ideia.

Jogou skate e mochila no chão, prestes a agarrar suas latas de spray ,


quando percebeu algo diferente. Havia uma trilha estreita que desviava da
única estrada daquela parte da cidade. Movido pela curiosidade e pela
adrenalina, repôs a mochila nas costas e adentrou a mata, abrindo espaço
por entre os galhos. Nalu sabia que existiam vários pontos da ilha que eram
de difícil acesso e até restrito muitas das vezes e ele se perguntava o porquê.
Mas foi quando viu a placa presa em um tronco de árvore que sentiu um
calafrio:
“Praia da Feiticeira”.

Sim, ele já tinha ouvido falar daquele lugar. Existiam lendas, ele e
Riva adoravam ler sobre o assunto. Diziam que uma feiticeira perversa teria
escondido um tesouro na Cachoeira da Toca e matado todos aqueles que
sabiam do seu segredo. Não sabia se era por causa de superstições idiotas
como aquela, mas a praia se tornara um ponto escondido ao longo dos anos.
Passara todos os verões de sua infância na ilha, mas os Garotos Perdidos
nunca haviam se aventurado na Praia da Feiticeira.

Histórias de fantasma são para criança, repetiu para si mesmo.

Poucos minutos de trilha depois, começou a ouvir o barulho do mar.


Não. Espera, não era o mar. Era água corrente. Uma… cascata talvez?
Havia uma passagem por entre as rochas. Olhou ao redor e percebeu que
havia uma pequena ponte em frente aos seus olhos que levava à praia e,
então mais uma que passava por cima de um pequeno riacho.

Que esquisito, pensou, sem controlar seus pés. O céu estava tomando
tons de rosa flamejante como uma paisagem de fogo, ao passo que o sol se
punha em mar aberto, criando um horizonte dourado em um enorme
espelho d’água.

Atravessou a primeira ponte. Um vento gelado soprou vindo de


algum lugar.

Atravessou a segunda. Por que sentia aquele formigamento constante


no corpo? Como se algo misterioso estivesse prestes a acontecer.

A praia não era muito diferente das outras, um pouco mais selvagem
talvez. Não havia casas ao redor, a não ser as ruínas do que já fora uma em
algum momento no tempo. A extensão de areia era grande e o mar parecia
calmo. O que era mais intrigante estava do outro lado, uma formação
rochosa que fechava a praia em um formato de meia-lua, pedras que de
longe, assemelhavam-se com presas de algum monstro marinho.

Nalu não era um garoto de praia, então permaneceu de tênis nos pés.
Sua mãe, se estivesse junto, provavelmente teria retirado até as meias e
caído dentro do mar. E, obviamente, o teria levado junto.

Aproximou-se da outra ponta da praia, observado o mar pacífico


demais, quieto demais. A mata silenciosa parecia o observar de volta, as
altas palmeiras agora soavam como uma enorme cerca que o prendia lá
dentro. Ou mantinha o que quer que existisse ali, do lado de fora. Sentiu um
calafrio e, por um momento, pensou em recuar. Já estava ficando tarde.

Espera.

Estreitou os olhos. Havia alguém de pé nas rochas ou ele estava


alucinando? Chegou um pouco mais perto. Parecia uma garota.

— EI, VOCÊ ESTÁ BEM? CONSEGUE DESCER?

A figura misteriosa virou-se rapidamente em sua direção e, então


Nalu teve certeza. Estremeceu. Sim, havia alguém ali com ele. Mas não
tardou para que, quem quer que fosse, se assustasse com o chamado, e
corresse para o outro lado das rochas, desaparecendo de vista.

O quê?

Nalu correu até a formação rochosa, cuidando onde pisava, e


começou a subir. Era muito escorregadia e, então, ele entendeu porque
assemelhavam-se a presas. As pedras eram pontudas, afiadas, distribuídas
em diagonal como se tivessem sido cortadas pelo vento. Ele nunca tinha
visto nada parecido, mas continuou a subir. Viu o vulto novamente. Ele
tinha certeza de que não estava sozinho.
— VOCÊ SE MACHUCOU? PRECISA DE AJUDA? — continuava
a gritar, mas quando deu a volta no rochedo, não encontrou ninguém.

Não, aquilo não poderia estar certo. Não havia nenhum lugar que a
figura misteriosa pudesse ter ido a não ser voltar por onde veio. Estava
ficando maluco?

— Mas… — sentiu a respiração falhar, sentindo-se assustado e um


completo idiota. Talvez já estivesse tarde demais mesmo. O dia tinha sido
cansativo e ele ainda tinha um longo caminho a percorrer.

Sentiu um respingo, mas não era chuva. Não deu tempo que desse
meia volta, pois antes que Nalu percebesse, estava cercado de água. Como...
A maré tinha subido rápido demais e não havia por onde voltar. O mar,
revolto, de repente, nem parecia mais a calmaria misteriosa de minutos
atrás. As ondas batiam nas pedras, chamando-o para se juntar a elas, como
seres das profundezas cantam para os humanos. O pânico tomou conta de
seu peito, o coração acelerado tentando pensar em alguma saída. Tentou
descer, calmamente pelas rochas, mas sua mochila foi a primeira vítima.

— MERDA!

A corrente de retorno estava forte e uma das alças de sua mochila


tinha ficado presa nas rochas. Ela ia e vinha, ia cada vez mais longe e vinha
cada vez menos. Droga, droga, droga... seu celular estava lá dentro, seus
materiais de grafite, seus cadernos de desenho... Ajoelhou-se, soltando o
skate por um instante. O terreno não era dos mais agradáveis e Nalu tinha
certeza de que teria que comprar uns curativos depois da sua pequena
aventura. Abaixou o corpo e deitou em cima das pedras, sentindo aquela
lixa querer arrancar sua pele. Esticou o braço. A mochila começava a
afundar, já era difícil de se ver, mas ainda estava ali. Ainda podia salvar
suas coisas.
Só mais um pouco... esticou-se. Só mais um...

— AAAHHH!

Uma onda bateu de encontro com seu rosto, fazendo Nalu engolir
água e encharcando todas as suas roupas. Nunca entendemos o quanto mar
é forte, até levarmos uma bela surra dele. Ouviu o som de algo
escorregando ao seu lado.

— NÃO!!!!

Seu skate caiu, batendo entre duas rochas e foi engolido pelas ondas.
Não deu tempo para sentir nada além de raiva, nem um segundo para pensar
em um plano B. Nalu tentou levantar, as pernas bambas, os joelhos
tremendo. Por onde sair, por onde...

Mas a natureza tinha outros planos e Nalu não conseguiu escapar, até
ver-se cercado pelas águas revoltas. Uma onda puxou-o para dentro do mar
como um espírito maligno puxa o pé de uma criança à noite. Não tinha
como lutar contra algo do tamanho do oceano. Sentiu-o dentro de seus
pulmões e a água misturava-se, dando-lhe socos no rosto, no estômago, no
pescoço, sem deixar que voltasse para a superfície. Abriu os olhos. Ele
precisava encontrar uma saída, senão... nem queria ver o rosto de sua mãe
com o que ela veria no noticiário naquela noite.

Sua mãe. Ele precisava sair dali. Por ela. Não poderia fazê-la passar
por aquilo de novo. Sem mais funerais.

Sentiu o pé encontrar uma das rochas e deu impulso para longe. Se


conseguisse se distanciar da formação rochosa em forma de garras de
monstro marinho talvez tivesse uma chance, mas as garras não pareciam
querer dizer adeus.
Abriu a boca com o que viu.

Um vulto. Rápido como uma serpente. Movendo-se ao seu redor. A


visibilidade estava péssima, mas Nalu podia jurar que...

...que merda é essa? arregalou os olhos.

Só podia estar maluco. Por entre as ondas, escondendo-se atrás das


pedras submersas, ele podia jurar que tinha vislumbrado longos cabelos
misturando-se com o mar, olhos verdes como duas lanternas o encarando.
Mas não foi isso que o assustou. Levou seus olhos rapidamente para baixo.
Aquilo não era um humano. Era tudo menos algo que ele conhecia. Podia
haver uma garota em sua frente, mas abaixo dela havia um peixe gigante a
engolindo, suas escamas cintilavam mesmo debaixo d’água.

Parecia um monstro.

Desesperado e sem ar, debateu os braços e pernas para voltar para o


topo das pedras. Ele precisava sair dali e voltar para a superfície já parecia
com uma grande vitória. Esticou os braços e prendeu os dedos na divisória
das rochas. Isso, ia conseguir. A sorte estava do seu lado agora. Ele ia...

BANG! A boa notícia é que tinha encontrado seu skate de novo. A


má notícia... bem...

...tudo escureceu.
Capítulo Quatro

Ela É Tão Diferente e Eu Igual a Todo Mundo

Now Playing: Vícios e Virtudes

(Charlie Brown Jr. Acústico Ao Vivo)

As estrelas ainda não estavam visíveis no céu quando Nalu acordou.


O céu noturno encarava-o de cima, mas a chuva era impiedosa. Demorou
para que conseguisse abrir os olhos.

— Mas o que… aconteceu… — levantou-se desnorteado, ensopado e


grudento de água do mar. O vento gélido não ajudava também.

Seus dentes batiam uns nos outros, tremendo para tentar se aquecer,
suas roupas cheias de areia, como se alguém o tivesse arrastado até ali.
Espera, paralisou por um instante e olhou ao redor. Sua mochila e seu skate
estavam distribuídos próximo ao seu corpo e qual era a chance de a
natureza ter feito tudo isso sozinha?

Seu crânio latejava e foi quando lembrou que bateu a cabeça. As


probabilidades de ter sobrevivido ao acontecido sozinho por simples
intervenção divina ou algum tipo maldito de milagre eram difíceis de
acreditar. Seu skate estava rachado ao meio. Droga, talvez o milagre não
tivesse sido tão bom assim. Arrastou-se para perto dela e abriu o zíper.
Estava cheia de água e suas latas de spray boiavam lá dentro como barcos
de brinquedo. Seus cadernos já não eram mais os mesmos, mas…

Estava tudo ali.


Não… sentiu uma dor de cabeça ao lembrar da imagem bizarra em
sua frente. Aqueles olhos estranhos… alguém me salvou.

Confuso e sozinho. A Praia da Feiticeira era ainda ais misteriosa do


que ele pensara. Talvez tivesse sonhado, talvez estivesse enlouquecendo de
vez. A chuva, que caía implacável do céu, o trazia de volta para a realidade,
pelo menos um pouco.

Com o coração ainda disparado, levantou-se e pegou suas coisas,


com a sensação de estar levando dez halteres dentro da mochila ensopada.
Suas calças estavam extremamente pesadas e foi só então que percebeu que
estava sem um de seus tênis, com apenas uma meia furada no dedão do pé
esquerdo.

— Que ótimo…

O caminho de volta não foi fácil, mas pelo menos não era difícil de se
localizar. Havia apenas uma rua que cortava a ilha inteira e correr por uma
calçada infinita era o menor de seus problemas no momento. A chuva não
parecia querer cessar a nenhum momento, pingando em seus cílios
dificultando a visão naquela noite nebulosa. Ele sabia para onde ir e quando
avistou a loja de conveniências, suspirou aliviado. Estava aberta com as
luzes ligadas e uma Camila Castelo trabalhava no caixa.

Abriu a porta, soando a sineta.

— Bem-vindo à Alta Brisa, em que posso… ai meu deus, o que


houve com seu sapato?

Sim. Seu filho estava encharcado da cabeça aos pés em sua frente,
embarrado e esfolado e a primeira coisa que ela percebeu foi a meia com
um furo no dedão. Nalu balançou a cabeça, parecendo um vira-lata se
secando depois de um banho a contragosto.
— Pisei em uma poça.

Camila franziu a testa e cruzou os braços. Ele conhecia bem aquela


expressão corporal. Ela era vingativa e não engolia desaforo.

— Vá trocar de roupa no depósito para não molhar a mercadoria e no


caminho de volta, vê se inventa uma desculpa menos furada que sua meia.

— Ué, o que eu posso fazer se os guaiamus roubaram meu tênis?


Estamos em 2013, acha mesmo que eles ainda não sabem desamarrar
cadarços sorrateiramente?

Sua mãe estava claramente segurando uma risada quando Nalu


passou pelo caixa. Certo que ela estava imaginando os caranguejos azuis da
ilha conspirando contra seu filho e seu par de sapatos da Converse. Camila
pegou a primeira camiseta amarela e chamativa que encontrou e jogou em
sua direção.

— Não vou te comprar um novo.

— Não dá pra andar de skate sem tênis, mãe.

Camila baixou os olhos para o skate quebrado e deu de ombros.

— Então é melhor aprender a andar de caiaque.

Engraçadinha.

Camila Castelo era cruel. De todas as camisetas que poderia ter


escolhido, pegou a mais ridícula de todas e Nalu tinha certeza que era seu
jeito de “dar uma lição ao seu filho cabeça-dura”. Tirando o fato de que
Nalu odiava amarelo, agora ele parecia um turista, com uma impressão
malfeita de um sol, repito, UM SOL, bebendo água de coco.

— Combina com sua bermuda — ela cuspiu uma risada.

Nalu não queria nem lembrar da atrocidade que estava vestindo do


quadril para baixo. Nem do fato de ela ser azul bebê com vários flamingos
desenhados.

A sineta soou mais uma vez e uma garota alta e bronzeada adentrou a
loja. Devia ser um pouco mais velha, dezenove anos talvez, e tinha porte de
surfista.

— Bem-vinda à Alta Brisa — cantarolou Camila, indicando Nalu. —


Meu filhinho vai te atender em um instante.

As bochechas de Nalu queimaram de vergonha e uma pequena


olhadela para suas roupas fez com que a garota bonita fizesse uma careta.
Ela caminhou lentamente até o caixa, pegou um chiclete e pagou com
dinheiro vivo. Sem dizer uma única palavra até se voltar novamente para o
garoto, parado ao lado da saída como um boneco de papelão que indicava
promoções.

— Bela bermuda.

— An… valeu.

E saiu loja afora, abrindo um guarda-chuva transparente. Nalu fechou


a expressão quase instantaneamente.

— Você me paga.
Camila Castelo deu uma gargalhada.

— Na verdade, você que paga. Dezenove e noventa pela camiseta e


quarenta pela bermuda — e apontou para o mostruário da sessão infantil,
onde havia uma bermuda exatamente igual à que ele estava vestindo. Cruel.
Muito cruel.

Já eram oito e meia da noite e o noticiário estava passando na


televisão, pendurada perto do teto. Era um modelo antigo e a imagem não
era das melhores, mas talvez fosse pelo fato de que o apresentador do tempo
estivesse falando do ciclone tropical que estava passando pela ilha naquela
noite.

Tá explicado, pensou Nalu. Só uma bizarrice daquelas para o mar ter


se revoltado tão rápido de uma hora para a outra. Por um breve momento,
soltou o ar preso nos pulmões, aliviado por não ser a imagem do corpo dele
aparecendo naquela tela.

Depois de convencer sua mãe de que a pagaria com trabalho ao invés


de dinheiro (que por sinal ele NÃO tinha), Nalu pôs-se a arrumar as revistas
e almanaques por ordem alfabética de editora. Revistas de fofoca, Recreio,
sudokus... De repente, um título em específico chamou sua atenção.

Em letras pretas garrafais, uma delas estampava logo na capa a


seguinte frase:

SEREIAS AVISTADAS NA COSTA RICA.

MITO DESVENDADO?
Sentiu um arrepio e a imagem daquela figura misteriosa voltou a
atormentar sua memória. Aqueles cabelos flutuantes, aquele peixe
enorme… será que…

…será?

Não... ele devia estar mesmo perdendo a cabeça, sereias não existem
.

Então, por que, a garota que ele viu no mar aquele dia estava sentada
bem em sua frente na sala de aula?

Kiwi. Sentada discretamente na segunda carteira da direita, próxima à


porta de saída da sala de aula. Ela sempre se sentava ali, sem cadernos, sem
livros, sem estojo. Sempre de cabelos presos, aqueles cabelos castanhos e
longos caindo sobre seus ombros, as pernas escondidas por uma longa saia
tribal e um colar de conchas no pescoço. Nunca falava com ninguém, mas
Nalu já tinha ouvido sua voz. A professora Rosa fazia questão de integrar a
turma e fazer todo mundo ler sobre a diferença de gimnospermas e
angiospermas ou a função da mitocôndria.

Passou a se sentar atrás dela depois daquele dia. Nalu estreitava os


olhos, desconfiado, como se a qualquer minuto, aqueles pés sem sapatos
pudessem virar uma cauda. Será que se derrubasse água nela sem querer,
surgiam escamas nas suas costas?

Estúpido. Ele tinha assistido muito “H2O - Meninas Sereias”, na pré-


adolescência. Claro que não funciona assim. Será que se...

— Você tem uma caneta?


Demorou alguns segundos para que Nalu percebesse que havia uma
garota conversando com ele, então, simplesmente ficou ali, paralisado de
boca aberta igual a um idiota. Kiwi estreitou os olhos verdes de longos
cílios pretos para ele.

— Você tem ou não?

Olhos verdes... um flash tomou conta de sua memória. Podia estar


mesmo obcecado, mas por que tudo fazia tanto sentido? Tudo, tudo levava a
ela, que não dava um sequer sinal para ele. Os mesmos cabelos, os mesmos
olhos.

E agora ele entraria no jogo.

Mergulhou as mãos dentro do estojo à procura de algo.

— Deixa eu ver... moluscos, lagostas... ahá — e levantou algo no ar.


— Caneta com tinta invisível de sereia.

Estendeu para ela. Kiwi franziu as sobrancelhas.

— Ah, é que se você escrever com ela e sair tinta, é porque


possivelmente você é uma sereia — complementou Nalu, o maior cara de
pau. Então balançou a cabeça. — Isso não foi uma cantada.

Mas Kiwi não poderia estar menos interessada.

— Você me empresta uma folha de papel?

O garoto arrancou de um caderno qualquer e passou para frente. Kiwi


rabiscou alguma coisa e suspirou, voltando-se para trás novamente.
— Devia comprar canetas novas. Essa aqui está sem tinta.

Deixou o papel, levemente amassado e com marcas invisíveis e


frustradas, com a caneta por cima. E lá foi ela cutucar o colega ao lado.

— Oi, você tem uma caneta para me emprestar?

Nalu passara os últimos dois dias trancado dentro do quarto com um


péssimo sinal de internet pesquisando tudo o que podia sobre o assunto. Seu
histórico do Google era de um maníaco. “Sereias”, digitava.

“Sereia ou sirena é uma figura da mitologia, presente em lendas que


serviram para personificar aspectos do mar ou os perigos que ele representa.
Quase todos os povos que dependiam do mar para se alimentar ou
sobreviver, tinham alguma representação feminina que enfeitiça os homens
até se afogarem”.

“Sereias no Brasil” digitava.

“A sereia Iara é uma famosa figura do folclore brasileiro. Contudo,


na verdade ela é uma adaptação da mitologia europeia com elementos
indígenas”.

“Mitologia e lendas de Ilhabela”, por fim digitou.

Sentia a respiração trêmula, os dedos agitados, como se, a qualquer


momento, pudesse fazer uma descoberta assustadora. Não podia ser real, ele
não queria que fosse. Mas... então qual outra explicação daria senão aquela
que havia acontecido? Alguém o tinha salvado. Fato. Uma garota.
Possivelmente com uma cauda de peixe.

Uma garota muito, muito parecia com Kiwi.

Sua mãe o internaria na mesma hora. Certo que pensaria que o filho
estava usando alucinógenos, drogas pesadas e adeus show do Charlie
Brown Jr.

Nalu coçou a cabeça. Muitos dos links que apareceram em frente aos
seus olhos ele reconhecia da época que lia as revistas locais. A lenda da
feiticeira, do bando de piratas de Thomas Cavendish e o butim do Mary
Dear, o naufrágio misterioso do Aurora Armada... o que não faltava em
Ilhabela eram histórias sensacionalistas, sem falar nos fantasmas das
cavernas e nas pedras que soavam como sons de sinos. Mas uma em
específico chamou sua atenção:

“Relatos de mulheres misteriosas nas cachoeiras da ilha: foram


avistadas duas moças que penteavam os cabelos com pentes de ouro e
guardariam misteriosos tesouros no fundo do rio. Qualquer um que as
avistar, será fadado a guardar o segredo para sempre”.

Alternava seus dias entre ficar até mais tarde na biblioteca da escola
para ver se encontrava alguma coisa sobre o assunto, e, bem... seguir Kiwi,
a garota dos pés descalços, de volta para casa. Já não bastava as outras
alunas do colégio comentarem o tempo todo sobre ela, Kiwi era mesmo
suspeita.

Por que ela não usava sapatos?

Já que não tinha mais um skate, a seguia de uma distância favorável.


Tinha ouvido alguns caras comentarem que seu pai, um tal de Phillip
Angelos, morava em uma mansão gigantesca em frente a Praia de Barreiros,
mas logo que a garota dos cabelos longos chegava na beira-mar, ela virava
sentido Sul, para o outro extremo da ilha.

Por que ela nunca voltava para casa?

Nalu resolveu retirar todas as caixas de sua avó para fora do armário
e espalhar tudo pelo chão do quarto. Mara Castelo, a desbravadora de
lendas urbanas e folclóricas seria a sua solução. Tinha que ser. Não havia
nada que aquela mulher não soubesse. A maioria dos diários eram confusos
e ele não conseguia entender direito, bem diferente dos que lia no casarão
quando era criança. Eram mais antigos também e por alguma razão parecia
que sua avó estava aprendendo a falar português, porque certas palavras, ele
tinha certeza de que não existiam. Mas o assunto mais recorrente era o
naufrágio do Aurora Armada e o tesouro do capitão Thomas Cavendish.

“Procurado pelo pesquisador holandês Bartel Van Dijk durante mais


de trinta e cinco anos, o butim do Mary Dear nunca foi encontrado”.

“Nativos pensam ter visto mergulhador misterioso na área de


naufrágio do Aurora Armada antes das pesquisas da marinha iniciarem.
Locais o chamam de ‘O Gringo’. Seria ele o ladrão das relíquias do navio?”

Mergulhador misterioso... Nalu bufou. De alguma forma tudo parecia


interligado, mas confuso demais para juntar as peças. Tudo levava a
tesouros, piratas, naufrágios e sereias. Não podia ser uma mera
coincidência.

Camila encontrou o filho debruçado sobre dezenas e dezenas de


papéis, com as pernas para o ar. Encostou-se na porta.

— Ah, se você estudasse tanto assim para as provas também...


— Mãe, você sabia que a vó guardava coisas suas também? —
levantou animado, pondo um lápis atrás da orelha e estendendo o pequeno
diário que encontrara no primeiro dia. Camila assustou-se com a mudança
súbita de humor. — Você desenhava feio desse jeito?

Mas Camila não rebateu. Pelo contrário, ao mirar os olhos nas


páginas enrugadas em sua frente, sentiu um calafrio, um mal-estar. Engoliu
em seco e voltou-se para o filho.

— Nano, esse diário não é meu.

Nalu juntou as sobrancelhas sem entender. Como não poderia ser


dela? Claramente, aquele negócio tinha mais de quarenta anos de idade,
estaria se desintegrando se não estivesse guardado por tanto tempo.

— O que, como... você sabe de quem é? Reconhece a caligrafia?

Camila suspirou, largando o cesto de roupas no chão. Fazia muito


tempo que ela não via todas aquelas coisas e, talvez, já fosse hora de
algumas histórias virem à tona.

— Esse diário era da sua bisavó — disse, agarrando o pequeno


caderno em mãos e folheando para uma página inicial. — Aqui, 3 de março
de 1916.

Então a ficha caiu.

— Um dia antes do naufrágio do Aurora Armada... quer dizer que...

— Sua avó é filha da menina que sobreviveu ao naufrágio.


De repente, todas as anotações, símbolos e desenhos ao seu redor
pareceram ganhar vida, ganhar uma história própria, algo que estava há
muito tempo enterrado longe da luz querendo despertar. Sua mãe virou mais
algumas páginas.

— Vê só? Você não entende porque está em holandês, mas sua bisavó
descreve tudo o que passou naquela noite, como foi resgatada pelas pessoas
da ilha e criada por uma família daqui. Depois disso, ela ficou obcecada nas
lendas locais, dizia o tempo todo que ouviu alguém da tripulação conspirar
naquela noite. Ela tinha certeza de que todo o desastre foi uma armação
completa.

Conspiração. Eu sabia . Riva também. Talvez sua avó Mara tivesse


sido essencial na época para lhes passar as dicas certas na hora errada, mas
tinha funcionado. Ela tinha passado o legado de sua mãe adiante e mal eles
sabiam que estava tudo ali, esperando para ser encontrado.

— E mais — continuou Camila. — quando sua bisavó morreu, minha


mãe mergulhou fundo na pesquisa. Tinha toda a certeza do mundo de que o
naufrágio do navio foi apenas uma distração para o verdadeiro roubo
acontecer... o roubo do butim do Mary Dear. O famoso tesouro de Thomas
Cavendish.

Então estava sim tudo interligado. E Mara Castelo sabia.

Nalu sentiu um estalo na mente ao repassar todas as informações.


Procurou desesperadamente pelo diário de sua bisavó por entre os recortes
de jornal.

— Você disse que estava em holandês, certo? É muita coincidência...


— pôs-se a pensar, a cabeça prestes a explodir ao procurar uma reportagem
que não tinha visto há muito tempo. Ou teria sido no Google.... argh. —
Holandês! Um pesquisador holandês. Um homem passou quarenta anos
procurando o tesouro de Thomas Cavendish aqui na ilha. Ele conhecia a
vovó?

Camila Castelo levantou-se, um sorriso terno brotando em seus


lábios. Apontou para uma foto antiga.

— Esse seria o seu avô. Bartel Van Dijk.

Meu avô... Nalu caiu para trás, deixando a gravidade fazer seu
trabalho. Sua cabeça esvaziou-se por completo durante um mero segundo,
para tentar organizar as informações. Ele não tinha conhecido seu avô.
Quando era pequeno estava sempre fora, em alguma expedição e não
morreu muito depois disso.

— Ele era filho de um antigo amigo da família. Os Van Dijk ficaram


devastados quando souberam do naufrágio e Bartel fugiu para o Brasil
durante a guerra, para procurar a única conhecida que tinha aqui. E, bem,
acabou se apaixonando pela filha dela, Mara Castelo. — Camila deu de
ombros. — O resto você já conhece.

Mas Nalu já não estava mais ouvindo.

— Está me dizendo que meu avô tem todas as anotações, todos os


estudos e todos os cálculos necessários para encontrar o butim do Mary
Dear? O tesouro do maldito Thomas Cavendish?

Talvez ele não tenha percebido, mas estava saltando de entusiasmo.


Camila deixou que o peso do corpo caísse lentamente em direção ao marco
da porta.

— Gosto de te ver assim... sorridente.

Nalu mostrou a língua.


— Esquisitona.

— Mané.

Os dois abriram um sorriso maroto e a mãe da família Castelo voltou


para suas tarefas diárias.

— Vê se não se deslumbra demais. Se não vai acabar encontrando


algum tesouro por aí.

E saiu quarto afora, deixando um Nalu extasiado no carpete.

É isso, sentiu a adrenalina percorrer o corpo. É a grana que eu


preciso.

Jogou-se por cima dos jornais mais uma vez. Tinha uma única
informação faltando no quebra-cabeça, algo que viraria o jogo ao avesso e,
quando encontrou, sentiu a energia formigando em seus dedos. Ali estava.

“Famoso pesquisador holandês, Bartel Van Dijk, conta com a


ajuda do grande mergulhador da marinha, Phillip Angelos”.

Bingo.

Phillip Angelos, o pai de Kiwi, ele sabia que conhecia o nome de


algum lugar. As Garotas Fofoqueiras Guardiãs do Banheiro Masculino nem
imaginavam o quanto tinham sido úteis no fim do dia. As coisas estavam
quase fáceis demais, mas seus avós tinham dado um empurrãozinho. O
butim do Mary Dear, o grande tesouro de Thomas Cavendish, enterrado ali
mesmo em Ilhabela, nunca antes encontrado, parecia a um passo de
distância.

Agora, só faltava montar uma equipe. E Nalu sabia exatamente quem


procurar para o trabalho.

São Paulo , aqui vou eu.

Capítulo Cinco

Ela Achou Meu Cabelo Engraçado

Now Playing: Proibida pra mim (Grazon)

(Charlie Brown Jr., Transpiração Continua Prolongada)


“Eu me flagrei pensando em você.

Em tudo que eu queria te dizer”

Março chegou como um sopro de esperança. Era isso, o show era em


menos de três semanas e Nalu tinha todas as cartas na manga. Ou melhor,
todos os diários de Bartel Van Dijk.

Lince tinha combinado de se encontrar com ele no Portinho depois da


escola, mas ele tinha o péssimo hábito de não ter um celular e ser
incomunicável à distância. Não que fizesse alguma diferença para Nalu, o
sinal da ilha era tenebroso.

Ainda não tinha se acostumado a andar a pé ou a não usar seu boné.


Era como se parte da sua personalidade tivesse sido arrancada dele pelo
mar. Pois bem, era mais ou menos o que tinha acontecido.

— Você quer de volta? Eu não me importo — Lince tentava devolver


a ele seu boné todos os dias, mas Nalu empurrava de volta para sua cabeça
grande de vestibulando.

— Cala a boca, eu dei pra você.

Lince morava em uma das praias mais famosas por sua canoagem e
seus fabricantes de barco. Seu pai mesmo era um carpinteiro especialista em
canoas e isso significava que ele tinha material suficiente para emprestar
um pouco para dois garotos sem skates.

Depois da morte súbita do seu amigo de quatro rodas, Nalu tinha


prometido que ensinaria Lince a montar seu próprio skate. Ele conseguira
salvar o rolamento e os amortecedores, mas o truck já era. Teria que
substituir. Mas o mais importante na hora de montar um skate era construir
o shape . Nalu já estava acostumado, de dois em dois anos tinha que fazer
um novo e Lince ficava engraçado demais tentando usar a furadeira.

— Você vai mesmo pular a parte mais legal do processo? — Nalu


perguntou, tirando da mochila duas latas de spray e jogando uma na direção
do amigo.

Lince estendeu as mãos no ar como um filhotinho de suricato


desengonçado e deixou que a lata passasse diretamente por entre seus
pulsos, caindo no dedo de seu pé.

— AAII! Não tenho certeza de que essa é a parte legal.

Nalu deu uma gargalhada.

— Vem, temos uma longa tarde pela frente.

Deu play em Charlie Brown Jr. e assim a tarde se estendeu. Com dois
moleques fazendo uma bagunça na praia e, de vez em quando, uma
dancinha ridícula como se estivessem dentro de algum clipe musical.
Respingos de azul pintavam a areia e Lince parecia exausto, mas feliz. Nalu
deu-lhe um cascudo por cima do boné.

— Agora vou ter um parceiro para andar por aí.

Lince arregalou os olhos.

— Não espera que eu saia andando, não é?

— Relaxa, é mais simples do que parece.

— Você tem capacete?


Nalu deu uma risada e terminou o desenho de seu shape. Sua marca
registrada: a onda de tsunami. E então desenhou um pequeno suricato com
as patinhas estendidas para o alto na ponta do shape de Lince.

— Pronto, ficou a sua cara.

Como o dia passou rápido ao lado dele. Nalu sentia falta desses
momentos, de alguma forma. Ele tinha se divertido, mas sabia que não
guardaria o momento nas suas memórias. A despersonalização fazia isso
com ele. Desde 2008, era raro que ele conseguisse se conectar
emocionalmente com alguma coisa. O vento da noite começava a soprar e o
frio de um outono ainda distante começava a aparecer. Os garotos ficaram
um tempo sentados na areia, com as pernas e olhos voltados para o mar.

Aquele mar noturno tão enigmático…

— Lince, o que sabe sobre aquela garota, Kiwi?

O garoto suricato coçou a bochecha.

— Bem, não muito. Sei que ela dançou uma vez em cima das
carteiras e parou na diretoria. Foi tão esquisito... Por quê? Você gosta dela?

— Não exatamente — Nalu suspirou, escolhendo melhor as próximas


palavras. — Sabe de alguma coisa sobre o pai dela, Phillip Angelos?

Lince ajeitou a postura. Ele era um cara esperto, sabia onde Nalu
queria chegar com aquela conversa.

— Ele é um famoso mergulhador grego. Achou quase todas as


relíquias que conhecemos do Aurora Armada na década de noventa. O
Museu Náutico só existe por causa dele e das expedições que ele fez com a
marinha.

— Por isso o cara tem uma mansão… — Nalu juntou os pontos e


procurou por algo dentro da mochila. — Ele era muito próximo do meu
avô, Bartel Van Dijk, você conhece?

Jogou os diários na areia. Lince deixou o queixo caiu.

— Vo-você é neto do Bartel? Quer dizer, “O” Bartel Van Dijk? C-


como eu nunca soube disso antes? — tropeçava nas palavras, visivelmente
enlouquecido para pegar todas aquelas anotações em mãos de uma só vez.

Nalu riu.

— Vai em frente.

Como era fácil ver um nerd feliz. Lince folheava tudo com cautela,
apesar do entusiasmo, os dedos nervosos por estar segurando uma relíquia
como aquela.

— Isso é demais… seu avô foi o homem mais próximo do mundo a


chegar perto do butim do Mary Dear. Por que só me contou agora?

— Descobri faz pouco tempo — Nalu coçou a nuca. — Você topa ir


atrás do tesouro comigo?

Lince virou o pescoço mais rápido que um suricato. Talvez eles


devessem mudar seu apelido de vez. Engoliu em seco, completamente
emocionado, Nalu conseguia ver o brilho em suas pupilas crescendo.

— Você acha que é possível?


O amigo deu de ombros.

— Está tudo aí, não está? Eu preciso de dinheiro, você precisa de


dinheiro… por que não?

Parecia tão óbvio na cabeça dele. E seria a desculpa perfeita para


desvendar um pequeno mistério que vinha o atormentando. Apoiou-se ao
lado do amigo.

— Você fala com o Pedro, eu falo com a Kiwi. Se Bartel Van Dijk e
Phillip Angelos eram tão próximos assim, ela deve saber de alguma coisa.
Deve conhecer meu avô melhor do que eu.

Lince pareceu nervoso quanto à nova etapa do plano.

— E o Riva? — perguntou.

Nalu congelou, engolindo em seco.

— Não precisamos dele.

O garoto dos olhos castanhos encheu os pulmões de ar.

— Ele sente sua falta, sabia?

As memórias vinham como avalanches. Nalu tinha só doze anos na


época quando tudo aconteceu. Quando sua vida começou a desmoronar.
Quando mais precisou de um ombro amigo e Riva não estava lá. Ele sentira
muita falta durante muitos anos. Agora, finalmente, tinha aprendido a não
sentir mais.
Levantou-se.

— Vamos seguir com o plano. E vê se arruma um celular.

Na manhã seguinte, Nalu pôs seu plano em prática. O sinal tocou e lá


se foi Kiwi, de pés descalços, para o ponto de ônibus. Nalu jogou tudo
dentro da mochila e correu para fora da escola. Esgueirando-se de um beco
para o outro, alcançou a garota dos cabelos de maresia, entrando e sentando
perto da janela. A porta do ônibus fechou e lá se foi, rumo sentido sul da
ilha. Como sempre, sentido contrário da imensa mansão da família Angelos.

As coisas ficavam um pouco mais fáceis com um skate novo e era


hora de testar se o seu novo amigo estava em forma. Seria uma perseguição
de rua interessante. Rodas de encontro com o asfalto, começou a remar por
entre os carros. De tempos em tempos, o ônibus parava para largar antigos
passageiros e receber novos e assim foi o processo, sempre de olho se Kiwi
desceria também.

De praias e palmeiras, a shoppings e supermercados, a paisagem foi


mudando enquanto Nalu remava rapidamente pela cidade. Já passara do
ponto da sua casa. Já passara da Praia do Portinho e até mesmo da Praia da
Feiticeira.

Que estranho… ela ainda não havia descido. Não havia muitas
paradas depois daquelas. O ônibus não podia continuar por muito tempo,
afinal ele só ia até onde a prefeitura havia asfaltado. Os últimos passageiros
desceram na Praia do Veloso. Nalu freou o skate e observou as poucas
pessoas que tinham sobrado dentro do ônibus descerem. Uma mãe com uma
criança e um senhor de idade.

E então Kiwi.
Bingo. As portas do ônibus se fecharam e ele deu meia volta para
dirigir até o centro comercial outra vez. Em contrapartida, Kiwi seguiu em
frente caminhando pelas ruas de barro. Não era possível continuar em cima
do skate, então Nalu esperou trinta segundos para começar a caminhar. Não
haviam quase casas por ali e, por todas que eles passavam, Kiwi ignorava.
Seguia em frente, indo de encontro com a mata.

Mas que merda é essa... Quanto mais caminhavam, mais pressentia


que tinha caído em uma armadilha. Então era isso, seria caçado por sereias
e nunca mais encontrariam seu corpo. Esse era seu trágico fim.

A estrada estava quase terminando, quando Kiwi virou o corpo


bruscamente.

— QUER PARAR DE ME SEGUIR?

Quer dizer, era bem óbvio com quem ela estava falando, mas Nalu
franziu a testa em confusão. Cara de pau.

— Ah, você tá falando comigo — ele coçou a cabeleira.

— O que você quer? — ela cruzou os braços.

Nalu fungou o nariz, enchendo os pulmões de um jeito ridículo.

— Eu vim pegar um ar fresco. Dizem que faz bem para a saúde.

— Nossa, deve estar muito entediado mesmo.

— Que nada — o garoto aproximou-se com um sorriso instigante. —


Para falar a verdade, você é a primeira pessoa que me tira do tédio por aqui.
Kiwi revirou os olhos e voltou a caminhar.

— Talvez não tenha visto o suficiente da ilha ainda — acrescentou,


balançando os quadris para longe.

Nalu adorava um desafio. Apressou o passo para alcançá-la.

— Conheci bastante coisa já. Vi até uma sereia, acredita?

A garota dos cabelos de maresia deu uma gargalhada. Não era a


reação que eu estava esperando...

— Certeza que não era um golfinho?

— Era bem mais bonita que um golfinho.

Kiwi fez uma careta em direção a Nalu, que teve que segurar um
sorriso maroto nos lábios. Entendi. Vai ser um jogo difícil. Legal, legal. E as
coisas ficavam um pouco mais interessantes quando aquela garota em sua
frente era tão astuta quanto ele. Aqueles olhos verdes, tão enigmáticos, não
paravam de o encarar.

— Você está sangrando — por fim ela disse.

Nalu franziu o nariz confuso e jogou a cabeça para baixo. Droga,


estava mesmo. Um arranhão de sangue na perna, que furada . Quando
aquilo tinha acontecido?

— Bom, me faz parecer maneiro, não acha?


— Vai coçar pra caramba amanhã — Kiwi acrescentou, sem ralentar
o passo. — Parabéns, finalmente foi batizado pelos borrachudos.

— ISSO É UMA PICADA? — Nalu fez um escândalo um pouco


maior do que pretendia. Limpou a garganta para que a voz voltasse ao tom
normal sem parecer um adolescente passando pela puberdade.

