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Testemunha Hostil - William Lashner
Testemunha Hostil - William Lashner
Testemunha Hostil
EDITORA RECORD
Embora nunca tivesse me encontrado com Jimmy Moore, conhecia seu nome.
Eu conhecia milhares de nomes, de atores e criminosos, de heróis esportivos e
políticos, de escritores e estrelas de rock, do sujeitinho idiota que vende ternos
na South Street. São os nomes que dominam o mundo, as Tina Brown, os Jer‐
ry Brown e os Jim Brown. São a aristocracia da América, e qualquer que seja o
posto que ocupem, e existe uma hierarquia de postos, dos nacionais aos locais
aos quase obscuros, são os nomes que frequentam as melhores festas, que tran‐
sam com as pessoas mais bonitas, que bebem o melhor champanhe, que riem
mais alto e por mais tempo. Jimmy Moore era um nome local, um homem de
negócios que virara político, um vereador da cidade com um discurso populis‐
ta, antidrogas, que atraía seguidores nas classes mais baixas e nas classes médias.
Era uma figura com aspirações e um eleitorado leal. Um nome que viria a ser
prefeito.
Passei a maior parte da segunda-feira nos escritórios da Talbott, Kittredge
& Chase ouvindo Jimmy Moore falar ao telefone. Não estava ao telefone comi‐
go, é claro, visto que eu não era um nome e portanto não valia a pena falar co‐
migo. Em vez disso, estava ao telefone com Michael Ruffing, um restaurateur
cujas empresas bem-sucedidas na cidade o haviam tornado um nome de im‐
portância local, conhecido entre os frequentadores dos círculos cultos e refina‐
dos e cujo telefone na casa noturna Bissonettes, batizada com o sobrenome de
seu sócio, Zack Bissonette, ex-lançador de beisebol, atualmente em coma, por
acaso fora grampeado pelo FBI. Estava sentado sozinho à cabeceira de uma
longa mesa de tampo de mármore, numa imensa sala de conferências. Belas
gravuras antigas da Velha Filadélfia enfeitavam as paredes: Independence Hall,
Carpenters Hall, Igreja de Cristo, o Segundo Banco dos Estados Unidos. O ta‐
pete era espesso e azul. Uma bandeja com refrigerantes descansava sobre um
aparador atrás de mim e não precisava pagar seis lostões para abrir um, simples‐
mente estavam ali, para mim. Não posso deixar de admitir que sentar naquela
sala como um convidado, sentar ali como um colega, me deixava excitado. Eu
estava no coração do sucesso, do sucesso de uma outra pessoa talvez, mas mes‐
mo assim o mais perto que jamais conseguira chegar do verdadeiro sucesso. E
havia uma alegria profunda em meu coração durante todo o tempo em que
passei lá, porque sabia que se tudo corresse bem poderia ser o meu sucesso tam‐
bém. De maneira que não conseguia me impedir de sorrir de vez em quando,
sentado ali naquela sala de conferências, com fones de ouvido na cabeça e um
bloco amarelo de anotações diante de mim, ouvindo uma pilha de cassetes con‐
tendo as gravações das conversas de Jimmy Moore com Michael Ruffing.
— Deixa eu lhe contar uma coisa — disse Jimmy Moore em sua voz insistente,
apontando para mim com o cigarro. — Aqueles pilantras gordos do gabinete
do prefeito não têm ideia do que está acontecendo. Nenhuma ideia. Não con‐
seguem compreender. Veem os números, os mesmos que eu, e se as primárias
fossem agora, mesmo com a acusação, eu derrotaria aquele miserável por mais
de cem mil votos fácil. Fácil. E ele sabe disso, sabe disso, mas não sabe por quê.
Não sabe qual é o meu segredo. Não sabe onde está o meu poder. Mas vou lhe
contar onde está.
Ele deu uma tragada no cigarro, segurando-o entre as pontas do polegar e
dos três primeiros dedos.
— Está na minha paixão — disse exalando a fumaça com violência. —
Exatamente como a força de Sansão estava em seus cabelos. Se algum dia eu
perder a paixão, bem, então pode enfiar um garfo em mim, estarei acabado.
Poderei muito bem me aposentar em Palm Springs e jogar golfe todos os dias.
Azar do prefeito eu nunca ter gostado muito deste jogo, certo, Chet?
— É isso mesmo, vereador — respondeu Chester Concannon.
Estávamos no DiLullo Centro, um bistrô famoso, cheio de luzes, defronte
ao Conservatório de Música, onde grupos de gente chique iam se cumprimen‐
tando calorosamente à medida que passavam de mesa em mesa. Todo mundo
parecia conhecer pelo menos alguma outra pessoa lá dentro, e a pessoa que to‐
do mundo parecia conhecer era Jimmy Moore.
Moore era um homem de ombros volumosos, de cerca de cinquenta anos,
os cabelos grisalhos curtos cortados à César, com um rosto redondo, bem bar‐
beado e sisudo. Vestia um terno italiano chamativo, de corte destinado a ho‐
mens mais magros e mais altos, justo demais nele, e, vestindo-o, Moore não pa‐
recia em nada com os manequins elegantes e imponentes dos anúncios de re‐
vistas. De terno elegante ele o havia transformado em uma armadura. Bordadas
nos punhos brancos de sua camisa estavam as iniciais JDM. Moore tinha os
olhos intensos de um atleta e atraía a atenção enquanto falava, agarrando-a
com aqueles olhos e com a certeza impiedosa de sua voz. Movia-se muito, rapi‐
damente, agressivamente, a cabeça virando em movimentos repentinos como
um pássaro gigante. Quando olhava para mim era como se estivesse olhando
para dentro de mim, e se estabelecia uma ligação intensa e repentina. Naquele
instante não havia mais ninguém na sala exceto ele e eu. E então desviava o
olhar, fixando alguma outra pessoa, e a ligação se rompia. Mas mesmo assim
seu poder animal permanecia como uma imagem consecutiva marcada a fogo
na córnea, não deixando nenhuma dúvida de que ali estava um homem perigo‐
so.
Éramos sete à grande mesa redonda no DiLullos; tínhamos apenas acaba‐
do de fazer uma esplêndida refeição. Sentada ao lado de Jimmy estava sua espo‐
sa, Leslie, agarrando com firmeza a haste da taça de champanhe, os ombros
franzidos de seu vestido vermelho vivo reluzindo como grandes maçãs. Ainda
era uma mulher bonita, os cabelos ruivos presos num penteado cheio de ca‐
chos, a pele lisa e viçosa bem esticada sobre as maçãs altas do rosto, um pescoço
de linhas dramáticas, mas os anos de convivência com a paixão de Jimmy Moo‐
re evidentemente não tinham sido fáceis, e seu rosto mostrava o desgaste. Ao
lado de Leslie Moore estava sua irmã, Renee, uma versão mais pesada e mais
amarga da Sra. Moore, cuja missão na vida parecia ser manter a taça de cham‐
panhe de Leslie cheia. Depois vínhamos Chuckie Lamb, Concannon, eu e
Prescott, que tinha me encorajado a beber champanhe mas não quis beber.
Jimmy Moore estava recebendo sua corte ali, a voz alta e rica, a mão forte e
grande apertando calorosamente as de seus admiradores à medida que vinha
apresentar seus cumprimentos.
— O prefeito pensa que pode destruir minha reputação com esta acusa‐
ção, mas está sonhando. Sonhando. Seus puxa-sacos no pretenso Departamen‐
to de Justiça podem tentar sujar meu nome, podem querer me arrastar na la‐
ma, diabos, que tentem, que tentem. Tenho o suficiente para lhe dar um chute
no rabo e mandá-lo até Jersey e ainda me tornar prefeito. Todos eles pensam
que estou fazendo truques, manipulando os números para subir nas pesquisas
como um foguete, os fundos de minha campanha arrebentando. Mais de dois
milhões no ano passado para o CUF, o meu grupo, e nem é um ano de eleição.
Para não falar nas gordas doações que tenho recebido para meus centros de tra‐
tamento de jovens. E deixa eu lhe dizer uma coisa: tenho algumas doações de
pesos-pesados, claro, mas recebo mais doações de dez dólares, vinte dólares,
cinquenta dólares, mais do que qualquer outro. Ninguém compreende isso.
Ninguém. Eu era apenas um político pilantra como todos os outros pilantras
na Câmara Municipal quando Nadine morreu, apenas mais um vereador ga‐
nancioso querendo sua fatia do bolo. Mas quando ela morreu, quando eles a
mataram com seus venenos, a assassinaram, merda. Merda.
Ele amassou o cigarro num cinzeiro e acendeu um outro com o isqueiro
de ouro. Leslie Moore esvaziou sua taça de champanhe, pegou a garrafa e se
serviu sozinha. Houve um longo silêncio. A filha dos Moore, Nadine, morrera
de uma overdose de barbitúricos, estivera em todos os jornais há quatro ou cin‐
co anos. Ainda era uma adolescente quando começara a andar com uma turma
da pesada, experimentando tudo que passasse pela frente, e então, uma noite,
numa festa, depois de cocaína demais e um monte de pílulas erradas, tivera um
colapso e morrera. Moore aparecera nos principais jornais, primeiro chorando,
depois gritando vingança, fazendo campanha contra os traficantes de drogas na
televisão. Poucas semanas depois dera início à sua campanha para acabar com
eles, bairro por bairro, casas de crack uma a uma. Promovera marchas, houve
incêndios misteriosos e mortes não-explicadas. Ele começara uma guerra.
Depois de uma tragada no cigarro, Moore prosseguiu:
— Venho trabalhando para fortalecer minha coalizão todos os dias. Faço
discursos nos bairros, faço obras de assistência, abro centros de atletismo, abri‐
gos, meus centros de tratamento de jovens, mas não são os discursos, não são
os prédios, não são os programas que me conseguem o apoio. Estas pessoas
olham em meus olhos e você sabe o que veem?
— Seus impostos aumentarem — respondeu Prescott.
Jimmy Moore deu uma gargalhada, uma gargalhada verdadeira, com a ca‐
beça jogada para trás.
— Meu advogado republicano não votaria em mim nem numa aposta,
sabe.
— Não posso votar em você—disse Prescott. — Moro em Merion.
— É claro que sim. Mas não contratei você pelo seu voto. Contratei você
ê porque vai dar um pé na bunda do governo.
— Faremos o que for possível.
— Não, vai fazer o que tiver que fazer. Mas deixa eu lhe dizer, Bill. o que
as pessoas veem nos meus olhos é verdade. Não pode ser falsificado. Você não
encontrará um político branco no país inteiro que tenha a quantidade de elei‐
tores que eu tenho na comunidade negra, e isto é porque eles sabem do sofri‐
mento por que passei, sabem do ódio que sinto, sabem que vou livrá-los da
maior ameaça contra eles ou morrerei tentando. O que eles veem é minha pai‐
xão.
Ele se inclinou e envolveu com um de seus braços grossos, apertado na
roupa justa, os ombros da esposa.
— Não é nada diferente do que senti quando vi Leslie pela primeira vez,
de pé, no meio da multidão no pátio da escola, com sua saia de escola católica
e sapatos marinho e branco. Era tão tímida, era mesmo, se escondendo atrás do
grupo, sem conseguir olhar nos meus olhos do outro lado da cerca. Eu estava
com meu uniforme de futebol na primeira vez em que a vi, no campo de trei‐
no, e minha paixão falou e eu soube. Não permitiria que nada impedisse nosso
caminho. Nem a mãe dela, nem o namoradinho estudante de escola particular,
com seus suéteres chiques. Nada.
— E nada impediu — disse Leslie Moore sem uma sombra de sorriso.
— Exatamente — disse Moore. — Lembra-se das flores, das joias e dos
poemas, daqueles maravilhosos poemas?
— Copiados — disse a irmã da Sra. Moore, Renee. — Você não era capaz
nem de escrever seus próprios poemas de amor para Leslie.
— Não era tão esperto com palavras na minha juventude como me tornei
depois — disse Jimmy em tom defensivo. — E John Donne expressava o que
eu estava sentindo muito melhor. — Olhou bem nos olhos da esposa e recitou:
— “Duas ou três vezes te amei, antes mesmo de conhecer teu rosto.”
— Que aconteceu com o rapaz dos suéteres? — perguntei. Chuckie
Lamb, que estava tomando um gole de champanhe, se engasgou, assoando a
bebida ruidosamente pelo nariz, e procurou um guardanapo.
— Richard Simpson — disse a Sra. Moore. — O doce Richard Simpson.
Era tão bom rapaz. Refinado.
— Ele sumiu depois que começamos a namorar — disse Moore, virando-
se para cumprimentar um homem alto e grisalho que passava por nossa mesa.
— Senhor juiz — disse em voz alta.
— Você quebrou o maxilar dele — retrucou Renee.
— Juiz Westcock — disse estendendo a mão para apertar a do velho. —
Está melhor do que nunca, sua raposa. — A palma da mão do juiz estava apoi‐
ada nas costas de uma mulher jovem e bonita enquanto ele falava animada‐
mente com Moore; a conversa em nossa mesa se interrompeu totalmente até
que Moore estivesse livre para voltar a conduzi-la. Quase que a cada dez minu‐
tos alguém importante parava para apertar a mão do vereador e sussurrar em
seu ouvido, e, durante esses interlúdios, esperávamos até que Moore tornasse a
voltar sua atenção para a mesa. Eu conhecia os nomes de muitas das pessoas
que apareciam, jogadores de basquete, políticos e nomes dos mais diversos se‐
tores locais. Era como se aquela mesa no DiLullos fosse o escritório do verea‐
dor fora do horário de trabalho, onde ele sempre podia ser encontrado e onde
acordos podiam sempre ser arranjados.
— Engraçado — disse Chuckie, depois que o juiz se foi. —Aquela não
parecia ser a Sra. Westcock.
— Ela pesa menos uns vinte quilos e é uns cinquenta anos mais moça do
que a Sra. Westcock— respondeu Jimmy Moore, rindo.
Moore tirou a garrafa de champanhe do balde de prata e serviu o que res‐
tava à Sra. Moore.
— Isto vai lhe fazer bem, sempre faz. Chuckie, vá pedir outra garrafa.
Chuckie apertou os lábios e disse:
— Sim, senhor vereador — antes de se levantar da mesa para ir procurar
um garçom.
Aquela seria nossa quarta garrafa, e, embora o plano tivesse sido fazer um
jantar rápido antes de voltar para encontrar a equipe da Talbott, Kittredge e
continuar o trabalho, o champanhe tinha conseguido anestesiar nosso desejo
de lidar com as pilhas de papel que nos esperavam no escritório de Prescott.
— Que tipo de sobrenome é Carl? — perguntou Moore, voltando A atenção
para mim.
— Minha família é judia — respondi.
— Então você é judeu—disse ele numa voz tão alta que me encolhi. Mo‐
ore poderia ter sido o farmacêutico da piada me perguntando, para a loja intei‐
ra ouvir, se eu queria camisinha lubrificada.
— Não sou nada, mas minha família é judia.
— É bom que agora tenhamos alguma diversidade. Prescott é um bom
advogado, mas WASPS têm o sangue muito ralo. É toda aquela herança do
norte, todos aqueles milênios tremendo no topo de geleiras escandinavas. Não
há nenhuma paixão fervendo em suas veias, apenas gelo frio. Mas os judeus são
povos semitas, o sangue de vocês foi engrossado no calor do deserto egípcio e
pelos séculos em que viveram nas costas mediterrâneas.
— Meu avô veio da Rússia — observei.
— Você dará a fagulha de paixão para a nossa defesa — disse Moore.
Chuckie Lamb se esgueirou em sua cadeira e disse:
— Apenas trate de não derramar toda esta paixão até depois do julgamen‐
to.
— Victor vai se sair bem — disse Chester Concannon.
— Sem dúvida — concordou Prescott.
— Estou cansada — disse a Sra. Moore, bebendo o que restava de seu
champanhe. — Renee e eu gostaríamos de ir para casa.
— Por que estamos saindo tão cedo? — perguntou Renee.
Justamente naquele momento o garçom trouxe mais uma garrafa de
champanhe e foi afrouxando a rolha, que disparou no guardanapo que ele se‐
gurava com um estalo festivo; a espuma branca bem clara escorreu pela garrafa.
— Henry vai levar vocês para casa — disse Moore. Concannon se levan‐
tou enquanto as mulheres se preparavam para ir. Prescott e eu também nos le‐
vantamos.
O garçom havia servido uma pequena quantidade de champanhe no copo
de Moore e estava esperando por um sinal para servir os outros. Renee arran‐
cou a garrafa da mão dele e serviu seu copo, tomando num gole rápido.
— Foi um prazer conhecê-lo, Victor — disse Leslie Moore.
— Obrigado, Sra. Moore — respondi. — O prazer foi meu.
— Vou acompanhar você até lá fora — disse Moore.
— Não precisa — disse Leslie.
— Eu insisto — disse Jimmy.
— Alguma coisa está errada com esta garrafa — disse Renee servindo-se
de mais um copo.
— Deixa eu ver isto — disse Jimmy. Ele arrancou a garrafa da mão dela e
examinou o rótulo. — Quem comprou esta porcaria?
— Era a nossa quarta garrafa — disse Chuckie. — Pensei...
— Não pense demais, está bem, Chuckie? Não é para isso que eu lhe pa‐
go. Se você pensar demais vai acabar de volta àquele buraco de merda de onde
lhe tirei. Não me importa quanto custa, quero sempre o melhor. Já lhe disse is‐
so antes.
— Mas eu só...
— Cale a boca. Não quero ouvir. Se você comprar mais uma garrafa de
champanhe vagabundo vou lhe dar um pé no rabo, entendeu?
— Entendi — disse Chuckie.
— Agora dê esta garrafa de merda da Califórnia para algum eleitor men‐
digo e nos compre uma outra garrafa de coisa boa.
— Sim, vereador — disse Chuckie, a cabeça baixa e a voz agressiva agora
sumida e pálida.
Enquanto Jimmy e a mulher se dirigiam à saída do restaurante, Renee to‐
mou mais um gole rápido antes de segui-los.
— Acho que Jimmy prefere as importadas — comentou Prescott.
— O vereador não sabe dizer qual a diferença depois da primeira garrafa
— disse Concannon —, mas Renee só gosta do melhor, e o vereador pode pa‐
gar. Sente-se, Charles. Eu cuido disso. — Chamou um garçom. — Traga Dom
Perignon, setenta e oito. E leve esta garrafa, por favor.
O garçom se inclinou um pouco mais e fez uma expressão interrogativa.
— Alguma coisa não está satisfatória, senhor? — perguntou.
— Quer dizer além do seu hálito? — disse Chuckie esparramado na ca‐
deira.
— O vinho não estava dos melhores — disse Concannon calmamente.
— O sommelier conhece nossos gostos. Diga a ele que ficamos desapontados.
— É claro, senhor — disse o garçom, desaparecendo com a garrafa da
mesa.
Concannon despenteou o cabelo de Chuckie.
— É por causa do julgamento. Jimmy está tenso.
— Leslie estava bem esta noite — disse Prescott mudando de assunto.
— Terapia quatro vezes por semana — disse Concannon.
— Parecia quase alegre.
— Pela quantidade de dinheiro que aquele médico cobra — disse Chuc‐
kie Lamb —, ela deveria estar radiante. Deveria estar feliz como um Papai No‐
el.
— Bem, então está funcionando.
— Não sei o que vocês acham — observei —, mas ela é uma das mulhe‐
res mais tristes que já vi.
— Mas, mesmo assim, a melhora é espantosa—comentou Prescott.
Ele empurrou a cadeira, se levantando.
— Estou vendo o senador Specter ali. Chester, por que não vamos cum‐
primentá-lo antes de eu ir embora? Quando Jimmy voltar — disse-me em tom
de ordem —, diga-lhe que falo com ele amanhã de manhã. — E se foi com
Chester em direção ao fundo do restaurante.
— A Sra. Moore está preocupada com o processo, imagino — disse para
Chuckie.
— Merda. Olhe ali no bar — disse ele. — Assim que o vereador acabar
de acompanhar a esposa até a porta do restaurante a namorada dele sairá dali e
virá se juntar a nós.
Examinei o bar, cheio de casais e de gente desacompanhada esperando
por mesas, vestidos como se estivessem em Nova York, esperando por alguma
outra coisa. Num dos bancos altos no final do balcão havia uma mulher com
curvas agressivas, sentada sozinha, bebendo. Do ângulo em que estávamos po‐
díamos ver a largura dos ossos de seu rosto e a protuberância de seus seios. Ela
virou a cabeça para olhar para nós por um instante.
— Estava ali desde que chegamos? — perguntei.
— Só esperando que Leslie caísse fora.
— A Sra. Moore sabe?
— Sabe — disse Chuckie Lamb. — Ela sabe de todas as coisas, este é o
problema dela. — Ele se levantou. — Já volto, tenho que mijar.
Chuckie Lamb saiu para ir ao banheiro e fiquei sozinho como um bobo
naquela mesa enorme, agora vazia, me concentrando na mulher do bar, a
amante de Moore. Pela maneira como estava virada, podia ver apenas o bastan‐
te. De onde vêm estas mulheres, me perguntei, pensando na recepcionista da
Talbott, Kittredge & Chase, pensando na nova Miss Jersey Tomate, cuja foto‐
grafia eu vira no Daily News daquela manhã. Como é que os seios delas cres‐
cem tanto? Alguma espécie de pomada para esfregar e fazer crescer? Quem pen‐
teia os cabelos delas e como conseguem que fiquem perfeitos, como se tivessem
acabado de levar os toques finais de um estilista antes da sessão de fotos? Quan‐
tos frascos de Aqua Net? Existiria uma escola de formação para estas mulheres,
uma espécie de escola Barbizon, será que elas têm uma associação profissional?
E, que diabo, se existem tantas delas, espalhadas pelo país como pêssegos mais
do que maduros numa árvore, por que sempre acabam a noite na cama de al‐
guma outra pessoa? Talvez eu devesse me mudar para a Geórgia, melhorar mi‐
nhas oportunidades.
Enquanto eu olhava fixamente para a curva de suas costas, e meu senti‐
mento de privação aumentava, percebi uma outra mulher vindo pelo corredor
que passava por nossa mesa. Era uma Audrey Hepburn se comparada à Ma‐
rilyn Monroe do bar. Era bonita também, mas de uma maneira 180 graus dife‐
rente. Alta, com cabelos lisos, castanhos, na altura dos ombros. Seus quadris
magros se moviam desajeitadamente quando andava. Os ombros eram retos
como os de um fuzileiro, mas a cabeça estava baixa, os olhos azuis claros gran‐
des e límpidos, os ossos do rosto sutis e o nariz delicado e arredondado. Usava
um vestido preto curto, com alças finas nos ombros, e olhava para mim en‐
quanto vinha andando por aquele corredor. Perguntei-me se mais alguém teria
observado a beleza à espreita ali, e esperei que não, desejei que ela tivesse uma
mãe que sempre lhe tivesse dito que era sem graça, desejei que fosse insegura
com relação aos seios pequenos, e que tivesse sido uma deslocada na escola se‐
cundária. Caras como eu sabem que esse tipo de coisa pode ajudar. Ela me viu
olhando para ela, possivelmente leu a esperança em meus olhos e sorriu para
mim. O sorriso dela era incandescente.
Sorri de volta, esperando que balançasse a cabeça e seguisse em frente,
perdida para mim o tempo todo, pois sempre fora assim comigo, com garotas
por quem eu passava na rua e por quem me apaixonava imediatamente, mas
então ela fez uma coisa estranha: veio até a mesa e sentou ao meu lado.
— Oi — disse.
— Eu conheço você? — perguntei esperançoso.
— Verônica — disse ela, estendendo para mim a mão magra e macia.
— Victor Carl.
— Explique-me uma coisa, Victor Carl — disse. — Homens de peruca.
— O que há para explicar?
— Explique o porquê. Olhe ali Junto ao bar, o homem com o castor
morto na cabeça. Por que um homem usaria um negócio tão óbvio? Você é um
iniciado nesses segredos ocultos da masculinidade. Explique a peruca.
— É uma espécie de aposta — respondi. — Quer champanhe?
Ela sorriu e deixou escapar uma risadinha, que soou sensual e nada boba.
— Sim, por favor.
Estendi a mão até o outro lado da mesa para pegar a garrafa nova que o
garçom pusera no balde de gelo e virei a taça de vinho de Prescott que não ha‐
via sido usada. Enchi o copo dela e o meu. Ela provou a bebida, olhou para
mim e me deu aquele sorriso de novo.
— Isto é tão bom — comentou.
— É mesmo. Os franceses. — Não conseguiu compreender por que nun‐
ca tentara conquistar uma mulher com Dom Perignon antes.
— Não me lembro de tê-lo visto por aqui antes — observou ela.
— Estou com o vereador James Moore.
— É mesmo? Que acha dele?
Dei de ombros.
— É um político.
— Sim. Então me explique as perucas.
— Sou da teoria, derivada de minha carreira malsucedida de economista
nos tempos de colégio, de que toda escolha na vida é uma espécie de cálculo,
uma aposta. Tudo que fazemos é produto de uma análise de custo-benefício
com relação ao que é melhor para nós.
— Tudo?
— Tudo. Bem, aquele sujeito ali no bar calculou que fica melhor com ca‐
belo, mesmo quando o cabelo que está em sua cabeça parece um roedor morto.
E quem vai dizer que ele está errado?
— Eu.
— Você nunca o viu careca. Tenho certeza de que ele se sente mais vivo
aparentando cinquenta anos com a peruca do que aparentando sessenta e cinco
sem ela.
— Mas será que não poderia ter arranjado uma peruca melhor?
— Foi aí que o cálculo se tornou um erro de cálculo. Ele acha que é chi‐
que.
— Oh, é chique sim. Não acredito que tudo seja cálculo, Victor Carl —
disse ela.
— Porque não quer acreditar.
— E o amor?
— É o maior cálculo de todos. Todos nós temos listas de qualidades que
estamos procurando, e o amor aparece quando um número suficiente dos qua‐
dradinhos é preenchido ou pelo menos quando conseguimos o maior número
de quadradinhos que achamos que vamos encontrar.
— Que romântico.
— Um sujeito ganhou um prêmio Nobel por ter aparecido com essa
ideia.
— Ele deve ser encantador.
— Tenho certeza de que a mulher dele gosta dele.
— Bem, vou lhe dizer uma coisa, Victor Carl. Não acredito nisso, e você
também não acredita.
— Eu não acredito?
— Leio olhos da mesma maneira que algumas pessoas leem mãos e vou
lhe dizer o que dizem os seus olhos.
Ela aproximou o rosto do meu e pôs os dedos macios na minha face,
olhando fixamente em meus olhos, como se estivesse lendo alguma coisa escrita
em letras minúsculas em minhas retinas. Seu hálito era doce e seco por causa
do champanhe, e enquanto ela fitava meus olhos tive a sensação de estar me
afogando em águas azuis-claras. Então ela recuou de repente.
— Está vendo? Eu tinha razão — disse ela.
— Que foi que você viu?
— Eu vi o suficiente para saber.
— Diga-me o que viu — pedi, brincando só parcialmente.
Ouvi o arrastar dos pés de uma cadeira e Jimmy Moore se sentou ao lado
de Verônica. Repentinamente me senti embaraçado, como se aquela mulher
que há pouco me estivera olhando bem nos olhos devesse ser mantida a distân‐
cia de homens como Jimmy Moore. Apesar disso, estava prestes a apresentá-los
quando Jimmy disse: “Pensei que elas não iriam embora nunca”, e Verônica es‐
ticou o belo e longo pescoço, desviando o rosto de mim, e descansou o queixo
nas costas da mão, ficando de frente para Jimmy. Olhei para o bar e vi a mu‐
lher de curvas agressivas rindo com um homem que tinha o braço em volta de
seu pescoço e, com profunda decepção, me dei conta de que, sentada ali ao
meu lado, não estava uma mulher misteriosamente atraída por meu sorriso,
mas sim a amante de Jimmy Moore.
7
Mesmo nas melhores ocasiões não sou uma dessas pessoas que saltam da cama
pela manhã prontas para atacar qualquer desafio que o dia possa apresentar.
Acordo como entro numa piscina—devagar, hesitantemente, dando um passo
de cada vez à medida que meu corpo vai se acostumando ao frio. Na manhã se‐
guinte àquela noite, com a cabeça inchada pelo champanhe do vereador e as
pernas doloridas não sei por que, poderia ter ficado confortavelmente inconsci‐
ente até o meio-dia, exceto por uma dor estridente em minha bexiga que exi‐
gia, EXIGIA, atenção. E também foi uma coisa boa, pois enquanto estava mi‐
jando aliviado às 9:05 me dei conta de que tinha que estar na corte do juiz
Grimbel às 10:00 para a audiência de Estados Unidos vs. Moore e Concannon.
Não me lembrava de tudo que acontecera depois da quarta garrafa de
champanhe da noite anterior. Lembrava-me de Verônica, que foi ficando mais
bonita a cada drinque, até o ponto em que poderia ter jurado nunca ter visto
ninguém tão perfeito antes, e Jimmy Moore, ficando maior, falando mais alto,
cada vez mais poderoso, mais apaixonado, e Chuckie Lamb, seu mau humor
aumentando a cada hora, e Chester Concannon, facilitando nossas transições
enquanto íamos de um clube noturno para outro. Havia Henry, o motorista do
vereador, um jamaicano bonitão e silencioso, de pele negra arroxeada, com
mais de um metro e noventa de altura e usando uns óculos escuros de aparên‐
cia maligna apesar da escuridão. E então, é claro, a limusine, aquele enorme
carro negro como um gato. Tinha um bumerangue sobre a mala e um bar e te‐
levisão na parte de trás e não era alugada, era de propriedade do vereador, e
quem cuidava dela era Henry, de maneira que era limpa como um sabonete e
reluzia sob as luzes da cidade, movendo-se silenciosa e predatoriamente como
uma pantera na noite. Eu me lembrava bem daquele carro. Fora meu primeiro
passeio de limusine, olhando pelas janelas de vidros escuros para aqueles que só
podiam se perguntar quem éramos nós para merecer aquele esplendor. Eu sem‐
pre detestara limusines, sua ostentação, sua imponência, a maneira como atra‐
palhavam o tráfego nas ruas estreitas, estacionadas diante de restaurantes caros
demais para mim, a maneira como proclamavam que as pessoas lá dentro eram
alguém, nomes, e que as pessoas do lado de fora eram ninguém, gente sem em
nome. Sempre detestara limusines, mas tinha que admitir que vistas do interior
eram muito mais benignas.
— Quer uma rosa, Ronnie? — perguntou Jimmy, baixando a janela e es‐
talando os dedos para uma garota asiática com uma cesta de flores embaladas
em papel celofane na rua. Tínhamos ido a pé do DiLullo s para uma casa no‐
turna aberta, decorada em estilo art déco, com enxames de gente solteira caçan‐
do, onde havíamos partilhado mais uma garrafa, e agora estávamos na limusine
seguindo para algum outro lugar.
— Não quero nada — disse Verônica.
— Compre uma rosa para Verônica — disse Jimmy para Chuckie Lamb,
que imediatamente tirou algumas notas de um dólar do bolso.
— Não são da seita de Moon? — perguntou Verônica.
— Mesmo gente do Moon tem o direito de comer — disse Concannon.
— E nós precisamos de um alfinete para prender a flor — disse
Jimmy.
— Dois dólares — disse a garota na janela. Parecia desperta demais para a
hora da noite.
— Ajude-a a prender a flor, Victor — disse Jimmy.
Peguei a flor e enfiei os dedos sob a alça no ombro de Verônica de manei‐
ra a não lhe espetar a clavícula, prendendo o alfinete na haste no algodão gros‐
so da alça do vestido. Senti a maciez de sua pele contra os meus dedos. Ela
olhou para baixo, para minhas mãos, enquanto eu prendia a flor, e desejei por
uma vez na vida ter ido a uma manicure. Havia alguma coisa em Verônica que
era tão delicadamente bonita que machucava. Seu rosto tinha um ar triste, a
maneira elegante com que se movia era triste, e a maneira como mantinha a ca‐
beça baixa era triste. Mas então, de vez em quando, como um presente, vinha
aquele sorriso, brilhante, promissor. Embora ela estivesse observando atenta‐
mente enquanto eu prendia a flor na alça, e embora eu estivesse envergonhado.
8
Emoções pré-julgamento
11
Estava em meu escritório, ao telefone com o Dr. Louis Saltz, quando ela ligou.
O horário do expediente já havia terminado, e Ellie cumpria rigorosamente o
horário de nove às onze, de maneira que tive que botar Saltz em hold para
atender a outra linha. Quando me dei conta de quem era, passei por um breve
momento de pânico.
— Espere um minuto — disse, e voltei para a linha de Saltz.
— Escute, Lou, surgiu um imprevisto, tenho que correr.
— Então estamos combinado para amanhã, certo?
— Às quatro e meia em meu escritório — respondi.
— Consegui falar com os outros, e a maioria vai estar aí. Ainda tenho dú‐
vidas. Você vai ter que ser convincente para me fazer concordar, mas vou espe‐
rar pelos outros.
— Lou — insisti —, acredite em mim quando lhe digo que esta oferta é
um presente. Deveríamos aceitá-la e ficar felizes.
— Comporte-se, companheiro — disse ele, e desligou.
Fiquei sentado ali à escrivaninha por um momento, a luz em meu telefo‐
ne piscando para indicar que havia uma chamada à espera, e pensei sobre que
tipo de problemas aquela chamada poderia me trazer, como poderia se tornar
perigosa se eu a atendesse, mas então, bem no meio de meus pensamentos sen‐
satos, apertei o botão:
— Oi — disse. — Estou de volta.
— Sr. Carl? Jimmy me disse para lhe telefonar se tivesse mais problemas
com meu senhorio — disse Verônica Ashland.
— Realmente não cuido muito de contratos de aluguel, Srta. Ashland —
repliquei. — Talvez devesse procurar uma outra pessoa que saiba melhor o que
está fazendo. Poderia lhe recomendar alguém.
— Tenho certeza de que isto não é complicado demais para o senhor —
disse ela. — O fato é, simplesmente, que meu senhorio quer me despejar.
— Tem pago o aluguel?
— Mais ou menos.
— Bem, então este é mais ou menos o problema, imagino. Senhorios ge‐
ralmente querem que o aluguel seja pago em dia.
— Já reparei nisso. Ficam irritados se a gente deixa de pagar.
— Eles aprendem isso na escola de senhorios — disse.
— Também deve ser lá que eles aprendem a ligar o aquecimento no ve‐
rão.
— E que dezesseis graus é muito confortável no inverno — retruquei. —
E quanto dinheiro podem economizar desligando a água periodicamente para
consertos misteriosos.
— Talvez fosse melhor vir até aqui e ver o que pode fazer — disse ela.
— Agora?
— Eu lhe disse, meu senhorio quer me despejar.
— Ele deixou uma notificação de despejo na sua porta?
— Não, não foi isso que ele deixou. É um grego velho, não sabe nada a
respeito de despejos.
— Então o que foi que ele deixou?
— Um gato morto — respondeu ela.
13
Moore: Escute aqui, seu merda. Trate de falar com Concannon, en‐
tendeu? Não sou nenhum vagabundo de Hackensack, nós tínhamos um
acordo. Um acordo. Não se trata mais de política. Temos uma missão,
Mikey, e não vou permitir que deixe de cumprir suas responsabilidades.
Está entendendo o que estou lhe dizendo? Você sacou, Mikey?
— Talvez eu não seja um advogado — disse o Dr. Lou. — Mas parece-me que
enquanto não encontrarmos aquele contador desonesto, Stocker, não podere‐
mos saber realmente o valor da causa. — Saltz era um homem alto, desajeita‐
do, de rosto comprido e braços peludos, que tinha um jeito de parecer ter com‐
preendido tudo que, imagino, seja bom num médico, mas que naquele mo‐
mento estava achando irritante.
— É verdade até certo ponto — observei. — Stocker conferiu os núme‐
ros e fez as projeções que alegamos ser fraudulentas. Se pudéssemos levá-lo ao
tribunal e se ele testemunhasse dizendo que os acusados tinham lhe ordenado
falsificar os livros de contabilidade, ganharíamos com certeza. Também recebe‐
ríamos uma indenização por perdas e danos.
— Exatamente — disse Saltz, com um largo sorriso dirigido à mesa intei‐
ra. — Arrancaríamos o couro dos canalhas.
Estávamos na sala de reuniões que dividíamos com os outros inquilinos
de Vimhoff, o mesmo lugarzinho sujo onde tomara o depoimento da Sra. Os‐
bourne e arruinara a vida de Winston Osbourne. Na sala havia uma mesa es‐
treita de fórmica, e estantes de compensado de madeira barato cobriam as pare‐
des, cheias de publicações de contabilidade, códigos tributários e coleções de li‐
vros de direito ultrapassados. Ellie costumava passar horas ali todas as semanas
para atualizar nossas coleções da West Publishing, da Colliers, da BNA, substi‐
tuindo as fichas, enfiando as páginas novas, separando os volumes mais recen‐
tes, cuidando para que nossos Shepards Citations estivessem absolutamente em
dia. Mas depois que Guthrie saiu e as contas deixaram de ser pagas, nossos
contratos foram sendo cancelados um por um e as atualizações pararam de che‐
gar. Uma biblioteca de direito fica desatualizada com uma rapidez surpreen‐
dente. O temor de ter nossos arrazoados cruciais desmantelados por uma deci‐
são recente, que não constava de nossos livros, nos fazia correr para a biblioteca
da Ordem dos Advogados, onde, por um simples pagamento de cinco dólares
por dia, podíamos vagar como fantasmas em volta dos volumes da associação
junto com os outros advogados de segunda classe, pobres demais para ter seus
próprios livros. Poderíamos ter vendido os livros que tínhamos por uma peque‐
na quantia, mas os guardávamos por vaidade — para o olhar de um leigo,
aqueles volumes davam à sala de reuniões um brilho advocatício. É claro que,
quando nos reuníamos com outros advogados, sempre combinávamos de fazer
a reunião nos escritórios deles, pois para um outro advogado, familiarizado
com os livros, nossas coleções incompletas proclamavam com absoluta clareza
nosso desespero financeiro. Mas não era com outros advogados que eu estava
me reunindo naquela tarde, era com Saltz e cinco de seus sócios, para discutir a
proposta de acordo que nos havia sido oferecida pelos bons ofícios de William
Prescott III.
— O problema, Lou, é que não vamos encontrar Stocker antes do julga‐
mento. Não somos os únicos que estamos procurando por ele. Temos o FBI e a
Receita. O sujeito caiu fora da cidade com o dinheiro dos outros e agora seu
único objetivo na vida é não ser encontrado — observei.
Olhei para Saltz e depois voltei o olhar para os outros homens presentes à
reunião. Eram todos brancos, sujeitos de meia-idade com tanto dinheiro que
não conseguiam se impedir de jogá-lo fora, coisa que era exatamente o estado
ao qual eu aspirava. Com Saltz havia mais um médico, um dono de uma com‐
panhia de material para encanamento, um vendedor de joias chamado Lef‐
kowitz, e dois sócios de uma espécie de companhia de importação/exportação
que eu nunca conseguira entender muito bem. Havia mais três reclamantes que
não tinham podido comparecer à reunião, mas que tinham dado suas procura‐
ções a Saltz. Estava tentando convencer todos eles a aceitar a oferta de acordo
de Prescott. Prescott me dissera que o cheque já estava pronto. Se meus recla‐
mantes dissessem sim naquela tarde, eu poderia ter os quarenta mil na nossa
conta na terça-feira.
— E mesmo se encontrarmos Stocker — prossegui, martelando bem o
meu ponto —, não sabemos o que irá dizer. Ele poderia acabar conosco.
— De jeito nenhum — disse Saltz. — Aquele sujeito é um pilantra deso‐
nesto.
— Será que não poderíamos apenas contar como o contador deles era de‐
sonesto? — perguntou Benny Lefkowitz, o joalheiro. — Isto não seria o sufici‐
ente para provar que eles mentiram nas projeções?
— O que ele fez em outras situações não prova que tenha adulterado os
livros de contabilidade aqui — observei. — O juiz nunca permitirá, o júri
nunca ouvirá.
— Vamos acabar com a conversa fiada — disse Leon Costello, um dos só‐
cios do negócio de importação/exportação. Era um homem gordo, bem vesti‐
do, que usava um anel com uma espécie de dragão no dedo mindinho esquer‐
do. — Quanto vai levar aqui, Victor? Quero dizer, com a sua percentagem, vo‐
cê é quem tem mais a perder, certo? O que acha que devemos fazer?
— Meus instintos dizem para agarrar a oportunidade — respondi. — Se
formos a julgamento agora, provavelmente perderemos. Quando eles oferece‐
ram só cinco mil, estava pronto a correr o risco. Mas agora puseram dinheiro
de verdade na mesa.
— Se a posição deles é tão forte, por que estão oferecendo? — perguntou
Lefkowitz.
— É a maneira como as grandes firmas trabalham — expliquei. — Co‐
bram o diabo pelo caso até chegar perto do julgamento, e depois fazem um
acordo. Desta maneira arrancam todo o dinheiro que podem sem correr o risco
de uma derrota.
— Não creio que possamos tomar esta decisão até encontrarmos Stocker
— disse Saltz. — Ou pelo menos tentarmos mais uma vez. O que temos a per‐
der? Se não o encontrarmos até o julgamento, simplesmente aceitaremos o di‐
nheiro.
— Se não concordarmos rapidamente, Lou, eles vão retirar a oferta — re‐
truquei.
— E qual é a oferta? — perguntou o outro médico, um pedicuro.
— Estão nos oferecendo esta quantia de maneira a não terem que gastar
dinheiro preparando o julgamento — expliquei. — Se tiverem que gastar este
dinheiro, então poderão decidir retirar a oferta e ir a julgamento. E, se o fize‐
rem, acredito que irão nos derrotar.
— Isto não é justo — disse o pedicuro, com uma expressão abalada no
rosto. — Eles nos ofereceram cento e vinte mil dólares, é isto o que deveríamos
receber.
— A única maneira de garantir que receberemos com certeza é aceitar o
acordo agora.
— Quanto tempo acha que temos? — perguntou Lefkowitz.
