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Capitulo 1 PRIMEIRA PREMISSA: REALISMO 1. DE QUE SE TRATA Para enfrentar 0 tema do senso religioso de um mo- do livre de equivocos ¢, portanto, mais eficaz, exporei a metodologia do trabalho através de uma triplice premissa, ‘Ao abordar a primeira delas, quero citar como ponto de partida uma pagina do livro Reflexes sobre a condu- ta da vida, de Alexis Carrel: “Na enervante comodidade da vida moderna, 0 con- junto de regras que dao consisténcia @ vida se reduziu; a maior parte das fadigas que 0 mundo césmico impunha desapareceu, ¢ com elas desapareceu também o esforco criativo da personalidade. (...) A fronteira eatre o bera o mel se desvaneceu, a divisto reina em toda parte. (...) Pouca observago e muito raciocinio conduzem ao erro. Muita observacdo e pouco raciocinio conduzem a verda- de’, Interrompo para observar que Carrel usa agui a lin- guagem de quem sempre se dedicou a um certo tipo de es- tudo, cientifico (recordemos que ele, ainda rauite joven, recebeu 0 Prémio Nobel de Medicina): a palavra “‘racioci- nio” poderia ser substituida com utilidade pela expressao, ‘dialética em fungao de uma ideologia”. De fato — pros- segue —, a nossa ¢ uma época de ideologias, ou seja, 1a, W 0 senso religiso, qual, em vez de se aprender da realidade todos os seus da- dos, construindo sobre ela, procura-se manipuler a realida- de segundo a coeréncia de um esquema fabricado pelo telecto: “assim, 0 triunfo das ideologias consagra a rufna da civilizagao”’. 2, O METODO Da PESQUISA ft IMPOSTO PELO OBJETO: UMA REFLEXAO SOBRE A PROPRIA EXPERIENCIA Este texto cle Carrel introduziu bem o titulo da primei- ra premissa: para uma investigacdio séria sobre qualquer acontecimento ou objeto é preciso realismo. Com isto, tenho a intengao de referir-me a urgéncia de nao privilegiar um esquema que jé tenhamos em men- te em deirimento de uma observagc global, apaixonada Sinsistente do fafo, do acbntecimento real. Santo Agosti- nho, com um cuidadoso jogo de palavras, afirma algo se- melhante com esta declaragio: “‘Procuro a fim de saber algo e nao a fim de pensi-lo". Tal declaragdo indica uma atitude oposta aquela que & mais facil de se reconhecer no homem moderno. Se, de fato, sabemios uma coisa, po- demos também dizer que a pensames, mas Santo Agosti- ho nos adverte que a reciproca nic é verdadeira. Pensar alguma coisa é'@ construcdo intelectual, ideal ¢ imaginati- va que realizamos sobre els. Freqiientemente, porém, con- cedlemos demasiado privilégio a este penser e, sem nos dar- mos conta disso — ow inclusive chegando a justificar a postura que estamos querendo definir — projetamos so- bre 0 fato 0 que pensamos dele. Av contrdrio, 0 homem sto quer saber como é um fato, e s6 quando sabe como ele &, € somente entdo, pode também pensé-lo. Assim, na esteira das abservacdes de Carrel e de San- to Agostinho, insisto na afirmagao de que também para 18 Primeira promise: reaismo a experiéncia religiosa ¢ importante, antes de mais nada, saber como € e de que se rata exatamente, Seja como for, ¢ claro que, antes de qualquer outra consideragao, devemos afirmar que se trata justamente de um fato; alids, do dado de fato estatisticamente mais difundido na atividade humana, N&o existe, com efeito, atividade humana mais vasta que aquela que identifica mos sob 0 titulo ‘‘experiéncia ou sentimento religioso”. Ela propée ao homem uma interrogagao sobre tudo o que dle realiza, e, por isso, torna-se um ponto de vista mais amplo que qualquer outro. A interrogacao do senso religio- s0, como veremos mais adiafite, € “ue sentido tem tudo?”, € devemos reconhecer que se trata de um dado emergente no comportamento do homem de todos os tempos, € que tende a atingir toda a axividade humana. Portanto, se queremos saber como ¢ este fato, em que consiste este senso religioso, defrontamio-nos