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PSICOLOGIA SOCIAL PSICOLOGIA SOCIAL E SAUDE Praticas, saberes e sentidos 9? Edigado —_sNN ete ne com a obra de cess Mikhail Bakhtin e fortaleceu a concepgao do pro- 30 de produgao de sentidos como uma coconstrucgao. De modo a pontuar os elos entre Os textos da coletdnea, até por estarem eles presos a diferentes f. fases desse percurso tedrico, precede cada uma das quatro partes do livro uma breve introdu- cao: uma espécie de visita monitorada aos textos incluidos em cada uma. 18 PARTE | PSICOLOGIA SOCIAL E SAUDE Construindo saberes l'iz 0 curso de psicologia na USP nos anos 1960. Entrei para a lculdade no mesmo ano do golpe militar. Fui com amigos come- jnorar 0 sucesso no vestibular na entao longinqua e paradisiaca \ataty. Longe de Sao Paulo e, relativamente incomunicavel, \companhamos as noticias pelo radio. Como havia participado do jnovimento estudantil no secundario e estivesse acompanhada de \nigos que militavam em partidos da esquerda, achamos - movi- (los pelo mais puro desejo, é claro - que 0 que escutavamos anun- (java a tomada de poder pela esquerda. Ledo engano. Estavamos, ‘0 contrario, entrando nos anos turbulentos da ditadura militar. Mas os siléncios impostos néo fizeram calar os sonhos e nem a jusca de “justiga social”, e muitos de nés que entravamos entao jwacademia, buscamos desenvolver uma pratica de ensino e pes- (juisa mais condizente com esses sonhos. Tendo casado e emigrado para a Inglaterra em 1969, ingressei ji doutorado na London School of Economics and Political Scien- « (LSE), um dos colleges da Universidade de Londres, onde en- vontrei um espago propicio para colocar esses sonhos em pratica. LSE era, e é ainda hoje, uma universidade socialmente compro- inetida. Fundada por Beatrice e Sidney Webb com uma dotagao {olla a Fabian Society, a universidade refletiu os ideais socialis- lus de seus fundadores, buscando aliar a exceléncia académi- ca ao compromisso social. Entre seus professores eméritos des- \acam-se: Bertrand Russell, Bronislaw Malinowski, Karl Popper, lmre Lakatos e Amartya Sen. O meu tema inicial de pesquisa era o processo de elaboragao ilo diagnéstico médico, tendo por foco o processamento de infor- inagao que leva ao diagnéstico na clinica médica. Mas, em 1972,a oxperiéncia pessoal de gravidez e parto no Sistema Nacional de Sade inglés despertou o desconforto pela maneira como as mu- lheres eram tratadas nas clinicas de pré-natal e a curiosidade (juanto a relagao entre os médicos e seus pacientes. Perguntava se (ya inevitavel que tal experiéncia fosse tao insatisfatoria! Abando- jiei entao a perspectiva cognitivista de cunho mais intraindividual » reorientei minha pesquisa para a experiéncia de gravidez e yarto de mulheres primigestas e a utilizagado dos servigos de pré-natal. A vinda ao Brasil por um ano - de 1976 a 1977-ea obtengao de uma dotagao da Fundagao Ford em concurso pata pesquisas 21 a sobre estudos populacionais criaram a oportunidade para o conta: lo com 0 movimento sanitarista e com os pesquisadores da area di clencias sociais e satide. Essa era uma €poca de muita ebulicdo n materialismo historico, que congregava, na época, cientistas so- Glais e médicos sanitaristas do porte de Maria Cecilia Donnangelo, em Sao Paulo, Sergio Arouca e Carlos Gentille de Mello no Rio de 3 Janeiro, Jaime Breilh e Ana Cristina Laurell, no México, e Juan Gé sar Garcia, na Opas. Foi nessa fonte que bebi durante m: esta- i, i ft beb: inh d ‘inha este __ Nesse periodo, fui acolhida tanto na Universidade Federal de Sao Paulo, a entao Escola Paulista de Medicina, como na Faculdad de Satide Publica. Na primeira, permaneci um ano como pesqui ° dora visitante no Departamento de Medicina Coletiva, enti iba diregao de Magid lunes, por meio do qual conheci vatios médicos e Clentistas sociais comprométidos com a teforma do sistema d saude, incluindo ai profissioniais da Secretaria de Satide que tad abriram Portas para que eu visitasse os recém-criados servigos a pré-natal da cidade de Sao Paulg. Foi nesses servigos que pude 1 1% ; fart ; ca Zar as a itas mulheres aus Participaram de minha pesquisa de Na Faculdade de Satide Publica tive a honra de ser tecebida e acolhida por Ciro Ciari, entao diretor do Departamento de Satde Matemo-Infantil e Por professores e pesquisadores que circulavam. pelos espagos do Cebes e das reunides de ciéncias sociais e satide Ao retomar ao Brasil em 1980, in i é f B U, Ingressei como técnica na Fun- dacao de Desenvolvimento Administrativo, Fundap, atuando como pesquisadora no Centro de Estudos e Coordenagao de Bolsas ee 1. Cf. a este respeito DUARTE, E., 1999, 22 0 lstagios. Meus colegas eram, em sua maioria, socidlogos que compartilhavam de raizes intelectuais semelhantes as minhas. La ine envolvi com duas vertentes de atuagao. A primeira, voltada a {ormag&o profissional por meio dos cursos de aprimoramento. Hondo a técnica responsavel pelo assessoramento a Comissao de (primoramento do Programa de Aprimoramento para Profissio- iiuis Nao Médicos que Atuam na Area da Satide, tive a oportunida- eo de conhecer muitas pessoas, médicos e néo médicos, compro- inotidas com a melhoria do sistema de satide. Entre eles, destaco 0 liome de José da Rocha Carvalheiro, com quem colaborei mais tar- dle em outros projetos de pesquisa como, por exemplo, 0 Projeto Hola Vista — um estudo de incidéncia da infeccdo pelo HIV entre liomens que faziam sexo com homens, preparatorio para futuros olsaios de vacina anti-HIV/Aids, conduzido em Sao Paulo de 1994 4 1998. Tive também oportunidade de visitar varios institutos, liospitais e servigos de satide que desenvolviam, na epoca, cursos (lo aprimoramento, propiciando experiéncias valiosas sobre o ‘io profissional em instituigdes. A segunda vertente de atuagao estava mais diretamente rela- vionada & pesquisa, priorizando a organizagao dos servigos e a re- lnvao desses com os usuarios. Casava, assim, a viséo mais macro a organizag&o de servigos, que retomava os autores comprometi- (jos.com 0 movimento sanitarista, com a visao mais psicossocial (los sentidos da saude e da doenga para os usuarios e das formas do interagaéo entre esses e os profissionais de satde. Enfim, tais memorias permitem entender por que minha socia- ‘Ao no campo da satide tenha sido mais influenciada pela Socio- logia da satde do que pela psicologia da satde. Permitem enten- dor, ainda, a tentativa de integragao tedrica da historia das prati- vis de satide com as estruturas sociais e os sentidos da satide e doenga que acabou dando forma e cor a uma proposta especifica (lo desenvolvimento de psicologia social voltada 4 compreenséo los fendmenos da satide e da doenga. A psicologia social a que tive acesso no LSE se encontrava em plona fase de encantamento com as ciéncias cognitivas. Essa era \ ciéncia “hard” idealizada por tantos. Mas ja na década de 1970 jiavia, na psicologia social, uma contracorente que almejava uma vidncia mais socialmente envolvida e menos comprometida com a visio hegeménica de ciéncia. Nas margens do curso de doutorado 23 do LSE circulavam Os textos de Joachim Israel e Henri Tajfel, a an . confluéncia entie 0 campo da satide coletiva na Améri~ € as perspectivas criticas e humanistas, que emergiam nas universidades europeias e norte-americanas, que se foi forma. tando o meu ideal de Psicologia social da sade. Esse ideal é tra j eee ee ie integram a primeira parte deste ito. cada de 1990, buscam definir 1 campo de saberes e fazeres relacionados Soin o tees a satide e da doenga que incor a dad (pora a visao da psicologia soci iti- Ca e os ideais da satide coletiva. _ at o vince Capitulo ~ intitulado Psicologia da satide - A es- tomos omnes eae campo de saber — busca explorar os con- seeps ab leum campo de pesquisa e pratica fortemente iene 1 perspectiva da psicologia social critica. Partindo da “ eee entre saberes acumulados na histéria da discipli- ne ee oe pela ctescente insergao da Psicologia TAG fia ee crete dificuldades para a es- ‘itico, ent 7 ini a modelo psicodinamico na formacao Heo hoe pe oe da abordagem a-historica descolada do contexto so- Gial; ea hegemonia do modelo médico na definicao do objeto d investigagéo e intervencao. ¢ si Toma como modelo a cénstituigéo do campo da medicina so- cial na America Latina, incentivado pela Organizagaéo Pan-ametid cana de Satide, que comegou a tomar forma nos anos 1950, atin- oe a maturidade tedrica e institucional na década de 1970, ten- 187, Tend a madden socal conc ate ee como definir algumas dimensées centrais a zorein| ee _ au explicacéo de cunho psicossocial dos fendmenos da satide > aa doenga, entre eles: a constituicao histérica da medicina ocid ntall as caracteristicas do saber oficial em suas dimensées sedi e de poder, e as caracteristicas do saber de s ‘nso Comum sobre sati- . ber de sei sobre sat 24 O segundo capitulo — intitulado A construgao social do saber bre saide e doenga — Uma perspectiva psicossocial—avangaem jolagdo ao primeiro buscando situar mais especificamente a con- \1\buigao da psicologia social. Parte do pressuposto que, sendo um. jncio de campo entre a esfera individual e social, esta disciplina \iquire uma vocagéo antropofagica, tendendo a incorporagao de visoes de mundo da antropologia, sociologia, historia e linguistica, para citar apenas algumas. Neste capitulo, ja adoto uma postura francamente construcio- jista que busca fugir do enquadre intra ou interindividual, situan- \Joas pessoas na intersecgao de suas historias pessoais e a historia ji sociedade em que vivem. Focaliza, portanto, as visdes de mun- (lo de pessoas pensadas como sujeitos ativos, produtores de co- jhecimentos no afa de dar sentido ao mundo e que, nesse percur- (0, constroem efetivamente o mundo de artefatos e sociabilidade jie chamamos de “realidade” ‘Traz como contribuigdo especifica a sistematizagao das és tedricas pelas quais passou a psicologia da satide na pro- ‘iva incorporagao da dimensdo social na explicacao dos pro- isos da saude e doenga. Uma primeira fase que privilegiava a di- jonsdo intraindividual, em duas vertentes: a da psicogénese dos jloblemas de satide e a das teorias da personalidade. Uma segun- iu fase que buscava dar énfase aos aspectos psicossociais da ca- (oia multicausal que leva ao surgimento da doenga. Situam-se ai on ostudos sobre “eventos de vida”, “qualidade de vida" e estres- wo. @ uma terceira fase que focaliza a doenga como fendmeno psi- vousocial, historicamente constituido e sé passivel de ser compre- ondido se, lado a lado com a otica dos profissionais da medicina, jbordar também a perspectiva do paciente. ltmbora estabelega um diélogo com a Teoria das Represen- \ugoes sociais, anuncia um duplo salto tedrico: primeiramente, nin diregdo a adogao da abordagem construcionista; segundo, vin diregdo a uma perspectiva teérica centrada na producao dia- \oqica de sentidos (e néo mais na identificagao de representa- (O08 compartilhadas). O terceiro capitulo — intitulado Saude: um campo transdisci- plinar? — toma um rumo oposto aos anteriores €, a0 invés de demar- wut a diferenga, questiona a divisdo dos saberes no campo da satl- ‘Jo. Fortemente influenciado pela Teoria da Complexidade de Edgar 25 Morin, busca indagar o porqué dessas fronteiras disciplinares as implicagdes dessa fragmentacao para a produgao do conheci. mento. Discute, ainda, as contradigGes entre a interdisciplinaridade ideal de sintese buscado pelas disciplinas que bensam e atuam ni saberes que constituem, em seu Conjunto, 0 que Morin denomina “anel do conhecimento”. Para trabalhar © embate entre essas perspectivas, o texto introduz a nogdo de “campo cientifico”, de- senvolvida por Pierre Bourdieu. Passa a focalizar as estratégias de poder que encastelam os saberes e fazeres em campos disciplina- Tes, entre elas a regulamentagao do exercicio profissional. O quarto capitulo - intitulado Delimitagao tedrica e metodol6- gica da psicologia da satide - encerra 0 ciclo de reflex6es sobre os fundamentos e especificidades da psicologia da satide. Tendo por pano de fundo a progressiva diferenciagao entre a abordagem da Psicologia hospitalar, em pleno movimento de fortalecimento, e da