— Mordida, na verdade. Agora que provaram do seu sangue, eles


nunca mais vão deixar você escapar — a garota abriu um sorriso,
provocante, que fez Nalu entrar em combustão instantânea.

— Tanto faz, vem cá. Onde você mora?

— Por que eu iria te contar?

— Ah, menina linda, eu quero morar na sua rua... — recitou Charlie


Brown, mas ela claramente não entendeu. Ou fingiu que não entendeu. Ou
só decidiu ignorar Nalu. Possivelmente, a terceira opção. Apressou o passo
para alcançá-la. — Você mora na floresta? Você é uma sereia, não é? Pode
me contar, eu sei guardar segredo.

Kiwi suspirou, ajustando o elástico no cabelo, e o encarou da cabeça


aos pés.

— Seu cabelo é engraçado.

Nalu puxou um sorriso.

— Isso pareceu um elogio.

— Não foi um elogio.


— Ah... — o garoto freou para bagunçar a franja. Ficava lambida
com aquela umidade e ele ainda não tinha desvendado o que fazer.
Acrescentou baixinho: — Eu não sei ajeitar ele sem o boné.

Então era isso. Uma garota tinha o feito ficar totalmente sem graça.

Kiwi desceu ladeira abaixo, sem nem olhar para trás, deixando um
Nalu plantado a vários metros de distância.

— Ei, ei, ei! — Ele armou uma corrida. — A gente pode conversar?
Eu sou neto do Bartel Van Dyjk. Provavelmente você conheceu o cara. Eu e
uns amigos vamos ir atrás do tesouro do Cavendish. Você sabe se o seu pai
por acaso...

— Tchau, Nalu! — vociferou de um jeito tão mandão que era fofo.

O garoto poderia ter entendido aquilo como um fora bem direto, uma
surra no estômago, mas, por alguma razão, Nalu não conseguia parar de
sorrir.

Ela sabe meu nome. Aquilo bastava para ele. Pelo menos por ora.

Respirou fundo e girou nos calcanhares de volta para o norte da ilha,


preparado para encarar aquela enorme estrada de barro que tinham descido
instantes atrás e esperar por mais de quarenta minutos por um ônibus chegar
na parada mais próxima. Coçou a nuca, bagunçando os cabelos mais uma
vez e jogou a mochila de volta no ombro. Até que aquela voz soou, a
metros de distância dele.

— Você disse Cavendish? — Kiwi cuspiu uma risada sarcástica. —


Boa sorte.
Nalu pressionou a pontinha da língua contra a bochecha. Ela estava
tão intrigada quanto ele, era óbvio, e tinha conseguido ganhar um mísero
pedaço de sua atenção. Já era o bastante.

— Por quê? — o garoto gritou em contrapartida. — Você sabe onde


está o tesouro?

— Sei — respondeu, dando alguns passos pesados em sua direção.


Muitos passos.

Quando Nalu percebeu, Kiwi estava perto demais. Aqueles olhos


verdes, quase faziam os seus próprios arderem, como se estivesse a encarar
o sol. Chegou tão perto, que pôde sentir seu perfume cítrico que lembrava
vagamente o cheiro de capim-limão com uma pitada de oceano. Pôde ouvir
sua respiração e ver as sardinhas que pintavam suas bochechas, levemente
douradas da praia. Sentiu seu coração falhar, mas não recuou. Kiwi levantou
as sobrancelhas em desafio.

— Nas páginas de um livro infantil.

— Não era o que seu pai e meu avô achavam... — provocou Nalu,
sem se distanciar. Nenhum dos dois cedeu, até que Kiwi deu um leve passo
para trás.

Cruzou os braços, encolhendo os ombros.

— Meu pai é um idiota e seu avô enlouqueceu tentando encontrar


aquela coisa. O butim do Mary Dear é só uma lenda. Não existe tesouro
algum na ilha.

A garota dos cabelos de maresia puxou ar para os pulmões e


suspirou, alto o suficiente para Nalu entender que aquela conversa tinha
chegado ao fim. Girou nos calcanhares e voltou para seu caminho.

— A gente se vê por aí, esquisito.

Nalu deitou a cabeça, implicante.

— Isso foi um convite?

— Você parece ter o péssimo hábito de seguir as pessoas, então... —


Kiwi deixou as palavras morrerem no ar, dando um giro como se estivesse
prestes a dançar.

Se distanciavam, mas não viravam de costas. É quando sabemos que


é pra valer. Um tchau nunca significa uma despedida. Não quando há
magnetismo envolvido. Quando há mistério e uma pitadinha de querer saber
um pouco mais.

— Tudo bem — Nalu chutou uma pedrinha. — Bom, se mudar de


ideia, sabe onde me encontrar.

— Sei? — Kiwi gritou.

Nalu abriu os braços e virou em sua direção uma última vez.

— A ilha não é muito grande!

E perderam-se de vista, deixando apenas aquela energia pairando no


ar.
Capítulo Seis

Se Viver Exige Coragem Então...

Now Playing: Não Viva Em Vão

(Charlie Brown Jr. Papo Reto)

O farfalhar das folhas criavam uma sintonia com o som dos


animais da floresta. Nalu tinha se esquecido como era viver tanto tempo
longe da cidade e como havia vida naquele lugar. O sol infiltrava-se por
entre as árvores, criando feixes de luz dourados que os acompanhavam por
todo o percurso. Nalu abria caminho, rebatendo os galhos da trilha na cara
de Lince. Como nos velhos tempos.

— Não acredito que você esqueceu!

— Não esqueci onde fica! Só... — Nalu olhava ao redor


tentando se localizar. — A floresta é toda igual, você tem que me dar um
desconto.

Então uma chave girou em sua memória. É isso. Nalu calculou


algo no ar, como um maluco fala consigo mesmo, e voltou o olhar para o
chão, saltando para o lado como se o chão fosse feito de lava. Lince fez
uma careta.

— Três passos à esquerda depois da casa do velho Toni —


recitava o garoto da cidade. Girou o corpo. — Pirueta reversa...

Jogou a cabeça para trás, abrindo um sorriso.


— E vai encontrar a araçá-piranga.

Depois de cinco anos ele ainda lembrava. Em frente aos seus


pés, crescia uma árvore de quase quatorze metros de altura, seu tronco de
vários tons de marrom e vermelho ramificava-se em belos galhos de folhas
longas e escuras. Já dava para ver as últimas goiabas amarelas da estação
crescendo nas partes mais altas. Nalu apoiou-se e pôs-se a subir, sem pensar
duas vezes. Ele ainda lembrava bem como se fazia aquilo. Passara a
infância inteira apostando corridas com Riva para ver quem colhia mais
goiabas.

Subia e subia e, quanto mais alto, mais podia ver. Segurou-se


no tronco e impulsionou o corpo para ficar de pé e apreciar um pouco a
paisagem.

Perdeu o fôlego por um instante.

— Uau...

Aquele lugar era incrível e estava do mesmo jeito que lembrava de


cinco anos atrás. As árvores criavam um manto verde infinito até onde os
olhos podiam enxergar. E o mais importante, a cascata continuava ali, não
muito longe, jorrando água da nascente, levando vida para toda a ilha.

Nalu bateu continência.

— Terra à vista, marujo!

Quase não precisou de ajuda para descer, apesar de ter ficado


parcialmente pendurado pela cueca durante uma das tentativas. Então
pousou os pés de volta no chão, batendo as mãos para se livrar das
formigas.
Lince ainda estava boquiaberto.

— O que foi isso?

— O que foi o quê?

— Você acabou de lançar uma coreografia no meio da floresta.

Nalu deu de ombros.

— Ah, é só um mapa que Riva e eu criamos nas nossas cabeças. Para


nunca vazarmos a localização da Casa na Árvore caso estivéssemos sendo
pressionados por bandidos caçadores de tesouros com machados e facões
nos nossos pescoços. Uma leve precaução.

A caminhada continuou por mais ou menos dez minutos, até as


folhagens darem espaço para uma parede de pedra, de onde surgia um véu
de água translúcida, batendo nas rochas e serpenteando o riacho abaixo.
Havia uma ponte enjambrada por alguns troncos caídos que levavam até
uma árvore um pouco mais alta que as outras, com duas marcações feitas
por um canivete em diagonal cruzando entre si.

Os garotos abriram um sorriso.

— O “X” marca o lugar...

— Você primeiro — Nalu fez uma reverência deixando que Lince se


aventurasse na frente ao subir aquela escada bamba de madeira que um
bando de pivetes que pesavam igual pluma na época, tinham construído
com as próprias mãos.
Um seguido do outro, chegaram ao topo, onde havia uma
portinha que simulava a escotilha de um navio. Não estava trancada, afinal
nunca esteve. Lince sentiu um formigamento tomar conta dos braços e, por
fim, a abriu.

Foi como algo de outro mundo. Lugares são capazes de


guardar memórias, assim como baús guardam tesouros e Nalu pôde ver
nitidamente, como se assistisse a um filme antigo. Era uma época dourada e
a Casa na Árvore era cheia de vida, com pivetes brincando de caçadores de
recompensa e piratas, durante o dia, e contando histórias de fantasmas
durante a noite. Lembrou de todas as madrugadas que viraram lá dentro,
criando planos mirabolantes para fugir de suas mães e irmãs. Quase podia
enxergar quatro garotos de um metro e trinta correndo por ali, pendurando-
se nas vigas e tendo que consertar depois. Quase podia ouvir as risadas ou
sentir os batimentos cardíacos do que um dia já fora um lar.

Os Garotos Perdidos.

Quase podia ver ele e Riva acordados debaixo dos cobertores,


de lanternas ligadas, jurando que ninguém mais estava ouvindo suas teorias
da conspiração, travessuras e segredos compartilhados.

A Casa na Árvore era seu refúgio. Era tão divertido...

— Ei, Nalu, dá só uma olhada!

Lince estava do outro lado da casinha, perto de uma janela


enjambrada, onde havia várias escrituras malfeitas na madeira, em uma
caligrafia que ninguém que fosse de fora poderia nem sonhar em entender o
que estava escrito.

“Lince, Pedregulho, Mano Samurai, Capitão”.


“Clube dos Garotos Perdidos”.

Logo ao lado, preso em um prego enferrujado, havia um nó


náutico de quatro cordas pendurado. Estava emaranhado e esquisito, mas
Nalu lembrava bem do dia em que haviam o feito. Pedregulho estava tendo
aulas de vela e os ensinou a dar nós. Aquele era o símbolo deles.

— Não acredito que isso ainda está aqui... — o garoto pegou em


mãos.

Lince sentou-se no chão. Era engraçado como aquele lugar parecia


muito maior dentro de suas lembranças do que realmente era. A Casa na
Árvore costumava ser um forte, um castelo, e, às vezes, um navio pirata. De
repente, não passava de madeira. Não caberiam quatro sacos de dormir ali
nem se quisessem e Lince questionava-se como tinham feito no passado.

Talvez simplesmente tivessem crescido.

Sentou-se.

— Depois que você parou de vir, o Riva não apareceu mais na escola.
Foi só eu e o Pedregulho por muito tempo... até que um dia ele também
parou de aparecer.

Nalu sentiu um aperto no peito. É estranho como certas ações podem


doer mais em outra pessoa. Ninguém, em cinco anos, perguntara-se como
Lince estava. Nalu questionava-se sobre Riva o tempo todo e não se
culpava por ter ido embora. Mas Lince ficara. Fora o último homem de pé,
esperando para que algum dia... talvez não estivesse mais sozinho.

Me desculpe, mas as palavras não ganharam forma. Ao invés disso,


Nalu deu-lhe um belo de um cascudo por cima do boné.
— Ei, uma vez garoto perdido, sempre garoto perdido. Fizemos um
juramento, ou você já esqueceu?

Levantou-se com ar heroico, encheu os pulmões e começou a recitar:

— “Garotos do mar não deixam monstros e pais os impedir. Juramos


pela camaradagem e pelo perigo nunca expor o quartel general. Seremos
bravos e destemidos e bravo, bravo, bravo!” — gritou, selando o juramento
com um cuspe na mão e estendendo-a em direção ao amigo.

Lince franziu o nariz. Nalu sem graça limpou a mão na lateral das
calças.

—É, a gente era bem nojento.

Os dois caíram na gargalhada rolando no chão. Então se puseram a


trabalhar. Tiraram todas as reportagens, recortes, revistas e cadernos que
trouxeram das mochilas e espalharam no chão. Nalu pegou seus diários.

— Seguinte, meu avô acreditava que o tesouro estava escondido em


algum lugar na Baía de Castelhanos do outro lado da ilha. Encontrei uns
diários da minha bisavó que contam sobre o que ela teria ouvido na noite do
naufrágio do Aurora Armada. — Sentiu o olhar extasiado de Lince sobre
si, animando-se. — E tínhamos razão. Foi uma cilada. A tripulação estava
armando chegar perto da ilha, mesmo que desviasse totalmente da rota
inicial deles. E por quê? — apontou para uma revista de História. —Eles
tinham a informação de que alguém tinha encontrado o tesouro de Thomas
Cavendish.

O garoto suricato estreitou os olhos, percorrendo-os pelos papéis.

— Você tem certeza disso?


Nalu assentiu.

— Está tudo interligado, olha. Mas foi uma emboscada. Nunca


encontraram o tesouro, a informação era falsa. Houve um ataque... —
estendeu um mapa, levado o indicador até um ponto distante. — Diziam
que o Aurora Armada teria batido na Ponta do Boi, mas está naufragado a
quilômetros daqui. Não acho que tenha conseguido ao menos chegar perto
da ilha, muito menos bater sem querer. Alguém os enganou, para que
chegassem perto da Baía, pensando que fariam uma troca justa pelo tesouro,
mas caíram em uma cilada. Afundaram o navio em alto-mar e roubaram
todas as riquezas dos passageiros europeus. Quase ninguém sobreviveu.

— Eu não entendo — Lince levou as mãos à cabeça, atordoado pela


quantidade de informações. — Como que isso estaria interligado com o
tesouro de Thomas Cavendish, se, quem quer que seja o culpado por isso,
estava mentindo sobre ter encontrado o tesouro?

— E se não estava? — Nalu refutou. — Porque trocar um tesouro por


outro se você pode ter dois?

De repente, sentiu um arrepio. E se...

Agarrou o diário de sua bisavó. Ela havia ouvido sobre uma


conspiração naquele dia para roubar os cofres dos passageiros. E se...

— Ou precisavam de algo que estava DENTRO do navio para


encontrar o butim do Mary Dear... por isso a emboscada! Você falou com o
Pedregulho?

Lince desviou o olhar discretamente.

— Ah, bem. Sabe, ele é um cara meio incomunicável, sabe como é...
— Sei muito bem — Nalu revirou os olhos. — Já sei até o que vou te
dar de aniversário.

— Mas você sabe como o Pedro é. Se aparecermos na casa dele


dizendo que vamos atrás do tesouro de Thomas Cavendish, ele vai dar uma
festa. E ele tem um barco — acrescentou.

— O quê? Por que precisaríamos de um barco?

— Para chegar à Baía de Castelhanos — foi a vez de Lince agarrar o


mapa e dançar com os dedos ao redor da ilha. — Só conseguimos ir de
barco ou pela trilha, mas levaria um dia inteiro a pé.

Nalu sentiu um arrepio na espinha.

— Prefiro ficar longe dos borrachudos... legal. E onde a gente


o encontra?

Aquele sol escaldante devia ser algum tipo de castigo. O suor


escorria de seus cabelos até a ponta do nariz, enquanto Lince e Nalu subiam
penosamente aquela ladeira íngreme e infinita de barro puro. Cada passo
parecia o maior desafio do mundo e o clima abafado não ajudava em nada.
De repente, a caça ao tesouro estava prestes a ser substituída por uma tarde
de videogames no ar-condicionado. Pelo menos na cabeça de Nalu.

— Quando você disse que ele morava no Norte...

— Extremo Norte — corrigiu Lince.


Maldito Lince.

— Certo. Não pensei que fosse no fim do mundo!

Se o garoto da cidade tinha ficado com um pingo de saudades


daquele lugar, ele já começava a reconsiderar sua saúde mental. Arrastando-
se ofegantes, era questão de tempo para se matarem no meio do caminho.

— Por que você trouxe o skate? — perguntou Lince com a


respiração entrecortada.

— Você disse que os ônibus não chegavam lá, mas que haveria
uma estrada!

Os dois baixaram o olhar para o chão, desanimados. Não


deixava de ser verdade. Nalu fez uma careta, sentindo que poderia morrer
ali mesmo naquele instante.

— Tudo bem, eu já devia ter aprendido. Sem asfalto. Anotado.


Achei que a ideia era evitar trilhas.

— Morar na cidade grande deixou você covardão.

Nalu abriu a boca, completamente chocado com o que ouviu,


ainda mais vindo de Lince. Quando em sua vida, pensou que o garoto
suricato teria aquela audácia toda? Deu-lhe uma cotovelada, um tanto
orgulhoso daquele novo Vinícius.

Suspirou.

— Nós e os borrachudos então. Que delícia.


—Você não comentou nada sobre a Kiwi... ela topou ajudar?

— Bom... é... — Nalu pôs as mãos nos bolsos. — Não


exatamente.

— Seus planos são sempre ótimos. Muito precisos mesmo...

Agora ele estava usando SARCASMO? Quem era aquele


moleque e o que ele tinha feito com o Lince? Nalu não pôde deixar de soltar
uma risada, então repassou aquele momento na sua cabeça.

— Você disse Cavendish? Boa sorte.

— Bom, se mudar de ideia, sabe onde me encontrar. A ilha não é


muito grande!

Por fim, sorriu.

— Vai por mim. Ela vai aparecer.

Mais trinta minutos de caminhada e Lince começava a se


questionar se a terra era mesmo redonda. Bem, a droga da gravidade pelo
menos era real, porque, caramba! Sua mochila nunca esteve tão pesada
daquele jeito. Cambaleantes, tropeçando nos próprios pés e parecendo duas
vítimas do naufrágio, Nalu suspirou.

— De quem foi essa ideia de merda mesmo?

— Sua — respondeu, Lince.


— Ah, obrigada por lembrar, mano.

Ofegante, Lince levantou bandeira branca, atirando-se no chão


para descansar na primeira sombra que avistou. O calor estava sufocante,
quando finalmente tirou a garrafa da lateral da mochila. Nalu encarou-o
indignado.

— Você tinha água esse tempo todo? — E desabou ao seu lado


no chão arenoso. Talvez fosse covardia dele mesmo, mas começava a se
questionar se não seria mais inteligente esperar um carro passar e pedir
carona.

Se bem que não tinham visto nenhum carro passar por ali.

Lince molhou a nuca, recuperando o fôlego.

— Ei... quando encontrarmos o tesouro, o que você vai fazer


com a grana?

Nalu deu de ombros, como se fosse óbvio.

— Comprar uma passagem de ônibus para São Paulo. Assistir


ao show.

— E depois disso?

O garoto da cidade mirou os olhos no amigo. Seria mentira


dele se dissesse que ainda não tinha parado para pensar no assunto.

— Vou comprar uma casa para mim e pra Yoko. Ela vai
continuar indo à faculdade e eu... sei lá. Vou continuar pintando, eu acho —
bebeu um gole da garrafa. — E você?

Um sorriso leve e distante surgiu no rosto de Lince.

— Vou levar meus pais para o Rio. Eles nunca saíram da ilha.
Vou para a faculdade e... acho que vou comprar uma câmera melhor
também.

E como grandes gênios têm ideias, Lince mergulhou a cabeça


dentro da mochila à procura de algo. Cavou por entre as roupas reserva e
encontrou sua filmadora digital. Era daquele modelo dos anos noventa, que
abria o visor para o lado. Ligou-a e, por sorte, estava ainda com bateria.
Clicou no botão de gravar e procurou pela cara do amigo.

Nalu fez uma careta, que parecia muito maior no vídeo.

— Não acho que a senhora Rosa queira ver a minha cara no


trabalho de biologia.

Lince riu e encheu os pulmões.

— “Essa é a expedição dos Garotos Perdidos! Take um. Estamos


enfrentando a mata selvagem da ilha. Encontramos cobras e felinos
ferozes... — declamava, como a uma peça de teatro da escola, incrementada
com uma imagem de vídeo de qualidade totalmente duvidosa e mãos
trêmulas de cansaço. — O nosso soldado quase não sobreviveu!

Nalu soltou uma risada.

— Me dá isso aqui — e virou a câmera para o garoto suricato.


— Vai, manda um oi para a Yoko.

Lince murchou a expressão e acenou timidamente.


— Oi, Yoko!

Nalu virou a câmera para si mesmo, com a imagem


ridiculamente perto de seu rosto e totalmente fora de foco.

— Estamos fazendo isso por você, viu? Espero que me receba


com donuts da Casa dos Donuts quando eu chegar aí! — e puxou o amigo
pelo ombro. — Ah, e o Lince vai ser nosso confeiteiro particular da casa
nova, mas não se preocupe com quartos de visitas. Ele dorme debaixo da
escada.

— Ei!

Os dois caíram na gargalhada, mesmo com as barrigas doendo


pra caramba depois de uma longa caminhada. Foi quando uma música
começou a soar. Algo que com certeza não fazia parte do repertório de
Nalu. Talvez estivesse tão cansado que estava começando a ver miragens de
kombis multicolor se aproximando ao som de “The Kooks” ou algo
parecido.

Os pneus frearam em sua frente, jogado barro nos pés dos garotos,
mas Nalu não estava preocupado com isso. Seus olhos estavam mais
vidrados na pintura feita na lataria, uma explosão de cores e a palavra que
ele vinha procurando por tanto tempo estampada no lugar da porta do
motorista.

MAKO

A janela de vidro baixou e uma garota de óculos escuros


baixou as lentes para perto do nariz. Kiwi levantou as sobrancelhas.

— Deixa eu adivinhar... os molengas se perderam?


Nalu juntou as sobrancelhas, boquiaberto.

— Eu tenho tantas perguntas.

Kiwi revirou os olhos e tocou na buzina.

— Entrem logo.

Lince poderia estar paralisado dos pés à cabeça, mas isso não
impediu Nalu de carregar o amigo praticamente no colo para dentro do
veículo. Ele estava perturbadoramente sorridente.

— Eu falei que ela iria aparecer.

A kombi por dentro era ainda mais legal do que do lado de


fora. Era toda grafitada de verde, roxo, rosa e azul. Alguma coisa em
vermelho e laranja também. Mas o mais legal era que vários desenhos
surgiam nos cantos mais inusitados e Nalu não podia deixar de imaginar
Kiwi entediada ao longo do verão decorando o espaço com caneta
permanente. Os bancos eram forrados com cangas de praia e havia um
apanhador de sonhos preso perto da porta dos passageiros. Luzes amarelas
em pequenas lâmpadas haviam sido instaladas por toda parte como um tipo
de céu estrelado e livros de bolso decoravam a maior parte das poucas
prateleiras. E em cima da kombi, havia uma bela de uma prancha de surfe.

Nalu voou para o banco da frente, deixando um Lince


emburrado e sozinho no banco de trás, prestes a estrangular o amigo na
primeira oportunidade que tivesse. Nalu, em troca, lançou uma piscadela de
olho malandra.

— Tudo bem aí atras? — perguntou Kiwi, olhando pelo


retrovisor.
— Ah, tudo sim — respondeu Lince, com os joelhos
encolhidos perto do corpo. — Eu só... não costumo entrar em carros de
estranhos.

Levantou o traseiro e aproximou-se do ouvido de Nalu de


qualquer jeito, menos discreto. Sussurrou:

—Não sabemos nada sobre ela. Você acha mesmo que...

— Essa é minha casa — Kiwi interrompeu, soltando o ar.


Então lançou um olhar para seu companheiro de banco da frente. —
Mistério resolvido.

Essa garota... Nalu ficava completamente maluco perto dela. Ela


sempre dava um jeito de surpreendê-lo.

— Como se eu estivesse impressionado com isso... você é


Mako! — ele gritou praticamente. — Eu venho procurando por você desde
que cheguei na ilha. — Afundou no assento, tentando assimilar as
informações. Estava uma pilha de nervos. — Isso é muito maneiro. Você é
toda misteriosa, hein? — sondou, apoiando o cotovelo no assento ao lado.
— Deveria pôr uma mini sereia dançando hula do lado da direção.

Kiwi não se prestou nem em devolver uma resposta silenciosa


por trás dos óculos de sol. Na verdade, aumentou o som. Talvez assim Nalu
calasse a boca.

Ou não.

— Vem cá, o que você está fazendo desse lado da ilha?


— Eu estava de passagem — respondeu Kiwi, sem desviar o
olhar da direção. — Ou vai ver eu também gosto de perseguir as pessoas.

Lince engoliu em seco. Não que ele tivesse ficado calmo em


algum momento, mas não tinha lhe passado pela cabeça que poderia estar
sendo sequestrado por uma maldita perseguidora.

Nalu estreitou os olhos, intrigado.

— Você está flertando comigo?

— Não.

— É — puxou um sorriso. — Você estava flertando comigo.

— Claro que não!

O garoto deu de ombros, virando o corpo para a frente.

— Parecia.

Lince cutucou seu ombro.

— Posso questionar se agora ela vai fazer parte do esquema?


Não fizemos nenhuma votação, mas não acho que podemos sair contanto o
plano para toda garota que aparecer por aí em uma kombi.

— Você tem um ponto — Nalu virou-se para trás. — Ela tem


uma kombi e não vou nem entrar no fato de que é bem mais maneiro ter
uma garota no time do que só um bando de moleque que não usa
desodorante. Ela cheira a capim-limão. É bem mais agradável.
Kiwi fez uma careta.

— ...valeu?

— E ela tem uma kombi — concluiu Nalu. — Resgatamos o


Pedregulho e voltamos para ir a Castelhanos de carro pela trilha.

— Pode parar aí — Kiwi mudou a marcha. O terreno estava


ficando ainda mais íngreme. — Não tenho autorização para entrar com a
kombi no Parque Estadual.

Os garotos franziram a testa, sem entender.

— O quê?

— Só carros autorizados podem cortar caminho por aquela


estrada. E eu... — baixou o tom da voz discretamente. — Não sou a pessoa
mais bem-vinda do mundo por lá.

Nalu estreitou os olhos, apoiando-se na lateral do assento do


motorista.

— É por isso que você leva vida de fugitiva? O que você fez?
Comeu morangos silvestres sem o consentimento da prefeitura?

Kiwi aumentou ainda mais o som. O garoto da cidade sorriu


vitorioso, voltando para seu próprio assento.

— Você estava flertando — cruzou os braços convencido.

— Cala a boca.
Capítulo Sete

Ligado Nos Pilantras e Também Nos Bagunceiros

Now Playing: Senhor do Tempo

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

Nalu tinha batizado oficialmente a kombi de Olive. Era uma


referência que provavelmente só ele ia entender em homenagem à Pequena
Miss Sunshine. Seus pneus ronronavam pela estrada costeira, enquanto o
vento bagunçava os cabelos dos garotos, que tinham jogado as cabeças
pelas janelas. O sol brilhava em um céu limpo e turquesa quando os Garotos
Perdidos chegaram à praia. Era como qualquer outra que encontrava com o
mar aberto. Com ondas boas para surfistas. O que significava que haviam
alguns muitos caras bronzeados sem camisa carregando pranchas debaixo
dos braços e correndo pela areia para chegarem à água. Nalu sentiu um
gosto azedo na garganta.

— Tá legal, por onde a gente começa?

— Alguma ideia de onde encontrar o seu amigo? — perguntou


Kiwi, baixando os óculos de sol para a ponta do nariz.

Os dois voltaram o corpo para o banco traseiro de um


passageiro que estava quieto demais.

— Eu não sei onde ele mora — Lince respirou fundo e


começou a gesticular demais com as mãos. Então apontou para algum ponto
em frente. — Mas aquele lugar parece a cara dele.

De pés descalços na areia escaldante, Kiwi fechou a porta,


trancando Olive, a kombi multicolor. O cheiro de maresia e protetor solar
pairava no ar, enquanto as ondas quebravam na costa e os surfistas
arrancavam suspiros dos turistas. E dos locais também. Nalu fez uma careta
de desgosto.

— Queria ver esses caras em cima de um skate.

Kiwi cuspiu uma risada.

— Nunca surfou antes, não é?

— Claro que já surfei. Olha a minha cara de surfista.

A garota dos cabelos de maresia levantou as sobrancelhas e


repôs os óculos de sol em um tom provocante.
— Se eu não te conhecesse, diria que está com ciúmes.

— Eu? Com ciúmes desses caras? — Nalu cuspiu uma risada que
não soou nada convincente. — E daí que eles são bronzeados e viciados em
academia? Meu cabelo é muito mais maneiro.

Kiwi levantou as sobrancelhas.

— Quem sabe um dia não te ensino a surfar. Mas vai ter que
melhorar essa sua cara emburrada.

— Emburrado? Eu não poderia estar mais contente — retrucou Nalu,


forçando um sorriso amarelo.

A garota dos cabelos de maresia limpou a garganta.

— Sei.

E saiu balançando os quadris em direção a outra ponta da praia.

— Eu não estou com ciúmes! — gritou Nalu, bufando e puxando


Lince pelo pulso, para que acabassem logo com aquela etapa do plano.
Quanto antes dessem fora daquele lugar, melhor.

Kiwi abriu caminho por entre jovens dançantes na areia e uma


energia vibrante, quase contagiante. Música alta emanava de um
estabelecimento em frente ao mar, de paredes azuis e um teto de palha
escura. Havia cocos verdes pendurados, quase prontos para serem servidos,
e flores de hibisco de vários tons de rosa, penduradas perto de alguns
amuletos com totens ou pequenas caveiras. Parecia um cenário saído direto
da Ilha do Espanto. Uma placa de madeira em formato de prancha indicava
o nome do lugar: Snacksurf.
— Bem sugestivo.

Lince deitou a cabeça.

— Snack-surf? ...Snacks-urf?

Kiwi subiu as escadas, adentrando o estabelecimento. Era uma


lanchonete com um balcão em frente ao bartender e outras mesas de bancos
altos e baixos. Estava bem mais vazia do que aparentava estar do lado de
fora. Pelo visto, as pessoas só gostavam de ouvir música alta de graça.

— Olá, pessoal. Mesa para três? — um atendente tão bonito


quanto os outros surfistas apareceu, de camisa estampada e chinelos.

— Mesa pra três e um suco de abacaxi — pediu Kiwi,


mantendo contato visual por tempo demais. — Obrigada.

Nalu segurou seu ombro.

— Eu achei que você ia perguntar onde estava o cara.

— Não estou muito a fim de me meter no “esquema” de vocês


— respondeu, mirando o olhar em direção a Lince.

O garoto da cidade estreitou os olhos, intrigado.

— Qual é a sua, afinal? Pensei que você se interessava pelo


tesouro.

— A essa altura, você já deveria saber que nem tudo é o que


parece ser. — e deu de ombros, pegando seu suco de abacaxi e bebericando
pelo canudo para longe dali.

Qual é a dela? Kiwi poderia deixar Nalu completamente pirado


da cabeça se pretendesse algum dia.

Então, outra coisa chamou sua atenção. Havia computadores


em algumas das mesas baixas, uns de frente para os outros e Nalu teve que
segurar uma risada.

— Não acredito. Ainda existem LAN Houses por aqui?

LAN House era uma espécie de cyber café , muito popular do


final dos anos noventa até o fim dos anos 2000. Com uma boa internet,
qualquer um podia sentar-se de frente para um computador e ter acesso a
informações rápidas para pesquisas ou simplesmente jogar FRIV online.

Nalu puxou uma cadeira.

— O quê? Vai me dizer que AQUI tem sinal e na minha casa


não? — clicou no buscador, que logo carregou. — Caramba, que rápido.

Enquanto alguns se divertiam com tecnologia, Lince abordou


um segundo garçom com uma camisa azul pastel que definia seu corpo mais
do que Lince pensava que era possível.

— Oi, com licença... você conhece um garoto chamado Pedro?


Cabelo crespo, bem alto?

Nalu de repente tinha se esquecido do principal motivo de


estarem ali naquele fim de mundo. Afinal, havia uma coisa que o intrigava
bem mais do que alguns baús de ouro.
Digitou na barra de pesquisa:

Kiwi, significados.

“/Ki.wi//: pronuncia-se “quiuí”. Ave não voadora endêmica da Nova


Zelândia.”

“/Ki.wi//: Actinidia deliciosa, conhecido como quiuí, quivi ou kiwi é


uma espécie de planta frutífera, originária do sul da China.”

“/Ki.wi//: é o apelido coloquial usado internacionalmente para se


referir ao povo da Nova Zelândia .”

Nova Zelândia?

O garoto da cidade olhou de canto para a garota dos cabelos de


maresia. Ele precisaria de muito mais do que um conjunto de palavras para
defini-la.

/Ki.wi//: ?

Digitou uma nova pesquisa:

Mako, significados.
“Mako, palavra de origem maori, com tradução para ‘tubarão’ ou
‘dentes de tubarão’. Mako é considerado o tubarão mais rápido do mundo.”

Digitou uma última vez:

Phillip Angelos.

Então, todas as peças finalmente se encaixaram.

“Phillip Angelos é um famoso mergulhador grego que se mudou para


Ilhabela com a filha e a esposa, Mako Tui, onde começou sua pesquisa
sobre o Aurora Armada.”

Mako, aquela palavra rodava por sua cabeça. É em homenagem à


mãe dela.

Nalu levantou o olhar para Kiwi mais uma vez. Era como um ímã.
Ela era tão enigmática, mas agora ele sabia um pouco mais sobre a garota
dos cabelos de maresia. Kiwi... aquele era mesmo seu nome?

Não muito longe dali, Lince mergulhava em seus pensamentos


ansiosos, enquanto tentava não transparecer que estava visivelmente
nervoso. Fazia um tempo desde que ele e Pedro não se viam. Não seria
estranho, seria? Eles eram amigos. Sentiu alguém se aproximando e, por um
mísero segundo, torceu para que fosse o garçom, dizendo que infelizmente
não conhecia ninguém com aquele nome. Até que aquelas mãos o
surpreenderam ao tocar sua cintura.
— Ahá, rapaz! — Pedro agarrou Lince e levantou-o no ar,
rindo como uma besta drogada por gás hilariante, como fazia desde criança.
— O que que tu tá fazendo aqui, menor?

O sotaque carioca pegava Lince desprevenido toda vez. Coçou


a bochecha.

— Pedro, oi! A gente… quer dizer… viemos até aqui para falar
com você sobre…

Pedro juntou as sobrancelhas confuso ao olhar para trás.

— Eu não acredito… — aproximou-se boquiaberto. — Mano


Samurai! Dá um abraço.

Gritou, abrindo os braços escandalosamente ao ver Nalu.


Envolveu-o tão rápido e tão forte que o garoto não teve nem tempo de
corresponder.

— Caramba, tá alto, mermão . Quando você voltou para a ilha?

— Cheguei agora — respondeu sem graça. Todo mundo ficava


sem graça perto de Pedro. Ele era mais expansivo do que a pessoa mais
expansiva que Nalu conhecia.

Pedro, que era mais conhecido como Pedregulho, por ser


marrento, cabeça-dura e briguento demais quando criança, sorriu e
envolveu os garotos em mais um abraço. Então olhou ao redor, à procura
daquele que faltava.

— Calma lá... eu sei o que é isso. O Riva está aqui também?


A expressão de Lince murchou.

— Na verdade, precisamos falar com você.

— Você tem um barco? — Nalu interrompeu, direto ao ponto.


Suave, discreto e educado como sempre.

Pedregulho cruzou os braços, levando a língua nos dentes. Por


um momento, Nalu pensou que ele compraria uma briga, na qual ele
certamente sairia perdendo. O cara era bem maior que ele. Então, Pedro
abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Tá me estranhando, irmão? Eu fiz aula de vela! Esperem só


até conhecer a minha belezinha.

— Conheçam a Nanda!

Como se já não bastasse “Olive”, essa história está com o


péssimo hábito de personificar meios de transporte. Os garotos tinham
dirigido até o porto no centro da cidade, onde Pedro correra pelo deque até
apontar para um pequeno barco com pouco mais de dois metros de
comprimento. Sua vela era quadrada com tons vibrantes de vermelho,
fixada em um mastro que se erguia verticalmente no centro do barco.
Arredondado, possuía uma proa alta para evitar que água entrasse.

Mas não era com aquilo que Nalu estava preocupado.

— Quando você disse que tinha um barco...


— Ela mesma — respondeu Pedregulho, apoiando o pé,
orgulhoso, na borda. — Minha parceira desde 2006.

Kiwi levantou uma única sobrancelha. Aquilo só podia ser uma


piada.

— Você não vai mesmo enfiar todos nós dentro de um


Optimist, vai?

Barcos Optimist eram populares entre as escolas de vela e


projetados especialmente para crianças e jovens até quinze anos.
Pedregulho franziu o nariz.

— Quem é a garota?

— Não vai querer se meter com ela — sussurrou Lince, em


resposta.

Kiwi bufou, indignada.

— Olha o porte dessa coisa. Não vai sustentar o peso de


nenhum de nós.

— Pff , fale por você, eu estou em forma — respondeu Pedro,


pulando para o pequeno convés e dando batidinhas em sua lateral. — Viu
só? Fibra de vidro no casco. É leve, mas resistente. E a Nanda aqui adora
uma caça ao tesouro.

Não parecia muito convincente e seus joelhos tremiam de


apreensão, mas apesar disso, Lince entrou. Nalu achou engraçado. Nunca o
tinha visto enfrentando seus medos tantas vezes seguidas em um curto
período de tempo. Então foi sua vez. Saltou, animado, pousando com os
dois pés lado a lado e fazendo o barco balançar. Lince agarrou-se no mastro
como um filhotinho de suricato.

— Não faz isso nunca mais!

Pedregulho e Nalu gargalharam e o garoto da cidade voltou-se


para o deque. Faltava uma passageira a bordo. Kiwi cruzou os braços,
decidida.

— Eu não vou entrar nessa coisa nem morta.

— Nem pelo preço de um belo butim como o do Mary Dear?


— Nalu encarou seus olhos verdes, escondidos por trás das lentes de
proteção UV. — Moedas de ouro, joias... mais moedas de ouro...

Kiwi fincou os pés no chão, bufando de indignação.

— Não pode estar falando sério.

Nalu abriu os braços para o ar.

— Qual foi, e onde está o seu espírito de aventura?

O espirito de aventura ficou preso em um maldito banco de


areia. Se Pedregulho tivesse ao menos velejado nos últimos anos, saberia
que ali no canal entre o continente e a ilha havia um enorme amontoado de
terra que encalhava a maioria dos desavisados. Talvez por isso, pela
primeira vez na vida, alguém deixara ele sem graça.

E Kiwi estava prestes a cometer assassinato contra todos eles.


— Sabe, não era para isso acontecer — Pedregulho tentava se
explicar, coçando a nuca. Mas que bom que aconteceu, pois “Nanda” estava
a um pequeno passo de parar no fundo do mar com o peso de não um, mas
quatro adolescentes com bem mais do que quinze anos.

Os Garotos Perdidos desceram, ficando com água salgada até


os joelhos ao lado de um barco praticamente naufragado. Kiwi foi a única
que permaneceu sentada ao lado do mastro, observando a vista.