logo, de for- ma aguda, com o problema do métodg. Como encarat_es- te fen6imeno, para termos certeza de conseguir, conhec lo bem? i preciso dizer que, neste campo, a maior parte das pessoas confia — consciente ou inconscientemente — na- quilo que dizem os outros, ¢ em particular naguilo que dizem os que se projetam ne socieiiade, como, por exem- plo, os filésofos que sac ensinados nas escolas, os jornalis: tas que normalmente eserevem nos jornais e nos periddi- cos que determinam a opiniao piblica. Portanto,que fare- mos para saber 0 que é 0 senso religioso? Estudaremos aguilo que sobre ele nos falam Aristételes, Platéio, Kant, Marx ou Engels? Podemos também fazer isto, mas privile- giar este método € incorreto, porque no podemos abando- nar-nos ao parecer de outros sobre esta expresso funda- mental da existéncia humana, absorvendo, por exemplo, as opiniges mais em voga ou as sensagbes que determinam, 0 ar que respiramos. 19 \ i | | 0 senso religioso O realismo exige que, para observar um objeto de mo- do tal que ele seja conhecida, o método nao seja imagina- do, pensado, organizado ou criado pelo sujeito, mas im- ‘posto pelo objeto. Se eu me achasse sentado falando pa- ra uma sala lotada, e houvesse um caderno de notas em cima da mesa, o qual, enguanto eu falasse, entrevisse com © canto do olho, ¢ me perguntasse o que seria aquela bran- cura que estaria ferindo minha visdo, poderia pensar nas coisas mais disparatadas: sorvete espalhado, um farrapo de camisa, etc. Mas 0 método para saber de que verdadei ramente se trata é-me imposto pela propria coisa. Isto é, se eu quisesse conhecer de verdade o objeto branguejante, nao poderia dizer que preferiria pOr-me 2 contemplar um outro objeto, vermelho, no fundo da sala, ou os olhos de uma pessoa na primeira fila. Deveria, necessariamente, re- ignar-me a inclinar a cabeca e enquadré-lo em meu cam- po de visto, fixando os olhos sobre ele Quer dizer, © método para conhecer um objeto me é ditado pelo préprio objeto; nao pode ser definido por mim. Se, em lugar do caderno de notas de que falamos, supusés- semos que.fosse possivel ter ao alcance dos olhos a experi- 2ncia religiosa enquanto fenOmeno, também neste caso se deveria dizer que 0 método para conhecé-la deve ser por ela sugerido, Ora, que tipo de fendmeno é a experiéncia religiose? E um fendmeno que diz respeito ao ser humanos por con- Seguinte, no pode ser trata‘la como se fosse um fenéme- no geoldgico ou meteoroldgico. E algo que se relaciona com a pessoa, Entao, como agir? Em se tratando, pois, de um fenémeno que se pessa em mim, que interessa & minha consciéncia e ao meu eu como pessoa, é sobre mim ‘mesmo que devo refletir. Faz-se necessdria uma investiga- cdo sobre mim mesmo, uma investigado existencial.. ‘Uma vez terminada tal investigarao, ser-me-é muito ‘itil confrontar os resultados com o que pensadores ¢ fil6- 20 Priira premisse:retisma sofos dizem a réspeito. Nesta altura, semelhante confron- to enriquecera o dado que obtive, sem o risco de conside- rar como definic&o um simples parecer alheio. Nao partir de uma investigacdo existencial seria como pedir @ unt 6 ‘yo'a consisténcia de um. fenémeno que eu vivo. Se nao fosse confifmagdo, enriquecimento ou contestagiio como conseqiiéncia de uma reflexdo que eu pessoalmente ja fiz, © parecer de outrem seria somente a substituicdo de um_ trabalho que me cabe e um veiculo de opiniao inevitavel- mente alienante. Eu adotaria acriticamente uma imagem induzida por. outrem acerca de uma questi importante para a minha vida ¢ 0 meu destino, 3. A EXPERIENCIA IMPLICA UMA AVALIAGAO Tudo quanto até agora expusemos ¢, porém, apenas 0 infcio do procedimento, jé que, depois de termos condu- zido uma investigacio existencial, ¢ necessdrio saber 1 tir-ura juizo acerca dos resultados Ge tal investigactio so- vitar alienar-se naquilo que ousros ra a