Psicologia social da satide, trabalha dois cenarios cContrastantes. No primeiro, sdo privilegiados os avangos conjuntos, argumentando-se que a psicologia da sade é um campo unitario com contomos cla- Tos € em franco processo de institucionalizacdo. O segundo cenario argumenta na diregao oposta, que se trata de campo teoricamente multifacetado e fragmentado no qual se trava uma luta concorren- cial entre vis6es mais e menos comprometidas com as desigual- dades sociais que marcam os processos da sate e da doenga. De 1992 - data em que. o primeiro capitulo havia sido publica- do-a 1997 — data da elaboragao do quarto capitulo — muito havia acontecido em relagao a ‘Psicologia na area da satide, destacan- do-se a institucionalizagado Progressiva da psicologia hospitalar. Criaram-se ou fortaleceram-se associagées, revistas e, mais re- centemente, passou a ser outorgado, pelo Conselho Federal de Psicologia, 0 titulo de especialista em Psicologia hospitalar. Jé a psicologia social da satide tendeu ao encastelamento na pesquisa e formacao universitaria tendo pouco ou nenhum reconhecimento como area de atuacao profissional’. 2. Embora possa ser eventualmente incorporada em titulagdes abrangentes, como Psico- logia comunitéria, tendo em vista sua vocagao para trabalhar nos niveis dé atencao pri- maria a satide. 26 Mas, se perde espaco no debate profissional, o mesmo nao jvontece na arena tedrica e sao essas especificidades teoricas ve “onstituem o ceme do segundo cenario trabalhadonesse capitulo. Nolo, a psicologia da sade emerge como uma colcha de Tehaltoe ‘Ju eorias que mal conversam entre si. Retomando a perspecti }wicossocial critica, argumenta a favor da necessidade oar juicologia da salide no contexto sociopolitico, apontan lo uy 5 culos 4 consecugao desta ressocializacéo da area. Sao discu rés obstaculos a adogao de uma postura mais critica ecom- jlometida com a mudanga social: o viés individualis va das eee iu base; a falta de atengdo as questdes sociais com cme (ovicaso para com as desigualdades sociais ea at de ered \\obre os processos de elaboragao das politicas publicas n: da aude. Itnt&o, o que seria hoje a psicologia social da saude? Diria que a primeira caracteristica 6 o compromisso com oe lollos sociais pensados numa otica coletiva. Foge, portanto, o 8 jorupectivas mais tradicionais da psicologia voltadas a copes a wlio de processos individuais ou intraindividuais. Dialoga, n¢ ‘a fallamente, com teorias e autores que pensam as formas e ea (Jo organizagao na sociedade brasileira contemporanea. ren oe jouquisar e atuar em servigos de atengao primaria, em co! ae “omunitarios, em problemas de sade em que pesa a nee : iloonga e a promogao a satide (como a Aids ou a satide “ Ha “a Hhade i) ou onde ha necessidade de acompanhamento continu: do (vomo as doengas crénicas e a saiide mental). Tende, ani, aal _ (| a esfera publica: conselhos de satide, comiss6es e os ge Hlnhoragéo de politicas publicas. Desta forma, diria que a . \o social da satide é um pesquisador e um profissional ed S {ogo da complexidade e transita dos mictoprocessos de produg: (lo sentido as questées institucionais e politicas. 27 1, PSICOLOGIA DA SAUDE A estruturagaéo de um novo campo de saber* lar da psicologia da sade como novo campo de saber pare: a primeira vista, uma temeridade. Afinal, os aspectos psi- voligicos da satide/doenga vém sendo discutidos desde longa (uta e os psicdlogos ja ha muito tempo vém marcando presenca j\" Grea de satide mental. Entretanto, mudangas recentes na forma (Jo Insergdo dos psicdlogos na satide e a abertura de novos campos (Jo nluagdo vém introduzindo transformagées qualitativas na pra- \jun que requerem, por sua vez, novas perspectivas tedricas. \ul0, pois, que nos permite afirmar que nos estamos defrontando ona emergéncia de um novo campo de saber. Partimos, assim, da constatagao de que a psicologia, em um )lmeiro momento, entra para o rol das profissées ditas “da satide” ‘iiaves da aplicagao de um know-how técnico — derivado da expe- HOncia clinica - sem a contrapartida do questionamento desta \insposigao de técnicas de uma esfera para outra. Aos poucos, iliotanto, o saber acumulado na pratica, a necessidade de con- (oxlualizar esta pratica e a propria ampliagao no ntimero de psicd- Jago envolvidos nesta area determinam o surgimento de condi- (00s apropriadas para a estruturacdo de uma psicologia da saude. Uampo esse que, por situar as questées da satide na interface en- (10 0 individuale o social, configura-se como uma area de especia- \ivagao da psicologia social. sta contraposicao entre o saber psicologico especificamen- \u vollado as questdes da satide/doenga e a pratica psicolégica area que sera 0 objeto da reflexéo empreendida neste texto. A psicologia, embora intimamente relacionada com 0 concei- \o do satide (definida pela Organizagao Mundial da Satide como 0 hon estar fisico, mental e social) como disciplina, chega tardia- ' (jiginalmente publicado em Campos (s.4.). 29 {requentemente, como facilitador do processo de tratamento, id vendo - com raras excegdes — poucas oportunidades para cont hull nesse processo como profissional autonomo. Nesta peep (Iva, caberia aos psicdlogos preparar 0 paciente para a eA ‘lilras intervengées e, de modo geral, segurar a barra quando tarde neste cendrio e chega “mitida", tateando, buscando aind definir seu campo de atuagao, sua contribuicgao tedrica efetiva as formas de incorporagao do biolégico e do social ao fato psico. logico, procurando abandonar os enfoques centrados em um in. ca tradicional. A psicologia — ao contrario das outras disciplinas menciona- das — tem aplicagdes praticas na area da satide, ea emergéncia da! psicologia da satide, como campo de saber, esta intimamente Te- lacionada com as transformagGes que vém ocorrendo na insergao do psicdlogo na saude. Até recentemente o campo de atuacao da psicologia se resumia a duas Principais dimensées: em primeiro lugar, as atividades exercidas €m consultérios particulares, restri- tas a uma clientela derivada das classes mais abastadas. Uma ati- vidade exercida de forma