— Sorte nossa ter um banco de areia aqui. Quando


imaginaríamos que a Nanda — deu batidinhas em seu casco — não daria
conta do recado.

— Escuta aqui! — Pedregulho baixou o corpo em sua direção,


com o indicador em frente ao nariz e uma ótima performance de controle
dos próprios nervos. — Não teve graça.

Nalu sentia-se um idiota com a barra das calças boiando


daquele jeito.

— Beleza, e agora? Como a gente faz pra sair daqui?

— SOCORRO, AJUDA! — Lince gritava, com as mãos em


formato de concha ao lado da boca. — Hã... FOGO, FOGO!

O garoto Sakurai franziu o cenho.

— O que está fazendo?

Lince deu de ombros.


— Dizem que geralmente funciona.

Então era isso. O som do fracasso. O gosto do desgosto do


espírito de aventura voltando pela garganta porque não tinha tido nem
tempo de ser digerido direito. Três moleques descalços e um barquinho
afundando em diagonal. E um casal de pinguins de Magalhães que boiava
ao redor deles como se estivesse caçoando da burrice dos humanos. Nalu
debruçou-se para perto de Kiwi e sussurrou:

— Essa seria a hora perfeita para você fazer aquele negócio de


virar sereia.

Como se fosse algum truque do universo, uma risada alta e


contagiante soou de algum lugar perto dali. Os garotos estreitaram os olhos
para bloquear o sol até perceberem de onde estava vindo. Um barco branco
a motor aproximou-se rapidamente do banco de areia com seu capitão no
leme, cabelos dourados presos em dreads e olhos brilhantes, que ficavam
ainda mais azuis com o mar ao seu redor.

O garoto suspirou, limpando as lágrimas de riso do rosto.

— Isso não se vê todo dia. Mano Samurai... que jeito esquisito


de impressionar uma garota.

Nalu sentiu os músculos agitados. Riva estava bem maior e


mais forte do que costumava ser aos doze anos de idade. Continuava esguio
e de corpo magricela como sempre fora, mas parecia... crescido. Certas
coisas não podem ser simplesmente esquecidas e Riva trazia tudo à tona de
volta. Todo o fim do verão de 2008. Ele não tinha sido o melhor amigo do
mundo também. Imaginara aquele momento inúmeras vezes antes de dormir
desde que fora embora da ilha da última vez. Ficava pensando em como
reagiria, sobre o que ele e Riva conversariam...
Riva não poderia perdoá-lo. Assim como Nalu não poderia
perdoar Riva.

Mesmo assim, lá estavam os dois, cinco anos depois, frente a


frente com apenas o oceano ao redor. Riva aproximou-se, pulando para o
banco de areia. Seus pés eram completamente tomados por mordidas de
borrachudos, como se formassem uma camada protetora, e estavam se
aproximando e aproximando e...

Nalu não conseguiu reagir quando Riva lhe abraçou.

— E aí, cara.

Foi por um mero segundo, mas seu tom de voz mudou e Nalu
soube de todas as entrelinhas que estavam ali escondidas. Mas Riva sempre
foi bom de esconder seus sentimentos. Puxou ar para os pulmões e afastou-
se, analisando mais de perto aquela situação ridícula.

— Deixa eu entender... algum mané realmente achou que seria


uma boa ideia enfiar quatro adolescentes em um barco de criança?

Nalu deu de ombros.

— A gente não tinha muita escolha.

Pedregulho abriu a boca, indignado.

— A rapaziada nunca tá satisfeita, né? Foram até Jabaquara me


pedir um barco para ir atrás do tesouro do Cavendish e agora ficam
rebaixando a Nanda.
Riva levantou os olhos cor turquesa.

— Cavendish? — perguntou, voltando-se para Nalu. —


Entendi... bom, não dá para deixar um monte de pilantra no meio do mar,
ainda mais com uma maré revoltosa igual essa.

Subiu novamente para dentro do barco.

— Vem, subam aí. Eu levo vocês até o porto.

Nalu não pôde evitar em achar que estava sonhando. Ou tendo


algum tipo de pesadelo. Era comum da despersonalização a pessoa estar
presente nos momentos, mas assistir a tudo como se fosse um filme ou um
videogame. Sem estar preso de verdade em seu próprio corpo. Era estranho
estar com Riva de novo. Recomeçar como se nada tivesse acontecido.

Será que ele lembrava de tudo sobre o verão de 2008?

De volta ao porto, Riva ancorou o barco e pulou para o deque


de pescadores, onde parecia estar havendo uma competição entre duas
senhoras para ver quem pescava mais enguias.

— Eu tenho que passar no mercado antes de voltar pro Bonete


— insinuou, tirando um papel amassado do bolso. — As senhorinhas
fizeram uma lista de compras.

O garoto da praia levou uma das mãos à testa e encarou o céu do


crepúsculo.

— Eu, se fosse vocês, esperaria mais dois dias para tentar


navegar até Castelhanos. O mar é traiçoeiro para aqueles lados, ainda mais
com... iniciantes — segurou uma risada que quase enlouqueceu Pedregulho.
— Ah, e boa sorte com o tesouro do Cavendish.

Riva deu meia volta, os olhos demorando em Kiwi


misteriosamente, como se dividissem um segredo. Kiwi desviou o olhar.
Riva estava quase de volta à orla, quando Lince criou coragem de gritar a
plenos pulmões:

— Você... hã... NÃO QUER ENTRAR NO ESQUEMA?

Kiwi baixou as lentes dos óculos, sem acreditar naquela


palhaçada. Nalu sabia sobre o que aquilo se tratava. Sabia o quanto
significava para Lince juntar os Garotos Perdidos. E ele sabia que Riva
também sentia aquele calor no peito ao pensar nisso.

Riva escondeu um sorriso nos lábios.

— Quem sabe eu não apareço na Casa na Árvore qualquer dia


desses — o garoto da praia lançou o belo sorriso e saiu deque em frente,
pulando de pé em pé em uma dança que só Nalu sabia o que significava.
Três passos à esquerda depois da casa do velho Toni, pirueta reversa...

E vai encontrar a araçá-piranga.

Sorriu.

Pedregulho levou as mãos ao rosto, batendo-as na testa.

— Droga! Subir aquela ladeira até Jabaquara de noite é


sacanagem...
Verdade. Se os garotos já tinham sofrido de dia, Nalu não
poderia nem imaginar à noite. Lince respirou fundo, parecendo criar
coragem.

— Você... bem só se você quiser... pode... você pode dormir lá


em casa. No sofá... lá de casa.

Surpreso com o convite, Pedregulho soltou uma risada. Então


deu-lhe um soco no ombro como costumava sempre fazer com o pequeno
Lince.

— Valeu menor — e direcionaram-se para o sul da ilha. — Até


mais rapaziada! A gente se vê no ponto de encontro amanhã.

O garoto da cidade e a garota da ilha acenaram de volta. Só


havia restado os dois e um sol poente. Nalu limpou a garganta, esperando
por um convite também.

— Quer uma carona até em casa? — perguntou Kiwi.

— Seria bem romântico.

Kiwi revirou os olhos e Nalu soube que incomodar aquela


garota tinha virado sua missão de vida a partir daquele momento. Mas Kiwi
sabia o pegar de surpresa também.

— Na verdade… o que vai fazer hoje à noite?


Capítulo Oito

Coisas da Sétima Arte

Now Playing: Meu Novo Mundo

(Charlie Brown Jr. La Família 013)

Os telhados das casas da cidade eram banhados por cores pastéis,


enquanto acompanhavam o sol se pôr na linha do horizonte que separava o
céu do oceano. Kiwi corria apressadamente pelo centro histórico como se,
de repente, ela e Nalu tivessem um compromisso muito importante. Passou
pelas catracas do centro de incentivo à cultura e freou o passo ao chegar em
frente a uma pequena fila de talvez quatro pessoas que pegavam ingressos
para adentrar um cômodo escuro.

Nalu fez uma careta, mas apenas a acompanhou.

Havia um projetor passando informações em uma parede em


frente a um bando de pessoas sentadas, lado a lado, conversando entre si. Se
aquilo era o que Nalu estava pensando, aquele seria o cinema mais
barulhento que já tinha presenciado na sua vida.

— Com licença — Kiwi abria espaço por entre jovens na


terceira fileira.

— Oi, Kaia! — alguém gritou de algum lugar mais acima.


Kiwi virou a cabeça em sua direção, fazendo Nalu entrar em
colapso.

— Oi, Lu! — gritou em resposta.

KAIA?

Os dois acomodaram-se em seus lugares que eram


surpreendentemente confortáveis. Kiwi demorou a perceber, mas seu
companheiro de caçadas ao tesouro estava boquiaberto ao seu lado.

— Para de me olhar assim, esquisito.

— Kaia? — murmurou, como se tivesse acabado de descobrir


um enorme segredo.

Kiwi revirou os olhos, incrédula.

— Sim, esse é meu nome. Não acredito que você ainda não
sabia.

— Como eu ia saber? — Nalu calou-se ao perceber que estava


exaltando-se um pouco demais. Não que aquelas pessoas estivessem
preocupadas com as regras de não fazer barulho no cinema.

A garota dos cabelos de maresia segurou uma risada.

— Achou mesmo que meu nome era Kiwi?

— Sei lá, você é toda esquisita — respondeu Nalu, ainda


processando a informação. Kaia era um nome muito bonito. Ajeitou-se na
poltrona. — Aliás, você me trouxe mesmo para assistir a um filme de
comédia romântica? Nem sabia que tinha cinema aqui.

— “10 Coisas que Odeio em Você” é O FILME de comédia


romântica, cuidado com o que vai falar para mim nos próximos noventa
minutos aqui dentro, pois pode ser fatal. — disse Kiwi, enfatizando as
palavras.

— Não se preocupe, eu vou odiar.

— Então é melhor trancar as portas do seu quarto essa noite,


você pode acordar misteriosamente careca amanhã — Kiwi encarou-o.

— Você não faria isso.

— Você não se garante sem cabelo?

Nalu segurou um sorriso nos lábios, apesar de ela parecer estar


falando bem sério. Talvez seja melhor eu aprender a surfar, pensou de
repente.

— Eu venho aqui todo final de semana. O ingresso e a pipoca são de


graça — explicou a garota sádica ao seu lado.

Nalu sentiu alguém o cutucar no ombro. Era uma moça de


talvez uns trinta anos, com um cesto de palha cheio de saquinhos de papel
com pipoca dentro. Sentiu-se em uma festa infantil de novo.

— Ah, eu não vou querer não... — Nalu começou a dizer.

Kiwi deu-lhe uma cotovelada.


— AAI!

— É pra você pegar e passar para o lado — explicou.

Ah...e como eu ia adivinhar? Nalu agarrou saquinho por


saquinho de pipoca, emburrado, mas visivelmente envergonhado pela falta
de empatia, e passou para o lado até que todas as crianças estivessem bem
abastecidas de suprimentos para a sessão. Kiwi pegou uma para ela e, talvez
envolvido por todo aquele mundo novo que desconhecia, Nalu pegou para
si também.

E lá se foi uma hora e trinta e sete minutos de duração de Kiwi


recitando todas as falas igualzinho aos personagens e assistindo a Heath
Ledger tentando conquistar uma garota. Surpreendentemente, Nalu achou o
filme muito melhor do que imaginara. Mas não foi isso que o deixou mais
chocado.

As pessoas bateram palmas no final. Todas elas.

Nalu, completamente confuso, como se aquilo fosse alguma


espécie de dimensão paralela, bateu junto, tentando entender se não estava
preso dentro de algum vídeo de pegadinhas maldoso. Era meio engraçado,
mas contagiante.

Kiwi riu ao perceber sua reação.

— Dá só para admitir que você gostou?

O garoto da cidade deu de ombros, mordendo o lábio relutante


em concordar com o fato de que tinha sim gostado de uma comédia
romântica adolescente.
— Não foi tão horrível quanto eu achei que seria. Contente?

— Radiante — Kiwi sorriu.

Do lado de fora havia dois corredores em frente ao outro que


levavam para exposições de arte. Nalu não lembrava daquelas coisas na
época em que era criança, mas que criança que prestaria atenção em uma
exposição de arte quando se tinha um mundo inteiro para brincar lá fora?

Kiwi indicou o caminho e, assim como o cinema, a entrada era


gratuita. A galeria não era grande, mas suas artes enchiam o espaço, com
tons vibrantes e obras intrigantes. Quadros de todas as técnicas diferentes de
pintura tomavam conta das paredes, enquanto esculturas clássicas e peças
feitas com colagem de materiais reciclados eram distribuídas no centro das
salas, expostas em pequenos pedestais. Tinha muita coisa, muito legal.
Escorregaram de banco em banco, apreciando todo o oxigênio artístico que
havia no lugar. A garota dos cabelos de maresia e o garoto da cidade
exploraram todos os cantos, às vezes imersos nos sentimentos distintos que
aquelas artes os passavam, desde incômodo à nostalgia, de raiva a paixão e
extrema alegria. Outras vezes bufavam, deixando a hiperatividade tomar
conta, com os nervos querendo fugir para outro lugar. Nalu começara a
fazer comentários sem sentido e Kiwi a imitar as caretas das estátuas, indo
de peça em peça. O caos de verdade começou quando Nalu escondeu-se
atrás de um quadro preso a uma parede de vidro, como se fosse um idiota.
Kiwi deu-lhe um susto e apertou seu ombro, disparando e iniciando um
jogo de pique-pega violento. Mas não tinha problema. A galeria estava
totalmente vazia.

Por meio de risadas que aqueciam a noite, Kiwi fugiu pelas


ruas, correndo em direção à praça em frente à igreja. Era óbvio que era uma
estratégia, alguém competitivo e energético como ela, sabia bem como
despistar o inimigo.
Bem no centro da praça, havia um chafariz de chão, que
jorrava água para o alto de tempos em tempos por entre luzes coloridas, ao
som de alguma música pop no fundo. Kiwi corria de Nalu, escondendo-se
do outro lado dos jatos de água, em tom de desafio, mas o garoto da cidade
não era de levar desaforo para casa. Mergulhou por entre os chafarizes,
atravessando para o outro lado e estremecendo ao sentir suas roupas e seu
corpo encharcarem dos pés à cabeça.

Então agarrou os ombros de Kiwi, que não parava de rir um


instante.

— Não, você não faria...

— Ah, queridinha, eu faria sim — e puxou-a para o meio


d’água, os dois levando um banho de chafarizes. De cabelos pingando em
frente ao rosto e cílios grudando uns nos outros, era difícil de enxergar
alguma coisa, mas Nalu podia ouvir a risada incrédula dela, sem ainda
acreditar que tinha perdido o jogo. A água estava gelada, mas a noite estava
agradável, ainda mais agora. Kiwi segurou-se nos ombros de Nalu em
resposta, os dois tão perto um do outro.

— Você me paga — ela disse com um sorriso no rosto.

— Com prazer, senhorita — ele respondeu, prensando seus


lábios contra os dela, a energia aquecendo seus corpos e deixando que o
momento fizesse o resto.

Foi de tirar o fôlego, como algo tirado da sétima arte. Nalu


distanciou o rosto e observou Kiwi abrindo os olhos lentamente, aqueles
olhos tão verdes que poderiam guiá-lo durante a neblina. Ela aproximou-se,
deixando que sua testa se encostasse levemente na dele, sentindo seus
batimentos cardíacos a uma pequena distância.
Uau. Era a única coisa que passava na cabeça dele... uau.
Chegou um milímetro mais perto, em busca de um segundo beijo, até o
chafariz dar-lhe um jato de água forte bem no nariz, separando os dois. Nalu
teve que coçar as narinas para não se afogar.

Kiwi gargalhou e bateu em seu ombro, voltando a correr.

— Tá com você.

Depois de mais uns dez minutos correndo por entre as pessoas


e se escondendo atrás de árvores, as crianças cansaram. Kiwi subiu em uma
das baixas muretas da praça e caminhou por sua extensão equilibrando-se.
Nalu acompanhou-a pela calçada, enquanto observava seus longos cabelos
voando com a brisa noturna. Ela ficava quase dois palmos mais alta que ele
lá de cima.

— Me mudei da Nova Zelândia para cá quando tinha três anos


— ela começou. — Minha mãe sentia muita falta da família, então um dia
ela foi embora. Ainda mantemos contato, mas eu gosto daqui.

Nalu olhou para o horizonte.

— Não pretende voltar algum dia? — perguntou.

Kiwi riu suavemente.

— Não pretendo ficar presa a um lugar só. Quero ir à Grécia,


ao Marrocos e a Fiji — disse, como se pudesse imaginar todos aqueles
momentos futuros no presente, com uma esperança nos olhos. Algo que
Nalu nunca poderia entender ou sequer imaginar como era a sensação.

O garoto da cidade suspirou, pegando-lhe a mão.


— “Então deixa eu te levar pra ver o mundo, baby...” —
cantarolou.

A garota da ilha ergueu uma das sobrancelhas.

— Você está flertando comigo?

— É... uma música... — ele respondeu envergonhado de


repente. — Deixa pra lá. Se você soubesse quantos instrumentos musicais
eu já aprendi a tocar só pra conquistar uma garota... sua mãe também era
sereia?

Kiwi revirou os olhos e pôs-se a caminhar. Nalu adorava


provocá-la.

O próximo ponto foi a sorveteria, onde a garota pegou seus sabores


favoritos: frutas vermelhas e torta de limão, enquanto Nalu foi direto no
sabor de flocos. E claro, muitos condimentos, granulados e caldas diferentes
por cima. Tudo para comer no caminho de volta para a praça. A noite estava
ainda mais escura, talvez porque alguns estabelecimentos estavam fechando
devagar e algumas luzes e fachadas deixavam de brilhar.

— Tem razão — começou Nalu, cravando sua colher na bola de


sorvete para encontrar a maior medida possível e enfiar de uma só vez na
boca. — Eu não tinha visto o suficiente ainda.

Kiwi respirou fundo, como se pudesse se conectar com as forças da


natureza ao redor. Como se pudesse ouvir, ver e sentir coisas que as outras
pessoas não conseguiam.

— A ilha se apaixona primeiro por você, mas você se apaixona mais


em troca. É assim que funciona.
Nalu mirou-a nos olhos. Talvez tivesse algo mágico sobre aquele
lugar e aquela garota poderia fazê-lo acreditar naquilo se quisesse. Era
como algo que ele nunca imaginara antes e, às vezes, ele se perguntava se
ela estava mesmo ali. Você se apaixona mais em troca. Nisso, Nalu poderia
concordar.

— O que mais gosta aqui? — perguntou o garoto.

Ele esperava alguma resposta mística ou alguma alusão à mãe Terra


ou algo bem hippie mesmo, mas Kiwi entusiasmou-se demais para falar
palavras que ele não podia acreditar que tinham saído da sua boca.

— Não tem coisa mais brasileira do que um buffet de sorvete à beira-


mar.

Nalu, totalmente pego de surpresa, soltou uma risada para o céu.

— Já percebeu que sempre tem uma pia enorme na saída das


sorveterias? Ninguém usa aquilo para lavar as mãos antes de comer, você só
usa depois de se sujar todo de calda de chocolate.

— E não é muito mais divertido assim? — Kiwi lançou-o um


daqueles sorrisos intrigantes. Nalu franziu o nariz em resposta.

— Você é tão esquisita.

A noite parecia querer durar para sempre e nenhum dos dois


reclamaria de um milagre como aquele. Poderiam passar o resto da
madrugada conversando e trocando ideias e ameaçando um ao outro com
sabores nojentos de sorvete. Contudo, o destino reservava algo diferente
para Nalu.
Um dos poucos estabelecimentos ainda aberto àquela hora era
um bar, onde o som da televisão estava um pouco alto demais. Ao passar
em frente, Nalu percebeu que a foto de Chorão, o vocalista do Charlie
Brown Jr. estampava a tela. Estreitou os olhos, sem conseguir distinguir as
palavras escritas ou que estavam sendo ditas pela repórter.

Estendeu seu sorvete para Kiwi por um instante.

— Eu já volto.

Não deu oi para ninguém e ignorou o chamado de todos os


garçons. Havia uma única coisa que pintava sua vista no momento e eram
letras garrafais em vermelho, debaixo de uma foto. O sinal estava ruim, o
barulho do bar estava alto, mas nada disso era desculpa para Nalu demorar a
entender o que estava escrito.

“ O cantor Alexandre Magno Abrão, o Chorão, da banda


Charlie Brown Jr, foi encontrado morto em um apartamento na Zona
Oeste de São Paulo.”

Poderia ter vindo como uma avalanche, rápida e avassaladora,


como um tsunami, forte e destrutivo, mas tudo o que Nalu sentiu foi um
enorme vazio dentro de seu peito. Não era algo que dava para descrever
exatamente, além de uma sensação extrema de abandono e solidão.

Seus olhos embaçaram. Não poderia ter lido certo, afinal havia
um show marcado em pouco tempo. Ele sabia, ele tinha ingresso. Não
poderia ser verdade. Piscou duas vezes e olhou novamente para a televisão,
mas as palavras continuavam as mesmas.

As palavras continuam as mesmas.


F oi como um soco no estômago, algo indigerível. Nalu estava
paralisado, em transe demais para assimilar o que aquilo significava
exatamente. Sentiu a garganta secar, os ouvidos entorpecerem, como se
pudesse morrer ali mesmo. As vozes ao seu redor tornaram-se abafadas,
totalmente distantes como parte de outro mundo. O seu arredor poderia
estar derretendo ou pegando fogo ou desmoronando, Nalu não conseguia
distinguir. Não estava ali, estava?

...onde estava mesmo?

— Isso não está acontecendo... — sentiu a dor de cabeça inundar


seu crânio, uma pontada forte como se fosse explodir.

Uma tontura, uma baixa de pressão, uma falta de equilíbrio que


não conseguia ter certeza se seus pés estavam mesmo se movendo ou se
aqueles eram de fato seus pés. Eles se moviam para a frente, devagar, então
mais rápido. Não lembrava de pedir a eles para caminhar. Mas eles o faziam
mesmo assim, como se estivesse assistindo a um filme da perspectiva do
personagem principal.

Um protagonista à beira de um abismo.

— Ei, esquisito. Você está legal? — ouviu alguém o chamar, mas


não tinha certeza se era com ele mesmo. As palavras não soavam como
palavras e sim como chiados, não conseguia processá-las.

Sentiu a respiração ofegar, entrecortar. Sentiu o coração


acelerar. Sem rumo algum ele ia, levado por pés que já não eram dele, por
uma vontade de ir embora que ele pouco sentia. Era como estática. Algo
que não se pode ter controle ou tocar. Como o éter. Como...

Como se sentira quando Noe morreu.


Uma pontada no peito e um susto. Uma luz forte o cegou
momentaneamente e o som de uma alta buzina explodiu em seus ouvidos.
Estava no meio da rua ou estaria alucinando aquilo também? Foi quando a
ficha caiu.

Não haveria mais show. Nunca mais.

Estrelas do rock sempre morrem cedo porque são vagabundos, a


voz de seu pai ecoou em seus ouvidos.

Ele está em luto, a terapeuta havia dito em 2008. Vai voltar para
a realidade quando estiver pronto.

Sentiu os galhos baterem em seu rosto e ele nem lembrava de ter


entrado na floresta. Noe...

Lembrava do rosto de sua mãe quando lhe contou a notícia.


Seu mundo desabou. Deixou de sentir. Não havia mais propósito algum em
permanecer ali sem seu irmão mais velho e a dor poderia ser avassaladora
se ele tivesse sentido alguma. Não parecia real, parecia uma simulação, um
mundo dos sonhos cruel demais em que ele vagava constantemente sem
saber por onde havia entrado e sem ter ideia de como sair.

Eu quero desaparecer...

Um mirante. Seus olhos foram inundados pela vista do mar


logo abaixo de um mirante com o letreiro da cidade. Uma paisagem que
cantava para ele, assobiava doces melodias chamando-o a seu encontro.
Não percebeu quando se aproximou. Não sentiu quando pôs o primeiro pé
em cima da tábua de madeira nem mesmo o segundo. A única sensação que
penetrava sua pele era a do vento traiçoeiro e gélido passando por suas
roupas ainda úmidas, percorrendo seu corpo e envolvendo-o por inteiro.
Ele não precisaria mais sentir. Desligara seus sentimentos uma
vez, aconteceria de novo, era inevitável.

Logo agora que finalmente tinha conseguido voltar.

Um passo, pensou, sem ter certeza de que aquilo era seu


pensamento ou o de outra pessoa. Apenas um passo. Não teria que lidar
com tudo o que viria depois, ele já conhecia o processo. Não havia mais
nada para ele ali. Nem a emoção de estar presente. Nada. A tentação era
avassaladora. O vento o puxava, querendo o levar para o mar. Relembrava
do dia em que quase se afogou. Lembrava da figura da sereia misteriosa. Do
medo do oceano, do alívio de ter sido salvo.

Alguém havia o salvado.

Não havia ninguém agora para o impedir. Estava, ele estava...

Sozinho.

Desabou o corpo, sentando no parapeito do mirante e deixando os pés


soltos do ar. Só mais um empurrão...

Sentiu um par de braços envolvendo sua cintura por trás. Um


calor o envolveu, o aperto de alguém em desespero o trouxe
momentaneamente para a realidade. Nalu sentiu a cabeça de Kiwi afundar
em suas costas, encostando o corpo em contato com o dele, as lágrimas
deixando pequenas marcas de choro no tecido de sua camiseta, sua
respiração falha e pesada e quente o agarrando tanto quanto suas mãos. Tão
forte. Tão forte quanto o medo que tinha de deixá-lo escapar.

— Seu idiota... — Kiwi murmurou por entre soluços.


Ela está tremendo, percebeu.

— Eu... eu não ia... — ele tentou falar.

Kiwi fungou.

— Quer conversar sobre isso?

Foi só então que entendeu. Aquilo não estava dentro da sua cabeça,
era real. Estivera prestes a fazer algo real e machucar alguém que agora
estava chorando por ele. Sentiu as lágrimas queimarem em seus olhos,
formando-se como bolsas de água fervente e escorrendo por sua bochecha.
A ficha caiu. Engoliu em seco e balançou a cabeça, em negação.
Definitivamente não queria conversar sobre aquilo e tornar mais real do que
já era.

Por entre soluços, Nalu deixou que Kiwi guiasse seus movimentos,
ela virando seu corpo em direção ao dela e o abraçando ternamente. Nalu
gritou, chorou, pressionando sua testa contra o ombro da garota, afundando
no coração de alguém que esteve ali antes que fosse tarde demais. Kiwi
segurou seus cabelos, movendo os dedos gentilmente para cima e para
baixo, tentando acalmá-lo. Ele merecia chorar. Merecia sofrer.

Nalu merecia sentir.

Ela beijou sua testa e levou sua mão à dele, entrelaçando seus dedos.

— Vem, vou te levar para casa.


Capítulo Nove

Amanhã Posso Chorar Por Não Poder Te Ver

Now Playing: Dias de Luta, Dias de Glória

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

Os três meses que se estenderam foram um marasmo. Os dias


passavam arrastados e Nalu frequentemente faltava à escola. Ficar debaixo
dos cobertores parecia mais atraente, mesmo sendo tão frio e solitário
quanto era o mundo do outro lado. As poucas vezes que pisou fora de casa,
nenhuma palavra saía de sua boca, nem mesmo para dar “oi” a Lince em
todas as tentativas do garoto de chamá-lo nos corredores.

Yoko entrou em contato. Várias vezes. Nalu deixava o celular no


móvel ao lado da cama e sempre que via a luz da tela se acender, ele sabia
quem era. Sem sair debaixo das cobertas, às vezes pegava para ler as
mensagens.

“Nano... eu tô preocupada com você. Liga pra mim, tá bem?”

“Tô juntando uma grana. Logo que eu puder, dou um jeito de ver
você.”
“Estou indo. Aguente firme. Não vou largar sua mão, lembra?”

Mas ele não respondia nenhuma. Não queria a pena de ninguém. Não
queria ser um fardo na vida de sua irmã ou de sua mãe como já era na vida
de seu pai. Então, simplesmente ignorava e voltava a dormir.

Camila passava em frente ao seu quarto pelo menos uma vez a


cada duas horas. Ela sabia que a terapeuta tinha pedido para dar espaço a
ele e tudo o mais, mas ela não suportava ver o filho definhando daquele
jeito. Não estava comendo e, a cada dia que passava, Nalu estava mais
magro do que o anterior. Mais pálido.

Mas a terapeuta não havia dito nada sobre cafés na cama.

Naquela manhã, Camila acordou-o com uma bandeja morna em


cima de suas pernas, por cima do edredom. Abriu uma leve fresta da janela
e sentou ao seu lado, acordando Nalu com um cafuné nos cabelos que quase
já passavam do pescoço. Ele está precisando de um corte urgentemente, ela
sorriu.

— Eu trouxe waffles — ela sussurrou, sem parar de fazer carinho.

Nalu resmungou com a voz rouca e a cara colada no


travesseiro.

— Não tem waffles na ilha, eu já procurei.

— É, mas eu fui até um lugar mágico e encontrei especialmente pra


você.
Comida foi o suficiente para chamar a atenção do adolescente
deprimido. Nalu levantou, apoiando-se na cama com os braços finos e os
cotovelos ossudos. Esfregou uma das mãos nos olhos e fungou o nariz. Seu
piercing do septo estava torto e seu cabelo uma bagunça. Quem não o
conhecesse, talvez pensasse que tinha sido atropelado. Espreguiçou-se,
deixando o cheiro dos waffles inundar suas narinas.

Camila segurou uma risada.

— Quando quiser conversar, sabe que eu estou aqui, não sabe?

— Eu estou bem...

— Mesmo? — levantou as sobrancelhas, tentando olhar o filho


nos olhos. Pelo jeito que ele desviava, era óbvio que estava mentindo. Ele
era tão fechado, tão teimoso, que Camila não sabia mais o que fazer para
tentar se conectar com ele.

Nalu suspirou, sentindo o peito apertando.

— Eu só... — sua voz falhou. — Não é justo que pessoas


incríveis vão embora desse jeito enquanto pessoas horríveis continuam
vivas.

Camila sentiu vontade de chorar. Então puxou-o para um


abraço apertado.

— Não é justo mesmo... infelizmente algumas estrelas caem


antes que outras — ela murmurou. — Quer que eu converse com sua
psicóloga para você voltar para a terapia?
— Sabe, eu... eu realmente senti que estava melhor — Nalu
soluçou em seu colo e pôs a mão firme no próprio peito, fechando o punho
e segurando o tecido enrugado do pijama como se pudesse alcançar seu
coração. — Desculpe por desligar tudo... tudo parece tão irreal... até hoje.
Eu não me deixei sentir nada quando o Noe... — não conseguiu completar a
frase. — Se foi.

Camila segurou a respiração.

— Eu não sinto nada. E é... mãe... — choramingou. — É muito


assustador.

Junho tomou conta do calendário sorrateiramente, sem deixar


ninguém perceber. Os dias estavam mais frios, mas ainda assim, era
possível usar mangas curtas ao meio-dia. Nalu voltava da escola pela rua de
sempre, quando sentiu algo vestindo perfeitamente em sua cabeça e
bloqueando sua visão.

Meu boné?

— Eu sinto muito — a voz de Lince soou em suas costas.

Nalu virou-se lentamente coçando a nuca. Ele não queria


conversar, não queria ter que externalizar seus pensamentos nunca mais,
mas sabia que devia uma explicação, pelo menos para ele. Suspirou.

— Tá tudo bem, eu só tive uma recaída — explicou, desviando


o olhar. — Foi como a morte do Noe tudo de novo. Eu sei que é bobagem,
eu nem conhecia o cara pessoalmente nem nada, mas...

— Não é bobagem — Lince interrompeu, a voz tão ingênua


que Nalu poderia prever que ele não sabia nada sobre a vida. Bem, às vezes
são as pessoas mais puras que veem as coisas do jeito tão simples que elas
são. — Ele era uma inspiração para você, não era?

Nalu sentiu aquele aperto no peito e respirou fundo, a cabeça


assentindo em resposta.

— Foi o Noe que me mostrou a banda pela primeira vez. Só...


era algo que eu ainda tinha em comum com ele — um sorriso bobo surgiu
no canto de seus lábios. — Sabe, meu pai nunca gostou de mim como
gostava do Noe. E meu pai odiava Charlie Brown Jr. Era... — fungou o
nariz — meu segredo com ele. Era o jeito de eu lembrar que meu irmão
também era como eu. Dois vagabundos contra o resto do mundo.

E voltou os olhos para frente, esquecendo totalmente de que


Lince estava ali, envergonhando-se por, de repente, pôr tudo aquilo para
fora.

— Foi mal, não sei porque eu disse isso.

Mas Lince apenas sorriu, com aquele brilho de criança


surgindo em seu olhar.

— Se quiser, sabe, eu e os garotos estamos sempre na Casa da


Árvore. O Pedregulho e o Riva...

A expressão de Nalu murchou e subiu no skate novamente.

— Foi mal, Lince. Eu não posso fazer isso. Não conseguiria


encarar o Riva, não... agora — e remou para perto da esquina.

— Mas e o tesouro do Cavendish? — Lince aumentou o


volume da voz, apressando o passo.
— Posso te dar os diários se quiser — ofereceu Nalu, dando de
ombros. — Eu não preciso mais do dinheiro. Cancelaram o show há meses,
não faz mais sentido. Mas boa sorte para vocês. E não esquece de comprar
uma câmera bem maneira, tá?

E sumiu por entre os carros.

Já era noite quando Nalu ouviu um barulho. Passava de


domingo a domingo enfurnado em seu quarto com os fones de ouvido nas
orelhas e uma camiseta de pijama branca, encardida e comida pelas traças.
Mesmo assim, percebeu quando algo suspeito bateu no vidro de sua janela.
Uma vez, duas, então três...

Aproximou-se com os pés arrastados e levantou o vidro,


apenas para ter que desviar de uma pedrinha brutal que havia sido lançada
em sua direção. Esfregou os olhos para enxergar melhor naquele breu.

Kaia?

— Quer me matar, mulher?

— Não acredito que você vai desistir tão fácil assim! — ela
gritou, indignada.

Foi só então que a ficha de Nalu caiu. Olhou ao redor


totalmente confuso ao lembrar que estava morando na casa da ilhazinha.

— Você veio nadando até aqui?


Kiwi revirou os olhos, pondo as mãos na cintura como se não
acreditasse que ele estava perguntando aquilo. Logo ele que sempre fazia
“brincadeiras” sobre o assunto. Logo ele que sempre insinuava a verdadeira
forma da garota. Ela não disse mais nada e então Nalu teve certeza.

— ...Cala a boca...

— Não era você que era neto do grande Bartel Van Dijk e blá blá blá?
— ela continuava a falar naquele tom de voz amedrontado e alto.

O garoto da cidade bufou, sentando-se no parapeito da janela.

— Eu já superei isso. Não quero mais voltar para São Paulo e muito
menos perder meu tempo com uma história de criança. Você mesma disse!
Não existe tesouro nenhum na ilha.

— Você também achava que sereias não existiam — ela gritou,


abrindo os braços e dando um longo suspiro. — Nem tudo é o que parece
ser, esquisito.

Nah... Nalu estreitou os olhos.

— Você acabou mesmo de admitir isso em voz alta?

— Eu já deveria saber — ela cortou o assunto. — Seu avô também


era um desistente.

— Do que é que você tá falando, maluca?

Kiwi encheu os pulmões. Estava há meses com aquele fardo na


cabeça.
— O Aurora Armada tinha uma carga que era uma chave importante
para o mistério da localização do butim do Mary Dear. Por isso foi
emboscado — olhou para Nalu. Ele parecia estar prestando atenção. — Um
mapa. Um holandês o comprou na Índia e estava com ele naquela noite a
bordo.

Um holandês? Nalu apegou-se àquela informação, lembrando das


escrituras de sua bisavó, que agora estavam novamente jogadas nas altas
caixas de seu armário.

— Você sabe quantos clandestinos haviam no navio naquela noite?


— Kiwi voltou a falar. — Foi tudo armação para desviarem da rota inicial,
roubarem o mapa e afundarem o navio. Então poderiam finalmente saber o
paradeiro real do tesouro de Thomas Cavendish.

Não lembrava de ter lido nada a respeito da carga que havia no navio,
mas fazia sentido. Uma carga preciosa, um plano armado desde a Europa
por clandestinos que tinham contatos na ilha. Estava tudo planejado. E,
mesmo assim... por que o tesouro ainda não havia sido encontrado? Era no
mínimo intrigante.

Nalu jogou o corpo para trás.

— E do que isso adianta? Não temos o mapa.

Kiwi cruzou os braços. Ela odiaria por aquelas palavras para fora,
mas era a verdade.

— Não. Mas o meu pai tem.


Capítulo Dez

Seu Sorriso Vai Ser Meu Raio de Sol

Now Playing: Lutar Pelo Que É Meu

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

Antes mesmo do sol raiar, Kiwi passou em frente à ilhazinha com


Olive, a kombi multicolor. O dia seria longo e precisava começar cedo. Um
pequeno sinal de luz e um truque com os retrovisores foi o suficiente para
Nalu perceber que ela havia chegado. Não queriam acordar Camila e o resto
da vizinhança (no caso os peixes) com uma buzina escandalosa.

Nalu respondeu com outro sinal de luz e desceu para o térreo à


procura de um caiaque que o senhor que trabalhava na praia em frente tinha
vendido pra eles. Sem aquilo, provavelmente Nalu viraria um ermitão e
nunca mais sairia daquele pequeno terreno de terra flutuante no meio do
mar.

O céu já tomava tons violeta de alvorecer quando o garoto


atracou na praia e foi ao encontro de Kiwi, já impaciente no banco do
motorista.

— Você está atrasado.

— Bom-dia, esquisita. Radiante como sempre.


E lá se foram rumo ao sul. A Casa na Árvore ficava entre a Ilha
dos Guaiamus e a Praia do Portinho, em um ponto da floresta que
encontraram para todos os Garotos Perdidos estarem sempre por perto.
Pedregulho que tinha se dado mal na geografia do negócio, mas na época
ele praticamente morava dentro do chalé praiano de Lince. Os dois eram
inseparáveis.

Mas Nalu percebeu que Kiwi passou um pouco da entrada ao


ver a casa laranja néon do velho Toni ficando para trás.

— Acho que você se perdeu — provocou Nalu. Era muito mais


divertido do que avisar o que ela tinha feito de errado. Mas Kiwi não
pareceu se importar.

— Só preciso fazer uma coisinha antes.

E estacionou. No meio do nada. Puxou uma mochila do banco


traseiro e abriu a porta, indo de encontro com o nascer do dia.

— Fique aqui, eu volto em um minuto — falou, adentrando a


floresta em seguida.