— Não muito, alguns dias, talvez uma semana. Mas eles poderiam retirar
a oferta a qualquer momento.
— Está bem — disse Costello. — Já ouvi o suficiente.
— Talvez devêssemos conversar um pouco em particular, sem a sua pre‐
sença, Victor — disse Saltz. — Está bem?
— Claro — respondi, me levantando. — Vocês são os clientes.
Fiquei esperando no hall, do lado de fora da sala, e mais uma vez gastei
mentalmente o dinheiro do acordo. Com os quinze mil do adiantamento pelo
caso de Chester Concannon, estávamos quase em dia com nossas contas e já tí‐
nhamos pagado a Ellie o que lhe devíamos. Tínhamos até conseguido nos livrar
de Vimhoff pagando o aluguel. Minha parte dos quarenta mil seria o suficiente
para começar a botar em ordem a minha vida financeira, e até começar a pagar
meu pai. Mais adiante haveria mais dinheiro do CUF para minha defesa de
Concannon, isso sem falar nos honorários que receberia nos negócios da Valley
Hunt Estates com os irmãos Bishop, dos quais naquele mesmo dia eu aceitara a
posição de advogado consultor nos contratos da firma com promessa de traba‐
lho suficiente para manter a Derringer & Carl funcionando por meio ano. Ah,
cara, as coisas estavam melhorando.
Tinha atuado durante a reunião de maneira perfeita, pensei. Saltz era meu
maior problema, buscando como sempre uma grande tacada, mas achava que
os outros iriam aceitar os dez mil e pronto, tão logo lhes contara sobre a oferta,
soubera que era como se o dinheiro já estivesse em seus bolsos. Então, no final
da reunião, levantara a possibilidade de a oferta ser retirada, como se um bate‐
dor de carteira estivesse enfiando a mão nos bolsos deles e tirando dez notas de
mil dólares. Aqueles caras não tinham feito suas fortunas devolvendo dez mil
aqui e ali. Pelo menos eu estava começando a aprender os segredos dos ricos:
sempre que tiver uma oportunidade de ganhar dinheiro, agarre-a rapidamente,
aperte-a contra o peito como se fosse a própria vida. Era assim que os ricos ti‐
nham ficado ricos, e era assim que eu iria ficar rico também. As desistências do
processo assinadas seriam meu primeiro passo. Já instruíra Ellie para preparar
os documentos de maneira a perder o mínimo de tempo possível, e eles agora
estavam na sala de reuniões, numa pasta marrom, bem no meio da mesa como
um glorioso centro de mesa.
Foi Saltz quem saiu para me chamar.
— Chegamos a um consenso — disse, depois que me sentei.
— Vamos aceitar a oferta — disse Costello.
— Ótimo — respondi, estendendo a mão para pegar a pasta com as de‐
sistência.
— Mas não agora, imediatamente — disse Costello.
— Queremos que você tente encontrar Stocker mais uma vez — disse
Saltz.
— Há um investigador particular que costumo contratar — disse Lef‐
kowitz. — O comércio de diamantes está cheio de golpistas e volta e meia você
leva um banho, não importa quanto seja cuidadoso. Este sujeito sempre resolve
as coisas para mim.
— Vamos dar a esse sujeito três semanas para encontrar o filho da puta do
contador — disse Costello.
— Cobriremos os custos dele — disse Saltz. — Acreditamos que a oferta
ainda estará de pé daqui a três semanas.
— E, se não estiver, eles podem ir para o inferno — disse Costello. —
Não gostamos de ser pressionados.
— Se ele falhar — disse Saltz —, aceitaremos os cento e vinte mil. Mas,
se o encontrar, vamos crucificar aqueles canalhas.
— Francamente, Victor — disse Costello. — Estamos todos de acordo.
Dez mil dólares a mais ou a menos não vai mudar nossas vidas. Mas estes caras
nos deram um banho, e agora, se pudermos fazê-los pagar alto, vale o risco. Is‐
to é mais do que dinheiro.
— É uma questão de princípios — disse Saltz. — E sabemos que você vai
querer que respeitemos nossos princípios.
— Tem um pedaço de papel para me dar? — perguntou Lefkowitz. Enfiei
a mão na pasta e tirei uma das desistências não assinadas. Ele virou a página e
escreveu na parte de trás. — Este é o nome do meu investigador. Vou telefonar
para ele hoje à noite e marcar um encontro com você para amanhã. Amanhã é
sexta-feira, de maneira que uma hora cedo é melhor. Por volta das dez? Ótimo.
Ele estará aqui às dez.
Ele passou o papel de volta para mim. Li o nome em voz alta.
— Morris Kapustin? Que tipo de detetive particular tem um nome como
Morris Kapustin?
— Ele é mais duro do que parece — disse Lefkowitz. — Morris é especi‐
al.
— Dê-lhe as três semanas — disse Costello. — Se ele furar, então agarre
o dinheiro depressa. Não vamos precisar de outra reunião.
— Assim está bem — perguntou Saltz.
— Não tenho muita escolha, tenho? — respondi.
— Bom garoto — disse Saltz.
— Sou um homem fácil de se levar—disse Costello. — Mas detesto ser
enrabado, e aqueles canalhas me enrabaram.
— Você e Morris vão apanhá-los — disse Lefkowitz.
— É isso mesmo — disse Costello. — Vamos enfiar uma estaca na porra
do coração deles.
16
Testemunhas da prostituição
21
Prescott estava de pé, diante dos jurados em potencial, com uma prancheta na
mão, fazendo perguntas em seu tom imperioso. Eles eram quarenta, sentados
nos bancos do tribunal como fiéis numa igreja. Era deste grupo, convocado da
sala do júri pelo meirinho do juiz Gimbel, que os doze jurados e dois substitu‐
tos para Estados Unidos vs. Moore e Concannon seriam escolhidos. Prescott
estava fazendo perguntas a eles, e se você lhe perguntasse ele lhe diria que esta‐
va examinando aqueles possíveis jurados num esforço para escolher um júri
justo e equilibrado. O que estava realmente fazendo, além de avançar de ma‐
neira escamoteada os argumentos pré-julgamento, era tentar encontrar os jura‐
dos mais injustos e mais inclinados a favorecer Jimmy Moore e Chester Con‐
cannon. É assim que funciona um julgamento em tribunal: os advogados dos
dois lados enchem o júri de preconceitos favoráveis a seus clientes na expectati‐
va de que essas tentativas de manipulação venham a equilibrá-los. É por isso
que muitos júris são dissolvidos por colapsos nervosos.
Eu estava numa das extremidades da mesa da defesa, ao lado de Chester
Concannon, que estava sentado com as costas retas e as mãos cruzadas diante
de si. Jimmy estava na outra extremidade. Imediatamente atrás de nós, todos
na mesma fila, estavam três elegantes advogados de olhos brilhantes, a equipe
de julgamento da Talbott, Kittredge & Chase dando assistência a Prescott. Ma‐
deline fora deixada no escritório fazendo pesquisas. A turma da Talbott, Kit‐
tredge fazia anotações furiosamente e consultava em sussurros um homem alto,
de barba, com um caso sério de caspa, que, me haviam dito, era o especialista
em júris, um homem chamado Bruce Pierpont. Apesar das repetidas promessas
de Prescott e dos numerosos pedidos, ainda não tinha visto o relatório de Pier‐
pont. De vez em quando um dos advogados da Talbott, Kittredge se inclinava
para a frente e sussurrava alguma coisa para Moore, e ele balançava a cabeça,
com uma expressão de extrema probidade no rosto. Perguntei-me quanto tem‐
po Prescott teria trabalhado com ele para chegar à expressão absolutamente
correta. Os advogados da Talbott, Kittredge nunca se inclinavam para a frente
para sussurrar alguma coisa para mim. Não fosse pela nossa proximidade no
tribunal, seria impossível dizer que estávamos do mesmo lado. Aquilo fora
ideia de Prescott. “Não deve parecer que estamos atacando Eggert juntos”, dis‐
sera, e assim Chester e eu estávamos mantendo a distância.
Mais perto da bancada do júri ficava a mesa da acusação onde Eggert e
um homem mais velho corpulento, com mãos gordas e um pescoço de touro,
estavam sentados, representando o governo. O touro vestia um blazer azul, seus
cabelos rigidamente penteados para trás, era a imagem perfeita do homem que
gostava de seu bife sangrento. Era o agente do FBI encarregado do caso, o
agente especial Stemkowski. Uma vez, no meio da audiência, ele estalara os de‐
dos e o rá-tá-tá soara como tiros.
O juiz Gimbel sentava-se no alto de seu banco, a cabeça careca baixa en‐
quanto ia trabalhando em documentos obviamente não relacionados com
aquele caso. Era um homem ocupado, o juiz Gimbel, e não se podia esperar
que se concentrasse numa coisa tão rotineira quanto o voir dire do júri de Pres‐
cott.
— Agora, como devem saber — disse Prescott para todo o grupo de jura‐
dos em potencial —, um dos acusados neste caso é um funcionário público,
um vereador municipal. O outro acusado é o ajudante de ordens do vereador.
Algum dos senhores acredita que funcionários públicos, como o vereador, são
geralmente corruptos?
Nenhuma resposta.
— Agora, senhoras e senhores, preciso que sejam honestos. Nenhum de
vocês costuma olhar para um funcionário público, como meu cliente, um vere‐
ador municipal na folha de pagamento do governo, e dizer para si mesmo: ele
de alguma forma não presta?
Mais uma vez nenhuma resposta. Ele sorriu gentilmente, baixou o olhar
para examinar sua prancheta, percorreu com o dedo a lista de nomes dos jura‐
dos intimados e tornou a levantar os olhos.
— Sra. Emily Simpson. Sra. Simpson, a senhora trabalha?
— Sim. Sou caixa numa loja de departamentos.
— Então a senhora paga seus impostos, é claro.
— É claro. — As mãos da Sra. Simpson agarraram o livro de bolso em
seu colo.
— Acha que o dinheiro que gasta pagando impostos é bem gasto?
— De maneira geral? Não — respondeu, olhando em volta para os outros
sentados por perto em busca de apoio.
— Por que não?
— Os políticos não nos escutam, só escutam gente rica, gente que tem di‐
nheiro para ajudá-los.
— Então o que está dizendo, Sra. Simpson, é que a maioria dos políticos
pode ser comprada.
— Creio que sim.
— Mais alguém? Quantos acreditam que políticos como um todo são de
maneira geral inescrupulosos e fáceis de ser comprados?
A Sra. Simpson levantou a mão hesitantemente e olhou em volta em bus‐
ca de apoio. A mulher sentada a seu lado, de feições pesadas e porte digno, com
uma inclinação elegante de cabeça, sorriu para a Sra. Simpson e levantou a
mão; então um homem na fila da frente, com o cabelo cortado à escovinha, de
pescoço grosso, a imitou; depois foi uma outra mão, e logo a grande maioria
dos jurados em potencial tinha levantado a mão.
Lancei um olhar para Eggert. Balançava a cabeça, como se Prescott esti‐
vesse provando o caso para ele.
— E por que pensam assim? — Prescott olhou de novo para a sua pran‐
cheta. — Sra. Lanford?
A mulher de porte digno ao lado da Sra. Simpson disse:
— Sim, sou eu.
— Por que acha que os políticos podem ser comprados tão facilmente? —
perguntou Prescott.
— Porque são gananciosos.
— E para onde acha que o dinheiro vai, Sra. Lanford, esse dinheiro com
que são comprados?
— Vai para o bolso deles — disse a Sra. Lanford. — Direto para a cartei‐
ra deles.
— Dentre os senhores, aqueles que disseram que políticos são comprados
com frequência, isto também é o que todos acham?
— Não — disse um homem no fundo, os cabelos grisalhos bem pentea‐
dos, vestindo uma camisa polo naquele dia de folga do escritório.
Prescott percorreu a lista de nomes na prancheta.
— Sr. Roberts, não é? Para onde acha que vai?
— Para suas campanhas — respondeu. — Eles estão sempre em campa‐
nha. Parece que um ano sim outro não há sempre uma nova eleição.
— Acha que é culpa dos políticos se precisam pedir dinheiro? — pergun‐
tou Prescott.
— Creio que não — disse Roberts. — Quero dizer que acabamos votan‐
do no sujeito que fizer mais anúncios na televisão, de maneira que acho que é
tão nossa culpa quanto de qualquer pessoa.
— Alguém aqui acha que políticos não deveriam ter permissão para pedir
contribuições para suas campanhas?
Nenhuma mão se levantou.
— Vou confirmar isso com vocês agora. O que estão todos me dizendo é
que cada um de vocês acredita que seja correto que políticos peçam contribui‐
ções para campanhas, que tais pedidos sejam precisamente o que o sistema exi‐
ge de políticos como meu cliente.
Antes que qualquer pessoa pudesse responder, Eggert se levantou e com
sua voz esganiçada disse:
— Objeção, Meritíssimo. O exame dos jurados do Sr. Prescott mais uma
vez se transformou numa palestra.
— Civismo 101 — disse o juiz Gimbel. — Não precisamos de aulas de
cidadania, Sr. Prescott. Por favor, passe adiante.
— Já quase acabei, Meritíssimo — disse Prescott.
— Fico grato — retrucou o juiz.
— Agora, quantos dos senhores têm o seu próprio negócio?
Um pequeno grupo de jurados levantou as mãos. Prescott mais uma vez
consultou a prancheta.
— Sr. Thompkins, que tipo de negócio o senhor tem?
— Uma gráfica — disse um homem negro, magro e calvo, com dedos ex‐
tremamente longos.
— Quem está cuidando dela agora?
— Meus empregados. Tenho um gerente.
— Muito bem, Sr. Thompkins, se enquanto o senhor está ausente seu ge‐
rente fizer alguma coisa errada, o senhor será responsável?
— Se ele estragar um serviço, claro que seria. Sou responsável por todo o
trabalho que sai da minha gráfica.
— Suponhamos que ele fizesse alguma coisa ilegal enquanto o senhor es‐
tivesse fora. Suponhamos que, sem seu conhecimento, ele começasse a impri‐
mir dinheiro falso. O senhor ainda seria responsável?
— De jeito nenhum.
— Alguém acredita que o Sr. Thompkins deveria ser criminalmente res‐
ponsabilizado se seu assistente começasse a imprimir dinheiro falso em sua grá‐
fica?
Prescott escrutou o rosto dos jurados e balançou a cabeça aprovadora
mente quando não viu mãos se erguerem.
— Eu também não acho — disse Prescott. — O senhor está livre, Sr.
Thompkins. Muito obrigada pelo seu tempo. Tenho certeza de que serão todos
excelentes jurados. — Prescott sentou-se à mesa da defesa e confabulou com
Moore, sua equipe de julgamento e o perito em júris.
O juiz Gimbel pousou a caneta e olhou diretamente para mim.
— Sr. Carl — chamou. — Tem alguma pergunta para os jurados?
— Eu poderia ter um momento, Meritíssimo? — pedi.
Com o grupo de jurados ainda sentados na sala de audiência, calmamente
interrompi as confabulações de Talbott, Kittredge.
— Sr. Prescott — disse. — Poderia falar com o senhor, por favor?
Ele comprimiu os lábios e disse:
— Vamos lá fora um instante, está bem?
Eu o segui para fora da sala de audiências, passando pelas fileiras de possí‐
veis jurados, jornalistas, frequentadores habituais do tribunal, velhos que vivem
perambulando pelas salas de audiências, passando o tempo de suas aposentado‐
rias com diversão gratuita. Depois que saímos para o longo corredor de cor cre‐
me, Prescott levantou o queixo e olhou para mim de maneira penetrante, pare‐
cendo muito firme e muito severo.
— Aquela última parte, Sr. Prescott — expliquei. — As perguntas sobre o
falsificador? Tenho que admitir que me causaram alguma preocupação.
— É mesmo? — perguntou ele, a voz se elevando num tom confuso
— Sim, senhor. Pareceu que o senhor estivesse indicando que talvez um
subordinado, não o chefe, fosse o responsável aqui.
Prescott baixou o olhar para mim, os olhos arregalados, cheios de inocên‐
cia ferida:
— Foi apenas o exame dos jurados, Victor.
— Mesmo assim, senhor, fiquei um tanto preocupado.
— Acompanhe-me até o banheiro — retrucou. — Vamos aproveitar o in‐
tervalo.
O banheiro masculino ficava logo adiante, descendo o corredor, e me en‐
contrei na posição desconfortável de estar de pé ao lado de Prescott no mictó‐
rio. Prescott era um homem formal, severo, não era do tipo, eu imaginara, de
bater papo enquanto segurava o pinto, mas havia me enganado.
— Já levei a julgamento mais de cinquenta casos aqui nestes tribunais,
Victor — disse, enquanto mijava. — E no curso desses julgamentos aprendi
como ganhar uma causa. Passei horas com nosso perito em júris preparando o
exame dos jurados, meus argumentos, a apresentação de nossas provas. Tudo
que eu fizer durante este julgamento terá sido revisto com antecedência pelas
melhores cabeças da Talbott, Kittredge, cada pergunta apresentada ao júri foi
cientificamente elaborada para beneficiar ao máximo nossos clientes. Agora,
aquela pergunta sobre falsificação é a base de toda a nossa defesa. Ao contrário
do falsificador, que trapaceia o sistema, estes homens não estavam agindo fora
dos limites impostos pelo sistema. Estavam apenas cumprindo as exigências do
sistema. Eu estava apenas tentando realçar o contraste.
Durante toda a fala dele eu estava me contendo para não examinar o seu
equipamento. Havia alguma coisa em Prescott que me forçava a fazer compara‐
ções, apesar de parecer que eu sempre saía em desvantagem.
— Creio que agora compreendo, senhor — afirmei.
Ele deu uma sacudida, fechou o zíper e seguiu para as pias na parede do
outro lado. Fiz o mesmo. Pelo espelho ele me encarou, e seus olhos ficaram ge‐
lados.
— Estou no meio de uma luta contra Eggert, Victor. Não posso me dar o
luxo de ficar lhe dando explicações a cada passo. Depois que você tiver um
pouco mais de experiência, talvez venha a compreender o que estou fazendo,
mas agora o que precisa é de ter fé para não atrapalhar meu caminho. Suas ins‐
truções estão bem claras?
— Sim, senhor — respondi, como um colegial sendo repreendido. Ele
abriu a torneira e começou a lavar as mãos. Fiz o mesmo.
— Agora, não quero que você faça nenhuma pergunta a esses jurados.
Consegui levá-los exatamente ao ponto onde eu queria, e você só poderia des‐
viá-los para a direção errada. E não quero que se envolva no processo de sele‐
ção. Eu lhe direi como usar seu direito de recusa peremptória e farei todas as
recusas da causa. O que preciso de você, Victor, o que tenho que ter é sua abso‐
luta confiança em mim. Pode me dar isso, meu filho?
— Sim, senhor.
— Mantenha os olhos abertos, Victor — disse, fazendo uma careta para o
espelho. Alisou os lados dos cabelos para trás com as palmas das mãos. — É
impossível calcular o quanto você pode aprender. A propósito, os Bishop estão
satisfeitíssimos com seu trabalho até agora.
— Ainda não fiz muita coisa.
— Bem, eles têm elogiado muito. E haverá mais no futuro, prometo. Não
façamos o juiz esperar. O velho detesta esperar.
Lado a lado, como companheiros de armas, saímos do banheiro, subimos
pelo corredor em passo firme, abrimos as portas da sala de audiências e fomos
andando de volta até a mesa de defesa.
— Bem, Sr. Carl, agora está pronto? — perguntou o juiz Gimbel.
Alguma coisa me fez parar. Talvez tenha sido a expressão de inocência fe‐
rida nos olhos de Prescott. Não era inocente nem se feria tão facilmente. Mas
olhei fixamente para o bloco amarelo de anotações diante de mim, onde anota‐
ra algumas perguntas elementares para fazer aos jurados, e soube que seguiria as
instruções dele. A maioria de minhas perguntas já havia sido formulada pelo
juiz, eram perguntas clássicas, tiradas de um manual de procedimentos de jul‐
gamento que eu estudara durante o fim de semana. Nenhuma delas havia sido
cientificamente elaborada para obter o efeito máximo para a nossa defesa. Além
disso, Prescott tinha razão, eu havia recebido minhas instruções.
Inclinei-me para o lado e falei com Chet Concannon, só para ter certeza.
Depois que acabamos de cochichar, ele me deu um sorriso tranquilizador. Le‐
vantei-me mais uma vez e disse:
— Não tenho perguntas, Meritíssimo.
22
Estávamos em plena fase de escolha do júri, ou talvez devesse dizer que Prescott
e seu perito estavam escolhendo, quando avistei Morris Kapustin entrando na
sala de audiências. Percebeu que eu o avistara e acenou. Fiz um discretíssimo
movimento de cabeça para cumprimentá-lo. Morris estava especialmente mal‐
vestido naquele dia, um paletó de um terno que não combinava com as calças,
a camisa branca desabotoada no colarinho, deixando à mostra a camiseta de se‐
da desbotada. Esperava que ninguém tivesse visto a comunicação entre nós,
mas um dos jovens espertos da equipe da Talbott, Kittredge, o homem louro
de rosto agradável, que se chamava Bert ou Bart e tinha um narizinho perfeito,
o vira. Não pude deixar de reparar em seu sorriso malicioso enquanto se incli‐
nava para a frente e dizia alguma coisa para Prescott, que imediatamente se vi‐
rou para dar uma boa olhada. Virei o rosto para o outro lado constrangido.
Quando pude, sem que ninguém percebesse, fiz sinal para que Morris esperasse
por mim. Ele sentou no último banco e imediatamente começou a conversar
com um dos espectadores constantes do tribunal, um homem velhíssimo, de
calças xadrez que assistia à audiência.
Depois de encerrado o interrogatório, a seleção do júri se tornava um pro‐
cedimento quase que matemático. Todos os quarenta nomes vinham em ordem
de seleção em nossos formulários de júri. O juiz dava a cada um dos réus o di‐
reito de cinco recusas peremptórias com as quais podíamos excluir qualquer ju‐
rado em potencial pela razão que escolhêssemos. A acusação tinha o direito de
fazer seis recusas e, depois de o juiz ter excluído sete jurados do grupo por pen‐
sar que favoreceriam a um lado ou ao outro, inclusive a Sra. Lanford, que dis‐
sera que achava que todos os políticos recebiam propinas e punham no bolso,
começamos a seleção. Primeiro Eggert, depois Prescott e então eu; seguindo as
recomendações de Prescott, dispensamos jurados. Um por um, os jurados dis‐
pensados foram riscados de nossas listas, e então recalculamos quem ficaria.
Acabamos com um júri predominantemente masculino, como Bruce Pierpont,
o perito em júris, havia sugerido, que incluía o Sr. Thompkins, o dono da gráfi‐
ca, o Sr. Roberts, o homem que acreditava que os eleitores forçavam os políti‐
cos a pedir dinheiro, a Sra. Simpson, que acreditava que comprar funcionários
públicos era um elemento natural do processo político, e um tal de Sr. Rol‐
lings, que havia sido segurança durante dez anos num armazém em North
Philly. Depois que a seleção terminou, Prescott examinou o júri, falou baixinho
com o perito em júris e balançou a cabeça de maneira aprovadora.
— Declarações iniciais às dez horas amanhã — declarou o juiz Gimbel.
— E depois a primeira testemunha da acusação. Audiência encerrada.
Esperei até que Prescott e Eggert saíssem da sala de audiências com suas
respectivas equipes para fechar minha pasta de documentos e seguir até Morris,
que ainda conversava com o velho junto de quem havia se sentado.
— Não esperava vê-lo aqui, Sr. Kapustin — declarei um tanto severamen‐
te.
— Ah, Victor, quero apresentar você a Herm Finldebaum. Herm, este é
meu amigo advogado, Victor Carl. Herm vendia brinquedos na rua 44, agora
passa seu tempo observando, aqui neste mesmo prédio.
— Prazer em conhecê-lo, garoto — disse Herm. O rosto dele parecia se
afundar sobre si mesmo no lugar onde os dentes da frente tinham estado ou‐
trora, e havia um buraco na cabeça dele, coberto por uma fina camada de pele,
através do qual eu podia ver o leve pulsar de seu sangue. — Está representando
aquele sujeito, Concannon, certo?
— Exato.
— Cuidado com o seu batismo. Eggert é um tigre.
— Que foi que eu lhe disse, Herm, não está ouvindo, não é? — pergun‐
tou Morris. — Victor não é nenhum maricas, não como alguns desses outros
Hendricks que vivem cabeceando por aí. O Sr. Eggert também vai ter que en‐
frentar um tigrezinho.
— Nunca vi Eggert perder — declarou Herm. — Nunca o vi nem sequer
suar.
— Ele vai estar shvitzing como um hassid em Miami quando Victor de
cuidar dele. Você me diz se não acontecer isto, Herm. Aposto um pastrami.
— No Bens? — perguntou Herm.
— Onde mais seria? No McDonalds?
— Com molho russo?
— Não, com maionese e pão branco. Onde você pensa que eu como pas‐
trami?
— Negócio fechado, Morris.
— Você diz ao Ben, Herm, você diz ao Ben que o sanduíche que está
comprando é para mim e ele capricha bem no recheio, faz o sanduíche grosso
como eu gosto. Agora vamos parar com todo este papo de comida, estou fican‐
do meshuggeh. Já se passaram três semanas desde o Yom Kippur e ainda estou
com fome. Venha, Victor, temos que conversar.
Quando eu ia saindo do tribunal seguindo Morris, Herm Finklebaum, o
comerciante de brinquedos aposentado da rua 44, agarrou meu braço e disse:
— Vou ficar de olho em você, garoto. Sim, vou mesmo.
Depois que ficamos sozinhos no corredor de linóleo branco do tribunal,
Morris disse:
— A senhora lá do seu escritório, a que fica na recepção, me disse que vo‐
cê estaria aqui.
— Rita.
— Sim. Uma garota tão haimisheh, muito prestativa.
— A Rita?
— Ela me deu isto para lhe entregar. — Enfiou a mão no bolso do paletó
e puxou um bilhete cor-de-rosa de recado, dobrado em dois.
Abri, li e sorri.
— Alguma coisa boa, espero — disse Morris.
— Pelo menos para mim — respondi.
— Espero que esteja tudo bem, eu ter vindo aqui ao tribunal — disse
Morris. — Mas tenho novidades para você. As Empresas Barlavento eram exa‐
tamente aquilo. Exatamente. A moça sua amiga, como é o nome dela?
— Beth.
— Beth. Uma moça tão esperta. Beth. Ela estava absolutamente certa.
Talvez ela devesse estar ajudando você com este julgamento chique num tribu‐
nal federal, hein?
— Ela está.
— Está vendo, você também tem sechel. Bom. Talvez afinal você possa
ganhar este julgamento chique. Agora, vamos ver. — Ele pôs os óculos, puxou
o engordurado livrinho de anotações e começou a virar as páginas. — Frede‐
rick Stocker tinha uma segunda residência na costa, em Ventnor, na baía. Uma
casa e tanto, toda cheia de colunas e de vidraças. A esposa a vendeu depois que
ele desapareceu. Não tinha mais nada, é claro, só a casa da praia e uma hipote‐
ca na casa de Gladwyne. Disse-me que não sabia onde ele estava, e acredito ne‐
la por uma boa razão.
— Você falou com ela?
— De que outra maneira se acha alguém? Fale com as pessoas, Victor, as‐
sim poderá descobrir coisas. Uma senhora que estava muito zangada, esta Sra.
Stocker, o que é de se compreender, é claro, zangada, zangada. Tinha uma bo‐
quinha franzida num bico apertado, como um tochis, apertado mesmo, e os
dedos dela se contorciam uns nos outros, e depois de ter falado com ela acho
que sei por que esse tal de Frederick Stocker desapareceu.
— É ruim assim?
— Você nem queria saber como é ruim. Uma verdadeira kvetcherkeh. Es‐
ta mulher seria capaz de fazer picles de pepino sem a salmoura. Ele tinha um
barco, me disse, e o chamava de The Debit. Um nome tão inteligente para um
contador que também é um ladrão, não acha? Uma chalupa de trinta pés. O
que é uma chalupa, eu não seria capaz de lhe dizer nem se você klop mein kop
com uma âncora, mas era exatamente isso aí, uma chalupa. Ele gostava mais do
barco do que dela, me disse. Eu detesto barcos, não entraria num outro nem
para salvar minha vida, mas, cá entre nós, concordo com ele. Meu palpite é que
esse ladrão, Stocker, vendeu o barco e comprou um outro e está velejando em
algum lugar feliz da vida porque está no seu barco e a mulher não está.
— Então é isso. Ele está em algum lugar em alto-mar.
— Sim, é isso, mas é claro, quem pode velejar para sempre sem ter que vir
à terra? Em outubro o mar começa a ficar mais frio, Stocker, o ladrão, vai que‐
rer encontrar um porto onde possa atracar, para kibbitz um pouco, arranjar
uma bummerkeh ou duas, gastar um pouco do dinheiro que roubou. Meu pal‐
pite, Victor, e é apenas um palpite, é de que ele esteja mamando schnopps em
seu barco numa marina em algum lugar onde o clima seja quente.
— Então não há nada a fazer, certo?
— Agora cale-se. Você contratou Morris Kapustin. Morris Kapustin vai
decidir quando não há mais nada a fazer. Existem maneiras de continuar pro‐
curando, ver os registros das marinas.
— Deve haver milhares. Como é que você vai checar todas as marinas do
país?
— Através de computador, como é que queria que checasse? Acch, deixe
comigo, farei o que puder. Já tentei isso uma vez, procurando um barco.
— Funcionou?
— Ora, porque uma vez não funcionou, não devo continuar tentando?
Meu filho, o computemik. Um verdadeiro chachem, tentando levar nosso ne‐
gócio para o novo mundo, e quem sou eu para impedi-lo. Ele conhece tudo so‐
bre máquinas, computadores, carros, trabalhava como chaveiro durante os ve‐
rões quando estava de férias. Eu, eu conheço as pessoas. A gente pode aprender
com as pessoas coisas que computadores nunca sonharam. Mas, é claro, tentar
achar um barco no Atlântico ou no Pacífico, para isso a gente precisa de um
computador. Ah, e a propósito, Victor, bubeleh, isto é para você.
Ele pôs o livrinho de anotações de volta no bolso do paletó e enfiou a
mão bem fundo num dos bolsos das calças. Tirou a ficha pesada, dourada e
verde com a cabeça de javali e a jogou para mim. Deixei cair minha maleta ten‐
tando agarrá-la. A ficha me escapou, saltando para o chão, num amplo círculo
que eu segui.
— Posso ver que você não era nenhum jogador de basquete — comentou
Morris com uma gargalhada profunda, enquanto eu pisava na ficha que rolava
e a apanhava.
— Não era assim tão mau — retruquei.
— Agora ofendi você, perdoe-me. Você devia ser um Magic Jordan, agora
percebi. Como poderia não ter percebido, nem sei? Tinha dois metros e seis no
colégio, mas os anos têm sido difíceis, você encolheu. Eu também encolhi.
Acontece.
— O que descobriu a respeito da ficha?
— É uma ficha muito especial, esta aí. Perguntei a uma porção de gente.
Yitzhak Rabbinowitz, o contador? Da Pearlman & Rabbinowitz, talvez já tenha
ouvido falar neles? Bem, acontece que o Yitzhak, e eu conheci o avô dele tam‐
bém, embora não fosse nenhum príncipe como Abe Carl, o sapateiro, acontece
que Yitzhak trabalha para certas organizações particulares. Mostrei a ficha a ele
e me disse imediatamente o que era. Feita especialmente para um clube de ca‐
valheiros em South Filadélfia. Escrevi o endereço para você. Jogam pôquer qua‐
se toda noite com estas fichas. Mas não é um clube em que se possa entrar as‐
sim, sem mais nem menos. É um clube muito exclusivo. Acho que talvez você
devesse esquecer esta ficha.
— Que tipo de clube?
— Como poderia dizer? É um clube para taleners, alte kockers, e nem to‐
dos eles eram vendedores de verduras no Mercado Italiano, estão compreen‐
dendo? É um clube para mafiosos aposentados, velhos gângsteres. É um lugar
perigoso, com homens perigosos, não é lugar para um bom garoto judeu como
o neto de Abe Carl.
Antes de fazer uma visita à South Filadélfia peguei a 1-95 na direção de
Chester e então fui seguindo as instruções que me haviam sido dadas até uma
estrada industrial esburacada que acabava num trailer cinza com um luminoso
de neon sibilante, posicionado no topo, que dizia: PETE’S YARD — REBO‐
QUE, DEPÓSITO & CONSERTOS. CARROS ANTIGOS NOSSA ESPE‐
CIALIDADE. Estendendo-se atrás do trailer havia uma cerca de correntes,
com arame farpado no topo, envolvendo uma área de mais de quatro mil me‐
tros quadrados, e ali dentro só havia carros. Muitos e muitos carros. Carros re‐
luzentes e carros batidos, carros novos e carros sem rodas, estacionados em lon‐
gas fileiras para trás do trailer, tantos que seriam capazes de deixar excitados os
mais exigentes pelo número e variedade. Mas não fiquei excitado. Nunca dei
muita bola para carros. Achava que quando tivesse dinheiro suficiente veria
qual era a BMW que todo mundo tinha e escolheria um modelo melhor. Até
chegar lá, teria o carro que pudesse pagar, que era o meu Mazda compacto de
sete anos, registrado no endereço suburbano de meu pai para manter o seguro
mais barato.
Estacionei na frente do trailer. Lá dentro estava uma mulher jovem lendo
uma revista atrás de uma guarita de fibra de vidro. Acima dela havia um outro
luminoso: REBOQUE $50. DEPÓSITO $10 POR DIA. NÃO ACEI- TA‐
MOS CHEQUES PESSOAIS. TODAS AS MULTAS TÊM QUE SER PA‐
GAS ANTES DE RETIRAR. FAVOR APRESENTAR OS DOCUMENTOS
DO CARRO E IDENTIDADE.
— Estou aqui para tratar de um carro.
— Isto é bom — disse ela, sem levantar a cabeça — porque não aceita‐
mos lavar a seco.
Ela era espirituosa, à moda deselegante de uma oficina de automóveis, e o
comentário fora bastante inteligente, de maneira que não pude me conter.
— Será que conheço você?
— Número da placa — disse secamente. Decidi ali e naquela hora que te‐
ria que arranjar uma outra abordagem.
— Estou aqui para tratar de um carro que foi apreendido para o gabinete
do xerife — retruquei e li direto do recibo cor-de-rosa. — Número 37.984.
Ela abriu um arquivo e procurou os documentos.
— Ah, é o senhor, Sr. Carl — exclamou, sorrindo de repente. — Pete me
pediu que o chamasse pessoalmente quando o senhor viesse. Espere um minu‐
to.
Pete era um homem grande, de cabelos cor de areia, com o estômago ex‐
plodindo debaixo do cinto. Sua gravata estava frouxa, o nó frouxo, e o paletó
estava apertado demais nele, fazendo pregas nas cavas. Só ver aquilo me fez fle‐
xionar meus ombros num reflexo claustrofóbico. Pete era um daqueles caras
que se recusavam a aceitar os últimos vinte quilos que engordara. Estendeu a
mão e apertou a minha como um macaco.
— Fico satisfeito por o senhor ter aparecido, Sr. Carl — disse calorosa‐
mente. — Queria lhe mostrar pessoalmente o que recolhemos para o senhor.
Ele me conduziu pelos fundos até a saída para o pátio, e fui atrás dele,
que ia falando enquanto íamos passando pelos detritos automotivos que havi‐
am sido rebocados das ruas do condado de Chester em fileiras e mais fileiras.
— O xerife adjunto já estava lá quando chegamos — disse Pete. — Eram
seis da manhã. De manhã cedo é a melhor hora, antes de qualquer um resolver
dar o fora. Era uma casa e tanto, parecia um castelo. E tinha um gramado que
parecia não acabar nunca, uns seis campos de futebol ou coisa assim, todo cer‐
cado. Havia três carros na entrada, mas não era o que estávamos procurando. E
também não havia nada na garagem. Ficaram todos contentes de nos mostrar a
garagem, de maneira que eu soube antes de olharmos que não estaria lá. O xe‐
rife adjunto queria ir embora, mas havia todo aquele gramado, certo. Todo cer‐
cado, esta era a pista. “Vocês têm cavalos?”, perguntei. Claro que tinham, Sr.
Carl. Um lugar como aquele. Então, depois que convenci o xerife adjunto a
checar o estábulo, eles ficaram meio malucos.
— E havia um velho por lá? — perguntei. — De rosto redondo, pálido,
cabelos compridos, com uma aparência meio arruinada?
— Oh, sim, ele estava lá, resmungando alguma coisa, gritando. A gente
imagina que cuidariam dele, não é? Mas não dei nenhuma bola para ele, já ti‐
nha visto aquilo antes. Sabe como é, esse tipo de trabalho não é dos mais agra‐
dáveis. As pessoas não gostam de ver você levando embora os seus carros. Levar
as máquinas de lavar, os videocassetes, até as mulheres, tudo bem, mas os carros
não. Não o fazemos sem a presença do xerife, e o xerife só o faz se estiver arma‐
do. Mas também não é muito frequente encontrarmos casas como aquela. As‐
sim, fomos até o estábulo. Havia cavalos lá dentro, claro, feno e tonéis de aveia.
Cheiro de couro e de cocô de cavalo, sabe como é. Umas tirinhas amarelas em
montinhos no chão cobertos de moscas. Fomos andando lá dentro bem deva‐
gar. Nada, sabe como é. Procurei lá em cima nas vigas, a gente nunca sabe, cer‐
to? Nada.
Ele me levou para o interior de uma construção baixa, bem no centro do
pátio, com um teto de amianto, e me conduziu até uma coisa grande, compri‐
da, coberta por uma lona de cor bege.
— E então, escondido lá na última estrebaria, Sr. Carl, encontramos isto.
Agarrou o lado da lona e a puxou fora. Embaixo havia uma coisa de as‐
pecto majestoso, um longo conversível com assento para duas pessoas, com ca‐
pota dourada e rodas de eixo azul na dianteira e na traseira. Quatro canos de
descarga reluzentes serpenteavam dos dois lados do motor. Tinha uma grade al‐
ta, majestosa, com um pneu sobressalente preso sobre a mala, e o delicado pa‐
ra-choque dianteiro tinha o formato de um beijo de mulher.
— Eu sabia que ia apanhar um Duesenberg, Sr. Carl, mas francamente
esperava alguma coisa meio caindo aos pedaços, não um Speedster SJ 1936 em
condições razoáveis. Esta gracinha tem cambio duplo suspenso, oito cilindros,
compressor centrífugo, hastes de conexão tubulares de aço.
Ele parou de falar por um momento, os olhos fixos numa expressão de es‐
panto e respeito. — Isto é mais do que um clássico, Sr. Carl. É uma obra de ar‐
te. É uma lenda. Projetado pessoalmente pelo Sr. Gordon Buehrig. Logo que
foi lançado, tanto Gary Cooper quanto Clark Gable encomendaram um mo‐
delo especial. Alguém que aprecie seria capaz de pagar um bocado de dinheiro
por este carro.
— Quanto, mais ou menos? — perguntei.
— Em excelentes condições, numa exposição de automóveis, tendo sido
anunciado da maneira adequada, entre duzentos e trezentos mil dólares. Este
carro não tem tido manutenção ultimamente, está com um pouco de ferrugem,
o couro dos assentos está partido, o motor está vazando um pouco de óleo, pre‐
cisa reparar a válvula. Mas certamente valeria a pena gastar um pouco de tempo
e de dinheiro para deixá-lo brilhando e depois vendê-lo numa exposição.
— Quanto conseguiríamos se o leiloássemos agora mesmo?
— Essas coisas são difíceis de dizer, Sr. Carl. Poderia ser um preço desas‐
troso. Dependeria de quem aparecesse. Provavelmente alguma coisa em torno
de quarenta a cinquenta mil. Mas seria uma vergonha, Sr. Carl.
Eu ainda receberia vinte e cinco por cento de tudo que arrancasse de
Winston Osbourne. Vinte e cinco por cento de cinquenta seriam doze e qui‐
nhentos. Era surpreendente como dinheiro depois que começava a entrar, não
parava.
— Venda, Pete — ordenei, fazendo meia-volta e deixando o prédio.
Ele me seguiu.
— Mas Sr. Carl, seria uma pena. Ficaria honrado em trabalhar nele para o
senhor. Em seis meses, Sr. Carl, estaria perfeito. Juro. Mas simplesmente vendê-
lo do jeito que está agora seria uma pena.
Eu tinha certeza de que seria exatamente isso. Mas vocês veem, eu não era
um apreciador de carros. Aquilo para mim não passava de aço, couro, borracha
e vidros. E, considerando tudo, eu preferiria doze mil e quinhentos logo do
que qualquer outra coisa mais tarde.
— Venda — ordenei, continuando a me afastar. Engula esta, seu estúpido
de sangue azul. — Venda-o o mais rápido possível.
23
— Sim — respondi, olhando por sobre minhas cartas, sutilmente tentando ar‐
rancar as informações de que precisava. — Zack me falou sobre as partidas que
jogava aqui, disse que passava bons momentos aqui.
— É mesmo? — perguntou o velho que eu vira na primeira vez em que
fora ao clube e cujo nome agora sabia ser Luigi. — Muito interessante, Victor.
Vou apostar vinte. Não tenho nada, é claro, mas gosto de manter as coisas inte‐
ressantes.
— Está aumentando a aposta só para manter as coisas interessantes? —
perguntou Virgil, um homem enorme com punhos que pareciam presuntos e
um rosto de grandes maxilares, flácido por causa da idade. A voz dele era grossa
e lenta.
— Isso mesmo — disse Luigi.
— Não tem nada a ver com as três damas viradas para cima e a terceira
virada para baixo? — perguntou Virgil.
— Se eu tivesse três rainhas teria apostado quarenta — retrucou Luigi.
— Se você tivesse apostado quarenta eu não estaria pensando em conti‐
nuar.
— Ok — disse Luigi. — Vou aumentar a aposta para quarenta.