necessidade de formular um juizo sobre tudo 0 que ‘encontramos em nds mesmos no decorrer da investigacio. De fato, sem uma capac zvaliagdo, 0 hot 40 pode fazer nenhuma experiéncia. # Gostaria de precisar que a palavra ‘“experiéacia’’ nao significa exclusivamente “provar”: ¢ homem experimenta- do ndo é aquele que acumula “experiéncias"” — fatos ¢ sensagdes ~~ a torto e a direito. Semelhante acimulo in- discriminado gera, freqilentemente, destruicio © esvazia- mento da personalidade. ‘A experiéncia coincide, certamente, com “‘provar’” al guma coisa, mas comes Sobrstude com 0 julzo dado a_ -TeapeitS daquilo que se prova. “A pessoa é, antes de tudo, (0 senso raligioso consciéncia. Por isso, 0 que caracteriza a experiencia ndo @ tanto o fazer, o estabelecer relagdes com a realidade co- mo fato mecénico; (...) 0 que caracteriza a experiéncia ¢ ‘ompreender uma coisa, descobrir-Ihe o sentido. A experi “éncia implica, pols, @ inteligéncia ‘do sentido das coisas’” (L. Giussani, I rischio ‘educativo, Jaca Book, 1983, p. 90). Um juizo exige um critério a partir do qual seja efetuado. "Tamibdm na experiencia religiosa, apos haver déservolvi- do a investigac&o, é preciso perguntar-se qual critério ado- tar para julgar o que se encontrou no decurso daquela re- flexio sobre si mesmo, 4, 0 CRITERIO PARA A AVALIACAO Perguntemo-nos, ent&o: qual ¢ ¢ critério que nos per mite julgar aquilo que vernog acontéter €im nbs mesmos! ‘Duas s4o as possibilidades: ou o critério com o qual julgamos 0 que se vé em nds é tomado fora de nés, ou é encontrado dentro de nés. No primeiro caso, tornaremos a czir na ocorréncia alie~ nante que jé descrevemos. Mesrao que tivéssemos desen- volvido uma investigacdo existencial ern primeira pessoa, recusando-nos, portanto, 2 nos reportar a investigagdes ja realizadas por outros, mas tirdssemos dos outros 9 eri rio para nos julgar, o resultado nao deixaria de ser alienan~ te. Fariamos igualmente depender ce algo que esta fora de n6s 0 significado daquilo que somos. ‘A esta altura, porém, alguém poderia objetar inteligen- temente que uma vez que 0 homem no existia antes de ‘existir, ndo é possivel que possa clar a si mesmo ura erité- tio de juizo. Contudo, este-é “dado”. ¥ Ora, © fato de que este critério ¢ imanente a n6s — dentro de nbs — ndo significa que nés no-lo damos sozi- nhos: ele ¢ tirado da nossa natureza, quer dizer, ¢ algo 2 Primeira premissc:realiseo gue nos é dado junta com a natureza (aqui a palavra “na- juresa” evidentemente é sustentada pela palavra “Deus”, indicio, pois, da origem ultima do nosso eu). Somente esta pode ser_considerade uma_altermativa de método razoavel, nao alienante. “portant, 0 critério para julgar aquela reflexéo sobre 5. A EXPERIENCIA ELEMENTAR Todes as experiéncias da micha humanidade e da mi- nha personalidade passam pelo crivo de uma “‘experiéncia original”, primordial, que constituio meu rosto.ao confor far-mé com tudo. Aquilo que cadz homem tem o direito € 0 dever ce aprender¢ a poisibiliade e 0 nAbito de com- parar cada proposta com esta sua ‘‘experiéacia elemientar™. Bm_que consiste este experiéncia original, elemer Traia-se de um complexo de exigéncias idéncias com, a3 uals o homem é lancado no confroato com tudo 9 ‘que existe. A natureza lanca o homem na comparagao wi ‘Versal consigo mesmo, com outros Yoo — como Tisir “al Geum complexo de evidEncies ¢ fal modo originals que tudo ou “Seles depende. las podem ser cados muitos nomes, através de : versas expresses (como exigtacia de felicidade, exigéncia de verdade, exigéncia cle justira etc.). Seja como for, so. como uma centelha que poe em sco 9 motor humano; antes delas nfo se dé nenhiim movimento, nenhuma dind- mica humana, Qualquer afirmacéo de uma pessoa, desde a mais banal ¢ quotidiana até a mais ponderada e plena de conseqiiéncias, s6 pode ser feita tendo por base este nt cleo de