autonoma, como profissional liberal 8, de forma geral, nao inserida no contexto dos servigos de satide. A segunda vertente compreendia as atividades exercidas em hospi- tais e ambulatorios de satide mental Atuacéo essa que, até recen- temente, estava subordiriada aos paradigmas da Psiquiatria, sen- do desenvolvida dentto do enfoque, entao predominante, de inter- nagao e medicagao Havia, é claro, formas,alternativas de insergao. Na area clini- ca, 0 trabalho desenvolvido Por algumas clinicas-escola junto a comunidades, trabalhando com Segmentos menos privilegiados da populaco, possibilitou uma teflex&o sobre o conceito de satide mentalea contribuigdo potencial da psicologia. Nos demais servi- Gos de satide, embora com participagao incipiente, o trabalho con- junto com médicos e outros profissionais em hospitais e consult6- nlos permitiu aperfeigoar técnicas de diagnostico e intervencdo. Tendo em vistao grande desenvolvimento das técnicas comporta- mentais — por exemplo, o biofeedback ~, englobadas pelo termo genérico de medicina comportamental. Mas, de maneira geral, es- Ses psicdlogos, trabalhando de forma isolada, acabavam por ado- tar a perspectiva médica, ignorando outras dimensGes, entre elas a propria natureza da pratica médica. Sua insergdo na equipe era, 30 () paciente expressasse suas emogées, restituindo-o ao papel de \yonle passivo. 7 A grande virada, no que diz respeito a insergao dos Pe {\ou servigos de sade em Sao Paulo, ocorreu a partir de 1 a {i wdogao de uma politica explicita, por parte da Secretaria da a (Jo desospitalizagao e de extensdo dos servigos de satide ment a A nde basica. A implementagaéo dessa politica ainda tao ao e onto de nao permitir uma avaliagao foi o resultado de uma ou hntalha entre psiquiatras tradicionais e alternativos, baal ess: (je tem suas origens na divulgagao do trabalho de Franco Basa- (lia na Ttélia. Nao cabe aqui, evidentemente, resgatar a historia dessa luta ‘i 0 estado atual da questéo. O que importa, considerando a ane \\luicao da psicologia da sade como um campo de ees é ae lu! que a politica adotada pela entaéo Coordenadoria le me Montal levou a criagéo de equipes de satide mental negates jiinimamente, por um psiquiatra, um assistente sociale i eee Jogo, que passaram a atuar nos centros de satide do Esta lo. me \\luia-se, assim, uma rede de servigos teoricamente integ vom atuagao nos niveis primario, secundario e terciario. A constituigao dessas equipes e sua inser¢aéo nos centros o jwilide nao foi um processo simples. De um lado, houve ees a por parte dos demais profissionais que nao one aia Oe: jl atribuido aos membros dessas equipes. De outro lado, ue 0 ombasamento tedrico-pratico necessario para a combreene: 2 dlossa nova forma de atuagao que fugia aos parametros da ee \iadicional dos profissionais que as integravam. O Se le \na psicdloga entrevistada no decorrer de uma Desauee 2 ne | pratica profissional em unidades basicas realizada por Spi (1985) ilustra bem este dilema: Nos primeiros dias foi horrivel porque ninguém sabia 0 que eu uo nha fazer aqui, e eu também nao estava sabendo bem oque i : tava fazendo aqui. Porque pratica de faculdade, né, vocé aten oe pacientezinho 1a, tem acompanhamento e tal. Mesmo em consul 31 lorio... nao tem nada a ver. Eu entrei sozinha, nao tinha 0 assis tente social... bem perdida. Pensei: ai, meu Deus, o que é que e vou fazer aqui? \\ilora de um artigo sobre a psicologia social da satide na América | tina -, foi esse o unico pais da América Latina, e talvez do mun- ‘Jo, que conseguiu integrar plenamente a pratica psicologica aos twwivigos de saude em todos os niveis de atengao - priméario, se fi uundario e terciario - com participacdo nao apenas nas praticas codiagnostico e terapia individual o1 u grupal? to desse projeto, para o fortalecimento do papel do psicélogo no trei namento de recursos humanos Para atuagdo nesse programa e surgimento de novas areas de Pesquisa, ampliando-lhe o objeto di modo a incorporar nao apenas 0s usuarios como também os pres: tadores de servico e o proprio processo de salide-doenga. Alias, as implicagées das transformag6es ocorridas na inser- Gao do psicdlogo nos servicos de satide para a constituigao de um: campo especifico de saber s4o apontadas também no caso de ou- tros paises, por exemplo, Inglaterra e Cuba. Na Inglaterra tem ha- vido uma expansdo paulatina no numero de Cargos para psicdélo- gos em servigos de sdtide voltados ao atendimento primario, sen- do rato, hoje em dia, nao haver um departamento de psicologia cli- nica vinculado ao sistema de médicos generalistas encarregados da atengao primaria. Mariéu e Johnson (1987), em artigo sobre a psicologia da satide na Inglaterra, sugerem que essas novas for- mas de insergao poderiam estar relacionadas a crise vivenciada atualmente pela medicina: telacionadas pois A crescente insatisfagéo com a medicina moderna, particular- mente com a impossibilidade de esta englobar a nova epidemiolo- gia que incorpora fatores Psicoldgicos, sociais ¢ econdémicos; e ao desenvolvimento de terapias psicolégicas para queixas fisicas que leva ao reexame da validade do dualismo cartesiano men- te-corpo que continua a embasar a medicina modema (p. 82). Quanto a Cuba, de acordocom Averasturi (1985) ~ ent&o chefe do Grupo Nacional de Psicologia do Ministério de Satide Publica e 32 lenciais, como também nas areas de pesquisa e forma¢aéo de /nuursos humanos. Participagao essa que data de 1968, quando ol wlaborado o Plano Nacional de Atividades de Psicologia para a Po- \iulinica, ocasiéo em que o psicdlogo foi integrado, pela primeira vow, 4 equipe de satide Dessa forma, em Cuba, a psicologia da satide ampliou seu ob- jnlo de estudo, que passou a englobar néo apenas os poaes jwicologicos e psicopatolégicos que caracterizavam a psicologi: ulinica tradicional, como também o conhecimento dos processos ulopsicolégicos relevantes para a manutengao da ani - : ‘oipreensao da origem e do desenvolvimento da doenga e los oi yollios aspectos da pratica médica, entre eles a Telacao a : “0 paciente, a satisfagdo da populagao com os