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Ficha Técnica

Título original: THE ACCIDENTAL APPRENTICE


Título: A Herdeira Acidental
Autor: Vikas Swarup
Traduzido do Inglês por Elsa T. S. Vieira
ISBN: 9789892323930
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201
© 2013, Vikas Swarup
Licença de edição e comercialização em todo o mundo, exceto no Brasil
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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Para Aditya e Varun,
que ouviram as minhas primeiras histórias
Embora o autor, Vikas Swarup, trabalhe para o governo indiano, nenhuma das opiniões expressas
neste romance deve ser vista como se retratasse de alguma forma a opinião do governo da Índia, ou
do autor na sua capacidade oficial.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, locais e incidentes são produto da imaginação
do autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
acontecimentos ou localizações reais é pura coincidência.
PRÓLOGO

N a vida, nunca temos aquilo que merecemos: temos aquilo que negociamos.
Esta foi a primeira lição que ele me ensinou.
Nos últimos três dias, tenho posto em prática essa orientação, negociando freneticamente com os
meus acusadores e perseguidores, numa tentativa desesperada de escapar à pena de morte que todos
eles acreditam que eu mereço.
Fora da prisão, a imprensa ronda, como um bando de abutres. Os canais noticiosos não se fartam
de mim e retratam-me como um exemplo do que acontece quando a cobiça e a credulidade colidem
nesse desastre sanguinolento a que se chama homicídio voluntário em primeiro grau. A fotografia
que me foi tirada pela polícia após a detenção é constantemente reciclada. A Sunlight TV até
desencantou uma fotografia antiga, de má qualidade, tirada na escola em Nainital, em que estou
sentada na fila da frente, muito direita, ao lado da senhora Saunders, a nossa professora do oitavo
ano. Mas Nainital parece-me agora ter sido noutra vida, uma terra de fantasia, de montanhas
verdejantes e lagos prateados, onde em tempos o meu otimismo juvenil me iludiu, levando-me a
acreditar que o futuro não tinha limites e que o espírito humano era indomável.
Quero ter esperança, sonhar, ter novamente fé, mas o peso desumano da realidade continua a
esmagar-me. Sinto-me como se estivesse a viver um pesadelo, encurralada num poço fundo e
escuro de desespero interminável, do qual não há fuga possível.
Sentada na minha cela sufocante, sem janelas, os meus pensamentos recuam até ao dia fatídico em
que tudo começou. Embora tenha sido há mais de seis meses, ainda recordo todos os detalhes com
uma clareza inabalável, como se tivesse acontecido ontem. Vejo-me a caminhar em direção ao
templo de Hanuman, em Connaught Place, naquela tarde fria e cinzenta…

É sexta-feira, dia 10 de dezembro, e o tráfego em Baba Kharak Singh Marg é a habitual cacofonia
caótica de calor e barulho. No engarrafamento de carros e autocarros pesados, ouve-se o som das
buzinas dos automóveis, o zumbido das motas, os escapes dos riquexós motorizados. Não há nuvens
no céu, mas o sol é invisível, por trás daquele cocktail tóxico de poluição que sufoca a cidade
todos os invernos.
Visto um casaco de malha cinzento por cima de um salwar kameez1 modesto, azul-celeste.
Despira, precavidamente, o meu uniforme de trabalho. É uma rotina que cumpro todas as sextas-
feiras: sair do salão de exposições à hora de almoço e percorrer a curta distância, através do
mercado, até ao templo antigo dedicado ao deus-macaco, Hanuman.
A maioria das pessoas vai aos templos para rezar; eu vou para expiar. Ainda não me perdoei pela
morte de Alka. Parte de mim pensará sempre que aquilo que lhe aconteceu foi culpa minha. Desde
essa tragédia horrível, Deus é o meu único refúgio. E tenho uma ligação especial à deusa Durga,
que também tem um altar dentro de Hanuman Mandir.
Lauren Lockwood, a minha amiga americana, vive perpetuamente fascinada pelo facto de nós
termos 330 milhões de deuses.
– Bem, não há dúvida de que os hindus gostam de jogar pelo seguro – diz ela.
Provavelmente é um exagero, mas qualquer templo que se preze tem, realmente, altares a pelo
menos meia dúzia de divindades.
Cada uma dessas divindades tem poderes especiais. A deusa Durga é a Invencível, capaz de
resolver situações da máxima aflição. Depois da morte de Alka, quando a minha vida era um túnel
escuro de mágoa, dor e arrependimento, Ela deu-me força. Está sempre comigo quando preciso
dela.
O templo está invulgarmente cheio, para uma tarde de sexta-feira, e sou apanhada no ajuntamento
de devotos que se acotovelam para chegar ao santuário interior. O chão de mármore é frio sob os
meus pés descalços e o ar está pesado, com uma mistura intoxicante de suor, sândalo, flores e
incenso.
Junto-me à fila das mulheres, que é consideravelmente mais curta, e consigo fazer a minha
comunhão com Durga Ma em menos de dez minutos.
Depois de terminar a minha darshan2, estou prestes a começar a descer as escadas quando sinto
uma mão no ombro. Viro-me e vejo um homem a fitar-me com olhar intenso.
Quando um homem desconhecido aborda uma mulher jovem em Deli, o primeiro instinto é
procurar o spray de gás pimenta que temos sempre à mão. Porém, o desconhecido que olha para
mim não é nenhum vagabundo.
É um homem idoso, vestido com uma kurta de seda branco-suja, com uma pashmina branca
casualmente posta sobre os ombros. Alto, de pele clara, tem nariz aquilino, uma boca dura e
resoluta e uma cabeça coroada por cabelo branco como a neve, penteado para trás. Uma tika3
escarlate adorna-lhe a testa. Tem os dedos carregados de anéis cintilantes, com diamantes e
esmeraldas. No entanto, são os olhos castanhos e penetrantes dele que me perturbam. Parecem
estudar-me com uma franqueza que acho ligeiramente intimidante. É um homem que gosta de
controlar.
– Posso dar-lhe uma palavra? – pergunta, em tom seco.
– O que deseja? – respondo friamente, mas em tom menos azedo do que usaria normalmente, por
respeito à sua idade.
– Chamo-me Vinay Mohan Acharya – diz ele, calmamente. – Sou proprietário do Consórcio de
Empresas Acharya. Já ouviu falar do grupo CEA?
Ergo as sobrancelhas, numa expressão de reconhecimento. O Grupo CEA é conhecido como um
dos maiores conglomerados da Índia, e fabrica tudo, desde pasta de dentes a turbinas.
– Tenho uma proposta a fazer-lhe – continua ele. – Algo que lhe mudará a vida para sempre. Pode
dar-me dez minutos, para eu lhe explicar?