Que misteriosa, pensou Nalu. De acordo com o relógio, o tempo


que se passou foi bem mais do que o de um minuto, mas o garoto não se
importou. Aproveitou para olhar um pouco mais daquele lugar que Kaia
chamava de lar. Ele nunca tivera essa oportunidade. Perguntara uma vez
onde ela dormia ali dentro e Kiwi havia respondido que tinha uma barraca
em algum lugar e armava ela no teto da kombi todas as noites. Claro, fazia
sentido, já que o banco de trás era tomado por prateleiras de livros de bolso
e gavetas onde ela guardava utensílios de cozinha. Nalu pegou o exemplar
de Pequeno Príncipe em mãos. Sorriu. Era a cara dela ter aquele livro. Ela
possuía uma versão antiga de Peter Pan também e Nalu sentiu um calor no
peito ao lembrar.
Aquele era seu livro favorito na infância. Noe havia lido para ele e
Riva enquanto os garotos ainda não tinham aprendido a ler. Lembra das
histórias de Peter e Wendy e os garotos perdidos fugindo do Capitão
Gancho, enquanto Noe fazia as vozes dos personagens como um ator
profissional. Isso quando não se escondia e fazia sombras na parede para
imitar o crocodilo atrás do relógio. A risada de seu irmão era contagiante.
Nalu queria poder voltar para aquela época tão preciosa do tempo.

Então algo escorregou de dentro das páginas, caindo perto de seus


pés.

Uma fotografia antiga.

Nalu sabia que não era legal sair bisbilhotando, mas sentiu
curiosidade ao ver aquela pequena garotinha sorridente ao lado do pai.
Tinha sido tirada ao lado de uma âncora, provavelmente durante a
despedida entre os dois antes de uma nova expedição de Phillip. Nalu
perguntou-se se alguma vez ele tinha levado Kaia para ver tudo de perto.
Será que eles eram parceiros de mergulho? Será que... bem, ele deve saber
que a filha transforma as pernas em uma cauda.

Mas nenhum desses pensamentos era tão incomodativo quanto


o de se questionar aquilo que já vinha o mantendo acordado por um tempo.

Kaia... por que você fugiu de casa?

A porta da Kombi escancarou-se, fazendo Nalu cair para trás de


susto. Kiwi adentrou o veículo, guardando as coisas de volta no lugar e
sentando no banco do motorista. Ela estava cheirosa e de cabelos molhados.
Nalu guardou a foto no porta-luvas.

— Você era bochechuda... onde você foi?


— Ah, eu só fui tomar um banho na cachoeira. Você deveria
também.

O garoto fez uma careta, discretamente cheirando a axila.


Estava tão ruim assim? Deu de ombros.

— Podia ter me chamado pra ir junto, ué. AI! — e o


desaforado levou uma almofadada na cara. Bem-feito.

O caminho para a Casa na Árvore foi fácil de encontrar. Nalu


guiou Kiwi sem mostrar o segredo e, enquanto subiam as escadas, antes
mesmo de abrirem a escotilha, Nalu já podia ouvir vozes. Tinham sido os
últimos a chegar.

Kiwi foi a primeira a entrar. Pedregulho bufou.

— E o que ela está fazendo aqui? O grupo original só tinha


moleque. Uma garota só vai atrapalhar.

Kiwi levantou as sobrancelhas, perigosa e classuda.

— Sempre é um prazer encontrar você também. Para aqueles


que ainda não sabem — enfatizou as palavras. — Meu pai é Phillip
Angelos.

Riva descruzou os braços, intrigado ao ouvir aquele nome que


ele conhecia tanto. Levou o olhar de relance para Nalu, que retribuiu. Eles
sabiam bem o que aquilo significava. Pedregulho franziu o nariz.

— Saúde.
— Cala a boca, cara — retrucou Nalu, fechando a escotilha
atrás de si. — O pai dela é um mergulhador famoso pra caramba. E ele tem
o mapa de que a gente precisa.

— Quer dizer que era verdade? — a voz de Riva soou das


sombras. Ele sempre ficava escorado em uma das paredes, um tanto distante
dos outros, como para ter controle de toda a situação. Não era à toa que seu
codinome era Capitão. — Foi tudo uma conspiração?

O garoto da cidade tirou a mochila das costas e procurou pelos


diários e todo o seu material de pesquisa que vinha sendo passado de
geração a geração. Espalhou-os pelo chão.

— Minha bisavó foi uma sobrevivente do Aurora Armada. Ela


conta que estava viajando com o pai dela, meu trisavô ou sei lá... — abre
em uma página com a foto desbotada de um homem de bigodes. — O cara
era um colecionador de relíquias e artefatos raros. Era o dono do mapa e
trocava ideias sobre o tesouro de Thomas Cavendish com a família Van
Dijk o tempo todo.

— O naufrágio foi arquitetado para roubar o mapa! — Riva


exaltou-se, rindo com gosto. — Eu sabia... sabia que não tinha sido
acidente!

Nalu não pôde deixar de sorrir. Sentira-se criança de novo


durante um instante.

Pedregulho cruzou os braços, marrento do jeito que era.

— Ei, e como o mapa foi parar justo nas mãos do SEU pai? —
e encarou Kiwi.
Todos se calaram. Algo coçou atrás da orelha de Nalu, algo que
ele ainda não tinha parado para pensar e raciocinar direito. Verdade, por que
Phillip Angelos teria um mapa que foi a causa de um ataque pirata há quase
cem anos atrás?

Kiwi desviou dos olhares, baixando a cabeça. Ela parecia quase


envergonhada. Então suspirou, criando força para contar aquele desgosto
que vinha manchando o nome da sua família de dentro pra fora. Algo que
só ela e seu pai sabiam. Algo que tinha feito a mãe dela ir embora. Algo
que... não poderia nunca vir a público.

— Meu pai era o “O Gringo”.

Lince prendeu a respiração, assim como os outros garotos.


Riva pareceu interessado, ao contrário de Nalu. Quando algumas peças se
juntam, segredos vem à tona e nem sempre para o bem. Pedregulho fez uma
careta, completamente perdido.

O garoto suricato tomou a palavra.

— Ele, hã... o Gringo foi um mergulhador misterioso que foi


visto algumas vezes na área do naufrágio do Aurora Armada antes de...
bem... antes de Phillip Angelos e a marinha proibirem os mergulhos não
autorizados na área.

— Entendi... — Pedregulho pendeu o corpo para a frente. — E


por que deveríamos continuar confiando nela?

— Quer calar a boca, cara? Deixa ela falar! — Nalu exaltou-se.


Já estava ficando irritado com aquele moleque.
— Meu pai foi um ladrão — admitiu Kiwi. — Quando
mergulhou com a marinha, dizia que os cofres do navio já estavam vazios e
já tinham sido saqueados... bem... ELE mesmo já tinha saqueado.
Encontrou o mapa e várias outras coisas nas suas expedições ilegais... —
respirou fundo. Agora vinha a pior parte de todas. — Ele é um falsário.
Falsificava tudo para entregar aos museus. Inclusive o mapa.

A garota dos cabelos de maresia voltou-se para Nalu. Havia


dor em seus olhos.

— Não me impressionaria se a versão que seu avô conseguiu


com ele fosse uma cópia falsa também.

Nalu deixou o corpo cair para trás. Não era possível. Tudo o
que sua família, seu avô e sua avó tinham batalhado, todos os estudos, tudo.
Bartel Van Dijk tinha sido enganado.

— Quarenta anos de pesquisas... por isso ele nunca encontrou.

Kiwi descansou a mão em seu joelho, de maneira terna.

— Sinto muito.

Lince pôde sentir pelo amigo. Décadas e décadas de mentiras e


sonhos perdidos. Caçadas ao tesouro em vão. Seu avô enlouqueceu tentando
encontrar aquela coisa, Kaia havia dito. Talvez algumas mentiras vêm para
o bem.

Riva saltou, ficando de pé em um único movimento, com


aquelas pernas finas de mosquito percorrendo toda a Casa na Árvore de um
lado para o outro.
— O atentado ao Aurora Armada fracassou? — perguntou,
espantado. Deu um longo suspiro, levando as mãos à testa. — Caramba... é
como se o tesouro estivesse esperando até hoje para que nós o encontremos.

Lince juntou as sobrancelhas.

— O que quer dizer?

Quando um moleque travesso igual Riva abre um sorriso de


canto, provavelmente o apocalipse está tenebrosamente por perto. Dava
para sentir no ar. O garoto da ilha limpou a garganta e apontou para seus
companheiros de um a um.

— O neto de Bartel Van Dijk, a filha de Phillip Angelos e... —


apontou para si mesmo. — Um descendente direto de Thomas Cavendish.

Foi a vez de Pedregulho arregalar os olhos.

— Tá me tirando...

Seria mesmo possível? Thomas Cavendish estivera na ilha há


quase quatrocentos anos, mas mesmo assim lá estava Riva, a prova viva da
mistura de sangues. A pele vermelha, os cabelos loiros e os olhos azuis. E
ele certamente tinha a aventura correndo nas veias.

— Está tudo aqui. Todos nós. Não pode ser uma mera
coincidência. O segredo sobre o tesouro, o naufrágio do Aurora Armada... É
quase como se tudo isso tivesse sido...

— ...premeditado — Nalu completou. Os dois garotos trocaram


um olhar demorado. Passaram a infância inteira atrás daqueles mistérios.
Era quase difícil de acreditar que estava tudo bem debaixo de seus narizes o
tempo todo.

Kiwi e os Garotos Perdidos encararam-se em silêncio. Aquilo


era grande. Estavam falando de algo muito maior do que sequer já haviam
imaginado. Como se fosse para ser assim, desde o início.

Pedregulho limpou a garganta.

— Entendi, é um reencontro muito emocionante, mas o que


fazemos depois de encontrar o mapa? Saímos floresta adentro?

— Vamos para a minha terra, a Praia do Bonete — respondeu


Riva, apoiando a perna no centro de todos. — Eu não sei muito sobre a
história, mas quase todos os descendentes de Cavendish moram lá. Alguém
deve saber de alguma coisa.

Lince animou-se, perdendo o fôlego de exaltação. Puxou a


manga de Nalu.

— Você tem um mapa da ilha na sua mochila?

Era óbvio que ele tinha. Dobrado em quatro vezes, um mapa


atual de Ilhabela surgiu em frente aos olhos de todos. A Praia do Bonete
ficava ao sul com acesso apenas de barco ou trilha e seu destino final era a
leste, passando pela Ponta do Boi. Lince desenhou um percurso invisível
com o indicador.

— Não podemos velejar direto para Castelhanos depois?

— É — analisou Pedregulho. — Já é meio caminho andado.


Riva demorou a responder, mas quando o fez foi com uma
gargalhada tão alta que teria espantado todos os animais de perto.

— Lince, meu pobre garoto... ninguém veleja por aquelas


bandas. Nem os marujos mais experientes — explicou, apoiando o cotovelo
no ombro do amigo. — Dizem que é o Triângulo das Bermudas brasileiro, a
magnetita da ilha interfere nas bússolas, que ficam completamente
malucas... — aponta para um lugar a sudeste, onde não havia praias nem
moradores por perto. — Foi onde o Aurora Armada naufragou e onde meu
pai... — interrompeu as palavras, subitamente. — Esquece. Tem um
cemitério de navios naquela área, não podemos ir direto, temos que
contornar a ilha pelo Norte. Pelo menos um dia inteiro de viagem.

Nalu foi o único a perceber sua mudança no tom de voz. Era


onde o pai de Riva tinha desaparecido quando ele tinha apenas cinco anos.
De resto, os garotos estavam impressionados com o quanto aquele pivete
entendia sobre o assunto.

Pedregulho cuspiu uma risada sem graça.

— Eu sabia disso.

Disse o “grande navegador do grupo”.

Lince suspirou, sem acreditar no que estavam conversando.


Virou a cabeça em direção a Nalu, com aqueles olhos de criança brilhando.

— Vamos mesmo fazer isso?

Depois de anos brincando de ser piratas, juntando recortes de


revistas de teorias da conspiração e armando planos que nunca nem sairiam
do papel, agora era para valer. Nalu assentiu, apreensivo. É claro que
estavam morrendo de medo, mas que tipo de aventura seria se não houvesse
um pinguinho de medo envolvido?

Kiwi estendeu a mão no centro da roda.

— Vamos invadir a mansão Angelos e roubar o mapa de volta.

Capítulo Onze

Guerra!
Now Playing: Proibida Pra Mim (Grazon)

(Charlie Brown Jr. Transpiração Continua Prolongada)

Se a ideia era chegar de fininho, talvez Olive não tivesse sido a


melhor das escolhas de meio de transporte. A carroceria de tons vibrantes
anunciava a chegada de um bando de garotos prestes a invadir propriedade
privada. O estrondoso motor da kombi multicolor soou, Kiwi estacionando
com uma distância favorável da mansão Angelos, que surgia
majestosamente do chão como um castelo.

As risadas cessaram quase que imediatamente. Sua estrutura


era imponente, com três andares, janelas de vidro amplas e um portão quase
tão alto quanto a própria casa. Com certeza contrastava com o resto da
paisagem tropical.

— Uou... — Lince soltou o ar.

— Isso é que é mansão — Pedregulho olhou ao redor, fazendo


uma careta para o interior da kombi. — E você escolheu morar nessa
espelunca?

Kiwi revirou os olhos.

— Vamos acabar logo com isso.

Os garotos bateram as portas e analisaram o local. De uma das


frestas do portão, Kiwi observou seu pai no jardim, atendendo a uma
ligação. Dava para ver a piscina e as espreguiçadeiras também e um quintal
um pouco menor nos fundos que tinha acesso pela beira da praia.
— Seguinte, não podemos chegar pela entrada principal sem
chamar atenção, então vamos seguir o plano de invasão pela praia.

Nalu deixou o queixo cair.

— Vocês têm uma praia particular?

Kiwi lançou-lhe um olhar terrível, como se dissesse


silenciosamente você mora em uma ilha particular, seu grande imbecil.

— Tem uma trilha que leva até o mar, então podemos entrar
pelos fundos sem sermos vistos. Meu pai deixa as portas de vidro abertas
durante o dia para arejar a casa, não vai ser difícil de entrar.

— E como fazemos para despistar ele? — perguntou Lince.


Parecia nervoso. Ele era o tipo de garoto que não quebrava regras escolares
nem se tivesse um ótimo motivo para isso. Era óbvio que estava nervoso.

Kiwi procurou por um galho comprido e desenhou uma planta


baixa da mansão no chão de terra.

— Phillip Angelos trabalha de casa, o que significa que vai


passar o dia no escritório, escrevendo o novo livro dele, ou sei lá. Isso fica
no primeiro andar — indicou um ponto à direita, e então outro mais acima.
— O mapa fica no segundo.

— Tem algum alarme ou câmera na casa? — perguntou Riva,


olhando para o alto das árvores.

Um arrepio percorreu o pescoço de Kaia.


— Não que eu saiba. Mas tem o Sargento. É um cão de guarda que
ele adotou nos últimos anos. Ele dorme no pé da escada — e apontou para
um lugar bem no centro da planta imaginária. Uma escada é como as veias
de uma casa. Todo o sangue se locomove por ali. Não existem muitos
atalhos para subir ou descer. Ainda mais se há um cachorro brutamontes
barrando sua passagem.

Pedregulho ajustou a gola da camisa, sentindo-se levemente


sufocado com a ideia.

— ...isso vai ser um problema.

— Podemos subir na árvore ao lado da janela do meu antigo


quarto e entrar direto pelo segundo andar. — explicou Kiwi. — Alguém
aqui não sabe escalar uma árvore?

Os garotos entreolharam-se. Era o momento da verdade e


ninguém gosta de fazer papel de covarde em frente a uma garota. Lince
levantou a mão timidamente. Kiwi esboçou um sorriso gentil para ele.

— Bem, podemos usar você de distração. Você pode tocar a


campainha e puxar qualquer assunto com o meu pai.

— Esse cara de distração? — Pedregulho exaltou-se, de


repente entrando em modo defensivo. — O menor vai nos entregar sem
querer na primeira palavra que sair da boca dele! Eu posso ajudar na
distração.

Ele sempre fora assim. Quando se tratava de Lince, Pedregulho


era seu guarda-costas pessoal. Lince odiava ter que admitir que precisava de
ajuda, mas as coisas eram um pouco melhores quando seu melhor amigo
estava por perto. Claro, apesar de ele ficar totalmente nervoso perto de
Pedregulho.
O garoto suricato sentiu as bochechas ardendo em vermelho.

— Beleza — concordou Riva. — Pedregulho e Lince, toquem


a campainha e conversem com o senhor Angelos.

— Digam que é uma pesquisa para a escola ou sei lá — acrescentou


Nalu.

— Mas falem sobre ele — interrompeu Kiwi, mirando no fundo da


pupila dos garotos para ver se não entrava por um ouvido e saía pelo outro.
— Perguntem sobre o trabalho dele e digam o quanto ele é incrível. Vocês
precisam inflar o ego dele, senão ele vai bater a porta na cara de vocês.

Pedregulho bateu continência.

— Anotado.

Não soou tão convincente e tratando-se dela, Kiwi tinha quase


certeza de que Pedro bloqueava todas as palavras que saíam de sua boca.
Respirou fundo. Era hora de ter alguma fé em garotos.

— Nalu, Riva e eu subimos para o segundo andar e procuramos o


mapa — explicou. — O primeiro que chegar na kombi entra no banco do
motorista e liga a ignição.

E levantou as chaves do carro, deixando claro de que as


deixaria escondidas na moita ao lado do portão. Riva levantou a mão
prontamente.

— Eu não tenho carteira.


Nalu fez uma careta, questionando-se de algo que realmente
não fazia sentido. Franziu o nariz para Kiwi.

— Ei, VOCÊ tem carteira?

O fato da garota poder se transformar em sereia não deixava


menos bizarro pensar que ela dirigia uma kombi para ir à escola.

Kiwi distanciou-se, anunciando o início do plano. Era hora de agir. A


alguns metros para a esquerda, ela indicou a trilha escondida. Quase
ninguém conhecia aquele caminho, mas Kaia já usara muito durante a
adolescência para fugir de casa. Assim teriam acesso à entrada dos fundos
sem serem vistos. Os garotos a seguiram, passando pela praia, tropeçando e
cortando a frente um do outro como se tudo para Riva e Nalu fosse uma
espécie de competição.

Chegando ao pé de uma enorme árvore que se enraizou na areia,


ouviram o som da campainha soar. Pedregulho e Lince tinham chegado à
entrada.

— Esse foi o sinal — Kiwi sussurrou, indicando para que os garotos


subissem em direção à janela próxima dos galhos mais altos.

Riva tomou a frente antes que Nalu tivesse a oportunidade, o garoto


da cidade o seguindo emburrado logo em seguida. Riva era rápido na
escalada e chegou como um relâmpago no parapeito da janela, abrindo o
vidro e pousando os pés descalços no carpete do quarto. Nalu fez o mesmo,
cuidando para não fazer barulho. Abriu os olhos e analisou o lugar. As
paredes eram verdes, de um tom pastel bem claro que lembrava vagamente
o sabor de sorvete de menta, a casa estava arrumada com um cobertor
psicodélico em cima e muitas almofadas. Havia fotos e quadros pintados à
mão nas paredes, assim como um violão estilizado com figurinhas. Era bem
parecido com a Kombi, mas mais triste, mais carregado de história. Parado
no tempo.

Kiwi pousou os pés ao seu lado, limpando a garganta.

— Precisamos agir rápido antes que o Sargento sinta meu cheiro e me


reconheça. Ou pior — levantou o olhar para os garotos — que sinta o cheiro
de... estranhos.

Como se já não bastasse a tensão natural do ar.

Kiwi abriu caminho corredor afora, chamando-os de perto.

O resto da casa era bem diferente do quarto de infância e


adolescência de Kaia. Era mais rústico e colonial, com muitos móveis
pesados e escuros de madeira.

— Tem um armário antigo na sala da televisão. Foi onde eu encontrei


pela primeira vez — anunciou, freando o passo ao encontrar o velho móvel
ornamentado.

Era quase algo saído de um livro de contos de terror. Lá estava, um


armário tão antigo que parecia pertencer a outra vida. Riva franziu o nariz.

— Coisa feia.

— O mapa deve estar aqui dentro — indicou a garota, abrindo


espaço.

Suas portas eram altas, grossas e maciças, e Nalu não parava de


pensar em como aquele armário devia ser pesado. Na verdade, era apenas
uma distração para não voar para pensamentos intrusivos que lhe tomavam
a cabeça. Foi onde eu encontrei pela primeira vez, ela havia dito. Meu pai é
falsário. Então lembrou-se da foto de uma pequena Kaia sorridente com o
pai e não podia deixar de tentar recriar a cena. Como deve ter sido
doloroso para ela descobrir aquelas coisas a ponto de Kiwi ter deixado tudo
para trás.

O armário abriu, como um antigo baú de tesouro, que poderia revelar


mistérios de civilizações antigas e montes de moedas de ouro. Kaia
distanciou-se das portas de madeira, revelando um interior espaçoso e
tomado por uma única coisa: nada. O vazio. O eco. Estava totalmente
limpo, nenhum mapa à vista. Riva engoliu em seco o desgosto que lhe subiu
à garganta.

— Bom que o plano já começou bem.

Mas Nalu sabia que não era só aquilo. Soube na hora em que Kiwi
mirou os olhos nele.

— Não consegue perceber nada?

O garoto da cidade voltou-se para o móvel ancestral, confuso. Era


uma enorme caixa de quatro paredes grossas, não havia como... Espera. Foi
quando algo diferente lhe chamou atenção. Havia uma marca bem fraca no
tampo inferior, como se algum objeto já estivera ali antes e tinha sido
arrancado às pressas. Um pequeno arranhão, talvez uma marca de unha.
Nalu levou as mãos até o fundo do armário, posicionando os dedos
firmemente. Não precisou se esforçar muito para perceber que o tampo era
removível.

Um fundo falso.

Não pôde deixar de sorrir para Kaia.


— Nem tudo é o que parece ser — repetiu as palavras que tanto tinha
ouvido nos últimos meses.

Então puxaram o tampo, esperando que seus rostos fossem


iluminados de dourado ou pelo azul reluzente de joias preciosas ou que os
narizes fossem alvo de poeira ancestral de um mapa de séculos atrás, mas...

— O quê? — Kiwi quase indagou alto demais. — Mas...

Também estava vazio. Riva deixou a expressão murchar.

— Droga.

— Estava aqui. O mapa e a chave para o porão — Kiwi arregalou os


olhos, sentindo a ficha cair. — Ah, não...

Nalu devolveu o tampo, deixando as coisas exatamente como


estavam antes de chegarem. Precisavam ser invisíveis, certo?

— O que tem no porão?

— Todos os artefatos que ele roubou dos naufrágios. Foi assim que
eu descobri que ele era falsário. Ele guarda quase tudo lá a sete chaves...

Então foi assim, pensou Nalu.

— E você sabe onde está a chave? — perguntou Riva.

Ouvindo um estrondo vindo do andar inferior, os garotos trocaram


olhares. Era para o pai de Kiwi estar com o resto dos garotos no portão de
entrada. Algo estava errado.
Sem hesitar, Kaia correu para a beirada da escada e jogou o corpo
contra o corrimão para enxergar. Pedregulho e Lince estavam adentrando o
escritório de Phillip Angelos. Pedro levou a mão direita ao pescoço
informando de vez que o plano tinha ido por água abaixo.

Nalu ouviu roncos altos e foi só então que percebeu que havia um
enorme cão branco de orelhas pontudas, vestindo uma grossa coleira
vermelha no pescoço, dormindo esparramado depois do último degrau. O
famoso Sargento.

— Droga, droga, droga... — Kiwi estava tentando não surtar. — O


que fazemos?

— Você é o Capitão, inventa alguma coisa — Nalu sussurrou para


Riva, que arregalou os olhos, indignado.

— Ela é a dona da casa!

Kiwi fez um gesto rápido para os dois calarem a boca. Sargento


estava acordando e espreguiçando as longas pernas musculosas de Dogo
Argentino. Nalu com certeza não queria saber de ter que lutar com aquele
cara.

— Abortar plano? — perguntou tão baixo que poderia ter sido em sua
própria cabeça, afinal Kiwi não parecia ter ouvido, mas estava determinada.
Queria pelo menos causar um pouco mais de caos naquela casa antes de
partir.

O garoto da praia pareceu captar a ideia e aquele sorriso de criança


diabólica surgiu no canto da boca de Riva.

—Bom, pra isso eu sou parceiro.


Os três estavam prestes a subir os degraus para o segundo andar
novamente, quando ouviram a voz de Pedregulho um pouco mais alta e
estridente do que o normal. Quase como se quisesse chamar atenção.

— Senhor Angelos senhor, onde fica o banheiro?

— Tem um virando à esquerda no corredor, mas melhor usar o do


escritório. Meu cachorro pode encrencar com você — respondeu o
mergulhador em um tom tão normal que Nalu estranhou. Tinha imaginado
uma voz monstruosa saindo daquele homem.

Pedregulho concordou e bateu a porta do banheiro, também alto


demais. Será que estariam tentando dizer alguma coisa? Um longo silêncio
se estendeu após aquilo, até o senhor Angelos limpar a garganta.

— Isso é para um estudo em grupo, você disse?

— Ah... hã... — Lince gaguejou. — Isso. Estamos estudando sobre a


história da ilha e... hã... a professora mandou que entrevistássemos alguém
que fosse influente na área.

— Quase que o outro grupo roubou nossa ideia — Pedregulho entrou


na onda, ao som de uma descarga no fundo. Fechou a porta e voltou para a
conversa. Ele nem lavou as mãos. — Mas fomos mais rápidos.

Kiwi não sabia de onde aqueles miolo-moles tinham conseguido criar


uma história tão convincente como aquela, mas pelo jeito que seu pai estava
envolvido, parecia que tinha funcionado.

— Entendi. Vocês têm interesse em arqueologia subaquática?


— Muita! Muita mesmo, senhor. — Lince concordou tão
entusiasmado que se assustou.

O senhor Angelos soltou uma risada.

— Os maiores museus do mundo estão lá embaixo, por isso virei


mergulhador.

Kiwi sentiu vontade de vomitar ao ouvir aquela ladainha. Deviam ver


o museu que tem embaixo desta casa então , mas algo nas próximas
palavras de Pedro a fizeram voltar para a realidade.

— É um belo MAPA que você tem PENDURADO NA PAREDE.

Sutil. Muito sutil. Riva e Nalu trocaram olhares arregalados. Kiwi


engoliu em seco.

— Por favor, só... não grite — Senhor Angelos acrescentou, com a


voz calmamente controlada. — Meu cachorro pode entender errado.

Nalu cutucou Riva, que cutucou Kiwi, um tentando chamar a atenção


do outro como se todos ali já não tivessem ouvido o recado. Está no
escritório dele!

Senhor Angelos pareceu entrar na defensiva, apesar de não largar de


mão o tom de voz orgulhoso que usava durante toda a sua vida.

— É uma relíquia indiana. Mantenho perto da minha mesa para fugir


do bloqueio criativo.

— Legal, legal — concordou Pedregulho, perdendo o interesse em


um segundo, mas Nalu soube que ele tinha um plano. — O senhor se
importa? Precisamos ir. Pode abrir o portão para a gente?

— Claro, foi uma ótima visita. Espero ter ajudado.

Lince surgiu de volta no corredor, seguido do resto do grupo.

— Ajudou sim... — seu olhar encontrou com o dos garotos na


escada, desesperando-se por um instante. Desviou rapidamente e limpou a
garganta. — Senhor.

Phillip Angelos girou a chave na porta e direcionou-se para o


jardim, acompanhando os garotos fãs de arqueologia subaquática até o
portão de saída. Então sumiram de vista. Kiwi calculou. Eles tinham em
torno de um minuto, dois talvez que Pedregulho e Lince conseguissem o
segurar por mais um pouco. A área estava limpa. O escritório ficava a
poucos passos dali e, bem, momentos drásticos pedem por medidas
drásticas. Riva e Nalu se entreolharam e desceram escada abaixo,
apressados, um por cima do outro. Não demorou para que Sargento abrisse
os olhos em alerta com a confusão e desatasse a latir freneticamente.

Kiwi correu para cima do Dogo Argentino.

— Vão, vão, vão! Eu cuido dele.

Os garotos armaram uma corrida para o escritório, onde a


primeira coisa em que seus olhos bateram foi em um mapa gigantesco preso
na parede. Era desenhado em um pergaminho amarelado, com a figura da
ilha estampada por toda sua extensão. Estava ali, bem em sua frente...
emoldurado com um pedaço enorme de vidro em sua frente.

Enquanto os manés olhavam embasbacados para a relíquia


secular tentando desvendar como carregariam algo daquele tamanho em
uma fuga desesperada, Kiwi tentava acalmar Sargento com carinhos na
barriga e atrás das orelhas como ela sabia que ele gostava.

— Oi, sou eu, lembra de mim? Ein, garoto? Quem é meu


garoto?

Mas o nome dele era Sargento e, não importava o quanto ele


adorava um carinho na barriga, se havia intrusos dentro de casa, ele não
parava de latir até afugentar todos eles.

Riva posicionou-se de um lado, mandando Nalu ir para o outro.


Respiraram fundo e aprontaram-se para retirar aquela coisa gigantesca da
parede. O garoto da cidade respirou profundamente. Ele não confiava nos
próprios músculos, mas não tinha tempo para pensar naquilo.

— No três — indicou Nalu, fazendo contato visual com Riva.


— Um... dois...

Riva puxou o quadro, o peso caindo inteiro em cima dele.

— Era no três! — Nalu gritou, talvez alto demais. Então


agarrou a outra ponta, retirando o quadro do prego da parede. Riva tentava
se ajeitar, mas aqueles joelhos bambos não enganavam ninguém. Nenhum
dos dois ia à academia.

— Você pode segurar direito?

— E você podia se esforçar um pouco mais — um baque. Nalu


fez uma careta. — Tudo bem, eu guio você.

Riva tinha ficado com a parte difícil, estava de costas para a


porta e o escritório era cheio de quinquilharias e objetos pontiagudos
demais. Nalu contorcia o pescoço para enxergar algo em sua frente,
tentando não pensar na tortura que seus dedos estavam passando naquele
momento.

— Não olha pra trás — ordenou. — Mais pra esquerda... mais,


mais, mais...

O garoto da ilha obedecia, desviando dos obstáculos em


direção à saída e ao som alto dos latidos de Sargento. Ele torcia para que
Kiwi fosse mais forte que eles para segurar um cachorro daquele tamanho.

— Um pouco mais e... não! — gritou Nalu. — Cuidado com a


mesa!

O vidro bateu na ponta da mesa, estilhaçando-se. Se o monte


de gritos dos garotos ainda não tinha chamado a atenção de Phillip Angelos,
aquilo com certeza tinha. Sargento enlouqueceu. Kiwi prendeu uma mão em
sua coleira e a outra no corrimão, mas aquele cachorro era forte demais. E
latia, latia sem parar, furiosamente. A moldura desprendeu-se do quadro e
caiu com a ponta em cima do pé descalço de Riva, como uma navalha. Nalu
viu a lágrima que escorreu de seu olho cair em câmera lenta e correu para
lhe tapar a boca.

Certamente Kiwi estava querendo a cabeça dos dois naquele


momento.

Mas há algo surpreendente em desviar dos planos e pisar em


cacos de vidro. Às vezes, podemos descobrir algo muito além da nossa
imaginação. Enquanto Riva chorava em silêncio, segurando o pé como um
bebê birrento, Nalu estreitou os olhos. Havia algo por trás daquele enorme
pergaminho.

Um outro mapa. Um ainda mais antigo, encardido e intrigante


do que o primeiro. Nalu retirou-o do meio da bagunça e analisou-o. Era
bem menor, com a mesma ilha desenhada, mas com escrituras em tinta e
manchas de água por todo lugar. Se Phillip Angelos havia o resgatado de
um cofre submerso, tinha que ser aquela versão.

— Ei, Sargento! — a voz do mergulhador soou de algum lugar


próximo. Bem próximo. Um próximo apenas separado pela porta da frente.

Nalu arregalou os olhos, enfiou o mapa no bolso e correu escada


acima, com Riva logo atrás. Sargento tentou agarrar a canela dos garotos,
mas Kiwi prendeu seu focinho com as mãos. Aquela garota era feroz.

— No tempo de vocês! — ela vociferou.

— Você vai ficar bem? — perguntou Nalu.

Seus olhos verdes pediam a ele que ficasse, mas Kiwi apenas rosnou
em resposta:

— Vão AGORA!

Nalu desviou de uma mordida, deixando seu boné voar da cabeça


direto para o primeiro andar. Mas não havia mais tempo de resgatá-lo.
Phillip Angelos havia aberto a porta e adentrado o corredor. Sua voz tentava
acalmar Sargento, mas quando seus olhos lentamente rolaram para cima, ele
calou-se instantaneamente.

Ao lado de seu cachorro, ela parecia como uma miragem ou alguém


que ele conhecera no passado através de um álbum de fotos. Kiwi soltou
Sargento que correu escadas acima, mas ela não esboçou sentimento algum.
Reação alguma. Enquanto seu pai tinha uma nostalgia desenhada sobre sua
face, Kaia Angelos simplesmente levantou, ficando de pé no terceiro
degrau.

— Kaia — Phillip suspirou um sorriso. — Você está igualzinha a ela.


Igualzinha à mulher que atravessou um oceano inteiro para fugir
de você? , pensou Kiwi, sentindo o coração apertar. Retirou a mão direita do
bolso e estendeu-a no ar, o dedo do meio dando o resto da mensagem.

Então subiu para o segundo andar, desaparecendo mais uma


vez de sua vida.

Demorou alguns instantes para Phillip Angelos se recompor do


reencontro inesperado. Voltou sua atenção para um boné cor de rosa que
nunca tinha visto na vida e foi quando percebeu um rastro de cacos de vidro
vindo de seu escritório.

— Mas o que... — então seus olhos encontraram a cena do


crime.

Um quadro faltando na parede. Seu coração parou. Correu para o


telefone mais próximo e discou o número da polícia. Um bipe, dois...

— Alô? Eu gostaria de prestar queixa contra invasão de propriedade


privada... sim... a suspeita se chama Kaia Angelos.
Capítulo Doze

Melodia, Alegria e Barulho

Now Playing: Dias de Luta, Dias de Glória

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

— AUAUAUUUUUUUUU!

Riva uivava com a cabeça para fora da janela, enquanto Pedregulho e


Nalu pulavam nos bancos, cabelos ao vento, ouvindo rock no som mais alto
que seus ouvidos aguentavam. Depois de muito implorar, Riva conseguiu
que Kiwi o deixasse abrir o teto solar e lá se foram os garotos abrir os
braços no ar como se estivessem em algum filme coming of age . Lince ria
por entre eles, espremido no meio dos bancos, feliz por finalmente ter
conseguido juntar todos novamente.

E lá se foram, dirigindo a kombi multicolor pela rua beira-mar.

Pedregulho levantou a mão direita, pendurando-se no banco da


frente.

— Garotos do mar não deixam monstros e pais os impedir!

Riva amontoou-se em cima do amigo.


— Juramos pela camaradagem e pelo perigo...

— ...nunca expor o quartel general! — completou Lince, abobado de


tão feliz.

Nalu, que estava de novo monopolizando o banco da frente, virou-se


para trás.

— Seremos bravos e destemidos e...

— BRAVO BRAVO BRAVO! — todos gritaram nos ouvidos de


Kiwi, caindo na gargalhada. A garota apenas revirou os olhos e aumentou
ainda mais o som da música.

O garoto da cidade sentia as bochechas doendo, o estômago


formigando e uma sensação gostosa e eletrizante demais tomando conta de
seu corpo inteiro. Quando foi a última vez que se sentiu tão vivo daquele
jeito?

Depois de alguns minutos, a ficha caiu para Lince.

— Eu não acredito que a gente fez isso — o garoto suricato fechou a


expressão, aterrorizado. Pedregulho deu-lhe um cascudo nos cabelos.

— Cês não tão entendendo a enrascada que vocês nos colocaram,


mané — e soltou uma daquelas risadas estridentes em uma frequência que
só ele não conseguia ouvir. — Quando eu vi aquele quadro na parede...

— Tinha que ter visto a cara do Riva quando a gente achou que plano
tinha ido por água abaixo — Nalu jogou as costas no assento.
— Ué — Riva atirou-se em cima dos garotos em um sanduíche
humano para chegar até as costas de Kiwi. — Sua namorada quase me
infartou quando abriu aquele armário sem nada!

Kaia lançou um olhar relâmpago na direção de Nalu. Ela estava


quieta demais.

— O velho não desconfiou de nada, eu tentei fugir para o corredor


para avisar vocês... — Pedregulho lançou-se no pescoço de Lince,
abraçando-o do jeito brutal que era sua linguagem do amor. — Mas o menor
aqui deu conta do serviço.

— Que bom — Riva bufou. — Porque meu parceiro no crime tem a


merda de uma mão frouxa desde criança e quase arrancou meu pé fora.

Nalu deu-lhe um empurrão na testa.

— De nada, parceiro, se não a gente estava até agora tentando subir


aquela escada — e tirou um papel dobrado de dentro do bolso, erguendo-o
no ar. — E eis... o verdadeiro mapa para a localização do butim do Mary
Dear.

Os olhos azuis de Riva brilharam só de imaginar. Aconchegou-se,


como se fosse tirar uma soneca, mesmo que estivesse com a energia nas
alturas.

— Uns milhões de moedas de ouro viriam a calhar... — sonhou alto.


— Vou comprar um navio enorme e velejar até Tulum. e usar o resto do
troco para ver uma lancha de presente pro Pedregulho aposentar o Optimist
dele.

Pedregulho fez uma careta, indignado.


— Não falem mal da Nanda!

E mais uma vez, rolaram de rir nos bancos de trás. Nalu esboçou um
sorriso e olhou de relance para Kaia. Ela estava sorridente também, mas
aquele silêncio o preocupava. Parece que visitar sua antiga casa tinha aberto
algumas cicatrizes.

Kaia, você está igualzinha a ela. Aquelas palavras ecoavam em loop


na cabeça da garota dos cabelos de maresia, aqueles olhos, aquele rosto que
ela tinha odiado por tanto tempo, que ela tinha odiado amar e se odiado por
isso. Aquele homem em que ela tinha confiado sua vida e que tinha acabado
com tudo em tão poucos instantes. Como ele ousava comparar ela à sua
mãe?

Foi quando Nalu percebeu aquela pequena lágrima formando-se no


canto de um de seus olhos tão verdes como sempre. Seus lábios descolaram
um do outro e ele não pôde entender o que ela estava falando, mas teve
quase certeza no fim. Os dentes dela rangeram no final da palavra.

Idiota.

Como a ilha não era muito grande, em poucos minutos, os garotos


chegaram ao porto. Kiwi estacionou e um bando de moleques seguiu Riva
em direção ao deque onde seu querido barco a motor estava ancorado. Os
céus estavam limpos naquela manhã e o tempo ótimo para navegar. Mesmo
assim, Kiwi sentia uma estranheza no ar. Como se algo muito ruim estivesse
à espreita.

Riva saltou para dentro do M.S. Nereu, fazendo o convés balançar.


Parecia ter doze anos outra vez.
— Senhores, rumo ao primeiro dia do resto das suas vidas! —
anunciou, imitando os grandes capitães. — Seremos podres de ricos e a ilha
vai ser rebatizada em nossa homenagem.