servigos, as i {i de utilizagao dos servigos e a participagéo da comunida ii) Hua avaliagao. | facil constatar e até mesmo buscar dados SE ean jul4 comprovar a ampliagao do papel do psicdlogo na area ~ wilde @ a consequente ampliagao de seu objeto de estudo e in- jolvongao. Por exemplo, temos como evidéncia do Stes jofouno pela satde a multiplicagéo de tevistas is ater eee (//oalt Psychology, The Journal of Behavioural Medicine, eyo. (iJ) ancl Health, entre outras); a formagao de divisoes de pale oo (jl da satide em associagdes de psicologia nacionais e estral i jiu, organizagéo de congressos especificos; eo aumento s {lilo visivel da participagao de psicdlogos Nos servigos de sau- #6, woja no nivel do atendimento direto a pacientes ou, como psi- PHlouos sociais, nas atividades de docéncia e pesquisa. ue Hililo, o que esta em pauta é a constituigaéo de um novo ote le Hho a psicologia da satide -, e nao se constréi uma ee me ‘/iHiuu através do relato das praticas a ela associadas. Vol st fililin atengao, portanto, aos modelos explicativos e aos mal {Olivon dessa disciplina. \\xaminando as bases existentes para 0 desenvolvimento S if) arco Ledrico adequado a psicologia da satide constatam- 33 trés problemas. Em primeiro lugar, o predominio do modelo psico dindmico no ensino da psicologia no nivel da graduagao, com én’ fase nas aplicagées clinicas na area da satide mental e total ausén cia das tematicas relacionadas a satide publica. Embora a psicolo: gia ocupe um lugar de relevo entre as profiss6es de sade qu apoiam a pratica médica ~ seja pelo numero de profissionais ai en: gajados ou pela especificidade de sua contribuigao - 0 contexto d sua atuacao, isto é, a organizacao dos servicos de sauide, é total: mente ignorada nos cursos basicos. Em segundo lugar, vale apontar a predominancia dos enfo ques em que 0 individuo é tratado como ser abstrato e a-historico, desvinculado de seu contexto social. E pouco frequente no trei namento do psicdlogo a introducao de temas macrossociais qui possibilitem uma discussio das determinagdes econémico-so Ciais dos fenémenos psicologicos. A incorporagao do social se da, portanto, de forma reducionista atendendo-se muitas vezes a ca: tegorias estanques como classe social que, embora permitindo manipulaco estatistica das varidveis, nao contribuem para a com: preensao do social como processo. Finalmente, merecem realce, também, a hegemonia do mo delo médico na definigao do objeto de investigagao e a ausénci de paradigmas verdadeiramente psicologicos para o estudo do! processo satide/doencga’O modelo médico vigente esta embasa- do no paradigma da medicina cientifica, ou seja, no corpo de co- nhecimentos derivados empiricamente e que é compartilhado: como “verdade” pelo conjynto dos profissionais médicos. Ao ado- tar essa perspectiva, 0 cOmportamento do paciente passa a ser avaliado, antes de mais n4da, em funcao de sua adequagao ao sa: ber médico oficial. Se o Paciente nao segue o tratamento pro- posto, seu comportamento sera definido como rebelde, ou pior, como ignorante. Marteau e Johnson (1987) propdem algumas explicagées para a hegemonia do modelo médico em boa parte das pesquisas no! campo da psicologia social da satide. Essa hegemonia reflete, an- tes de mais nada, a aceitacao da autoridade do profissional na re- lacgéo com 0 paciente, fruto da formagao clinica predominante en- tre os psicdlogos. Nesse contexto, nada mais facil a aceitagao da autoridade da profisséo dominante na satide: 0 médico. Reflete, 34 alnda, a crenga na verdade absoluta das ciéncias naturais. Estan- (Jo. 0 saber médico embasado nesta verdade, a variancia e o desvio (| norma deverdo ser buscados algures, ou seja, no paciente. E, fi- jlmente, reflete a forma de inser¢ao do psicdlogo no setor saude, wondo predominantes a falta de autonomia e a subordinacgao ao lnédico, o que nao encoraja um saber independente. Em sintese, a lormagao recebida nos cursos de graduacao e a forma de inser¢ao (lo psicdlogo no setor da satide pouco contribui para a compreen- “io das formas e da dindmica da pratica médica e da organizacao (los servigos de satide. Sem essa compreensdo, sera dificil situar oretamente a contribuigao da psicologia na explicagao e/ou in- (nlvengao no processo satide/doenga. O momento vivenciado atualmente no processo de constitui- iv da psicologia da saude é, talvez, mais bem apreendido quando juacionado a constituigaéo da medicina social como campo de fiber. Fruto da crise da medicina oficial nos anos pds-guerra e ‘Ji constatagao de que seria preciso formar um profissional mais Honpativel com a situagao de satide vigente nos paises do Tercei- {) Mundo, a medicina social foi introduzida na América Latina a jiiilir dos anos 1950 através de esforgos conjugados da Organiza- io Pan-americana de Satde e da Fundagao Milbank. O objetivo \\\icial era estimular a contratagao de cientistas sociais pelas esco- lau meédicas, de modo a modernizar o ensino médico e estimular a /onsciéncia social desses profissionais. Inicialmente, visto que os cursos basicos em ciéncias sociais j\i0 incluiam, em seus curriculos, a questao satide, havia gran- ‘|i liclerogeneidade entre os professores contratados, seja quanto (\0)| Marcos tedricos adotados ou aos métodos de pesquisa. O pro- (wind de constituigao dessa area levou cerca de vinte anos, tendo /ologado nos anos 1950 e se concretizado por ocasiao da Teuniao iy Cuencas, no Equador, em 1972. Periodo esse que foi caracteri- Wo por, pelo menos, trés etapas: 1) O despertar do interesse pelo processo satide/doenga, caracterizado por grande diversidade metodologica e por uma vigorosa troca de experiéncias através da organizagao de seminarios regionais; 2) A concretizagao do “cimento ideoldgico” entre os inte- grantes do grupo, predominando a critica ao positivismo e 36 redundando na aplicagao rigida do materialismo histérico ao estudo do processo salide-doenga. Resulta dessa etapi um rico acervo de publicagées criticas mas poucos avancos na pesquisa empirica; }) A fase caracterizada pelo aprofundamento da aplicagao. do materialismo historico no estudo da saide-doenga, e su- peracgao dos erros. No dizer de Breilh (1986): Toma-se evidente a necessidade de passar das reformulagdes tedricas mais gerais para o estudo de problemas especificos. Tor- na-se imprescindivel, também, a exigéncia de passar dos desvio: empiricos positivistas, do questionamento ao aculturalismo, a fe: nomenologia, a absolutizacao da andlise quantitativa e ecolgica, para a recuperacao seletiva e subordinada de toda a riqueza do} conhecimento antropolégico, ecolégico, matematico. O ciclo his- térico demonstra a necessidade de se passar de uma primeira) etapa, eminentemente critica, de reconstrugao tedrica, para uma: fase seguinte, também critica, porém na qual se solidificou um} marco te6rico que permita, sem receios, assumir o desafio da in- corpora¢ao, com maior profundidade, de recursos especializado: da ciéncia convencional (9. 