Já ouvi estas palavras. Da boca de comerciais de seguros chatos e vendedores de detergentes
porta a porta. E deixam-me sempre desconfiada. – Não tenho dez minutos – digo-lhe. – Preciso de
voltar ao trabalho.
– Por favor, oiça o que tenho para lhe dizer – insiste ele.
– O que é? Diga.
– Gostava de lhe dar a oportunidade de se tornar diretora-geral do Grupo de Empresas CEA.
Estou a oferecer-lhe a oportunidade de liderar um império empresarial que vale dez mil milhões de
dólares.
Agora sei que não posso confiar nele. Parece um vigarista vulgar, em nada diferente daqueles
vendedores ambulantes omnipresentes em Janpath, que tentam impingir cintos Rexine de má
qualidade e pacotes de lenços baratos. Espero pelo meio sorriso que me dirá que ele está a brincar,
mas o seu rosto permanece impassível.
– Não estou interessada – digo, com firmeza, e começo a descer as escadas. Ele segue-me.
– Quer dizer que está a recusar a oferta do século, mais dinheiro do que conseguiria ganhar em
sete vidas? – O seu tom é cortante como um chicote.
– Oiça, senhor Acharya, ou lá como é que se chama, não sei qual é o seu jogo, mas não estou
interessada em alinhar. Portanto, por favor, pare de me incomodar – digo, enquanto aceito os meus
chinelos das mãos da velha que guarda o calçado dos devotos à porta do templo, por uma pequena
gorjeta.
– Eu sei que provavelmente julga que isto não passa de uma brincadeira – declara ele, enfiando
um par de sandálias castanhas.
– E não é?
– Nunca falei tão a sério em toda a minha vida.
– Então deve ser de um programa de apanhados para a televisão. Suponho que, assim que eu
disser «sim», me mostrará a câmara secreta que o anda a seguir.
– Acha que um homem da minha posição andaria a fazer programas idiotas de televisão?
– E não é idiota estar a oferecer o seu império a desconhecidos ao acaso? Isso faz-me duvidar de
que seja sequer quem diz ser.
– Bem visto. – Ele acena com a cabeça. – Um pouco de ceticismo é sempre saudável. – Enfia a
mão no bolso da kurta e tira uma carteira de cabedal preta. Dela, extrai um cartão de visita, que me
oferece. – Talvez isto a convença.
Dou-lhe uma vista de olhos. Tem realmente um ar impressionante, feito de uma espécie de
plástico semitransparente, com o logótipo do Grupo CEA em relevo e as palavras «VINAY MOHAN
ACHARYA, Presidente» gravadas por baixo, em letras pretas e grossas.
– Qualquer pessoa pode mandar fazer cartões por umas centenas de rupias – digo-lhe,
devolvendo o cartão.
Ele tira outro retângulo de plástico da carteira e estende-mo.
– E este?
É um cartão American Express Centurion preto, com o nome «VINAY MOHAN ACHARYA» gravado
em baixo. Só encontrei esta espécie rara uma vez, quando um construtor exibicionista do bairro
moderno de Noida o usou para pagar um televisor Sony LX-900 de sessenta polegadas que custava
quase 400 000 rupias.
– Não muda nada. – Encolhi os ombros. – Como sei que não é uma falsificação?
Nesta altura, já atravessámos o pátio de entrada do templo e estamos perto da estrada.
– Aquele é o meu carro – diz ele, apontando para um veículo reluzente estacionado junto do
passeio. No lugar do condutor vejo um motorista, com chapéu e um uniforme branco engomado. Um
guarda militar, com farda do exército, sai apressadamente do banco da frente e põe-se em sentido.
Acharya mexe um dedo e ele abre a porta de trás. O seu servilismo zeloso não parece falso; parece
apurado por anos de subserviência incontestada. O carro, reparo com admiração, é um Mercedes
Benz CLS-500 prateado, cujo preço ultrapassa os nove milhões de rupias.
– Dê-me um segundo – diz Acharya, e enfia a cabeça no carro. Tira do banco de trás uma revista,
que me estende. – Tinha aqui isto como último recurso. Se não a convencer, nada o fará.
É o número de dezembro de 2008 da Business Times. Na capa, está o retrato de um homem, com
o título «HOMEM DE NEGÓCIOS DO ANO». Olho para o rosto na capa e depois para o homem de pé à
minha frente. São idênticos. É impossível confundir o cabelo prateado distinto e bem penteado, o
nariz curvo ou os olhos castanhos penetrantes. Estou realmente na presença do industrial Vinay
Mohan Acharya.
– Está bem – cedo. – Então é o senhor Acharya. O que quer de mim?
– Já lhe disse. Quero fazer de si a minha diretora-geral.
– E espera que acredite em si?
– Nesse caso, dê-me dez minutos e fá-la-ei acreditar. Podemos sentar-nos a conversar?
Olho para o relógio. Ainda tenho vinte minutos da minha hora de almoço.
– Podíamos ir ao Coffee House – digo, apontando para o edifício decrépito do outro lado da
estrada, que funciona como centro social para as classes mais barulhentas.
– Preferia o Lobby Lounge no Hotel Shangri La – diz ele, com o ar relutante de alguém que tem de
aceitar uma escolha inferior. – Importa-se que um colega meu se junte a nós?
Enquanto fala, um homem materializa-se entre a multidão de transeuntes, como um fantasma, e
para ao lado dele. É muito mais novo, provavelmente com trinta e poucos anos, e está vestido de
modo informal, com um fato de treino azul-escuro da Reebok. Mede cerca de um metro e oitenta de
altura e tem a estrutura musculada e seca de um atleta. Observo o cabelo curto, os olhos pequenos
de furão e a boca fina e cruel. Tem o nariz ligeiramente torto, como se já tivesse sido partido, o que
cria o único aspeto memorável num rosto absolutamente vulgar. Percebo que deve ter seguido
Acharya durante todo este tempo. Mesmo agora, os seus olhos penetrantes dardejam de um lado
para o outro, perscrutando as imediações como um guarda-costas profissional, antes de se fixarem
em mim.
– Este é o Rana, o meu braço-direito – diz Acharya. Aceno educadamente com a cabeça,
sentindo-me murchar sob o seu olhar gelado.
– Vamos? – pergunta Rana. Tem uma voz rouca e áspera, como folhas secas a farfalhar no chão.
Sem esperar pela minha resposta, começa a caminhar em direção à passagem subterrânea.
O cheiro forte a panquecas de arroz e lentilhas e café torrado assalta-me os sentidos assim que
passo a porta do restaurante. Tem o ambiente de uma cantina de hospital. Vejo Acharya franzir o
nariz, já arrependido da sua decisão de vir aqui. Uma vez que é hora de almoço, o estabelecimento
está apinhado.
– No mínimo vinte minutos de espera – informa-nos o gerente.