— O que você tem, está senil? — disse Jasper, um homem alto magro
com rugas profundas em volta dos olhos e bastos cabelos grisalhos. Sua voz
anasalada tinha a firmeza e a tensão da voz de um carteiro em situação difícil.
— Não pode simplesmente aumentar e mudar sua aposta sem mais nem me‐
nos. Uma vez na mesa, a aposta está feita.
— Vou mudar — retrucou Luigi. — Qual é o problema com você afinal,
Jasper, saiu do jogo antes da primeira aposta?
— Não tinha nada na mão.
— Você não tinha nada na mão desde a época em que Truman foi presi‐
dente — disse Luigi.
— Mesmo assim você não pode aumentar — retrucou Jasper. — Existem
regras.
— Deixe-o mudar — intercedeu Virgil. — Que importa?
— Ok — disse Luigi, jogando mais quatro fichas vermelhas com a cabeça
de javali gravada em dourado. — A aposta é de quarenta.
— Quarenta dólares — disse Virgil. — Agora sei que você não tem nada.
Os seus quarenta e mais dez.
Luigi deu uma risada chiada e disse:
— Cinquenta para você, Victor.
Éramos cinco sentados à mesa, quatro homens além da idade de aposen‐
tadoria e eu. Estávamos jogando pôquer aberto de sete cartas, apenas com as
mais altas. Giovanni sentava-se junto à porta, esparramado como um saco de
cimento numa das cadeiras forradas de curvim vermelho, folheando uma Play‐
boy velha. Não conseguia chegar à conclusão de o que ele era, se um guarda-
costas ou um bartender. Ficava sentado ali e servia os drinques para os jogado‐
res quando lhe pediam, depois sentava de novo. Eu já havia jogado um bocado
de pôquer antes, mas nunca um jogo com apostas tão altas. Tinha tirado o pa‐
letó, afrouxado o laço da gravata, os dois botões superiores da camisa estavam
desabotoados, as mangas enroladas até os cotovelos. De vez em quando exami‐
nava o relógio, sabendo que deveria estar no tribunal no dia seguinte de ma‐
nhã. Mas passara a noite inteira fazendo apartes, tentando encetar uma conver‐
sa a respeito de Zack Bissonette, e ainda não descobrira o que viera descobrir.
Examinei minha mão novamente, levantando as cartas bem juntas umas
das outras para que ninguém pudesse ver. Sobre a mesa eu tinha o quatro de
copas e o quatro de espadas. Na mão tinha mais duas de copas e o quatro de
ouros. Três quatros não era mau, mas, exceto por Jasper, que desistira do jogo
logo no começo, cada um dos outros tinha pares sobre a mesa e estavam apos‐
tando pesado. Todos nós ainda tínhamos que receber mais duas cartas. Se fos‐
sem apenas os quatros eu poderia ter passado, mas ainda havia a chance de en‐
trar mais um quatro ou de fazer o flush de copas. Olhei para minhas fichas.
Restavam apenas cerca de cento e cinquenta dos meus quinhentos dólares ini‐
ciais, e estavam indo embora depressa.
— Vamos, Victor — disse Virgil. — Isto não é uma cirurgia cerebral.
— Vou continuar — respondi, lançando duas fichas de vinte e cinco.
Dominic, sentado a meu lado, um homem baixo e sombrio, com antebra‐
ços que pareciam tijolos e uma barriga de cerveja, jogou mais cinquenta. Do‐
minic não dissera duas palavras a noite inteira, apenas apostara o dinheiro e ga‐
nhara apostas altas. Agora havia mais de trezentos dólares sobre a mesa.
— Então você era companheiro de Zack? — perguntou Jasper. — É isto
que vem tentando nos explicar a noite inteira, meu chapa?
— Algo assim — respondi.
— Zack era parente distante de Dominic, como um primo de segundo
grau ou coisa parecida — comentou Jasper. — Jamais consigo entender estas
coisas. De maneira que o deixávamos jogar quando queria. Sujeito simpático.
— Péssimo jogador de beisebol — observou Virgil. — Péssimo jogador
de pôquer.
— Era por isso que o deixávamos continuar jogando — comentou Luigi
e soltou mais uma gargalhada sibilante que terminou num ataque de tosse.
— Bom sujeito, bom perdedor—disse Jasper. — E as mulheres que ele ti‐
nha, vou te contar, meu chapa. O que você acha? Eram loucas por ele.
— Tinha que se livrar delas batendo com o taco de beisebol—disse Vir‐
gil.
Houve um momento de silêncio desagradável e então Dominic falou nu‐
ma voz dura como gelo.
— Chega.
— Sabe o que você é, Virgil? — perguntou Jasper. — Você é um idiota.
— Não tive má intenção.
— Este é o seu problema, você nunca tem má intenção mas vai dizendo
— retrucou Luigi. — Vou subir mais vinte.
— Três rainhas — disse Virgil, sacudindo a cabeça, enquanto punha mais
vinte. — Eu sabia que estava com as rainhas.
— Acompanho — declarei.
Dominic pôs suas fichas no monte e Luigi deu a rodada seguinte. Nin‐
guém transformou os pares em trincas, mas recebi o sete de copas, deixando
perto do flush.
Dominic apostou mais vinte e cinco, e Luigi observou.
— O que aconteceu com o Sr. Quarenta Dólares? — perguntou Virgil.
— Para onde ele foi?
— Vai apostar ou passar? — perguntou Luigi.
— Apostar — respondeu, jogando as fichas.
— Também vou apostar — disse eu. — O que ouvi a respeito de Zack foi
que ele estava andando com a garota errada no final.
— Onde foi que ouviu isso, meu chapa? — perguntou Jasper.
— Foi isso que ouvi.
— Foi isso o que ouviu? — perguntou Jasper. — Bem, talvez tenha ouvi‐
do certo.
Dominic lançou suas fichas naquele momento e depois, sem olhar para
mim, disse em sua voz áspera:
— Não vi você na TV ou coisa assim?
— A Roda da Fortuna? — perguntei.
— Talvez tenha sido — disse Dominic. — Participou do A Roda da For‐
tuna?
— Não.
— Sujeito engraçado — disse Dominic sem sorrir. — Dê as cartas.
Luigi deu a última mão de cartas viradas para baixo. Deslizei a minha so‐
bre as outras e as puxei bem junto do peito. Lenta e cuidadosamente, olhei as
minhas cartas. O quatro de copas. O quatro de espadas. Lancei um rápido
olhar em volta, para os velhos que me observavam, e então olhei a carta nova.
Rei de copas. Tinha feito o flush de rei. Finalmente ia ganhar uma rodada.
Deixei escapar um suspiro involuntariamente.
— Que foi isto? — perguntou Virgil. — Que foi isto, vocês ouviram?
— Não ouvi nada — respondeu Luigi.
— Você é surdo do ouvido esquerdo desde cinquenta e nove.
— Eu também ouvi — disse Jasper.
— Que foi? — perguntou Luigi.
— Ele suspirou — disse Virgil. — Victor suspirou, há três cartas de copas
na mesa e ele acabou de tirar o flush. Foi um suspiro de flush, eu ouvi antes. E
de carta alta também, um ás. Ele tem um flush de ás.
— Não pode ser, de jeito nenhum — disse Jasper, remexendo e depois vi‐
rando uma de suas cartas. — Estou com o ás de copas bem aqui
— Mas você não pode fazer isso — disse Luigi. — Você está fora do jogo,
não pode dizer o que tem na mão.
— Aah, pare com isso — disse Jasper. — De repente agora é “cala a boca”
para cada um que diz alguma coisa.
— Acredite se quiser, estou pouco me importando — disse Virgil — Mas
ele tem um flush.
—-Eu não acredito — disse Luigi. — De quem é a aposta?
— De Dominic — respondeu Fred.
Dominic pôs vinte e cinco dólares no monte.
— Entendi — disse Luigi.
— Não conte comigo contra o flush — disse Virgil.
— Os seus vinte e cinco e mais vinte e cinco — apostei.
— Eu lhe disse — observou Virgil.
Dominic apostou mais cinquenta.
— Aumentou de novo a aposta? — perguntou Luigi
— Você e suas rainhas — comentou Virgil. — Você e suas rainhas não
valem nada. Deveria ter saído do jogo com Jasper.
— Jasper desistiu no dia da primeira comunhão e continua desistindo
desde então — retrucou Luigi.
— O quê? Você quer que eu aposte como você, Luigi? — perguntou Jas‐
per. — Quer que eu estoure a minha aposentadoria como se fosse um balão
com três rainhas contra um flush? Eu não tenho genro rico dono de funerária
em Scranton. Tenho que ter cuidado, senão no final do mês estou comendo
comida de cachorro.
Luigi olhou para Jasper, fez uma careta zombeteira e disse:
— Estou vendo, Dominic.
— Foi esta a causa da morte de Zack, o fato de ter-se envolvido com a ga‐
rota errada? — perguntei como quem não quer nada, enquanto examinava mi‐
nhas cartas para fazer a aposta final. Só me restavam cinquenta dólares.
— Digamos, cá entre nós, meu chapa, que a sorte dele não era ruim só no
beisebol e no pôquer — respondeu Jasper.
Ainda olhando para as cartas, retruquei:
— Ouvi dizer que andava metido com a filha de Raffaello.
Depois que disse isso, um silêncio tumular caiu sobre a sala.
Levantei a cabeça. Em volta da mesa os quatro homens me encaravam co‐
mo se eu tivesse blasfemado contra a Virgem Maria. Giovanni se endireitou na
cadeira. Comecei a suar.
Finalmente disse:
— Vou jogar — e, para quebrar o silêncio que se seguiu àquela declara‐
ção, continuou: — E aumentar mais vinte e cinco. — Mas o jogo não continu‐
ou naquele exato momento.
— Hei, stugatz — disse Luigi. — Não fique falando de coisas que não
deveria estar falando.
— Foi apenas o que ouvi — disse, tentando fazer com que deixassem pas‐
sar.
— De quem? — perguntou Jasper. Tinha se transformado numa inquisi‐
ção, quatro contra um. — De que engomadinho ouviu isto, chapinha?
— Apenas ouvi — respondi. — Não era nenhum segredo.
— Você não deve ser daqui deste bairro — disse Jasper —, porque se fos‐
se daqui das redondezas saberia que se começasse a falar da família de alguém
poderia muito bem acabar morto.
— Já aconteceu algumas vezes — disse Dominic numa voz seca e gelada.
— Alguns homens não gostam que ninguém fale de sua família — sen‐
tenciou Virgil.
— Você deveria aprender a manter a boca fechada — disse Luigi.
Passou-se um longo momento em silêncio durante o qual os homens me
encararam e eu fiquei olhando fixo para minhas cartas e então Dominic disse:
— Vamos jogar.
Luigi sacudiu a cabeça para mim:
— Chega de conversa, viu. Chega de conversa. Vou continuar — disse,
lançando suas fichas.
Dominic apostou os vinte e cinco.
— Agora — disse Luigi, virando a rainha para cima. — Mostre-me o seu
flush.
— Claro — respondi, enquanto virava minhas cartas. Estendi o braço pa‐
ra puxar o monte, mas a mão de Dominic agarrou meu antebraço e apertou.
Apertou com tanta força que senti o aperto nos ossos.
— Full house — disse ele, sem virar as cartas.
— É claro que ele tinha a melhor mão — comentou Virgil. — Por que
outra razão continuaria no jogo contra um flush?
Dominic empurrou meu braço e lentamente começou a transferir as fi‐
chas do meio da mesa para a sua pilha. Ainda não tinha mostrado suas cartas.
— Vamos ver — pedi.
Dominic ficou imóvel, as mãos ainda nas fichas, e eu podia ouvir sua res‐
piração, lenta, regular, perigosa como a de um leopardo.
— Se Dominic diz que levou, ele levou, companheiro — disse Jasper, bai‐
xinho.
— Não estou dizendo que não tenha levado. Só queria ver — retruquei.
— O que você está dizendo — observou Luigi, com o tom gelado de vol‐
ta na voz sussurrada — é que não acredita nele.
— Eu só queria ver.
— Este é um clube de cavalheiros — declarou Luigi. — E, uma vez que
você não tem mais dinheiro, seu título de sócio temporário está revogado.
Giovanni se levantou da cadeira de curvim vermelha e se postou junto à
mesa, atrás de Luigi, com os braços cruzados.
— Vocês estão me passando para trás.
— Está na hora de ir — disse Giovanni.
Olhei em volta, para aqueles homens velhos, que pareciam inofensivos
apenas alguns minutos atrás, e o que vi não foi um grupo de anciãos implican‐
do uns com os outros durante o joguinho de pôquer semanal, e sim algo muito
mais feroz. Luigi tinha o rosto penetrante de machado e o sotaque siciliano de
um chefe mafioso de segunda linha. Virgil era um leão-de-chácara envelhecido,
um velho soldado que fazia cobranças de dinheiro emprestado a juros escor‐
chantes, quebrando pernas quando necessário. Jasper era o negociador, o que
fazia os acordos, o homem que acertava os arranjos lucrativos que os outros fa‐
ziam cumprir. E Dominic, silencioso e impassível, era um pistoleiro perigoso.
Eu nunca tivera chance alguma naquele jogo, o objetivo daquela noite fora me
tomar todo o dinheiro, e eu tinha sorte de ser apenas aquilo o que eles queri‐
am. Mas descobrira o que tinha vindo descobrir, que Bissonette havia se meti‐
do com a garota errada e fora morto por causa disso. E, embora aqueles gângs‐
teres envelhecidos tivesse se recusado a falar sobre o assunto, o silêncio deles, as
ameaças e a ausência de negativas confirmavam em alto e bom som que fora
com a filha de Raffaello que Bissonette andara metido e que fora Raffaello
quem mandara matá-lo. E me perguntei, por um instante, se fora um daqueles
velhos quem o executara. Talvez Dominic, o primo em segundo grau de Bisso‐
nette, cujo punho ainda era forte o suficiente para usar um bastão autografado
de Mike Schmidt como uma arma.
Levantei-me e cumprimentei os homens em volta da mesa com a cabeça
e, sem dizer uma palavra, muito pouco à vontade, me dirigi para a porta.
— Está esquecendo seu paletó, meu chapa — disse Jasper. — Não quere‐
mos que esqueça seu paletó.
Voltei até a mesa, evitando os olhares zangados dos homens enquanto pe‐
gava o paletó, e segui de volta até a porta, andando o mais depressa possível
sem correr.
— Ei, garoto — ouvi atrás de mim.
Parei e fiz meia-volta. Dominic me encarava com os olhos franzidos numa
expressão assustadora. Lentamente, ele virou as cartas, uma a uma, primeiro o
dez de espadas, depois o dez de paus, então o seis de ouros, o que lhe dava um
full house de seis sobre dez.
— Ninguém me chama de trapaceiro, garoto. Muito menos alguém que
queira continuar respirando.
Olhei para ele e esperei que sorrisse de sua própria piada, mas não sorriu,
seu rosto continuou duro como o franzido dos olhos. Então abandonei qual‐
quer tentativa de aparentar calma e saí correndo do clube, corri até meu carro e
saí correndo de South Filadélfia.
O alívio tomou conta de mim quando segui para norte da rua Sul, en‐
trando na área segura de Society Hill. Era alívio por estar longe daquele clube‐
zinho masculino sujo, longe daqueles gângsteres de olhos assassinos E, na mes‐
ma medida, alívio por saber que tudo o que Prescott estivera me dizendo pode‐
ria realmente ser verdade. Estava certo com relação a quem matara Bissonette e
faria o melhor que pudesse, que era muito melhor do que eu poderia fazer, para
se assegurar de que o júri soubesse disso. Agora eu podia, em boa consciência,
ficar calado em segurança, seguindo suas ordens enquanto ele levava o caso a
julgamento, recebendo meus generosos honorários simplesmente sentando ao
lado de meu cliente e mantendo minha boca fechada e minha gravata limpa
enquanto prosseguia rumo a meu próspero futuro.
Eu acabara de sair pela porta da frente de meu prédio na manhã seguinte,
rumo à estação do metrô da rua Broad, que me levaria ao tribunal, com o cor‐
po ainda tomado pela doçura do alívio, quando a janela de trás de um carro es‐
tacionado explodiu diante de meu rosto.
25
Era uma camionete japonesa, acho, eu estava bem na frente dela quando a ja‐
nela de trás se espatifou numa constelação de diamantes que ficaram suspensos
no ar por um segundo brilhante e incandescente antes de cair. Foi uma visão
tão surpreendentemente bonita que não me movi, fiquei apenas parado olhan‐
do para a abertura agora estilhaçada da parte de trás do carro e para os cacos
cintilando no asfalto negro. Então vi alguém do outro lado da rua apontando
para uma ruela e um homem na minha frente despencando no chão, como um
soldado apanhado numa emboscada, e me dei conta de que a janela não explo‐
dira espontaneamente porque quisera, mas que fora destruída por um tiro bem
na minha frente. Foi quando me joguei no chão também.
Não houve mais tiros. Houve sons de passos correndo e de um carro pa‐
rando de repente e mais passos correndo e gente gritando, mas não houve mais
tiros. Quando finalmente me levantei da calçada, um aglomerado de gente se
formara e um policial se aproximava para examinar os danos e fazer perguntas.
Agora formávamos um grupo, o homem que eu vira se jogar no chão, o ho‐
mem que vira alguém se afastar correndo e que estivera apontando do outro la‐
do da rua, uma senhora idosa do meu prédio, que dava o passeio matinal com
seu dutchshund de raça, o cachorro latindo furiosamente, a mulher rindo lou‐
camente. Eu não vira nada senão a explosão da janela, assim não pude ajudar
muito, mas o policial anotou meu nome e endereço.
— O que acha que foi? — perguntou o homem que havia apontado.
— Provavelmente um tiro perdido — disse o policial, um rapaz bem mo‐
cinho de barba rala e pele cor de pêssego com uma arma e um bocado de pose,
tentando falar mais alto que os latidos do cachorro. —Acontece muito.
— Talvez em Beirute — disse um passante.
O duthchshund rosnou na minha virilha.
— Quieto, Oscar — disse a dona do cachorro, tendo parado de rir, dan‐
do um puxão na coleira. O cachorro cheirou meu calcanhar e rosnou de novo.
— Quem sabe era alguém tentando destruir o carro? — perguntou um
homem de capa bege.
— É possível — disse o policial, que pela primeira vez anotou o número
da placa do automóvel. — Alguém sabe de quem é este carro?
Ninguém sabia; assim, ele passou o número da placa pelo rádio portátil
preso a seu cinturão.
— Agora tudo bem — disse como se estivesse esperando uma resposta.
— Já tenho os nomes de vocês. Vamos indo.
Fui-me embora, sentindo-me um tanto reconfortado pela indiferença do
policial, mas não muito. Rapidamente entrei no metrô. Fui me sentar num
canto do primeiro carro e me escondi atrás de um jornal. Quando saí para a
rua tive o cuidado de me manter no meio da multidão a caminho dos detetores
de metal da entrada do Tribunal Federal. E o tempo todo não pude me impe‐
dir de levar comigo, junto com a maleta e a capa de chuva, a suspeita de que o
tiro não fora perdido nem destinado ao carro, e sim disparado contra mim. Ah,
sim, não era completamente cego. Podia sentir o perigo crescendo à minha vol‐
ta, vindo do ameaçador Chuckie Lamb, do paranoico Norvel Goodwin, de mi‐
nha nova e ardente relação com Verônica, de Jimmy, se ele descobrisse a respei‐
to de nós, de Prescott e do poder que ele podia usar para me quebrar, dos
gângsteres jogadores de pôquer com assassinato nos olhos e full houses na
mãos, do obscuro Raffaello.
Pelo menos isso eu sabia a respeito de mim mesmo: não era o mais cora‐
joso dos homens, e me sentia à vontade com este fato. Deixava os atos de he‐
roísmo para aqueles que eram pagos para fazê-los, policiais, guardas da Brinks,
jogadores de futebol, paparazzi. Esta era uma das razões que me atraíra para o
direito. Por sua própria natureza, o direito é uma cerca divisória, fica no meio,
sejam grandes lucros ou grandes perdas, união de empresas ou falências, sem‐
pre existe trabalho. E assim o tiro apenas confirmara para mim a decisão da
noite anterior, confirmara-a de uma maneira que era mais do que intelectual,
de uma maneira que era visceral. E quer a bala me tivesse sido destinada ou
não, não importava; eu aprendera a lição do chumbo. O que quer que aconte‐
cesse no futuro, qualquer que fosse a humilhação, qualquer que fosse a violên‐
cia, qualquer que fosse a traição, eu não faria nada para impedi-las. Minhas ins‐
truções eram de seguir as ordens, e eu seguiria as ordens. O que o senhor qui‐
ser, Sr. Prescott, pode contar comigo, senhor.
Do lado de fora da sala de audiência do tribunal, naquela manhã, eu esta‐
va conversando com Beth sobre meu discurso de abertura quando fomos abor‐
dados por um dos asseclas da Talbott, Kittredge que trabalhava com Prescott.
Era o homem louro de rosto suave com o nariz perfeito que zombara de Morris
na véspera. O nome dele era Bert ou Bart, algo seco e eficiente. Não sabia nada
a respeito dele, realmente, não sabia se tinha família, um filho, se lia poesia ou
Proust, se tinha sentimentos profundos pelos fracos ou se as dores do mundo
haviam tornado seu ponto de vista cínico e seu humor irônico. Mas o que eu
sabia era que ele tinha um diploma de direito de Harvard e eu não, que ele ti‐
nha o emprego que eu queria, que era dono do futuro com o qual eu sonhara,
e por tudo isso eu o odiava.
— Bill me pediu para lhe dar isto — disse, enfiando a mão na maleta pra‐
teada reluzente e tirando uma folha de papel com algumas linhas impressas em
negrito e letra de imprensa.
— O que é? — perguntei.
— Sua abertura — respondeu.
— Nós preparamos uma abertura — disse-lhe Beth, sua voz demonstran‐
do incredulidade diante da presunção impertinente de que não estávamos
prontos.
Depois do jogo de pôquer, eu passara a maior parte da noite ensaiando
um longo e empolado discurso de abertura em que atacava o caso do governo
contra Concannon. Fora escrito em sua maior parte por Beth, de maneira que
eu sabia que era da maior qualidade. A abertura de Beth enfatizava as falhas no
caso contra Concannon: não havia fitas com a voz de Concannon, nenhuma
das provas físicas o envolvia diretamente em qualquer uma das transações, não
havia fotografias dele com Ruffing ou Bissonette. O caso contra Concannon
dependeria exclusivamente do depoimento de Ruffing e de certos registros de
transações financeiras do CUF, e Beth expusera um poderosíssimo argumento
contra a credibilidade de Ruffing. Eu compreendia que deveria seguir o coman‐
do de Prescott em todos os sentidos, mas ainda esperava que fosse dizer pelo
menos alguma coisa minha aos jurados.
— Tenho certeza de que é uma boa abertura — disse Bert ou Bart. —
Mas o que queremos é lhe dar a abertura que preparamos.
— Quem escreveu? — perguntou Beth, arrancando o papel de minha
mão.
— Eu — disse ele empinando ligeiramente o peito. — Bill já leu e discu‐
tiu com o perito em júris, fez algumas alterações e decidiu que você deve apre‐
sentá-la.
— Foi isto que ele decidiu? — perguntei.
— Foi o que nós decidimos.
— Acho que vamos manter o que já tínhamos preparado — disse Beth.
— Disseram-me que você fazia parte do programa, Vic — disse para
mim, ignorando Beth. — Assim, não criaria problemas.
— Como é o seu nome? — perguntou Beth.
— Brett Farber. Brett com dois “tês”.
— Bem, Brett com dois “tês”, o único programa de que fazemos parte é o
de nosso cliente, e, pelo que posso dizer, a partir de uma leitura rápida desta
sua abertura, é uma merda.
Brett não recuou diante do ataque como eu teria feito. Em vez disso, exi‐
biu sua carranca zombeteira e se inclinou para bem perto de mim até eu sentir
o cheiro de café em seu hálito, e disse:
— Merda ou não, Vic, seu cliente aprovou o texto, e é o que você vai
apresentar.
Antes que Beth pudesse responder, ele já tinha dado meia-volta e ido em‐
bora.
Porra de Brett com dois “tês”, pensei enquanto observava suas costas desa‐
parecerem no interior da sala de audiências. Talvez houvesse uma outra razão
além da sorte para que ele fosse um sucesso na Talbott, Kittredge & Chase e eu
não.
— Que rapazinho simpático — comentou Beth.—A mãe dele deve estar
tão orgulhosa. Então diga-me, Victor, que tal é ter bundões como William
Prescott e Brett com dois “tês” como colegas?
— Por duzentos e cinquenta por hora eu seria capaz de dormir com um
orangotango — respondi. — Isto é apenas um pouco pior.
— O que vai fazer?
Peguei a folha de papel da mão dela e li rapidamente, oito frases datilo‐
grafadas em letras maiúsculas em negrito, de maneira que eu não pudesse errar
ao ler para o júri.
— O que vou fazer — disse — é discutir isto com meu cliente e depois,
Beth, querida, vou engolir.
— Se você continuar engolindo muito mais, Victor, vai acabar parecendo
um esquilo.
Não havia contado a ela sobre a janela espatifada do carro e não pretendia
fazê-lo, nem sobre Verônica, nem sobre o telefonema de Chuckie, nem sobre
Norvel Goodwin, nem sobre meu desastroso jogo de pôquer. Se havia perigo a
ser evitado, era problema meu, e eu o evitaria. De maneira que tudo que fiz,
enquanto ela olhava para mim com o desapontamento evidente nos belos olhos
penetrantes, foi dar de ombros.
Depois que me sentei à mesa da defesa, mostrei o papel com as oito frases
a Concannon.
— É isto que você quer que eu apresente como abertura?
— É o que Prescott me mostrou ontem à noite?
— Sim.
Deu de ombros.
— Tem algum problema?
— É um tremendo de um zero à direita— respondi. — Não diz nada.
— Pelo que ele me explicou, devemos fazer com que meu papel no negó‐
cio, nos acertos, em tudo, pareça o menor possível.
— Eggert não vai deixar o júri esquecer que você está sendo julgado.
— Se é isto que Prescott quer que você apresente, então apresente.
— Você sabe, eu chequei a história a respeito de Bissonette com a filha de
Raffaello — disse. — Parece que é verdade.
— Victor, Victor — disse com um tom de censura na voz. — Era para
você ter parado de interferir.
— Já parei — retruquei, justamente quando a porta atrás da bancada do
juiz se abriu e o meirinho se levantou para dar início ao julgamento. — Daqui
para a frente vou ser o boneco de Chuckie Lamb.
— Levantem-se — disse o meirinho enquanto o juiz subia os degraus até
o banco.
Todos nós nos levantamos.
26
— Qualquer crime é uma traição da confiança que temos uns nos outros, mas
quando é um servidor público quem comete o crime, um candidato a cargo
público que pediu nosso voto e prestou um juramento de servir o público, a
traição é particularmente cruel.
Muito lentamente, Eggert andou até a mesa da defesa, até ficar bem de‐
fronte aos jurados. Estava fazendo seu discurso de abertura para jurados embe‐
vecidos, sua voz aguda se elevando cheia de indignação. Apontou para Jimmy,
com o dedo tão perto do rosto do vereador que este poderia tê-lo mordido se
quisesse, e no momento em que surgiu ali, como uma cimitarra branca, pare‐
ceu exatamente que era o que ia fazer. Então ele recuperou o controle, e a ex‐
pressão de profunda sobriedade retornou a seu rosto. Durante o tempo todo,
seus olhos nunca abandonaram os olhos de Eggert; se fosse haver uma disputa,
seria Eggert; quem iria piscar Primeiro. Na primeira fileira dos bancos para o
público, três artistas diferentes desenhavam furiosamente para capturar o mo‐
mento, as costas retas de Eggert, seu dedo acusador, os músculos tensos no pes‐
coço de Jimmy.
— James Douglas Moore é vereador municipal, é um servidor público
eleito para o cargo pelo povo desta cidade que o escolheu para cuidar dos inte‐
resses de toda a Filadélfia, não apenas os seus. A primeira exigência de sua fun‐
ção era honestidade, e foi a primeira coisa que ele jogou pela janela. As provas
demonstrarão, senhoras e senhores, que Jimmy Moore usou seu cargo para ex‐
torquir dinheiro, e, quando seu plano de extorsão fracassou, lançou mão de
ameaças, que os senhores ouvirão em fitas obtidas legalmente pelo governo,
lançou mão de incêndio criminoso e de assassinato. Assassinato, senhoras e se‐
nhores, o assassinato de Zachariah Bissonette, ex-jogador de beisebol, que de‐
fendeu o que era correto e se recusou a ser chantageado. Jimmy Moore pegou
um bastão de beisebol e surrou Bissonette de tal maneira que ele ficou em co‐
ma cinco meses, nunca mais abriu os olhos para ver a beleza do dia, para ver os
rostos de seus familiares, nunca mais se recuperou antes de morrer. Foi assim
que Jimmy Moore respeitou a confiança do público. E mostraremos para onde
o dinheiro foi, como foi canalizado para seu comitê de ação política, como
uma parte dele nunca sequer chegou ao comitê e, em vez disso, foi desviada pa‐
ra seu uso pessoal, como Jimmy Moore usou seu cargo público para arranjar
dinheiro para poder ficar circulando pela cidade numa grande limusine negra,
beber champanhe e jogar nos cassinos ao longo da Broadwalk. Isto é o que as
provas mostrarão.
Eggert se aproximou de Concannon e mais uma vez o dedo do promotor
apontou.
— Chester Concannon é o principal assessor de Jimmy Moore, um servi‐
dor público cuja função principal era ajudar o vereador a executar as metas le‐
gítimas de seu cargo público. Mas, em vez de cuidar dos interesses do povo da
Filadélfia, Concannon ajudou o vereador em cada um de seus golpes de extor‐
são. Concannon era o mensageiro, o intermediário, o sujeito que se devia ver se
se quisesse ter o apoio do vereador. Chester Concannon tirou sua parte do lu‐
cro arrancado da pele do povo desta cidade, e estava com Jimmy Moore na
noite em que Bissonette foi espancado com aquele bastão de beisebol até che‐
gar a um estado de inconsciência irreversível.
Depois que acabou de acusar os réus, explicou em detalhes os elementos
do crime de extorsão com ameaça de violência que iria provar, detalhando o
que cada testemunha iria dizer e como tudo aquilo iria se encaixar para mostrar
um claro padrão de conduta ilegal que o júri seria obrigado a condenar. Então
inclinou-se sobre a mesa da defesa e encarou, primeiro Jimmy Moore, depois
Chester Concannon.
— No final deste julgamento, voltarei para pedir aos senhores um vere‐
dicto de condenatório em todas as acusações. E, em vez de dinheiro, poder po‐
lítico, limusines negras, noites regadas a champanhe e noitadas extravagantes
em Atlantic City, vou pedir aos senhores que deem a este vereador corrupto e a
seu assessor corrupto tudo o que realmente merecem. — Com um derradeiro
olhar para os réus, um olhar carregado de toda a repugnância fatigada que con‐
seguiu reunir, Eggert foi andando lentamente para a mesa da acusação e sen‐
tou-se.
Prescott não se levantou de um salto para seguir Eggert como a maioria
dos advogados teria feito. Ficou sentado, com a cabeça baixa, de maneira dra‐
mática. O juiz Gimbel, ainda trabalhando na decisão que estava redigindo para
algum outro caso, não pareceu perceber o atraso, e simplesmente continuou es‐
crevendo. O público no tribunal se mexeu inquieto, um dos jurados tossiu,
Prescott continuou sentado.
— É num momento como este — disse Prescott finalmente, ainda senta‐
do à mesa da defesa —, é num julgamento como este que a genialidade do sis‐
tema do júri brilha.
Com um grande suspiro, Prescott se levantou, o ombro levemente curva‐
do, sacudindo a cabeça tristemente. Olhou para baixo com solenidade enquan‐
to falava, e criou um efeito de profundo desapontamento.
— Meu cliente Jimmy Moore é um político que está ganhando poder
nesta cidade porque pratica a política da inclusão. Seu objetivo é lutar contra o
flagelo das drogas, um flagelo que roubou a vida de sua filha, sua única filha. O
abrigo de jovens que fundou é um líder nacional no tratamento de jovens dro‐
gados. Buscando cumprir este nobre objetivo reuniu todas as pessoas desta ci‐
dade, sem dar importância à raça, sem dar importância à religião, sem dar im‐
portância ao status econômico, quer fossem mendigos, portadores do vírus
HIV ou crianças sujeitas aos piores abusos. Seu comitê de ação política, Cida‐
dãos para a União da Filadélfia, o CUF, ao longo dos últimos dois anos gastou
mais de meio milhão de dólares informando os cidadãos de seus direitos e re‐
gistrando os que não tinham registros. Seu comitê acrescentou duzentos mil
eleitores às listas de eleitores da cidade. E, na mesma medida em que cresce a
influência de Jimmy Moore, cresce o poder de sua oposição.
Prescott se virou para olhar para o júri e então foi andando lentamente de
trás da mesa da defesa para uma posição diretamente atrás de Eggert, que esta‐
va sentado inclinado para a frente.
— Existem homens poderosos nesta cidade que se sentem ameaçados pela
aliança que está sendo forjada por Jimmy Moore. Figurões e tubarões políticos
que querem guardar tudo para si mesmos e não estão dispostos a abrir o siste‐
ma para aqueles que puderam ignorar. Homens com tanto poder que podem
usar a Procuradoria da República dos Estados Unidos como ferramenta para
suas maquinações políticas.
“Pois bem, o presidente dos Estados Unidos pode passar pela cidade, fazer
uma reunião para angariar fundos de campanha e sair com um milhão de dóla‐
res no bolso, e isto é a política de hábito. Mas, quando Jimmy Moore começa a
levantar fundos para seu programa de cura, é extorsão. Política transformou-se
em dinheiro, a necessidade de registrar eleitores, a necessidade de espalhar car‐
tazes, a necessidade de comprar broches e adesivos e, mais importante, a neces‐
sidade de produzir e pôr no ar comerciais de televisão. Esta é a razão por que o
presidente arrecada seu milhão quando vem fazer uma visita e é a razão por que
Jimmy Moore pede contribuições em dinheiro àqueles como os homens de ne‐
gócios que pediram sua ajuda neste caso. Política é dinheiro, e pode não ser bo‐
nito e pode não ser correto e pode não ser o que escolheríamos se estivéssemos
começando de novo, mas é o que é. Jimmy Moore não estava fazendo nada
além do que aquilo que todo político sempre faz quando tenta levantar fundos
de campanha para se eleger para um cargo público.
“Assim, se Jimmy Moore estava fazendo apenas o que todos os outros po‐
líticos fazem, por que está sendo julgado? À medida que forem ouvindo os tes‐
temunhos, quando analisarem o caso do governo, esta é a pergunta que devem
fazer a si mesmos. Se Jimmy Moore fosse um político interesseiro comum que
não estivesse incomodando os calos dos homens poderosos que podem contro‐
lar a Procuradoria da República dos Estados Unidos, será que estaria sendo jul‐
gado? A resposta, ao final deste caso, será um não ressonante. Se examinarem as
provas, descobrirão o que realmente está acontecendo aqui, decidirão quem de
fato cometeu os crimes alegados pelo governo. Decidirão se o governo está bus‐
cando justiça ou se está querendo arrancar um espinho político que incomoda
o status quo. Examinem tudo cuidadosamente e decidirão absolver Jimmy Mo‐
ore e deixá-lo continuar a fazer seu bom trabalho.
Agora era minha vez, minha oportunidade de falar com o júri a favor de
meu cliente. Na minha frente estava um bloco de anotações amarelo com o
longo e apaixonado discurso de abertura que Beth havia redigido e que eu en‐
saiara na noite anterior. Mas quando me levantei, deixei-o sobre a mesa. Em
minha mão havia uma única folha de papel. Nela estava escrito o pequenino
discurso que se segue:
Lancei um olhar para Prescott, que estava fazendo anotações em seu blo‐
co, deliberadamente evitando meu olhar. Olhei para Concannon, que olhava
fixo para as mãos entrelaçadas sobre a mesa. Virei-me para olhar a plateia. A sa‐
la de audiências estava lotada. Beth franzia o cenho para mim. Chuckie Lamb
apertava os lábios enquanto sacudia a cabeça. No corredor, vi Herm Finkle‐
baum, o rei dos brinquedos da rua 44, sorrindo para mim em sinal de encora‐
jamento. Fui andando até um ponto bem defronte à bancada do júri, examinei
os jurados um por um, e então li a abertura anêmica de merda que havia sido
escrita para mim por Brett com dois “tês”.
Quando me sentei estava realmente embaraçado.
A primeira testemunha era o agente especial Stemkowski, o rejeitado do
WWF sentado ao lado de Eggert à mesa da acusação. Para um brutamontes,
Stemkowski até que falava muito bem, era deliberadamente calmo e capaz de
manter o rosto sério enquanto dizia coisas como “saí do veículo” e “efetuei a
implementação da interceptação das conversas telefônicas do Sr. Ruffing”. Ves‐
tia um paletó cor de mel, camisa branca e uma gravata azul discreta. No grosso
dedo mindinho usava um daqueles escandalosos anéis de ouro de formatura,
sem dúvida comemorativo de sua formatura com louvor da Academia do FBI.
Jogara futebol no colégio, como beque, disse, e, quando Eggert arrancou aque‐
la informação insignificante em seu depoimento, três dos homens no júri ba‐
lançaram a cabeça em sinal de aprovação. Sua compostura durante o depoi‐
mento era uma prova de que o país estava em boas mãos, nas mãos macias e
competentes de um ex-jogador com bíceps que pareciam grandes pernis de fer‐
ro.
Stemkowski explicou como o FBI estivera investigando uma operação de
distribuição de drogas que estava sendo feita a partir do Bissonettes por um
bartender, uma operação que não envolvia de nenhuma maneira nem Bissonet‐
te nem Ruffing, quando começara a grampear os telefones do clube. Havia sido
através destas gravações que o FBI descobrira o esquema de extorsão. O agente
especial Stemkowski autenticara as fitas cassete, identificando a data marcada e
a hora em cada cassete como tendo sido feita por sua mão e acuradamente ba‐
seada nos livros de registro de arquivos que o FBI mantivera durante a vigilân‐
cia. Eggert então apresentou grossas pastas contendo todas as transcrições, que
foram primeiramente autenticadas e depois distribuídas para o juiz e o júri.
Um técnico de áudio do FBI montou um sofisticado sistema de som com
transmissão por microondas para os fones de ouvido colocados nas mesas dos
advogados, na mesa do juiz, ao lado de cada assento da tribuna do júri. Eu teria
gostado de ouvir Bruce Springsteen jorrar daqueles fones, ou o Greatful Dead,
os Rolling Stones, teria adorado ouvir a versão de Jimi Hendrix do hino nacio‐
nal arrancar a cera de nossos ouvidos, mas não foi o que ouvimos através da‐
queles fones de alta-fidelidade, aprovados pelo governo. O que ouvimos, tocan‐
do claramente, durante dois dias inteiros, foram as conversas gravadas de Mi‐
chael Ruffing e do vereador Jimmy Moore.
Moore: Não faça isto, Mikey. Se recuar agora, o projeto estará mor‐
to. Morto.
Ruffing: Meu novo investidor não acha isso.
Moore: É aquele confeiteiro, não é?
Ruffing: Cale a boca. De qualquer maneira, você estava levando de‐
mais, sabe? Estava sendo ganancioso.
Moore: Então é assim, não é, Mikey? Vou mandar o meu chapa
Concannon passar aí.
Ruffing: Não quero o Concannon.
Moore: Escute aqui, seu merda. Você vai falar com Concannon, en‐
tendeu? Não sou nenhum pilantra de Hackensack, tínhamos um acordo.
Um acordo. Isto não é apenas coisa de política. Temos uma missão, Mi‐
key, e não vou deixar você fugir de suas responsabilidades. Está sacando o
que estou lhe dizendo? Sacou, Mikey?
Já tinha ouvido as fitas antes, àquela altura conhecia cada frase quase que
de cor. Sabia o que havia sido dito, mas o júri não sabia. Quando Moore amea‐
çou Michael Ruffing violentamente na gravação, o júri inteiro, com os fones
firmes em posição, reagiu como eu havia reagido da primeira vez em que ouvi‐
ra: os pescoços recuaram enrijecidos, os olhos se fixaram em Moore e Concan‐
non, e seus olhos se franziram como os olhos de um grupo de linchadores
prontos para a execução. Um sinal nada encorajador depois de apenas uma tes‐
temunha.
27
Enrico Raffaello estava quase certo com relação a seu cannoli: era pesado, assa‐
do no ponto certo, e o comi bem devagar, deixando o creme branco ir deslizan‐
do pela minha garganta como ostras doces e perfumadas. Não era exatamente
tão bom quanto sexo, mas depois de uma noite com Verônica era tudo que eu
poderia pedir. Sentei em meu carro e cheirei o cannoli, deixando a canela pene‐
trar em meu nariz, e depois da mordida meu ânimo foi desaparecendo, pois,
junto com o soberbo cannoli que me dera, o Sr.Raffaello abrira uma porta que
eu teria preferido que se mantivesse fechada. Do outro lado havia perigo e per‐
da, mas lá estava, bem aberta e esperando por mim. Não tinha muita escolha.
Encolhi a cabeça, fui em frente e na manhã seguinte estava no Sporting Club.
O Sporting Club era um lugar de ostentação, coisa que não era exatamen‐
te o que eu queria numa academia de ginástica. Salas de esportes deveriam ser
lugares com cheiro de suor, onde homens musculosos grunhem enquanto mo‐
vimentam grandes discos de metal e o bater ritmado e borrachudo de bolas de
basquete ecoa vindo da quadra. O Sporting Club não era assim; era metido a
besta.
— Estou interessado em me tornar sócio — disse. — E gostaria de visitar
as instalações.
— Mas claro — disse a mulher na secretaria. Estava vestida de branco, a
camiseta esticada por um par de seios rijos bem empinados, de músculos muito
bem trabalhados, tinha certeza, numa máquina Nautilus para seios, até ficarem
tão duros quanto suas coxas. — Por que não preenche este formulário primei‐
ro?