Apontou para o garoto suricato, que encolheu os ombros. Segurava a


filmadora antiga em mãos, que pareceu encolher junto com ele.

— Lince será nosso navegador. Fique de olho nos céus e no fluxo da


maré.

Apontou para Pedro.

— Pedregulho será nosso trimmer. Você entende mais do que esse


bando de mané sobre velas e vai controlar para que a tensão entre elas esteja
adequada à situação do vento.

Voltou-se para a garota dos cabelos de maresia.

— Kiwi será nossa tática. Você fará as decisões estratégicas da


equipe, caso nos encontremos em extremo perigo. Conto com você.

Apontou para Nalu, lançando aquele olhar aventureiro e contagiante.


Aquele mesmo olhar que tinha feito aquelas crianças anos atrás viverem
como se não houvesse um amanhã.

— Mano Samurai será o timoneiro. Não desgrude do leme. E eu... —


suspirou, por fim. — Serei o capitão.

Todos entreolharam-se com a adrenalina correndo por entre as veias.


Aquela inquietude, aquela energia percorrendo seus músculos, aquela
vontade de gritar aos céus. Riva içou a bandeira.
— Prontos para uma grande aventura?

Lince subiu na borda do navio, destemido. Encheu os pulmões e


bateu continência.

— AY, CAPITÃO!

E lá se foram, Kiwi e os Garotos Perdidos, em direção ao mar aberto.

Ver a ilha de fora em um dia ensolarado era como contemplar algum


tipo de santuário místico. Um enorme recorte de Mata Atlântica em meio ao
oceano com tantos segredos escondidos. Era linda demais. Os garotos
seguiam seus papéis, Pedregulho ajustava as velas enquanto Kiwi e Riva
cochichavam algo um no ouvido do outro, parecendo dois pivetes travessos.

— Virar a bombordo, timoneiro! — ordenou Capitão.

— O quê?

— Nossa tática disse que é o mais sensato a se fazer.

E os dois gargalhavam baixinho. Pedregulho mostrou a Nalu que


bombordo significava esquerda e logo ele entendeu qual era o plano
daqueles malditos. O M.S. Nereu chegou perto da Ilha dos Guaiamus e da
casa de sua família, que em breve seria entregue à prefeitura. Pedregulho
subiu na borda do barco, com os pés grandes demais tentando se equilibrar
e gritou:

— Bom-dia, senhora Castelo!

— Cala a boca! — Nalu deu-lhe um tapa no joelho.


Os garotos riram, permanecendo o percurso ao lado da ilhazinha. A
água estava mais azul do que nunca, de um transparente brilhante que
refletia a cor do céu como um enorme espelho. Kiwi apoiou-se na borda do
barco de um jeito bem mais gracioso que Pedregulho tinha feito instantes
atrás. Tirou a blusa por cima da cabeça, ficando apenas de maiô, soltou os
cabelos e mergulhou, desaparecendo de vista.

Lince demorou uns instantes para reagir.

— Homem ao... quer dizer... hã... mulher ao mar?

Kiwi emergiu, voltando para a superfície e jogando os cabelos para


trás como uma sereia deveria fazer. Então segurou na borda do M.S. Nereu,
estreitando os olhos de tanto sorrir. Nalu sentiu o coração palpitar. Ele não
conseguia desviar o olhar daquela garota, da sua pele reluzente, das
sardinhas e do cabelo que boiava em cima de seus ombros e fazia desenhos
em sua testa. Não parava de pensar como em alguns meses atrás não
imaginaria que estaria se divertindo tanto daquele jeito ou que estivesse
com a respiração falhando perto de uma garota que mexia tanto com ele.
Porque só de estar perto dela, Nalu sentia que era capaz de fazer qualquer
coisa.

Inclinou-se em sua direção, deixando os cabelos caírem em frente ao


rosto.

— Ué, você pode sair por aí mostrando sua identidade secreta,


mulher gata?

Kaia deu de ombros, virando de barriga para cima e batendo as


pernas no ar.

— O que, não gosta dos meus pés? — e chutou água nos garotos,
dando uma risada. Então aproximou-se do ouvido de Nalu como espíritos
da água enfeitiçavam piratas nas antigas histórias. — Relaxa... sereias só
aparecem à noite.

O garoto da cidade sentiu a garota da ilha tocar-lhe o rosto, prestes a


beijá-lo, mas Pedregulho não parecia ser o maior fã de romances. Empurrou
o colega para fora do barco.

— Moscou, dançou!

Desavisado, Nalu caiu de cabeça no mar, suas roupas sendo puxadas


para a superfície por aquela água gelada. Queria matar Pedro, estava furioso
e provavelmente se vingaria mais tarde. Mas quando abriu os olhos, foi
como magia. Havia outro mundo lá embaixo, algo que ele desconhecia. A
paisagem tornou-se um espetáculo de cores deslumbrantes. Raios de luz
penetravam a água e peixes de todas as formas, cores e tamanhos nadavam
ao seu redor. Suas escamas brilhavam como pedras preciosas. Um cardume
passou por dentro das roupas de Nalu, deixando um rastro arco-íris em seu
caminho.

Kiwi surgiu em sua frente, imitando o garoto e enchendo as


bochechas de ar. Então soltou uma gargalhada, fazendo inúmeras bolhas
subirem para a superfície junto com eles. Nalu respirou fundo ao ir de
encontro com o ar e Kiwi não parava de dar gargalhadas. Ela estava
deslumbrante. Nalu sentiu as bochechas esquentarem. Ele estava mesmo...

...se apaixonando por ela?

Lançou um jato de água certeiro na cara da garota.

— Esquisita.

— Quer ver uma coisa muito legal?


E Kiwi mergulhou, sem nem mesmo puxar ar para os pulmões antes.
Nalu a seguiu, indo de encontro com aquele universo subaquático mais uma
vez. A garota segurou sua mão e ele deixou que ela o guiasse. Aquele era o
mundo dela e ele estava doido para conhecer um pouco mais.

Tartarugas e arraias dançavam perto da superfície com os raios de sol,


criando padrões hipnotizantes. De repente, toda a sua raiva, toda a
ansiedade, tornou-se em completa calma, uma paz profunda. Estava ali de
verdade, estava vivendo o momento. Estava sentindo o frio penetrar suas
entranhas, mas também estava diante de uma das coisas mais lindas que já
havia visto em toda a sua vida e foi, naquele momento, que se questionou
porque nunca tinha feito aquilo antes. Morava naquela ilha fazia meses e
nunca imaginara o que estava bem debaixo do seu nariz.

Outro cardume curioso passou por Nalu, de pequenos peixes


brincalhões, e foi quando percebeu que Kiwi estava o puxando mais para o
fundo, onde haviam estátuas submersas, um museu inteiro ali, debaixo
d’água. Kiwi sentou-se e fingiu tocar uma música em um piano, enquanto
Nalu levou o maior susto com a estátua de um Poseidon nada amigável.
Que jeito estranho de chamar os turistas...

A garota dos cabelos de maresia riu, aproximando-se de repente.


Então tocou a pontinha do nariz com a de Nalu, sentindo aquela energia
envolver seus corpos por inteiro. Um centímetro a mais, dois centímetros a
mais... pressionou seus lábios contra os dele, tão leve quanto uma brisa de
verão.

Foi naquele dia que Nalu pensou que iria morrer.

Velejar pode ser excitante para alguns e amedrontador para outros,


mas nenhum homem se mantém com dignidade quando se entra em alto
mar. Tudo mudou quando passaram o farol e saíram do canal. Riva havia
avisado, mas nada prepararia os garotos para as ondas ferozes que batiam
na proa ou como o barco erguia-se para o céu e caíam com força de volta no
mar, como voava água salgada em seus rostos ou como era extremamente
frio. Lince já tinha desistido de documentar tudo em sua câmera e segurava-
se no mastro para não passar mal.

A ilha de Alcatrazes os observava ao longe, envolta por uma


nuvem negra, como uma fortaleza ou um castelo misterioso boiando no
meio do oceano. Enquanto Nalu questionava-se sobre a vida ou porque
tinha inventado aquela história toda, Kaia esperava ansiosamente que cada
onda ao longe fosse um golfinho. Talvez o garoto aprendesse que, apesar de
seu nome significar “onda”, ele não tinha uma boa relação com o mar. Ou
talvez Riva fosse um péssimo capitão. Afinal, porque ele precisava de velas
em um barco a motor? Foi quando o garoto começou a se questionar se
Riva sabia o que estava fazendo.

Depois de quase meia hora, Capitão apontou para um lugar


entre as rochas, onde havia uma passagem que parecia uma porta direto
para mundo inferior. Um buraco sombrio. O Buraco do Cação. Riva deu
tapinhas no ombro de Lince.

— E aí? Alguém se sentindo corajoso hoje? — virou-se para


Kiwi. — Tática?

— Se os garotos não sujarem as calças...

Lince engoliu saliva. Definitivamente não estava passando


bem.

— A maré não está das melhores...

— Timoneiro? — perguntou Riva.


Nalu respirou fundo, virando o leme a bombordo mais uma
vez.

— Tudo certo, Capitão.

O M.S. Nereu virou de encontro com as rochas. O frio da


caverna soprava como a presença de espíritos à espreita. Riva sorriu.

— Vejo vocês do outro lado.

O canal era estreito. À medida que o barco se aproximava, um misto


de emoções tomava conta dos corações a bordo. A água agitava-se ao redor
à medida que a correnteza puxava, as profundezas gritando silenciosamente
embaixo deles e as formações rochosas ecoando o mistério ao redor. O sol
parou de os alcançar e a visão tornou-se limitada, mas a sensação era
espetacular, como atravessar por um portal. As rochas surgiram dos lados
da embarcação e agora tudo estava nas mãos de Riva. Nalu segurou a mão
de Kiwi.

Fora adrenalina pura. Uma sensação de conexão com a natureza e


com o oculto, e quando saíram do outro lado, o sol voltou a bater em seus
rostos como a esperança de um novo amanhã. Os garotos gritaram, sentindo
o triunfo nas veias.

Riva apoiou-se na proa e apontou para algum ponto em frente.

— Já dá pra ver a Pedra do Índio! É a guardiã da nossa praia —


explicou. — ela cuida de todo mundo que entra e sai.

Passaram pela enorme Pedra do Índio e foi quando avistaram aquela


praia extraordinária surgir em frente a seus olhos.
A areia branca e brilhante, o mar turquesa indo de encontro com um
rio que cercava um dos lados e várias grutas que cercavam o outro. Mais ao
longe era possível ver uma cachoeira por entre as árvores. Era quase
impossível de se imaginar que existia um paraíso como aquele na mesma
cidade em que Nalu estava vivendo. Tão longe, mas tão perto. Riva
animou-se de prontidão, içou a âncora e bateu continência para alguém que
se aproximava.

— Lá vem nossa salva-vidas.

Pilotando um barco um pouco menor e talvez mais potente, uma


garota de cabelos escuros e curtos aproximou-se do M.S. Nereu. Era muito
parecida com Riva, sorridente e de olhos azuis. Diminuiu a velocidade e
encostou os barcos.

— Bem-vindos ao paraíso! — anunciou. — Me digam, o Riva deu


muito trabalho?

— Qual foi... — Riva revirou os olhos. — Nadi, esses são os Garotos


Perdidos. Garotos Perdidos, essa é a melhor velejadora que eu conheço.

— Guarda suas cantadas para você que eu faço meu trabalho —


respondeu Nadi, animada. — Vamos?

Os garotos trocaram de barco e a melhor velejadora do Bonete levou-


os até a praia, acelerando cada vez, até o casco encalhar na areia. Lince foi
jogado para trás, segurando a boca para não vomitar.

— Eu tô bem, eu tô bem...

Riva foi o primeiro a pular de encontro com a areia.


— Bem-vindos à minha terra! A Praia do Bonete.

Terra-firme, enfim.

Kiwi e o resto dos garotos o seguiram. Era estranha a sensação de


não ter mais os joelhos e o resto do corpo fazendo esforço para ficar de pé.
Era estranho caminhar reto sem cambalear. Mas qualquer que fosse a
sensação de enjoo, passou instantaneamente quando Nalu deparou-se com
aquele lugar. A Praia do Bonete era uma joia escondida, um refúgio
intocado com uma atmosfera radiante e selvagem. Havia um restaurante
logo na beira da praia e então canoas e casas de madeira mais para trás. Por
entre as árvores e por toda a extensão de areia, vira-latas corriam, brincando
de pique-pega ou simplesmente rolando no chão. A comunidade de
moradores continuava ao longo da extensão do rio.

Pedregulho ajudou Lince a caminhar. Ele ainda estava se


recuperando, então Pedro fez questão de pegar a câmera dentro de sua
mochila e documentar no momento. Nalu e Kiwi nem perceberam quando
ele os gravou, trombando um no outro e trocando olhares.

Riva e Nadi conversavam não muito longe dali. Tinham feito mais
uma viagem ao M.S. Nereu para carregar as cargas e levar o barco para o
rio.

— Tenho que entregar as compras pras senhorinhas antes de ir —


Riva tirou algumas sacolas de dentro do barco. — Ah, Nadi, seu tio está?

— Ele está lá em casa, preparando o almoço — a garota cruzou


os braços chamando o resto do pessoal. — O Riva foi expulso de lá no
último domingo, mas podem vir se quiserem.

O garoto da ilha apoiou a cabeça em seu ombro, o que fazia ele


ficar completamente torto já que Nadi era quase metade do seu tamanho.
— Você me ama que eu sei.

Nadi empurrou-o para longe e indicou para os garotos entrarem


novamente no barco. A entrada do rio era serena, com leves ondas que
vinham do mar. Quanto mais andavam, mais Nalu podia ver a tranquilidade
das paisagens, a água de margens verdes refletindo o santuário ecológico ao
seu redor, que criavam um túnel de árvores tropicais acima do rio. Garças,
Martins-Pescadores e outras aves costeiras cantavam, deslizando pelas
margens do rio em busca de comida. Lince quase foi à loucura tentando
gravar tudo. Em algumas árvores, se olhassem bem, poderiam ver macacos
travessos pendurando-se nos galhos.

O rio bifurcou-se e Nadi virou à esquerda, onde havia uma casa


de madeira construída nas sombras de algumas palmeiras. Aproximou-se
com o barco e pulou com os pés descalços para cima do deque. Foi quando
Nalu percebeu que seus pés eram cheios de picadas, assim como os de Riva.
Amarrou o barco e abanou para um senhor pescador não muito longe dali.

— Oi, tio Kadu! Temos visitas!

Capítulo Treze

Um Dia na Praia A Gente Jurou Ficar Junto Para Sempre


Now Playing: Um Dia A Gente Se Encontra

(Charlie Brown Jr. La Família 013)

O sol filtrava-se pelas árvores antigas, criando sombras


dançantes no chão de terra batida. O zumbido da vida selvagem ao redor
cercava-os e Nalu começou a sentir a presença dos malditos borrachudos.
Tio Kadu empurrou a porta de entrada, recebendo-os com um ambiente
acolhedor e convidativo. A casa não era muito grande, mas a aparência
rústica era aconchegante de certo modo. O chão de madeira rangia sob os
pés dos garotos e o cheiro de madeira envelhecida pela maresia enchia o ar.
As janelas abertas permitiam a entrada da brisa fresca do oceano, que se
misturava com o aroma tentador que vinha da cozinha.

A decoração era simples, mas charmosa. Prateleiras de madeira


exibiam conchas e garrafas antigas e bem no centro da sala havia uma
grande mesa de jantar, onde acomodava no mínimo umas dez pessoas
facilmente, apesar de ter apenas dois pratos de cerâmica postos. O cheiro de
peixe grelhado e temperos frescos estava deixando os garotos com água na
boca.

Tio Kadu fungou o nariz.

— Riva, que surpresa — disse rabugento, como quem quisesse


na verdade dizer “que audácia sua aparecer aqui de novo, pivete”. — Nadi
falou que você andava mais pela cidade do que por aqui ultimamente.

— Eu vou e volto — respondeu Riva com aquele ar


aventureiro. — Tenho que respeitar as vontades do mar.
— Você às vezes me lembra seu pai, sabia? — Tio Kadu pegou
um pano de prato e cuspiu uma risada. — Com essa energia jovem e
imbatível de garoto, como se nada no mundo pudesse alcançar vocês.

Riva fechou a expressão, mirando os olhos em direção ao solo.

— É... — suspirou. — É melhor que a trilha.

Nalu sentiu o peso no ar e talvez o resto dos garotos também.


Ele não sabia muito sobre o que havia acontecido em 2008, mas quando
soube da morte da mãe de seu melhor amigo, já estava a quilômetros de
distância. Nunca tinha parado para pensar sobre o assunto, mas Riva não
tinha mais ninguém.

Tio Kadu limpou a garganta, tentando esconder a gafe que


cometeu.

— Desculpem os modos. Sentem-se e peguem os pratos, a


comida já vai ficar pronta — lançou os olhos repreendedores para Nadi. —
Eu não estava esperando visitas.

O almoço estendeu-se em um misto de conversas engraçadas e


silêncios arrebatadores, mas o peixe estava uma delícia. Pedregulho comia
de boca aberta, rindo escandalosamente ao lado de Lince.

— Foi aí que pensei que o menor ia vomitar no barco.

— Eu não ia vomitar — o garoto suricato encolheu-se. — Eu


só... tenho um estômago imprevisível.

E todos caíram na gargalhada. Se tinha algo em que Lince era


bom, era ser engraçado involuntariamente. Ele não queria ser, mas
simplesmente acontecia.

Nadi estreitou os olhos azuis na direção de Nalu.

— Ei, eu lembro de você?

Nalu estreitou os olhos pretos em resposta, ficando levemente


sem graça.

— Desculpe, eu não lembro de você. A última vez que pisei na


ilha eu tinha doze anos.

— Tá tudo bem, não teria como lembrar — Nadi riu. — Eu era


mais nova. Mas lembro de ver vocês garotos brincando e eu ficava brava
com o Riva porque ele não deixava eu participar.

Riva levantou as mãos no ar.

— Desculpa, garotas não são permitidas no clube.

Kiwi deu uma cotovelada em Nadi.

— Acredite, só vieram atrás de mim porque eu tinha uma


kombi.

A garota do Bonete riu e continuou a analisar Nalu, como se ao


fazer isso, pudesse acessar memórias há tanto tempo esquecidas.

— Você estava sempre com um menino mais velho, muito


parecido com você, mas com o cabelo um pouco mais escuro...
— Ah... é... — Nalu coçou o nariz. — Era meu irmão.

Irmão? Kiwi sentiu uma pontada no peito. Nalu também tinha


seus segredos então. Os moleques se calaram instantaneamente. Não havia
sido falado nada sobre o verão de 2008 desde o reencontro dos Garotos
Perdidos, mas era óbvio, tanto para Riva quanto para Nalu, que algo
estranho ainda pairava sobre suas cabeças. Algo que eles não queriam que
viesse à tona de jeito algum.

Riva limpou a garganta.

— Tio Kadu, conta pra nós. Eles estão doidos pra saber sobre a
história do Thomas Cavendish na ilha.

— Uma história velha dessas? — tio Kadu franziu o cenho. —


Tem umas lendas e contos que passam de geração para geração. Meu pai se
orgulhava de ser descendente de um pirata, mas hoje em dia essas coisas se
perdem com o tempo.

Nadi tomou a palavra, entusiasmada.

— Não sabemos muito sobre o Bonete, mas a Baía de


Castelhanos costumava ser uma base para uma organização secreta de
piratas que saqueavam todos os navios que passavam pela área. Por isso os
boatos sobre tesouros e tudo o mais.

— Vocês sabem algo sobre o butim do Mary Dear? — Nalu


perguntou.

Tio Kadu bebericou de seu copo, suspirando em seguida. De


tempos em tempos sempre aparecia um curioso no Bonete para trazer
aquela história de volta dos mortos.
— A grande fortuna de Cavendish... existem várias teorias do
que pode ser esse tesouro. Uns dizem que é um enorme saque das igrejas
peruanas, cheio de joias e documentos valiosos, outros dizem que é o
túmulo de algum imperador inca.

— O que o senhor acha? — perguntou Riva, intrigado.

Tio Kadu levantou da mesa, levando seu prato para a pia.

— Eu não sei, garotos. Algo de extremo sigilo com certeza.

Nadi aprontou-se para ajudar a recolher a louça.

— Diziam que Alexandre Dumas se inspirou na história para


escrever um livro.

Kiwi fez uma careta. Ela lembrava de um boato como aquele.

— O Conde de Monte Cristo?

— Isso é só uma lenda, mas... existia esse inglês, Young —


interrompeu tio Kadu — que dizia ter recebido de um ex-pirata um roteiro
detalhado sobre o esconderijo do tesouro. Um exemplar do livro de Dumas
com escrituras e códigos que se combinados com um mapa especial,
levariam até o butim.

Um estrondo fez os pelos de todos se arrepiarem. Nalu teve


que piscar algumas vezes para perceber que Riva tinha caído para trás,
levando a cadeira consigo direto para o chão. O garoto da ilha levantou-se
tão rápido quanto caiu, em um único salto.
Nalu arregalou os olhos.

— Você está bem?

— Energia jovem e imbatível, lembra? — respondeu Riva com


o sorriso mais amarelos de todos os sorrisos amarelos. Então começou a
puxar o traseiro dos amigos para fora da casa. — Estava tudo ótimo, ótimo
mesmo, mas precisamos ir.

E lá se foram um bando de moleques e uma garota correndo em


disparada de volta para as margens do rio.

Tio Kadu fez uma careta terrível para a sobrinha.

— É a última vez que você traz esse mal-educado pra dentro de


casa.

Lince quase rolou duna abaixo, tentando acompanhar um Riva


apressado que disparava a correr pela praia. O barulho das ondas batendo na
costa era alto, mas a voz de Pedregulho irritado quebrava a barreira do som.

— Oye, Riva! Que palhaçada foi aquela? — gritava, enquanto


ajudava Lince a se levantar.

— Eu já vou explicar! — Riva gritava em resposta com os


cabelos voando contra o vento. — Por enquanto, preciso que confiem em
mim e apertem o passo!
O sol brilhava intensamente, mas a areia não estava escaldante
como nos dias de verão. Kiwi foi a primeira a tirar os chinelos e correr pela
água refrescante do mar. Pedregulho a seguiu, abrindo os braços, rindo alto
e livre, afundando os pés descalços na areia fofa. Nalu não podia acreditar
que faria aquilo também. Logo ele. Seus tênis nunca foram os mesmos
depois do ciclone tropical, um pouco de areia e água salgada não fariam mal
a ninguém. Desamarrou os cadarços e pôs-se a correr, chutando água em
direção aos garotos e iniciando uma guerra violenta, ao som de risadas e
gritos de alegria, aquela energia contagiante tomando conta da praia até
onde o horizonte alcançava.

Riva freou o passo ao chegar no fim da praia. Havia uma gruta


composta por pedras que caíam umas por cima das outras em um formato
triangular, como uma cabana natural por onde um vento gelado soprava.
Uma sombra percorreu seu rosto.

— Alguém aí tem medo de fantasmas? — e adentrou a gruta,


com cara de peste.

Os garotos o seguiram um pouco apreensivos, mas tomados


pela adrenalina. Mesmo Lince que era o menor deles, precisou abaixar a
cabeça para passar. A entrada era muito baixa. Nalu pôs as mãos nos bolsos,
abrindo caminho para Kiwi.

— Primeiro damas e sereias.

— Que cavalheiro você — ela levantou uma sobrancelha. — Nem


parece que está tremendo de medo.

Nalu encolheu os ombros.

— Se precisar segurar a mão de, sabe... alguém... eu tô bem aqui.


Kiwi cuspiu uma risada e o empurrou gruta adentro.

— Anda logo, esquisito.

O Capitão dos Garotos Perdidos foi guiando o grupo por


caminhos labirínticos. Havia um pequeno riacho que escorria de algum
lugar lá dentro. A brisa gélida que vinha das fendas parecia indicar que
havia muito mais para explorar do que a superfície. Riva freou o passo.

— Querem ver só uma coisa bem maneira? — e espremeu-se


por entre uma das fendas, passando para o outro lado. Pedregulho fez uma
cara horrenda.

— Ah, tá... de jeito nenhum.

— Riva tem certeza que... você sabe — Lince deu um passo


em sua direção. — É seguro?

O garoto da ilha apoiou as mãos ao lado da cabeça. Mesmo


naquela penumbra, seus olhos brilhavam em azul.

— A maioria das pessoas nem imagina, mas a gruta continua


um bocado pra lá e acaba no mar. Aposto que vão querer ver o que tem
escondido por entre as rochas.

E o pivete era bom de convencer os outros a se meter em


encrenca. A gruta era misteriosa e estendia-se por mais vários metros em
frente aos garotos. Lince agarrou a mão de Riva, Pedregulho agarrou a mão
de Lince, Nalu deu a mão a Pedregulho e estendeu a outra para Kiwi,
entrelaçando seus dedos com os dela, finalmente. Ela estava gelada. Gotas
de água pingavam em um ritmo lento e constante, ecoando como um som
distante. A cada passo que dava, um arrepio percorria a espinha de Nalu. A
passagem era estreita, mas logo alargou-se, chegando a uma parte da gruta
onde o teto erguia-se dramaticamente como a boca de algum monstro
marinho, revelando uma enorme abertura.

A luz do sol voltou a encontrar seus olhos. Haviam encontrado o mar


novamente. A saída da gruta dava para o oceano, onde a água azul cristalina
brilhava logo abaixo deles. Riva correu para a beirada e deparou-se com a
sensação de estar de pé em frente a um precipício de pedras pontiagudas no
fundo. Kiwi apressou o passo, sem soltar a mão de Nalu.

Sentiram o vento bater em seus rostos. Dava para ver a praia


dali.

— Uou — Nalu deixou um suspiro tomar forma e trocou um


olhar com Kaia.

Riva atirou-se no chão, procurando por algo entre as pedras.

— Ahá! — levantou um objeto estranho no ar.

Os garotos viraram-se confusos, mas foi Pedregulho quem


primeiro percebeu. Por incrível que pareça.

— Você só pode estar de brincadeira.

Lince ficou boquiaberto.

— Isso é...

Riva sorriu para o livro caindo aos pedaços em suas mãos.


— O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Com
algumas mudanças, é claro — e jogou o exemplar no chão, pronto para
folhear.

A capa estava gasta e com as pontas faltando. As páginas


estavam manchadas e amareladas, todas grudentas e molengas por conta da
umidade do mar. Os garotos amontoaram-se ao seu redor, sentindo a
curiosidade tomar conta.

— Eu encontrei esse negócio quando nem sabia ler direito. Era


meu tesouro, mas eu não sabia para o que servia... até agora.

Nalu arregalou os olhos, percorrendo os dedos pelas palavras.

— São códigos para encontrar o butim.

— Vocês conseguem entender esse negócio? — Pedregulho


franziu o nariz. — Parece outra língua.

— É francês — explicou Kiwi. — Mas vai ver que não são as


palavras que importam se você prestar atenção.

Nalu levou as mãos ao bolso das calças cargo e procurou pelo


mapa. Ainda não tinham tido tempo de analisá-lo como deveriam, mas era
como todas as histórias de pirata contavam.

— O “X” marca o lugar — percebeu, uma pequena marca


desenhada na Baía de Castelhanos. — Mas...

— O livro é um complemento — acrescentou Kiwi, juntando


os pontos.
Pedregulho fez uma careta.

— Bem pensado, Angelos, foi de grande ajuda.

Kiwi estava se segurando para não dar um soco na cara daquele


garoto.

— O mapa sozinho não consegue encontrar nada. Por isso meu


pai nunca foi atrás do tesouro. Ou se foi... bem, não encontrou. Não adianta
você seguir até o lugar marcado se não sabe por onde começar a procurar.
Pode ter empecilhos no caminho ou passagens secretas ou...

— Armadilhas? — Lince tentou a sorte.

A garota dos cabelos de maresia soltou o ar, completamente


surpresa por terem chegado tão longe.

— Não tem como saber. Mas... — levantou o exemplar do livro


de Alexandre Dumas — talvez agora tenha.

Era quase impossível de acreditar. Depois de séculos da vinda


de Thomas Cavendish, depois de quarenta anos de pesquisa da família Van
Dijk e de todos os planos de Phillip Angelos, nunca ninguém esteve tão
perto assim de encontrar o butim do Mary Dear.

Riva roubou o livro de volta, folheando algumas páginas para


frente. Havia desenhos estranhos nos cantos, que remetiam a triângulos ou
pirâmides ou quem sabe até um amontoado de pedras como era a gruta da
Praia do Bonete. Havia escrituras em várias línguas, palavras circuladas e
setas que as interligavam.

— Talvez sejam pistas...


— Ou talvez seja alguém zoando com a gente — interrompeu
Nalu, fechando o livro e mostrando a data de publicação do exemplar. —
Outubro de 1849 — leu em voz alta, desacreditado. — Thomas Cavendish
escondeu o tesouro quase duzentos anos antes.

Riva roubou o livro de volta mais uma vez.

— Dá pra me escutar? Tio Kadu disse que um ex-pirata entregou um


roteiro detalhado sobre o tesouro para um cara chamado Young. Thomas
deve ter feito o mapa e, claro, não queria facilitar para ninguém. Anos
depois alguém deve ter encontrado algum documento que complementava o
mapa ou alguma espécie de segredo que passou de geração para geração.

— Ou tem a chance de isso ser uma grande baboseira — Pedregulho


cuspiu, parecendo totalmente cansado de tudo aquilo. — Por que alguém
iria querer facilitar o trabalho dos caçadores de tesouros?

Kiwi esboçou um sorriso ao encontrar uma palavra escrita à mão na


contracapa.

— Eu não sei, mas... — mostrou para os garotos. Era uma caligrafia


antiga, mas ela estava certa, não havia dúvida. O nome “Ed Young”
estampava a página, indicando o dono do livro. — Parece bastante com a
descrição que recebemos sobre o roteiro.

— Abaixem-se! — Nalu gritou de repente.

Sem pestanejar, os garotos obedeceram, escondendo-se atrás das


rochas, deixando apenas o topo das cabeças de fora para entender o que
estava acontecendo. Um novo barco chegou à praia, um que era duas vezes
o tamanho do M.S. Nereu, com o emblema de um timão estampado no
casco e na vela principal. Riva franziu o nariz, ele conhecia bem aquele
símbolo.
— Tem alguma coisa errada. Nunca temos guardas costeiros aqui.

Foi quando caiu a ficha. Kaia espremeu os olhos, sentindo a raiva


subir-lhe o pescoço.

— Droga! Meu pai deve ter dedurado a gente.

— Eu avisei — sussurrou Pedregulho, como se quisesse jogar na cara


de todos de que sim, garotas atrapalhariam o esquema. Kiwi sentiu-se
péssima e uma vontade de gritar tomou conta de seu peito.

Riva levantou, direcionando-se para os fundos da gruta.

— Precisamos correr.

— Não — Kiwi fincou os pés no chão. — Não quero causar


problemas, eu posso...

Mas suas palavras morreram em sua boca, quando ela sentiu


aqueles dedos se entrelaçarem com os dela novamente. Nalu apertou-lhe a
mão, fazendo das palavras de Yoko as suas próprias: não importa o que
aconteça, eu não vou soltar. Nunca mais. Kiwi retribuiu, engolindo o
choro. Se sentira sozinha por tanto tempo. Logo ela que nunca admitiria
isso e ao lado dela estava o garoto mais solitário do mundo. Até ele mesmo
tinha deixado de estar presente em seu próprio corpo e, mesmo assim,
prometia silenciosamente que nunca mais sairia do lado dela.

Capitão esboçou um sorriso calmo.

— Relaxa. Ninguém sabe que eu estou com você nessa. O


barco é meu, a praia é minha... e Nadi não vai abrir a boca.
— E quanto ao tio Kadu? — lembrou o garoto da cidade. A
resposta veio junto com uma sombra, que apagou o azul dos olhos de Riva.

— Por isso precisamos correr.

Capítulo Quatorze

Seremos Donos Do Nosso Amanhã

Now Playing: Dona do Meu Pensamento

(Charlie Brown Jr. Camisa 10 Joga Bola Até Na Chuva)


— Alguém tem uma lanterna?

Lince levantou o indicador no ar em prontidão e pôs-se a procurar


por algo na mochila. Se alguém tivesse vindo assim tão preparado para a
missão, teria que ser ele. Mas seu olhar de desapontamento consigo mesmo
dizia o contrário.

— Droga... devo ter deixado em casa.

Kiwi abaixou-se ao seu lado.

— Você trouxe água? Alguma bebida em garrafas de vidro?

Riva pareceu captar a ideia. Lince assentiu com a cabeça e retirou do


meio da bagunça uma pequena garrafa, mas não deu tempo de bebericar ou
de dar um gole sequer. Capitão agarrou o objeto pelo gargalo.

— Afastem-se — e bateu a base do recipiente com força na rocha


mais próxima, fazendo cacos de vidro voarem pelos ares, o que deixou
Lince totalmente indignado.

O garoto da praia abaixou-se, procurando por um raio de sol. Os


garotos fizeram o mesmo, espiando a cena que acontecia na praia.

O som do mar ecoava pelas paredes da caverna, enquanto


observavam agitados a guarda costeira chegar à Praia do Bonete. Um
homem e uma mulher desceram em terra firme com a ajuda de Nadi, que os
buscou em alto mar como havia feito com os garotos mais cedo.

Perfeito, pensou Riva. Encaixou o pedaço de vidro quebrado com o


raio de sol mais próximo, formando um sinal de luz.
— Irmão, a gente tá sem tempo — reclamou Pedro.

— Eu sei, mas tem alguém que pode ganhar um pouco para a gente
— Riva movimentava o gargalo da garrafa, tentando chamar a atenção de
Nadi. Ele esperava que ela pudesse perceber o sinal de luz daquela distância
e torcia para que não chamasse atenção da pessoa errada.

Nadi olhou em direção à caverna.

— Isso!

— Acha que ela vai entender o recado? — perguntou Nalu.

— Nadi e eu crescemos juntos — explicou o loiro. — Ela sabe como


minha cabeça funciona. Essas coisas de telepatia.

Pedregulho bufou, como quem quisesse dizer “Ah, ótimo. Nossas


vidas estão nas mãos de uma garota que possivelmente lê mentes”. Kiwi
lançøu-lhe um olhar de sobrancelhas levantadas.

— Nunca duvide de uma garota.

Não tardou mais do que quinze segundos, Nadi puxou os guardas


costeiros para dentro do único restaurante que havia na praia, tirando-os de
vista. Riva baixou o gargalo da garrafa.

— Isso! — comemorou, levantando com um pulo. — Segunda parte


do plano. Eu desço até a margem do rio e resgato o M.S. Nereu.

— Espera, e como você pretende fazer isso? Seu barco está ancorado
em alto-mar — retrucou Nalu.
— Eu vou com ele.

Aquela voz nunca havia soado tão heroica em dezessete anos. Os


garotos voltaram-se para trás, onde um Pedregulho, tão alto que tinha que se
curvar para não bater a cabeça no topo da caverna, levantava uma das mãos
em oferenda.

Kiwi cruzou os braços. Pedro encarou os amigos, não entendendo o


motivo do silêncio todo.

— Que foi? Vai precisar de alguém para empurrar o barco.

Riva segurou um riso. Ele não precisava, fazia isso o tempo todo
sozinho, mas não queria estragar o ato de coragem do amigo na frente de
Lince, que tinha os olhos brilhantes de orgulho.

— Beleza — aceitou Riva. — Eu e Pedregulho descemos até a praia.


Pegamos o barco de Nadi e resgatamos o M.S. Nereu.

— Ela não vai ficar uma fera de vocês deixarem o barco dela no
meio do mar? — perguntou Kiwi. Riva deu de ombros.

— Nadi tem umas dívidas a pagar comigo. Vocês esperam aqui até
darmos o sinal — e fez mais uma vez o sinal de luz, mirando sem querer
nos olhos de Lince, que caiu para trás. — Opa.

Pedregulho e o amigo direcionaram-se para a saída da caverna. O


garoto dos cabelos crespos encarou Kiwi com ar de convencido. A garota
deu tapinhas amigáveis em seu ombro.

— Vai lá, garotão. Manda ver.


Riva estendeu o braço em meio ao grupo.

— Garotos do mar não deixam monstros e pais os impedir!

Lince fez o mesmo, pondo a mão sobre a dele.

— Juramos pela camaradagem e pelo perigo…

Então Pedregulho.

— ...nunca expor o quartel general!

Nalu estendeu o braço, sentindo aquela adrenalina de anos atrás.

— Seremos bravos e destemidos e…

Os garotos olharam para aquela que estava encolhida em um canto.


Kiwi levantou os olhos, confusa. Pedregulho indicou o montinho de mãos.

— É sua vez.

A garota dos cabelos de maresia descruzou os braços, surpresa.


Aproximou-se lentamente do grupo de garotos que a esperavam ansiosos e
inquietos. Parecia errado ela estar ali em meio a um grupo de amigos tão
antigo quanto o deles, mas… parecia tão certo também.

Pedregulho limpou a garganta.

— Vamos, antes que eu mude de ideia.


Kiwi lançou um olhar repreensor para o moleque, então encarou
Nalu, falando silenciosamente “Não acredito que estou fazendo mesmo
isso. Só pra cosntar, esse juramento é muito esquisito”.

Estendeu a mão.

— …e bravo bravo bravo.

Os Garotos Perdidos comemoraram e seguiram para a segunda etapa


do plano. Riva e Pedregulho desceram em direção à praia, enquanto Nalu
ajudava Lince a guardar todas as pistas na mochila. O mapa de Phillip
Angelos e o exemplar de Ed Young. Os três abaixaram e assistiram à cena
em sua frente.

Agora bastava esperar.

Kiwi sentou ao lado de Lince.

— Até que o Pedregulho não é tão ruim assim — lançou no ar.

Lince coçou a nuca, tentando esconder o rosto.

— Ele é legal, eu acho. É meio brigão, mas no fundo é um cara legal.

— Entendi — concordou a garota, suspirando. —Acho bonitinho o


jeito que você olha para ele.

O garoto suricato paralisou.

— O q-que quer dizer?


Nalu levou seus olhos à Kiwi. A garota retribuiu, esboçando um
sorriso.

— Você brilha quando está perto dele.

O garoto da cidade sentiu o coração palpitar. Lince soltou uma risada


nervosa. Ele mesmo já sabia que não tinha mais como esconder.

— Ele vai todas as tardes lá em casa… disse que não tinha mais
certeza de que herdar a lanchonete da família era o sonho dele — disse
Lince, brincando com as pedrinhas do chão. — Ele viu meu material de
estudo do vestibular e acho que quer tentar também. Sabe… assim nós dois
poderíamos estudar juntos no Rio.

Nalu abraçou as costas do amigo.

— É um ótimo plano, cara.

Lince sorriu envergonhado.

Kiwi levantou de supetão. A ação tinha começado do lado de fora.

Riva e Pedregulho saíram em disparada caverna afora, correndo por


toda a enorme extensão da Praia do Bonete, em direção ao rio e ao barco de
Nadi.

— Espera um pouco — Nalu estreitou os olhos.

Havia outro barco, ancorado logo ao lado. Lince soltou uma


interjeição, tapando a boca, de repente.
— O que foi? — perguntou Kiwi.