Vejo Rana enfiar-lhe na mão uma nota de cem rupias dobrada e preparam imediatamente uma
mesa de canto para nós. Acharya e o seu lacaio sentam-se de um lado e eu sento-me em frente deles.
Rana pede bruscamente três cafés e, depois, Acharya assume o comando das operações. Fita-me
nos olhos, com ar firme.
– Deixe-me ser franco consigo. Para mim, isto é como uma aposta às cegas. Assim, antes de eu
lhe explicar a minha proposta, importa-se de me falar um pouco sobre si?
– Bom, não há muito a dizer.
– Pode começar pelo seu nome.
– Chamo-me Sapna. Sapna Sinha.
– Sapna. – Ele revira a palavra na língua antes de acenar com a cabeça, aparentemente satisfeito.
– Bom nome. Que idade tem, Sapna, se não se importa que lhe pergunte?
– Vinte e três.
– E o que faz? É estudante?
– Estudei na Universidade de Kumaun, em Nainital. Agora trabalho como vendedora na Gulati &
Sons. Têm um salão de exposições em Connaught Place, de artigos eletrónicos e eletrodomésticos.
– Já lá estive. É perto daqui, não é?
– Sim. No Bloco B.
– E há quanto tempo lá trabalha?
– Há pouco mais de um ano.
– E a sua família?
– Vivo com a minha mãe e com a Neha, a minha irmã mais nova. Está a tirar Artes na Faculdade
de Kamala Nehru.
– E o seu pai?
– Morreu, há um ano e meio.
– Oh, lamento muito. Então a Sapna é o único ganha-pão da família?
Aceno afirmativamente com a cabeça.
– Se não se importa de me dizer, quanto ganha por mês?
– Com as comissões de vendas, à volta de dezoito mil rupias.
– Só isso? Nesse caso, não devia estar a agarrar com unhas e dentes a oportunidade de liderar
uma empresa multimilionária e ganhar uma fortuna?
– Oiça, senhor Acharya, ainda estou muito confusa com a sua oferta. Quer dizer, em primeiro
lugar, porque é que precisa de um diretor-geral?
– Porquê? Porque tenho sessenta e oito anos e não estou a ficar mais novo. Deus construiu o
corpo humano como uma máquina com obsolescência embutida. Estou quase a chegar ao fim do
prazo de validade. No entanto, antes de partir, quero garantir uma transição ordeira na organização
que construí ao longo de quarenta anos. Quero ter a certeza de que sou seguido por alguém que
acredita nos mesmos valores que eu.
– Mas porquê eu? Porque não um filho ou filha?
– Bom, para começar, já não tenho família. A minha mulher e a minha filha morreram num
acidente de aviação há dezoito anos.
– Oh! Nesse caso, alguém da sua empresa?
– Já procurei por todo o lado dentro da empresa. Não encontrei ninguém que fosse sequer
remotamente adequado. Os meus executivos são bons a implementar ideias, excelentes
subordinados, mas não vejo em nenhum deles as características de um grande líder.
– E o que vê em mim? Não percebo nada sobre gestão de empresas. Nem sequer tenho formação
nisso.
– Essas habilitações são apenas pedaços de papel. Não ensinam a liderar pessoas, apenas a gerir
coisas. Foi por isso que não fui a um instituto de gestão para escolher o meu diretor-geral; fui a um
templo.
– Ainda não respondeu à minha pergunta: porquê eu?
– Vi qualquer coisa nos seus olhos, uma faísca que nunca tinha visto. – Perscruta os meus olhos,
em busca de confirmação, antes de desviar o rosto. – Sempre fui um observador de pessoas –
continua, olhando em volta, para os compradores de classe média e empregados de escritório
sentados nas outras mesas. – E, de todas as pessoas que observei no templo, a Sapna pareceu-me a
mais concentrada. Chame-lhe intuição, sentido psíquico, o que quiser, mas algo me disse que a
Sapna pode ser a pessoa que procuro. Apenas a Sapna tinha a mistura empolgante de determinação
e desespero que eu procurava.
– Pensava que o desespero era uma virtude negativa.
Ele abana a cabeça.
– As pessoas felizes não dão boas diretoras-gerais. A satisfação gera preguiça. É a aspiração que
leva à realização. Quero pessoas com fome. Uma fome que nasce do deserto da insatisfação. E a
Sapna parece ter essa necessidade, essa fome.
Estou a ficar apanhada nas declarações arrebatadoras e presunções grandiosas dele. No entanto,
ainda me escapa a lógica por trás da retórica.
– Toma sempre as suas decisões com base em caprichos?
– Nunca subestime o poder da intuição. Há onze anos, comprei uma fábrica em dificuldades, na
Roménia, chamada Aços Iancu. Estava a perder dinheiro todos os dias. Os meus especialistas
aconselharam-me a não fazer a aquisição. Disseram-me que ia deitar dinheiro fora. Porém, mantive-
me firme na minha decisão. Senti-me atraído pela fábrica unicamente por causa do seu nome. Iancu
significa «Deus é Gracioso». Hoje, cinquenta e três por cento dos nossos rendimentos de aço vêm
dessa fábrica na Roménia. Deus é realmente gracioso.
– Então acredita em Deus?
– Isto não é prova suficiente? – Aponta para a marca escarlate na testa. – O principal motivo que
me trouxe a um templo para escolher o meu sucessor foi o desejo de encontrar uma pessoa devota,
como eu. Vivemos na Kalyug, a era das trevas, repleta de pecado e corrupção. A religião já não
está na moda. Os jovens que trabalham para mim estão obcecados pelo consumo. Provavelmente, há
anos que não entram num templo para rezar. Não estou a dizer que são todos ateus, mas o deus deles
é o dinheiro, acima de todos os outros. A Sapna, contudo… – Acena, com ar aprovador. – Parece
precisamente a candidata piedosa e temente a Deus que eu procurava.
– Está bem, já percebi. O senhor age por impulso e o seu último impulso diz-lhe que eu sou a
escolhida. Agora, diga-me, qual é a rasteira?
– Não há rasteira nenhuma. Há, contudo, certos termos e condições. Terá de passar em alguns
testes.
– Testes?
– Não se preocupe; não vou obrigá-la a voltar para a escola. A escola testa apenas a memória. A
vida, no entanto, testa o carácter. Os meus sete testes são ritos de passagem, concebidos para
avaliar o seu temperamento e o seu potencial para diretora-geral.
– Porquê sete?
– Nos meus quarenta anos à frente de um negócio, aprendi uma coisa: uma empresa tem apenas
tanto valor como a pessoa que a gere. E reduzi as características de um diretor-geral bem-sucedido
a sete atributos básicos. Assim, cada um dos sete testes se concentrará numa dessas sete
características.
– E o que terei de fazer, exatamente, para passar esses testes?
– Nada que não fizesse na sua vida do dia a dia. Não lhe pedirei que roube, nem que mate, nem
que faça nada ilegal. Na verdade, nem sequer se aperceberá dos testes.