Eles queriam saber meu nome, meu endereço, meu cartão de crédito, o
que eu fazia para viver, para quem trabalhava e qual minha renda anual estima‐
da. Era quase semelhante à maneira como candidatos a namorados cheiram um
ao outro numa festa ou num bar. Por orgulho, menti para me fazer soar um
melhor candidato para o clube deles, apesar de não ter qualquer intenção de
me inscrever.
— Bem, Sr. Carl — disse ela —, deixe eu lhe mostrar as instalações.
— Será que eu não poderia dar uma volta sozinho e ir olhando, para sen‐
tir a atmosfera do lugar? Seria possível?
— É claro — respondeu ela. — Pegue este passe e entre direto por ali. O
vestiário masculino fica à esquerda, e as várias salas estão sinalizadas com pla‐
cas. — Seu olhar desceu até onde estaria meu peito se eu o tivesse. — Não dei‐
xe de visitar nossa sala de pesagem gratuita.
Dei-lhe um sorriso e saí do escritório, acenando casualmente com o passe
para o homem corpulento vestido de branco que guardava a porta.
Não estava muito cheio às sete da manhã, umas poucas almas magras ten‐
tando furtivamente fazer seus exercícios antes de estarem suficientemente acor‐
dadas para se darem conta da loucura que era tomar um elevador por sete an‐
dares apenas para subir aos saltos um lance infinito de escadas mecânicas. No
vestiário masculino, peguei um par de toalhas, entrei num reservado e tirei a
roupa. Não pude deixar de me examinar nos espelhos que revestiam o aposen‐
to. O que vi era patético. Um dia desses iria precisar entrar para uma academia
de ginástica, mas não para aquela, tão metida a besta.
Com uma toalha em volta da cintura, segui as indicações até a sauna mas‐
culina e o banho turco. A sauna estava vazia, mas no banho turco, deitado nu‐
ma das bancadas azulejadas, estava um monte de carne dura com uma toalha
em volta da cintura e outra sobre o rosto. Sentei numa bancada mais baixa, on‐
de ainda era possível respirar, e esperei por um momento enquanto o vapor flu‐
tuava à minha volta e o suor começava a jorrar de meu corpo.
Quando o suor começou a pingar de meu nariz nos joelhos, eu disse fi‐
nalmente:
— Enrico Raffaello não matou Bissonette.
— Bom dia, Victor — disse Jimmy Moore, sem tirar a toalha do rosto.
Concannon me dissera que Moore se exercitava no Sporting Club todas
as manhãs, principalmente suando na sauna ou no banho turco, dependendo
de seu humor, o álcool que bebera na véspera. A porta que Raffaello havia
aberto levava diretamente ao vereador, era de Moore que eu precisava ouvir as
respostas para as grandes perguntas.
— Onde foi que você obteve sua estarrecedora informação? — pergun‐
tou.
— Do próprio Raffaello.
— Então você teve uma audiência com o papa e o papa lhe disse que era
inocente.
— E acredito nele — retruquei. — Não tem nenhuma razão para mentir,
já tem as mãos manchadas de sangue. O que levanta a questão que levantei an‐
tes e para a qual ainda não tenho resposta. Quem matou Bissonette? Foi você?
Ele arrancou a toalha do rosto, sentou-se e deixou escapar um longo gru‐
nhido que foi como o latido grave de um grande mamífero mortalmente feri‐
do.
— Se quiser, vereador, pode ter seu advogado presente quando tivermos
esta conversa.
Ele se levantou da bancada e desceu, afrouxando a toalha da cintura e dei‐
xando-a cair na poça de vapor d’água que escorria pelo chão azulejado até o ra‐
lo. Ao lado da porta havia um chuveiro de água fria, e ele o abriu. Seus múscu‐
los estavam começando a ficar flácidos, e o que outrora fora um torso formidá‐
vel estava frouxo, pendurado, mas o que reparei mais claramente foi o tamanho
de seu pau, que era grande, enorme, como o de um elefante macho, caía pesa‐
damente, grosso, murcho, e seu tamanho era nauseante. Enrolei melhor a toa‐
lha em volta de minha cintura.
— Creio que posso cuidar disso sem a ajuda de Prescott — disse do chu‐
veiro, a água escorrendo-lhe pelo rosto e corpo. — Então você quer saber se
matei o jogador de beisebol. Se sou um assassino. Porque, de acordo com o que
você imagina, fui eu quem o espancou até a morte com um bastão de beisebol.
— Já mentiu para Chester e para mim com relação a quem foi e está pre‐
parando Chester para ser o bode expiatório. Não faz sentido, a menos que o te‐
nha matado.
— Vista-se — disse ele, enxugando o rosto com uma toalha e abrindo a
porta do banho turco. Uma lufada de ar gelado entrou num redemoinho. —
Temos tempo para um passeio matinal antes de irmos para o tribunal.
— Sabe como fui eleito pela primeira vez para a Câmara Municipal, Vic‐
tor? — perguntou Jimmy Moore. Agora estávamos na limusine, seguindo para
norte pela rua Broad. Henry e o carro tinham ficado esperando no beco junto à
velha Bellevue Statford, onde ficava o Sporting Club. Dentro da limusine havia
uma bandeja com pãezinhos e uma garrafa térmica de aço, da qual Jimmy nos
serviu uma caneca de café.
— Creme? — perguntou.
— Não, obrigado — respondi.
— Montei uma plataforma contra os ônibus integrados — disse ele. —
Me opus à integração racial. Prometi manter nossos subúrbios livres da crimi‐
nalidade, o que em política quer dizer exclusivos para os brancos. Não se preci‐
sa usar o vocabulário da Klan para atrair os votos dos racistas. É só falar em
manter a integridade dos bairros, falar do açoite da criminalidade, falar sobre
proteger o sonho americano de ser proprietário de uma casa e de manter os va‐
lores do mercado de imóveis, falar sobre o transporte integrado, e o eleitorado
compreende. Cheguei até a entrar numa briga na Câmara de Vereadores por
causa de um Dia do Orgulho Gay. Eu me opunha, é claro. No meu distrito, a
política de incitar ódios era o que agradava, e tudo o que eu queria era meu
cargo municipal, minha cidade, meu carro, o poder de fazer acordos, de manei‐
ra que esta era minha política. Os jornais me odiavam, eu era uma piada, exce‐
to que ganhei em meu distrito com setenta e três por cento dos votos.
— Aonde estamos indo? — perguntei.
— Drogas eram um problema dos outros — disse ele, ignorando minha
pergunta. — Você sabe alguma coisa sobre os Evangelhos? Não, claro que não.
Saul, um agente dos judeus e o açoite da cristandade, a caminho de Damasco
tem uma visão, ouve uma voz. “Saul, Saul, por que me persegues?” É a voz de
Jesus. Naquele momento ele se torna um novo homem, muda seu nome para
Paulo, torna-se o mensageiro de Jesus na terra. Bem, eu não ouvi voz nenhu‐
ma. O que ouvi foi um silêncio. O silêncio de minha própria filha. Mas falou
comigo tão claramente como se tivesse ouvido. “Papai. Papai. Por que me
abandonaste?” E eu não tinha uma resposta para ela. Nem uma. Ele tomou um
gole de café, depois mais um, olhando para o lado, pela janela, para a desolação
de North Philadelphia.
— Agora tenho — disse.
— Um de nossos programas mais importantes aqui no Abrigo da Juven‐
tude Nadine Moore—disse a Sra. Diaz enquanto conduzia Jimmy Moore e a
mim por um tour pelo local — é nosso programa de alcance comunitário. Na
realidade, foi devido à insistência do vereador que iniciamos o programa, e aca‐
bou se tornando a base de nosso trabalho. Na maioria das vezes o único meio
por que crianças em dificuldades podem receber ajuda é através do sistema ju‐
dicial criminal, e a essa altura quase sempre já é tarde demais. Através de nossos
programas de educação de alcance comunitário, podemos chegar a essas crian‐
ças e tratar de seus problemas antes que elas entrem no sistema criminal. Isto
faz um mundo de diferença, foi o que descobrimos.
A Sra. Diaz era uma mulher bonita, com as maçãs do rosto largas e as
mãos fortes. Estávamos andando por um corredor que fazia a volta em torno
do perímetro do prédio. Todas as salas de aula tinham janelas dando para os
corredores, o que conferia à construção uma atmosfera de arejada amplidão,
mais um prédio de escritórios do que uma prisão-escola. Paramos diante de
uma sala de aula onde um grupo de vinte adolescentes, vestidos iguais, de ca‐
misa branca e calças marinho, estava sentado num semicírculo em volta de
uma professora com óculos de proteção fazendo uma experiência química.
— O dia de nossas crianças começa de manhã cedo — disse a Sra. Diaz.
— Temos um currículo escolar regular, suplementado no período da tarde com
aulas destinadas a atender às necessidades específicas de cada criança. As aulas
do período da tarde incluem terapia de grupo. O que descobrimos é que estas
crianças voltam à escola com seus talentos estudantis tão aprimorados que têm
resultados excelentes, o que é a razão primordial para que nossos formandos se
saiam tão bem quando nos deixam. Através de nosso programa de aconselha‐
mento e monitoração, que continua muito depois que as crianças saem daqui,
descobrimos que quase noventa por cento se mantêm longe de drogas e de pro‐
blemas.
— Explique ao Sr. Carl de onde vêm nossos fundos, Loretta — pediu o
vereador enquanto prosseguíamos nossa caminhada pelo corredor.
— Temos algum apoio da prefeitura — disse ela. — O vereador Moore
conseguiu garantir para nós algumas verbas federais. E, é claro, há doações par‐
ticulares. Qualquer coisa que quiser dar, Sr. Carl — disse com um sorriso calo‐
roso —, será muito apreciada. E finalmente o CUF, Cidadãos para a União da
Filadélfia, tem sido extremamente generoso. No passado, sempre que prevía‐
mos alguma deficiência, o CUF equilibrava nosso orçamento.
Seguimos Loretta Diaz por um lance de escadas até um ginásio onde uma
turma grande de rapazes e moças vestindo suas calças azuis e camisas brancas
marchavam, numa espécie de exercício de recrutas, como soldados numa para‐
da. Um professor gritava ordens: “Esquerda volver. Direita volver. Quarto de
volta. Meia-volta volver.” E a turma marchando cantava em conjunto ao ritmo
de suas passadas: “ Temos que ir para casa à nossa esquerda, nossa direita, te‐
mos que ir para casa à nossa esquerda, nossa direita."
— Há um consenso que vem crescendo no país — disse a Sra. Diaz —, o
de que uma disciplina semelhante à do exército ajuda a aumentar a auto-esti‐
ma. Os chamados campos de recrutamento. Não estou tão certa de que funcio‐
ne realmente ou não, mas o presidente está apaixonado pela ideia, de maneira
que isso ajuda na obtenção de verbas. Como nossos planos para o futuro são
ambiciosos, fazemos tudo que podemos para aumentar as possibilidades de an‐
gariar fundos. Além disso, as crianças parecem realmente gostar.
— Quais são exatamente as ambições de vocês? — perguntei enquanto as
passadas da marcha e suas vozes se erguiam à nossa volta: “Esquerda. Esquerda.
Direita. Esquerda. ”
— Oh, desculpe-me. Pensei que o vereador tivesse lhe explicado tudo. O
Abrigo de Jovens Nadine Moore é um programa-piloto. Temos vaga aqui neste
centro somente para um em cada trinta candidatos que nos são enviados. Nos‐
so objetivo é construir mais quinze centros aqui na Filadélfia e depois expandir
o projeto para outras cidades. Este abrigo atua não apenas como um centro pa‐
ra estas crianças, mas também como um laboratório, e esperamos que nosso su‐
cesso aqui sirva como modelo para um grande florescimento de centros de cu‐
ra. Nossa grande esperança — continuou ela, enquanto o vereador examinava
as tropas marchando para trás e para a frente na quadra de basquete, alguma
coisa molhada e brilhante cintilando em seus olhos enquanto eles cantavam:
“Baixinho, um dois, um pouco mais alto, três quatro, bem alto, um dois três
quatro, um dois — três quatro", — nosso grande sonho é que para cada crian‐
ça deste país que esteja lutando contra drogas haja um Abrigo para Jovens Na‐
dine Moore para ajudá-la em seu momento de maior necessidade.
— Este é o próximo — disse ele. Henry nos havia conduzido até um ter‐
reno baldio na avenida Lehigh, defronte a uma sucessão de casas arruinadas e
lojas cobertas por compensados de madeira. Uma escola ficava um pouco mais
acima na avenida. — O coquetel no Museu de Arte para angariar fundos nos
deu justo o suficiente para completar o orçamento. Começamos a construir em
dois meses. Este aqui terá duas vezes o tamanho do centro que acabou de ver.
— É certamente uma ambição grandiosa — observei.
— Será a imortalidade dela — disse Jimmy Moore. — Depois que ela
morreu, eu me dei conta de que o que havia matado minha filha não era o pro‐
blema de alguma outra pessoa. Estava em toda parte. E eu estava em posição de
fazer alguma coisa a respeito. Alguma coisa. Pela primeira vez vi o que podia
ser a política, e não tinha nada a ver com ódios ou ganância. Foi nessa ocasião
que minha paixão refugou e minha missão começou. Primeiro o combate aos
traficantes, depois a cura das crianças. Estamos fazendo progressos em ambas as
trincheiras, e quando eu me tornar prefeito teremos uma vitória total. Porei os
senhores da morte fora do ar e construirei esses abrigos para jovens pela cidade
inteira. E não apenas abrigos, centros para jovens, clubes para rapazes e clubes
para moças. Eu posso fazê-lo. Eu vou fazê-lo. Estava praticamente feito antes
que me acusassem falsamente.
— Quem o acusou falsamente?
— Não sei exatamente. Talvez o prefeito, talvez os traficantes. Eu já estava
em perigo antes de ser indiciado. Por que acha que ando por aí nesta limusine?
Meu carro da Câmara de Vereadores foi baleado mais de uma vez por meus ini‐
migos. Mas minha beleza negra é à prova de balas, e eu sigo em frente. Então
os federais, depois de consultas ao prefeito, determinaram que minha arrecada‐
ção de fundos era extorsiva. Mesmo que seja, e daí? O dinheiro está indo para
o lugar certo. Mas então vieram o assassinato e o incêndio criminoso, e eles de‐
cidiram me acusar disso também.
— Então não matou Bissonette?
Ele se virou e me olhou bem nos olhos.
— Não — declarou, sem um lampejo no olhar, sem uma hesitação na
voz. — Absolutamente não. Por que eu mataria aquele garoto? Por dinheiro?
Este é o problema dos procuradores, estão tão dispostos a vender tudo por um
trocado qualquer que pensam que todo mundo é assim. Estou na trilha certa
para uma coisa grande, enorme, e você só viu a ponta. Além disso, você sabia
que o dinheiro que Bissonette conseguiu arranjar misteriosamente para Ruffing
veio de Raffaello?
Então era isso que Raffaello tinha querido dizer quando dissera que
Jimmy era esperto demais para matar como parte do plano de extorsão. O que
quisera dizer era que Jimmy era esperto demais para lutar contra ele.
— Se não o matou, por que está preparando Chester para ser o bode ex‐
piatório? — perguntei.
— Porque não tenho escolha — disse ele rapidamente.
— Porra nenhuma.
Jimmy deixou escapar um suspiro, pegou um cigarro, bateu a ponta na
caixa e o acendeu.
— Talvez seja. Talvez eu seja apenas um covarde, não sei. Contratei um
advogado, o melhor da cidade, e disse-lhe que fizesse qualquer coisa que preci‐
sasse para me inocentar e salvar meu sonho. É um canalha durão, esperto, e me
disse que se não conseguisse provar quem realmente cometeu o assassinato a
única maneira de me livrar seria cair em cima de Chet. Ele me disse que para
representar Chet precisaria de um advogado que não fosse se meter no cami‐
nho. Alguém que pudesse controlar. Primeiro foi McCrae. Mas então ele fez
sua infeliz viagem a Chinatown, e assim precisamos de uma outra pessoa.
— E a outra pessoa fui eu — disse com amargura. O negrinho escravo.
— Ele me disse que era minha única escolha. Se funcionasse bem, iria fa‐
zer o caso do governo parecer tão fraco que talvez nós dois conseguíssemos es‐
capar. —Jimmy deu uma tragada profunda no cigarro e soltou a fumaça lenta‐
mente. — De maneira que disse a ele para ir em frente.
— Mesmo correndo o risco de Chester acabar atrás das grades pelo resto
da vida.
— O que você acha, que gosto disso? Não tenho escolha. Nenhuma esco‐
lha. Estamos numa guerra, lutando para construir alguma coisa grandiosa e no‐
bre, mas como em qualquer guerra haverá perdas. Concannon poderá ser uma
delas. Eu cuidarei de Chet, e ele sabe disso. Mas meus inimigos estão atrás de
mim. Não permitirei que vençam. Se vencerem, serão as crianças que pagarão o
preço. Precisamos que você continue conosco, que siga as instruções de Pres‐
cott e anule a conspiração do governo contra mim. Trouxe você aqui para que
se desse conta de tudo que está pondo em risco se se opuser a nós. Juntos pode‐
mos fazer uma diferença. — Ele lançou o cigarro num tufo de mato que crescia
em meio aos tijolos quebrados e ficou queimando ali. — Se quiser, ponho você
no conselho do CUE Uma posição fantástica para um jovem advogado. Juntos
poderemos mudar o mundo para melhor.
Aquela seria uma fantástica posição para mim, eu sabia. Era em conselhos
de organizações de caridade e em comitês políticos que advogados arranjavam
clientes. Faça parte de muitos conselhos, arranje muitos clientes e você se torna
um mandachuva, com o poder de ir para qualquer escritório da cidade e fazer
seu preço. Não pulei imediatamente nas pernas traseira e gritei “Ok”, mas esta‐
va pensando.
— Então, quem o matou? — perguntei.
— Eu não sei — explodiu ele. — Deus, eu queria saber. Você é o homem
das teorias, descubra. Veja se consegue fazer melhor que nós.
Olhei para o terreno baldio e depois para os arredores. Havia alguma coi‐
sa misteriosamente familiar ali.
— Que rua é esta? — perguntei.
— Rua Nove.
Agora eu sabia onde estava. O velho estádio de beisebol ficava a um quar‐
teirão dali. O Connie Mack Stadium. Onde ficava o parque agora havia uma
grande igreja moderna de tijolos, como um McDonalds gigante, mas, quando
ainda era um gramado, meu avô costumava me trazer ali para ver os Phillies jo‐
garem. Ele o chamava de Shibe Park, seu antigo nome. Costumávamos sentar
nas arquibancadas descobertas e gritar: “Vai, Phillies vai”, e ver Willie Mays dar
a maior surra no time de casa. Richie Allen e Clay Dalrymple, Jim Bunning e
Johnny Callison. E Gene Mauch sentado no banco, seu rosto moreno na ex‐
pressão contraída de olhos apertados que se tornou permanente depois que o
time fracassou em 64. Mas o que me lembrei naquele exato momento não foi
só do beisebol, mas o garotinho segurando a mão do avô, passando pelos carros
estacionados na rua 20 para entrar no parque. Como tinha ele se transformado
em mim?
— Onde está o resto do dinheiro? — perguntei, de repente cansado do
jogo de empurra-empurra, cansado do farisaísmo de Jimmy Moore. — O quar‐
to de milhão que está faltando.
— Não sei — disse ele, o braço se estendendo sobre seu terreno baldio.
— Mas vai acabar aqui, vou tratar de me assegurar disso, e nos outros que ire‐
mos construir. Estou trabalhando nisso agora mesmo.
— O Sr. Raffaello quer a sua quota.
— Nem um tostão — gritou ele. — Eles vendem veneno bem debaixo do
nariz dele e tudo bem enquanto ele levar sua parte. Raffaello é uma desgraça.
Prefiro morrer.
— Tenho certeza de que ele poderia cuidar disso.
— Deixe-o tentar. Se quiser uma guerra, vai ser o que terá. — Apontou
um dedo grosso para mim. — Estou pronto para acabar com ele e com qual‐
quer outro que se meta no meu caminho. Vamos encher este terreno baldio e
mais quatorze como este com facilidades que irão curar uma geração. É minha
missão, e farei qualquer coisa para protegê-la. Qualquer coisa. Minha missão é
tudo que me resta para cuidar agora.
Acho que estava tudo começando a me incomodar, a falsa nobreza, as
mentiras, os subornos inevitáveis, um negócio aqui, um acordo ali, uma posi‐
ção num conselho influente. Será que estava tão evidente que eu podia ser
comprado, será que eu tinha um cartaz dizendo “VENDE- SE” colado na tes‐
ta, inconfundível, acima de meus olhos lacrimejantes? Tive ódio daquilo, espe‐
cialmente ali, onde me sentia assombrado pelas lembranças do pequeno comer‐
ciante de sapatos e do garotinho segurando sua mão. Não pude impedir minha
raiva de borbulhar, transbordante. Apesar disso, poderia ter me mantido calado
se o pau dele não fosse tão tremendamente grosso. Mas quando ele deu aquela
de fariseu para cima de mim, pensei na figura dele naquele chuveiro frio e fi‐
quei ainda mais furioso:
— Mas esta não é a única coisa que ainda lhe resta para cuidar, não é, ve‐
reador?
— O que mais poderia haver? — perguntou ele, a voz queixosa como se
realmente não pudesse haver mais nada.
— Foder Verônica — respondi.
Me arrependi daquilo imediatamente, me arrependi ainda mais quando
ele virou o rosto espantado para mim. Estava contorcido numa máscara que
proclamava ao mesmo tempo impotência e necessidade, e, pela primeira vez
desde que o conhecera, Jimmy Moore estava sem palavras.
Mas a partir do que Verônica me dissera e a partir da máscara no rosto de
Jimmy Moore, eu podia juntar todos os pedaços. Ainda furioso com a morte
de sua filha, ele irrompe numa casa de crack e a vê no chão, desamparada e
muito louca, mais ou menos com a mesma idade que sua filha teria, aquela ga‐
rota bonitinha drogada, tão bonita quanto sua filha. Verônica poderia até se pa‐
receu com Nadine. E ele a esconde em seu carro e a leva para um centro de tra‐
tamento e salva sua vida, como havia sido incapaz de salvar a vida da filha. E
vai visitá-la, a substituta, e se assegura de que ela fique curada, e pouco a pouco
um desejo profundo começa a surgir vindo das porções proibidas e trancadas
de sua alma, e ele descobre que não consegue se controlar, se impedir, o impen‐
sável se tornou realidade, o impossível se tornou inevitável, e é muito melhor
do que qualquer sonho.
36
A gente pode saber tudo a respeito de um homem se descobrir as coisas que ele
realmente quer. Eu vira os tijolos e as vidraças das grandes ambições de Jimmy
Moore; elas tornavam as minhas pequenas em grandeza e valor. Senti uma es‐
tranha e triste simpatia por Moore, com seus sonhos grandiosos de cura e seu
amor desesperado por Verônica Ashland, ambos construídos sobre uma funda‐
ção de tragédia, e, verdadeiramente, desejei que seus sonhos grandiosos pudes‐
sem se tornar realidade. Mas não sobre a carcaça putrefata de meu cliente.
— Precisamos conversar — disse eu num telefone público, não correndo
risco de escutas clandestinas.
— No meu gabinete, às cinco — disse Slocum.
— Esqueça — retruquei. — Da última vez em que estive lá foi primeira
página do Daily News.
— Esquentou pra você, né?
— Como Las Vegas em agosto.
— Nunca estive lá.
— Quente — retruquei. — Vamos a um bar.
— O Dublin Inn?
— Tem assessores da promotoria demais. Que tal o Chaucers?
— Tudo bem — disse ele. — Vamos marcar um pouco mais tarde. Oito
horas. Alguma coisa interessante?
— Você vai achar — respondi, e sabia que ele acharia.
Vejam só, Prescott cometera um erro, realmente. Se tivesse me tratado
com o respeito que eu desejava tão ardentemente, se tivesse me levado para al‐
moçar como seu convidado no Union League ou no Philadelphia Club, se ti‐
vesse me recebido de braços abertos na fraternidade do sucesso, eu poderia ter
ficado sentado calado, voluntariamente, e deixado Concannon engolir qual‐
quer merda que Prescott lhe empurrasse. Mas o canalha me ameaçara, me dera
ordens, me transformara em seu escravo, e este fora seu erro. No corre-corre de
minhas incursões noturnas com Jimmy Moore e seu séquito, de minhas fun‐
ções sociais, de ter Prescott como mentor, de minha obsessão sexual por Verô‐
nica, de meu trabalho e diversão com os irmãos Bishop, daquela vida nova que
aparentemente me fora concedida, no meio daquilo tudo eu perdera meu res‐
sentimento por algum tempo. Mas estava de volta, e reforçado. Deslizara sobre
meus ombros como um velho suéter favorito e me vestia muito bem. A despei‐
to das ordens de meu cliente me proibirem de me envolver ativamente no jul‐
gamento, apesar de minha parte no acordo Salt e de meus negócios com os ir‐
mãos Bishop e de minha posição no CUF exigirem minha obediência formal a
Prescott no tribunal, apesar de tudo aquilo, meu ressentimento ainda exigia
que eu fizesse alguma coisa, qualquer coisa, alguma coisa, qualquer que fosse a
consequências. Com relação ao mistério de quem matara Bissonette, Jimmy
Moore dissera: “Você é o homem das teorias, descubra.” De maneira que talvez
eu o fizesse.
O que descobrira através de Raffaello era que Bissonette poderia ter sido
morto porque estava andando com a mulher errada; assim, tudo o que tinha a
fazer era descobrir quem fora o último e fatal amor de Bissonette.
Lauren Amber Guthrie e seus barulhentos braceletes de ouro? Possivel‐
mente. Ou teria sido Chuckie Lamb afinal, silenciando a única testemunha
que poderia ligá-lo à coisa toda? E que dizer do quarto de milhão de dólares
desaparecido, dos quais dois quintos eram devidos a Enrico Raffaello e ao resto
dos rapazes do centro? Eu queria respostas, e rapidamente, antes que Eggert co‐
meçasse a pregar as tábuas do teto da prisão que Prescott estava construindo
em volta de Chester Concannon e antes que Raffaello começasse a me pressio‐
nar querendo informações. Razões pelas quais eu telefonara para o homem
com as intimações para o grande júri, meu velho amigo K. Lawrence Slocum,
promotor assistente.
O Chaucers era um barzinho e restaurante simpático muito frequentado
pelos moradores das vizinhanças, com um boliche famoso, paredes de lambri
vagabundo, vidraças coloridas nas portas e reservados escondidos onde grupos
de jovens universitários podiam sentar e beber cerveja fofocando a respeito de
outros jovens universitários. Quando começara a frequentá-lo, vivia cheio de
tipos mais velhos, comerciários misturados com motoristas de caminhão, lésbi‐
cas que se vestiam como motoristas de caminhão e jovens que haviam abando‐
nado os estudos e que ficavam discutindo melancolicamente seus futuros duvi‐
dosos. Mas não tinha mais aquele tipo de charme. Agora os rapazes usavam bo‐
nés de beisebol virados ao contrário e rabos-de-cavalo, as moças cobriam suas
longas pernas com meias pretas de ginástica, e eram todos universitários, discu‐
tindo seus futuros duvidosos orgulhosamente. Eu ainda bebia lá, mas agora me
sentia velho demais para fazer parte daquele grupo, e aquilo era ao mesmo tem‐
po assustador e triste. Ainda me lembrava da época em que o simples fato de
estar num bar era uma emoção, quando a luz suave, a fumaça de cigarro e os
estranhos sentados nos bancos do balcão me sussurravam algo tão sedutor que
eu não conseguia acreditar que podia simplesmente entrar, sentar e pedir uma
cerveja. Mas agora eu era uma das pessoas mais velhas e mais tristes, e as pesso‐
as que entravam eram mais jovens, mais alegres, mais vibrantes do que eu.
Agora eu sabia o que as pessoas mais velhas nos bares costumavam pensar de
mim porque eu sabia o que pensava daquela nova geração. Desejava que todos
eles simplesmente fossem embora para casa ficar com suas mamães.
Slocum e eu estávamos sentados num daqueles reservados escondidos per‐
to do fundo do bar. A garçonete nos dera uma garrafa de Rolling Rock e um
copo para cada um e tínhamos ignorado o copo. Eu quase gostava de Slocum.
Levava tudo muito a sério, como se desejaria que um promotor público levasse,
mas tinha senso de humor também. Era um senso de humor meio desgastado,
o único tipo de senso de humor que um promotor se permitiria, mas mesmo
um senso de humor meio desgastado o deixava léguas adiante de todo o resto.
Contei a ele toda a história do meu encontro com Raffaello, embora deixasse
de fora a parte em que ele chamara a filha de vagabunda. Ainda me lembrava
que Jasper e Dominic achavam que nada era tão importante quanto manter a
palavra, e, embora quase gostasse de Slocum, não estava disposto a arriscar mi‐
nha vida na possibilidade de ele ter ou não uma ligação com Raffaello. Todo
mundo naquela cidade parecia ter.
— Ele disse que tinha sido um marido ciumento? — perguntou Slocum.
— Não me disse especificamente.
— Então agora o que temos é uma garota misteriosa.
— Certo.
— E você quer que eu cheque isso?
— Quero.
— Que mande meus detetives procurarem a tal garota?
— Seria fantástico.
— Quer que eu mande meus detetives saírem atrás dessa garota misterio‐
sa, cuja existência foi revelada pelo maior criminoso da cidade num esforço pa‐
ra destruir minha acusação de assassinato contra seu cliente.
— Exatamente.
— Acho que não.
— Larry, um homem inocente está sendo atropelado pela justiça.
— Ou talvez Raffaello esteja mentindo. Já considerou a possibilidade de
que gângsteres às vezes mentem? Nada acontece nesta cidade sem que ele leve a
sua parte. Talvez até tenha sido parte do negócio inteiro e agora esteja criando
pistas falsas para desviar nossa atenção de seus compadres.
— Não creio nisso — disse. — Nem por um minuto. O que acho é que
você tem o cara errado no corredor da morte e não quer admitir.
Ele deu de ombros, como se não estivesse certo de que eu estivesse errado.
— É possível, Carl. Acontece. Mas você vai ter que fazer sua própria in‐
vestigação. Quanto está ganhando por hora neste caso? Não, não me diga, só
servirá para me deixar doente. Faça jus ao seu dinheiro, ache a garota você mes‐
mo. — Esfregou a mão na boca e olhou para mim por um momento. — Mas
talvez eu possa ajudar.
Simplesmente o encarei e esperei.
Ele se inclinou para a frente e baixou a voz.
— Tudo bem, vou lhe contar uma coisa. Estou lhe contando isto porque
há uma chance, pequena, mas uma chance de você estar certo. Mas se explodir
de volta na minha cara numa petição ou num artigo de jornal vou ficar muito
desapontado, compreende? E você não quer me desapontar.
Fez uma pausa e tomou um gole de sua cerveja.
— Quando lhe mostrei as provas — prosseguiu —, não lhe mostramos
tudo. Havia um livro.
— Shakespeare? — perguntei.
— Mais para Companhia Telefônica.
— Um catálogo de telefones?
— Um caderno de telefones.
— Você escondeu o livrinho preto de Bissonette?
— Ora, não fique assim — disse ele levantando a mão em sinal de protes‐
to. — O gabinete determinou que não seria apropriado tornar público o cader‐
no de telefones de Bissonette, pois poderia causar embaraços a certas, como di‐
rei isto, certas senhoras muito conhecidas e de alta posição na cidade. Estas
mulheres e suas famílias têm direito à privacidade. Não era um caderno de tele‐
fone de uma prostituta com os nomes de seus clientes. Não houve crime come‐
tido por constar dele.
— Então temos este caderno de telefones — continuei pressionando.
— Quer mais uma cerveja?
— Fale-me do caderno.
— Eu quero mais uma cerveja.
Levantei a mão para chamar a garçonete como uma criança numa sala de
aula e pedi mais duas cervejas quando ela veio.
— Agora vamos, fale-me do caderno.
— Bem, no caderno estão os nomes dos suspeitos habituais, um bando de
mulheres de reputação meio duvidosa.
— Quero ver o caderno.
— Você está me ouvindo, Carl? Acabei de dizer que não vamos tornar
público o caderno. Há nomes ali que se você visse seu queixo cairia até os joe‐
lhos, cantoras de fama mundial, atletas, esposas de políticos importantes.
— Como a do vereador Fontelli.
— Era o caderno dele. Mas não há apenas os números de telefone. Ele
avaliava o desempenho delas, dava-lhes estrelas, de uma a cinco, como uma
porra de um crítico.
— Típico de um jogador de beisebol ser obcecado por estatísticas. Mas
então isso é bom — prossegui. — Podemos usar o caderno para achar a garota
por quem ele se apaixonou. Era uma cinco-estrelas, com certeza.
— Há mais de um nome com cinco estrelas.
— Dê-me apenas os de cinco estrelas para eu verificar.
— Alguns são apenas as iniciais, alguns não têm nem o número de telefo‐
ne.
— Bem, quem quer que seja esta mulher misteriosa, é alguém que está no
caderno—argumentei. — Um homem quando se apaixona anota o número do
telefone no caderno.
— Você fala como se tivesse um caderno seu, Carl.
— Sou mais de pedacinhos de papel com números escritos em garran‐
chos.
— Alguma vez já encontrou um número que não sabe de quem é? —
perguntou Slocum, tomando um longo gole de cerveja, os olhos atrás dos ócu‐
los grossos revelando diversão.
— O tempo todo.
— E aí, o que você faz?
— Ligo para o número. “Alô, tem alguém aí solteiro e com menos de cin‐
quenta e cinco anos?”
— Puxa, cara. Não posso lhe dizer como estou feliz por estar casado.
A garçonete veio com mais duas Rolling Rocks, garrafas verdes de pescoço
longo, esbranquiçadas pelo gelo.
— Mais duas — pedi.
— De maneira que isto é o que estou oferecendo — disse Slocum depois
que a garçonete foi embora. — Você me dá o nome de qualquer mulher cujo
possível envolvimento esteja investigando e eu lhe direi se ela está no caderno e
quantas estrelas. A partir daí, você pode seguir adiante.
— Linda Marie Raffaello Fontelli.
— Três estrelas — disse ele. — Teria imaginado mais, com toda aquela
prática...
— E Lauren Amber Guthrie? — perguntei depressa.
— De onde saiu este nome?
— Reconheci a fotografia dela no bauzinho.
— E escondeu de mim uma informação relevante sobre um homicídio?
— Sacudiu a cabeça tristemente para mim. — Amanhã eu lhe digo se ela está
no caderno. Se houver alguma outra, me dê uma ligada.
— Me diga mais uma coisa — prossegui. — O que você sabe a respeito
de um traficante de drogas chamado Norvel Goodwin?
— Norvel Goodwin — repetiu ele, sacudindo a cabeça. — Um dos pio‐
res. Estamos atrás dele, mas é duro como o diabo e tem um bom advogado.
Bolognese.
— Tony Baloney. Estou tratando de um caso com ele.
— Bem, não importa o quanto Tony seja um bom advogado, é apenas
uma questão de tempo. Não se pisa como ele anda pisando sem pagar o preço.
Ele foi um chefão em West Philly durante algum tempo, depois sumiu.
— Quando Jimmy Moore o queimou? — perguntei.
Slocum me deu mais um olhar demorado.
— Exatamente. Agora ele voltou. Tem havido muita violência em East
Kensington Badlands, pois ele anda tomando território que é de outros. An‐
dam brigando por quarteirões. Viu a garotinha de cinco anos que levou uma
bala na cabeça na semana passada, que saiu em todos os jornais?
— Aquilo foi terrível.
— Foi Goodwin. Uma bala perdida numa outra briga por um outro
quarteirão. Mas de repente Goodwin está com um bocado de força e tem ga‐
nhado muito terreno. Ele é um assassino absolutamente frio. — Slocum tor‐
nou a sacudir a cabeça. — Em que diabo você anda metido agora, Victor?
Eu não teria contado a ele mesmo que soubesse.
37
Naquela mesma noite segui de carro pela selva do nordeste da Filadélfia, pas‐
sando pelos enormes centros comerciais e shoppings, pelas fileiras de lojas ven‐
dendo pizza, produtos farmacêuticos e sapatos Buster Brown. Enquanto procu‐
rava por um endereço específico na avenida Cottman, passei pela loja Toys R-
Us, passei pelo Hermarís World of Sporting Goods, passei pela loja de descon‐
tos Clover, pela loja de departamentos John Wanamakers. Esta era a parte da
cidade que se parecia com qualquer outro lugar nos Estados Unidos, conjuntos
de centros comerciais e cadeias de lojas, imensos cartazes plásticos luminosos
mantidos bem alto por enormes postes de metal. Passei pelas instalações da
Northeast High School e depois comecei a checar os números que estava pro‐
curando e virei à esquerda no estacionamento. Era um prédio baixo de tijolos,
em formato de L, com apenas uma entrada, bem na dobra do L. Segui dirigin‐
do um pouco pelo estacionamento para me orientar, e então estacionei perto
da porta de entrada. As letras de metal presas nos tijolos acima da porta diziam:
CLÍNICA GERIÁTRICA SÃO VICENTE.
Havia uma portaria com mobília de portaria de hospital, poltronas estofa‐
das cor de laranja, mesinhas nuas, inócuas gravuras de flores nas paredes verdes.
Saindo daquela portaria, havia uma porta que levava ao interior da clínica, e di‐
ante desta porta, atrás de um balcão, estava um guarda. Vestia uniforme azul e
chapéu e quando cheguei mais perto vi a arma. Um grande livro de registros
estava aberto sobre o tampo do balcão.
— Estou aqui para visitar uma das pacientes — disse eu —, a Sra. Con‐
nie Lamb.
— O senhor é da família? — perguntou o guarda. A plaquinha no peito
dizia que se chamava James P. Strickling. Era um homem mais velho, com pro‐
fundas rugas de insatisfação se estendendo para fora dos dois lados da boca
franzida.
— Um amigo da família — respondi.
— Depois das oito não posso deixar ninguém entrar, a menos que seja da
família — disse ele.
— Sou, assim, uma espécie de primo — disse.
— Bem, então, assim, não posso deixá-lo entrar.
Eu sabia o que aquilo significava. Podia ler naquele rosto insatisfeito tão
claramente como uma manchete de jornal. Puxei a carteira do bolso de trás e
tirei uma nota de vinte.
— Só quero cumprimentá-la.
Ele ficou olhando para mim.
Tirei outra nota de vinte.
— Só alegrar a velhinha.
Continuou olhando para mim.
Abri bem a carteira e examinei o conteúdo. Tirei uma nota de cinco e du‐
as de um.
— É tudo que tenho.
— Não é o bastante — disse ele. E então deu uma gargalhada, uma gran‐
de gargalhada alta e satisfeita que me chocou, vinda daquele homem de rosto
tão sombrio atrás do balcão. — Pegue seu dinheiro de volta, meu filho. Se eu
pudesse ser comprado não seria digno de usar este uniforme, não é verdade?
Olhei com mais atenção. Era um uniforme de uma agência de segurança
privada, um daqueles negócios vagabundos que contratam policiais aposenta‐
dos, dão-lhes uma arma e os enfiam atrás de balcões para servir de bucha de ca‐
nhão caso alguma coisa desse errado. O que eu achava, enquanto recolhia meu
dinheiro constrangidamente, era que o uniforme não era digno do Sr. Stric‐
kling.
Ele pegou o telefone.
— Vou chamar uma atendente, vamos ver se a visita é possível.
Enquanto uma mulher gorda de uniforme de enfermeira me esperava do
outro lado da porta, tive que registrar minha entrada no livro. Strickling che‐
cou minha identidade na carteira de motorista e depois apontou onde eu deve‐
ria assinar. Assinei e ele anotou a data e o horário.
— Vai ter que assinar na saída também — disse. Depois piscou o olho.
—Aproveite a visita, Sr. Carl.
Segui a mulher gorda pelo corredor, passando por uma sala de visitas com
uma televisão, por uma área de recreação com homens e mulheres sentados em
cadeiras e jogando xadrez, fazendo crochê ou simplesmente tremendo. E havia
os quartos, é claro, muitos com a porta aberta, os residentes deitados na cama,
esperando.
— Tenho certeza de que a Sra. Lamb vai apreciar sua visita — disse a mu‐
lher. — O único que sempre aparece é o filho.
— Esteve aqui hoje? — perguntei.
— Hoje não.
— Os visitantes podem passar a noite? — perguntei.
— É claro que não — respondeu ela, me olhando de viés.
— Imaginei que não.
Era o que me fora dito tanto por Verônica como por Chester. O que me
havia sido dito era que Chuckie Lamb estivera visitando a mãe na noite em que
Bissonette fora espancado até entrar em coma, que passara a noite com ela por‐
que estava especialmente doente naquele dia, que Chuckie estivera na clínica
durante o tempo todo em que ocorrera o espancamento. Eu não acreditava na‐
quilo. Chuckie não parecia ser do tipo que tivesse esses cuidados. E já mencio‐
nei o cheiro? Era uma seleção especial: xixi de gato com vagens cozidas demais,
além do odor forte do algodão embebido em álcool que o médico passa antes
de aplicar uma injeção. Não conseguia ver Chuckie passando mais de cinco mi‐
nutos naquele cheiro.
— Sra. Lamb — disse a enfermeira em voz bem alta, inclinando-se sobre
a cama depois que estávamos no quarto particular. Chuckie Lamb, o filho de‐
dicado, escolhera o melhor. Havia flores num vaso, cortinas bonitas e sobre
uma mesa um aparelho de som portátil e uma pilha de cassetes de ópera. —
Sra. Lamb. Tem uma visita. — Ela se endireitou, sorriu para mim e ficou para‐
da junto à porta enquanto eu me aproximava da cama.
A Sra. Lamb olhou para além de mim, fixo para o teto, as gengivas roçan‐
do uma na outra, os olhos girando para trás e para a frente, para lá e para cá,
sem me ver em suas viagens de um lado para outro. Era uma mulher pequena,
de rosto de sapo, murcha, a pele, apesar das rugas profundas, esticada sobre os
ossos do rosto.