evidéncias ¢ exigéncias originais. orn as coisas, dotan- sal 0 senso religicso Recoloquemos diante de nés a hipétese daquele cader- no de notas do exemplo anterior. Se alguém se aproximas- se de nds e nos dissesse seriamente: ‘"Voc# esta certo de que se trata de um caderno? E se n3o fosse?"", a nossa re- aco seria de um espanto mesclado de medo, como a de alguém que se encontra diante de ui excéntrica, Aristote- Jes dizia argutamente que é préprio dos loucos perguntar- sevas razbes daquilo que a evidéncia mostra coro fato. ‘Ninguém poderia viver por muito tempo ¢ saci pondo-se tais perguntas absurcas. Pois ber, evidencia € um aspecto daquilo que chamei experiéncia éle- mentar, Gostaria de propor outro exemplo, grotesco, mas sig- nificativo. Em uma aula, 0 professor de Filosofia explica: “Todos nés temos a evidencie de que este cademno seja um objeto fora de nds. Nao hé ninguém ue possa evitar reconhecer que sua primeira impressao a seu respeito seja ade um objeto exterior a si. Supoaham, porém, que eu néio conhega este objeto: seria como se ele ndo existisse. ‘Vejam, portanto, que aquilo que cria o objeto é 0 nosso conhecimento, é 0 espirito € 2 energia do homem. Tanto € verdade que, se o homem nao o conhecesse, seria como se no existisse”. Bis um professor “‘idealista’’, digamos. Suponhamos que este professor adoeca gravemente € seja substituido. O suplente, informado pelos estudantes acerca do programa desenvolvido, decide retomar © exem- plo do professor ausente, “Todos nés estamos de acordo — diz ele — que a nossa primeira évidencia é de que ¢3- te seja um objeto fora de nés. E se no fosse? Demons- ‘trem-me que ele existe como objeto fora de nés, de mo- do incontravertivel”. Eis um professor problemeticista, cético ou sofista, Admitamos outra vez que, por circunstancias imprevis- tas, chegue Aquela classe um cutro suplente de Filosofia que retome 0 discurso do mesmo ponto. Ele diz: “To- 24. Primeles premisse: reco dos nés temos a impresséo de que este seja um objeto fo- ra de n6s: € uma evidéncia primeira, original. Mas, ¢ se gu nfo 0 comhecesse? E.como se nao existisse. Vejam, por fanto, que o conhecimento é um encontro entre uma ener gia humana e uma presenea. E um acontecimento no qu ‘acnergia da consciéncia humana assimila-se aun objeto. Vejam, entdo, meus amigos, que para o conhecimento s8 necessérias duas coisas: a energia da’nossa consciéicia © objeto. Como se produz semelhante unidade? E uma pergunta fascinante, diante da qual temos poder até certo ponto. E certo, porém, que o conhecimento ¢ composto de dois fatores””. Este é um professor “realista’?. ‘Vimos trés interpretagdes diferentes de um mesmo ar- gumento. Qual c 1al_delas. sera.‘‘justa”’? Cada uma delas tem seus atrativos, exprime um ponto de vista verdadeiro. Por qual método nos decidiremas? Ser4 preciso examinar as trés opinides ¢ confronta-las com os critérios daquela que ‘chamei experiéncia elementar: com os critérios imanentes A nossa natureza, com aquele complexo de exigéncias ¢ evidéncias com as quais nossa mae nos fez nascer. Dentre 0s trés professores, qual utiliza um método que correspon- de melhor a experiéncia original? E 0 terceiro que revela uma posigéo mais razoavel, porque leva em conta todos ‘0s clementos em jogo; qualquer outra metodologia cai num critério redutivo. Propus este exemplo para insistir na necessidade de que a reflexao sol ‘ja peneirada, a fim de alcangar um juizo, pel entre o conteudo da propria re~ flex ¢ 0 critério original do qual somos todos dotaclos. Uma mae esquimé, uma mie dz Terra do Fogo e uma mie japonesa dao luz seres humanos que so todos reco- nheciveis como tas, quer corn ciracteres exterores, quer como marca interior. Assim, quendo cles disserem ‘‘eu”” utilizardo esta palavra para indicar uma multip! icldade do elementos derivados de diversas historias, tradigbes ¢ 25 