– Como assim?
– Os meus testes virão do manual da vida. A vida não nos põe à prova todos os dias? Não
fazemos escolhas todos os dias? Avaliarei simplesmente as suas escolhas, as suas reações aos
desafios diários da vida. Isso revelará o seu carácter.
– E se eu falhar em algum desses testes?
– Bom, nesse caso, terei de procurar outra pessoa. Mas os meus instintos dizem-me que não
falhará. Parece quase predestinado. O maior bilhete de lotaria de todos os tempos será seu.
– Nesse caso, a minha decisão é clara. Não estou interessada na sua oferta.
Ele parece estupefacto.
– Mas porquê?
– Não acredito em bilhetes de lotaria.
– Mas acredita em Deus. E, às vezes, Deus dá-nos muito mais do que aquilo que pedimos.
– Não sou assim tão ambiciosa – digo, e levanto-me da mesa. – Obrigada, senhor Acharya. Foi
um prazer conhecê-lo, mas tenho mesmo de voltar para a loja.
– Sente-se – ordena-me ele, com aço na voz. Engulo em seco e sento-me, como uma estudante
obediente.
– Oiça, Sapna – diz, com voz mais suave –, só há dois tipos de pessoas no mundo: vencedores e
perdedores. Estou a dar-lhe a oportunidade de ser uma vencedora. Tudo o que peço em troca é que
assine este formulário de consentimento. – Faz sinal a Rana, que tira uma folha de papel impressa
do bolso interior do casaco de fato de treino e a coloca à minha frente.
Desde a morte de Alka, desenvolvi um sexto sentido em relação a certas coisas, uma pequena
sineta de alarme que toca na minha cabeça sempre que uma situação não bate certo. Essa sineta toca
quando pego no papel. O documento é breve, apenas cinco frases:

1. O signatário aceita ser considerado para o cargo de diretor-geral do Grupo CEA.


2. O signatário permite por este meio ao Grupo CEA efetuar as verificações e os
procedimentos necessários para avaliar a adequação do signatário a esse cargo.
3. O signatário não pode rescindir o acordo antes do fim, enquanto as verificações e os
procedimentos necessários estiverem a ser efetuados.
4. O signatário aceita manter este acordo em absoluto sigilo, não o discutindo com ninguém.
5. Em consideração do acima exposto, o signatário recebeu um adiantamento não reembolsável
de 100 000 rupias.

– Aqui fala apenas de um laque4 de rupias – observo. – Não o ouvi falar em dez mil milhões de
dólares?
– O laque é apenas para participar nos testes. Se falhar, pode ficar com esse dinheiro. E, se
passar, fica com o emprego. Garanto-lhe que o salário de diretor-geral terá muito mais zeros.
Nesta altura, a minha sineta interna toca como um alarme de incêndio. Sei que isto é uma vigarice
e que Acharya já tentou o golpe antes.
– Diga-me, quantas pessoas convenceu a assinar este papel até agora?
– A Sapna é a candidata número sete. – Acharya suspira. – Mas sei, no fundo do meu coração,
que será a última. A minha busca chegou ao fim.
– Também o meu tempo. – Levanto-me, decidida. – Não tenho a mínima intenção de assinar este
papel nem de participar em nenhum teste.
Rana responde pousando uma pilha de notas de mil rupias em cima da mesa. Parecem novas em
folha, acabadas de sair do banco. Está a lançar-me o isco, mas eu não me sinto tentada.
– Acha que pode comprar-me com o seu dinheiro?
– Bom, afinal de contas, isto é uma negociação – insiste Acharya. – Lembre-se, nos negócios,
como na vida, nunca temos aquilo que merecemos, apenas aquilo que negociamos.
– Não negoceio com pessoas que mal conheço. E se isto for alguma armadilha?
– A única armadilha é a das baixas expectativas. Oiça, eu compreendo as suas reservas – diz
Acharya em tom tranquilizador, inclinando-se para a frente, apoiado nos cotovelos. – Mas tem de
ter uma visão menos lúgubre da natureza humana, Sapna. Eu quero, genuína e sinceramente, fazer de
si a minha diretora-geral.
– Tem alguma ideia de como esta conversa é ridícula? Estas coisas só acontecem em livros e em
filmes, não na vida real.
– Bom, eu sou real e a Sapna é real e a minha oferta é real. Um homem como eu não perde tempo
com brincadeiras.
– Estou certa de que conseguirá encontrar outros candidatos mais do que dispostos a aceitar a sua
oferta. Eu não estou interessada.
– Está a cometer um grande erro. – Acharya aponta-me o dedo. – Talvez o maior erro da sua vida.
No entanto, não vou pressioná-la. Fique com o meu cartão e, se mudar de ideias nas próximas
quarenta e oito horas, telefone-me. A oferta continuará de pé. – Empurra um cartão de visita por
cima da mesa, enquanto Rana me observa como um falcão.
Aceito o cartão, sorrio-lhes friamente e depois, sem olhar para trás, dirijo-me à porta.

Com a cabeça a girar mais depressa do que um CD, apresso o passo em direção ao Bloco B. A
sensação mais forte que me invade é de alívio, como se tivesse escapado por pouco a um grande
perigo. Olho de vez em quando por cima do ombro, para me certificar de que aqueles dois não me
estão a seguir. Quanto mais reflito sobre o que aconteceu, mais me convenço de que Acharya é um
tubarão desonesto ou um louco varrido. E não quero ter nada a ver com nenhuma das categorias.
Respiro melhor depois de chegar à segurança do salão de exposições, ao meu mundo com ar
condicionado e televisores plasmas, frigoríficos sem gelo e máquinas de lavar roupa antiborbotos.
Tiro da cabeça Acharya e a sua oferta maluca, visto o uniforme e começo a caça habitual a
potenciais clientes. Normalmente, as tardes são um período mais fraco para as vendas, e não há
muitos clientes a disputar a minha atenção. Tento interessar um comprador com ar confuso e barriga
proeminente a comprar a mais recente câmara de filmar HD da Samsung, mas ele parece mais
interessado nas minhas pernas por baixo da saia vermelha curta. Quem quer que tenha desenhado
este fato ousado (e o dedo da desconfiança sempre apontara para Raja Gulati, o filho inútil do
proprietário), desenhou-o com a intenção de fazer com que as vendedoras parecessem hospedeiras
de bordo. Com a diferença de que, como a minha colega Prachi diz, «ouvimos as mesmas
propostas, mas não recebemos o mesmo salário».