— Alô, tia Connie — disse.
Apenas as gengivas se moveram em resposta à minha saudação.
— Ela gosta que lhe segurem a mão — disse a enfermeira.
A mão estava sobre o lençol como uma garra ressecada. Abaixei-me e a to‐
quei, mal conseguindo esconder a repulsa.
— Está com boa aparência, tia Connie.
Apenas as gengivas se moviam. Ela parecia estar radiante por alguém estar
lhe segurando a mão como eu segurava. Eu queria lhe fazer algumas perguntas,
ver se conseguia arrancar alguma coisa definitiva dela sobre o álibi de seu filho,
mas não o arrancaria daquele rosto, daqueles lábios, daquelas gengivas horroro‐
sas.
— Não fala muito, não é mesmo? — comentei depois que saímos do
quarto.
— Não, já não fala mais — disse a enfermeira. — Sua tia esteve muito
doente. Houve ocasiões em que não acreditamos que fosse resistir, mas ela é
mais forte do que parece.
— Quando o estado dela se agrava, é possível que um visitante fique para
passar a noite? — perguntei.
Ela não parou de andar, continuando a me conduzir de volta à portaria,
enquanto falava.
— Se achamos que o fim pode estar iminente e há um quarto particular
vago, às vezes deixamos que os membros mais próximos da família fiquem.
Mas não sobrinhos, Sr. Carl, só esposos, irmãos ou filhos.
— O primo Chuckie vem com frequência? — perguntei.
— Vem sempre — disse ela com um sorriso. — É um filho muito devota‐
do. Não deixarei de dizer a ele que esteve aqui.
— Não é necessário — disse. — Já não somos muito ligados.
— Não posso fazer isso, Sr. Carl — disse Strickling depois de eu ter sido
depositado de volta naquela portaria. — Estes livros são registros privados.
— Mas é muito importante—argumentei, mais uma vez movendo a mão
em direção à carteira e parando depois que ele sacudiu a cabeça. — Ouça, Sr.
Strickling, vou ser franco com o senhor. Sou advogado.
— Bem, neste caso... — disse Strickling, rindo de mim.
Ser advogado poderia ter significado alguma coisa em alguma época, mas
não significava mais. Sabia que estava arranjando problemas quando tive que
contar a verdade.
— Estou representando um homem acusado de assassinato, Sr. Strickling,
um assassinato em que o Sr. Lamb pode estar envolvido. Ele diz que passou a
noite inteira do assassinato aqui. Só quero verificar.
— Ah, certo. Vi o senhor na TV — disse Strickling. — Está defendendo
o vereador Moore.
— Na realidade o assessor dele. Apenas quero saber se Chuckie estava
aqui na noite em que Zack Bissonette foi espancado.
— Eu vi Bissonette jogar no Vet — comentou Strickling. — Que fracas‐
so. Lembro-me de uma jogada, na nona vez de um jogo de beisebol que estava
empatado, numa bola lenta, o cara chuta a bola. Ele chuta a bola! Como se
achasse que estava jogando futebol. Dois pontos foram marcados. — Ele respi‐
rou fundo. — Bem, já que o vi na TV e tudo, qual era mesmo a data?
Bem, tudo se resumia a isso. Advogados não significavam nada na nova
estrutura das coisas, da mesma forma que estudiosos, médicos e homens de ne‐
gócio. Mas bastava seu rosto aparecer por alguns segundos na TV e de repente
você era alguém que merecia confiança, respeito, alguém para quem se faziam
favores. Dei a data e ele procurou sob o balcão o livro de registro correto. Com
um impulso ele o levantou e o virou para me deixar olhar. Lá estava, a assinatu‐
ra de Chuckie, entrando às 9:37 da noite do assassinato e só saindo às 6:45 da
manhã do dia seguinte.
— Isto poderia ter sido falsificado? — perguntei.
— Não, senhor — disse Strickling. — Na verdade, eu registrei a saída de‐
le. Esta é a minha assinatura. Estava trabalhando no turno da noite. Assim,
posso lhe garantir que ele não saiu entre meia-noite e seis e quarenta e cinco.
— Existem outras saídas? — perguntei.
— Só saídas de emergência, e os alarmes disparam se forem usadas. Tive‐
mos alguns roubos e temos muitas drogas e medicamentos, de maneira que te‐
mos muito cuidado.
— E esta é a assinatura dele?
Ele virou o livro ao contrário e olhou. Depois abriu o livro de registro
mais recente, na página de alguns dias atrás. Lá estava a assinatura de Chuckie,
entrada e saída. Era a mesma.
A questão estava encerrada. Dei de ombros para Strickling, ele sorriu para
mim e me desejou uma boa-noite. Saí da portaria e fiquei parado do lado de
fora da porta, pensando um pouco. Acreditava nos registros porque acreditava
em Strickling. Ele tinha duas funções naquele lugar, portar a arma e registrar as
entradas e saídas, e Strickling cuidaria das duas com uma integridade que eu só
podia admirar, nunca alcançar. Assim, Chuckie Lamb não estivera me amea‐
çando porque matara Zack Bissonette. Talvez tivesse acabado ficando com par‐
te do quarto de milhão e estivesse tentando proteger sua grana; uma possibili‐
dade tão provável quanto qualquer outra era Chuckie ser o ladrão. Mas ele não
era Chuckie o assassino. O que era uma pena, também, pois eu teria adorado
mais que qualquer coisa apanhar Chuckie Lamb por assassinato. Bem, talvez
uma coisa fosse melhor: apanhar o canalha do Guthrie.
39
Estava em meu escritório, trabalhando até mais tarde, fazendo a revisão de mi‐
nhas cartas de recomendação que seriam anexadas aos prospectos dos irmãos
Bishop do Valley Hunt Estates quando o telefone tocou. Não tinha tempo para
atender, já estava atrasado para meu jantar com Lauren Amber Guthrie, mas,
pensando que pudesse ser Verônica querendo mudar nossos planos para mais
tarde, peguei o fone e disse:
— Victor Carl.
Não era Verônica.
— Victor. Preciso falar com você. É extremamente urgente.
Pelos sons suaves, arredondados, pela pronúncia precisa e pela superiori‐
dade ferrenha contida na voz, soube quem era.
— Não tenho tempo para falar com o senhor agora, Sr. Osbourne.
— Você levou meu carro, Victor. O Duesenberg de meu pai. Tenho que
recuperá-lo.
— O carro foi sequestrado judicialmente pelo xerife, Sr. Osbourne. Exis‐
tem documentos que o senhor pode preencher se achar que a decisão judicial
que temos contra o senhor é indevida. Caso contrário, o carro será vendido.
— Meu carro, Victor. É um clássico, a única lembrança que me resta de
uma época mais civilizada.
— Se quiser, Sr. Osbourne, pode mandar sua filha participar do leilão.
— Depois de ter a polícia revirando sua propriedade, ela se recusa a con‐
tinuar a me ajudar. Já lhe ofereci todo o dinheiro que tenho. Victor, você preci‐
sa parar com essa perseguição. Simplesmente tem que parar. Você não sabe o
que está fazendo comigo. Tenho perspectivas, perspectivas grandiosas, mas você
as está arruinando. Está fazendo com que eu me sinta um animal caçado. Eu
não sou um animal.
— Nós precisamos vender o carro, Sr. Osbourne.
— Você não tem compaixão? Sou um homem, Victor. Se me espetar,
acha que não sangro?
— Creio apenas estar fazendo meu trabalho — disse em tom indiferente.
— Se me envenenar, acha que não morro?
— Não estou tentando feri-lo, Sr. Osbourne. Faça-me uma oferta de
acordo extrajudicial por escrito e envie pelo correio e seja lá o que for, não im‐
porta o valor, tentarei persuadir o Sr. Sussman a aceitá-lo. Prometo.
— Se me prejudicar, acha que não me vingarei?
— Até logo, Sr. Osbourne. Tenho que desligar — disse e desliguei o tele‐
fone.
Tocou imediatamente depois, mas não atendi. Depois que soubera pelos
irmãos Bishop que Winston Osbourne era um velho colega de escola de Willi‐
am Prescott, deixara de curtir meus momentos com ele como fazia antes. Acho
que era por causa da tristeza cinzenta de tudo. Dos céus pardos daquele outono
desolado, da confusão enevoada de meus irritantes dilemas morais, de meus es‐
tranhos acertos com Prescott, tudo aquilo havia transformado os pretos e bran‐
cos definidos do mundo numa desordem. As coisas realmente não eram assim
tão simples como eu fingira que eram quando me sentara com a mulher de
Winston Osbourne e destruíra sua vida. Embora naquele momento, com o te‐
lefone tocando em minha mesa, não quisesse julgar a mim mesmo pelo que fi‐
zera num passado agora distante, não podia deixar de admitir que havia feito
alguma coisa profundamente dentro do cinza. E não podia deixar de simpatizar
com as dificuldades de Osbourne e seus esforços para manter a posição no clu‐
be do qual eu ainda me desesperava para fazer parte. Não importa o que fosse
que estivesse abrindo caminho pela minha espinha para o interior do meu inte‐
lecto, descobri que não achava mais graça em desprezá-lo. Eu realmente iria te‐
lefonar para meu tio Sammy. Contaria a ele toda a situação, o aconselharia a
parar com o carro, vender o Duesenberg e depois considerar a nota como ten‐
do sido paga. Meu tio Sammy, surpreendentemente, era o que Morris teria
chamado de um mensch. Faria isso se eu pedisse, e eu pediria. Tiraria a pressão
de cima de Winston Osbourne.
Lauren estava esperando por mim no Restaurante Tacquet, um pequeno
bistrô situado num hotel vitoriano bem no meio da Main Line. Era chique,
com grandes janelas de sacada, paredes cor de amêndoa e azuis com arremates
em relevo, teto verde-claro. Charmosamente informal e escandalosamente caro,
era o lugar perfeito para os aficionados de cavalos, a pouca distância da rua que
levava às instalações do Devon Horse Show. Lauren estava sentada numa mesa
em formato de trapézio junto de uma das janelas. Ao lado dela, sobre a mesa,
havia flores alongadas de cor fúcsia num vaso preto estreito. Ela pedira vinho
tinto e já bebera boa parte da garrafa quando cheguei.
— Estava com medo de que você fosse me dar um bolo, Victor — disse
em sua voz suave, arquejante, estendendo o braço com os braceletes, os dedos
apontados para baixo para que eu lhe apertasse a mão. — Estava me sentindo
uma daquelas velhas senhoras tristes de cabelos azuis que jantam sozinhas todas
as noites, como se tivesse dado um salto para o futuro. Foi terrível demais para
suportar, de maneira que pedi um vinho.
— Chateau Lafite Rothschild, 1984 — li no rótulo.
— Apropriado, não? Sirva-se de um copo e faremos um brinde.
Fiz o que ela mandou.
— À renovação da nossa... Bem, à renovação da nossa seja lá o que for —
disse com uma gargalhada divertida.
Batemos copos e bebi um gole. Fazendo jus ao nome, o vinho era rico,
poderoso e levemente exótico. Deixei-o rolar por um momento na boca antes
de engolir e tomei mais um gole logo em seguida. Mesmo com meu paladar de
Rolling Rock, eu podia dizer que era magnífico.
— Então, como vai sua amiga Beth ultimamente? — perguntou.
— Bem — respondi, satisfeito em encerrar o assunto, e, até onde sabia,
ela estava bem. Eu é que estava sentindo uma falta terrível dela. Ainda não tí‐
nhamos conversado desde o dia em que ela me deixara naquela sala de testemu‐
nhas. Mas o escritório agora estava tristemente vazio de todos os seus objetos
pessoais. Havia apenas uma arquivo, a mesa de trabalho e uma cesta de lixo.
— Foi uma pena a história com o Alberto. — O “r” rolou levemente em
sua língua.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ela o deixou. Parecia que as coisas estavam indo tão bem e ela de re‐
pente terminou. E ninguém sabe por quê. O coitado do Alberto ficou arrasado.
Parece que estava apaixonado. É um rapaz muito sério, mas aparentemente
Beth o fazia rir.
— Ela tem esse talento.
— Uma coisa simples como está e Alberto se apaixonou. Se soubesse que
era só isso que precisava, teria aprendido a contar uma boa piada.
— Você se sai bem.
— Mas não com os sérios. Nunca teria conseguido fazer Alberto rir. —
Lauren me encarou e girou a cabeça ligeiramente, dando-me a impressão de
que seus olhos estavam penetrando nos meus. — Também nunca pude fazer
você rir muito. Mas ainda estou disposta a tentar.
Quebrei o clima baixando os olhos e tomando um gole de vinho, e depois
mais outro.
— Na realidade, Lauren, estou aqui a trabalho.
— Por favor, não, Victor. Não me diga que está apenas querendo me se‐
duzir como cliente. Agora está cuidando de divórcios? Está bem, querido, pode
ser meu advogado, mas só se prometer esquecer tudo a respeito daquele velho
princípio idiota de não dormir com suas clientes.
— Seria contra o código de ética.
— O que tornaria tudo muito mais divertido, não? O melhor sexo é sem‐
pre o proibido. O casamento me ensinou pelo menos isso.
— Não cuido de divórcios.
— Bom. Já contratei Cassandra. Ela é uma fera, ouvi dizer.
— Guthrie merece alguma coisa pelos anos que passou com você, não
acha?
— Eu o deixei dormir em minha cama uma boa parte do tempo, Victor.
O que mais ele poderia querer?
— Dinheiro.
— Não seja vulgar. Além disso, Cassandra me disse que está ganho.
— Ele estava traindo você?
— Homens não me traem, querido.
— Então foi a violência.
— Alguma coisa assim.
— Ele é mesmo muito violento? Estava me perguntando, sabe? De que
exatamente você acha que Guthrie seria capaz?
— Esta é a segunda vez que você me pergunta sobre as tendências violen‐
tas de Sam. — Olhou para mim com uma expressão de fria avaliação nos olhos
azuis. — Estou começando a ver um padrão.
Lauren podia ser muita coisa, dissoluta, depravada, devassa, mas não era
nada burra. Se não tivesse nascido com a dupla desvantagem de ser muito rica
e muito bonita, não se poderia calcular como teria ido longe.
O garçom veio até a mesa antes que Lauren pudesse dizer em que estava
pensando. Tinha um sotaque francês, mas suspeitei que fosse falso. Lauren pe‐
diu uma salada mista e um peixe. Pedi ravióli de lagosta com molho de creme
com vodca e um steak au poivre. Ela pediu mais vinho. Depois que o garçom
se foi, Lauren se recostou na cadeira, cruzou os braços e franziu o cenho para
mim.
— Francamente, estou ofendida, Victor. Tentando arrancar informações
de mim como se eu fosse uma vagabunda comum, dessas de rua.
— Nunca poderia acusar você de ser comum.
— Docinho de menino. Como foi que ficou sabendo do meu caso com
Zack?
— Ele tirou uma fotografia — respondi. — Com uma câmera de contro‐
le remoto, acho. Está com a polícia, junto com dezenas de outras.
— Mas você me reconheceu assim mesmo. Que lisonjeiro.
— Foram os braceletes — disse, indicando os braceletes de ouro com as
runas incrustadas de diamantes que enfeitavam espetacularmente seu braço de‐
licado. — E a maneira como você lhe agarrava o saco.
— Que gentil você se lembrar, Victor. Contou à polícia, é claro, quem era
a moça não-identificada.
— Não, não contei — menti.
— Meu Galahad.
— Só quero saber o que aconteceu — disse.
— Você só quer saber se meu apetite pelo brutamontes teve alguma coisa
a ver com o assassinato do brutamontes, é isso? Quer saber se meu marido o
matou, é isso? Porque, se foi o meu marido, o seu politicozinho nojento pode‐
ria muito bem escapar, não é?
— É.
— Mais uma vez, Victor, a garota de Bryn Mawr vai desapontar você. Sir‐
va-me um pouco de vinho.
Servi o vinho da nova garrafa que o garçom trouxera. Ela bebeu depressa,
depressa demais para um vinho daquele preço. Ainda estava bebendo quando a
salada e o ravióli chegaram. Meu ravióli estava leve e delicioso. Limpei o resto
do molho de creme do prato com pão com bastante manteiga. Podia sentir mi‐
nhas artérias se contraírem. Lauren apenas beliscou a salada entre grandes goles
de vinho.
— Quanto você quer saber?
— Tudo o que quiser me contar.
— Maravilhoso. Não vamos discutir nada.
Sacudi a cabeça e ela estendeu a mão e pegou meu queixo.
— Está bem, vou lhe contar tudo. Foi naquela boatezinha horrorosa que
ele batizou com seu nome. Nós íamos lá de vez em quando. Guthrie tinha saí‐
do correndo para o banheiro. Ele vivia correndo para o banheiro. Não fazem
mais homens com bexigas, Victor. É verdade. Todas as boas bexigas se foram.
Enquanto estava lá, Zack veio até a mesa e perguntou se tudo estava bem. Per‐
guntou com um sorriso que reconheci do meu próprio espelho. Assim, disse a
ele que não. O que era a verdade, Victor. Tinha me casado com Sam com as
melhores intenções. Minha pequena rebelião. Quero dizer, ele não era nada as‐
sim tão escandaloso.
— Como um judeu.
— Talvez você deva ir ao banheiro se ajeitar, Victor. Sua dor de cotovelo
está evidente. — Ela sorriu para mim, um sorriso largo e frio. — Minhas in‐
tenções com Sam sempre foram dignas, mas as coisas simplesmente não esta‐
vam funcionando. No início eu pensava que ele fosse despreocupado. Mas era
apenas fachada. Na verdade, era muito sério. Não gosto de gente séria, você
gosta?
— Não é a ideia que faço de Guthrie.
— Case com ele e descubra. É um homem muito sério, que sua muito.
Deveríamos ter morado juntos primeiro. Eu nunca teria cometido tamanho er‐
ro. Mas mamãe não admitia. Assim, acabei casando com ele e me vi tristemen‐
te desapontada. Comecei a dar umas voltas. Discretamente, enquanto ele esta‐
va no escritório. Só umas pequeninas diversões aqui e ali. Diversões nada sérias
e até sem graça. Assim, quando aquele homem muito bonito e muito bem-do‐
tado de corpo me perguntou se eu estava satisfeita, disse que não. Ele tinha um
apartamento super maravilhoso, uma verdadeira toca de solteiro. Com todos os
tipos de brinquedos maravilhosos.
— Eu vi.
— Sim, imagino que tenha visto. Tivemos algumas poucas tardes juntos
maravilhosas. — Ela riu com contrariedade.
— Como foi que Sam descobriu?
— Ah, então você também sabe disso. Um detetive, contratado por meu
marido sério para descobrir se eu o estava traindo.
— E, quando ele descobriu, virou bicho.
— Que expressão agradável. Sim, virou bicho. Me deu um tapa no rosto,
me jogou longe, fora da cama. Fiquei com um hematoma absolutamente lindo.
Mas tenho que lhe dizer, Victor, foi a ocasião em que o vi mais cheio de paixão.
Que noite nós tivemos.
— E depois ele saiu atrás de Bissonette.
— Não, Victor, lamento.
— Sim, ele foi. Você o está protegendo.
— Não.
— Como pode ter certeza?
— Quando Sam recebeu o relatório do detetive, eu já tinha terminado
com Zack. Na verdade, ele tinha terminado comigo. Por uma besteira qualquer
a respeito de estar apaixonado. Não, depois de Zack tive um caso com meu
professor particular de ginástica e depois com um empreiteiro que estava con‐
sertando nosso sistema de aquecimento, depois com uma florista, uma doce in‐
glesinha chamada Fiona, e todos eles constavam do relatório. E todos ainda es‐
tão vivos da silva. Na época em que Zack foi espancado, estávamos bem no
meio de uma séria, mas realmente fútil, tentativa de reconciliação. De maneira
que você pode ver, Victor, não foi Sam mesmo.
Não respondi. Em vez disso, gemi de desapontamento. Os garçons retira‐
ram rapidamente nossas entradas e trouxeram os pratos principais. Minha car‐
ne, cortada em tiras num molho marrom-escuro de pimenta, me pareceu um
exagero para comer naquele momento.
— De repente, fiquei sem fome — disse.
— Quentinhas são tão vulgares, Victor. Coma. Você está um pouco aba‐
tido. Mas tenho que admitir que é encantador que ache que eu valha um assas‐
sinato.
Ela sorriu para mim, aquele sorriso impossivelmente largo e sensual, mas
logo em seguida murchou, transformando-se em algo gelado como o Ártico.
— Mas você não pensou que ele tivesse matado por mim, pensou, Victor?
Teria sido pelo sobrenome, pelo dinheiro, pela posição na firma da família. Vo‐
cê é um monstro, sabe disso? Vocês dois canalhas. Vocês se merecem. Pelo me‐
nos o pobre Zack era honesto. Tudo que ele queria de mim era o meu corpo.
Baixei o olhar e vi meus bifes parados ali, grelhados e cobertos do molho
malévolo com grãos de pimenta. Cortei a carne. Estava vermelho- sangue por
dentro, e me dei conta de que, além de não estar com fome, estava nauseado,
perdido. Estava à deriva, sem rumo.
Alguém estava mentindo sobre a morte de Bissonette. Enrico Raífaello es‐
taria mentindo para nos desviar do caminho certo, ou Jimmy Moore, para sal‐
var sua carreira política, ou Lauren, num último gesto galante para com seu fu‐
turo ex-marido. Ou talvez ninguém estivesse mentindo. Talvez o assassino fosse
uma outra pessoa qualquer, um marido ciumento com quem eu ainda não cru‐
zara. Ou Norvel Goodwin, que me ameaçara tentando me fazer abandonar o
caso para manter a relação entre o tráfico de drogas e o assassinato de Zack Bis‐
sonette um segredo. Poderia ser qualquer pessoa, ou ninguém, no que me dizia
respeito, porque todos os meus palpites tinham se demonstrado errados e eu
não tinha mais palpites para seguir. No final das contas, Prescott faria o que
quisesse com seu escravo, e não havia nada que eu pudesse fazer contra isso.
— Com licença — disse para Lauren, enquanto ela cortava tristemente
sua truta com o garfo, e me levantei para ir ao banheiro. Mas depois que alcan‐
cei o bar envidraçado, em vez de virar à direita e seguir para o interior do vestí‐
bulo do hotel, onde ficavam os banheiros, virei à esquerda, saindo porta afora,
descendo a rampa para a calçada e atravessando a ruazinha lateral até o estacio‐
namento e entrando em meu carro. Podia ver as costas de Lauren pela janela da
sacada. E daí se a deixasse sozinha com a conta a pagar? Ela podia se dar o luxo.
Havia um lugar para onde eu tinha que ir. Lancaster avenue até a City Line
avenue, entrando na via expressa Schuylkill até a 1-676, até a rua Race, entran‐
do na Cidade Velha e até a refinaria de açúcar reformada e a cama depois do
lance de escadas onde alguma coisa dourada me esperava e onde, como um
condenado pulando a cerca, eu podia fugir da minha vida.
40
A defenestração
42
Cresci com meu pai morando num bangalô de estilo espanhol num enclave su‐
burbano de bangalôs de arquitetura de estilo espanhol que o incorporador ha‐
via entusiasticamente chamado de Hollywood. Havia a Taverna Hollywood,
para onde os homens trabalhadores de Hollywood fugiam para encontrar uma
escuridão avermelhada e fresca e cervejas a vinte e cinco centavos, o Hollywood
Drugstore, de janelas de vidraças coloridas empoeiradas com pequenos cartazes
escritos à mão, e uma loja de roscas que funcionava vinte e quatro horas, que
quebrava a tradição e não se chamava Hollywood e sim Donut Towne, o e final
da ortografia antiga, único pedacinho de classe que restava nas vizinhanças.
Não era um lugar terrível para viver, Hollywood, e depois da guerra, quando
acabara de ser construído, foi uma coisa e tanto, mas não era muito se compa‐
rado com as grandes mansões de cinco quartos com enormes gramados que o
rodeavam.
Havia alguma coisa a respeito do meu bairro que eu sempre achara patéti‐
ca. Talvez fosse a maneira como as casas pareciam ter sido construídas precaria‐
mente, talvez fosse a maneira como uma flora incipiente crescera através das ra‐
chaduras na calçada, transformando as placas de concreto em entulho sem que
ninguém fizesse nada a respeito. Talvez fosse a ideia de haver uma Hollywood
no meio daquele subúrbio nos arredores da Filadélfia, como se naquela área de
seis quarteirões de bangalôs rachados e maltratados vivessem John Wayne,
Jimmy Stewart, Vera Miles e Yvette Mimieux, fazendo filmes e convidando pa‐
ra churrascos em seus pequenos quintais empoeirados. Acho que se todo o dis‐
trito escolar fosse constituído de lugares como Hollywood, eu não teria me im‐
portado tanto, mas era um distrito escolar rico, e meus colegas de turma eram
ricos e eu não era. Embora tivéssemos uma televisão, aquecimento e sempre co‐
mida bastante, nunca pude me livrar da sensação de ter crescido numa favela.
No domingo depois de meu encontro com Tony Baloney, passei de carro
pela Donut Towne e pela Taverna Hollywood e ingressei nas entranhas de mi‐
nha infância. As árvores, grandes e robustas em minha juventude, agora esta‐
vam velhas e retorcidas. Muitas tinham caído, levando consigo o calçamento, e
isso, junto com o fato de as árvores sobreviventes terem acabado de perder as
folhas de outono, tinha o efeito de deixar cair uma luz fria e dura, de maneira
que o bairro parecia mais ensolarado do que eu me lembrava de ter sido. Toda
vez que eu voltava para casa as vizinhanças pareciam mais claras e ensolaradas
do que me lembrava. Nome, no Alasca, durante os seis meses de inverno, seria
mais clara do que meu velho bairro, de acordo com as minhas lembranças. Ali,
defronte àquela casa rústica, era onde Tommy DiNardo costumava me bater
depois da escola primária. Ah e ali, bem ali, fora onde Debbie Paulsen pulara
em cima de mim e, me agarrando, me beijara e me lambera e caíra sobre o meu
peito. Será que eu havia sido o único garoto do bairro a ser estuprado por Deb‐
bie Paulsen, um metro e meio e oitenta e um quilos de carne católica frustrada?
E sim, ali mesmo, num buraco debaixo daquela varanda, escondido de maneira
que você jamais pudesse perceber, fora lá que eu me escondera no dia em que
minha mãe partira, praguejando aos berros contra meu pai enquanto ele rosna‐
va silenciosamente para ela da sacada da frente de nossa casa. Ah, infância em
Hollywood, será que alguma vez merda teve um cheiro mais doce?
Acho que estava voltando para casa em busca de perspectiva. Tinha uma
decisão a tomar e imaginava que era ali que a tomaria. Tinha que decidir o que
eu queria, quais eram minhas obrigações, como atacar meu futuro. Tinha que
decidir o que eu deveria ser quando crescesse, e assim viera para casa, para meu
pai. Não havia telefonado, mas sabia que estaria lá. Os Eagles estavam jogando
na televisão, o que lhe dava uma boa desculpa para fazer aquilo que fazia todas
as noites depois do trabalho e o dia inteiro nos sábados e domingos: sentar di‐
ante da tevê, tomar cerveja, tossir. Bati duas vezes na porta. Havia uma campai‐
nha, mas não funcionava desde que eu tinha nove anos.
— O que você quer? — perguntou meu pai quando abriu a porta e viu
seu filho de pé atrás da porta de tela, com um sorriso doentio no rosto.
Levantei o engradado de meia dúzia de cervejas Rolling Rock que havia
comprado.
— Está assistindo ao jogo?
Ele me deu as costas sem abrir a porta de tela e foi andando de volta para
a cadeira, arrastando os pés.
— Não. Tem golfe no Canal Seis.
Caso não tenham compreendido, isto era o que meu pai chamava de uma
piada.
Creio que para compreenderem meu pai, teriam que ter compreendido
minha mãe, tudo que ela queria, tudo que ela achava que deixara de ter na vida
por ter-se casado com meu pai, as razões por que ela nos deixara para ir morar
num trailer no Arizona. Infelizmente eu jamais compreendera coisa nenhuma a
respeito de minha mãe além do fato de que era louca de hospício, de maneira
que meu pai continuava sendo um mistério também. Era um homem grande,
de cabelos brancos desalinhados, dedos grossos, um homem quieto, trabalha‐
dor e pouco ambicioso, com uma amargura cultivada por seus dez anos com
minha mãe, uma amargura que agora havia explodido numa flor feia e passada
que ele usava no peito como um buquê cruel. Era esta mesma amargura, em
minha opinião, que se manifestara sob a forma de manchas no pulmão que os
raios X não apagavam, mantinham em xeque. Todos os médicos diziam que ele
já deveria estar morto, me contava repetidamente, e eu nunca sabia dizer se ele
me contava por orgulho ou desapontamento.
Sentei no sofá e torci a tampa de uma Rock. Ele estava na poltrona, com
uma lata de Iron City na mão. Pode-se comprar Iron City numa deli por um
dólar e setenta e dois centavos o engradado de seis latas. Meu pai sempre tivera
um bom paladar para coisas mais refinadas.
— Como está o time? — perguntei.
— São uns vagabundos.
— Os Eagles ou os Jets?
— São todos vagabundos. — Ele tossiu, uma tosse alta e profunda que
trouxe alguma coisa. Ele cuspiu numa toalha de papel sobre a mesa ao lado da
cadeira e não olhou. — E todo o dinheiro que ganham. Estes vagabundos não
seriam capazes de segurar o elástico das calças de jogadores como Bednarik e
Gifford.
— Então por que você assiste toda semana?
— Para confirmar minha opinião.
— Não vejo você há algum tempo. Está com boa aparência.
Ele tossiu de novo.
— Todos os médicos me dizem que eu já deveria estar morto.
— É, mas eles não sabem de nada, certo?
— É o que sempre digo.
— É mesmo?
— Agora você está se metendo a esperto.
— É um dos traços de temperamento que herdei.
— De sua mãe.
— Não. De você.
O rosto dele empalideceu e ele cuspiu mais alguma coisa na toalha de pa‐
pel.
— Ah, você não sabe de nada.
— Quanto está o jogo? — perguntei.
— Quatorze a sete para os Eagle.
— Não estão jogando como vagabundos hoje.
— São os Jets. Vamos ver quando jogarem contra os Cowboys. São vaga‐
bundos de coração.
Assistimos ao jogo quase em silêncio, trocando comentários idiotas à me‐
dida que a partida progredia, coisas do tipo: “Ele tem mão como pés”, quando
um receptor deixava cair uma bola, e: “Ele não conseguiria agarrar nem a irmã
dele”, quando um jogador de defesa perdia uma jogada. Mas basicamente cada
um ficou com seus pensamentos, o comentário da tevê sendo interrompido
apenas pela tosse de meu pai. Ficamos sentados até durante o intervalo, vendo
a banda tocar, a hiperatividade dos comentaristas na cabine, uma série de co‐
merciais de carros e cerveja. Em algum momento durante o terceiro intervalo
me dei conta de que minha cerveja estava ficando quente, de maneira que levei
as três que restavam das seis até a cozinha. O que vi na geladeira foi deprimen‐
te. Havia cerveja, uma caixa de papelão de leite velho, e coisas que eu não po‐
dia identificar lá no fundo. O gelo crescia dos cabos do congelador. O que era
tão deprimente era que o interior da geladeira de meu pai se parecia muito com
o interior da minha geladeira.
— Você deveria limpar a geladeira de vez em quando — disse, quando
voltei a me sentar.
— Porquê?
De fato, por quê? Pisoteado mais uma vez, pensei. Pisoteado mais uma
vez por meu pai.
— E aqueles cinco mil que você me deve? — perguntou depois do jogo,
quando a única atração era o torneio de golfe no Canal 6, a que meu pai deci‐
dira assistir, em vez de fazer o impensável e desligar a televisão.
— Foi por isso que eu vim — respondi. — Ou por uma coisa parecida.
— Bem, você já tem ou não?
— Está precisando do dinheiro?
— Seria bom, claro — respondeu.
— Eu arranjaria se estivesse precisando.
— Não disse que estava precisando.
— Você disse que seria bom tê-los.
— Não é a mesma coisa. Todo mundo acharia bom tê-los. Donald
Trump acharia bom tê-los, mas não precisa.
— Exemplo inadequado — disse.
— É, bem, talvez.
— Está precisando do dinheiro?
— Não.
— Bom — retruquei. — Porque não tenho.
O líder do torneio mandou uma bola um metro e meio além do buraco.
— Isso não quer dizer que não seria bom tê-los — disse ele.
— Então vou arranjar para lhe dar.
— Olhe só que tacada ele errou — disse meu pai, acenando aborrecido
para a tela. — Vagabundo. Pelo quinto lugar eles recebem cinquenta mil. Dia‐
bos, quem ainda se importa em ganhar?
Assim ficamos assistindo ao golfe por algum tempo, seduzidos pelo ritmo
do jogo, a preparação, o balanço, o passo atrás, o balanço, a tacada, a bola desa‐
parecendo na tela apenas para reaparecer como um pontinho minúsculo giran‐
do para a frente no gramado. As sombras na casa agora estavam se alongando, a
sala estava escurecendo. Lancei um olhar rápido durante uma das tacadas cruci‐
ais e meu pai estava dormindo na cadeira, a cabeça jogada para trás, a boca
aberta, respirando barulhentamente com seus pulmões doentes e apodrecidos.
Ele acordou sobressaltado quando Greg Norman acertou uma longa tacada de
efeito e a plateia aplaudiu com entusiasmo.
— Quem? O quê?
— Norman acabou de acertar uma tacada.
— Este é um vagabundo. Quer saber como se tornar um grande jogador
de golfe? Jogue com Norman numa decisão.
— O segredo, em primeiro lugar, é chegar à decisão.
— Sempre existe um segredo — disse ele. — Só estou lhe dizendo como
é.
— Fale-me de vovô — disse, e aquilo o calou por um momento.
— O que é que tem o seu avô?
— Estive com uma pessoa que o conhecia do shul em Logan. Uma pessoa
que costumava comprar sapatos dele.
— Sim, bem, ele ia ao shul e vendia sapatos — disse meu pai. — O que
mais?
— E cantava, certo?
— Claro, costumava cantar o tempo todo. Tinha voz, mas mesmo assim
me deixava maluco.
— Por que você deixou de ir ao shul? — perguntei.
— Velhos cantando tristes canções numa língua morta. Preces em aramai‐
co. Você sabe o que é aramaico?
— Não.
— Nada no mundo está mais morto do que o aramaico — disse.
— Que aconteceu quando deixou de ir? Vovô não tentou fazer com que
voltasse a ir?
— O que iria fazer? Eu já era maior que ele quando tinha doze anos. Não
tinha muito controle sobre mim. Eu era um garoto rebelde.
— Você o amava? — perguntei.
— Que tipo de pergunta é esta?
— Estou apenas perguntando.
— Ele era meu pai. O que você acha?
Mais alguns buracos passaram na televisão, mais algumas tacadas, uma ta‐
cada da areia, uma tacada a noventa centímetros do buraco que não entrou,
uma tacada de seis metros que entrou.
— Quando deixamos de ir à sinagoga? — perguntei.
— Assim de repente você se importa?
— Só estou perguntando.
— Era sua mãe quem mantinha o hábito de ir. Ela queria fazer parte do
lugar chique com toda aquela gente rica e bem vestida. Achava que pertencer à
sinagoga lhe daria classe. Poderia ter se casado com a rainha da Inglaterra e ain‐
da assim não teria classe nenhuma, e acredite em mim, eu não sou a rainha da
Inglaterra. As mensalidades estavam nos matando, mas era o que ela queria, as‐
sim era o que fazíamos. Depois que ela se foi, não vi motivo para continuar.
— Eu deveria ter feito o bar-mitzva — disse, e não sei por que falei aqui‐
lo, pois nunca, na minha vida inteira, havia pensado no assunto.
— E eu deveria ter sido rico. E assim, o que é a vida, senão desaponta‐
mentos?
— Se vovô fosse vivo, ele teria feito tudo para que eu fizesse o bar-mitzva
— declarei. Minha voz parecia se encher de uma grande amargura sempre que
vinha para casa, e isso tornou a acontecer naquele instante.
— Você sempre reclamou de tudo, sabe disso — disse meu pai. — Era
sempre “detesto isso” e “detesto aquilo”, eu tinha vontade de lhe dar uns tapas
o tempo todo. Duas pessoas no mundo sabiam como me irritar, e calhou de ser
minha mulher e meu filho. Bem, deixe de ser um bobalhão resmungão e trate
de crescer. As coisas não têm que ser feitas para você, você mesmo pode fazê-las
se quiser. Não existe limite de idade. Vá lá e faça, não me importo, só quero
que pare de reclamar. Olhe, eu fiz e, creia-me, você não perdeu nada.
— Não sabia que você tinha feito o bar-mitzva.
— Sim, bem, tem um bocado de coisas que você não sabe — disse.
— Você teve uma festa grande.
— Naquela época não era assim. Minha mãe fez uma carne de peito assa‐
da e um ou dois primos vieram jantar, só isso. Hoje em dia, merda, eles mon‐
tam tendas e servem lagosta à Newburg. Lagosta à Newburg, mexilhões à cassi‐
no, uma banda com um cantor negro. O que acha disso?
— Teria gostado de uma festa.
— Você não tinha amigos. Quem teríamos convidado, o presidente?
Depois do golfe veio o 60 Minutes, com o reloginho tiquetaqueando, o
repórter falando sem parar com seu tom de voz incrédulo, como se a falcatrua
que havia descoberto fosse algo de extraordinário. Estou chocado, chocado, pa‐
recia dizer, que haja empresas por aí fraudando o governo. Agora já estava escu‐
ro, as sombras haviam se espalhado e coberto tudo. O rosto de meu pai, relaxa‐
do em sua escravidão televisiva, estava iluminado por uma luz bruxuleante.
— Estou com um problema que preciso discutir com você — disse.
— De quanto precisa?
— Não é isso.
— Desta vez, talvez — disse ele.
— Tenho que tomar uma decisão a respeito de uma coisa. Estou com este
caso, o que você me viu aparecer na televisão.
— Apareceu na televisão?
— Não faça assim, você me viu. Sei que viu.
— Achei que era você, mas não tinha certeza. Você fica melhor na televi‐
são.
— Então deveria ter sido um astro de TV?
— Teria sido melhor do que aquele Bryant Gumbel, posso lhe garantir —
disse. — Aquele é um vagabundo, eu conheço.
— Neste caso tenho um cliente que está em sérios apuros. É um caso cri‐
minal, e parece que ele vai perder, mas não quer que eu faça nada para impedir
isso. Agora, eu acho que sei quem fez o que ele está sendo acusado de ter feito e
acho que sei como prová-lo, mas me custaria caro.
— Custaria a você? Quanto?
— Ofereceram-me um emprego, realmente um bom emprego, um em‐
prego como sempre quis, mas que só vai se concretizar se eu não criar caso. E
me ofereceram muito dinheiro por um outro caso, dinheiro suficiente para eu
poder lhe pagar com juros, mas também só se eu deixar meu cliente se ferrar.
Existem negócios de que estou participando que deixarão de existir, dependen‐
do de mim. E o grupo que está me pagando para representar este sujeito prova‐
velmente não me pagará se criar problemas, ou pelo menos é o que parece. De
maneira que tudo isso poderia significar muito para mim, o dinheiro e o em‐
prego. Mas, por outro lado, sou um advogado, e meu cliente está se ferrando, e
acho que devo fazer alguma coisa a respeito, qualquer coisa, mesmo se me pre‐
judicar. De maneira que não tenho certeza do que devo fazer.
Houve um longo silêncio entre nós, habilmente preenchido pela televisão,
uma entrevista com um velho comediante, Morley Safer sacudindo a cabeça se‐
guidamente, com espanto. Então, sem desviar o olhar da televisão, meu pai fa‐
lou:
— Pegue o dinheiro — disse.
Ele tossiu alto, cuspindo algo grande e pesado na toalha de papel.
— Pegue o dinheiro — disse. — Não costuma aparecer por aqui com
muita frequência.
Houve uma outra longa pausa enquanto na televisão passava uma série de
comerciais e depois o som agudo e irritante da voz de gaita de Andy Rooney.
Meu pai foi trocando de canal, tentando encontrar alguma coisa, mas acabou
desistindo e voltando para Andy Rooney. Este tinha uma pilha de produtos di‐
ante de si e estava lendo os rótulos.
— Isto é o que você podia fazer na televisão — disse. — Poderia chora‐
mingar tão bem quanto ele.
— Alguma vez já teve uma chance de ganhar dinheiro de verdade? —
perguntei.
Houve uma longa pausa antes que ele dissesse:
— Marty Sokowsky.
— Não conheço.
— Dono da Sokowsky Chevrolet e Subaru na 611. Cresci com Sokowsky
em Logan. Logo que saímos do ginasial, me fez uma proposta. Ele ia entrar pa‐
ra o ramo de comércio de carnes, não de criação ou de abatedouro, mas de
venda de carnes. Queria ser vendedor.
— Que tipo de carne?
— Porco, vaca, galinha, carne. Tudo era meio duvidoso, sabe, vendendo
carne de segunda como se fosse de primeira, comprar e vender, nada de errado
com a carne, na realidade, o esquema era fazer dinheiro. Eu não tinha muita
certeza de que fosse funcionar, e a ideia de contar a seu avô que estava venden‐
do carne de porco foi meio demais. De qualquer maneira, eu já tinha resolvido
entrar para o exército, e disse não. Bem, Sokowsky escapa por um fio de ser in‐
diciado mas faz uma tonelada de dinheiro, segue em frente e compra uma
agência de automóveis, onde está fazendo uma fortuna, simplesmente uma for‐
tuna, e eu volto do exército e começo a aparar gramados para aquele schmuck
do Aaronson. Perdi a oportunidade. Poderia ter sido Sokowsky-Carl Chevrolet
e Subaru, poderia ter sido eu. Tudo teria sido diferente se eu tivesse uma agên‐
cia de automóveis. Espero por uma outra chance desde então, mas nunca mais
apareceu nada. De maneira que o que aprendi é que com fodidos como nós só
aparece uma vez, e quando aparece é para aproveitar. Não importa quem você
tenha que foder.