251). No caso da psicologia da salide, encontramo-nos, sem duvi- da, na primeira etapa desse processo: a descoberta de novos! campos de atuagao, a abertura de novos horizontes. Falta, no en- tanto, uma reflexao mais aprofundada sobre o contexto mais glo- bal em que se da esta atuagao: as representacdes do processo satide/doenga; a configuragao dos servigos de satide e.das pro- fissdes que ai atuam; as oliticas setoriais e suas implicagdes para os usuarios. A Figura,1 procura sintetizar algumas das prin- cipais dimens6es a serem incorporadas na busca de um embasa- mento mais globalizante para a psicologia da satide. Tendo por objetivo central a explicagdo do processo satide/doenga as dife- rentes abordagens ai consideradas subsumem trés dimensdes distintas: o saber oficial, o saber popular (ou do senso comum) a sociedade. 36 ( O Saber Vigura 1 - Linhas de investigagao pertinentes a explicacgaéo do processo satide/doenga Medicalizagao: a Expropriagao da Saide (22) ‘A Desqualificacdo dos Leigos (20) (21) Oficial O Saber Popular +a Relac&o Médico-paciente (13) Sep sages (qa we) (ea) ope Explicagao. do Processo Satide/Doenga Sociedade O eixo central do esquema proposto é a explicagao do proces- 80 salide/doenga, ou seja, as representagdes que predominam em uma determinada época — veiculadas, ou nao, pelo saber oficial. As representagdes sao formas de conhecimento social que orien- lam a acao, individual ou institucional, para a prevengao da doen- ¢a e a promogao ou recuperacao da satide. Sendo criagées indivi- duais na interface do saber oficial e dos processos sociais, consti- tuem uma esfera privilegiada para a psicologia da satide, dado que possibilita desvendar certas dimens6es cruciais para a compreen- sao do processo saude/doenga. Dentre estas dimens6es destaca- remos trés: 1) A compreensao da doenca como fendmeno coletivo, ou seja, privilegiando o discurso de uma dada sociedade sobre as enfermidades e os enfermos. Sao exemplos de trabalhos nesta vertente: as perspectivas historicas como a de Fou- cault, 1987 (1) sobre a loucura e de Herzlich e Pierret, 1984 (2) sobre as doengas coletivas e individuais; os estudos so- bre a metaforizagao das doencas, como os ensaios de Son- tag, 1984 (3) sobre a tuberculose e o cancer, e Sontag, 1989 (4) sobre a Aids; ou ainda, o trabalho de Goffman, 1982 (5) sobre a doenga como estigma. 2) A construgao do saber leigo, ou seja, os modelos explica- tivos que embasam as ‘diferentes interpretagdes das doen- ¢as e a busca de alterhativas terapéuticas. SAo exemplos dessa vertente: 0 estudo sobre a medicina popular realizada por Loyola, 1994 (6); a pesquisa sobre as representacdes da satide/doenca desenvolvida por Herzlich, 1973 (7) e sobre a representagao da satide mental - Jodelet, 1989 (8) - e do nervoso ~ Duarte, 1988 (9); assim como, também, os estu- dos sobre a insergao dos individuos no sistema de satde, seja como cidadaos ~ Fleury, 1986 (10); Marsiglia et al., 1987 (11); Cohn et al., 1991 (12) —ou.como usuario, Boltanski, 1969 (13). 8) A interface entre o saber oficial - mediado pela constitui- co do campo da pratica médica e das instituigdes médicas — e a representagao da doenga prevalecente em determina- das épocas e/ou grupos. Sao relevantes, aqui, os estudos que permitem entender a evolugdo do saber médico seja como medicina cientifica - Foucault, 1977 (14); 1984 (15); como medicina social - Foucault, 1984 (16); Nunes, 1983 (17); 38 Rosen, 1980 (18); ou como mediagao entre corpo e mente, como exemplificado no trabalho de Lipowsky, 1986 (19) so- bre a medicina psicossomatica. SAo importantes, também, os estudos que permitem entender a imposi¢ao deste saber como unico saber legitimo, seja através da desqualificagaéo dos leigos, como evidenciado nas pesquisas de Ehrenreich e English, 1973a (20) e de Spink, 1982 (21) ou do processo de medicalizacao da vida, tao bem caracterizado por Illich, 1977 (22). Integram este conjunto, ainda, os estudos refe- rentes a estruturagaéo da atengao a satide: a constituigao dos campos profissionais na satide - Amaral, 1988 (23); Du- rand, 1985 (24); Prado, 1985 (25); Spink, 1985 (26) — e a orga- nizagao dos servigos de satide - Braga e Paula, 1981 (27); Donnangelo, 1975 (28); Luz, 1979 (29) e Singer et al., 1978 (30), entre outros. A Figura 1 permite, portanto, visualisar a amplitude dos temas j\ouwiveis eo trabalho que nos espera na consolidagao dos marcos {nOllcos da psicologia da saide. Permite, sobretudo, perceber a he idade de superar os enfoques intraindividuais prevalecen- {ule recentemente, e adotar uma perspectiva mais globalizante « dindmica que possibilite entender a saude/doenga como proces- (0 historico e multideterminado. 