Para ser honesta, não tenho de lidar com tantas propostas lascivas como as outras três
vendedoras. Elas é que parecem hospedeiras de bordo, com cabelo arranjado, maquilhagem
impecável e pele brilhante. Eu pareço um anúncio do creme Fair and Lovely, com o meu sorriso
embaraçado e uma tez que é descrita nos anúncios matrimoniais como «trigueira», uma forma
delicada de dizer «não clara». Sempre fui o patinho feio da família. As minhas duas irmãs mais
novas, Alka e Neha, foram buscar a tez branca e leitosa da nossa mãe. Eu herdei a pele mais escura
do meu pai. E, nesta parte do mundo, a cor da pele é o destino.
Só depois de começar a trabalhar no salão de exposições é que descobri que ser escura e de
aparência vulgar também tinha as suas vantagens. As clientes ricas sentem-se intimidadas pela
concorrência e não suportam estar na companhia de outras mulheres bonitas. Sentem-se mais à
vontade comigo. E, uma vez que a maioria das decisões de compras das famílias é tomada pelas
mulheres, chego sempre mais depressa do que as outras ao meu objetivo mensal de vendas.
Outra coisa que aprendi foi a nunca julgar os clientes pela aparência. Eles existem em todas as
formas, tamanhos e indumentárias. Como o homem de meia-idade que entra na loja pouco depois
das três da tarde, vestido, de forma incongruente, com um turbante e um dhoti5. Parece um
culturista, com um tronco maciço, braços grossos e um bigode que penteou e enrolou até o
transformar numa obra de arte. Vagueia pelos corredores como uma criança perdida, esmagado pelo
brilho da loja. Ao ver que as outras vendedoras riem da sua indumentária e dos seus modos
rústicos, cola-se a mim. Dez minutos depois, já lhe arranquei toda a história da sua vida. Chama-se
Kuldip Singh e é patriarca de uma família de agricultores prósperos numa aldeia chamada
Chandangarh, no distrito Karnal em Haryana, a cerca de 140 quilómetros de Deli. A sua filha de
dezoito anos, Babli, vai casar-se para a semana, e ele veio à capital comprar bens para o dote. O
seu conhecimento de máquinas abrange apenas tratores e furos artesianos. Nunca viu um micro-
ondas na vida e pensa que a máquina de lavar roupa LG de quinze quilos de encher por cima é um
aparelho engenhoso para bater lassi6. Também quer regatear o preço das coisas. Tento explicar-lhe
que todos os artigos na loja têm um preço fixo, mas ele recusa-se a aceitá-lo.
– Dekh chhori, oiça lá, menina – diz, na sua voz arrastada e vernáculo simples –, temos um
ditado na nossa Haryana: por mais teimosa que seja, uma cabra tem sempre de dar leite.
É tão insistente que, por fim, tenho de persuadir o gerente a oferecer-lhe um desconto de cinco
por cento e ele acaba por comprar um carregamento de bens, incluindo um televisor plasma de
quarenta e duas polegadas, um frigorífico de três portas, uma máquina de lavar roupa, um leitor de
DVD e uma aparelhagem de som. As outras vendedoras observam, num assombro silencioso,
enquanto ele tira um grosso maço de notas de mil rupias do bolso para pagar as compras. O labrego
do campo afinal era um barão viciado em compras. E eu bati mais um recorde de vendas!
O resto do dia passa num turbilhão. Saio do salão de exposições às oito e um quarto da noite,
como de costume, e entro no metropolitano, como sempre, na estação Rajiv Chowk.
A viagem de quarenta e cinco minutos leva-me até Rohini, um subúrbio da classe média no
Noroeste de Deli. Tem a fama de ser a segunda maior colónia residencial da Ásia e é um tentáculo
feio e barato da capital, apinhado de blocos de apartamentos de betão, sombrios e pouco
imaginativos, e de mercados caóticos.
Desembarco em Rithala, a última paragem da Linha Vermelha. Daqui, é uma caminhada de vinte
minutos até à Colónia GBR, na Bolsa B-2, Setor 11, onde vivo. De todas as sociedades residenciais
em Rohini, a minha é a mais melancólica. O próprio nome, G-B-R, iniciais de «Grupo de Baixos
Rendimentos», é como uma bofetada. Construída pela Autoridade de Planificação de Deli nos anos
80, os quatro blocos de torres de tijolos vermelhos parecem um aglomerado de chaminés de
fábrica, com exteriores desfigurados e interiores danificados que revelam os sinais típicos de
construção governamental de má qualidade. Apesar disso, estou grata por viver aqui. Depois da
morte do papá, não poderíamos pagar nem sequer aqueles horríveis apartamentos de dois quartos
cuja renda ultrapassa as doze mil rupias por mês. Felizmente, não temos de pagar renda pelo B-29,
o nosso apartamento no segundo andar, porque pertence ao senhor Dinesh Sinha, o abastado irmão
mais novo do meu pai. O tio Deenu tem pena de nós e deixa-nos viver lá de graça. Bom, não
completamente de graça. De vez em quando, sou obrigada a levar os idiotas dos filhos dele, Rolu e
Golu, a um jantar elegante. Não consigo perceber por que raio é que eles têm de comer fora às
minhas custas quando o pai tem três restaurantes de tandoori.
A primeira coisa que se vê ao entrar no nosso apartamento é uma fotografia emoldurada do papá,
a preto e branco, no pequeno vestíbulo onde temos o frigorífico. Está decorada com uma grinalda
de rosas secas e mostra-o jovem, antes de ficar sobrecarregado pelas responsabilidades de um
professor com três filhas crescidas. O fotógrafo foi amável com ele, alisando algumas das rugas
prematuras de preocupação na sua testa. Contudo, não conseguiu apagar o trejeito desagradável que
estava permanentemente gravado em torno da boca do papá.
A nossa modesta sala de estar e de jantar é dominada por uma ampliação de uma fotografia de
Alka, a cores, na parede central. Posa com um chapéu vermelho escandaloso, como as damas de
Royal Ascot. Tem a cabeça ligeiramente inclinada para trás, os olhos escuros muito abertos e os
lábios franzidos num sorriso palerma. É assim que sempre me recordarei dela – bela, jovem e
despreocupada. Sempre que vejo este retrato, sinto a sala a ecoar com o riso contagiante dela.
– Didi! Didi! Kamaal ho gaya! Aconteceu uma coisa espantosa hoje!
Oiço a voz ansiosa dela a receber-me, pronta para despejar os detalhes de mais uma partida
palerma que inventou na escola.
Por baixo da fotografia, está um sofá verde desbotado, com proteções brancas bordadas, duas
cadeiras de bambu preto com as almofadas gastas e um velho televisor Videocon em cima do
aparador onde guardamos a loiça e os talheres. Do lado esquerdo desta área, há uma mesa de jantar
feita de teca reciclada, que comprei por meia dúzia de tostões no leilão de uma embaixada,
complementada por quatro cadeiras a condizer.