Lince apontou com o dedo trêmulo para um ponto perto do


restaurante.

Tio Kadu conversava com os guardas costeiros, com uma Nadi


puxando a manga de sua camisa para tentar fazê-lo parar de falar. Então
apontou para os dois pivetes que corriam igual vira-latas.

— DROGA! — exclamou Nalu.

Os guardas costeiros saíram em disparada atrás dos garotos, mas, por


sorte, Riva era o mais veloz da turma e Pedregulho tinha as pernas
compridas, Além disso, estavam com uma boa vantagem de distância. Os
garotos chegaram ao rio e Riva empurrou Pedro para dentro do barco de
Nadi. Eles demoraram a arrancar, o garoto da praia tentava ensinar
Pedregulho a pilotar aquele negócio sozinho. Mas por que?

— Fujam agora, seus imbecis… — Nalu falava, nervoso.

— Não — Lince interrompeu. — Eu sei o que eles estão fazendo.

Kiwi sorriu.

— Estão ganhando tempo.

Pedro conseguiu ligar o motor, então Riva saltou para dentro do


segundo barco que, provavelmente, pertencia a Tio Kadu. Os guardas
costeiros estavam a poucos metros de distância. Foi bem a tempo de um
deles pisar com os pés dentro do rio, que Riva arrancou, indo em direção ao
mar, logo atrás de Pedregulho.
— Conseguiram evitar uma perseguição — Nalu observou,
animando-se.

— É , mas não por muito tempo — indicou Lince.

Moradores do Bonete chegavam na praia para entender o que estava


causando tanto furdunço. Alguns já se mobilizavam para arrastarem mais
barcos ao rio, o que, de fato, não seria bom. Riva e Pedro ancoraram os
barcos ao lado do M.S. Nereu e ligaram o motor em direção à boca da
caverna. Agora Nalu entendia. Riva tinha velas em um barco a motor como
segunda vida. Se o motor falhasse, as velas estavam ali. E para uma fuga da
dimensão daquela ali, o motor, definitivamente, era a melhor opção.

— Estão se aproximando — disse Nalu.

Kiwi ficou de pé, sentindo o vento passando por entre suas roupas e
fazendo sua saia voar. Olhou para baixo. Sua respiração parecia
determinada.

— Vamos ter que pular.

— O QUÊ? — a voz de Lince esganiçou.

Nalu arregalou os olhos e visualizou o fundo do mar. Estava cheio de


pedras pontiagudas.

— Tá, muito engraçada. Qual é o plano?

A garota dos cabelos de maresia apertou a mão dos companheiros,


com força e repetiu, a voz sem mudar de tom:
— Vamos ter que pular.

Nalu sentiu o coração parar por um instante e, em um reflexo, tentou


se desvencilhar e soltar a mão da maluca que estava de pé ao seu lado.

— Não pode estar falando sério.

— Tem uma brecha — a garota indicou. — um ponto específico ali


embaixo onde não há rochas. Vocês vão precisar confiar em mim.

Nalu levantou os olhos em direção ao mar. Riva e Pedro estavam


quase chegando e na Praia do Bonete, alguns barcos já estavam postos no
rio. Os guardas costeiros subiram com rapidez ao lado de Tio Kadu.

Apertou os dedos contra os dela. Nalu já estivera à beira de um


precipício antes, prestes para pular. A verdade é que pular com o intuito de
continuar vivo era ainda mais amedrontador.

Kiwi retribuiu, fazendo carinho na palma de sua mão.

— Confia em mim.

Nalu respirou fundo e assentiu. Lince engoliu em seco. Kiwi apertou


suas mãos o máximo que pôde.

— Segurem firme.

E lançou os pés no ar, em direção à morte certa, levando dois garotos


medrosos consigo.
Capítulo Quinze

Instinto de Aventura de Menina Solta

Now Playing: Lutar Pelo Que É Meu

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

O plano de fuga correu bem. Nadia provavelmente queria a


cabeçå de Riva e alguns deles deixaram as camisas e chinelos para trás.
Menos Nalu, que fez questão de levar o seu único par de tênis embarrado na
mão livre quando pulou. Subiram ensopados no pequeno convés do M.S.
Nereu. Capitão ligou o motor, o trimmer levantou a vela principal e o
timoneiro fez o resto do trabalho, levando o barco para longe da Praia do
Bonete.

Riva bateu continência à Nadi ao longe, agradecendo pelo


favor.

— Garota legal — disse Pedregulho.

O garoto da ilha esboçou um sorriso.

— É... é uma pedra no meu sapato.

Pedregulho riu, trombando seu ombro no dele, gentil como


sempre.
— Que bom que você não usa sapato então.

Riva deu uma risada silenciosa e triste. Infelizmente o que ele


sentia por Nadi nunca poderia ser correspondido, ela já tinha falado a ele. E
ser melhor amigo de alguém que você ama pode ser bastante doloroso. Mas
talvez doesse mais se as coisas fossem diferentes, então Riva simplesmente
não fazia nada. Engolia seus sentimentos e abria um enorme sorriso,
enquanto ouvia Nadi contar sobre as garotas que ela era apaixonada.

O tempo estava estável, mas algumas nuvens começavam a


aparecer ao longe, o que preocupava Lince. Ou era o que parecia.
Pedregulho sentou ao seu lado.

— Ei, o que foi?

O garoto suricato suspirou, falando baixinho:

— Nada não, eu só não falei com a minha mãe que não voltaria para
o jantar. Ela deve estar preocupada achando que aconteceu alguma coisa.

Pedregulho envolveu-o em seus braços, querendo de alguma forma


aquecer seu coração.

— Não esquenta, menor. Vamos voltar mais rápido do que você


imagina, com uma fortuna nas costas. Eu prometo a você.

Lince corou.

Ao chegar no canal, as águas acalmaram um pouco e os garotos


puderam dar uma olhada de perto no material de pesquisa. Nalu pegou o
mapa de dentro da mochila e abriu no colo de Lince enquanto Kiwi pegou o
exemplar do Conde de Monte Cristo. Estava um pouco molhado, mas a
sorte é que a mochila era feita de material impermeável. Passaram a tarde
lendo, jogando charadas e “verdade ou consequência” ou ouvindo
Pedregulho cantar mais alto e desafinado que uma gaivota.

A noite começava a dar as caras. O sol baixava de leve no horizonte e


o vento congelante de inverno soprava as velas quando passaram por
Jabaquara e a Praia da Fome. Começavam a virar o barco em sentido sul
novamente para contornar a ilha.

Kiwi folheava o Conde de Monte Cristo.

Nalu passava os dedos pelo mapa de Thomas Cavendish.

Os dois fingiam estar estudando muito, enquanto, na verdade, não


conseguiam parar de desviar o olhar um do outro. Pelo menos Lince, que
estava sentado bem no meio dos dois, não percebeu aquela palhaçada.

— De acordo com as escrituras, o tesouro deve ficar no centro de um


triângulo desenhado no mapa. Quando chegarmos ao local precisamos
procurar por uma marca de navalha nas pedras. "E+T" ...

— Você está pensando na mesma coisa que eu? — o garoto da cidade


insinuou.

Lince bufou.

— Não, não estamos lidando com extraterrestres. Gostaria que


levassem a sério.

Kiwi soltou uma risada.


— Na verdade, eu estava pensando em algo mais romântico — e
apontou para a escritura no livro, que indicava o que parecia ser um um
coração ao lado das letras. — “T” de Thomas. Só precisamos descobrir
quem é "E".

Nalu espreguiçou-se.

— Acha mesmo que foi Thomas Cavendish que pôs isso lá? Pode ter
sido qualquer casal nos últimos quatrocentos anos, não temos como saber se
está ligado ao tesouro.

— Ela tem razão — Riva interveio, pulando para a popa do navio. —


Se esse mapa indica o local exato do tesouro, não há como alguém chegar lá
só porque quer “dar uns pegas” em uma garota. O acesso é complicado.
Fica perto dos penhascos que levam ao cemitério de navios.

Um baque. Algo inesperado sacudiu a embarcação, fazendo os


garotos cambalearem de repente. Lince agarrou o mastro, arregalando os
olhos para seus amigos.

— O que foi isso?

Kiwi correu para a borda do barco.

— Estamos na época de migração de cetáceos. Deve ter sido só um


golfinho.

Mais um baque seguiu, ainda mais forte que o primeiro, fazendo o


M.S. Nereu sacudir perigosamente de um lado para o outro. Pedregulho
apertou a mão por entre as cordas ao ver o tamanho da silhueta que passou
ao lado deles.
— ...um golfinho enorme, você quer dizer.

Um arrepio percorreu a nuca dos garotos, que paralisaram. As águas


estavam escuras e demoraram a perceber com o que estavam lidando, mas
quando Nalu viu, sentiu o coração parar. Duas orcas assassinas nadavam ao
redor do barco, suas nadadeiras cortando a superfície e seus olhos enormes
os observando como tubarões à espreita. Era aterrorizante ver um ser
daquele tamanho e não poder fazer nada. Absolutamente nada.

— Tá tudo bem — o garoto da cidade respirou fundo. — Não somos


presas dessas coisas, somos?

Kiwi engoliu em seco.

— Tecnicamente não, mas...

O medo tomou conta do grupo, quando o terceiro baque aconteceu.


Pedregulho berrou ao ver uma delas batendo as nadadeiras no casco,
fazendo os garotos voarem de um lado para outro, bruscamente. Riva saltou
para perto de seu timoneiro.

— DROGA! Mano Samurai, segura esse leme direito! — agarrou o


leme das mãos de Nalu. — Vamos ter que mudar nossa rota.

— O quê? — Nalu fez uma careta. — Estamos no meio do nada, pra


onde você quer ir?

Riva apertou os nós, em alerta.

— Essas coisas têm se revoltado contra barcos de pescadores nos


últimos anos. É questão de tempo para que elas...
Foi como um terremoto. Riva foi lançado para a proa do navio, Kiwi
e Pedregulho seguravam-se firmemente para não deixar Lince cair do barco.
Nalu agarrou-se nos bancos. Como lutar contra um dos maiores seres do
oceano?

Riva levantou-se, cambaleante.

— Vamos dar meia volta! — ordenou. — Voltando para o canal elas


não podem nos seguir ou vão encalhar.

Nalu estreitou os olhos. Em meio ao caos, havia um porto seguro.

— Tem uma praia logo em frente! — apontou.

Mais uma delas bateu contra o casco. Pareciam estar ficando furiosas.
Os baques estavam ficando mais fortes. O navio não aguentaria por muito
tempo. Nalu agarrou-se em sua mochila.

— O que fazemos? — gritou Pedro.

Lince olhou para o céu sombrio do crepúsculo.

— O tempo não está dos melhores. Não é seguro voltarmos agora.

— Tática? — perguntou Riva, mirando seus olhos em Kiwi.

A garota dos cabelos de maresia sentiu a respiração entrecortar.

— Eu... — um novo baque jogou-a contra a borda do navio, fazendo-


a estremecer. — Não dá tempo! O melhor jeito de despistar essas coisas é
nos aproximarmos da praia.
Riva deixou os ombros caírem. Ele não conseguia acreditar no que
estava acontecendo.

— Isso é um motim então? — perguntou, as palavras recheadas de


cinismo. Então seus olhos pousaram em alguém que sempre era o início de
todos os problemas. Bufou de raiva. — Só pode ser brincadeira.

Riva armou um ataque contra Nalu, pulando de mal jeito em cima de


seu corpo, tentando a qualquer custo virar o navio de volta para o norte. O
garoto da cidade segurou-se firme no leme.

— EU SOU O TIMONEIRO, SEU IMBECIL! — gritou.

— EU SOU O CAPITÃO, SEU IDIOTA! — Riva urrou em resposta.

A briga estava feia, envolta por uma discussão frenética e caótica dos
dois. As orcas continuavam a empurrar o barco como se fosse uma
dobradura de papel boiando em uma banheira, mas, mesmo assim, nenhum
dos dois dava o braço a torcer.

Kiwi respirou fundo e, sem pensar duas vezes, mergulhou no mar, em


direção às profundezas. Nalu arregalou os olhos de pavor.

— KAIAAA!

Riva deu-lhe um golpe de cotovelo na cabeça, atordoando-o por um


momento.

— Eu estou avisando, Nalu. LARGA O LEME!


Nalu rangeu os dentes, pronto para o contragolpe, quando seus olhos
perceberam o que estava acontecendo. O quão perto tinham chegado da
costa sem perceber.

— Riva, nós vamos bater! — gritou.

A colisão foi brutal. O M.S. Nereu bateu de lado com um conjunto de


rochas afiadas, tremendo violentamente. O metal rangia, rompendo-se como
o último suplício de um ser das profundezas, jogando os garotos para o
fundo do mar.

O pânico apoderou-se de Nalu. Lutando contra a água, debatia-se


tentando freneticamente chegar à superfície. Já não se via mais as orcas,
mas seu inimigo no momento era muito maior do que uma baleia assassina.
Não se foge do oceano. Não se ele não tiver piedade. O desespero mandava-
o subir, os pulmões queimando em busca de ar, mas as ondas que se
formavam ao redor eram monstruosas, impiedosas, o escuro devorando seu
corpo como uma maldição.

Foi quando sentiu algo ao redor de sua cintura. Nalu não saberia dizer
o que era, sua consciência começava a escapar por entre seus dedos.

Acordou minutos depois, encharcado e com as roupas grudentas na


areia. Estava ofegante e exausto, mas... estou vivo, soltou a cabeça no chão.
Respirou fundo, tentando acalmar seu coração ao levar a mão ao peito.
Estava vivo. Abriu os olhos para o céu escuro, encoberto por nuvens.

Seus ouvidos ainda pareciam trancados, mas podia jurar que ouvia a
voz de Riva não muito longe dali.

— Não, não, não... meu barco...


Nalu sentiu um alívio ao saber que não era o único a ter chegado em
terra-firme. Um alívio que momentaneamente aqueceu seu corpo tão
gelado. Começava a sentir o frio agarrando suas entranhas. Mas estavam
vivos.

Levantou-se, com os joelhos ainda bambos, mas voltou a cair


bruscamente no chão, ao sentir as mãos pesadas de Riva o empurrando.

—Ei, qual foi, cara!

— A culpa é sua! Por que você não fez o que eu mandei? — ele
berrava.

O garoto da cidade voltou a levantar, indignado.

— Dá pra calar essa boca? Eu salvei as nossas vidas.

Riva encheu a boca com uma risada maldosa.

— Ótimo, que herói que ele é, senhoras e senhores... Nalu Sakurai


conseguiu trazer a gente direto pra maldita Praia da Caveira!

— O quê...? — Nalu olhou ao redor, sem entender. Havia formações


rochosas estranhas por todo o arredor.

O garoto da ilha bufou, levando os dedos até as pálpebras doloridas.

— Não importa se a gente sobreviveu, você sabe que lugar é esse,


não sabe? Não tem quem saia vivo daqui.

— Nós vamos dar um jeito.


— Eu já devia ter previsto — Riva virou-se de costas, sentindo um
mal-estar tomar conta de todo seu corpo. — Você é sempre um mau agouro
na merda da minha vida.

Nalu rangeu os dentes.

— Era só um barco.

Riva voltou-se para ele, com o rosto ardendo de raiva.

— Você não sabe como é ter algo importante simplesmente arrancado


de você, não é?

Nalu sentiu aquela dor subir-lhe às costas, como um colete de aço.

— ...foi você que me deixou na mão quando eu mais precisei de


você.

— E você me traiu! — Riva urrou, sua voz ecoando por toda a


extensão deserta da ilha. — Meu melhor amigo me traiu quando eu mais
precisei. — Sentiu as lágrimas queimarem seu rosto. — Eu também estava
sofrendo! Não tinha pra onde ir e você tirou de mim a última coisa que eu
ainda tinha... você não tinha o direito de me tratar daquele jeito só porque
perdeu a droga do seu irmão! Você não tinha o direito de pôr o SEU luto
acima do MEU!

Nalu sentiu um vazio no peito. Riva estava em prantos em sua frente,


quebrado, machucado por algo que seu melhor amigo tinha feito... como
poderia se chamar de melhor amigo se machucava as pessoas ao seu redor?
Nalu não segurou o choro. Não conseguiu. Não queria. Por que parecia que
havia uma barreira tão grande entre eles? Por que simplesmente não
corriam um para os braços do outro e acabavam com todo aquele
sofrimento? Por que...

Por que era tão difícil assim?

Um vulto surgiu na beira do mar. Nalu voltou seu rosto para Kiwi,
que se arrastava em direção à areia, com sua cauda de sereia.

— Kaia?

Riva arregalou os olhos de pavor.

— O que... o que é isso?

Nalu congelou. Droga, droga, droga.

— Riva... — tentou se aproximar.

— SAI DE PERTO DE MIM! — o garoto gritou em mágoa. — Você


está mesmo com aquela coisa ? — apontou com nojo para Kiwi, que se
encolhia, fraca. Fungou o nariz de desgosto. — E você sabia...

O garoto da cidade respirou fundo, barrando sua passagem.

— Riva, vai embora daqui — sua voz soou grossa e imponente como
a de um trovão.

E então começou a chover.

Riva olhou para cima, sentindo os pingos de água bater


violentamente em seu rosto. Lançou um olhar doloroso para Nalu e aquela
foi a última vez que se viram naquela noite. Riva encolheu-se como um
animal silvestre e correu para dentro da mata, desaparecendo por entre as
árvores. Foi só então que Nalu voltou para a realidade da grande merda que
tinha feito.

— Droga, droga, droga.

Kiwi estava sem fôlego, com os cabelos caindo em frente ao rosto.

— Eu... não encontrei o Pedro e o Lince. O que houve com o Riva?

— Preciso ir atrás dele — respondeu Nalu, como um pensamento


desesperado tomando forma. — Ele não pode se perder na floresta. Tem...
tem cobras lá e...

— Você ficou maluco? — Kiwi gritou. Sua voz estava rouca e fraca.
Por que ela estava gritando? — Não conhecemos essa parte da mata. Não
podemos nos separar.

Nalu sentiu aquela dor de cabeça explodir.

— ME DEIXA EM PAZ!

...

...

O som do silêncio reinou por tempo demais, até Nalu perceber que
estava sozinho. Mais uma vez. Kiwi engoliu suas dores e desapareceu em
mar aberto. Riva esvaiu-se como fumaça adentrando a floresta. Pedregulho
e Lince... eles, eles...
Não..., Nalu abafou um grito, encolhendo os joelhos.

Não importava o quanto tentasse, talvez certas pessoas estejam


destinadas à solidão.

Eu chorei quando você disse que me amava e que estaria sempre ao meu
lado.

Chorei porque no fundo do meu coração, doía saber que você estava
mentindo.
Capítulo Dezesseis

Você Me Conhece, Eu Faço Tudo Errado

Now Playing: Só Por Uma Noite

(Charlie Brown Jr. Bocas Ordinárias)

Kiwi apareceu na praia depois de quatro horas. Nalu procurou


por abrigo e juntou lenha, mas ele tinha sido um péssimo escoteiro aos
cinco anos de idade e nunca tinha aprendido a fazer uma fogueira. Suas
roupas continuavam encharcadas, quando se arrastou para a outra ponta da
praia ao ver aquela garota encolhida na areia. Ela estava apenas de maiô e
um casaco enorme nas costas. Suas pernas haviam voltado ao estado
humano e foi quando Nalu percebeu que arranhões as pintavam de
vermelho.

Encolheu-se ao seu lado. A chuva cessou por algum tempo,


mas nada indicava que as nuvens iriam embora tão cedo. O frio que fazia
naquela parte da ilha no inverno era avassalador.

Nalu suspirou, sentindo-se um idiota completo.

— Me desculpe.

— Você falou que não ia soltar a minha mão — ela sussurrou


em resposta.
Aquilo foi pior do que a sensação de estar sufocando. Era mais
certeira, rápida e dolorosa. Ele não merecia nada daquilo. Não merecia ela.
Não merecia seu melhor amigo nem ninguém. Mas doía demais sequer
pensar em estar sozinho de novo quando sentira a vida correr por suas veias
tão intensamente quanto nos últimos dias.

—...me desculpe — repetiu. Nalu sabia muito bem que


palavras não serviam de nada. — O pai do Riva desapareceu quando ele era
criança. Ele, bem... Riva costumava dizer que ele era obcecado por sereias e
ninguém mais acreditava nele — contou, sem esperar por uma resposta. —
Então um dia se aventurou onde nenhum outro marujo tinha coragem para
tentar provar que estava certo e nunca mais voltou do cemitério de navios.
Desculpe pelo jeito que ele te tratou e... pelo jeito que eu te tratei também.

O silêncio da noite era o único som entre eles. Até que uma
brisa voou dos lábios da garota ao seu lado.

— Acho que todo mundo, bem lá no fundo, é um garoto perdido.

É, talvez você tenha razão, o garoto pensou.

Um novo trovão retumbou, iluminando os céus. Então a chuva


voltou a cair. Kiwi levantou-se, cruzando os braços para tentar manter o frio
de fora.

— Vem, vamos nos abrigar da chuva.

Kiwi era uma melhor escoteira. Na verdade, não havia nem


comparação. Depois de encontrarem abrigo debaixo de uma grande pedra
que formava uma caverna, como um enorme capuz, a garota juntou as
lenhas que Nalu tinha recolhido e as amontoou no chão. Ela precisou de
dois minutos para conseguir fazer fogo, aquela chama dançante e tão
chamativa que iluminava a escuridão. Tirou o casaco e mandou que Nalu
retirasse a camisa, para suas roupas secarem. E ficaram assim, seminus, um
encostado em cada parede da caverna sem se olhar nos olhos.

O garoto coçou a nuca.

— Caramba, quem diria que ia chover desse jeito depois de um


céu azul daqueles?

— A previsão muda o tempo todo no litoral — explicou Kiwi.


— Mas vamos ficar bem abrigados aqui.

— Da tempestade?

Kiwi ergueu as sobrancelhas.

— Eu estava falando dos fantasmas...

Nalu revirou os olhos, esfregando as mãos perto do fogo.

— Pode desistir, eu não caio nessa.

— Acredita em sereias, mas não em fantasmas? Que tipo de nerd


é você?

O garoto perdeu-se em meio ao calor das labaredas ao lembrar


dos olhos avermelhados de seu melhor amigo, que não devia ter conseguido
acender uma fogueira como aquela.

— O que Riva quis dizer quando falou que ninguém consegue


sair daqui? — perguntou, receoso. — Por que “Praia da Caveira”?
A garota dos cabelos de maresia suspirou. Agarrou um graveto
ao lado de seu corpo e atiçou o fogo para não o deixar morrer.

— Um dia, um navio naufragou aqui perto e todos os corpos


vieram parar nessa praia. Um padre que morava na floresta os encontrou e
enterrou debaixo de uma enorme árvore — contou. — Ninguém se atreve a
morar aqui porque dizem que é assombrada. é a única praia não habitada da
ilha. A floresta é traiçoeira e as águas também. Fim da história.

— Entendi.

Kiwi cruzou as pernas.

— E dizem que à noite você pode ouvir as vozes o chamando...

Nalu cuspiu uma risada.

— Cala a boca.

— Nalu... — ela murmurava, imitando uma alma penada.

— Sai pra lá, esquisita!

E os dois caíram na risada, fazendo aquela noite não parecer


tão fria de repente. Mas então os pensamentos invadiram a cabeça de Nalu,
como uma avalanche. Eles estavam bem abrigados, mas havia um garoto lá
fora que estava completamente sozinho. Mas não era com isso que ele mais
se preocupava.

— Riva tem medo de florestas — disse baixinho.


Kiwi levantou o olhar, prestando atenção. Nalu parecia de novo
desligado da realidade, perdido em alguma coisa dentro das chamas da
fogueira. Então o garoto respirou fundo, criando coragem para finalmente
dar forma àquelas palavras que tanto rodeavam sua mente.

— Quando eu tinha doze anos, meu irmão mais velho morreu.


Ele... — fungou. — Ele era meu mundo. Depois daquilo eu nunca mais me
recuperei, me desliguei emocionalmente da realidade. Fiquei...

— Esquisito?

Nalu soltou uma risada. Essa garota...

— O termo correto é “despersonalização” — então voltou a


mergulhar naquelas memórias doloridas. — Eu tratei o Riva muito mal
pelas costas dele. As aulas estavam voltando e eu ia viajar para a capital.
Todos me perguntavam onde ele estava na última semana e porque não
aparecia na cidade e eu... — sentiu as palavras travadas no topo da garganta.
— Eu disse a todo mundo que era porque ele ainda não tinha aprendido a
ler e tinha desistido da escola.

Se arrependia daquilo todos os dias. Se arrependia de ter sido um


dos garotos ruins. Às vezes se perguntava se era uma pessoa ruim, egoísta e
antipática. Você não tinha o direito de pôr o seu luto acima do meu. Riva
tinha razão, mas Nalu não tinha como se culpar. Não foi uma escolha dele
desligar suas emoções, simplesmente tinha acontecido. E não havia um dia
em que ele não pensara em Riva depois daquilo.

— Acho que ele nunca conseguiu ler — ponderou. — Mas era


algo que eu havia prometido nunca contar a ninguém. E no primeiro
momento de fragilidade, eu fui lá e fiz todos rirem dele, quando na verdade
— sentiu um nó na garganta e a vontade de chorar pressionando suas
têmporas. — Eu estava chorando por não ter meu melhor amigo ao meu
lado quando eu mais precisei.
— Nalu...

— A mãe dele o levava todos os dias para a escola pela trilha


do Bonete. Cinco horas de ida e cinco de volta, porque ela tinha medo do
mar e porque sabia que Riva queria ir à mesma escola que seus amigos.
Éramos os garotos perdidos, tínhamos que ficar juntos... — aquele aperto
no peito doeu. Não importa quantas promessas são ditas. Quando somos
crianças, tudo parece tão mais simples, então quando crescemos, tudo dói
um pouco mais. — Pelo que fiquei sabendo meses depois, ela foi picada por
uma cobra-coral verdadeira durante uma noite. Morreu pouco tempo depois
sem um hospital por perto. E eu... não estava lá para ele também.

Kiwi engatinhou ao redor da fogueira e aninhou-se ao seu lado.


Nalu mergulhou o rosto em seu ombro, da mesma maneira que havia feito
meses atrás.

— Sinto muito, por tudo — a garota suspirou.

— Eu fui um péssimo amigo e agora ele está lá fora, sozinho


de novo — Nalu soluçou. — Espero que os garotos estejam bem.

A garota dos cabelos de maresia encostou sua testa na dele,


como se desejasse que aquele garoto quebrado em sua frente pudesse
compartilhar um por cento de suas dores com ela.

— Quando a chuva passar, vamos atrás deles, eu prometo —


ela disse, ternamente. — Ah, e me desculpe por não conseguir salvar sua
mochila. Os diários da sua bisavó...

— Tudo bem — Nalu fungou o nariz, cruzando as pernas. —


Nem deve haver um tesouro. Não tem mais show para ir. Minha irmã disse
que viria à ilha no primeiro momento que conseguisse, então tudo bem.
Kiwi fez uma careta.

— Do que você está falando? — ela falava com indignação na


voz. — É claro que existe um tesouro. Eu acompanhei todos esses anos. Seu
avô ia até a mansão Angelos e encontrava-se com meu pai. Quer dizer,
ninguém inventa uma mentira tão bem contada assim a ponto de fazer
alguém falsificar um mapa ou dedicar uma vida inteira nisso.

Nalu levantou o olhar, confuso, de repente.

— Conheceu meu avô?

Kiwi cruzou os braços, esquentando as mãos debaixo das


axilas. Não queria ter tocado no assunto.

— Ele ia em algumas expedições com meu pai — apenas disse.

Foi a vez de Nalu querer aliviar suas dores. Levou sua mão à
dela, arrastando os dedos por cima dos ossinhos saltados até chegar em seu
pulso. Então segurou-o gentilmente, dando um pouco de carinho para
aquela garota perdida.

— Sinto muito por ele ser um babaca.

— Você nem imagina — ela suspirou, tirando aquele peso das costas.
— Eu o ajudei a encontrar a maioria das coisas que ele falsificou quando eu
ainda era criança. Mergulhávamos o tempo todo juntos. Eu achava o
máximo poder levar artefatos perdidos para o museu, até que eu descobri a
verdade.

Kiwi sorriu ao olhar para os próprios pés.


— Ele conheceu minha mãe durante um mergulho na Nova Zelândia.

Nalu prolongou o pensamento, tentando arrumar as palavras certas


para perguntar.

— Ela também era uma...

— Sereia? — a garota riu. — Não é o termo correto , mas sim. Nos


transformamos ao tocar a água do mar durante a noite, por isso aquele dia
na Praia da Feiticeira eu quase quis matar você.

Nalu deixou o queixo cair.

— Então era você mesmo!

— Estava anoitecendo e eu estava prestes a me transformar quando


um garoto metido resolveu me perseguir — ela encostou o ombro no dele.
— Quando você caiu na água juro que pensei duas vezes antes de salvar
você.

— Você não ia conseguir deixar um rostinho bonito desses afogar.

— Você é ridículo.

O garoto riu, incrédulo e bateu seu ombro no dela, implicante. Kiwi


abriu um sorriso, deslumbrante. Nalu sentiu o peito aquecer e, por um
instante, não se sentiu mais sozinho. De frente com aqueles olhos, aquela
garota que tanto mexia com ele e toda a história que os circundava, Nalu
teve certeza do que era aquilo. Aproximou-se, sem lembrar em que
momento fechara os olhos. Um sono arrebatador tomava conta de suas
pálpebras. Ele só queria ficar ali para sempre ao lado dela. Sentiu os lábios
de Kiwi tocarem nos seus, quentes o suficiente para não morrerem de frio.
Perfeitos o suficiente, em um beijo calmo, sereno, em um refúgio do mundo
lá fora. Percorreu sua mão por toda a extensão do braço de Kaia, pousando
em seu pescoço, em seus cabelos, em sua nuca. Sentiu o coração palpitar.

Ele teve certeza absoluta.

Afastou-se um único centímetro, onde ainda podia sentir a respiração


de Kaia próxima a dele, onde ainda podia ter certeza de que ela estava ali e
era real. Que aquele sentimento era real. Que ele estava... finalmente
sentindo outra vez.

— Obrigado — ele sussurrou.

— Pelo que?

Nalu esboçou um sorriso.

— Você me traz de volta.


Capítulo Dezessete

Tão Natural Quanto a Luz do Dia

Now Playing: Céu Azul

(Charlie Brown Jr. Música Popular Caiçara ao Vivo)

Nalu acordou com os primeiros raios de sol que invadiram a


caverna. Um calor agradável de feixes dourados pintava um padrão de luz e
sombras no chão de areia, refletindo em seus olhos. Percorreu o lugar, com
a consciência do dia anterior voltando aos poucos, até perceber os longos
cabelos castanhos emaranhados em cima de seu peito.

Kaia, sorriu. Com cuidado para não a acordar, espreguiçou-se e


sentiu uma brisa suave voar para o interior da caverna, como um sopro de
mar. Não lembrava de ser alguém tão atento aos detalhes, mas era um bom
jeito de se viver. A cada respiração profunda de Kiwi, ele se sentia mais
presente no momento. Com cuidado, afastou alguns cachos de seus olhos e
a observou dormir. Ela parecia tranquila e serena, segura em um refúgio que
era só deles.

Ela era linda. Tão linda que fazia Nalu sentir-se nervoso
simplesmente por estar ali com ela e lembrar o que tinha acontecido noite
passada. Mas ao mesmo tempo, Kaia o deixava calmo, em paz. Era uma
sensação difícil de pôr em palavras.
Aproximou-se e pressionou levemente seus lábios em sua testa, um
gesto de carinho que a fez acordar aos poucos com um sorriso no rosto.

— Bom-dia, esquisito.

— Bom-dia, esquisita.

Kiwi encarou-o com aquelas írises tão verdes quanto a beira do


mar, como se fosse impossível desviar os olhos um do outro. Então
sentiram as bochechas queimarem de vergonha ao lembrar o que tinha
acontecido e começaram a rir. Mas era uma vergonha boa, do tipo que
embrulha o estômago com borboletas e um toque de cumplicidade.

De repente, aquela manhã preguiçosa foi interrompida por


vozes vindas do lado de fora. Nalu aguçou os ouvidos e trocou um olhar
com Kiwi ao reconhecê-las quase que imediatamente. Seu coração acelerou.
Nalu levantou-se apressadamente e agarrou a camisa jogada em um canto.
Correu para fora da caverna, vestindo-a ao contrário sem querer e sentindo
a adrenalina tomando conta de seu corpo. Pedregulho e Lince caminhavam
em direção a ele, de mãos dadas. Bem, não por muito tempo, porque
soltaram discretamente em seguida.

Pedregulho abriu os braços com aquela energia contagiante.

— Mano Samurai, que colírio pros olhos!

Nalu correu ao encontro deles e atirou-se em cima dos dois,


calorosamente. Os Garotos Perdidos rolaram duna de areia abaixo, mas não
tinha nada que pudesse atrapalhar aquele momento. O garoto da cidade ria,
sem conseguir acreditar. Depois de uma longa noite sombria, a praia deserta
encheu-se de risos e história.
— O que aconteceu? — Nalu perguntou, tirando areia do
cabelo. — Pensem que tinham ido dessa pra melhor.

Pedregulho suspirou.

— Caímos do barco, o menor aqui ficou preso em umas rochas


pela alça da mochila e...

Foi só então que Nalu percebeu o que Lince carregava nas


costas. Não era possível.

— Minha mochila...

— Está tudo aí dentro — o garoto suricato encolheu os


ombros. — O mapa, os diários... ficaram um pouco deformados, mas ainda
dá pra ler.

Nalu pulou em seu pescoço. Então era verdade. Quando tudo


está perdido, só resta ter esperança. E um Lince na sua vida.

— Valeu, mano. Você é demais.

Abriu a mochila com cuidado e retirou todos os pertences lá de


dentro. Os diários de sua bisavó eram os mais danificados, algumas páginas
haviam derretido ou rasgado, mas nada que uma hora no sol não ajudasse a
recuperar algumas anotações. Por sorte, o mapa estava dobrado dentro de
um deles e continuava praticamente intacto. Já não se podia dizer o mesmo
do Conde de Monte Cristo, que tinha perdido totalmente sua capa,
mostrando o nome borrado de Ed Young logo na primeira página. Lince
aproximou-se e encontrou sua câmera enrolada em uma muda de roupa de
Nalu, uma bermuda ridícula com flamingos estampados.
O garoto correu para tentar ligá-la, entusiasmado.

— Ainda funciona! — o garoto gritou, dando um salto no ar.


Então pôs-se a gravar os garotos na praia, gritando de alegria. Nalu só
conseguia rir ao pensar que aquela maldita bermuda que sua mãe tinha o
feito vestir meses antes tinha salvado todos os registros da viagem.

Kiwi surgiu de dentro da caverna, vestindo novamente seu


casaco grande demais, que, fechado, assemelhava-se a um vestido. Sua cara
ainda estava um pouco amassada e o jeito que ela cerrava os olhos no sol
era a coisa mais fofa do mundo. Ela tinha prendido o cabelo novamente.

Pedregulho estreitou os olhos para Nalu.

— Parece que mais alguém se deu bem ontem à noite.

Nalu coçou a nuca, encabulado, quando algo lhe chamou


atenção. Fez uma careta.

— Espera... MAIS ALGUÉM?

O rosto de Lince ficou mais vermelho que uma flor de hibisco.


Pedregulho engoliu em seco, tentando desconversar.

— Hã... o que acontece na Praia da Caveira fica na Praia da


Caveira.

Nalu levantou-se, girando o corpo. Olhou para todos os lados, à


procura daquele que faltava.

— Vocês viram o Riva no caminho para cá?


Lince abriu a boca, mas pareceu pensar antes de falar.
Balançou a cabeça negativamente.

— Viemos caminhando pelas pedras costeiras, mas não vimos


ninguém.

Uma sensação horrível formou-se no peito de Nalu. Sua


respiração ficou pesada, em um tom alarmante.

— Quer dizer então que... — deparou-se com a enorme entrada


para a floresta, sentindo um arrepio. Ele continua lá.

Uma sensação de inquietação tomou conta de seu corpo. Sem


hesitar um segundo, Nalu largou a mochila de lado e correu pela praia até
chegar aos pés da densa floresta tropical, como a boca sinistra de um
monstro. Não podia acreditar que tinha deixado aquilo acontecer. Riva
morria de medo de florestas, podia estar em apuros e, mesmo assim, ele não
havia feito nada para impedir. Que tipo de amigo eu sou... Correu o mais
rápido que pôde. Os galhos arranhavam seu rosto, seus pés afundavam na
vegetação da mata, tropeçando constantemente em raízes que saltavam para
fora da terra. Eu não posso parar. Riva...

... eu estou indo. Encheu os pulmões e gritou.

— RIVAAAAA!

Pássaros voaram ao se assustarem com a voz do garoto,


ecoando por entre as árvores, infelizmente sem receber uma resposta. A
floresta era vasta e Nalu não sabia seguir ou procurar por rastros. Riva
podia estar em qualquer lugar. Continuou correndo, em desespero, as
palavras da briga da noite anterior o ensurdecendo em sua cabeça.

Você é sempre um mau agouro na merda da minha vida!


Meu melhor amigo me traiu quando eu mais precisei!

Ele também estava sofrendo. Por todos esses anos, Riva sofrera em
silêncio. Nalu nunca mais deixaria ele sozinho outra vez. Nunca se
perdoaria se algo acontecesse ao seu melhor amigo por causa de uma briga
idiota. Fechou os olhos e rezou para qualquer deus ou entidade que existisse
lá em cima. Por favor... me ajudem a encontrá-lo uma última vez.

Nalu ouviu a voz de Kiwi e dos garotos vindo de algum lugar


distante. Não sabia dizer o quanto tinha adentrado a floresta, mas pareciam
estar muito longe. Eles gritavam pelo nome de Riva junto com ele,
espalhando-se pela mata e vasculhando cada canto em busca de qualquer
sinal do garoto da ilha. O tempo passou e Nalu sentia sua voz fraquejar.
Estava morrendo de fome, sede, cansaço, estava desesperado, sentindo seu
coração bater forte a cada grito que dava com esperança que Riva fosse
aparecer.

Até que ele apareceu.

Nalu ouviu seus batimentos cardíacos na garganta ao ver um garoto


loiro de costas para ele. Soltou o ar, como se estivesse prendendo a
respiração por anos.

— Riva, eu... — aproximou-se, mas logo freou o passo ao


perceber o que estava acontecendo. Seu melhor amigo estava paralisado de
medo, dava para ver seu corpo tremelicando mesmo de longe.

Havia uma cobra-coral em seus pés. A mesma cobra que...

— Riva — Nalu sentiu a respiração falhar. Deu um passo. —


Não se mexa.
Riva virou o rosto levemente em sua direção.

— ...Nalu? — choramingou.

Nalu sentiu vontade de chorar. Riva estava petrificado, com o


rosto pálido, os olhos azuis inchados e injetados de vermelho, e seus dentes
rangiam. A cobra escarlate arrastava-se por entre seus tornozelos, aquelas
cores vibrantes e assustadoras de preto e branco, enroscando-se nos pés do
garoto, pondo a língua bifurcada para fora.