39 2. A CONSTRUGAO SOCIAL DO SABER SOBRE A SAUDE E A DOENCA Uma perspectiva psicossocial* Ao abordar as contribuigdes possiveis da psicologia social para a compreensao do processo de adoecimento e das praticas adotadas para a prevengao deste adoecer, sua cura ou a promocgao do estado de satide, partiremos, neste ensaio, de uma concepgao psicossocial bastante especifica. Concepgao esta que é fruto de todo um processo de questionamento que perpassa nao apenas esta disciplina mas, de forma geral, inaugura uma nova epistemo- logia nas ciéncias sociais de forma incisiva Esta perspectiva construtivista e historicista por exceléncia tem como precursores, como aponta Ibafiez (1990), Nietzsche, pas- sando por Heidegger, pelo Wittgenstein da segunda fase e por Foucault. Consiste, essencialmente, em uma tentativa de des- montar 0 arcabougo epistemoldgico de retorica da verdade pauta- da pela razao cientifica, enfatizando, em marcada oposigao a esta postura, anatureza “construida” da realidade social. Ou seja, mui- to embora a objetividade possivel do “mundo das coisas” nao seja posta em dtvida (realismo ontoldégico), as nossas explicagdes e descri¢gdes deste mundo sa¢@ tidas como construgées socialmente determinadas. Desta forma, 0 discurso e a propria pratica cientifi- ca podem e devem ser eles préprios objetos de uma anilise social. Aconsequéncia mais visivel desta postura é a adocao necessaria de uma perspectiva historicista, dado que “toda produgao que ema- na de seres historicos tem as condigdes de sua produgao nelas in- corporadas” (IBANEZ, 1990: 11). Ou seja, elas sao sempre contin- gentes as condicdes concretas particulares que as engendraram e tornaram possivel sua disseminagaéo em um determinado grupo so- cial * Originalmente publicado em Satide e Sociedade, 1(2), 1992, p. 125-139, 40 / otica construtivista, em Ultima andlise, acaba gerando uma Vio mais integrada e compreensiva das ciéncias sociais, sendo a fiagmentagao atual em disciplinas relativamente estanques vista \J\almente como produto de uma construgao especifica, histori- valnonte datada, de ciéncia. Assim, embora tomando como ponto io partida uma perspectiva especifica - tal como a da psicologia f\julal - cada vez mais se torna imprescindivel cruzar e recruzar {\oloiras disciplinares em um processo continuo de desterritoria- \iwagiio. Afinal, como afirma Rolnik (1989: 16) “o cartografo é so- {/oludo um antropofago” e as cartografias “trazem marcas dos en- Honlios que as foram constituindo: sinais dos estrangeiros que, “avorndos, desencadearam diregdes na sua evolucaéo”. (\ psicologia social, tendo como arena de atuagao 0 complica- io moio de campo entre a esfera individual e social, tem necessa- famonte — pela propria constituigaéo de seu objeto de estudo - win vocagéo antropofagica; ou, usando uma linguagem menos jO moderna”, tem evidente vocagao interdisciplinar, sendo suas {\onloias permeaveis as contribuigées de uma variedade de ou- \/" disciplinas afins. Vocagao esta que ja foi negada em certas fa- fon de sua historia, quando foram privilegiadas vertentes mais \\\1uindividuais; mas foi reassumida, a partir dos anos 1970, quan- (0 paicdlogos mais criticos passaram a exigir “uma psicologia so- lal mais social” (TAJFEL, 1982). Nesta nova perspectiva caberia 4 psicologia social, como afir- jv Lane (1984), recuperar o individuo na intersecgdo de sua histo- {a coma historia de sua sociedade. Abandonar, portanto, a dico- {olla individuo-sociedade retomando, em uma nova base, 0 de- jjnlo sobre a autonomia relativa das esferas social e individual sem all no reducionismo sociologizante (quando o individuo é visto Holo produto do mundo social que o cerca) ou psicologizante ((uando, em ultima analise, o individuo é visto como um ser auté- jiolo, produto da dinamica de suas caracteristicas individuais). O que esta em pauta, portanto, é a adogao, também na psico- {yin social, da postura construtivista (ISRAEL, 1972) ondeo sujei- {0 © enfocado como produto e produtor da realidade social. Ao “dolar esta Otica construtivista, o objeto privilegiado da psicologia woulal passa a ser o processo de aquisi¢ao de conhecimentos no “li de dar sentido ao mundo ~ a construgao social da realidade jura usar a expressdo cunhada por Berger e Luckmann (1976). 41 Processo privilegiado minimamente devido a centralidade que as- sumem a introjegao e a transformacao dos dados sociais no desen- volvimento do pensamento. A aquisi¢ao do conhecimento, nesta perspectiva, é um pro- cesso ativo de construgao em dois sentidos complementares. Em primeiro lugar, 0 sujeito é ativo porque ele da sentido aos objetos sociais, materiais ou ideacionais que 0 cercam; ou seja, em ultima analise, ele constrdi representag6es ou teorias sobre estes objetos. Em segundo lugar, ele € ativo porque cria, efetivamente, o mundo social através de sua atividade. Neste sentido, o homem transfor- maa natureza e, ao transforma-la, gera as condigdes sociais para 0 processo de producao: a praxis no vocabulario marxista. Estas duas dimensoes, a atividade simbdlica e a praxis, estao numa relacao dialética uma vez que conhecimento é a base da praxis, e a praxis a forma de verificagéo do conhecimento. Como diz Leontiev (1978): Se por um lado os significados atribuidos as palavras sao produzi- dos pela coletividade no seu processar historico e no desenvolvi- mento de sua consciéncia social e, como tal, se subordinam as leis histérico-sociais, por outro, os significados se processam e se transformam através de atividades e pensamentos de individuos. concretos, e assim se subjetivam (adquirindo um sentido pes- soal), na medida em gjue retornam para a objetividade sensorial do mundo que os eerea, através das ages que eles desenvolvem concretamente (apud LANE, 1984: 33) A perspectiva construtiyista privilegia, portanto, tanto a rela- cao dialética entre a esfera individual e social quanto a relagao dia- lética entre pensamento-é atividade. E justamente pela énfase dada a estes dois eixos que a abordagem denominada por Serge Moscovici em 1961 de Representacées sociais (MOSCOVICI, 1978) vem assumindo uma fungao agregadora em psicologia social. As representagées sociais séo formas de conhecimento prati- co — 0 saber do senso comum — que tém por fun¢do estabelecer uma ordem que permita aos individuos orientarem-se em seu mundo social e material e possibilitar, desta forma, a comunicagao entre os membros de um mesmo grupo. Dado seu carater eminen- temente social — visto que o significado a elas atribuido advém do mundo social — é imperativo que elas sejam sempre remetidas as condigoes de sua