Depois de passar por uma cortina de contas, entramos no primeiro quarto, que pertence à minha
mãe. Tem uma cama, rodeada por dois almirahs de madeira para a roupa, e um armário metálico de
arquivo que, hoje em dia, é usado principalmente para guardar os remédios dela. A mamã sempre
teve uma saúde frágil; as mortes súbitas da filha mais nova e do marido arrasaram-na
completamente. Retirou-se para a sua concha, tornou-se distante e calada, deixou de comer e de se
preocupar com a aparência. Quanto mais se afastou do mundo, mais a doença se apoderou do seu
corpo. Agora sofre de diabetes, hipertensão, artrite e asma, todas as quais implicam visitas
regulares ao hospital público. Quem olhar para o seu corpo magro e cabelo prateado terá
dificuldade em acreditar que ela tem apenas quarenta e sete anos.
O outro quarto é partilhado por mim e por Neha. A minha irmã mais nova tem apenas um objetivo
na vida – ser famosa. Cobriu as paredes do nosso pequeno quarto com posters de cantoras,
modelos e estrelas de cinema. Um dia, espera ser tão rica e bem-sucedida como elas. Abençoada
com um rosto bonito, uma silhueta de ampulheta e uma pele impecável, Neha está sagazmente
consciente do potencial económico de lhe ter saído o jackpot genético, e está disposta a explorar a
sua beleza até conseguir o que quer. O facto de ser cantora, de formação, e ter uma base sólida de
música indiana e uma voz natural fabulosa também ajuda.
Todos os rapazes da vizinhança têm uma paixoneta por Neha, mas ela não olha duas vezes para
nenhum. Já resumiu o seu futuro com três letras: G-A-R. E isso não inclui ninguém que pertença ao
G-B-R. Passa os dias com as suas amiguinhas ricas da faculdade, e as noites a escrever cartas de
candidatura para participar em reality shows, concursos de talentos e concursos de beleza. Neha
Sinha é o retrato da ambição desmedida.
Tem também queda para um consumismo irracional, imitando cegamente as modas do momento.
Metade do meu salário, todos os meses, serve para satisfazer as suas necessidades em constante
evolução: calças de ganga justas, batons brilhantes, malas, telemóveis… a lista é interminável.
Há dois meses que me anda a massacrar para lhe comprar um computador portátil. Mas foi aí que
tracei o limite. Um cinto de 800 rupias é uma coisa, uma engenhoca de 30 000 é outra.
– Bem-vinda, didi7 – cumprimenta-me Neha, assim que entro em casa. Até consegue fazer um
sorriso, em vez do beicinho mal-humorado que é a sua expressão, por defeito, sempre que lhe nego
alguma coisa.
– Sabes aquele portátil Acer que ando morta por ter? – Lança-me aquele olhar de cachorrinho que
conheço muito bem. Geralmente, antecede uma exigência nova.
– Sim – respondo, cautelosamente.
– Bom, está em promoção. Agora custa só vinte e duas mil rupias. Com certeza que, por esse
preço, podes comprá-lo.
– Não posso – digo, com firmeza. – Ainda é demasiado caro.
– Por favor, didi. Sou a única da minha turma que não tem computador. Prometo que não te peço
mais nada depois disto.
– Lamento, Neha, mas não temos dinheiro para isso. Já mal conseguimos pagar tudo só com o meu
salário.
– Não podes pedir um empréstimo à tua empresa?
– Não, não posso.
– Estás a ser cruel.
– Estou a ser realista. Tens de te habituar ao facto de que somos pobres, Neha. E a vida é dura.
– Preferia morrer a viver assim. Tenho vinte anos e o que é que já fiz? Nem sequer vi o interior
de um avião.
– Nem eu.
– Pois devias. Todas as minhas amigas vão passar as férias de verão a sítios como a Suíça e
Singapura. E nós nem sequer podemos ir para uma estância de montanha na Índia.
– Já vivemos numa estância de montanha, Neha. Seja como for, computadores e férias não são
importantes. A tua principal prioridade devia ser ter boas notas.
– E para que me servem as boas notas? Vê onde foste parar depois de seres a melhor da tua
universidade.
Neha sempre teve esta capacidade perturbadora de me magoar, tanto com o silêncio como com as
palavras. Embora eu me tenha habituado às suas farpas aguçadas, esta fere-me pela honestidade
brutal, e deixa-me sem palavras. É então que o meu telemóvel toca.
– Estou – atendo.
É o tio Deenu, com uma voz estranha.
– Sapna beti, tenho algo importante para te dizer. Infelizmente, é uma má notícia.
Preparo-me para mais uma morte na família. Talvez alguma tia doente ou avó distante. Mas o que
ele diz a seguir atinge-me como uma bomba.
– Preciso que deixem o apartamento dentro de duas semanas.
– O quê?
– Sim. Lamento muito, mas não posso fazer nada. Investi num restaurante novo e preciso
urgentemente de dinheiro. Assim, decidi arrendar o apartamento de Rohini. Uma agência ligou-me
hoje com uma oferta muito boa. Nesta situação, não tenho alternativa senão pedir-vos que arranjem
outra casa.
– Mas, tio, como conseguiremos encontrar uma casa em tão pouco tempo?
– Eu ajudo-vos. Só que terão de começar a pagar renda.
– Se temos de pagar renda, mais vale ficarmos aqui.
O tio Deenu pensa nisto.
– Suponho que é razoável – concorda, com relutância –, mas não conseguiriam pagar o meu
apartamento.
– Quanto é que o novo inquilino vai pagar?
– Concordámos em catorze mil rupias por mês. São duas mil acima da média. E vai pagar-me um
depósito de um ano adiantado. Se aceitarem as mesmas condições, não tenho objeções a que
fiquem.
– Significa que quer que lhe paguemos um adiantamento de cento e sessenta e oito mil rupias?
– Exato. Sempre foste muito boa a matemática.
– Nunca conseguiremos arranjar tanto dinheiro, chacha-ji8.
– Nesse caso, procurem outro apartamento. – O tom dele endurece. – Também tenho de pensar na
minha família. Não sou uma instituição de caridade. Mesmo assim, já vos deixei ficar de graça
durante dezasseis meses.
– O papá também não fez muito por si? Não tem consideração nenhuma pelo seu falecido irmão?
Quer que a família dele vá para o meio da rua? Que tio é você, chacha-ji? – Tento espicaçar-lhe a
consciência.
A estratégia vira-se contra mim.
– Vocês não passam de piratas ingratas – diz. – E podes parar com essa conversa de «tio». Daqui
em diante, a nossa relação é estritamente de senhorio e inquilino. Portanto, ou me pagam a soma
total dentro de uma semana, ou saem do meu apartamento.
– Pelo menos dê-nos mais algum tempo para arranjar o dinheiro – imploro.
– Uma semana é o tempo que têm. Paguem ou saiam – diz, e desliga.