0 senso religiso st€ncias. Mas, indubitavelmente, quando disserem__ eu”? usardo tal. expresso também para indicar uma face interior, um “corag&o”’, como diria a Biblia, que é igual para cada um deles, embora traduzido das mais vliversas maneiras. Identifico este coracdo com aquilo que chamei de ex- periéncia elementar: algo que tende 2 indicar de maneira acabada impeto original com o qual. ser humano se lan- ca sobre a realidade, procurando tornar-se 0 mesmo com cla através da realizacdo de um projeto que imprima a pré- pria realidade a imagem ideal que o estimula interiormente. 6. O HOMEM, ULTIMO TRIBUNAL? Dissemos que o critério para julgar relaetlo.consigo _ ‘mesmo, com os outros, com 2s coisas € com o desting (0 an homem, conforme o que Ihe suge- @ a Sia esirutura original. Mas existem na convivéncia hrumana bilh6es de individuos que se comparam com as coisas e com o destino: como seri possivel evitar uma sub- jetivizagto geral? Quer dizer, tevie o omen, individual ‘mente, todo 0 poder para determinar o seu significado t- timo e, por isso, 0 poder sobre as agdes-a ele relacionadas? ‘Nao seria isto uma exaltacdo da anarquia, entendida co- ‘mo idealizag&o do homem come tiltimo tribunal? Consider, de resto, que @ anarquia, do ponto de vista antropolégico, assim como o panteismo do ponto de vista cosmolégico, constitui uma das grandes ¢ fascinantes tenta- 902s do, pensamento humano. De feto, a meu ver, somente dois tipos de homem resgatam inteiramente a estarura do ser humano: 0 anarquista e o autenticament: za.do homem é relaca infinites 0 anarauista € imagio de si aifo infinito, € 0 homem autenticamante religio- 50 ¢ 2 aceitacdo do infinito 26 Primeira premisse:reaiamo Pessoalmente, intui isto com clareza hé muitos anos, quando um jovem, coagido pela mie, veio confessar-se , comigo. Na realidade, ele nao tinha f. Comecamos a dis- cutir ¢, a um certo ponto, diante da avalanche de meus argumentos, disse-me, rindo: “Veja bem, tudo isso que 0 Senhor se esforea por me explicar no vale aguilo que vou Ihe dizer: © senhor nao pode negar que a verdadeira esta- tura do homem é a do Capaneu de Dante, o gigante acor- tentado por Deus no inferno que grita a Ele: ‘No posso livrar-me destas cadeias porque Tu me cravaste equi; po- rém nao podes impedir-me de blasfemar contra Ti, ¢ eu dlasfemo’. Esta é a verdadeira estatura do homem” Depois de alguns instantes de impasse, disse-Ihe com calma: “Mas ndo ¢ ainda maior amar o infinito?”’. 0 jo- vem foitse ra. Depois de quatro meses, voltou para dizer-me que fazia duas semanas que freatientava os sacra- Mentos, porque se sentiu “‘como que roido por uma tra. ga" curante todo o vero por aquela frase que eu Ihe dis. sera. Esse jovem morreu pouco tempo depois num desas. tre automobilistico. A anarquia constitui realmente & tentacdo mais fasci- ante, ras $ to fascinante quanio mentirosa e.a fora de tal mentira est justamente ro seu fascinio, que indus a esquecer que o homem antes nfo existia, depois morre. Portanto, @ pure violéncia aquilo que o faz dizer: “eu me afirmo contra tudo e contra todos”. E muito maior e muito mais verdadeiro amar 0 infinito, isto é, abragar a Tealidade-e o ser, ao invés de afirmar-se a si mesmo dian te de qualquer realidade. Porque, na verdade, a homem scimente se afirma ver- } dadeiramente a si mesmo quando aceita o real; tanto é ver. ‘ dade que o homem comega a afirmar asi mesmo aceitan- | do existir, isto é, aceitando ume zealidade que nao ihe foi dada por cle mesmo. (0 senso relsioso Bis porque o critério fundamental para se enfrentar as coisas ¢ 0 critério objetivo com o qual a natureza lan ca o homem na comparacdo universal, dotando-o daque- le micleo de exigéncias originais, daquela experiéncia ele- mentar com que todas as mies dotam, do mesma modo, os seus filhos. Somente aqui, nesta identidade da conscién cia altima, esta