Uma lágrima de desespero escorreu pela bochecha de Nalu, que a


enxugou rapidamente. Ele precisava manter a calma.

— Respira, eu já estou indo.

Aproximou-se lentamente, tentando ignorar a tremedeira de seus


joelhos. Pé ante pé, de passo leve em passo leve, Nalu chegou ao lado de
Riva e deu-lhe a mão. Segurou-a forte, tentando fazer com que Riva parasse
de estremecer. Ele estava suando frio. Nalu respirou fundo e deu
continuidade ao plano que ele não tinha. Não sabia como lidar com cobras.
Não fazia a menor ideia de como agir, mas sabia que precisava salvar uma
vida. Inclinou-se e agarrou um galho comprido e resistente do chão. Com
movimentos precisos na medida do possível, pôs o galho ao redor do corpo
reptiliano e empurrou a cobra suavemente para longe. Cobras-corais são
pacíficas, mas ao deparar-se com aquele focinho branco, Nalu precisou se
concentrar para não desmaiar.

O animal rastejou para longe e o garoto da cidade finalmente


suspirou, sentindo a pressão baixar. Abraçou Riva.

— Pronto. Acabou — disse, tentando acalmar a própria respiração.


— Está tudo bem.
Riva demorou a compreender o que estava acontecendo. Permanecia
paralisado, sem retribuir o gesto. Seu corpo ainda estremecia. Nalu agarrou-
lhe ainda mais forte.

— Desculpe por não chegar mais cedo.

— Era uma coral-falsa — o garoto murmurou. — Minha mãe me


ensinou a diferença quando eu tinha oito anos.

— Não importa. Me desculpe por não estar aqui.

Riva sentiu as lágrimas de seu melhor amigo encharcarem seu ombro.


Ele sabia do que Nalu estava falando. Aquilo não era sobre a briga ou sobre
o presente. Era sobre um momento muito específico do passado. Me
desculpe por não estar aqui também , quis dizer, mas as palavras nunca
saíram de sua boca.

Fungou o nariz.

— O que você fez foi bem babaca — murmurou, mordendo a


bochecha. — Mas talvez eu tivesse feito o mesmo... — Riva respirou fundo.
Ele nunca teve a oportunidade de falar aquilo. — Sinto muito pelo Noe.

Nalu sentiu uma pontada no coração.

— Sinto muito pela sua mãe.

Riva deixou uma lágrima escorrer, então muitas outras vieram.


Abraçou Nalu de volta, forte o suficiente para acabar com aquela dor que
dilacerava seu peito.
Passos apressados aproximaram-se e Pedregulho apareceu por entre
as árvores, interrompendo o momento. Parecia extasiado e confuso, mas
aliviado ao ver que os dois tinham se encontrado. Nalu e Riva desfizeram o
abraço, ainda tentando voltar para a realidade. Pedro soltou o ar de uma vez.

— Kaia encontrou uma coisa.

Os garotos correram em direção à praia, freando o passo ao irem de


encontro com a areia. Lince e Kiwi estavam reunidos, vidrados em direção
ao céu. Tinham a mesma expressão de Pedro estampada nos rostos e Nalu
não conseguia decodificar o que ela significava, até perceber o rastro de
fumaça subindo de algum ponto da mata não muito longe dali.

Lince engoliu em seco.

— Você acha que é um incêndio?

— Não — Kiwi perdeu o fôlego de repente. — Tem alguém morando


na Praia da Caveira.

A curiosidade e o senso de urgência fizeram Kiwi tomar a frente,


destemida e impulsiva. Caminhou em direção à floresta, surpreendendo-se
com o que de repente encontrou escondido por entre a vegetação.

— Tem uma trilha aqui!

Era estreita e sinuosa, mas os garotos não tiveram opção a não ser
seguir a garota dos cabelos de maresia floresta adentro. A flora era densa e
as árvores criavam um teto de sombra, com poucos feixes de luz corajosos
passando por entre as folhas. O ar era impregnado de um aroma terroso e
misterioso, preenchido pelo som dos passos apressados do grupo pisando
nas folhas secas.
Nalu abriu espaço para que Riva fosse em sua frente. Ele ainda
parecia nervoso e um pouco atordoado também.

— Ei, está tudo bem, cara?

— Uhum... — Riva murmurou em resposta depois de alguns


segundos. Ele parecia estar tendo dificuldade de caminhar em linha reta.

À medida que os garotos avançavam pela trilha, uma clareira surgiu


na floresta, onde uma pequena e peculiar casinha de madeira era a dona do
rastro de fumaça visto mais cedo, que saía de uma longa chaminé. Os
garotos frearam o passo, intrigados. Não havia registros de ninguém que
morasse na Praia da Caveira e aquilo era no mínimo... esquisito.

Kiwi avançou em direção à porta e bateu três vezes.

— Olá? Tem alguém em casa?

Ninguém atendeu. Nalu olhou ao redor. Não era uma simples casa de
um morador da praia que gostava de viver isolado longe da civilização.
Não. Havia um teto solar e várias outras geringonças no teto, antenas e
parabólicas, cataventos e outras coisas que nem mesmo Lince sabia dizer o
que eram. Nas janelas haviam totens estranhos e uma linha de sal grosso
havia sido posta em frente à porta. Kiwi bufou e bateu mais uma vez, mais
forte e mais incisiva.

— Olá? — bateu mais três vezes com os nós dos dedos na madeira
envelhecida.

Passos desengonçados aproximaram-se do outro lado e a porta se


abriu, de repente, com um estrondo. Um homem alto, vestido de maneira
peculiar os recebeu com uma enorme besta de caça apontada para suas
cabeças. Uma figura estranha de cabelos escuros espetados, olhos azuis e
óculos de graus pequenos demais perto de seu nariz.

— Quem são vocês e como encontraram esse lugar? — gritou,


parecendo mais assustado do que amedrontador.

Os garotos levantaram as mãos em alerta em um reflexo rápido. Riva


foi o único a não reagir. Estreitou os olhos, sentindo o corpo dormente. Sua
visão estava turva, seus joelhos fracos. Quando se está prestes a desmaiar, a
realidade pode pregar peças, mas mesmo assim, aquele homem em sua
frente era tão familiar...

— ...pai?

E desabou no chão.

Capítulo Dezoito

Cuidado Com O Destino, Ele Brinca Com As Pessoas

Now Playing: Meu Novo Mundo

(Charlie Brown Jr. La Família 013)


— Mãe, por que não vamos de barco? É por que você tem
medo do mar?

— O mar é imprevisível, Riva. Estamos mais seguros na terra.

— Mas tem cobras na floresta...

Anahí sempre foi a mãe mais doce do mundo. Riva lembrava


bem dela. Da pele da cor da sua, dos olhos da cor dos seus e até dos cabelos
longos, loiros e crespos. Ela estava sempre usando brincos feitos de conchas
por ela mesma e trançava pulseiras coloridas para o aniversário do filho
todos os anos.

Ela estava sempre sorrindo, mesmo quando Martim


desapareceu no mar.

— Você não tem que ter medo de cobras e serpentes. Elas são
legais — ela dizia. — Vou te ensinar uma coisa, está bem? Para estar
preparado a qualquer momento. Sabe o que fazer se você encontrar a
serpente mais venenosa do Brasil?

Um pequeno Riva balançou a cabeça dizendo que não. Anahí


arregalou os olhos e apontou para os próprios cabelos, com um ar de
contadora de histórias.

— É só olhar para a cabeça dela. Se tiver o focinho branco,


procure ajuda imediatamente. Se tiver a cabeça preta, pode ficar tranquilo.
Vai doer e coçar, mas alguns dias depois você vai estar bem. É quando você
sabe se está lidando com uma coral-verdadeira ou uma falsa. Mas não
precisa se preocupar, está bem? A coral é uma serpente tranquila, não vai
atacar se se sentir ameaçada, ela sempre tenta fugir... só olhe bem por onde
anda e onde põe as mãos na floresta, que você vai estar bem. Combinado?
Riva lembrava bem daquele dia. Lembrava da floresta
sussurrando no escuro, tinham esquecido a lanterna naquele dia, voltando
da cidade. Anahí abriu caminho por entre os galhos, quando foi picada no
braço.

— ...mãe?

Anahí paralisou. Sua voz saiu trêmula.

— Está tudo bem, querido... é só uma coral-falsa.

Riva sentiu as lágrimas se formarem no canto dos olhos.

— Mãe, o focinho dela... o focinho é branco, precisamos ir ao


hospital.

— Não se preocupe, eu estou bem — ela insistia em dizer. — É


só uma coral-falsa...

Estavam no meio da trilha, a três horas de distância de


qualquer civilização. Anahí sentiu apenas uma ardência, não queria
preocupar o filho. Então suas pálpebras pesaram e suas palavras começaram
a se atropelar. Então ela caiu no chão.

Riva tinha apenas doze anos quando passou a noite inteira no


escuro, gritando por ajuda. Eles não tinham para onde correr. Estava
sozinho.

Como o destino é cruel.

Foi como acordar de um sonho nebuloso. Lembrava do exato


momento em que havia sido picado no pé esquerdo, então ouvira Nalu o
chamar. Tudo se tornou um borrão de cores e sensações com o passar dos
minutos. Sua cabeça lembrava de fragmentos desconexos de imagens e
vozes distantes. Voltou a sentir suas pálpebras, voltou a sentir sua língua.
Suas pernas estavam dormentes e seus braços fracos, mas seus olhos se
abriram ao ouvir os garotos murmurando.

Sua visão ainda estava turva, quando Pedregulho gritou.

— Ele acordou!

Riva piscou algumas vezes, ainda atordoado. Apoiou-se no que


parecia ser uma cama com um lençol encardido em cima dele. Olhou ao
redor, tentando lembrar onde estava. Parecia ser uma cabana com uma
decoração um tanto peculiar. Tubos de vidro alinhavam-se nas prateleiras,
estranhos instrumentos e engrenagens eram pendurados nas paredes junto
com varas de pesca, redes e quadros com espécimes marinhas. Não fazia a
menor ideia de como tinha chegado ali, mas ao ver Nalu, Pedregulho, Lince
e Kiwi, acalmou os nervos.

— Que sonho esquisito — levou a mão à cabeça, que parecia


explodir de tanta dor. — Eu podia jurar vi meu...

Os Garotos Perdidos calaram-se, abrindo espaço para uma nova voz


tomar conta do ambiente. Um homem adulto surgiu em suas costas.

— Tiveram a sorte de me encontrar a tempo. O veneno da coral-


verdadeira age entre vinte e sessenta minutos e causa paralisia muscular.
Sorte sua que ele não chegou aos pulmões.

Foi então que Riva percebeu que havia um soro preso em seu braço e
seu pé havia sido enfaixado. O homem aproximou-se com os passos
pesados até chegar em uma cadeira perto da janela e se sentar de frente para
o garoto da ilha.
— Você cresceu.

Riva perdeu o fôlego.

— Pai?

Martim sorriu por trás dos óculos e foi dar um abraço desajeitado no
filho.

— Vem cá, meu garoto. Eu estava com saudades de você.

Riva soltou a respiração, sem conseguir acreditar. Abraçou o velho


Martim que conhecera quando criança. Ele estava bem parecido com o que
lembrava, os mesmos cabelos escuros e espetados, apesar de ter alguns fios
brancos surgindo da raiz. Mas era ele. Era mesmo ele. Riva não queria
soltá-lo. Estava em um misto estranho de êxtase e confusão.

— Mas você desapareceu no mar...

Martim soltou-se do abraço, esticando as costas em direção ao resto


do grupo.

— O que vocês garotos estão fazendo por essas bandas?

— Estamos... — Lince começou a falar, antes que Pedregulho o


interrompesse.

— Gravando um documentário! — e deu uma cotovelada discreta no


garoto.
Martim abriu um sorriso simpático. Ele era cheio de trejeitos
esquisitos que não desciam de jeito nenhum a garganta de Nalu.

— Legal! Só tenham cuidado — ele avisou, ao olhar pela janela,


como se houvesse alguém os observando. — Existem criaturas marinhas
estranhas nessas águas e eu não sairia por aí vagando pela floresta à noite.

Kiwi sentiu um arrepio, de repente. Martim virou-se de volta para


Riva, animado.

— E como vai sua mãe? Continua na loja de artesanato?

Riva baixou o olhar.

— Ela morreu.

Não sabia se tinha sido o jeito que Martim tinha perguntado ou o fato
de ele não fazer ideia sobre nada da vida do próprio filho, mas Nalu sentiu a
raiva subir. Ele sempre fora impulsivo e se tivesse tido uma oportunidade,
tinha dado um soco no estômago daquele cara. Onde ELE estava esse
tempo todo e por que tinha deixado Riva sozinho daquele jeito?

Martim fechou a expressão por um segundo.

— Ah... entendi — falou baixinho. Não pareceu triste, mas sem graça
por ter feito a pergunta. Aquilo sim deixou Nalu irritado.

— Quer dizer que esse tempo todo você estava na ilha? — perguntou
o garoto da cidade, intrometendo-se entre pai e filho. — Por que não entrou
em contato nenhuma vez? O que faz aqui?
O senhor peculiar soltou um riso, parecendo se divertir com a
situação.

— Eu lembro de você... tem a personalidade do seu avô, sabia?


Sempre em busca de respostas.

Os garotos olharam para Nalu sem saber como reagir. Martim


escorou-se na cadeira, abrindo os braços para se apresentar,
orgulhosamente.

— Vocês estão olhando para o legado vivo das pesquisas de Bartel


Van Dijk!

Então as coisas começaram a ficar ainda mais esquisitas. Nalu não


podia acreditar, seu avô tinha deixado suas pesquisas de quarenta anos com
AQUELE cara? Justamente o pai de Riva? Quer dizer... não poderia existir
tal coincidência.

Poderia?

Martim levantou-se em um salto, pondo-se a caminhar de um lado


para o outro, arrumando cadernos e papéis por todo canto.

— Você deve ter visto os estudos dele, não é? Sobre o tesouro do


Cavendish... ARGH! Chegamos tão perto uma vez, mas alguém destruiu
nossa pesquisa.

Kiwi deu um passo à frente.

— Você também está atrás do tesouro?


— Estou, estou. Van Dijk deixou tudo o que eu precisava. Cálculos,
relatórios... no leito de sua morte, descobrimos que o mapa que aquele
maldito Angelos deu a ele era falso. Que pilantra... tenho certeza de que foi
ele. Percebeu que estávamos perto demais e queimou nossos cadernos, mas
posso sentir. O tesouro está aqui em algum lugar — e procurou por uma
cópia do antigo mapa, onde havia um triângulo desenhado na floresta. —
Conseguem ver? Estamos bem no meio. Esse lugar costumava ser uma
organização de piratas no passado.

Martim falava sempre com entusiasmo, as palavras rápidas e


cuspidas combinando com as pupilas grandes demais e o brilho nos olhos.
Parecia sedento por conhecimento. Aquilo chamou a atenção de Lince.
Talvez conseguissem algumas respostas de um profissional sobre o assunto.

— Sabe o que de fato é o butim do Mary Dear? — perguntou o


garoto suricato.

— Ah, meu rapaz... — Martim apoiou-se em uma bancada, deixando


seu cérebro vagar livremente. — Essa ilha é muito mais misteriosa do que
vocês podem imaginar. Não sei ao certo o que é o tesouro, mas durante
esses anos, Bartel e eu tivemos certeza de que há vestígios de civilizações
antigas aqui. Quem sabe até de Atlântida! — entusiasmou-se, levando as
mãos ao ar e parecendo um cientista louco. — Se algum dia a cidade
perdida existiu, temos certeza de que os sobreviventes chegaram à América
do Sul. Não é fantástico?

Abriu uma gaveta, à procura de um desenho muito específico. Lince


arregalou os olhos ao reconhecer aquilo de algum lugar. Um amontoado de
rochas.

— O símbolo da pirâmide, presente mais uma vez — apontou. —


Seu avô encontrou esse marco no meio do caminho de Castelhanos para cá.
Cinco rochas dispostas de maneira totalmente antinatural. Quer dizer, a
busca pelo butim não é uma simples caça ao tesouro... quem quer que tenha
arquitetado seu esconderijo tinha alguma espécie de conhecimento oculto.
Muitos problemas matemáticos para a época, mas infelizmente tivemos que
parar as buscas no início da última década.

— Por quê? — Nalu perguntou, intrigado.

Martim deixou que o silêncio falasse por ele. Olhou um por um dos
garotos e lentamente abriu um sorriso, como se estivesse prestes a contar o
maior dos segredos.

— Existe uma coisa que eu mataria para pôr as minhas mãos —


aproximou-se, perdido em seus pensamentos. — Um dono de terras
chamado Young tinha um roteiro detalhado sobre o exato paradeiro do
tesouro.

Riva sentiu um arrepio e trocou um olhar de relance com Lince. O


garoto estava petrificado. Pedregulho encostou-se no amigo, tentando
acalmá-lo como se dissesse telepaticamente: precisamos ir embora daqui.
Aquele homem podia ser seu pai, mas Riva sentia algo estranho na
atmosfera, algo que ele ainda não sabia dizer o que era. Será que ele seria
mesmo capaz de matar para pôr as mãos em um livro? Bom, ele tinha sido
capaz de desaparecer de sua vida uma vez. Mesmo estando vivo todo aquele
tempo...

Por que você não voltou para casa?

Odiava admitir isso, mas Riva não sabia nada sobre o homem em sua
frente.

— Eu e Van Dijk escavamos toda a área nos anos noventa, mas sem o
roteiro... — Martim engasgou-se, indo em busca de uma garrafa de bebida.
— Desculpem, eu falo demais quando o assunto é esse. Faz alguns anos que
não recebo visitas.
Nalu mirou a besta de caça em cima da mesa, com uma careta.

— É, você é bem receptivo mesmo.

— Me desculpem por isso, eu costumava ser um marujo


antigamente. Um caçador, por assim dizer.

— Caçador? — perguntou Nalu, juntando as sobrancelhas.

Uma sombra percorreu o rosto de Martim.

— Um caçador de sereias, é claro.

O garoto da cidade entrou em alerta. Cuspiu uma risada,


tentando esconder o nervosismo.

— Sereias não existem.

— Já ouvi muito isso, garoto — Martim sorriu com um ar


lunático. — Até eu conseguir a cabeça de uma.

Kiwi engoliu em seco, percebendo um longo colar de prata


preso na parede. Sentiu um enjoo ao reconhecer a quem ele tinha pertencido
anos atrás. Aquele pingente comprido com o desenho de um tubarão Mako.
Agarrou a joia por entre os dedos trêmulos, sem acreditar no que acabara de
ouvir. Era isso... a besta de caça. O sal na porta. Os totens. Martim tinha...
ele tinha...

— O que você fez... — a voz da garota estava trêmula.


— É só um souvenir — o homem fungou o nariz, orgulhoso.
— Guardo um de todas as minhas caçadas. Essa daí resistiu até o último
minuto, foi assustador.

Antes que alguém pudesse reagir, Kiwi urrou um grito


estridente de fúria, partindo para cima do caçador. Nalu correu para segurá-
la pelos braços, mas Kaia Angelos estava possuída de raiva. Avançou,
fazendo Martim cair de costas em cima da bancada. Ela lutava e berrava,
seus olhos verdes com um brilho que nenhum dos garotos nunca tinha visto
antes. A não ser Nalu. Um dia, quando pensou que morreria na Praia da
Feiticeira.

Martim arregalou os olhos.

— Você é uma delas...

Pedregulho empurrou Lince para perto da porta.

— Corre, menor!

Nalu tentava acalmar Kaia, mas ela estava possessa, agarrando


o colar de Mako Tui nas mãos. Martim desviou de um de seus golpes e
correu para alcançar sua besta de caça, posicionando-se para matar. Nalu
puxava a manga de seu casaco, desesperado.

— Precisamos ir.

— Ele matou a minha mãe! Ele... — ela chorava de raiva.

— Não vale a pena, Kaia. Me escute...


— ME DEIXA EM PAZ!

Nalu sentiu o peso daquelas palavras, mas não afrouxou suas mãos.
Segurou seu rosto, implorando para que Kaia prestasse atenção. Era a vez
de ele trazê-la de volta.

— Eu fiz uma promessa — disse com a respiração ofegante,


percorrendo sua mão pelos braços de Kaia, entrelaçando seus dedos com os
dela. Sem desviar o olhar uma única vez. — Não vou deixar que ele faça a
mesma coisa com você.

Martim acionou a besta, errando por um triz a cabeça de Nalu. Um


barulho estrondoso estremeceu a cabana de madeira ao perceberem que a
porta já era. Tinha sido estraçalhada com um único tiro. Lince engoliu em
seco. O caçador possuía a mira e eles não tinham para onde fugir.

Riva soltou o soro do braço e, sem hesitar, saltou para cima de seu
pai, tentando desarmá-lo.

— FUJAM! — gritou.

Nalu assentiu com a cabeça e levou Kiwi para o lado de fora. Martim
enfureceu-se, empurrando Riva contra a bancada.

— O que está fazendo, precisamos exterminá-las!

Riva agarrou-lhe a cintura, tentando derrubá-lo.

— Era isso que você estava fazendo quando a mamãe morreu?


Martim desvencilhou-se com força, batendo a besta nas prateleiras e
fazendo milhares de cacos de vidro voarem. Riva baixou a cabeça.

— Não temos escolha, você viu aquela coisa? — o caçador gritava.


— Elas estão entre nós, Riva. Precisamos...

— Aquela COISA é minha AMIGA!

O garoto gritou, empurrando-o de encontro com a cama. Lince


assustou-se e agarrou a mochila para fugir, porém o garoto tinha o azar de
uma de suas alças sempre ficar presa nos piores lugares. E dessa vez,
prendeu-se em uma tábua quebrada da porta. Lince caiu no chão de costas,
fazendo a mochila estourar. Todos os papéis e diários esparramaram-se pelo
chão. Martim arregalou os olhos ao ler aquele nome que ele tanto procurou
nos últimos anos. Um livro de capa arrancada.

Um nome manchado em uma versão do Conde de Monte Cristo.

Ed Young.

— Você… encontrou.

Pedregulho voltou ao perceber a confusão. Droga, menor! Ajudou


Lince a se levantar e a recolher tudo o que havia caído no chão de terra.
Riva soltou o pai, ainda em choque demais para raciocinar tudo o que havia
acontecido. Mirou aqueles olhos claros uma última vez e desatou a correr,
desaparecendo floresta adentro.

Martim levantou-se, com as veias saltando de raiva. Agarrou sua


besta de caça, sentindo o sangue pulsar em sua cabeça.

— VOLTEM JÁ AQUI!
Nalu segurou ainda mais firme a mão de Kiwi ao ouvir aquele berro
vindo de trás. Pedregulho e Lince os seguiam de perto, enquanto Riva era o
último a correr pela trilha. Seus corações batiam com força, as pernas
moviam-se o mais rápido que conseguiam, mas mesmo o mais rápido às
vezes não escapa de um covarde por trás de uma arma.

— AAAAHH!

Uma flecha grossa e certeira voou ao lado da cabeça de Pedregulho,


perfurando um tronco de árvore e atravessando-o por completo. Martim
estava se aproximando e tinha sangue nos olhos.

Flechas passavam zumbindo próximas de seus corpos, ecoando como


um aviso sinistro. Os garotos tentavam desviar, com medo de a qualquer
momento um deles cair sem vida no chão. O sangue pulsava em suas
orelhas tão alto que era a única coisa que se ouvia. Não havia tempo de
olhar para trás e não havia tempo de ver se estavam longe o suficiente da
vista do caçador. A única coisa que podiam fazer era correr.

Até não aguentarem mais.

Nalu freou o passo ao deparar-se com um rio extenso. A água corria


rapidamente e parecia desembocar em algum lugar. Uma cachoeira talvez.
Haviam pedras no meio do caminho, mas não dava para ver qual era sua
profundidade. Kiwi agarrou sua mão de volta. Precisavam atravessar
imediatamente. Pularam para a primeira pedra. Pularam para a segunda e
assim continuaram. Pedro e Lince alcançaram-nos, imitando o caminho
imaginário que a garota traçava. Então, Riva apareceu logo em seguida.
Aquilo era preocupante, um rio só iria atrasá-los e segundos de vantagem
era tudo o que tinham. Tempo suficiente para...

Martim surgiu por entre as samambaias, com a besta armada. Aquele


sorriso nojento surgiu em seus lábios quando mirou em seu alvo.
— Peguei você — então atirou.

Foi rápido demais e Nalu só entendeu o que havia acontecido,


quando a garota ao seu lado caiu bruscamente no chão.

— KAIAAAA!

O sangue escorreu rio abaixo, manchando a água de vermelho. Nalu


abaixou-se para ajudá-la a levantar. Kaia tinha sido acertada bem na
panturrilha e estremecia de dor, caída em uma das pedras. Ele não sabia o
que fazer, não sabia... pôs uma de suas mãos gentilmente debaixo de sua
nuca e a posicionou em seu colo. Ela estava sangrando muito. Tirou a
camisa desesperadamente, amarrando-a ao redor da flecha, que tinha
atravessado sua perna. Ele não podia arrancar, ela sangraria até a morte...

Nalu não pôde evitar as lágrimas de caírem. Ele estava desidratado,


não havia mais o que chorar, mas ver Kaia daquele jeito era devastador. Era
assustador ver uma garota tão forte quanto ela, frágil daquele jeito.

— Consegue se mexer?

Kaia balançou a cabeça negativamente. Ela não parecia bem... não


parecia que aguentaria ficar acordada por muito tempo.

Os garotos foram ao encontro da amiga e formaram uma barreira ao


seu redor. Nalu levantou, aninhando-a em seu colo. Precisava ser forte.

Martim riu ao acertar sua presa e mirou mais uma vez, determinado
em disparar uma última flecha contra aquela que ele chamava de monstro.
Mas antes que tivesse a chance, Riva saltou em frente aos garotos, abrindo
os braços em uma onda de coragem. O caçador rangeu os dentes.
— Se afasta, Riva...

— NÃO! Se afasta você! — gritou em resposta, sem fraquejar.

Martim grunhiu, impaciente.

— É só me entregarem o roteiro que ninguém precisa se machucar.

Riva sentiu uma pontada no peito, uma facada, um golpe maldoso em


que ele já havia caído uma vez. Ninguém precisa se machucar, sentiu os
olhos arderem. Kiwi estava pálida sem conseguir se mover e Riva tinha
entendido quem aquele homem era no final das costas. Não sabia como
tinha se deixado enganar por um segundo que fosse. Martim havia avisado.
Ele mataria para pôr as mãos no que queria.

— ...Eu chorei por você. Pensei que tinha morrido. Eu estava sozinho
quando ela seu foi — Riva engoliu o choro. — Você não tem o direito de
aparecer de novo na minha vida para machucar mais pessoas que eu amo!

— Riva, eu estou avisando...

— O quê?! Vai mesmo atirar no próprio filho por causa de um


tesouro? — soltou uma risada melancólica. — Quem é o monstro, pai?

Martim fechou a mão ao redor da besta.

— Já chega.

Levantou a arma, uma flecha já disposta a ser lançada uma última


vez. A tensão no ar era terrível, a respiração dos garotos estava frenética.
Doía no coração de Riva pensar no que aconteceria em seguida, mas não
recuaria. Não deixaria que seus amigos morressem. Fechou os olhos, talvez
assim sentisse menos medo.

Que mentira. Ele não estava pronto para morrer.

Martim grunhiu, de repente, ao sentir algo acontecer. Riva abriu um


dos olhos, percebendo o quanto a floresta tinha escurecido de repente, como
se uma enorme sombra tivesse engolido a natureza de uma vez só. Martim
abaixou a besta, sua voz tremendo de medo. Seus olhos levantaram para o
alto das árvores, através dos garotos, vislumbrando algo aterrorizante.

— ...Elora — murmurou, com uma expressão de horror no rosto.

Não teve tempo de ter outra reação. O caçador largou a besta no


chão, correndo ofegante de volta para casa. Não havia explicação lógica
para o que tinha acabado de acontecer. Martim estava determinado a matar
o próprio filho se fosse preciso e, de repente, deu meia volta, largando tudo
para trás em disparada como se tivesse visto um...

Lince levantou o indicador trêmulo no ar.

— ...F-f-fantasma!

Capítulo Dezenove
Quando Tudo Se Torna (Im)Previsível

Now Playing: Contrastes da Vida

(Charlie Brown Jr. La Família 013)

Os garotos viraram-se para trás assustados, mas não havia nada. Ou


Martim tinha acessos de loucura ou talvez estivessem cansados demais para
entender. De repente, uma luz forte surgiu de algum lugar além do rio, um
brilho hipnotizante, chamando por entre as árvores mais antigas.

Pedregulho tomou a frente e saltou para as margens do rio, correndo


para não perder aquilo, o que quer que fosse, de vista. Lince o seguiu de
perto, cuidando onde pisava e com o mapa totalmente amassado em mãos.

— Martim estava certo, estamos bem no centro do triângulo que


indica no mapa.

Pedregulho agarrou sua mão para o garoto apressar o passo.

— Então temos que dar uma olhada, não é?

A adrenalina aumentava só de pensar que estariam tão perto do “X”.

Riva, que ainda recuperava o fôlego depois de pensar que estava de


frente para a morte certa, foi ao encontro de Nalu e Kiwi, que já não tinha
mais cor em suas bochechas.
— Como ela está?

Nalu fungou.

— ...nada bem.

Pedregulho correu por entre a mata, até que a misteriosa luz se


apagou ao chegar em uma clareira. Olhou para o céu. Desde quando o sol
tinha se posto? A floresta de repente, soava muito mais assustadora que
antes. Lince arregalou os olhos ao perceber o que havia logo à sua frente.
Procurou pelo livro de Ed Young na mochila e folheou até a página 427,
onde tinha visto o desenho pela primeira vez. Percorreu seus dedos pela
página, sem conseguir acreditar. Era majestoso.

O marco da pirâmide. Cinco enormes rochas que caíam entre si de


maneira perfeita, apontando para o céu noturno e as tantas estrelas que
iluminavam a clareira como algum portal sobrenatural. O garoto suricato
perdeu o ar.

— É esse o lugar.

O resto dos garotos chegaram e Nalu sentou-se no chão, encostando a


cabeça de Kiwi em seu joelho. Seus lábios e pálpebras estavam arroxeados.
Verificou o machucado. Sua camisa estava encharcada de sangue. Nalu
sentiu um aperto no peito. Não podia perdê-la também. Simplesmente não
podia. Não suportaria passar por aquilo mais uma vez. Inclinou o corpo e
deu-lhe um beijo, seus lábios trêmulos encostando em sua testa. Kiwi
suspirou.

— Oi, esquisito... — murmurou.


Nalu riu, sentindo o gosto salgado das lágrimas chegando em sua
boca.

— Oi, esquisita.

Ela tossiu, contorcendo o peito, com uma força que ela nem tinha
mais.

— Tá bem feio, né?

Nalu engoliu em seco, balançando a cabeça negativamente.

— Você vai ficar bem — e levou seus dedos de encontro com os dela
em uma promessa. — Não vou soltar, lembra?

Riva tentava ignorar a situação a alguns passos de distância. Sabia


que aquilo tinha sido sua culpa e culpa do maldito de seu pai, então pôs-se a
procurar por pistas ao lado de Lince. Definitivamente, não parecia ter nada
no local, nenhuma entrada ou marcação no chão que desse para escavar.
Nada nas árvores também. A clareira não era muito grande, mas dava para
ver que seu terreno já tinha sido muito explorado. Lince parecia confuso ao
seu lado.

— Procurem pelas escrituras de “E+T” nas pedras!

Pedregulho e o garoto da ilha puseram-se a rodear o marco das cinco


rochas. Havia muito musgo grudado na superfície, como um aviso para o
local permanecer intocado, mas Riva não era um grande seguidor de regras.
Estreitou os olhos ao perceber um desenho que lembrava vagamente o
desenho de um coração. Arrancou as bandagens do pé e limpou as
escrituras.
Abriu um enorme sorriso.

— Ei, eu encontrei! — gritou, orgulhoso do trabalho.

De repente, ouviu um som suave e misterioso vindo das profundezas


da floresta. Uma brisa gelada, um murmúrio, um eco distante. Quando se
virou de volta para seus amigos, sentiu a atmosfera pesar e um arrepio lhe
percorreu a espinha ao deparar-se com um rosto desconhecido no meio das
folhagens, encarando-o de perto de um jeito macabro.

— AAAH!

Riva saltou para longe, arregalando os olhos de medo. Os garotos


aproximaram-se, assustados, então paralisaram ao perceber uma senhora
muito, muito idosa, com rugas profundas percorrendo toda a sua face. Riva
deu um passo para trás ao perceber que ela se aproximava, parecendo
flutuar com os pés próximos ao chão. Havia algo sereno sobre aquela
figura, mas, mesmo assim, não deixava de ser apavorante.

A senhora levou uma de suas mãos ao rosto de Riva, analisando-o


com carinho, percorrendo seus dedos por seus cabelos loiros e pela sua
mandíbula, como se pudesse, de alguma forma, ler sua alma. Seus olhos
penetrantes pareciam tristes e cansados.

— Eu esperei você por tanto tempo — ela apenas disse. — Tom...

Foi como uma sensação eletrizante, percorrendo todo o corpo do


garoto. De repente, no mesmo instante, uma abertura surgiu no chão,
debaixo de seus pés, engolindo Kiwi e todos os garotos para dentro da terra.

— AAAHHH! — gritaram de horror, enquanto seus corpos eram


levados por um longo caminho escorregadio, guiados por uma força
invisível, até o encontro de uma câmara subterrânea.

Caíram com um baque alto e forte, indo de encontro com um chão de


pedra.

Riva levantou-se atordoado. Seu pé e sua cabeça ainda latejavam.


Nalu caiu de mal jeito e piscou os olhos algumas vezes para se acostumar
com o total escuro, até lembrar que Kiwi havia caído próxima a ele. Correu
desesperado ao seu encontro.

—Você está bem? — perguntou, preocupado. Mas não teve resposta.

Lince levantou-se, esfregando a cabeça e olhando ao redor. A câmara


era mergulhada no breu, desorientando qualquer aventureiro que a
encontrasse. O garoto suricato não sabia dizer, mas não parecia que
qualquer humano já tivesse conseguido chegar até ali. Então lembrou-se da
senhora misteriosa. A mesma luz branca que vira no rio surgiu no topo de
suas cabeças, brilhando na superfície. Agora dava para ver mais, o que não
necessariamente deixava de ser menos assustador. As paredes de pedra
eram espessas e antigas, cheias de escrituras estranhas e desenhos
intrigantes, como um tesouro arqueológico perdido no tempo.

O garoto sentiu um calafrio.

— Onde estamos?

Pedregulho segurou em seu braço.

— Vamos dar o fora daqui.

— Não dá! — Nalu respondeu em meio ao escuro. — Não tem como


voltar por onde entramos, não sem uma corda. — voltou a pôr sua mão na
testa da garota desacordada em seus braços. Ela ainda estava quente, talvez
quente demais. — Aguenta firme, Kaia.

Pedregulho grunhiu.

— Que merda!

O garoto da ilha caminhou pelo espaço, explorando a câmara. Uma


sensação estranha tomava conta de seu corpo, como um deja vu . Como se
já tivesse conhecido aquele lugar em seus sonhos. Caminhou alguns passos
para o fundo, até que seus olhos se acostumaram. Sentiu a respiração falhar.

— Galera, acho que vocês vão querer dar uma olhada nisso.

Havia uma espécie de trono preso à parede e sentado nele, um


esqueleto humano, vestindo um sobretudo antiquado e um chapéu de três
pontas. Uma adaga perfurava o tecido, juntamente com seu crânio. Riva
poderia estar ficando maluco, mas aquele sujeito parecia muito com um
pirata. Então a voz da senhora misteriosa voltou a ecoar em seus ouvidos.
Aquela mão gélida, aqueles olhos penetrantes. "Eu esperei você por tanto
tempo..." O que aquilo significava?

Lince não se aproximou. Só pelo jeito que tropeçou nas palavras, era
óbvio que estava morto de pavor.

—Você acha que esse é... ele é o...

— Thomas Cavendish — Pedregulho arregalou os olhos.

Riva juntou as sobrancelhas, lembrando da escritura que encontrara


na superfície. “E+T” junto a um coração.
— Eu esperei você por tanto tempo... — repetia, tentando juntar as
peças. —Thomas e...

— Elora.

Os garotos assustaram-se ao ouvir a voz de Kiwi. Nalu voltou-se para


ela, que abria a boca lentamente como se murmurasse durante o sono. Ela
ainda estava acordada. Nalu a segurou mais firmemente.

— Eu já... — a garota estremeceu. — Já li sobre uma lenda assim. Há


vários relatos de uma senhora misteriosa que assombra quem se atreve a
passar por esse lado da ilha. Thomas Cavendish desapareceu depois de
deixar para trás dezenas de descendentes, um tesouro inestimável e o amor
de sua vida.

Riva perdeu o fôlego. Todas as peças finalmente se encaixavam.

— É isso. Elora... ela ficou esperando esses anos todos para Thomas
voltar, mas...

— Ele já estava morto — Nalu acrescentou, perdido em algum lugar


dentro de sua cabeça. Kiwi encolheu-se em seu colo.

— É você, Riva. Por isso meu pai ou o seu ou Bartel Van Dijk nunca
encontraram nada. Elora esperou esses anos todos por um descendente do
próprio Cavendish reencontrá-la.

Riva fez uma careta, confuso.

— Eu não posso ter sido o primeiro a tentar.


— Mas foi o primeiro a encontrar o roteiro — disse Kiwi, com a voz
tão fraca que Nalu tinha sempre o medo de aquelas serem suas últimas
palavras.

Então algo iluminou sua cabeça. Nalu soltou o ar.

— Como se tudo tivesse sido premeditado...

O garoto da ilha olhou ao redor mais uma vez. Talvez não em sonho,
mas talvez a lembrança daquele lugar, sua curiosidade pela história, pelo
tesouro, sua sede por encontrar o butim do Mary Dear... talvez tudo aquilo
estivesse em seu sangue.

Pedregulho bufou, claramente querendo fugir dali.

— Mas cadê o tesouro? Sabe, as joias e o ouro...

Riva aproximou-se do esqueleto com cautela.

— Espera um momento.

Havia algo de incomum naquela visão. Um bilhete encardido havia


sido pendurado no ar pela adaga, o que mudava tudo. Aquela que parecia
ter sido a arma responsável pela morte de Thomas Cavendish, tinha deixado
um último recado para ser encontrado. Com as mãos trêmulas, mas
determinadas, Riva rasgou o bilhete, soltando-o da lâmina.

Pedregulho espichou o pescoço, curioso.

— O que está escrito?


O garoto da ilha abaixou a cabeça, olhando de relance para Nalu, que
entendeu o recado. Riva aproximou-se do amigo, arrastando os pés pela
câmara e estendeu-lhe o bilhete para que pudesse ler.