Sinto as mãos a tremerem de indignação. Paro um momento para desejar todo o tipo de mortes
prolongadas e dolorosas ao tio Deenu, antes de contar a conversa às outras duas ocupantes do
apartamento. A mamã abana a cabeça, mais com pesar do que com fúria. A perversidade do mundo
é algo que toma como garantido.
– Nunca confiei naquele homem. Deus vê tudo. Um dia o Deenu pagará pelos seus pecados.
Neha é surpreendentemente otimista. – Pois eu digo que, se esse porco está a pôr-nos na rua,
vamos embora desta pocilga. Sufoca-me viver aqui.
– E para onde iremos? – pergunto. – Achas que encontrar uma casa nova é fácil?
Antes que rebente entre nós mais uma discussão, a mamã puxa-nos de volta para questões mais
práticas.
– Como vamos arranjar tanto dinheiro? – A pergunta paira sobre nós como uma nuvem sinistra.
O papá não nos deixou grande coisa. Há muito que assaltara o seu fundo de pensão para financiar
a incursão inicial do tio Deenu no negócio dos restaurantes. E as suas poupanças modestas, do
emprego de professor, foram gastas nos custos da mudança para uma cidade nova. Quando morreu,
tinha menos de dez mil rupias na conta bancária.
A mamã já encontrou a resposta à sua pergunta. Abre o armário e tira dois pares de pulseiras de
ouro.
– Guardei isto para os vossos casamentos. Porém, se temos de as vender para ficar com a casa,
assim seja. – Oferece-mas com um suspiro melancólico.
Sinto um aperto no coração, por ela. Desde a morte do papá, esta é a terceira joia de família de
que se vê obrigada a separar. A primeira pagou a educação de Neha, a segunda pagou as suas
próprias despesas médicas, e esta salvará o apartamento.
Um silêncio pesado instala-se no nosso lar, enquanto nos sentamos para jantar. Sinto-me
assombrada por uma forte sensação de fracasso, como se tivesse falhado à minha família na altura
em que ela mais precisava de mim. Nunca senti tão profundamente a falta de dinheiro. Por um
momento fugaz, passa-me pela cabeça a imagem de todas aquelas notas de banco, novinhas em
folha, em cima da mesa no Coffee House, mas afasto-a, por se tratar de uma brincadeira doentia.
Como posso levar a sério um louco como Acharya? No entanto, ele continua a rondar-me a cabeça,
como uma mosca irritante.
Para satisfazer a minha curiosidade, sento-me em frente ao computador depois de jantar. É uma
torre Dell decrépita, que salvei do salão de exposições antes de a venderem a um ferro-velho. É um
dinossauro, com o Windows 2000, mas deixa-me navegar na Internet, ver os emails e usar o
processador de texto para catalogar as despesas domésticas no final de cada mês.
Ligo-me à Internet e escrevo «Vinay Mohan Acharya» na caixa de pesquisa. O motor de busca
devolve-me imediatamente 1,9 milhões de resultados.
O industrial está por todo o ciberespaço. Há notícias sobre os seus negócios, especulações sobre
o seu valor líquido, galerias de imagens que captam os seus vários estados de espírito e vídeos no
YouTube dos seus discursos em reuniões de acionistas e conferências internacionais. Na meia hora
que se segue, descubro muitos factos sobre ele, como a sua paixão pelo críquete, as suas incursões
ocasionais (e malsucedidas) na política, a sua acesa rivalidade com o irmão gémeo, Ajay Krishna
Acharya, dono das Premier Industries, e a sua filantropia ativa. Parece que doa montes de dinheiro
a todo o tipo de instituições de caridade, e recebeu por duas vezes a Medalha do Presidente, por ter
o melhor programa de Responsabilidade Social Corporativa. Confirmo também que perdeu
realmente a mulher e a filha na queda de um avião das linhas aéreas tailandesas, de Banguecoque
para Katmandu, no dia 31 de julho de 1992, um acidente que matou os 113 ocupantes do avião.
Enquanto navego pelo pântano de informação existente sobre ele na Internet, Acharya dá-me a
impressão de ser uma personalidade complexa e contraditória. Tem admiradores que o aclamam
como o homem de negócios mais ético da Índia, e críticos que condenam as suas idiossincrasias, o
seu narcisismo e a sua megalomania. No entanto, não há como negar a sua genialidade, a forma
como transformou sozinho o Grupo CEA, de uma empresa pequena, no oitavo maior conglomerado
da Índia, com interesses em aço, cimento, têxteis, energia, seda artificial, alumínio, bens de
consumo, químicos, computadores, consultadoria e até filmes.
A minha pesquisa deixa uma coisa bem clara: o proprietário do Grupo CEA não é um louco
varrido nem um tubarão desonesto. Terei perdido uma grande oportunidade ao rejeitar a oferta dele
sem pensar duas vezes?, pergunto-me, com as primeiras pontadas de dúvida. No instante seguinte,
repreendo-me por permitir que a esperança ingénua se sobreponha ao senso comum. Neste mundo,
ninguém dá nada em troca de nada, recordo a mim própria. Se uma oferta parece demasiado boa
para ser verdade, geralmente é.
Ainda assim, vou para a cama dominada pela sensação de que o tempo está a passar por mim. De
que estou presa num emprego sem saída e tenho um futuro permanentemente suspenso. Houve uma
época, não há muito tempo, em que o navio da minha vida tinha direção e ímpeto. Agora, parece
andar à deriva, sem rumo e sem leme, uma semana atrás da outra, todos os dias iguais, sem que
nada mude.
Pelo menos os meus sonhos nessa noite são diferentes. Por entre a balbúrdia confusa de imagens
fragmentadas, recordo-me claramente de estar sentada num avião privado luxuoso, a sobrevoar as
montanhas cobertas de neve da Suíça. Só há um pequeno problema. O piloto é o industrial Vinay
Mohan Acharya.

Na manhã seguinte, começo a longa e traiçoeira viagem até ao trabalho com uma atitude positiva
e as ideias claras. O metropolitano está menos cheio aos fins de semana, mas tenho muito cuidado
com a mala, pousando a mão sobre ela de forma protetora. Foi um presente da minha amiga Lauren,
e é uma mala castanha entrançada da Nine West, decorada com pele de cobra falsa em tom bege,
muito elegante. Hoje, contém também as quatro pulseiras de ouro das quais depende o futuro
coletivo da minha família.
Na estação de Inder Lok, entra na carruagem um homem com ar familiar, cabelo pintado e patilhas
compridas, vestido com um fato de político feito de algodão artesanal. É seguido por um grupo de
apoiantes e um pelotão de comandos, de arma em punho, que começam a expulsar as pessoas para
abrir espaço para o VIP e a sua comitiva. O homem, fico a saber por um dos seus lacaios, é o nosso
membro da Assembleia Legislativa local, Anwar Noorani, na sua «viagem semanal de
metropolitano para contactar com o homem comum». Li sobre este cavalheiro nos jornais. Tem uma
cadeia de hospitais particulares alegadamente financiados pelos lucros de um esquema ilegal de
hawala9.