Quando a musiquinha ordinária de Murder She Wrote começou a tocar,
eu disse a meu pai que tinha que ir. Ele me seguiu até a porta.
— Pegue o dinheiro — disse.
— Sim, ouvi o que você disse.
— Tem alguma notícia dela? — perguntou baixinho.
— De vez em quando. Começou a jogar golfe.
— Não fico surpreendido — disse amargamente. — Acho que a vida in‐
teira ela sonhou com golfe. Queria que eu entrasse para o Philmont Country
Club, o clube judeu chique perto de Huntingdon Pike. Sabe quanto custa
aquela merda de clube? Sokowsky é sócio.
— Ela me disse para lhe dar um alô.
— Não quero ouvir.
— Eu sei.
— Os vagabundos vão para Dallas na semana que vem. Vão acabar com
eles em Dallas.
— Está me convidando?
— Não, estava só falando.
— Porque se estiver me convidando...
— Não estou convidando você. Cale a boca. De qualquer maneira, vou
estar ocupado.
— Mesmo?
— É. Vou jogar uma partida em Merion. Diga à cadela que também es‐
tou jogando golfe.
Foi um percurso triste a volta de Hollywood, passando pelos subúrbios e
de volta até a cidade. Meu pai estava morrendo, mas não era isso que era triste.
Fui dirigindo pela rua Broad, pelas piores partes da zona norte da Filadélfia, ci‐
nemas semidestruídos, lojas fechadas, congregações de mendigos vivendo de‐
baixo das pontes elevadas dos trens. Passei pela Temple University e pelo prédio
do Philadelphia Inquirer, depois dei a volta no palácio da prefeitura, passando
por aquele prédio que havia sido dizimado pelo fogo, mas que ainda estava de
pé, um esqueleto de arranha-céu com compensados de madeira no lugar das ja‐
nelas, e me senti Triste durante todo o caminho. Não era o futuro certo de meu
pai o que estava me incomodando, era a incerteza do seu passado. Mas a visita
havia sido boa; esclarecera as coisas. Meu pai sempre fora um barômetro para
mim, as rebeliões de minha juventude só tinham importância com relação a
ele. Ele era caladão, de maneira que eu falava mais que demais. Ele não recla‐
mava, então eu reclamava. Usava o cabelo cortado à escovinha, o meu descia
abaixo dos meus ombros durante todo o ginasial. Era um trabalhador braçal,
eu me tornei um advogado. Era pobre, eu seria rico. Mas não seria rico à sua
maneira. “Pegue o dinheiro”, dissera, e naquelas três rápidas palavras apontara a
direção que eu seguiria com a clareza de uma placa de beira de estrada. “Pegue
o dinheiro”, dissera, e eu o faria, mas não à sua maneira. Não queria que nada
da minha vida fosse feito à sua maneira.
Jimmy Moore tinha matado Zack Bissonette. Eu sabia disso com tanta
certeza quanto meu pai sabia que os Eagles eram vagabundos. Jimmy fora até o
clube procurando por Zack Bissonette e quando o encontrara agarrara o bastão
de beisebol pendurado na parede e com ele espancara Bissonette até que per‐
desse os sentidos, ficasse desfigurado, em coma, e o espancara até a morte. Ao
mesmo tempo em que eu limpara a sujeira do dachshund, tirando as manchas
de sangue do tampo de madeira da mesa e da moldura de couro do bloco de
Tony Baloney com óleo Murphys, naquele instante exato eu pude ver tudo, o
bastão voando, a fúria no rosto de Jimmy Moore, o sangue borbulhando en‐
quanto Bissonette respirava através dele. E com um pouco de sorte poderia
provar que tudo acontecera exatamente daquela maneira. Sabia o que isso me
custaria. A Blaine&Cox, Amber & Cox não telefonaria mais. Os irmãos
Bishop deixariam de telefonar. Minha doce comissão de quarenta mil dólares
do acordo Saltz não iria chegar à minha conta corrente. Passaria da afluência à
pobreza num piscar de olhos.
Mas durante toda a minha vida me ressentira contra o fato de que o que
eu desejara não me fora concedido. Meu pai não era rico, as firmas de advoga‐
dos não contratavam, aquele grande caso nunca batera à minha porta. Já espe‐
rava tempo demais que alguém me desse minha parte. Bastava de espera.
Jimmy Moore dissera que a característica da América não era o que era conce‐
dido e sim o que se agarrava, e agora eu estava agarrando. Não se enganem, eu
ainda queria tudo, o dinheiro, o prestígio, as melhores mesas, os melhores car‐
ros, as mulheres mais jovens e mais bonitas. Mas não acabaria como meu pai,
amargurado porque o mito da oportunidade não aparecera batendo à minha
porta. Ao decidir ir contra Jimmy Moore, estaria certamente perdendo aquilo
que me fora concedido por William Prescott, mas não queria mais que nin‐
guém me desse coisa alguma. O que teria feito Clarence Darrow, o maior advo‐
gado de todos os tempos, o que Darrow teria feito em minha situação? O que
Lincoln teria feito, ou Daniel Webster, ou Andrew Hamilton, o primeiro dos
grandes advogados da Filadélfia? Todos eles teriam cuspido na cara de Prescott,
seguido em frente e tomado o que era seu de direito. Eles não dependiam de
presentes concedidos, e nem eu o faria mais.
Então era isso o que eu faria. Cagaria na Blaine&Cox, Amber e Cox. Ca‐
garia nos irmãos Bishop, no CUF, nos malditos réus do caso Saltz vs. Metropo‐
litan Investors, em Norvel Goodwin e seus malditos cartões de visitas. Conven‐
ceria Chester Concannon a me deixar lutar por sua liberdade e então acabaria
com Jimmy Moore. E ao derrubar Jimmy Moore eu faria meu nome. Ganharia
o caso para Chester Concannon, salvaria sua vida, eu o faria, e quando o fizesse
gritaria para a imprensa e ficaria vendo os clientes aparecerem aos montes.
Agarraria a oportunidade pelo pescoço e o torceria, ah sim. Faria meu nome, e
de meu nome, e de mais ninguém, jorrariam meu poder, minha riqueza e meu
sucesso no mundo. Eu faria um nome, droga, e ao fazê-lo sozinho eu faria com
que meus sonhos se tornassem realidade.
43
Eu havia sido instruído para estar no bar do Doubletree Hotel às 10:30 da noi‐
te e esperar pelo pequeno Sheldon. O Doubletree era uma estrutura moderna
de cimento e vidro um pouco ao sul do prédio da prefeitura. O bar era aberto e
arejado, com fileiras de mesinhas minúsculas, um círculo de reservados arre‐
dondados numa plataforma em volta do miolo e portas de vidro de onde se po‐
dia ver as prostitutas na Broad Street. Uma banda de dois músicos tocava no
palco minúsculo, um sujeito baixo de smoking tocando guitarra e uma mulher
alta e bonita cantando e tocando um sintetizador, standards do tipo I Will Sur‐
vive e Cherish, na versão de Madonna, mas ninguém estava dançando. Fiquei
sentado no bar, esperando que o pequeno Sheldon viesse me buscar, enquanto
me perguntava que cara ele teria. Se seria pequeno e gordinho, um Morris jo‐
vem, mas talvez mais magro, mais magro, esperava. Teria que ser mais magro,
tendo servido dois anos no exército de Israel, mas não seriam necessários mui‐
tos sanduíches de pastrami para tornar a engordá-lo. Minha imagem de Shel‐
don não era exatamente confortadora, jovem, baixo, gordo, um geninho de
computador. “Dê-lhe uma chance”, Morris me pedira, e eu lhe daria uma
chance porque não tinha muita escolha, mas esperava que dar uma chance ao
pequeno Sheldon não fosse me levar para a cadeia.
Morris me dissera para desenhar uma planta ainda que imprecisa do an‐
dar de Prescott e eu o fizera, muito imprecisa. Estava dobrada no bolso do meu
paletó. O escritório de Prescott ficava no quinquagésimo quinto andar. Não ti‐
nha muita certeza de como chegar lá em cima. Esperava que Morris tivesse bo‐
lado um plano. Também não sabia como entraria no escritório se a porta esti‐
vesse trancada, mas Sheldon era chaveiro, assim, teria que se encarregar disso.
E, se eu não conseguisse encontrar o documento específico, provavelmente es‐
taria em algum lugar no computador, que Sheldon teria que piratear. Dei-me
conta de que já estava dependente demais do pequeno Sheldon, e, se o peque‐
no Sheldon fosse apenas o dobro do que eu esperava que fosse, eu estaria perdi‐
do. Pedi uma cerveja enquanto esperava e, num impulso, um gim-tônica tam‐
bém. Aquela não era uma noite para me embebedar, era uma noite para buscar
calma, natural ou quimicamente induzida. Bebi o G&T rapidamente e depois
a cerveja, e pedi mais um de cada.
— Sr. Carl?
Eu me virei e imediatamente me encolhi. Atrás de mim estava um tipo
com pinta de policial, grande, de pescoço sólido, braços grossos como pernas,
um verdadeiro brutamontes de cabelos pretos crespos e nariz amassado de hal‐
terofilista. Usava chapéu, um chapéu tipo gângster, insolentemente caído para a
frente. Segurava uma maletinha de couro na mão direita. Era mais uma intima‐
ção de Raffaello, e aquela maleta, pensei, era um toque discreto para o hotel.
— O que é agora? — perguntei.
— Algum problema?
— Estou cheio disso tudo, é só isso. Estou cansado de ser arrastado para
dentro de carros para conversinhas com gângsteres importantes. Estou cansado
de ser saco de pancadas nas briguinhas de seu patrão com Moore e com os fe‐
derais. — Talvez tivesse bebido demais, ou talvez meu ressentimento renovado
estivesse levando a melhor, mas era agradável soltar os cachorros com aquele
grandalhão. — Diga ao seu patrão que estou ocupado, que hoje à noite não dá,
que se ele quiser falar comigo pode simplesmente me telefonar, como todo
mundo. Diga isso a ele.
— Não compreendo, Sr. Carl.
— Simplesmente diga a ele o que eu disse para dizer. Você não precisa
compreender. Não é para isso que você é feito, para compreender, é? Rapazes
fortes como você são feitos para outras coisas. Simplesmente diga a ele.
— Talvez uma outra noite seja melhor.
— Sim, claro. Diga a ele para mandar a menina dele ligar para a minha
menina e a gente marca alguma coisa. A gente vai almoçar. Conheço um bom
indiano.
— Vou dizer a ele, Sr. Carl, mas meu pai não vai gostar muito disso.
— Seu pai, hein? Engraçado — disse. — Pensei que você estivesse morto.
— Ainda não. Darei seu recado ao Morris.
— Então você é o pequeno Sheldon—disse e o olhei de alto a baixo. —
Diga-me, Sheldon. — Foi a primeira coisa que me veio à cabeça. — Sua mãe,
Rosalie. Não estou querendo ser mal-educado, mas sua mãe, por algum acaso,
é uma mulher grande?
— Ela pode ser imponente.
— Aposto que sim. Desculpe-me, pensei que você fosse outra pessoa.
Sente-se. Posso lhe oferecer um drinque?
— Um ginger ale.
Fiz sinal para o bartender.
— Um ginger ale e mais uma cerveja.
— Traga só dois ginger ale — disse o não tão pequeno Sheldon Kapustin.
Quando os refrigerantes chegaram, ele pegou o seu e me conduziu a um reser‐
vado no fundo do bar, onde nos sentamos de frente um para o outro.
— O senhor está bêbado, Sr. Carl? Vou ser franco, não vou fazer o serviço
com o senhor se estiver bêbado.
— Não estou nada bêbado — respondi.
— Parecia estar bêbado lá no bar.
— Estou é fortificado.
— Deixe-me ver a planta do andar.
Puxei a folha de papel onde tinha desenhado, o melhor que podia lem‐
brar, os corredores e escritórios do quinquagésimo quinto andar do número 1,
Liberty Place. No canto, grande como me lembrava, estava o escritório de Pres‐
cott. Tinha desenhado o sofá, a escrivaninha, a mesa oblonga. Ele a estudou
por algum tempo.
— De que lado fica o norte? — perguntou.
— Não sei.
— Não se lembra da vista da janela?
Fechei os olhos e vi os rios de ruas de casas enfileiradas, levando ao Vete‐
rans Stadium e diagonalmente o Schuykill e o Franklin Field.
— Acho que aqui era o sul e aqui o oeste.
Sheldon balançou a cabeça e ficou olhando fixamente para o meu mapi‐
nha por um longo tempo. A banda tocava o tema de Beverly Hills Cop. Uma
garçonete veio nos oferecer um pote de madeira com minúsculo óculos biscoi‐
tinhos salgadinhos em formato de peixe e perguntou se estávamos satisfeitos.
Sheldon disse que sim. Depois que ela se foi, ele enfiou a mão na maleta e tirou
o que parecia ser um mapa rodoviário, mas quando o desdobrou, uma folha de
cada vez, demonstrou ser uma planta esquemática detalhada do quinquagésimo
quinto andar.
Onde foi que conseguiu isso?
Meu pai tem amigos em todos os lugares. Você ficaria surpreso.
Não creio que mais nada a respeito de Morris possa me surpreender.
Ele virou a planta ao contrário.
— Muito bem, baseado no que você diz, este é o escritório de Prescott.
— Parece correto.
— E este seria o elevador de carga mais próximo.
— Se você acha. Não, sei dizer.
— E isto aqui provavelmente é o armário do zelador. Veja como se comu‐
nica com os sistemas de aquecimento, ventilação e elétrico, de maneira que
possam trocar filtros e fazer quaisquer reparos necessários.
— Ok — disse, disposto a concordar.
— E, felizmente — disse Sheldon —, o armário do zelador fica a menos
de nove metros da porta do escritório de Prescott.
O armário do zelador era pequeno e úmido, com o zumbido do sistema
de aquecimento e de ventilação empurrando vastas quantidades de ar para den‐
tro e para fora como um pulmão gigante. Não havia, de fato, lugar suficiente
para nós dois, mas, desde que alternássemos a respiração estávamos bem. Nós
dois vestíamos macacões, com bonés que tinham escrito no topo “Robinson
Serviço de Limpeza”, tudo fornecido por Sheldon.
Fora Sheldon quem abrira com a gazua a fechadura do elevador e nos le‐
vara ao quinquagésimo quinto andar. Pensei que os escritórios estariam silenci‐
osos, mortos como meu escritório depois das cinco, mas não estavam nada
mortos. Havia associados que ainda estavam trabalhando, secretárias que ainda
datilografavam, máquinas copiadoras ainda zumbindo a distância. O Talbott,
Kittredge & Chase era uma máquina que cobrava por hora, e, creio, como as
máquinas mais bem lubrificadas do mundo, não havia razão para que fechasse
por uma coisa idiota como o cair da noite. Por um momento me perguntei se
Prescott ainda estaria lá, trabalhando duro, mas Sheldon telefonara para ele an‐
tes de deixarmos o bar do Doubletree Hotel e ele já havia ido embora para ca‐
sa, não para uma reunião ou algum jantar, mas para casa. Só para ter certeza de
que o caminho estava livre, seguimos pelo corredor, passando pela porta fecha‐
da do escritório de Prescott até o armário do zelador. No caminho eu via luzes
vindo de escritórios de outros associados e receei que talvez um daqueles suces‐
sos de esforço me reconhecesse. Instintivamente, olhei para o interior do pri‐
meiro escritório pelo qual passei, vendo uma mulher, que felizmente jamais ti‐
nha visto, sentada a uma escrivaninha.
— Não olhe — sussurrou Sheldon, e portanto, durante o resto do cami‐
nho até o armário, embora meus pelos estivessem em pé, lutei com sucesso
contra a vontade de espiar aqueles escritoriozinhos produtivos. Quando chega‐
mos ao armário do zelador, junto ao sistema de aquecimento, ventilação e ar-
condicionado do quinquagésimo quinto andar, Sheldon abriu a porta e me pu‐
xou para dentro.
— A porta dele estava fechada — observei.
— Isto é bom. Vamos torcer para que esteja trancada.
— Torcer?
— Se estiver trancada ficaremos sabendo que ele não está esperando que
ninguém vá usá-la. Se estiver destrancada, um de seus funcionários poderia es‐
tar planejando entrar para pegar alguma coisa.
Ele enfiou a mão na maleta, tirou um estetoscópio e começou a ouvir
através da porta.
— Fazendo um check-up — perguntei.
Ele pôs o dedo na boca e eu me calei.
Depois de um longo momento, disse: — Muito bem, Sr. Carl, está pron‐
to? — Claro.
— Então siga-me e mantenha-se calado se alguém aparecer.
— Claro.
— Não saia andando por aí sem mim.
— Não se preocupe.
— E leve isto consigo — disse, apontando para um balde com um trapo
sujo pendurado na borda.
Depois de um instante de escuta no estetoscópio, ele o enfiou de volta na
maleta e tirou uma prancheta. Respirou fundo uma vez e saiu com o balde e o
trapo na mão, eu o segui.
Lenta e calmamente, fomos andando pelo corredor até o escritório e pas‐
samos pela escrivaninha usada pela secretária de Prescott, Janice. Sheldon expe‐
rimentou a maçaneta e ela girou. Ele abriu a porta. Olhei em volta rapidamen‐
te, não vi ninguém e entrei depressa. Sheldon fechou a porta atrás de mim e
imediatamente acendeu a luz. Estava tudo conforme me lembrava, a parede de
fotografias, a mesa de trabalho gravada a ouro com pilhas de papéis, a mesa de
conferências no meio coberta de arquivos, o sofá circular e o quadro grotesco
de boxe e a 111 casinha de centro com papéis empilhados ordenadamente.
Atrás da mesa de trabalho ficava o baixo e longo console de madeira.
— Vá em frente -— disse ele.
— Por onde começo?
— Aqui quem manda é o senhor, Sr. Carl. Apenas trate de andar depres‐
sa. Não me agrada a porta estar destrancada.
O primeiro lugar onde procurei foi na longa mesa de conferências, no
meio do aposento, coberta de grossas pastas marrons cheias de documentos.
Havia títulos nas divisórias das pastas que me permitiram saber que aque‐
les de fato eram os arquivos de Moore e Concannon, mas o sistema era baseado
em números com os quais eu não estava familiarizado, de maneira que fui for‐
çado a ir examinando e procurando uma por uma. Havia transcrições, havia
correspondência, que examinei cuidadosamente, havia documentos dos arqui‐
vos do vereador. Muito daquilo tudo eu tinha visto, nas muitas cartas cujas có‐
pias recebera, mas também havia muita coisa que eu nunca vira antes. Concen‐
trei-me especialmente nas correspondências entre Prescott e Bruce Pierpont, o
perito de júris. Tivera esperança de que uma cópia do relatório de Pierpont es‐
tivesse no arquivo de correspondência, anexo à carta de encaminhamento, mas,
embora a carta estivesse lá, o relatório não estava. Enquanto eu procurava,
Sheldon examinava a mesa de trabalho de Prescott.
— Alguma coisa? — perguntou ele num sussurro preocupado.
— Está trancada — disse.
— Bem, então abra.
— Se alguém entrar e me apanhar mexendo dentro da escrivaninha que
está sempre trancada, estaremos em apuros.
— Se alguém entrar estaremos em apuros de qualquer maneira.
Ele pareceu ficar na dúvida, depois tirou as ferramentas do bolso e come‐
çou a trabalhar na fechadura da escrivaninha. Abriu em menos de um minuto.
Embora eu não estivesse encontrando o relatório sobre o júri que tinha
vindo buscar, estava descobrindo muita coisa que não sabia. Havia uma nota
fiscal de Bissonette para Moore relativa a dinheiro que era devido por despesas
no clube. Também havia uma pilha de recibos de banco comprovando uma sé‐
rie de depósitos em dinheiro feitos na conta corrente de Verônica, todos de va‐
lores altos, mais de quatro algarismos, mas nenhum de mais de dez mil dólares.
E então encontrei um arquivo, de número 716, que me fez gelar.
Continha uma cópia do relatório Martindale-Hubbell sobre a Guthrie,
Derringer & Carl. Dentro havia uma cópia do registro de meu histórico escolar
na faculdade de direito e a carta patética que eu enviara sete anos atrás pedindo
um emprego na Talbott, Kittredge & Chase. Dentro havia uma cópia do con‐
trato de aluguel do meu apartamento, uma cópia da apólice de seguro do meu
carro, o endereço de meu pai constando como sendo meu para obter a taxa re‐
duzida de subúrbio, uma lista de todas as transações dos últimos dois anos do
meu cartão de crédito, cópias dos meus extratos bancários, cópias dos meus pa‐
gamentos atrasados à Associação de Empréstimos e Marketing de Estudantes,
uma cópia do meu relatório de crédito deficitário. E então, bem ali no meio,
como um fantasma saído de meu passado, uma transcrição do depoimento que
eu havia tomado da Sra. Osbourne. Folheei rapidamente. Uma parte estava su‐
blinhada em laranja.
A briga começou no banheiro dos homens, antes de sair para o corredor. Dele‐
gados federais, pesadões e rijos, de fones nos ouvidos, nas orelhas, paletós esvo‐
açantes, correram pesadamente para apartar, mas a ferocidade dos combatentes
os manteve a distância. Jimmy Moore tinha agarrado o pescoço de Chester
Concannon. Chester tinha agarrado a virilha de Jimmy Moore. Seus sapatos es‐
corregavam no chão liso de lajota enquanto lutavam em silêncio. Com os bra‐
ços livres, golpeavam um ao outro, como jogadores de hóquei. Chester acertou
alguns ganchos poderosos no estômago de Jimmy, e então Jimmy deu-lhe uma
cabeçada, com uma contração brutal do braço, que deixou Jimmy girando es‐
tonteado e Chet sangrando em jorros que lhe escorriam pela testa enquanto
mantinha o punho cerrado no saco de Jimmy. O flash de um fotógrafo explo‐
diu como um foguete. A fotografia foi parar na primeira página do Daily
News, com a manchete PANCADARIA NO TRIBUNAL.
Depois de o juiz ter dispensado o júri mais cedo por aquele dia, mais uma
vez advertindo-os para não lerem os jornais, e depois de ter emitido as citações
por desacato à corte, multando Chester e Jimmy em quinhentos dólares cada
um e ameaçando os dois de pena de cadeia se algo semelhante voltasse a acon‐
tecer durante o resto do julgamento, e depois que Chester Concannon ensan‐
guentado seguiu para casa e um Jimmy Moore curvado saiu do tribunal dobra‐
do em dois, como se tivesse comido carne de porco estragada, Prescott se es‐
gueirou para junto de mim nas escadarias do tribunal.
— Seu cliente foi demitido do gabinete do vereador — disse.
— Evidentemente — retruquei. — Mas era apenas uma questão de tem‐
po.
— Isso mesmo — disse Prescott. — Apenas enquanto a lealdade demons‐
trada por meu cliente a um subordinado continuasse a impressionar o júri e
mantivesse Concannon na linha. Não é mais necessária agora. Pelo que com‐
preendi, Concannon de alguma forma obteve uma cópia de nossa pesquisa de
jurados.
— Está se referindo àquela que prometeu várias vezes me mandar mas
nunca mandou?
— Precisamente. Foi o que Chester disse a Jimmy antes de começarem
aquele espetáculo ordinário. Como foi que ele obteve uma cópia, hein? Você
sabe?
— Eu dei a ele.
— Como a obteve, Victor?
Dei de ombros.
— Tenho minhas fontes, Billy.
Prescott pôs o braço em volta de meus ombros e apertou com força sufici‐
ente para eu ouvir um estalo. Olhando para o outro lado, disse:
— Não volte a me chamar de Billy senão parto você em dois. Houve um
arrombamento em meu escritório ontem à noite. Nada foi levado, exceto aque‐
le relatório. Mandei recolherem as impressões digitais do escritório inteiro. Não
se importaria de nos dar um jogo das suas?
— Para falar a verdade me importaria — disse. — Por uma questão de
princípios, compreende?
Ele me largou. Como um jogador contundido, me contive para não esfre‐
gar o ombro.
Prescott disse:
— Você realmente pisou na bola hoje, Victor.
— O dia em que pisei na bola foi naquela primeira tarde em que entrei
em seu escritório.
— Teria imaginado que você estivesse grato — disse ele. — Você era um
joão-ninguém e lhe dei a oportunidade de ser alguma coisa.
— A oportunidade de ser o ingênuo enganado por você.
— Ora, francamente, Victor. Que outro papel poderia desempenhar? Es‐
tou muito desapontado com você.
— Estou arrasado — retruquei.
— Sim, é isso mesmo. Vou arrasar você. É claro que já sabe que o CUF
está muito insatisfeito com seu ataque pessoal ao presidente deles.
— Presumi que estariam.
— Proibiram a Blaine&Cox de até pensar em contratar você.
— Não preciso daquela porcaria de emprego — disse no meu melhor
tom de bandido, mas saiu errado, como uma queixa.
— E é claro que agora vão discutir seus honorários.
É
— Serei pago. Sou um advogado. Eu os processarei se não for pago. É isso
que advogados fazem.
— Qualquer juiz verá o conflito de interesses. Como poderia ter esperado
que o CUF pagasse a defesa de Concannon quando a estratégia dele no julga‐
mento é trair o presidente do CUF? Na verdade, já me disseram que vão pro‐
cessar você para receber o adiantamento de volta.
— Boa sorte para eles. Eu só tenho dívidas.
— Sim, nós sabemos. Mas, mesmo assim, julgamentos podem ser coisas
inconvenientes.
Pensei em Winston Osbourne e suas tristes unhas compridas, maltrata‐
das. Agora meus olhos estavam lacrimejando involuntariamente. Uma coisa era
prever a tempestade, e outra era estar no meio dela. Dei-lhe as costas para que
não visse as lágrimas. Do outro lado da escadaria, vi Chuckie Lamb olhando fi‐
xo para nós. Havia alguma coisa estranha e franca em seu rosto. Ele me viu
olhando e sorriu enquanto Prescott continuava a me surrar, mas devia ser um
dia de folga para Chuckie, pois a carga de malícia habitual em seu sorriso esta‐
va faltando.
— Os irmãos Bishop já começaram a procurar um outro advogado para
ser consultor do Valley Hunt Estates — prosseguiu Prescott. — E meus clien‐
tes no caso Saltz retiraram a oferta. Permanentemente. O julgamento está mar‐
cado para daqui a duas semanas.
— Estarei pronto.
— Pronto para perder. Você pisou na bola hoje, meu amigo, sim, pisou
mesmo.
Ele começou a descer a escadaria, afastando-se de mim, e então parou e
virou-se:
— Depois do dia de hoje, Victor, sua carreira está morta. Acabada. Afun‐
dou sob o peso de sua própria tolice. Depois do dia de hoje você pode muito
bem voltar a morar naquela casa em ruínas com aquele velho amargurado, e
passar seus dias aparando gramados.
O comentário de Prescott sobre aparar grama me mandou direto para um
bar. Encontrei um lugar a apenas alguns quarteirões do tribunal, um bar cha‐
mado Sneakers, e imaginei que fosse um bar de aficionados de esporte, mas
fosse lá o que fosse pouco me importava. Estava vazio quando entrei, escuro, ti‐
nha o cheiro azedo de cerveja, como um clube universitário na manhã seguin‐
te. Havia música tocando, um cantor folclórico de voz rouca, alto demais. A
bartender era uma mulher bonita, de nariz arrebitado, sardas e o cabelo corta‐
do à Joãozinho. Pedi uma Sea Breeze. Ela me deu um olhar estranho, dei de
ombros e disse-lhe que me servisse também um martíni feito com vodca.
Quando os drinques chegaram, bebi o martíni de um gole e em seguida tomei
a Sea Breeze, e, embora a combinação não me mandasse exatamente para um
paraíso tropical, como havia esperado, estava boa o bastante para que eu pedis‐
se mais uma rodada.
Então Prescott descobrira ainda mais do que havia na infeliz pilha de pa‐
pel da pasta 716. Havia pesquisado o histórico de minha família de origens hu‐
mildes, a sublime profissão de meu pai, conversara com meus conhecidos, com
meus amigos, com Guthrie, aquele canalha. E é claro deve ter havido conversas
durante almoços com seu amigo Winston Osbourne, Prescott pegando a ficha
do ganancioso rábula de segunda categoria que levara o pobre Winston ao de‐
sespero. Como era patético que mesmo em sua decadência, com as unhas com‐
pridas e os cabelos oleosos, Winston Osbourne ainda fosse mais bem recebido
no clube do que eu. Mas claro, ele tinha sangue nobre, era o rebento dos Os‐
bourne de Bryn Mawr, e assim estava absolutamente de acordo com as melho‐
res com as mais antigas tradições de seu grupo que Osbourne almoçasse com
Prescott no clube e planejasse complôs contra o judeu. E então Prescott, depois
de pesquisar toda a minha vida, depois de fazer um perfil psicológico detalha‐
do, depois de examinar as informações com as melhores cabeças da Talbott,
Kittredge & Chase, depois de tudo isso, decidira me contratar, sabendo, saben‐
do que eu me venderia. Será que minha fraqueza assim tão palpável? Bem, pelo
menos o canalha se enganara comigo, mas naquele momento, bebericando a
Sea Breeze, observando a bartender bonitinha preparando minha próxima ro‐
dada, naquele momento desejei que ele estivesse certo.
Era o outro lado do comentário sobre cortar a grama que estava me ma‐
tando. Prescott tinha razão. Minha carreira, muito provavelmente, estava aca‐
bada. Beth saltara de um navio que afundava na hora certa. Bem, melhor para
ela. Quero dizer, quem era eu para pensar que seria capaz de levar a termo algo
tão audacioso? Não tinha a energia, a habilidade nem a coragem para fazê-lo.
Escolhera tomar a direção oposta à escolhida por meu pai, e, com a inevitabili‐
dade de uma farsa, aquela escolha me conduziria de volta ao mesmo bangalô
escuro, caindo aos pedaços, em Hollywood, Pensilvânia, ou algum lugar muito
parecido, onde passaria minha vida sentado sozinho numa cadeira desbotada,
vendo TV, cuspindo meus pulmões numa toalha de papel, me amaldiçoando
pelo que poderia ter sido. Eu não era talhado para nobres sacrifícios nem para
o trabalho duro de vencer na vida por esforço próprio. Que os Philip Marlowes
da vida sentassem com a triste satisfação de sua nobreza. Eu não queria ser no‐
bre, queria ser alguém, e, para caras como eu, era uma coisa ou a outra.
A moça pôs os drinques na minha frente e eu sorri para ela. Tomei um
gole do martíni, deixando escapar um suspiro quando acabei.
— Problemas de mulher — disse ela com um sorriso de conhecedora.
— Como sabe?
— Aparece um bocado por aqui.
— Aposto que sim — disse.
Verônica e seu corpo de galgo e sua insaciabilidade. Tomei uma grande
golada de Sea Breeze. Nunca antes havia conhecido alguém como Verônica, ela
me levara a um lugar que eu não sabia que poderia encontrar. O que quisera
dizer quando disse que a amava? O que era a pepita que ainda estava em meu
peito? Nunca sentira por ninguém o que sentia por ela, mas seria amor? Parecia
mais uma sede, uma sede profunda e desesperada. Tomei mais um gole e a sen‐
ti ainda mais forte. Perguntei-me se Tony Baloney poderia estar enganado a
respeito de tudo, se eu não havia chegado às conclusões erradas, mas, mesmo
enquanto deixava minha mente brincar com a ideia, eu sabia que não. As reti‐
radas em dinheiro, a maneira como ficava mais atormentada à medida que a
noite ia passando, o fato de me botar para fora da cama toda noite de maneira
que pudesse cuidar de suas necessidades com privacidade. O cheiro selvagem
engordurado de seu cabelo à medida que ia se descuidando si mesma. Tinha
me contado a metade de sua história, e eu podia imaginar o resto. Adquirira o
vício no Paquistão, se livrara dele na Filadélfia ajudada por Jimmy, se viciara de
novo em algum lugar, e eu tinha bastante certeza de onde. Havia uma fraqueza
em Verônica, uma moleza de caráter onde precisaria haver aço. A gente podia
ver na maneira como bebia, na maneira como trepava. Havia uma necessidade
de abuso que nunca poderia ser satisfeita, não importava o quanto tentasse.
Imaginava que agora ela estivesse lá, em seu apartamento, tentando desespera‐
damente calcular o que fazer. Jimmy, eu tinha certeza, telefonara avisando-a do
que estava acontecendo. Ela esvoaçava pelo apartamento como um pássaro
aprisionado. Mas eu tinha uma coisa para ela, uma coisa que a acalmaria. Só
precisava de mais uns drinques para juntar a coragem para dar a ela.
Duas mulheres entraram, duas mulheres bonitas, de olhos penetrantes,
mulheres com rostos que diziam que se interessavam por política e literatura e
que tinham visto os últimos filmes. Era o que eu precisava, alguém para me
trazer de volta ao mundo, alguém como Beth. Poderíamos ir ao teatro, ao jogo
de beisebol, discutir sobre o presidente, o orçamento e o Oriente Médio. A vi‐
da seria tão fantástica. Verônica não era deste mundo, era de si mesma. Havia
alguma coisa de triste e perdida a respeito dela, alguma coisa desinteressada.
Talvez fosse o acidente nos arredores de Isfahan que ela me contara, a camione‐
te serpenteando pela encosta, a fragilidade da vida sendo esmagada contra o
rosto dela como um travesseiro úmido e malcheiroso. Era o suficiente para le‐
var qualquer um para fora da realidade, e era exatamente o que acontecera com
ela. Mas eu não iria mais segui-la.
Fiz sinal para a bartender e ela colocou mais dois drinques na minha fren‐
te. Estava ficando bêbado e estava gostoso. Uma outra mulher entrou e exami‐
nou o lugar. Era corpulenta, vestia jeans e um blusão de flanela, mas tinha um
belo rabo-de-cavalo. Sempre achei rabo-de-cavalo sexy. Como na época de co‐
légio, bem, não no meu colégio, no colégio de Archie. De rabo-de-cavalo e
com excesso de peso, que mais eu poderia desejar? Faria com que eu criasse raí‐
zes, pensei. Uma tonelada de diversão. Alguém como ela. Deus, eu estava be‐
bendo demais, mas estava tão bom. Que diabo? Era terça-feira, não haveria au‐
diência durante as próximas treze horas, tempo de sobra para preparar meu in‐
terrogatório de Jimmy Moore. Ele deveria ser chamado por sua defesa para de‐
por amanhã, e iria enterrar Concannon. O que eu podia fazer? Gornisht. Isto é
o que era triste a respeito de tudo aquilo. Mesmo eu tendo desistido de tudo
que jamais quisera, não iria ajudar Chester em nada, não faria o nome famoso
que precisava fazer. Clientes não aparecem aos montes para perdedores. Talvez
pudesse ligar para Prescott, dizer a ele que estava arrependido, que faria seu jo‐
go, mas preferia matar aquele canalha a lhe dar uma vitória.
Duas mulheres entraram no bar vestindo jaquetas de couro preto iguais.
Dragonas, o cinto solto, zíper nas mangas. Sim, amarrem-me com estas jaque‐
tas, apertem as mangas em volta de meu peito. Uma era bonita a outra não, eu
não me importava mais. Amarre-me com suas roupas de couro, querida, pren‐
da meus braços e pernas, castigue-me, castigue-me, dance de acordo com a
música, amarre-me, sou seu. Bebi de um trago o martíni que estava diante de
mim. Qual era aquele, o terceiro, o quarto? E por cima vinham as Sea Breezes.
Talvez Verônica estivesse esperando por mim, talvez tivesse telefonado. Hoje
cairia bem, sim. Uns poucos beijos, uns beliscões naqueles magníficos mamilos,
e depois meter dentro dela, seria ótimo.
Uma das jaquetas pretas sentou no balcão do bar ao meu lado. Minha má
sorte se mantinha, não era a bonitinha. Era magra, angulosa, de queixo pontu‐
do, os cabelos cortados numa imitação malfeita de Dorothy Hamill. E o que
era aquilo na maçã de seu rosto, aquela linha fina e branca? Uma cicatriz. Ah,
meu Deus, mas aquilo era sexy. Talvez minha sorte estivesse mudando, uma ra‐
posa vestida de couro com uma cicatriz no rosto.
Ela se apoiou no balcão e me encarou.
— Está gostando da vista?
Uma brecha, pensei. O que eu precisava era lhe dar uma boa resposta.
Meu raciocínio se tornara lento, mas eu podia arrumar uma boa resposta, no
mínimo.
— Está ótima — disse. — Acabou de ficar melhor.
— Bem, isso é bom — disse em tom azedo. — Simplesmente adoramos
oferecer a diversão da noite.
O que é que eu tinha feito agora, me perguntei, não compreendia o que
ela estava dizendo. Talvez estivesse se oferecendo, mas se estivesse era uma pros‐
tituta estranha.
A bartender se aproximou.
Dê o fora, Sharon, já conversamos a respeito disso antes.
Estou cheia desses xeretas — disse Sharon.
Não é por isso que ele está aqui.
— Então me diga, J., o que ele está fazendo aqui?
— Entrou aqui para tomar um drinque. Sei distinguir os que vêm para
olhar.
Então me dei conta. Chegou perto de ficar claro, um pensamento pairan‐
do bem ali, fora do alcance, e então caiu como um raio em cima de mim.
— Desculpe-me — disse. — Achei que era um bar de aficionados por es‐
portes.
— Você tem que trocar o nome — disse Sharon enquanto se afastava de
mim.
— Estava me perguntando onde estariam as televisões — disse.
— Deixe-me oferecer uma rodada por conta da casa — disse JJ.
— Talvez eu deva ir andando.
— Não tem pressa. A Sharon é rabugenta de vez em quando, mas basica‐
mente é uma pessoa legal.
Assim tomei mais uma rodada e no final o lugar estava girando e eu não
conseguia focalizar os olhos em ninguém, de maneira que Sharon estava livre
de mim. O bar encheu rapidamente, afinal era terça-feira à noite, e observei to‐
das elas à medida que iam entrando. Havia mulheres mais jovens e mulheres
mais velhas e umas muito bonitas e outras feias, algumas gordas, outras ainda
mais gordas e mulheres magras.
Havia mulheres de todos os tipos, e por alguma razão, provavelmente os
drinques ou o conhecimento secreto que eu tinha, ou alguma perversão tipica‐
mente masculina abrindo caminho à força para vir à tona, mas por alguma ra‐
zão eu as achava incrivelmente sexy. Queria sair com todas elas, fazer amor com
todas elas, me tornar amigo e confidente de cada uma delas. Estava apaixonado
pelo diabo do bar inteiro, especialmente por J.J., com seu lindo narizinho arre‐
bitado e as sardas. Até Sharon com aquela cicatriz, sim, eu a queria também.
Todas aquelas malditas sapatonas ali dentro, queria tanto que doía. O inferno é
estar rodeado de tudo o que você quer sem nenhuma possibilidade de tê-lo: o
inferno é puro querer sem satisfação. O inferno era estar dentro daquele bar,
apaixonado pelo inatingível. O inferno era a minha vida.
Já bastava de autopiedade; eu tinha coisas que precisava fazer. Desci do
banco e fui me arrastando para o fundo do bar, onde havia um banheiro e um
telefone. Mijei um rio e depois que acabei pesquei uma moeda no bolso e fiz a
chamada. Então deixei uma bela gorjeta para JJ e saí cambaleando daquele pa‐
lácio de negação para a noite molhada e sem lua.
47
Esperei propositalmente nas sombras do prédio de Verônica que uma outra ve‐
lhinha com sacolas de compras aparecesse, mas era tarde demais para isso. O
pequeno pátio estava estranhamente silencioso, o elevador revestido de plásti‐
co, parado. Os drinques começaram a virar em meu estômago, e uma náusea
crescente floresceu em minha garganta. Enquanto ficava ali, concentrado na‐
quele botão que se abria, começou a chover entrei em pânico por um momen‐
to, sem saber o que fazer, e então, enjoado e molhado, entrei rapidamente no
vestíbulo e apertei as campainhas do interfone, apertei todas, menos a dela.
Uma por uma, gritaram comigo pelo interfone. “Pizza”, gritei de volta, numa
série de respostas de sotaque carregado, e finalmente alguém, faminto e com
pepperoni na cabeça, me deixou entrar. Subi de escada até o andar dela e fui
andando cautelosamente pelo carpete fino do corredor. Desta vez a porta estava
meada. Bati com força com os nós dos dedos. Não houve resposta, mas u podia
ver uma luz através do olho mágico. Sabia que ela estava lá, assim continuei ba‐
tendo, batendo com força e por tempo suficiente até minha mão começar a
sangrar. Através do álcool, não sentia exatamente dor, e uma sensação de dor‐
mência que viria a se tornar dor. Continuei batendo até que ela gritou:
— Vá embora.
— Ah, deixe-me entrar, Verônica.
— Não posso.
— Jimmy lhe disse para não me deixar entrar, não foi?
— Está furioso.
— Preciso ver você. Deixe-me entrar, senão vomito aqui mesmo no c cor‐
redor.
— Vomite e vá embora.
— Deixe-me entrar — pedi. — Deixe-me pelo menos explicar.
— Vá embora.
Encostei a cabeça contra a superfície fria da porta e gritei:
— Só quero que me diga uma coisa, só uma coisinha. Diga-me uma coisa
e vou embora.
Ela não respondeu, mas também não me disse para ir embora de novo.
— Só quero que me diga se Bissonette era melhor de cama do que eu.
Não houve nada por um longo momento. Então o clique metálico da
porta sendo destrancada. Quando abri e empurrei, ela já estava se afastando de
mim. Vestia-se de maneira discreta, de jeans e camisa branca, com sapatos pesa‐
dos. Era um estilo diferente para ela, um bom estilo, pensei, enquanto camba‐
leava pelo apartamento, como sempre enfeitiçado pelas mudanças de sua apa‐
rência. Sentou-se no sofá afetadamente, com as pernas enfiadas debaixo do cor‐
po, a cabeça virada para olhar pela janela dos fundos que dava para o estaciona‐
mento. A expressão de seu rosto era tensa, trancada. Fiquei excitado só de olhar
para ela.