Nalu estreitou os olhos, sem acreditar. A caligrafia era rebuscada,


mas a mensagem era tão simples quanto se podia imaginar. As palavras
“You Fools” haviam sido escritas em inglês e Nalu precisou segurar a
vontade de rir. Nada mais significava do que “Seus idiotas”.

— Cavendish seu pilantra...

— O que diz? — Lince perguntou, sem soltar a mão de Pedro.

Riva fez uma careta, intrigado. Era quase hilário pensar naquilo.

— O tesouro nunca esteve aqui, não é? O mapa era para o túmulo


dele.

— Mas — Lince deu um passo à frente, parecendo adoravelmente


indignado. — Quer dizer, não faz sentido. Houve um butim, o Mary Dear
foi realmente saqueado por piratas.

Os olhos astutos de Riva foram chamados mais uma vez em direção


ao corpo de Thomas Cavendish. Havia algo escondido por trás de suas
vestes. Algo rebatendo a luz.

Então o brilho da superfície apagou-se, quando barulhos inusitados


surgiram da superfície. Eram o som de sirenes e vozes humanas, luzes
azuis, vermelhas, amarelas de lanternas que dançavam pelo escuro em
busca de algo. Os passos aproximavam-se rapidamente, até que uma moça
surgiu no alto da entrada da câmara, surpresa aos ver.
— Eles estão aqui! — gritou.

Riva guardou rapidamente algo dentro das calças. Droga, pensou.

A guarda costeira havia os encontrado. E não apenas eles, o pessoal


do Parque Estadual e da delegacia tinha os rastreado até ali. Era quase
impossível acreditar que os encontrariam em um lugar tão deserto e
intocado como aquele, mas havia acontecido. Estavam todos ali, prontos
para resgatar e socorrer o bando de jovens que tinha desaparecido nos
últimos dias.

Uma equipe formada por dois bombeiros e uma médica desceu por
cordas até o fundo da câmara. Kaia foi a primeira a ser socorrida, apesar de
Nalu demorar para entregá-la. Lince subiu logo em seguida, percebendo que
a operação de resgate era muito maior do que haviam imaginado, como se
toda a ilha tivesse parado por conta deles. Seus pais estavam ali, abraçados
e preocupadíssimos quando avistaram o filho.

Lince sentiu uma vontade absurda de chorar. Correu ao seu encontro


sem pensar duas vezes e desabou no colo de sua mãe, pedindo mil e uma
desculpas por ter desaparecido daquele jeito, mas não recebeu um sermão.
Foi recebido de braços abertos.

Pedregulho e Nalu foram os últimos a subir. Riva conversava com a


médica sobre seu acidente com a cobra-coral e, mesmo que insistisse em
dizer que já tinha injetado o antídoto, foi levado para dentro da ambulância
com Kiwi, onde ficou sentado com as pernas para fora do veículo, como se
armasse uma fuga a qualquer instante. Foi só então que Nalu percebeu o
quanto a perna da garota que era levada de maca para dentro do veículo
estava inchada e infeccionada. A flecha permanecia ali.

Riva sentiu um alívio gigantesco e uma satisfação ao ver que os


policiais haviam encontrado seu pai no meio do caminho pela mata e agora
Martim era levado para dentro de uma viatura. Debatia-se, tentando se
soltar e se explicar dizendo que a pesquisa de uma vida estava dentro de sua
casa e que não podia deixar tudo para trás. Riva encarou-o nos olhos antes
de ser empurrado para dentro do carro de polícia. Um olhar que, com sorte,
Martim, lembraria para sempre.

Como aquele monte de veículos e pessoas tinham chegado até ali era
um mistério, mas o Parque Estadual era cheio de atalhos secretos pela
floresta.

Os garotos foram ao encontro do amigo, sentado na borda da


ambulância, que agora tinha o pé enfaixado mais uma vez. Pedregulho
apontou para algum lugar perto das árvores.

— Meus pais — indicou, afastando-se sem jeito. — ...valeu por


fazerem o Lince sorrir um pouco. Ele sentia falta de vocês.

E caminhou até eles, de cabeça baixa, pois já deveria imaginar que


levaria um cascudo bem dado nos cabelos. Riva e Nalu soltaram uma
risada. Mais uma vez, eram apenas eles dois.

Nalu suspirou.

— Acho que a caçada termina aqui.

— É... — Riva concordou, estendendo o braço. — Foi uma boa


aventura.

E trocaram um caloroso aperto de mão, como o fim de uma longa era.


Nalu nunca pensou que teria de mergulhar de cabeça em uma aventura
pancada, naufragar um barco, enfrentar cobras e um lunático morador da
floresta para ter seu melhor amigo de volta. Mas estava feliz por ter
conseguido e, não importava o que acontecesse em seguida, ele faria tudo
outra vez.

E Riva, bem... ainda tinha uma carta na manga.

Camila apareceu desesperada, abrindo espaço por entre os oficiais,


com aquela mesma expressão de confusão, como se fosse perguntar mais
uma vez o que havia acontecido com os sapatos embarrados do filho ou
porque ele continuava usando aquela meia furada ridícula, mas não disse
nada. Correu para abraçar Nalu, tão forte que ele podia jurar que desmaiaria
ali mesmo no conforto de seus braços fortes demais.

De repente sentiu vontade de ficar ali para sempre.

— Oi, mãe... — resmungou.

— Nunca mais me assuste desse jeito, ouviu bem?

— Pode deixar. Sem mais caças ao tesouro.

Camila Castelo riu, levando sua mão aos cabelos do filho.

— Não foi isso que eu disse — suspirou, aliviada. — Mas prometa


que essa é a última vez que vai parar na delegacia.

Nalu fez uma careta. Essa parte do sermão sempre chegava.

— Tudo bem, mãe....

Camila separou o abraço, fazendo aquele meliante olhar fundo nos


olhos dela.
— Promete.

Nalu soltou uma risada.

— Eu prometo.

Mas havia um dos garotos ali que não havia uma mãe ou uma família
para abraçar, apenas um pai que estava prestes a ir para trás das grades. Um
garoto que Camila reconheceria de longe mesmo que não o visse desde os
doze anos de idade. Sorriu, abrindo os braços em direção a Riva.

— Vem você aqui também.

O garoto da ilha pareceu surpreso e lançou os olhos azuis de relance


para Nalu, como se pedisse por permissão. O garoto da cidade deu de
ombros.

— Abraços triplos são muito melhores, todo mundo sabe disso.

A família Castelo-Sakurai aproximou-se, envolvendo Riva em seus


braços. Ele ainda estava tímido, encolhido com o gesto. Camila sempre foi
uma segunda mãe para ele, o que o fazia sentir muita, muita falta mesmo da
sua. Mas era reconfortante saber que tinha alguém para o refugiar durante
as tempestades, alguém que, não importava o que acontecesse, estaria ali,
de braços abertos para ele.

Retribuiu o abraço, um pouco antes de uma baixinha raivosa abrir


caminho dando cotoveladas em todo mundo. Nadi apareceu por entre a
multidão de oficiais e deu um cascudo furioso na cabeça de Riva.

— Ouch.
— Você é um grande imbecil sabia? — ela choramingava.

Riva demorou alguns segundos para entender o que aquilo


significava, então caiu na gargalhada, envolvendo-a em um abraço.

— Também amo você.

Capítulo Vinte
Fazer Histórias Tristes Virarem Melodia

Now Playing: Senhor do Tempo

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

A noite foi mais serena do que o esperado. Nalu já tinha


bastante experiência com a polícia, mas logo que Phillip Angelos chegou,
retirou todas as acusações de invasão de propriedade privada e roubo contra
eles. Disse estar apenas preocupado com o sumiço de sua filha, que agora
estava no hospital para uma cirurgia de última hora.

Nalu passou de skate todos os dias em frente ao centro de


saúde, mas nunca o deixaram entrar. Uma vez comprou briga com os
guardas e tentou invadir o prédio, mas foi pego antes de chegar ao elevador.
Ele só queria saber se Kaia estava bem, se estava se recuperando, comendo
direito e tendo belos sonhos. Esse tipo de coisa. Mas Phillip não deixava
que ninguém se aproximasse, não aprovava nenhuma visita de ninguém de
fora da família. O que não foi diferente quando Kaia voltou para casa
depois de três semanas para as férias de inverno.

— Me frustra saber que ela vai passar esse tempo todo trancada
dentro de casa só com ele — Nalu resmungou no último dia de aula.

Lince suspirou ao seu lado. Ele estava melhor no skate, já tinha


aprendido a remar sem cair.
— Podemos tentar dar oi pela janela do quarto! — tentou o
garoto suricato.

— Ele instalou câmeras por toda a fachada da mansão Angelos.


Já tentei ir pela praia também, mas ela nunca aparece na janela — disse
Nalu, revoltando-se. — Sabia que ele confiscou a Olive dela?

Lince fez uma careta.

— Quem?

— A kombi... argh. Esquece.

Os garotos frearam seus skates ao chegarem na placa que


indicava a Praia das Pedras Miúdas e a Ilha dos Guaiamus. Nalu odiava ter
que voltar para casa para as férias, como se tivesse perdido um propósito ou
uma guerra.

— Nos vemos amanhã na Casa da Árvore? — perguntou.

Foi a expressão de Lince que o entregou antes que falasse.

— Sabe, hã... prometi para os meus pais que eu focaria meu


tempo integralmente para o vestibular até o fim do ano.

Nalu juntou as sobrancelhas. Queria retrucar, dizer que eles


estavam de férias e que tinham que aproveitar, mas sabia como aquela
oportunidade significava o mundo para ele, desde que eram crianças. Nem
sempre os sonhos dos amigos são iguais aos seus. Demorou para que Nalu
percebesse isso durante a adolescência. Era um problema que seu pai tinha
e como não via a arte de Nalu como ele podia ver. Como algo
extraordinário. Talvez a faculdade fosse extraordinária para Lince e Nalu
não era a pessoa que o impediria de seguir seus sonhos.

— Boa sorte, garoto — deu-lhe um cascudo.

— Pedro vai passar uns dias lá em casa. Acho que ele


finalmente decidiu que quer tentar ir para a federal também — disse Lince,
sorridente. — Vou ajudá-lo a estudar.

O garoto da cidade levantou as sobrancelhas.

— Me trocou pelo seu namorado? Isso é injusto.

Lince segurou um riso, ficando vermelho. Nalu cuspiu uma


risada.

— Pelo menos vê se compra um celular, senão vamos passar


mais cinco anos sem conversar.

O garoto suricato bateu continência.

— Pode deixar!

Yoko chegou à ilha alguns dias depois. Seu cabelo estava mais
comprido do que nunca e ela tinha feito uma tatuagem no rosto. Uma
carinha feliz ao lado de um dos olhos. Camila quase a matou, mas a saudade
bateu mais forte. Era bom estar todo mundo junto outra vez. Passavam as
tardes frias e chuvosas fazendo bolinhos de chuva, assando pão de queijo ou
queimando brigadeiros de panela. Yoko convenceu o irmão a assistirem
toda a franquia de Jogos Mortais. Em troca, Nalu a fez assistir H2O –
Meninas Sereias. Foram férias caseiras, mas muito divertidas. Quando o
tempo melhorou um pouco, Nalu levou a irmã para conhecer o cinema
municipal e ele riu um monte com a careta que ela fez quando as pessoas
bateram palmas depois de uma sessão de Crepúsculo.

— Tudo bem, isso é muito bizarro.

Julho passou como um furacão. Nalu finalmente estava


conseguindo dormir bem, depois de meses de insônia. Apesar disso, ele
sempre teve o sono muito leve. Naquela noite, quando algo o acordou
abruptamente, ele levou um susto. Um rangido sutil fez com que seus olhos
abrissem instantaneamente e ele ficou ali, deitado imóvel na cama, tentando
entender o que estava acontecendo.

Barulhos estranhos ecoavam pelo quarto, percorrendo a


escuridão. Sons suaves que se assemelhavam a passos ou o roçar de um
tecido nos móveis de madeira. Sua respiração acelerou, seu coração
martelou em seu peito, quando entendeu que alguém havia invadido seu
quarto pela janela.

Com um impulso, Nalu sentou na cama e ligou a luz do abajur,


gritando ao ver uma pessoa em sua frente.

— AAAHHHHHH!

— AAAHHHHHH!

O garoto dos cabelos loiros saltou de susto, gritando em


resposta ao berro de Nalu. Riva levantou as mãos para a frente,
movimentando os dedos freneticamente para tentar acalmar a situação.

— Sou eu, sou eu, sou eu!


Yoko adentrou o quarto, chutando a porta com um só golpe e
uma tábua de madeira em mãos, pronta para o ataque do que quer que
tivesse invadido sua casa e feito seu irmão caçula chorar. Os garotos
arregalaram os olhos em direção a ela, que pareceu um pouco desapontada
ao ver o garoto da ilha ao lado da cama.

— Ah, é só você... — revirou os olhos. — É SÓ O RIVA,


MÃE!

Ela tinha o hábito de ser um pouco superprotetora demais com Nalu.

E fechou a porta com força atrás de si. Nalu ainda estava


ofegante, recuperando-se daquela palhaçada. Usava a mesma camiseta
branca de pijama encardida.

— Não pode sair por aí invadindo a casa dos outros.

Riva deu de ombros.

— Acho que está um pouco tarde demais para isso.

Os dois cuspiram uma risada. Riva pareceu animado, de


repente, puxando os cobertores de Nalu para fora da cama.

— Escuta, quero te levar em um lugar.

Nalu olhou para o relógio, franzindo o nariz. Eram quatro da


manhã.
Os garotos roubaram um caiaque da ilhazinha e lá se foram, se
aventurar no mar noturno mais uma vez. A ilha ficava muito mais
misteriosa à noite vista de fora, como um templo ou um guardião
observando-os constantemente. Remaram por um bom tempo, passando
pelo centro comercial e o histórico, até chegarem em uma prainha bem
menor e mais escondida que as outras. Riva fez menção para que
atracassem na areia e saltou para fora do caiaque, molhando os pés na água.

Nalu fez o mesmo, ainda lutando para acordar.

— Onde estamos?

Riva respondeu apenas com um sorriso maroto.

— Você vai ver quando a gente chegar lá.

A praia era cercada por uma vegetação exuberante e palmeiras


altas que balançavam suavemente ao sabor da brisa salgada. Havia um
conjunto enorme de pedras no canto direito e como a maré ainda estava
baixa, não foi difícil encontrar uma escada que se escondia por trás de uma
das árvores. Nalu subiu os degraus arrastando-se e tentando ignorar o frio
que estava fazendo naquela madrugada. Riva deu um segundo para ele
decidir se queria pôr calças ou um casaco antes de sair de casa e a escolha
foi bem óbvia.

O garoto da ilha continuou abrindo caminho até chegarem a


uma enorme pedra com uma cruz branca esculpida em sua ponta. Nalu
demorou a perceber, mas havia uma capela esquecida logo atrás deles. Era
algo um pouco assustador e ele não parava de se questionar quantas coisas
estranhas ainda descobriria naquela ilha.

— Vem! — Riva voltou a indicar, passando pela capela e


adentrando outra pequena trilha que levava para a praia vizinha. Ou para
algo ainda mais surpreendente.

Havia um longo deque de madeira que se estendia acima do


mar. Não pareceria estranho se fosse simplesmente isso. Mas Nalu não
podia acreditar no que via. Perto da metade do caminho flutuante, havia
uma porta que não levava a lugar nenhum. Estava simplesmente ali, no
meio do mar, como um enigma a ser desvendado. Como se estivesse cheia
de segredos ou como se fosse um portal para outra dimensão.

Nalu não sabia explicar a sensação de estar ali. Parecia algo


retirado direto das páginas de um conto de fadas, uma porta mística de
energia altamente misteriosa.

Riva saltou para o deque, chamando o amigo para que fizesse o


mesmo. Seus joelhos formigavam. Não se sabia a origem daquela porta, não
se sabia para onde ela levava. A única coisa que se tinha consciência era
que, desde o início dos tempos, ela estava trancada por um cadeado.

O garoto da ilha suspirou, tocando uma das mãos no marco de


madeira.

— Dizem que é onde os dois mundos se encontram. Sempre venho


aqui quando sinto falta da minha mãe.

Nalu aproximou-se, curioso. Não sabia dizer se Riva estava sendo um


mentiroso sem tamanho, mas não podia negar que a energia naquele lugar
era surreal. Quase podia ouvir a voz de Noe sussurrando em seus ouvidos,
como parte do vento.

Sentiu um calor no coração.

— Obrigado.
As primeiras cores já pintavam o horizonte indicando a vinda de um
novo dia, quando os garotos voltaram pela trilha até chegarem à grande
pedra da cruz. Sentaram-se e esperaram o sol chegar. Riva deu a Nalu uma
de suas pulseiras coloridas, uma memória que ele tinha com a mãe desde a
infância.

Nalu sentiu-se um intruso.

— Tem certeza?

Mas Riva assentiu com a cabeça. Amarraram as pulseiras em uma


argola de aço quebrada e presa à grande pedra, que antes devia ter
pertencido à uma âncora de uma famosa embarcação dos tempos antigos.
Daquele jeito, não importava quantos anos se passassem, as memórias
sempre existiriam.

Os garotos esticaram as pernas para olhar o espetáculo que era o


nascer do sol na ilha e ver o mundo ganhando cores outra vez. Riva retirou
algo de dentro do bolso. Um saquinho de pano esfarrapado.

— Escuta — começou, medindo as palavras. — E se o tesouro estava


lá?

Nalu suspirou, abraçando os joelhos.

— Você mesmo disse. Era um mapa para o túmulo do cara —


respondeu, desacreditado. — E outra, se tinha um tesouro, ninguém
encontrou nada. O pessoal do museu passou as férias inteiras estudando
aquele lugar.

— Mas eles não tinham isso.


Riva levantou as sobrancelhas, tirando um pequeno objeto brilhante
de dentro do saco. Uma espécie de medalhão. Nalu deixou o queixo cair.

— Onde conseguiu isso?

— Estava no pescoço do Cavendish. Pedi para que Nadi guardasse,


para que a polícia não confiscasse no interrogatório.

— Uau — Nalu pegou o pequeno objeto em mãos, com tanto medo


de tocá-lo, que parecia que estava pegando fogo. Não podia acreditar. —
Quer dizer, isso deve valer uma grana.

Riva confiscou de volta o medalhão.

— Não é pra leiloar, seu imbecil. Você não entende? Se aquele era
mesmo o esqueleto de Thomas Cavendish, qual a probabilidade de ele ter
espetado o próprio crânio com uma espada daquele jeito e ainda ter escrito
uma carta?

Nalu fez uma careta. Parecia finalmente acordado.

— Você acha que aquilo tudo foi montado?

O garoto da ilha esboçou um sorriso.

— Cada coisinha posta propositalmente para tentar nos enganar.

— Eu não entendo — Nalu franziu a testa. É, talvez não estivesse


ainda cem por cento acordado, afinal.
Riva ajeitou a posição, pedindo por um segundo de atenção total ao
que iria dizer. Levantou o medalhão de ouro no ar.

— Elora — enfatizou. — Elora ficou anos esperando que seu amado


voltasse para buscar ela e o tesouro. Eu não sei se a mulher caducou no
caminho ou se só descobriu aquela câmara anos depois, mas não importa. O
mapa levava ao tesouro, sempre levou. O triângulo na floresta, o marco da
pirâmide, as escrituras nas pedras... O que não sabíamos é que depois da
morte de Cavendish, Elora mudou o tesouro de lugar para ninguém o
encontrar a não ser o próprio Cavendish.

Nalu esticou as pernas, batendo um pé no outro, ainda sem entender


onde Riva queria chegar.

— E o que te faz pensar nisso?

— Você nunca foi à Praia da Feiticeira?

Então a ficha caiu. O garoto da cidade arregalou os olhos.

— A lenda. É claro... uma feiticeira teria escondido um tesouro muito


valioso e matado todos aqueles que sabiam da sua localização.

— E se a feiticeira era a própria Elora? — sugeriu Riva. — E se o


tesouro que ela escondeu era o butim do Mary Dear?

Nalu agarrou o medalhão mais uma vez. Se estreitasse os olhos o


suficiente, poderia perceber que havia algo escrito, marcado para sempre no
corpo dourado. Riva suspirou.

— Nadi não conseguiu ler, acho que está em inglês, mas...


— Refúgio — traduziu Nalu. E não era só isso, do outro lado, havia
novamente aquelas letras estampadas ao lado de um coração. “E+T”. —
Isso é uma pista que só o próprio Cavedish poderia saber do que ela está
falando, ou quem sabe... um descendente direto dele.

Nalu mirou seus olhos em Riva. Tudo parecia tão óbvio de repente.

— "E+T"! Ela escondeu o tesouro em um lugar que era o refúgio dos


dois. Um lugar especial.

— E quer saber mais? — Riva roubou o medalhão mais uma vez,


guardando-o de volta no bolso. — As lendas do tesouro da feiticeira são
bem menos conhecidas pelos curiosos, mas já ouvi falar que ela teria
escondido a fortuna na Cachoeira da Toca.

Nalu pareceu captar a ideia e respirou fundo, pensativo.

— Não fica muito longe daqui.

— Não, não fica — concordou Riva.

Ambos sabiam o que aquilo significava. Parece que a aventura não


tinha chegado ao final como previram. Talvez, apenas talvez, estivesse
apenas começando. Nalu puxou um sorriso inevitável no canto da boca.

— Você é maluco.

Riva levantou, ficando de pé de frente para o mar.

— Seremos bravos e destemidos, não é?


Nalu levantou-se ao seu lado, deixando aquela adrenalina percorrer
suas veias.

— E bravo, bravo, bravo! — gritou para o amanhecer, os dois


selando o juramento com um cuspe e um aperto de mãos.

Capítulo Vinte e Um
Livre Pra Poder Sorrir

Now Playing: Lugar Ao Sol

(Charlie Brown Jr. 100% Charlie Brown Jr – Alabando A Sua Fábrica)

No primeiro dia de sol e calor daquele inverno, Riva e Nalu


acordaram jogando os cobertores para longe. Ele estava passando o resto
das férias na casa da ilhazinha da família Castelo, que seria entregue para a
prefeitura na próxima semana. Apesar disso, era dia de comemorar. Nada
poderia abalar dois garotos com seus skates em um dia de sol. E para uma
pequena vingança pelo susto do outro dia, chegaram de mansinho no quarto
de Yoko, como as duas pestes que eram, acordaram a garota com um apito
de treinamento.

Ela levantou furiosa em um salto, armada de dois travesseiros


em cada mão.

— EU VOU MATAR VOCÊS!

Pode-se dizer que foi uma manhã agradável.

Passaram em frente à casa de Lince, onde Pedregulho estava


praticamente morando desde o início das férias. Ele tinha decidido tentar a
sorte no mundo acadêmico e Lince dizia que ensinar para outra pessoa era
um ótimo jeito de aprender a matéria. Ou era isso, ou eles só não sabiam
mais desgrudar um do outro.
Voltando um pouco mais para o Norte, Nalu resolveu arriscar.
Não havia visto Kaia desde sua ida para o hospital e de todas as tentativas
que tinha feito de tentar aparecer em sua janela, nenhuma delas tinha tido
sucesso. Talvez ela não quisesse falar com ele, talvez estivesse de castigo.

Ou talvez... simplesmente não estivesse lá. Ela já tinha fugido


de casa uma vez.

Quando avistou a placa que indicava a entrada oculta para a


Praia da Feiticeira, freou o skate com a sola do tênis. Ele precisava ao
menos tentar.

Aproximou-se da mata, fechando os olhos para tentar ignorar a


quantidade absurda de borrachudos que havia ali, chegou à ponte, que
levava para a outra ponte que passava por cima do riacho. Então pousou
seus pés naquela areia fofa e dourada. Como sempre, a praia estava vazia
nessa época do ano, mantendo aquele ar místico e sobrenatural que pairava
sobre as terras da feiticeira. Claro, a não ser por uma prancha de surfe azul,
com tubarões Mako desenhados por toda sua superfície, presa na areia. Não
precisou estreitar os olhos contra o sol para ver que lá estava ela, sentada
como uma sereia no alto das pedras.

Nalu correu pela beira do mar, estragando qualquer elemento


surpresa que tivesse preparado para aquele reencontro. Ele não ligava. Só
queria encontrá-la o mais rápido possível. Deixou o skate ao lado de sua
prancha e subiu as rochas cortadas pelo vento igual a um idiota. Por fim,
sentou-se ao seu lado, um pouco ofegante demais.

— Oi, esquisita.

Kiwi segurou uma risada. Ele estava todo vermelho de suor.

— Oi...
— Você não vai acreditar, mas eu encontrei uma sereia uma
vez aqui, exatamente nesse lugar — ele alertou, inclinando o corpo. — Eu
se fosse você ficava atenta.

A garota dos cabelos de maresia fechou a expressão para o


horizonte.

— Eu não consigo mais me transformar.

Nalu sentiu um soco direto no estômago, baixando seus olhos


para a panturrilha da garota, que ainda permanecia enfaixada, mesmo
depois de tantos dias após o ataque na floresta. Ele queria poder fazer
qualquer coisa para ajudar, mas às vezes, não se tem controle sobre tudo no
mundo. E o melhor é aceitar do jeito que der.

— Sinto muito — disse baixinho.

Kiwi suspirou, passando as mãos pelos cabelos cheios de


cachos.

— Tudo bem, deve ser temporário. Pelo menos dá pra remar


em cima da prancha — ela tentou abrir um sorriso de consolo para si
mesma. — Mas mesmo assim dói... saber que minha mãe nunca chegou na
Nova Zelândia.

Tinha algo naquela história que ainda dava nós na cabeça do


garoto.

— Você disse que ela escrevia cartas pra você.

— Mais uma falsificação bem feita por Phillip Angelos —


Kaia fungou o nariz. — Ele fez isso pra me proteger quando soube que ela
morreu. Dói... mas talvez tivesse doído mais na época. Ele me contou que
foi minha mãe que destruiu as pesquisas de Van Dijk e Martim na Praia da
Caveira. Um dia ela saiu e, bem... nunca mais voltou. Martim deve ter
alcançado ela na água.

Nalu juntou as sobrancelhas, ainda confuso.

— Por que ela faria isso?

— Pelo mesmo motivo que meu pai nunca foi atrás do tesouro
e que ele deu o mapa falso para o seu avô — ela olhou para o garoto,
estreitando os olhos claros por conta da claridade. — Logo que o encontrou
no naufrágio do Aurora Armada, foi a uma vidente, perguntar sobre o butim
do Mary Dear. Ela se assustou e gritou, dizendo que o mapa estava “cheio
de sangue”... o que quer que houvesse escondido, ele achou melhor manter
em segredo por medo do que poderia encontrar. Por isso, mandou a guarda
costeira atrás de nós — explicou, enchendo os pulmões de oxigênio. —
Enfim, depois de toda essa explicação, ele prometeu que entregaria tudo
para o museu e responderia pelos crimes — deu de ombros. — Acho que já
é um começo.

— E a Olive? — perguntou Nalu, realmente preocupado com a


kombi multicolor.

Kiwi encolheu-se timidamente.

— Vou ter que tirar a carteira antes de ele me devolver.

Nalu mordeu a língua, sem conseguir segurar uma gargalhada.

— Eu sabia. Você também é uma mentirosa, esquisita.


Kaia revirou os olhos, empurrando seu ombro . Ela está bem,
Nalu sentiu aquele aperto no peito. Ela está realmente bem. Limpou
discretamente uma lágrima de seu olho esquerdo e deu um impulso para
levantar, então estendeu a mão em direção a Kiwi, com uma energia
contagiante.

— Quer ver uma coisa bem legal?

Os dois foram correndo até a rua de mãos dadas. Kaia ainda


estava um pouco devagar, mas pelo menos conseguia caminhar. Levava sua
prancha de tubarões debaixo do braço, quando Nalu a agarrou sem piedade,
para substituí-la por algo que os garotos tinham de presente para ela.

— Ah, não.

Kiwi fez uma careta ao ver aquele bando de pivetes segurando


um skate novinho em folha nos braços.

— Não deve ser tão diferente assim de uma prancha de surfe — o


garoto da cidade riu. Mas não foi por aquele modelo que Nalu substituiu sua
prancha e sim por um que ele mesmo carregava, com o desenho de uma
onda de tsunami no shape. — Toma, é pra você.

Kiwi fechou a expressão, recusando.

— Pra mim? Mas esse é o seu skate.

Nalu deu de ombros, agarrando o modelo dos braços dos


garotos.
— Eu fiz um novo e esse é seu — levantou o dedo indicador
no ar. — Com uma condição.

Lince entregou-lhe uma latinha de tinta em spray. Nalu abriu


um sorriso.

— Você vai ter que autografar o meu em troca.

Kiwi não conseguiu conter o sorriso radiante que surgiu em seus


lábios. Agarrou a tinta e grafitou o nome de Mako. Talvez o skate não
durasse tanto tempo, mas então Nalu faria outro. E ela estaria ali para deixar
sua marca outra vez como uma promessa.

Não vou soltar sua mão. Nunca mais.

A garota dos cabelos de maresia levantou as sobrancelhas.

— Mas você ainda vai ter que aprender a surfar.

Cheios de energia, corações pulsando, lá se foram garotos e garotas


perdidos correndo ladeira acima, determinados a alcançar seu destino. O
caminho para a Cachoeira da Toca era íngreme, mas as risadas os davam
força para continuar. Nadi e Yoko os alcançaram no meio do caminho, de
mãos dadas e apostando corrida com quem fosse corajoso o suficiente para
aceitar. Elas tinham ficado muito próximas desde que se conheceram.
Pedregulho e Riva armaram uma maratona para alcançar as garotas, sem
chance alguma de admitir a derrota.
Lince e Nalu acompanharam Kiwi um pouco de trás, enquanto o
garoto suricato abria sua câmera para registrar aquele momento ridículo.

Finalmente aos pés da cachoeira, encontraram o paraíso perdido.


Uma queda d’água caía majestosamente sobre as pedras, criando um
enorme lago para se refrescar uma piscina natural cercada por rochas e pelo
silêncio da floresta. Era exatamente como um refúgio se parecia.

Riva foi o primeiro a jogar suas roupas para longe e cair com tudo
na água. Sem hesitar, o resto dos garotos fez o mesmo, revelando trajes de
banho engraçados. As garotas pularam juntas, atirando as camisetas para o
alto das árvores. A água refrescante da cachoeira os envolveu, trazendo uma
paz para aquele dia de verão no inverno. Era revigorante. Os garotos
nadaram, mergulharam e esquematizaram sustos nas garotas, quando Yoko,
que era a profissional em filmes de terror, foi quem deu o maior deles. Riva
e Pedregulho gritaram por quase um minuto inteiro depois daquilo. Pularam
das pedras e brincaram o dia todo em pura alegria e liberdade em um
mundo sem preocupações ou responsabilidades.

Eram férias afinal das contas. Tudo mudaria depois que as aulas
voltassem.

Lince sentiu uma pontada no peito e ligou sua câmera. Era como um
daqueles momentos que se deseja com força para que dure para sempre. E
assim, talvez, durasse mais do que um simples piscar de olhos.

Nalu ajudou Kiwi a subir perto de uma caverna fascinante que havia
nas margens do lago. O lugar perfeito para esconder alguns segredos por
algumas centenas de anos. O clima úmido e gelado que vinha das
profundezas era com certeza amedrontador. Mas que tipo de aventura seria
aquela se não houvesse um pinguinho de medo envolvido?

O garoto da cidade abriu um sorriso e roubou-lhe um selinho.


Kiwi levantou as sobrancelhas.

— Preparado?

Nalu entrelaçou seus dedos com os dela.

— Seremos bravos, garota perdida.

Epílogo

Comunicação Pelo Cortéx, Bum Bye Bye

Now Playing: Dias de Luta, Dias de Glória

(Charlie Brown Jr. Imunidade Musical)

A senhora do vestido na altura dos joelhos fechou a expressão,


entristecendo-se antes que eu pudesse perceber que aquele era o fim da
história. Então apenas disse:
— Sinto muito pelos seus pais.

O quê? Ajeitei a postura. Ela não teria como saber, teria? Olhei
pela janela. Já estava escuro e eu nem percebi a noite chegando.

— Soube do acidente no ano passado — ela acrescentou,


melancólica.

Estreitei os olhos.

— ...como percebeu? — perguntei, um pouco tímida por


alguma razão.

A senhora inclinou o corpo para a frente, mirando aqueles olhos tão


misteriosos diretamente nos meus. Então abriu um sorriso.

— Querida… você é a cópia fiel da Kaia. Tem alguma coisa aí do


Nalu também, o nariz quem sabe? — ela riu. — Mas você é igualzinha à
sua mãe, Malina.

Meu coração parou por um instante. Quem era aquela mulher? Como
ela sabia meu nome? Como se pudesse ler meus pensamentos desde o
início, contou a história sobre meus pais.

O que estava acontecendo?

Bom, talvez fosse apenas uma velha amiga da família.

Respirei fundo, alegrando-me.


— Acho que já sei bem sobre o que escrever. Obrigada — falei,
guardando meu caderno de volta dentro da mochila. Mas havia algo que
ainda me intrigava naquela história toda. — Ei… quer dizer que eles nunca
encontraram o tesouro de verdade?

A senhora soltou uma risada calorosa.

— Eu nunca disse isso. A Cachoeira da Toca sempre foi meu lugar


favorito da ilha — ela perdeu o olhar no infinito. — A lenda de mulheres
que escondiam ouro nelas… sabe, você tem que estranhar quando existem
muitas lendas parecidas.

Fiz uma careta, sem entender.

— Por quê?

— Você corre o risco de todas elas estarem interligadas. — A


senhora levantou as sobrancelhas, como se guardasse um segredo. — Ou
simplesmente serem versões diferentes da mesma história.

Um trovão retumbou no céu.

Acordei desorientada e confusa em um impulso. Seu coração estava


acelerado por alguma razão. Abri os olhos tão rápido quanto um beija-flor
some de vista e olhei ao redor. Eu continuava na casa de madeira, mas…
estava diferente. O chão tinha tábuas soltas e rangeram quando eu me
levantei da cadeira. Os móveis estavam todos quebrados, assim como as
janelas, de cortinas esfarrapadas que deixavam a brisa da floresta sussurrar
para dentro da sala, como uma melodia suave e misteriosa. A xícara de chá
que eu bebera estava fria, muito fria.
Levantei, sentindo uma dor de cabeça terrível. A chuva havia
cessado, mas onde estava a senhora com quem eu conversei durante as
últimas horas? Onde...

...onde eu estava?

Saí para fora da casa em direção à praia novamente. Havia uma


garota caminhando pela rua e, talvez fosse porque eu parecia doente, ela
veio ao meu encontro, assustada.

— Ai, meu deus, você está bem? — ela me segurou pelos braços.
Seus olhos eram castanhos e gentis e minha memória começava a ficar
engraçada.

Pisquei os olhos, tentando me concentrar.

— Sabe me dizer se alguém mora naquela casa? — apontei.

A garota dos longos cabelos ondulados arregalou os olhos em minha


direção, como se eu estivesse maluca ou algo do tipo.

— Sinto muito. Está abandonada há anos — ela disse, alegrando-se


de repente. — Sabe dizem que uma velha feiticeira, uma vidente ou algo
parecido, morava lá e que guardava segredo sobre um tesouro que escondeu
nas cachoeiras… matou todos que sabiam do segredo.

Juntei as sobrancelhas. Por que aquilo soava tão familiar?

A garota sorriu amigavelmente e me ajudou a caminhar por entre as


ruas alagadas.
— Vem. Vou te emprestar umas roupas.

Caminhamos rua abaixo, conversando sobre a vida. Eu contei a ela


porque eu tinha visitado a ilha em uma época tão esquisita para turistas e ela
riu. Quanto mais caminhávamos, mais eu me distanciava da misteriosa casa
abandonada da Praia da Feiticeira.

Mas de alguma forma, eu sabia exatamente como iniciar meu novo


livro. Eu precisaria pôr meus cadernos para secar no sol e precisaria
comprar uma caneta nova, mas seria algo parecido com isso: A ilha soava
quase misteriosa em meio à neblina. Como se cada gota de chuva fosse uma
promessa sussurrada, tingindo o mundo de prata e levando segredos que eu
nunca descobriria rio abaixo.

NOTAS DA AUTORA
Eu não lembro a primeira vez que vi o mar, mas tenho certeza de que
foi amor à primeira vista. Aos dezesseis anos de idade eu tinha certeza de
que seria oceanógrafa e moraria em Ilhabela. Em 2023 resolvi fazer uma
loucura e comprei uma passagem de avião por impulso no meio da
madrugada porque eu queria escrever um livro que se passasse lá. Foi aí que
comecei a pesquisar. Eu lembro da sensação que foi pisar meus pés na ilha
pela primeira vez. Enquanto escrevo essa página, quero que saibam que
chorei de saudades de Ilhabela. Eu chorei, entrei em prantos de saudades de
um lugar. Como isso é possível? Eu não sei, mas a sensação de estar perto
do mar, a paz que aquele lugar me trouxe é indescritível.

Ilhabela não é só sobre praias incríveis ou paisagens ou animais


marinhos ou sol. É sobre chuva e neblina e mistérios e segredos, lendas
locais, tesouros, piratas, naufrágios e cultura. A cada passo que eu dava os
detalhes me tiravam o fôlego. A cada nova história que alguém me contava
eu sorria. Ser escritora não é só sobre escrever histórias, mas sobre ouvir
histórias e viver histórias também. E eu estava louca para mostrar essa nova
para vocês. Espero que tenham gostado e entendido um pouco do
sentimento que eu tive quando visitei a ilha pela primeira vez.

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer às minhas amigas, Carol, Cati e Nati, minha dinda e


ao Matheus por me incentivarem a comprar aquela passagem no meio da
madrugada. Vocês me deram o empurrãozinho que eu precisava. Obrigada
também à Mima, minha irmã, que me acompanhou nessa aventura, foi
muito divertido viver isso ao seu lado, dividir a kombi, morar no nosso
primeiro hostel, fazer miojo na cozinha comunitária e conhecer gente do
mundo todo. Obrigada aos meus pais que, apesar de terem me seguido
quando a viagem era para ser algo de auto descoberta e essas coisas, foram
essenciais na hora de dirigir. Acho que eu não teria aproveitado metade do
tempo chuvoso se vocês não tivessem ido.

Obrigada a mim, por ter sido firme e não ter desistido de escrever
apesar de terem sido 15 dias intensos de muitas emoções, muitos surtos e
choros, obrigada à menina do Museu Náutico que me contou sobre os
descendentes de Thomas Cavendish, sobre o naufrágio do Príncipe de
Asturias e sobre um monte mais de coisas. Obrigada à Kaia por ter sido tão
receptiva com a gente no hostel, obrigada ao Riva por ter nos ajudado com
a questão dos passeios e por ter me apresentado esse nome maravilhoso que
deu origem ao melhor amigo de Nalu.

Obrigada ao alemão por ter nos levado até a Praia do Bonete mesmo
quando minha família inteira queria minha cabeça por eu ter metido todos
nós dentro de um barquinho no meio de um mar cabuloso. Você foi um
herói.

Obrigada a todos os doguinhos, pinguins de Magalhães e gatinhos


que nos acompanharam durante essa aventura.

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