produgao; 4s comunicagdes mediante as quais 42 lau sdo veiculadas; e as fungdes a que servem na interagaéo com 0 Hiundo social. Assim, embora acessadas através do discurso, elas fio olucidadas pelos nexos que estabelecem com 0 entorno social. Paicologia social e saude Se a perspectiva construtivista é recente na psicologia social, {ais recente ainda é ela nas aplicagdes ao campo da satide onde, {indicionalmente, a psicologia tem atuado embasada numa otica {itraindividual. Para entender esta afirmagao, necessario se faz pontuar a du- jila Interface da psicologia com a satide: primeiramente como pra- (\un, atuando a partir do referencial clinico e centrada na experién- (iia do paciente-cliente com sua doenga. Em segundo lugar como {orla explicativa, contribuindo, juntamente com as demais disci- plinus relevantes neste cenario interdisciplinar, para a compreen- wo do processo saude/doenga. lim se tratando da contribuicéo da perspectiva construtivista da ologia social a area da satide, é obvio que estaremos abor- dando apenas a segunda interface; embora dbvio também seja {jlo a abordagem tedrica pode - e deve - embasar a pratica. Pode # dove, mas nao o faz — no momento — talvez por constituir um cor- io de conhecimentos ainda incipiente. Ao ser pensada como disciplina explicativa, a psicologia da ude, ao longo de sua breve historia, reproduziu a situagao exis- {onte na disciplina mae. Partiu, inicialmente, de uma perspecti- Va intraindividual para a explicagao do processo satide/doenga; }iusou, numa fase posterior, a incorporar o social de forma meca- iilch @ apenas recentemente adotou uma postura mais dinamica face ao social, abragando uma postura construtivista. Ao fazer referéncia a “breve historia da psicologia da satide” lorna-se necessario abrir novo paréntese. Afinal, todos sabemos (jue desde tempos imemoriais, tanto no Ocidente quanto no Ori- wile, a vinculagao entre comportamento e satide, ou entre corpo e inente, fez parte da reflexao sobre a doenga, especialmente em pe- tlodos historicos (ou a partir de visées de mundo) onde a doenca fol equacionada com a ruptura do equilibrio intraindividuo ou en- tte o individuo e o cosmos. Falar em “breve historia” exige, pois, 43 uma qualificagao. Breve, aqui, refere-se ao esforgo sistematiza de pesquisa, proprio a postura cientifica das modernas discip] nas. Neste sentido, as explicagées do processo satide/doen que englobam uma perspectiva psicologica tem uma historia r cente que remonta, segundo revisao feita por Lipowski (1986), década de 1930. Psicologia e satide na vertente intraindividual Retornando entao as fases Por que passou a psicologia da savid na progressiva incorporacéo da dimenséo social na explicagao a processo satide/doenga, mencionamos anteriormente que, num pri A primeira corrente aqui identificada tem como conceito cen- tral a psicogénese da doenga. Derivada da teoria psicanalitica tem como principal proponente o psicanalista Franz Alexander. A tese central de Alexander era de que os conflitos inconscientes nao re- solvidos entre os desejos e as forgas antagonisticas do ego edosu- perego geravam tens6es erhocionais crénicas cujos correlatos fi- siologicos podiam resultarem disfungao ou mesmo em mudangas estruturais em determinados érgaos do corpo. Uma nova versao para a velha e influente tese de que a emogao nao domesticada gera doenga. A psicogénes#foi a teoria predominante na medici- na psicossomatica entre 1930 e 1968, perdendo forga, entretanto, a medida que se reconhecia a multicausalidade da doenga e se Te-situava a emogao como um dos elementos da resposta psicofisio- légica do organismo aos inputs de informacao do ambiente — e nao mais como causa primaria de determinadas Teacdes somaticas. A segunda corrente da vertente intraindividual, mais proxima as teorias da personalidade, também toma folego na década de 1930, especialmente através do trabalho de Helen Dunbar. O pressuposto central, no caso, é que existe uma relagao entre cer- tos tipos de personalidade e certas doengas. Atualmente o esfor- go de pesquisa nesta corrente centra-se especialmente em duas doencas da modemidade: o cancer e as doengas cardiacas. O 44 to de andlise de um ensaio de Susan Sontag Coed é as da doenga, tem sido vinculado com a a s + emocées, seja no sentido mais generico de bloquei wAniwer, obje sobre os metafor who das I oe. f Spice como no caso de Reich (1970) — ou no sentido mal a istica de personalidade — yilico de introverséo como caracteris' a imo ho cago de Eysenck (EYSENCK & RACHMAN, 1966) le ; doengas cardiacas, atualmente no ae = ate : : imac Pe 3 a destacaram o papel da chai ‘le pouquisa nesta area, la ‘cinas da compar ee telagao de caracteri: t jilidade tipo A”: uma cons I aan — ylo explorada pelos eon fas a a é jue ocupa ho} min ‘nuda a década de 1960 e a \ 0 Seat eponthe ag lizadas em psicologia da sat a ca esegone a ita por Bennett e Carroll em 1990. Ja literatura nesta area feita pt net arn i er mnalidade tipo A agrega as caracteristicas a ond 's jiu grandes centros urbanos: competitividade, ea oe who de tempo, impaciéncia, ce ce eae ape é esta ac wip inuscular, etc. Em suma, L S oa Manchetes recentes em jomais paulistas que ote ete a \\oulilidade mata”... ou seja, lendo-se nas entre] juin o viva mais tempo! Awpectos psicossociais do adoecimento Situam-se aqui os estudos sobre ee af oe le if ily vida" e sobre o Stress, a comecar pela obra ja classica ‘loss e doenga -, publicada em 1953. aris ente popular em fungao is nte tornou-se particularm\ u oa gicos que possibilitaram a mensuregeo <8 ynriaveis, a construgo de indicadores e 0 Se ee nclarbed ve é wultivariaveis em ; \ico através de técnicas multive ; ee ida do individuo e o ap wile eventos estressantes na vi BO oe fi Ario ressaltar, de modo a pre’ (la doenga. E necessarior Sew. a rtente, de apontar 0: ‘Jo que nao se trata, nesta ve! tal ¢ anda ico da vida social - aspecto este que € Soe vecuitheles pidemiologia -, mas de buscar nexos causais ent epic ‘ (lo vida e 0 adoecer. (jos avangos metodol 45

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