Quando me aproximava, tropecei numa mala, de pé não muito distante
da porta. Com o resto de dignidade que pude reunir, me levantei do chão. Ela
estava fazendo questão de não olhar para mim. Agarrei a alça da mala e a levan‐
tei; estava feita, mas leve, uma mala feita para um fim de semana na praia.
— Para onde você vai?
— Alguma sugestão?
— Ouvi dizer que Cleveland é muito bonita nesta época do ano.
Ela quis sorrir mas se controlou. Fui até o sofá e fiquei de pé junto dela,
balançando um pouco, minha capa pingando lágrimas, e então me abaixei pe‐
sadamente nos calcanhares e me reclinei para trás, tentando parecer natural, es‐
parramado ali no chão. A sala estava girando à minha volta, mas ela não, ela es‐
tava em foco perfeito e de tirar o fôlego.
— Então, como foi com Bissonette?
— Como soube de Zack? — perguntou calmamente.
— A polícia encontrou o livrinho preto dele — respondi. Ela estava lá,
sob o nome de Ronnie, mais nada, sem sobrenome, sem endereço, sem telefo‐
ne, só Ronnie e cinco estrelas.
— Ele se orgulhava tanto daquele livro, era como um garotinho mostran‐
do figurinhas.
— Fale-me dele.
— Se era melhor do que você? Seja um pouco diferente, Victor. Este é o
seu problema. Você é tão comum. Quer as mesmas coisas que todo mundo e
tem as mesmas pequenas preocupações. Será que sou grande o bastante, será
que minha garota é bonita, será que ganho dinheiro suficiente. Você não tem
um único traço original no corpo inteiro.
— Parecem todos bastante originais para mim — respondi. Normalmen‐
te teria ficado furioso com ela, só que aquela náusea tem a tendência de acabar
com qualquer espírito conflituoso. Assim, em vez de dar uma resposta malcria‐
da e espirituosa, fechei os olhos e me deitei no chão. Aquele porre estava ruim.
Eu ia vomitar. Queria acabar com aquilo antes de vomitar. Não queria vomitar
diante dela, não queria ficar vulnerável diante dela, ajoelhado junto da privada,
vomitando incontrolavelmente enquanto ela se apoiava na soleira da porta,
achando graça.
— Então você conheceu Bissonette no clube — disse, com os olhos ainda
fechados. — Era muito atraente, e você decidiu dar uma volta com ele.
— Estava entediada — disse. — Zack parecia ser diferente, com aquele
rabo-de-cavalo, as roupas chiques. E tinha sido um grande jogador. Achei que
poderia haver alguma coisa nisso, mas ele tinha ficado chato também, como to‐
do mundo. Acontece com qualquer pessoa que passe tempo demais na Filadél‐
fia.
Abri um olho e foi como se estivesse num carrossel, assim tornei a fechar.
— Você o deixou?
— Tivemos um caso durante algum tempo, então lhe disse que estava
acabado. Ele não gostou disso.
— Sei como se sentiu. Estava apaixonado.
— É, ficou caído por mim, mas só depois que o mandei andar. Antes dis‐
so achava que estava me fazendo favor. É assim que se desperta paixão nos ho‐
mens, aprendi. É só largá-los. Mas ele não quis aceitar. Agia como se tudo de‐
pendesse da vontade dele, e, se me quisesse muito, poderia me ter.
— E imagino que a quisesse muito.
— Telefonava incessantemente. Mandava cartas, flores, cartões, como se
isso pudesse resolver. Uma garrafa de champanhe entregue por um palhaço ves‐
tido de gorila. Era um verdadeiro sedutor. Mas uma noite, Jimmy estava fora
da cidade com a mulher; numa crise de tédio absoluto, telefonei para ele.
— A última dança.
— Bem, foi fácil, sabe. Só tirar o telefone do gancho, como pedir comida
chinesa. Você está suando, Victor.
— Está calor aqui.
— Não, não está. Você parece um fantasma suando. Andou bebendo
aqueles seus drinques açucarados?
— E aqueles seus de vodca.
— Juntos? Ah, você vai passar mal mesmo.
— Ainda não — disse, embora soubesse que não demoraria muito.
— E nesta última noite foi quando ele apresentou a cocaína?
— Victor, que detetivezinho!
— Estou certo?
— Sim, Victor, está certo. Você tem essa antena que homens comuns têm
com outros homens comuns. Consegue perceber suas táticas. Foi quando ele
me trouxe um presentinho.
— E ele a convenceu a cheirar.
— Meu Deus, não. Ele fez jogo duro, e eu quase o estuprei para pôr as
mãos no pó. Um lindo vidrinho com uma pedra perfeita.
— E o seu programa de doze passos?
— Doze passos para a mediocridade. Era muito chato viver sem, muito
triste. Não me dava conta do que estava faltando até que ele mostrou aquele vi‐
drinho a distância. Então me lembrei.
— Mas funcionou como Bissonette queria. Você ficou com ele.
— Você não compreende. Nem ele compreendia. Eu não estava mais com
ele, estava com a droga. Ele era apenas o chato que a trazia.
— Como foi que Jimmy descobriu?
— Não demorou muito para que o que Zack trazia não ser mais suficien‐
te. Então comecei a comprar de Norvel novamente.
— E Jimmy descobriu.
— Sim. Henry ainda é ligado a Norvel, não compreendo de que maneira,
mas foi assim que Henry descobriu e contou a Jimmy.
— E Jimmy pirou.
— Ele tem uma cisma com drogas — disse ela calmamente. Mas que
mais do que apenas uma cisma com drogas, eu sabia. Era a história SE repetin‐
do. Se tivesse acontecido com alguma outra pessoa, Jimmy Moore talvez tivesse
podido se controlar, mas não com sua filha substituta, Verônica. Ele salvara sua
vida, a deixara de cara limpa, e agora ver acontecer tudo de novo, como acon‐
tecera com Nadine, ser ameaçado de perder a filha mais uma vez era demais pa‐
ra suportar, mesmo não sendo sua filha, mesmo sendo apenas a carinha bonita
que tomara o lugar da filha. A raiva que ele sentira viera de um lugar profundo
e primitivo em seu íntimo, e não era possível aplacá-la com palavras, controlá-
la com a razão, satisfazê-la com nada a não ser sangue.
— E então ele matou Bissonette — disse.
— Eu não sabia o que ele ia fazer. Apareceu aqui furioso e contei a ele.
— Quem o trouxe aqui?
— Não sei. Apareceu aqui sozinho e contei a ele. Mas não sabia o que ele
ia fazer.
— Você sabia.
— Sabia que ele ia fazer alguma coisa.
— Você sabia. Merda. — Lutei para me levantar do chão e sentar e senti
meu estômago afundar como se estivesse caindo num poço. — E a série de de‐
pósitos feitos em sua conta? — perguntei, tentando lutar contra a náusea.
— Jimmy me dizia o que fazer. Só fiz o que Jimmy mandou.
— Onde o dinheiro foi parar?
— Não sei.
— Está mentindo.
— Não sei.
Meu estômago em queda livre atingiu o fundo com um espasmo.
— Ah, meu Deus — arquejei. — Tenho que ir.
Levantei-me cambaleando e estendi a mão para me apoiar; não consegui
segurar o braço do sofá, bati com a cabeça na mesinha lateral e caí de joelhos.
Já havia subido, estava na minha boca, mas segurei ali, os dentes cerrados e a
mão direita, enquanto lutei de novo para me levantar e corri, dobrado como
um corcunda, até a escada, subindo os dois lances até chegar ao banheiro.
Saiu numa série de espasmos involuntários e barulhentos de vômito que
deixaram minha barriga com câimbras, a garganta ardendo e a saliva escorren‐
do da boca em longos fios. Cada jorro de vômito parecia que vinha de um lu‐
gar mais fundo dentro de mim, até começar a doer como se pedaços de meu
pulmão e de minhas entranhas estivessem sendo expelidos junto com o álcool.
A latrina estava violeta por causa dos drinques, e a cor e o cheiro eram violen‐
tos, minha cabeça pairava pouco acima daquela podridão, enquanto eu espera‐
va pelo próximo jorro. Ainda estava de capa de chuva, o terno úmido de um
suor febril. Num breve momento de paz, virei a cabeça e a vi ali, apoiada con‐
tra a soleira da porta, exatamente como eu havia imaginado, exceto pelo rosto,
que não estava satisfeito, e sim triste e preocupado. Involuntariamente virei de
volta para o vaso quando os espasmos de vômito começaram de novo. Quando
tornei a me virar, ela se fora.
Depois que passou, me levantei e me senti imediatamente aliviado, leve e
esperto. Não estava mais suando, a sala não estava mais girando, mas ainda ha‐
via álcool suficiente em mim para que sentisse o atrevimento de um pilequi‐
nho. Lavei o rosto com água fria e sabonete e depois abri o armário de remédi‐
os. Estava cheio de cosméticos arrumados ao acaso, pequenas caixinhas verme‐
lhas de remédios e Band-Aids, Band-Aids demais. Tirei um pente grosso de
plástico e passei no cabelo, usei sua escova de dentes para escovar meus dentes,
bochechei com Scope. Quando eu desci ela estava vestindo um sobretudo.
— Aonde você vai?
— Embora. Para mim aqui acabou.
— Por causa do que fiz hoje no tribunal?
— Não, mas foi o sinal para ir.
— Por que não fica, vai procurar ajuda?
— Não preciso de ajuda — disse ela.
— Você é uma viciada em drogas, Verônica. Precisa de ajuda. Precisa se
internar.
— Vou para casa.
— lowa? — perguntei.
— Talvez.
— Precisa de mais do que um veterinário.
— Adeus, Victor.
— Ele vai deixar Chester levar a culpa pelo que ele fez.
— Eu sei — disse ela. — É uma pena, Chet sempre foi um amor comigo.
Dormimos juntos uma vez, eu lhe contei? Na noite em que disse que era apai‐
xonado por mim, deixei.
Tentei não pensar naquilo, não imaginar.
— Você poderia salvá-lo — pressionei. — Poderia testemunhar, contar o
que aconteceu.
— Não, não posso, Victor. Você sabe que não posso fazer nada contra
Jimmy.
— Ele não salvou você, Verônica. Olhe para si mesma.
— Mas o que ele fez por mim, você não vê? De todos vocês, Zack, você,
Norvel e Chet, de todos vocês, só Jimmy me amou. Não vou trair isso.
— Eu amo você.
— Você gosta de sexo — disse ela asperamente.
— É mais do que isso.
— É mesmo, Victor? Pense com atenção. Desde o princípio menti para
você. Nunca passei uma noite inteira com você, nunca tomamos o café da ma‐
nhã juntos, o primeiro café da manhã, o primeiro cigarro. Você não conhece
nada a respeito de mim, Victor. Então o que você poderia .miar em mim a não
ser o sexo?
— Não é assim fácil de calcular, não é como um livro de contabilidade.
— Ah, sim, é — disse ela. — Exatamente como você me disse na primei‐
ra noite em que nos vimos.
— Você não pode saber o que sinto.
— Não creio que tampouco você saiba.
Houve uma pausa e comecei a pensar no que ela estava dizendo, e não pa‐
rei, porque não queria pensar naquilo, não queria analisar aquilo.
— Você é a única que pode impedir que Chester perca a liberdade disse.
— Impedir que perca a vida por uma coisa que não fez. Tem o dever de salvá-
lo.
— Não, Victor. Você é advogado dele. Salve-o você. — Olhou para mim
com os olhos cheios d’água, e uma lágrima rolou, descendo-lhe o rosto. — Por
favor.
Não sabia dizer se estava me pedindo que salvasse Chester ou me pedindo
para salvá-la, mas realmente não importava. Inclinei-me para a frente e limpei
uma das lágrimas com os lábios, e então a beijei e seus lábios se abriram e meus
lábios se abriram e senti sua língua mais uma vez e a eletricidade e o desejo e a
sede insaciável. Levantei uma das mãos até seus cabelos e a agarrei e a beijei de
novo e ela me beijou de volta e desejei desesperadamente que pudesse ter sido
diferente. Ela suspirou em minha boca. Esfreguei a mão em seus cabelos e a
beijei de novo.
— Pelo menos você escovou os dentes — disse ela.
Sorri e a beijei mais uma vez, e minha mão desceu de seus cabelos para
suas costas até aquela pequena curva na base da espinha e a apertei ali contra
mim e os braços dela se jogaram em volta de meu pescoço e nos apertamos um
contra o outro e o álcool em meu sangue se consumiu com aquele beijo. E
quando ela me puxou mais para junto de si, se dissolvendo contra os contornos
de meu corpo, soube o que tinha de fazer. Com a mão livre, procurei o bolso
da capa e puxei o envelope.
— Isto é para você — disse.
Ela me deu um olhar curioso e depois abriu o envelope com a animação
de uma garotinha abrindo um cartão do namorado. Mas não era um cartão de
Dia dos Namorados.
Dentro havia uma folha de papel com letras góticas maiúsculas no cabe‐
çalho dizendo “A Corte Distrital dos Estados Unidos do Distrito Leste da Pen‐
silvânia” e intimando a citada, Verônica Ashland, residente à rua Church, na
cidade de Filadélfia, Condado de Filadélfia, estado da Pensilvânia, a compare‐
cer à Corte distrital dos Estados Unidos na data especificada, às dez horas da
manhã, como testemunha de defesa do réu Chester Concannon no julgamento
Estados Unidos vs. Moore e Concanon O documento estava assinado por um
oficial de justiça e vinha acompanhado de um cheque de trinta e seis dólares,
que incluía o pagamento pelo testemunho e o reembolso pela caminhada de
quatro quarteirões de seu apartamento até o tribunal.
— Seu canalha! — disse ela quando se deu conta do que era. — Você me
intimou para comparecer em juízo.
— Sim, intimei.
— Como pôde? Como ousou fazer isso?
— Você me disse que deveria salvar o rabo de Chet. É exatamente o que
vou fazer.
— Eu não vou. Não vou.
— Se você não for, querida, vai acabar na cadeia.
— Vá se foder.
Tornei a me inclinar para beijá-la no rosto, mas ela se afastou de mim co‐
mo se eu estivesse prestes a arrancar-lhe a carne com os dentes. Assim, em vez
de beijá-la, dei-lhe um tapinha no braço e saí do apartamento pela última vez.
Pela enorme vidraça do elevador, enquanto ia descendo lentamente, podia
ver a praça vazia e a rua de pedras redondas mais além. Ainda estava chovendo
a cântaros. Pela cidade, velhos entorpecidos por álcool e vida demais roncavam.
Levantei o colarinho da capa e saí correndo pela praça. Quando cheguei à rua,
olhei primeiro para a direita, depois para a esquerda. Vi o carro, um velho
Honda Accord cinza, um pouco mais abaixo na rua, estacionado defronte a
uma cafeteria. Corri para o carro. A porta se abriu e entrei.
— Um guarda-chuva, Victor — disse Sheldon Kapustin. — É uma in‐
venção relativamente nova, mas muito útil em noites como a de hoje.
— Onde está Morris?
— Meu pai não passa uma noite inteira numa tocaia desde o assalto à joa‐
lheria de Roselnbluth, em setenta e oito. Alguma vez já lhe falou disso?
— Não.
— Ele falará. É sua história favorita.
— Ela está lá dentro. É bonita, de cabelos castanhos na altura do ombro,
cerca de um metro e sessenta e dois, magra. Está vestindo um sobretudo azul-
marinho. Vai estar carregando uma mala. Não é uma mala grande e pratica‐
mente não botou maquilagem, de maneira que não creio que estejam indo lon‐
ge.
— Tem saída pelos fundos?
— Só uma saída de emergência com alarme. Não, se ela sair vai ser por
aqui. Só quero saber aonde ela vai. Se a vir se preparando para embarcar num
trem ou num avião, segure-a e me avise imediatamente. Arranjarei um policial
federal para cuidar dela.
— Tudo bem.
— E aquele negócio de Corpus Christi?
— Pois é, Victor, o número que peguei é de um telefone público junto a
uma marina. Mandamos uma fotografia para uma pessoa de confiança checar.
— Dê notícias.
Ele balançou a cabeça.
— Quer uma carona para casa?
— Vou arranjar um táxi — respondi. — Fique de olho nela.
— Se for bonita como você diz, Victor, não será problema.
A chuva caía por dentro do colarinho e me descia pelas costas enquanto
eu andava pela rua Market procurando um táxi. Quando finalmente encontrei
um, já estava tão molhado que não importava mais. Sentei no banco de trás, a
água da chuva fazendo poças no assento de vinil, e reclinei a cabeça. Queria
dormir, era isso que eu queria fazer. Estava cansado, cansado demais até para
levantar a cabeça. Pensei em tirar aquelas roupas encharcadas, me enfiar num
chuveiro quente e cair no travesseiro e dormir. Mas não tinha tempo. O que ti‐
nha que fazer era tirar as roupas, tomar um banho frio e passar a noite estudan‐
do minhas anotações, meus livros de direito e me preparando para devastar o
depoimento inevitavelmente auto-indulgente de James Douglas Moore.
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Grandes manchetes na manhã seguinte. A polícia fora alertada por uma cha‐
mada misteriosa para o 911 e o encontrara caído sob a chuva, com a garganta
cortada. A declaração oficial era de que Charles Lamb, 43, solteiro, natural do
nordeste da Filadélfia, assessor de imprensa do vereador municipal Jimmy Mo‐
ore, fora encontrado assassinado na Washington Square. Nenhum motivo para
o assassinato era conhecido e não havia suspeitos. Seu único parente vivo era
sua mãe, Connie Lamb, residente na Clínica Geriátrica São Vicente. O funeral
estava marcado para quinta-feira à tarde na Funerária Galzerano, avenida Tor‐
resdale. Esta era a declaração oficial, mas havia boatos de encontros noturnos
em lugares públicos com rapazes, e um editorial no Daily News sugeria que o
quiosque da polícia na praça tivesse guardas de serviço durante a noite para ga‐
rantir que a Washington Square não se tomasse mais um local para encontros
duvidosos, como acontecera com tantas praças e parques públicos na cidade.
Chester estava mudo de dor, seu sofrimento marcado apenas pela verme‐
lhidão dos olhos e os lábios cerrados. Disse-lhe que sentia muito e ele me afas‐
tou com um dar de ombros, mas podia ver que estava sofrendo. Não sabia que
eram tão amigos. Jimmy escolheu verbalizar seus sentimentos, dizendo à im‐
prensa que membro valioso de sua equipe Chuckie havia sido.
— Este crime — disse na escadaria do tribunal, o início do discurso pro‐
gramado com precisão para ser capturado ao vivo pelas câmeras de televisão—
só veio aumentar minha determinação para continuar minha cruzada. Já viven‐
ciei muitas tragédias em minha vida, e esta é uma a mais. Mas quem quer que
pense que pode me afastar de minha causa, quem quer que pense que pode de‐
ter meu progresso, quem quer que pense que pode me ameaçar, usar violência
ou matar minha obra está profundamente enganado. Nós prosseguiremos, con‐
tinuaremos lutando, os mercadores da morte serão derrotados e nós seremos vi‐
toriosos e aqueles, como Chuckie Lamb, que foram martirizados no combate
serão para sempre lembrados como heróis.
Jimmy Moore, calculei, não perdera tempo em tratar de encontrar um
outro escritor de discursos.
Chuckie Lamb não havia sido indiciado nem fazia parte da lista das teste‐
munhas arroladas pelos dois lados, de maneira que seu assassinato não teve im‐
pacto real sobre o julgamento. O juiz Gimbel sugeriu, à luz da morte de al‐
guém tão próximo do vereador, que adiássemos o julgamento até o dia seguin‐
te, e Eggert concordou imediatamente, mas Jimmy Moore levantou-se no tri‐
bunal e disse que estava pronto para depor naquele mesmo dia.
— O senhor quer depor hoje? — perguntou o juiz.
— Sim, senhor — disse Jimmy Moore. — O Sr. Lamb teria querido que
o julgamento continuasse de maneira que eu pudesse acabar logo com esta his‐
tória falsa o mais rápido possível e dirigir toda a minha atenção mais uma vez
para os interesses do povo.
— Está bem, vereador Moore — disse o juiz.
E assim o júri foi convidado a entrar e Prescott se levantou.
— A defesa chama o vereador James Douglas Moore para depor — disse.
Jimmy Moore não passara uma carreira inteira instigando eleitores e fa‐
zendo discursos políticos de improviso sem saber alguma coisa sobre a maneira
de influenciar uma plateia, fosse ela de mil eleitores num comício em véspera
de dia de eleição ou de doze jurados e dois substitutos com o futuro nas mãos.
Eu sabia qual seria sua história, que era a vítima Involuntária dos diabólicos
planos de extorsão de Chester Concannon, e esta foi a história que contou, mas
a maneira como contou foi uma outra coisa. Não foi o réu triste e humilhado,
não foi o homem humilde declarando sua inocência, não foi calmo e reservado,
confiante em deixar seu destino nas mãos de um júri de seus pares. Em vez dis‐
so, foi um homem furioso que havia sido traído por seu assistente, vitimizado
por seu governo, submetido a uma vendeta política e forçado a defender o que
não precisava de defesa. Eu teria pensado antes de seu depoimento que uma tal
postura inspiraria inimigos e desviaria a simpatia dos jurados, mas estaria erra‐
do. Estava claramente combinando muito bem com o caldo que era a bancada
do júri.
Sob o delicado interrogatório de Prescott, Moore detalhou sua defesa em
frases claras e furiosas. Não, não havia extorquido dinheiro ilegalmente de Mi‐
chael Ruffing. Sim, dera uma ajuda ao plano de desenvolvimento de Ruffing
na Câmara Municipal porque era um bom plano e sim, contara com contribui‐
ções de campanha por essa ajuda, mas esta era a maneira como o mundo funci‐
onava na política. “É o sistema americano”, disse Jimmy Moore, “e Deus aben‐
çoe o sistema americano. Deus abençoe a América.” Não, não tivera conheci‐
mento dos $250.000 dados a Concannon em dinheiro, e se soubesse teria proi‐
bido. Não, não havia conversado com Ruffing a respeito de dinheiro, não era
do seu estilo, teria aceitado qualquer contribuição que Ruffing quisesse dar e
achara os cinco cheques de cinquenta e cinco mil dólares, que de fato o CUF
recebera uma contribuição extremamente generosa. Sim, ficara zangado quan‐
do Ruffing lhe dissera que iria interromper os pagamentos, cheirava a traição.
“Estávamos lutando por algo lado a lado”, declarou. “Ruffing sabia que eu esta‐
va contando com ele para me ajudar a manter em andamento os programas de
cura.” Mas não, é claro que não tinha matado Zack Bissonette. Já angariara
mais de dois milhões de dólares para se candidatar a um cargo mais importan‐
te, por que arriscaria tudo por uns poucos milhares aqui ou ali? Não, não in‐
cendiara o Bissonettes, era uma de suas casas noturnas favoritas. Sim, tinha um
estilo de vida extravagante, e por que não? Sua esposa tinha dinheiro, ele tinha
renda de outros investimentos, por que não viver com luxo se podia pagar?
— Se a acusação quiser me indiciar por beber champanhe e ter uma limu‐
sine, tudo bem, pode me indiciar por isso e vamos me julgar com base nisso.
Mas não com base nas acusações forjadas que estão lançando contra mim aqui.
Não com base nenhuma a não ser uma vingança política.
Contou a eles sobre Verônica numa voz contida, cheia de vergonha. Sim,
o nome dela era Verônica Ashland. Era uma estudante universitária viciada em
crack. Ele a tirara de uma casa de crack que havia estourado em Filadélfia Oci‐
dental e a levara pessoalmente para um centro de reabilitação de drogados. De‐
pois de salvar-lhe a vida, sentira alguma responsabilidade para com ela e visita‐
ra o centro de tratamento. Ela estava melhorando, aprendendo a viver sem dro‐
gas, e florescera entre eles uma amizade que se tornara algo mais. Ele sentia
muito pelo sofrimento que causara à sua esposa, à sua família, acontecera e sen‐
tia muito e agora estava tudo acabado.
— Mas estou sinceramente magoado — disse — com meu cínico asses‐
sor, que quis usar minha dolorosa relação com essa pobre moça contra mim.
Evidentemente, Jimmy reservou seu pior veneno para Chet Concannon.
Um patife mentiroso e ingrato, disse. Chet era um joão-ninguém quando
Jimmy o achara, um fritador de bife que sonhava em entrar para a política. De‐
ra um trabalho a Chet como interno e o promovera de acordo com a hierar‐
quia até que se tornasse seu principal assessor. Confiara em Chet Concannon,
amara Chet Concannon, e no final Chet Concannon o traíra. Chet era um la‐
drão, um mentiroso, vendera o bom nome de Moore por um quarto de milhão
de dólares. Pelo que Jimmy sabia, Chet era um assassino, autor de um incêndio
criminoso, não sabia exatamente o que Chet fizera para manter sua armação de
pé, mas a dolorosa lição que havia tomado era que Chet Concannon era capaz
de quase qualquer horror para alcançar seus fins interesseiros.
— Outro dia mesmo, aqui neste tribunal — disse Jimmy —, Concannon
me agrediu fisicamente. Ele está tentando me arruinar. Ele é o meu Brutus,
planejando a minha queda. É o meu Judas.
Quando terminou o interrogatório direto, houve um silêncio emocionado
no tribunal. Prescott ficou parado no pódio, os olhos baixos, deixando o silên‐
cio pairar e se intensificar. Olhei para o júri, e estavam divididos. Metade olha‐
va para Jimmy com simpatia, afeição e admiração. A outra metade olhava fixo
para Chester Concannon com violento desprezo. Quando o silêncio já se man‐
tivera tempo suficiente para obter efeito máximo, Prescott sorriu para Jimmy
como se sorri para um amigo e disse:
— Não temos mais perguntas.
— Sr. Carl — disse o juiz —, o senhor quer interrogá-lo? — Ele lançou-
me um olhar penetrante por sobre os óculos, esperando uma resposta.
Ainda não tinha me recuperado da visão de Chuckie Lamb morrendo em
meus braços, ainda não conseguira apagar o assombro que aquilo me causara, a
sensação de terror, a torrente avassaladora de medo que se apossara de mim.
Aquele homem que estivera vivo apenas alguns minutos antes agora estava
morto, sua vida escorrera pelo corte em sua garganta, passando por meus sapa‐
tos, para dentro da terra encharcada, sob o Túmulo do Soldado Desconhecido
da Revolução Americana. Ter visto aquilo era algo que carregaria comigo pelo
resto de meus dias. Cheguei em casa da praça depois de ter dirigido horas sem
rumo para encontrar Beth dormindo no sofá. O que fiz foi tirar a roupa e en‐
fiá-la na máquina de lavar, capa e tênis inclusive, e lavei tudo com três xícaras
de detergente, e fiquei debaixo do chuveiro até a água esfriar. E depois dormi,
ou tentei dormir, acordando trêmulo a cada vez que sonhava com Chuckie
com a barba que não era barba. Ainda não tinha tido o tempo de que precisava
para lidar com meu primeiro encontro com um homem morto.
Mas de uma coisa eu sabia. Chuckie Lamb não fora morto por um jovem
prostituto disposto a assaltar seu cliente, como os jornais haviam insinuado, e
Chuckie Lamb não fora morto por um traficante de drogas disposto a intimi‐
dar o vereador, como Jimmy Moore dissera. Não senhor. Ele fora morto por‐
que ia me contar tudo que sabia a respeito do vereador e do dinheiro desapare‐
cido. Fora morto por Jimmy Moore, que matara Bissonette antes dele e que
mataria outros se fosse necessário, Jimmy Moore, que mentira para Chester,
para mim, que mentira sob juramento no tribunal, Jimmy Moore com sua hi‐
pocrisia barata e pau de elefante, Jimmy Moore. Ele o fizera, droga, e eu o faria
pagar, eu faria, eu o faria sofrer, faria. Se não conseguisse mais nada na vida, o
que conseguiria seria fazer Jimmy Moore sofrer.
Ele continuava sentado ali no banco, com o peito inchado, os olhos duros
de determinação; ficou sentado ali esperando por mim. Bem, ele me teria, com
certeza.
— Sr. Carl — disse o juiz Gimbel. — O senhor quer ou não interrogar
esta testemunha?
— Ah, eu quero, Meritíssimo — respondi, me levantando e andando
com grande determinação até o pódio. Encarei Jimmy Moore e ele me encarou
de volta, e por um momento ficamos presos numa violenta torrente de antago‐
nismo. E então eu vi, vi o que estivera procurando, o que estivera esperando
ver: medo. Ele sabia o que estava enfrentando, Jimmy Moore sabia. O canalha
sabia o que eu sabia, sabia o que eu sentia, e tinha razão para ter medo.
Bati no pódio levemente com meu punho uma vez, depois outra. E então
comecei.
50
Depois que acabou, depois de toda a gritaria, depois de todas as objeções acei‐
tas, depois de todas as mentiras e das perguntas repetidas com ênfase e das
mentiras repetidas, depois de todos os socos no pódio e das advertências do juiz
e dos pedidos de citação por desacato à Corte por parte de Prescott e de Eggert,
depois de todas as confabulações junto à bancada do juiz, depois de todas as
perguntas portentosas feitas e retiradas antes que uma resposta pudesse ser da‐
da, depois de toda a gritaria, voltei para o meu apartamento e fiquei abraçando
meu peito enquanto deitava enroscado no sofá, ainda de sapatos, com a cabeça
no colo de Beth, enquanto ela acariciava meu couro cabeludo e me jurava que
não, não, não tinha sido assim tão mau.
— Ah, mas foi sim — afirmei, e tinha sido sim.
Eu atacara a história de Jimmy como um touro, com meus chifres apon‐
tados direto para seu coração, mas quando levantara a cabeça me dera conta de
que minha arremetida passara por ele e que ele ainda estava sentado naquele
banco de testemunhas, calmo, suave, esperando para se desviar do meu próxi‐
mo ataque com sua capa de mentiras. Ele era o matador, controlando-me com
seu compasso, com suas respostas, e me fez de tolo mais de uma vez durante o
interrogatório.
— Você fez tudo o que pôde — disse Beth.
— Ele me comeu de almoço e cuspiu fora os ossos.
— Agora você está com pena de si mesmo — disse ela.
— O canalha estava mentindo, Beth. Tudo o que eu queria era mostrar
que ele é um mentiroso.
— Isso não é uma coisa muito fácil de fazer com um mentiroso profissio‐
nal. Você não conseguiu arrancar dele tudo que queria, mas arrancou o que
precisava.
— Você acha? — perguntei.
— Acho.
— Bem, talvez — disse, e talvez tivesse, pois nunca, nem por um instan‐
te, havia pensado que poderia vencer o caso com base apenas no testemunho
de Jimmy Moore. Minha ideia era de que a verdade salvaria Chester Concan‐
non, uma ideia antiquada numa era em que a ofuscação e a invenção veloz são
a chave do sucesso em todos os domínios, mas aí estava, e eu nunca poderia ter
esperado que nada próximo da verdade saísse dos lábios de Jimmy Moore.
Não, o máximo que eu poderia ter esperado de Jimmy Moore era criar um pe‐
destal sobre o qual a verdade pudesse mais tarde ficar, e aquilo era o que talvez
tivesse conseguido fazer.
Eu lhe fizera perguntas a respeito da filha, e ele contara mais uma vez co‐
mo ela havia morrido. Perguntara-lhe sobre a torrente de emoções que o domi‐
nara depois de sua morte e, habituado como era a expor seus sentimentos mais
íntimos quando podiam favorecê-lo ao máximo, ele falou do sofrimento, da
agonia, da raiva. E de tudo aquilo, perguntara- lhe, não havia crescido um ódio
por aqueles que vendiam drogas a crianças, vereador?
— São assassinos, matadores de crianças.
— E o senhor odeia a todos, com toda a força de sua poderosa paixão.
— Exatamente, Sr. Carl.
— O senhor redirecionou sua vida dedicando-a à luta contra esse flagelo.
— Correto. São assassinos e devem ser destruídos, cada um deles, todos
eles.
— Não importam os meios, não importam os custos?
— Tem que ser derrotados.
— Por que mataram sua filha?
— Sim, e milhares de outros como ela.
— E cuidará para que todos eles sejam mortos?
— Esta é a minha missão.
— Sozinho?
— Se for necessário.
— A vingança será minha, declarou o vereador, é isso? — Eu havia per‐
guntado, esperando não uma resposta, mas uma objeção, que foi exatamente o
que obtive, acatada pelo juiz.
— Achei que aquilo foi um belo toque — disse Beth, enquanto acariciava
minha cabeça. Sempre que minha mente voltava àqueles momentos no tribu‐
nal, eu podia sentir a adrenalina entrar em ação e começava a tremer. Era o to‐
que tranquilizador de suas mãos que me acalmava mais uma vez, trazendo-me
de volta ao relaxamento do acampamento à noite, depois que o dia de batalha
estava encerrado. — Citar a Bíblia foi bem tipo Darrow — disse ela.
— Nada os enfurece mais do que um judeu lançando o Novo Testamento
na cara deles.
— Não foi a única vez em que o deixou furioso.
— Achei que ele ficou bastante calmo o tempo todo — disse.
— Não, Victor. Ele não gostou especialmente quando você começou a fa‐
lar de sua amante.
— Quem gostaria? — perguntei.
Não houvera muito que eu pudesse fazer exceto apertar seus botões e ver
quais o faziam explodir. As erupções não tinham sido feéricas como eu espera‐
va, mas tinham ocorrido, e o júri vira a fúria que ardia dentro dele. Como
quando eu perguntara sobre sua vida extravagante, indo de boate em boate, seu
gosto pelos melhores e mais caros champanhes.
— A vida deve ser vivida, Sr. Carl.
— E o senhor tem uma limusine particular e um motorista?
— Principalmente para minha proteção.
— E sustenta uma amante?
— Ela se sustentava, mas sim, houve certas despesas envolvidas. Mas este
foi o menor custo desse caso trágico. O menor.
— E tudo isso exigiu dinheiro?
— Sim. Mas eu trabalho.
— Um vereador municipal não ganha o suficiente para nadar em cham‐
panhe numa limusine, ganha?
— Fico satisfeito por ter trazido isso à baila, Sr. Carl. Não, não ganha‐
mos. E, de qualquer forma, doou a maior parte do meu salário para caridade.
Mas estive no mundo dos negócios antes de entrar para a política, e vendi mi‐
nha companhia por uma quantia substancial. E nos últimos anos meus investi‐
mentos pessoais foram muito bem-sucedidos.
— Quem controla o dinheiro em sua família?
— Minha esposa, Leslie.
— E assim, para financiar sua noitadas com sua amante, pediu dinheiro à
sua esposa?
— Temos contas conjuntas.
— E ela nunca lhe fez perguntas sobre seus gastos?
— Ela confia em mim, Sr. Carl.
— Como gostaria que o júri confiasse, correto?
As gargalhadas vindas da bancada do júri foram resposta suficiente, e o
vereador ficara vermelho de raiva.
— Isso foi uma coisa que descobri — disse a Beth, enquanto estávamos
naquele sofá, repassando o dia, tentando encontrar as poucas vitórias que po‐
díamos descobrir em meio ao desastre que fora meu interrogatório. — Réus
não gostam quando o júri ri deles.
— Ele também não gostou quando você perguntou sobre as doações anô‐
nimas em dinheiro para os centros de jovens — disse Beth.
— Não esperava que gostasse — disse. — Mas, apesar de todo o estarda‐
lhaço, não ajudou muito.
Aquelas perguntas tinham vindo do envelope que eu tirara de Chuckie
Lamb depois de sua morte. Eu esperava por revelações, uma litania de respos‐
tas, uma solução para os quebra-cabeças que vinham me infernizando, mas em
vez disso o que obtive foram números. Uma relação mensal das doações feitas
aos Centros de Jovens Nadine Moore, demonstrando que receita de doações
em dinheiro vinham crescendo regularmente. Mas mesmo o aumento regular
das doações não explicava o salto que ocorrera cerca de cinco meses atrás mais
ou menos, cinquenta mil dólares a mais em doações em dinheiro injetados nos
projetos. Cinquenta mil dólares sem qualquer indicação da origem. Assim, per‐
guntei a ele.
— De cidadãos interessados — respondeu o vereador.
Perguntei-lhe sobre o salto na quantia de doações em dinheiro, e ele ficou
vermelho por um momento e depois se acalmou.
— Temos pedido fundos à comunidade — disse. — E esses esforços fi‐
nalmente deram frutos.
Perguntei-lhe por que os fundos adicionais eram em dinheiro vivo, por
que dados anonimamente.
— Não perguntamos quem dá ou por que dá; recebemos o dinheiro e tra‐
balhamos em nossas curas, e isso está fazendo uma diferença.
Para cada pergunta que eu lhe fazia ele tinha uma resposta, e o juiz se re‐
cusou a permitir que o júri examinasse um pedaço de papel que saíra de lugar
nenhum e não significava nada. E assim, quando não havia mais perguntas a
fazer, eu segui adiante, sem ter conseguido descobrir o que os números deveri‐
am demonstrar. Sem a explicação de Chuckie eles eram inúteis, e Jimmy Moo‐
re se assegurara de que Chuckie não estivesse ali para dar sua explicação.
— Você não comentou com ninguém que eu tinha ido me encontrar com
Chuckie na noite passada, comentou? — perguntei a Beth.
— Claro que não — disse ela.
— Ninguém deve saber — declarei.
— Por que não contar a Slocum o que aconteceu?
— Chuckie estava morto quando cheguei lá — menti —, e saí correndo
quando o vi. Já vi muitos filmes de segunda para saber o que acontece com o
cara que encontra o corpo.
— Falando sério, Victor. Slocum não vai pensar que você o matou.
— Não vou apostar minha vida no que ele vai pensar — disse, mas não
era apenas com Slocum que eu estava preocupado. Eu fugira com um terror ce‐
go de Chuckie Lamb morto porque seu ferimento mortal fora feito há apenas
alguns segundos, o que significava que quem quer que o tivesse matado estava
bem ali, atrás da parede de pedra, pronto para mim. Não sabia se ele sabia
quem Chuckie estava planejando encontrar, ou quanto Chuckie contara antes
do encontro, mas, se já não soubesse, eu não queria dizer a ele a quem pergun‐
tar, nem agora nem nunca.
— Depois do julgamento — disse —, cuidarei para que Slocum receba a
lista de doações. Mas não quero que você se envolva.
Ela pensou naquilo por algum tempo.
— Morris estava lá hoje — disse por fim, misericordiosamente mudando
de assunto. — Durante algum tempo, pelo menos, conversando com um dos
frequentadores do tribunal, um velho com o que parecia um buraco na cabeça.
— Herm Finklebaum — retruquei. — Vendia brinquedos na rua 44.
— Morris me disse para lhe dizer que sua amiga Verônica está no Society
Hill Sheraton — disse Beth.
— Ela não foi muito longe. — O Society Hill Sheraton ficava a uns três
quarteirões de seu apartamento.
— Ela vai lhe dar o que você precisa? — perguntou Beth.
— Não. Ela é incapaz de me dar isso. Mas vai testemunhar, e o que tem a
dizer vai enterrar Jimmy.
E iria mesmo, pensei, se Jimmy não a matasse antes. Ele matara Bissonet‐
te e provocara o assassinato de Chuckie Lamb, eu tinha certeza, mas não acre‐
ditava que fosse capaz de matar Verônica. Havia perdido uma filha, como po‐
deria matar sua substituta, que tipo de monstro faria isso? E de repente temi
por Verônica Ashland, e com razão, pois, se houvera algum sucesso naquele dia
no tribunal, o sucesso fora meu em mostrar tudo de que Jimmy Moore era ca‐
paz. Havia lhe perguntado sobre seu temperamento, perguntara-lhe se ficava
furioso quando via alguma coisa que não devia ser, um erro que deveria ser cor‐
rigido. Perguntei-lhe se alguma vez se deixara dominar pelo temperamento, se
em alguma situação ficava violento e ele negou. Mas então perguntei se conhe‐
cia um traficante de drogas chamado Norvel Goodwin e ele sentou-se mais reto
na cadeira. O juiz não aceitou a objeção e fiz a pergunta de novo.
— Se o senhor entrar na comunidade, Sr. Carl, ficará sabendo de todas as
cobras escondidas na grama esperando pelas crianças.
— Agora, o Sr. Goodwin operava seu negócio de drogas a partir de uma
casa na Filadélfia Ocidental, não é?
— Sim. Isso foi há dois ou três anos.
— E uma noite o senhor entrou à força na casa com uma gangue do bair‐
ro.
— Um grupo de cidadãos alarmado com o consumo de drogas na comu‐
nidade.
— E foi nesta noite que conheceu sua amante, Verônica Ashland?
— Isso mesmo. Ela estava naquela casa sendo assassinada pelas drogas de‐
le.
— E naquela mesma noite o senhor também espancou Goodwin quase
até a morte?
Nenhuma resposta.
— Com uma cadeira, não é verdade?
Ainda nenhuma resposta.
— Bem, sim ou não, vereador?
— Foi legítima defesa.
— Foi legítima defesa quando incendiou a casa de crack.
— Não sei como se incendiou.
— Foi legítima defesa quando matou os dois garotos escondidos no sótão
daquela casa?
— Não sei como se incendiou.
— Foi legítima defesa quando quebrou o maxilar do estudante que na‐
morava sua esposa há trinta anos?
O juiz não o deixou responder àquela, já se passara tempo demais para
que ainda fosse um incidente relevante, disse ele, mas a pergunta cumprira seu
objetivo; todas aquelas perguntas haviam cumprido seu objetivo, eu esperava.
Assim talvez Beth tivesse razão, talvez eu tivesse feito o que precisava fazer. Por‐
que Jimmy Moore não era minha principal testemunha e não importava quan‐
tas vezes eu lhe perguntasse se matara Bissonette só para ouvi-lo negar, eu ar‐
rancara dele o que precisava realmente. Demonstrara ser um homem cujo ódio
passional por drogas ilegais e seus traficantes podia fazer com que tivesse ata‐
ques violentos de raiva, um homem que espancara traficantes de drogas com
cadeiras, que incendiara casas de crack sem se importar com quem estivesse
dentro, que quebrara o maxilar de um rival quando ainda estava no colégio, em
resumo, um homem que, com a devida provocação, na situação certa, pela ra‐
zão certa, era capaz de assassinato. Tudo que eu precisara de Jimmy Moore era
preparar o terreno para o testemunho de Verônica Ashland. Cabia a Verônica
fazer o resto.