a superacdo da anirquia, A exizéncia da bondacle, da justica, de verdade, ca Felicidade, constitui © rosto iiltimo, 2 energia profunda com a qual os homens de tocios os tempos ¢ dz todas as rages abordam tudo, a ponto de poderem viver entre si um comércio de idéias e no apenas de coisas, ¢ de poderem, assim, transmitir um ao outro riquezas & dist€ncia de séculos. E nés lemos com emoao frases criadas hd milhares de anos pelas poe tas antigos, que nos dao a impressao de estarem se,referin- do ao nosso presente, de uma maneira tal como muitas vezes niio ocorre nos relacionamentes quotidianos. Se ¢: meniar, como diziamos, ¢ substancialmente igual em to- dos, mesmo que depais seja deverminada, traduzida e cea lizada de maneiras muito diversas, até mesmo aparents- mente opostas. 7. ASCESE PARA UMA LIBERTAGAO, Diria entdo: quem quer tornar-se adulto, sem ser enga- nado, alienado, escravo de outros, instrumentalizado, de: ve habituar-se a comparar tudo com experiéncis elementar, Assim, proponho uma tarefa impopular e nada facil, Normalmente, tudo ¢ abordado segundo uma mentalida- de comum, que é sustentada e propagada por quem detém 28 rimelre premisse:reitimo © poder na sociedade. Deste moco, a tradicgdo familiar ow 2 tradigéo de um contexto mais amplo no qual cada jum de nés foi criado sedimentam-se sobre nossas exigén- cias originais e constituem-se como uma grande crosta que altera a cvidéncia dagueles critérios ¢ significados primei- ros. Portanto, s? alguém quer contradizer tal sedimenta- ‘eGo induzida pela convivéncia social e pele mentalidade por esta formada, deve desafiar a opiniao comum. O-desafio mais audaz a mentalidade que nos domina e incide sobre nds ém tudo — desde a vida do espirito até o vestuario — é tornar habitual em nés‘o juizo sobre tu- do a luz das nossas evidéncias primeiras, € no & mercé de nossas reagdes ocasionais. Também estas opinides ocasionais s4o induzidas por um contexto € por uma histéria ¢ também elas devem ser ultrapassadas para que nossas exigéncias originais sejam atingicas. A maneira de conhecer, por exemplo, a relagdo entre homem e mulher, embora vivida como fato intimo e pessoal, é, na realidade, amplamente determinada tanto pela nossa instintividade, que produz avaliagdes que nao se ajustam a exigéncia original do afeto, quanto pela ima- gem do amor criada na opiniao péblica. £ preciso. perfurar sempre tais imagens induzidas pe- Jo clima cultural no quel estamos imersos e descer para to- mar nas mos as nossas exigéncias e evidéncias originais, ¢, com base nelas, julgar e avaliar cada proposta, cada su- gestdo existencial. O uso da experiéncia elementar, ou do préprio “core- cao”, é, portanto, impopular sobretudo quando estamos diante de nds mesmos, pois é justamente o ‘‘coragdo”” & origem do indefinivel incOmodo do qual somos presa a0 sermos, por exemplo, tratados apenas como objeto de inte- resse ou de prazer. A nossa exigéncia de homem ou. de mulher revela-se diferente: é exigéncia de amor ¢ é, infeliz- mente, muito facil de ser alterada, 29 0 sens0 relixioso € 0 inicio da libertagdo. ‘A recuperagtio do existencial profundo, que permite esta libertacdo, nao pode evitar o esforgo de nadar contra a corrente. Poderiamos chama-lo !rabaiho ascétizo, onde, com a palvra ascese, indicamos a cbra do homem enguan- to este visa ao seu amadurecimenco, enquanto diretaraen- te centrado no caminho para 9 destino. E um trabalho, e ndo é um trabalho Sbvio; ¢ algo cis simples, mas nao da- do de graca. Tudo o que até Comegamos a julga sora dissemos deve ser reconquista: do; vivemos numz época em que a exigéncia desta conquis- ta é mais clara do que nunca, ainda que em todas as épo- cas o homem tena precisado trabalhar para Teconquistar asi mesmo. Em iermos crisiaos, néia™, conversao. esforso faz parte da “me 30

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