— Você sente falta dela — disse Beth, seus dedos alisando suavemente
minha testa, amenizando a onda de medo e de raiva por minha própria impo‐
tência, que crescia cada vez que eu pensava no que estava acontecendo no jul‐
gamento. A suave carícia de seus dedos estava me adormecendo, e não ouvi o
que ela disse da primeira vez; assim, repetiu: — Você sente falta dela.
— Sim — respondi, e sentia. Era como se houvesse um buraco em minha
vida, como se alguma coisa maravilhosa e estranha tivesse simplesmente ido
embora, desaparecido. Eu me perguntei se era assim que um cachorro se sentia
depois de ter sido castrado.
— Dói muito? — perguntou ela.
— Muito — respondi. — Não quero falar nisso. E você? Conte-me sobre
Alberto. — Rolei o “r” ao dizer o nome.
— Alberto. Doce Alberto. É muito bonito e muito gentil, e o sotaque de‐
le é maravilhosamente sexy. Realmente uma prenda.
— E foi por isso que o largou?
— Você tem ouvido fofocas — disse. E então, depois de uma pausa: —
Acho que ele era feliz demais, satisfeito demais. Aceitava o mundo como era e
aceitava seu lugar nele.
— De repente estou com ciúmes — disse. — Esta poderia muito bem ser
a receita para a felicidade.
— Estou com você há tempo demais, Victor, com seu cinismo, sua amar‐
gura, sua insatisfação. Depois de meus anos com você, como eu poderia supor‐
tar a aceitação alegre e o otimismo insosso dos Albertos do mundo?
— Sozinhos de novo, só nós dois — disse, e então brinquei: — Parece
que estamos condenados um ao outro.
Ela simplesmente alisou meu cabelo e não disse nada durante muito tem‐
po, tanto tempo que se tivesse sido uma outra pessoa qualquer, e não minha
melhor amiga Beth, teria sido constrangedor. Mas não foi constrangedor. Ela
alisou minha fronte e me relaxou, levando-me a um estado muito próximo do
sono, e ficamos assim juntos durante bastante tempo.
— Nunca vai acontecer, não é? — perguntou finalmente.
— Creio que não — respondi.
— Por que não, Victor?
— Simplesmente não está lá. Não importa o quanto desejemos que esteja,
simplesmente não está. Seria perfeito demais, fácil demais.
— Eu poderia viver com algo fácil — disse ela.
— Shhh. Estou tão cansado.
— Poderia viver muito bem com algo fácil.
— Shhh. — Fechei os olhos e senti a maciez de seus dedos em meus ca‐
belos. — Preciso dormir. Só um cochilo. Shhh. A gente conversa depois, de‐
pois, prometo, mas deixe-me dormir um pouquinho.
Quando acordei no sofá, na manhã seguinte, ela se fora.
51
A manhã estava cinzenta e fria, uma manhã bem de final de outono. Minha
respiração voava em nuvens esfumaçadas enquanto eu andava do estaciona‐
mento subterrâneo junto do tribunal para o Society Hill Sheraton, onde Verô‐
nica estava se escondendo. Era um lugar estranho para se esconder, um prédio
grande de tijolos não muito alto, com uma ampla área de recepção e vestíbulo,
muito movimentada, de onde os hóspedes, vestindo agasalhos esportivos, saíam
pelas portas de vidro e davam a volta no pátio para ir correr à margem do rio
Delaware. Morris me dissera que estaria no Honda cinza, esperando por mim.
Eu o avistei parado no final de uma longa fila de carros estacionados do outro
lado da rua larga, pavimentada de pedras redondas, defronte ao hotel. Todos os
carros exceto o de Morris estavam de frente para a esquina, Morris entrara de
ré com o Honda, de maneira a poder ver a frente da recepção do hotel sem se
virar.
— Alguma coisa? — perguntei.
— Você não trouxe café para mim? — disse Morris.
— Esqueci, desculpe.
— A primeira regra de um serviço de vigilância, Victor, a primeiríssima
regra é nunca esquecer o café.
— Vou arranjar café para você.
— Pare, não se preocupe. É a primeira regra, mas talvez não seja uma re‐
gra assim tão boa, pois o que entra tem que sair, o que é muito inconveniente,
creia-me, bem quando você está seguindo alguém. A que horas quer que ela es‐
teja no tribunal?
— Hoje de manhã, às dez horas.
— Ela quer ir?
— Falarei com ela e ela irá. Tudo bem, vamos lá buscá-la.
— Devagar com a carroça.
— Devagar com a carroça?
— Sim, devagar com a carroça. É uma ótima expressão, em minha opi‐
nião. Por que, acha que eu não poderia ter sido um caubói? Teria sido um cau‐
bói e tanto.
— Alguma vez já montou a cavalo, Morris?
— E qual é o problema de montar a cavalo, você me diz? Eu sei sentar,
posso segurar as rédeas e posso dizer vamos e pare, eu sei montar. Olhe bem ali,
junto da entrada de carros da frente.
— O BMW prateado?
— Um carro assim é que eu deveria ter. Bonito, não? Exceto pelo fato de
ser alemão, é um carro maravilhoso.
— Por que estamos admirando um carro?
— Porque ficou parado ali a manhã inteira. Simplesmente paradinho ali,
exceto quando um dos homens saiu por poucos minutos e voltou trazendo ca‐
fé.
— Acha que estão vigiando a portaria do hotel?
— O café foi o que os entregou para mim — disse Morris. — Você já es‐
tá esquecendo uma das regras de um trabalho de vigilância.
— Poderiam estar esperando por qualquer pessoa — observei.
— Sim, poderiam.
— Mas também poderiam ser gente de Jimmy.
— Também.
— Ninguém, exceto Jimmy e nós, deveria saber que ela está aqui. Talvez
devamos entrar pelos fundos.
— Acho que é importante a gente saber quem está naquele carro, você
não acha?
— Porquê?
— Você me disse que existe uma valise cheia de dinheiro desaparecida,
voando por aí; é fato?
— Um quarto de milhão de dólares.
— Bem, Victor, posso estar enganado, com frequência me engano, per‐
gunte a Rosalie e ela lhe dirá, simplesmente esbarre nela na rua e. .
— Em que está pensando, Morris?
— Seria capaz de apostar que quem está com esse dinheiro é a mesma
pessoa que mandou aqueles sujeitos naquele carro chique ficar vigiando.
Olhei com mais atenção para o BMW prateado.
— Você acha?
— Acabei de dizer que sim, não foi? De maneira que o que estou pensan‐
do é que você deveria dar uma caminhada na frente do hotel para que quem es‐
tá no carro veja você. Então talvez possamos saber quem está tão interessado.
— Já atiraram contra mim duas vezes; você não acha que é o bastante?
— Não se preocupe com nada. Eu estou aqui, Morris Kapustin, e lhe da‐
rei cobertura.
— Você me dará cobertura? Com o que, Morris, com um molho de en‐
dro kosher?
Esperei por uma de suas tiradas espirituosas sobre judeus e picles, mas
não foi o que recebi. Em vez disso, Morris me deu um olhar frio e do bolso de
seu casacão preto puxou uma pistola automática. Seu cano azulado tinha um
brilho opaco oleoso. Num movimento rápido de quem tem prática, ele ejetou
o pente de balas e o enfiou de volta.
— Deus, Morris, o que está fazendo com isto?
— Você por acaso já ouviu falar de Jabotinsky?
— Não.
— Existem muitas coisas que você precisa aprender, Victor. Uma delas é
que gritar num tribunal não é o suficiente para provar que aprendeu tudo que
precisa aprender. Ainda precisa aprender o que significa ser um judeu e o que
não significa. Precisa pensar muito sobre sua vida, você mesmo e sua herança,
mas não hoje. Hoje você vai caminhar lentamente e entrar no vestíbulo do ho‐
tel pela porta da frente, devagar, como se não tivesse nenhuma preocupação na
vida. Não fiquei olhando para o carro, simplesmente vá andando e entre, e ve‐
remos o que vai acontecer. Se nada acontecer, encontrarei com você na porta
do quarto dela, número 4.016. Agora vá.
Hesitei, mas Morris literalmente me empurrou para fora do carro e fui
em frente, atravessei a larga rua de pedras arredondadas em direção ao hotel.
Ainda estava frio, minha respiração fazia fumaça no ar gelado da manhã, mas
estava suando. Abri a capa de chuva forrada enquanto ia andando para o pátio
circular e tentei não olhar fixo para o BMW prateado, parado ali na frente,
ameaçador, tão assustador quanto um tubarão em águas rasas. Meu pescoço foi
ficando tenso à medida que ia me aproximando. Olhe bem para a frente, Mor‐
ris dissera, e foi o que fiz enquanto passava pela perigosa grade cromada. E en‐
tão estava além dela, lutando contra o impulso de olhar para trás, seguindo di‐
reto para a portaria. Mas antes que pudesse alcançar a longa maçaneta de bron‐
ze que me faria entrar, uma porta de carro bateu à minha direita, e ouvi o grito.
— Você, Victor Carl, o homem que tem dois nomes.
A voz era familiar, escorregadia e grossa, deslizando em volta das consoan‐
tes, se aproximando e se desviando justamente quando ia agarrá-las. Parei apa‐
vorado e me virei. Era Wayman, o capanga de Norvel Goodwin, que havia diri‐
gido a limusine do vereador comigo dentro e depois me esmurrado o rosto
com as costas da mão. O que significava, se Morris estivesse certo, que Norvel
Goodwin estava com o quarto de milhão de dólares desaparecidos. Diabos, co‐
mo é que ele metera as garras naquele dinheiro?
Wayman vestia um agasalho esportivo preto e roxo, tênis de couro de ca‐
no alto, um blusão de malha enrolado no braço direito, escondendo sua mão e
o que quer que ela estivesse segurando. Vinha andando depressa em minha di‐
reção, numa espécie de passo saltado. Quando finalmente meus nervos conge‐
lados se descongelaram o suficiente para que eu pelo menos pensasse em correr
para dentro do hotel, ele já estava ao meu lado.
— Como vai o olho, Victor? Parece que já sarou tudo. Talvez você seja
mais duro do que parece.
— O que você quer, Wayman?
— Ora, mas isso é legal. É muito, muito legal. Você lembra o meu nome.
Pra onde você tá indo, Victor Carl? Tá com alguma fêmea bonitona escondida
no Society Hill Sheraton? Tá aqui pra dar uma rapidinha de manhã cedo?
— Tenho uma reunião.
— Aposto que tem. Aposto sim. A gente achou que você ia aparecer para
visitar a Ronnie. Não foi capaz de ouvir o conselho, não é, não conseguiu dizer
não. Mesmo depois que eu joguei aquele cachorro morto no seu colo. Bem,
mas também não culpo você, ela não é nada feia. Mas o Sr. Goodwin, você se
lembra do Sr. Goodwin, ele me pediu pra vir e esperar bem aqui por você, pra
te dizer que ele não quer a Ronnie testemunhando no tribunal. Ele não quer a
Ronnie estragando os planos dele com o nosso vereador, nem mencionando o
nome dele para os federales. Você está se metendo com coisas em que não de‐
veria se meter. Você ainda não tem nenhuma ideia do que está acontecendo
aqui.
— Você tem razão — respondi. — Não tenho mesmo.
— Claro que não, senão não estaria sendo tão estúpido a ponto de tentar
fazer ela testemunhar. Mas agora você sabe, e o Sr. Goodwin, ele espera que vo‐
cê seja uma pessoa respeitosa.
— Tenho que entrar, desculpe-me.
— Ora, veja só, cara, é disso que estou falando, viu? Você é surdo, Victor
Carl, ou está só querendo me sacanear agora? Espero que não, porque se for is‐
so eu vou te matar, igualzinho como matei o pombinho seu amigo, o Chuckie.
Dei um passo para trás diante daquilo, minha espinha de repente tão ar‐
repiada que parecia estar cheia de minhocas. Olhei para trás, procurando por
Morris e sua cobertura, mas não o vi. Wayman percebeu meu olhar e o inter‐
pretou mal.
— Pode correr, Victor Carl, ah pode sim — disse, dando um passo em
minha direção. — Se eu fosse você também estaria dando o fora. Pode correr
que eu deixo, corre, corre, Victor Carl, corre o mais rápido que puder. Corre
pra onde você quiser, desde que não seja para dentro do Society Hill Sheraton.
O que está dentro do Society Hill Sheraton é coisa nossa. Aceite meu conselho,
Victor Carl, e trate de começar a correr.
Recuei de novo, recuei e saí fora do alcance dele e decidi que de fato acei‐
taria o conselho dele. Ah, eu detestava a ideia de fugir e deixar Wayman me ver
chutando a bunda com os calcanhares enquanto saía correndo, fugido da frente
do hotel, mas detestava muito mais a ideia de Wayman fazer comigo o que fize‐
ra com Chuckie. Creio já ter mencionado antes o fato de que não sou, por na‐
tureza, um homem corajoso, mas até o menos covarde dos homens teria fugido
correndo na mesma situação. Ali estava Wayman, com sua raiva, seu agasalho e
sua mão segurando Deus sabe o quê, coberto por aquele blusão pendurado no
braço, e lá estava seu capanga sentado no BMW prateado, um brutamontes
branco mal-encarado, de olhos ferozes, batucando na direção como um bateris‐
ta, só esperando para vir ajudar Wayman, se alguma ajuda fosse necessária, e ali
estava minha lembrança da maneira como Chuckie morrera, a maneira como
seu sangue fizera uma poça na pedra antes de ser lavado pela chuva. E ali estava
eu, indefeso, dependendo de Morris para me dar cobertura. Morris, que apa‐
rentemente desaparecera. Aquele seu Jabotinsky não deve ter sido um grande
lutador, imaginei, se tudo que Morris aprendera com ele fora o momento de
bater em retirada. De maneira que eu estava prestes a aceitar o conselho de
Wayman e fugir dele e do baterista quando ouvi uma das portas do hotel se
abrindo atrás de mim e uma voz familiar.
— Perdoem-me, senhores, mas estava me perguntando se não poderiam
me ajudar, pois estou procurando pela casa que já pertenceu à senhorita Beth
Ross.
Wayman olhou por sobre meu ombro e eu me virei. Lá estava Morris se
aproximando de nós em passo arrastado, seu grande casacão preto desabotoado
e batendo com o vento, o chapéu empurrado para trás na cabeça, um pequeno
mapa que ele lutava para abrir nas mãos.
— Minha neta, ela me disse que tenho que levá-la a esta casa da senhorita
Beth Ross—continuou Morris. — Mas este meshuggeneh deste mapa, que eu
não consigo nem abrir com todas as dobras e anexos e páginas, este mapa não
me diz nada a não ser que Morris você é um schlemiel que nunca aprendeu a
ler um mapa como uma pessoa comum.
Ele estava me dando uma abertura, e eu aproveitei.
— Fica ao norte daqui, na rua Arch — disse.
— Norte, sul, não entendo nada de direções — disse Morris. — Obriga‐
do, senhor, mas norte poderia muito bem ficar para cima, pelo que sei. — Ele
continuou manuseando o mapa desajeitadamente.
— Venha comigo até lá dentro — disse. — Vou desenhar no mapa para o
senhor.
— Isto não será necessário — disse Wayman, sua voz agora profunda e
precisa, a voz de um conferencista de faculdade. — É muito simples. Siga por
esta ruazinha. Vire à direita, isto é, norte, e desça quatro quarteirões, até chegar
à rua Arch. Então vire à esquerda. É uma casinha de tijolos com um patiozinho
no final da rua Arch, entre a Segunda e a Terceira. Tem uma bandeira colonial
bem na frente, não tem como errar.
Olhei para Wayman, estarrecido com sua nova voz. Ele me lançou um
sorriso perigoso e de repente, com o fato de Wayman ter desistido de qualquer
tentativa de fingimento que eu pudesse compreender, fiquei absolutamente
aterrorizado.
— Aah, muito obrigado, senhor, obrigado — prosseguiu Morris. — Eu
deveria escrever tudo isso, mas já escapuliu da minha cabeça. Minha memória é
como um esgoto furado no meio, ruim mesmo. Se pudesse apenas me mostrar
no mapa, se pudesse...
Ele continuava manuseando o mapa, lutando para abri-lo, e então com
um puxão repentino e frustrado seus cotovelos se abriram e o papel se rasgou
rápida e ruidosamente, e agora havia dois pedaços confusos de mapa onde an‐
tes havia apenas um.
— Accht, só eu mesmo — disse Morris, olhando tristemente para as
mãos. — Agora tenho que ir pegar um outro lá dentro. E depois, se não for pe‐
dir muito que ajudem um visitante, então se um dos senhores cavalheiros pu‐
desse desenhar o caminho no mapa, isto me ajudaria a chegar lá sem antes ir
parar em Pittsburgh.
— Claro — respondi, agarrando-lhe o braço. — Vamos.
— Isto seria ótimo, sim — disse Morris.
— Ainda não terminamos aqui, Victor Carl — disse Wayman.
— Eu volto já, Wayman — retruquei enquanto seguia para a porta. —
Espere.
Morris manobrou de maneira a ficar entre Wayman e eu enquanto seguía‐
mos para a porta. No reflexo no vidro, eu podia ver Wayman estendendo a
mão por cima do ombro de Morris para me pegar, e então senti sua mão agar‐
rando o colarinho de minha camisa; senti a gola me apertando o pescoço. Mi‐
nha garganta deixou escapar um pequeno grito de surpresa.
Naquele exato momento um porteiro passou por nós vindo da recepção e
pareceu afastar o braço de Wayman com um esbarrão acidental. O porteiro ti‐
nha ombros enormes, estava vestido de verde, meteu-se na frente de Wayman e
disse:
— Posso ajudá-lo, senhor? — A voz do porteiro era surpreendentemente
familiar, e, ao mesmo tempo em que Morris me empurrava para dentro, na
frente dele, virei e vi as costas largas do porteiro e o yarmulke em sua cabeça. O
porteiro pôs a mão no peito de Wayman. — Posso ajudá-lo em alguma coisa,
senhor? — disse Sheldon Kapustin para Wayman enquanto este sacudia a cabe‐
ça cheio de frustração e Morris e eu escapávamos para o interior da recepção do
hotel.
— Não corra agora — disse Morris. — Ele está olhando como um falcão.
— Teria sido bom se você tivesse me dito que Sheldon estava aqui dentro
— comentei. — Manchas de suor são tão difíceis de lavar. E apesar disso você
custou a aparecer.
— E havia pressa? — Morris apontou para a direita, onde ficava o balcão
principal da recepção, fora do ângulo de visão das portas. Fomos andando em
volta da mobília da recepção, mesas de ferro batido e amplos sofás, e seguimos
direto para o balcão. — Vou ficar com a mão no bolso procurando por uma ca‐
neta até não podermos mais ser vistos da porta — disse Morris enquanto íamos
andando. — E quando estivermos num lugar onde ele não possa mais nos ver,
vamos correr.
E foi exatamente o que fizemos.
— Quem era ele? — perguntou Morris no elevador a caminho do quarto
andar.
— É o segurança de um traficante de drogas.
— Então esse traficante está com o dinheiro desaparecido?
— Evidentemente, e ele já matou um homem para me impedir de desco‐
brir isso.
— Ahhh, agora está pior do que me havia dito antes.
— Mas ele não deveria saber que Verônica estava aqui.
— Então como foi que descobriu? — perguntou Morris enquanto as por‐
tas do elevador se abriam no quarto andar.
— Não sei — respondi.
— Agora vá com cuidado — disse Morris, e o segui pelo corredor acarpe‐
tado vazio. No quarto 4.016, ele apontou para mim. Sacudi a cabeça. Ele bateu
de leve na porta.
— Sim? — disse a voz lá dentro.
— Desculpe, moça — disse Morris —, mas preciso checar o aquecimento
de seu quarto.
— Um minuto — disse ela, e um minuto depois a porta se abriu e Verô‐
nica apareceu informalmente vestida, ainda molhada do chuveiro. Antes que
pudesse bater a porta na minha cara, enfiei uma ponta de sapato na abertura.
O que não ensinam a gente na escola de vendas de aspiradores de pó é que en‐
fiar o pé na abertura da porta pode machucar um bocado, mas, com dor ou
sem dor, funcionou.
— Você foi intimada a comparecer ao tribunal hoje para depor — disse,
depois que Morris e eu entramos no quarto, com a porta trancada e a corrente
passada.
— Quem é ele? — perguntou ela, apontando para Morris com a cabeça.
Estava vestindo um robe de seda fina, os braço cruzados no peito. Os cabelos
caíam molhados e limpos sobre os belos ombros. Mal pude me impedir de cair
de joelhos diante dela, tão bonita estava.
— É um amigo que está aqui para protegê-la — respondi.
— Que confortador — disse ela.
— Obrigado, senhorita — disse Morris, ignorando seu sarcasmo.
— De quem ele está me protegendo, Victor? De você?
— De Goodwin. Os homens dele estão lá fora. Ele não quer que você de‐
ponha.
— Merda — disse ela numa voz desesperada. — Que droga, Victor. Está
vendo o que está fazendo comigo. — Ela saiu andando pelo quarto e sentou-se
na cama mais distante.
Eu a segui, como parecia estar sempre seguindo, e parei junto à cama.
Morris ficou junto da porta, prestando atenção nos ruídos que vinham de fora,
de maneira que estávamos tendo uma conversa particular.
— Ele provavelmente vai matar você, quer deponha ou não — disse em
voz baixa. — Pelo menos foi o que pareceu. Quanto deve a ele, Verônica?
Ela deu de ombros, ao mesmo tempo em que apertava o peito e se recusa‐
va a olhar para mim.
— Não muito — disse, de maneira nada convincente.
— Alguma coisa é muito para você?
Ela não disse nada, os olhos fixos no chão.
— Diga-me uma outra coisa, Verônica. Como foi que Goodwin acabou
ficando com o quarto de milhão que sumiu?
— É ele que está com o dinheiro?
— Você não sabia?
Ela sacudiu a cabeça.
— Apenas guardei para Jimmy na minha conta.
— A conta conjunta com Chester?
— Exato, mas então ele pediu o dinheiro de volta, disse que estava preci‐
sando de tudo.
— Mas primeiro queria o dinheiro numa conta com o nome de Chester.
Preparando Chester para levar a culpa desde o início, só por via das dúvidas.
— Nunca soube o que Jimmy fez com o dinheiro.
— Como Goodwin poderia tê-lo apanhado?
— Deve ter roubado de alguma maneira — disse com um dar de ombros.
— Não — retruquei. — Não creio nisso. — Olhei em volta para o quar‐
to luxuoso do hotel: duas camas de casal, TV em cores, poltronas e cortinas de
veludo, e comecei a ter dúvidas. — Você está aqui já há dois dias. Andou com‐
prando drogas de Goodwin?
— Não, dele não, Deus. Uma das razões por que decidi sair de casa foi
para escapar dele e de seus malditos animais mortos.
— Assim, só Jimmy sabe que você está aqui.
— E você.
— Sim, e eu. Mas não fui eu quem contou a Goodwin.
Ela me lançou um olhar interrogativo. Dei de ombros. Os olhos dela arre‐
galaram, e ela sacudiu a cabeça. Balancei a cabeça tristemente. Ela contraiu o
rosto numa expressão de incompreensão, então seu rosto começou a funcionar,
como a superfície de um velho computador, luzes acendendo, fitas se enrolan‐
do, enquanto a lógica de tudo ia se desenrolando para ela, um silogismo depois
do outro, levando finalmente a uma expressão de choque. Jimmy Moore a en‐
tregara, dizia o rosto dela, o canalha a pusera naquele hotel para que Goodwin
pudesse cuidar dos problemas de ambos. A cabeça de Verônica se sacudiu di‐
zendo não, não podia ser. Mas sabia que podia, sabia que era. Virou-se rapida‐
mente, me dando as costas, e começou a chorar. Foi naquele momento que,
pela primeira vez realmente soube que Verônica Ashland iria dizer a verdade,
toda a verdade e nada mais que a verdade no banco das testemunhas.
Abaixei-me para pegar algumas roupas suas no chão e as levei até a mala
aberta sobre a cômoda.
— NU? — disse Morris à porta. — Ela vem?
— Não — disse Verônica em voz fraca.
— Vem sim — declarei.
— Se ela vem, tem que vir agora — disse Morris. — Porque acho que tal‐
vez nosso bom amigo lá fora resolva abrir caminho à força apesar de Sheldon e
vir aqui pessoalmente para descobrir o que está acontecendo.
— Quem exatamente está lá fora? — perguntou ela.
— Wayman — respondi. — E foi ele quem matou Chuckie.
Aquilo pôs fim a toda hesitação; em noventa segundos a mala dela estava
pronta e ela vestia um par de jeans, uma camisa, o sobretudo e estávamos fora
do quarto, correndo pelo corredor, seguindo Morris.
— Aonde estamos indo? — perguntou ela.
— Não tenho a menor ideia — respondi.
Enquanto corríamos, ouvimos uma porta de elevador se abrindo. Corre‐
mos para longe do elevador, virando num canto do corredor e depois noutro.
Quando afinal viramos pela última vez e chegamos às escadas, ouvimos uma
porta batendo e a voz grossa e escorregadia de Wayman gritando:
— Abra, sua cadela. Abra a porra da porta.
Descemos as escadas correndo, Morris na frente tão rápido quanto podia,
o que era bem mais rápido do que eu teria imaginado, descendo dois andares.
A placa dizia que não se podia voltar a entrar por aquela porta, mas Morris
abriu a porta para o segundo andar, arrebentando a tira que prendia a tranca, e
nos enfiamos pela porta atrás dele, seguindo para o corredor, entrando rapida‐
mente à esquerda, no quarto pegado à escada, quarto 2.082, onde Morris abriu
a porta sem bater e entrou apressadamente. Entramos atrás dele, como se suga‐
dos por um vácuo. A porta se fechou silenciosamente atrás de nós.
O quarto era igual ao de Verônica, do mesmo tamanho, com a mesma
mobília, as mesmas duas camas, a mesma TV em cores. A porta para o banhei‐
ro estava fechada, as cortinas da janela puxadas. Morris trancou a porta.
— Agora tudo bem, senhorita Verônica — disse Morris. — Tem que me
dar seu belo casaco.
— Meu sobretudo? — perguntou ela.
— Sim, é claro. A essa altura eles têm gente vigiando a porta da frente e
dos fundos, não há como sair. De maneira que o que precisamos é o que cha‐
mamos em minha profissão de holtzene kochka. Um pato de madeira.
— Um chamariz?
— Isso mesmo, sim. O holtzene kochka.
— Quem? — perguntei.
— Ora, você, é claro, Victor — disse ele. — E uma outra pessoa para pa‐
recer com a senhorita Verônica, e para isso precisamos do sobretudo.
— Com todo o respeito, Morris, não creio que você possa.
— Não seja um charn, Victor. Você acha que eu me permitiria fazer o pa‐
pel de holtzene kochka?. Não se vive o tempo que eu já vivi nesta profissão fa‐
zendo o papel de holtzene kochka. Não, a regra número dois é que o detetive
nunca é o holtzene kochka. Talvez esta devesse ser a regra número um, e a do
café, a número dois. A numeração às vezes fica tão confusa.
— Então quem? — perguntei.
Naquele exato momento a porta do banheiro se abriu e ela entrou no
quarto vestindo jeans e uma peruca, uma peruca castanha de cabelos na altura
do ombro, cabelos penteados para copiarem exatamente os de Verônica. Beth.
Era mais que estranho, minha melhor amiga transformada de maneira a se pa‐
recer com a amante de meus sonhos, uma mistura desorientadora de conforto e
perversidade. De certa maneira, de pé ali, emoldurada pela porta do banheiro,
estava minha mulher ideal, uma fusão de tudo o que eu jamais poderia querer
ou amar. Assim, fiquei olhando fixo por um instante, depois mais um pouco,
fiquei olhando até Beth começar a rir, o que quebrou a magia e fez com que
minhas fantasias se afastassem, até que me dei conta de por que ela estava ali.
— Não — disse. — Beth não. Absolutamente não.
54
Wayman nos avistou quando saímos correndo pela porta da frente do hotel.
Segurei a mala bem firme. O sobretudo desabotoado de Verônica esvoaçava co‐
mo uma pelerine atrás de nós. Antes que Wayman conseguisse nos alcançar es‐
távamos dentro do Honda, com as janelas fechadas e o motor gemendo ritma‐
damente. Ele alcançou o carro, balançando a arma enorme em nossa direção
quando engatei a marcha e dei partida.
Rapidamente fiz uma curva à esquerda na Walnut e mais uma curva à es‐
querda subindo a rua 4. Passei correndo pela rua Spruce, pela Lombard, avan‐
cei um sinal vermelho na rua South e segui em frente. Mal havia percorrido
dois quarteirões depois da rua South quando o BMW apareceu atrás de nós e
começou a se aproximar.
Na Washington entrei à direita e segui para oeste, o BMW colado atrás de
nós. Bateu no meu para-choques uma vez enquanto eu pisava fundo seguindo
pela Washington, depois mais uma vez. Avancei mais um sinal vermelho e o
BMW fez o mesmo, e me perguntei onde estaria a polícia, me perguntei onde
seria a loja de roscas mais próxima, e então cantando pneu entrei na rua 7 e pi‐
sei fundo no freio bem defronte ao Clube de Cavalheiros Filhos de Garibaldi.
O BMW prateado freou, fazendo um cavalo-de-pau bem atrás de nós, e
Wayman pulou para fora do carro como se o banco estivesse em chamas. Mal
tive tempo de abrir minha porta antes que ele enfiasse o braço, encostando a
ponta de uma faca enorme na minha garganta. O baterista montava guarda na
porta do passageiro, sorrindo com impertinência para a janela.
— Fuja de mim novamente, Victor Carl, só quero que você tente fugir de
mim novamente sem minha permissão e cortarei com a faca um novo sorriso
na porra do seu pescoço.
Tentei dizer alguma coisa, mas, com a faca espetada na laringe e tremendo
como uma dançarina, não saiu nada.
— Mas não se preocupe, agora está tudo bem. Ronnie, queridinha, va‐
mos dar uma voltinha de carro você e eu, que tal?
Beth desviou o rosto do baterista para encarar Wayman e o queixo de
Wayman caiu, e quando ele falou sua voz estava profunda e precisa devido ao
choque.
— Quem é você, madame?
— Ela é minha sócia — consegui dizer entre tremores.
— Dê o fora daqui, porra — disse ele, e acrescentou: — Merda — espi‐
chando a palavra até o a desaparecer. — Onde está ela, Victor Carl? Diga-me
agora ou seu pescoço vai entrar para a história. Diga-me, Victor Carl. — Ele
torceu a ponta da faca contra meu pescoço, quase me levantando do banco do
carro. Pude sentir um fio de sangue escorrendo pela garganta. — Diga-me lo‐
go, diga-me agora, diga, diga, diga. Diga logo, Victor Carl, minha faca está fi‐
cando com sede de novo e não tenho mais muita paciência.
Estava a ponto de lhe dizer alguma coisa quando uma mão grande e cabe‐
luda segurou o ombro de Wayman. Beth arquejou, ou talvez tenha sido eu, não
sabia dizer. Havia algo de obsceno naquela mão parada ali, como uma aranha
com ossos. A pressão da ponta da faca em meu pescoço diminuiu e, quando
Wayman se virou para ver o que era, a mão deslizou e agarrou seu pescoço. An‐
tes que Wayman pudesse dizer uma palavra de queixa, o dono da mão acertou
um tijolo na cabeça de Wayman. O sangue explodiu na testa dele. A pancada o
jogou longe do carro, a faca escorregando com um doce arranhão pelo asfalto.
O homem com o tijolo era Dominic, e pela primeira vez desde que o conhece‐
ra eu o vi sorrir.
Não era uma visão agradável.
Girei para checar o baterista do outro lado do carro, mas ele não estava
mais olhando com impertinência pela janela. Em vez disso, estava sendo levan‐
tado num grande abraço de urso, os braços lutando futilmente contra a imobi‐
lização de um gigante cuja cintura era a única coisa que eu via pela janela do
passageiro.
— Salte, Victor — ouvi Dominic dizer, e quando saí do carro o vi senta‐
do em cima de Wayman, os joelhos mantendo seus braços no chão, as mãos os‐
sudas em volta de sua garganta.
— Hei, Dominic, onde você quer que eu ponha este embrulho? — per‐
guntou o homem que dava o abraço de urso no baterista. Por trás dos ombros
do baterista vi que era Giovanni, seu rosto duro agora iluminado por um largo
sorriso.
— Jogue no lixo — disse Dominic, com as mãos ainda em volta da gar‐
ganta de Wayman.
Jasper se inclinou sobre Wayman, ainda imobilizado por Dominic, e co‐
meçou a revistá-lo. Enfiou a mão no bolso da calça de Wayman e puxou o
enorme revólver que eu vira Wayman empunhar antes de eu engatar a marcha
no Honda e sair correndo do hotel.
— Puxa, mas imagine só — disse Jasper. — Que figura perigosa é este
merdinha.
Jasper checou a arma, descarregou as balas, tirando uma a uma, e depois
segurou pelo cano. Levantou a arma uns quarenta centímetros, e acertou a cla‐
vícula de Wayman com a coronha. Wayman berrou de dor e começou a lutar,
praguejando enquanto as mãos de Dominic se apertavam em volta de seu pes‐
coço. Jasper levantou a arma de novo, mais quarenta centímetros, e a deixou
cair. Martelou a clavícula de novo, e de novo, levantando a arma quarenta cen‐
tímetros e batendo com ela, uma vez depois da outra, repetidamente.
Houve um estalo alto, Wayman deu um urro e seu braço direito ficou
imóvel.
Calma e metodicamente, levantando a arma à mesma altura de quarenta
centímetros e depois batendo repetidamente, Jasper começou a trabalhar no
outro ombro. Havia um jeito de quem tinha prática em seus movimentos, o
cumprimento de uma tarefa familiar e algo prazerosa.
— Deus, mas que delícia — disse Dominic, ainda montado em Waymen,
que lutava. Não conseguiu conter mais um sorriso, um sorriso cheio de desejo
de sangue satisfeito.
Esfreguei o pescoço, minha mão saiu cheia de sangue.
— Não é sempre que nós, velhos goombahs, temos chance de praticar —
disse Dominic.
— O que precisamos — disse Jasper, enquanto continuava martelando a
clavícula — é de uma academia, sabe, uns pesos, um ringue para boxear, um
saco de areia para praticar.
— O saco de pancadas está bem aí — retrucou Dominic.
— Preciso de uma coisa mais dura, alguma coisa que tenha peso — disse
Jasper falando mais alto que os gritos de Wayman. — Alguma coisa que real‐
mente me faça trabalhar.
Do outro lado da rua Giovanni bateu com a cabeça do baterista contra o
lado de um depósito de lixo de construção uma vez, duas, três para garantir.
Depois o levantou como se fosse um saco de laranjas e o atirou lá dentro.
— O que está acontecendo, Victor? — perguntou Beth, que também ti‐
nha saltado do carro. — O que acabou de acontecer?
— Fomos salvos pela cavalaria — respondi. — Beth, quero que conheça
uns amigos meus. O garoto é Giovanni, o sujeito que está martelando nosso
amigo Wayman é Jasper.
Naquele exato momento houve um outro estalo arrepiante, e Wayman
deu um urro desesperado e selvagem.
Wayman havia matado Chuckie, enfiara a ponta de sua faca em meu pes‐
coço a ponto de tirar sangue, prometera me matar, mas apesar disso não pude
deixar de me contrair.
— E este aqui é Dominic — continuei. — Não jogue pôquer com Do‐
minic, Beth, ele é um tubarão.
— Sou apenas um jogador de fim de semana — disse Dominic, enquanto
se levantava saindo de cima de Wayman, agora impotente, esfregando as mãos.
— Tome aqui, meu amigo — disse, enfiando a mão no bolso e me entregando
um lenço.
Limpei a mão e o pescoço. Então me tornara um amigo de Dominic. Tí‐
nhamos lutado contra um inimigo comum e nos tornáramos irmãos de sangue.
— Ele está berrando como uma droga de um bebê — disse Jasper. — Co‐
mo é o nome deste miserável, meu chapa?
— Wayman — respondi. E então, num impulso repentino, como se fosse
um chefão todo-poderoso, acrescentei: — Não o mate.
— Qual é o seu problema, é idiota? Não teria me dado o trabalho de ma‐
chucá-lo se fosse matá-lo — disse Jasper falando mais alto que os gemidos de
Wayman. —Agora... escute... Wayman — gritou, alto e bem devagar, como se
estivesse falando com um francês. — Não... quero... que... você... volte... a...
incomodar... o Victor... entendeu?
Wayman deixou escapar um gritinho de concordância.
— Não... quero... ouvir... que... ele... foi... incomodado... ou... morto...
porque... então... vou... ficar... furioso... você... entendeu?
Mais um grito de concordância.
— Ótimo... Wayman...—disse Jasper, dando uns tapinhas no rosto de‐
le.... Você... não... está... em condições... de... dirigir. — Vamos... deixar...
seu... amigo... levá-lo... para... casa.
Giovanni deu de ombros e enfiou a mão na lixeira, puxando para fora,
pelo colarinho e pela virilha, o baterista tonto e ensanguentado. O baterista
despencou no chão e tentou se afastar engatinhando. Giovanni deu-lhe um
chute tão forte nas costelas que o baterista estremeceu descontroladamente por
um momento antes de deixar escapar um grito arquejante. Então Giovanni o
pôs de pé, pegando-o pelo pescoço, e o chutou no traseiro, mandando-o aos
trancos para o carro. Ele caiu sobre o capô como um mendigo bêbado num
cruzamento se oferecendo para limpar o vidro do para-brisa. Dominic abriu a
porta da frente. Pegou o baterista, trouxe-o dando a volta na frente do carro e o
enfiou lá dentro. Wayman, dobrado e de cabeça baixa, com os dois braços pen‐
durados junto ao peito, cambaleou até o carro. Abri a porta do passageiro. Sem
olhar para mim, ele se deixou cair no assento.
— Fique longe de South Philly — disse Dominic. Quando não houve
movimento por parte dos ocupantes derrotados, ele gritou: — Caiam fora da‐
qui. Agora.
O carro não se afastou correndo dali, como que saiu cambaleando. Pri‐
meiro girou para a direita, então parou de repente, depois seguiu para a esquer‐
da, raspando no lado de uma camionete de carne estacionada na frente de uma
loja. Houve o rangido alto de metal amassando e plástico quebrando. O carro
girou de novo para a direita antes dar um solavanco para a frente e parar e se‐
guir adiante lentamente.
— De onde eles vieram? — perguntou Beth, enquanto ficava a meu lado,
observando o BMW prateado ir seguindo com dificuldade pela rua 7. — E co‐
mo são seus amigos?
Dei de ombros.
— Companheiros de pôquer. Lembra-se do telefonema que dei antes de
saímos do hotel?
— Sim.
— Foi para eles que liguei.
Naquele exato momento um grande Cadillac branco, com o vidro das ja‐
nelas tão escuro que não se podia ver o interior, estacionou bem diante de nós.
Lenny estava dirigindo. Acenou para mim. Com um zumbido a janela de trás
se abriu e o rosto feio e marcado de Enrico Raffaello apareceu.
— Está tudo bem, pelo que vejo — disse ele.
— Muito obrigado, Sr. Raffaello — respondi. — Ele teria me matado se
o senhor não tivesse intercedido.
— De nada, Victor. Serviços de proteção é o que fazemos, mas geralmen‐
te não fazemos de graça.
— Estou muito grato.
— Bem, estar grato é alguma coisa, sim, mas não paga a ricota. Considere
isso um favor, Victor. Temos orgulho de fazer favores para cidadãos desta cida‐
de. Esperamos, claro, que o favor seja retribuído na hora devida.
— Compreendo, senhor.
— Agora sobre aquele projeto de que você ia cuidar para mim. Espero
que não tenha me desapontado.
Apontei para o BMW seguindo lentamente pela rua 7.
— Se seguir aquele carro ele o levará direto ao dinheiro, Sr. Raffaello. Um
homem chamado Norvel Goodwin ficou com ele.
— Ora, mas isto é quase irônico: o dinheiro de Jimmy acabar nas mãos
de um traficante de drogas. Esta deve ser uma história e tanto. Você me contará
em outra ocasião, Victor, mas não agora. Agora creio que vamos seguir aquele
carro. Venha até aqui, meu filho, tenho uma coisa para você.
Humildemente me adiantei. Raffaello passou um saco de papel branco
pela janela. Peguei o saco e dei um passo atrás.
— Entrarei em contato com você, Victor, pode ter certeza.
Ele balançou a cabeça e a janela subiu, escondendo seu rosto. Dominic,
Jasper e Giovanni entraram no carro e lenta e cuidadosamente ele se afastou.
Beth veio para junto de mim. Olhava fixo para o carro.
— Aquele era quem eu acho que era? — conseguiu dizer.
— Era — respondi. Abri o saco e olhei o interior. — Que tipo de recheio
você gosta num cannoli, Beth? Chocolate ou baunilha?
— Baunilha — disse ela.
Enfiei a mão dentro do saco, tirei o cannoli de baunilha e dei a ela, depois
peguei o de chocolate e dei a ela também.
— Segure isto um momento, por favor.
Com o saco na mão, fui andando pela rua, olhando atentamente para o
chão, procurando. Por fim a encontrei. Tinha escorregado bem na esquina da
rua e estava ali, com a lâmina apontando para o norte como um compasso. Pe‐
guei um dos guardanapos de papel gentilmente oferecidos por meu novo se‐
nhor feudal, Enrico Raffaello, e, com o guardanapo entre os dedos, segurei a
lâmina, levantando-a cuidadosamente antes de soltá-la dentro do saco. Calculei
que Slocum ficaria encantado em pôr as mãos na faca que matara Chuckie
Lamb, completada com um jogo de impressões de digitais. Só queria me asse‐
gurar de que as impressões na faca não fossem as minhas.
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Em pelo
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