– Se houver algum problema local que desejem resolver, por favor visitem-me no meu gabinete,
atrás do Instituto de Tecnologia de Deli – anuncia o membro da Assembleia Legislativa. Os seus
olhos velados e inquietos percorrem a carruagem e pousam em mim. – Como está, irmã? – pergunta,
com um sorriso plástico. Desvio o rosto e finjo olhar para a janela. Felizmente, ele sai na estação
seguinte.
Deli é uma cidade estranha, penso; aqui, o estatuto não se baseia no facto de se usar fatos Armani,
andar de Mercedes ou citar Jean-Paul Sartre em cocktails. O estatuto é determinado pela
quantidade de regras que se conseguem infringir e pelo número de pessoas que se conseguem
intimidar. Essa é a distinção que dá a alguém a categoria de VIP.
O salão de exposições é uma colmeia de atividade desde manhã. O sábado é o nosso dia mais
movimentado. Além disso, com a aproximação do Campeonato do Mundo de Críquete, a nossa
campanha de promoções está no auge. Esperamos que as vendas de televisores de ecrã plano
disparem nos próximos dois meses.
Um casal de recém-casados aborda-me para me pedir conselhos sobre o televisor certo a
comprar. Estão divididos entre LCD e plasma. Não demoro muito a persuadi-los a optarem pelo
mais recente LED da Sony, com o adoçante de uma torradeira eletrónica grátis, na nossa promoção
«dois pelo preço de um», mas não estou no meu melhor. Estou distraída e impaciente, à espera da
hora de almoço. Assim que o relógio bate a uma, saio pela porta das traseiras e dou de caras com
Raja Gulati, o playboy mais odioso de Deli. Por algum motivo, está em frente do Beckett’s, um pub
irlandês quatro portas abaixo da loja. Vestido com o habitual blusão de cabedal, está encostado à
sua motorizada Yamaha, a contar um maço de notas. Assim que me vê, guarda o dinheiro e sorri-me.
Baixo e roliço, com a barba por fazer, bigode farfalhudo e cabelo comprido, a única razão de fama
de Raja é o facto de o seu pai milionário ser o dono do salão de exposições. O seu único
passatempo é beber e engatar raparigas. A acreditar nos mexericos, já teve sucesso com uma das
vendedoras. Ultimamente, anda a lançar bocas grosseiras a Prachi e a mim. Mas eu preferia comer
baratas vivas a ceder aos avanços amorosos deste verme.
– Oláááá, olha que é ela? A Princesa de Gelo, em pessoa! – Lança-me um sorriso esfomeado e dá
uma palmadinha no banco da Yamaha. – Queres vir dar uma voltinha comigo?
– Não, obrigada – respondo, friamente.
– Que belas pernas. – Os olhos dele descem-me pelo corpo. – A que horas abrem?
Sinto um rubor de raiva no rosto, mas não é o sítio nem a altura certa para um confronto.
– Porque não perguntas à tua mãe? – riposto, e passo por ele. Ele suspira e entra no pub,
provavelmente para afogar as mágoas em álcool.
Sem perder mais tempo, dirijo-me à Joalharia Jhaveri, no Bloco N. Prashant Jhaveri, o jovem
proprietário, foi em tempos aluno do meu pai e oferece-me sempre um preço justo. Espero que me
dê bem mais de 200 000 rupias pelas quatro pulseiras de ouro que trago na mala.
Ao atravessar a Radial Road 6, vejo o tráfego parado, por causa de uma procissão religiosa
qualquer. Centenas de homens, mulheres e crianças, vestidos com roupas cor de açafrão, cantam e
dançam ao som de trompetes e tambores dhol. Os carros buzinam de frustração e os pedestres
bufam, mas o grupo prossegue alegremente, indiferente à inconveniência e ao aborrecimento que
está a causar. E isto é um acontecimento diário. Deli tornou-se uma cidade de comícios e
barricadas.
Ainda espero que a procissão passe quando alguém me dá um toque de lado. É um miúdo de rua,
com uma camisola rasgada. Não conta mais de oito anos e tem o rosto sujo e o cabelo seboso. Não
diz nada, limita-se a estender a mão no gesto universal de necessidade. Nada me incomoda mais do
que ver estas crianças pedintes. Numa idade em que deviam estar na escola, estão na rua, a tentar
ganhar a vida com a exploração da única capacidade que têm: despertar piedade. Quase nunca lhes
dou esmola, pois isso apenas encoraja o hábito de pedir. Pior ainda, muitas vezes leva-os a vícios
mais perigosos, como cola, bebida e até mesmo drogas. O que eles realmente precisam é de um
golpe de sorte, um bom ambiente e uma boa dose de amor-próprio. Algo que Lauren e a sua
Fundação Asha proporcionam.
Este pedinte em particular não desiste facilmente.
– Não como nada há dois dias. Pode dar-me algum dinheiro? – murmura, levando a mão ossuda à
barriga. Olho para os seus grandes olhos suplicantes e não consigo dizer não.
– Não te dou dinheiro – digo-lhe –, mas pago-te o almoço.
O rosto dele ilumina-se. Há um vendedor ambulante perto de nós a vender chhole kulcha, pão
com grãos condimentados, por dez rupias o prato.
– Queres um destes? – pergunto-lhe.
– Adoro kulchas – responde ele, lambendo os lábios gretados.
Tiro a mala do ombro e abro o fecho para tirar o dinheiro. Nesse instante, alguém surge por trás
de mim e tira-me a mala das mãos. É tudo tão rápido, que nem sequer vejo a cara do ladrão. Vejo
apenas uma mancha cor de açafrão. Em menos de nada, ele desaparece na multidão de devotos.
Viro-me e vejo que o rapazinho pedinte também desapareceu. Caí no truque mais velho do mundo.
Por um momento fico imóvel, totalmente aturdida com esta reviravolta dos acontecimentos. As
mãos gelam-me e quase deixo de respirar.
– Nãoooo! – Solto um grito angustiado e corro para o meio do mar cor de açafrão. Sou esmagada
e empurrada por todos os lados, mas continuo a perfurar a parede humana, numa perseguição cega
ao ladrão.
Não o encontro, mas, assim que a procissão passa, vejo a minha mala caída no chão à beira da
estrada. Corro a apanhá-la. Ainda tem o meu telemóvel e as chaves de casa. O meu bilhete de
identidade, os óculos escuros e o spray de gás pimenta estão intactos. Está lá tudo, exceto as quatro
pulseiras de ouro.
Deixo-me cair à beira do passeio, tonta e agoniada. Sinto os braços pesados e sem forças e a
visão desfocada. Passado algum tempo, vejo um polícia agachado ao meu lado.
– Sente-se bem? – pergunta.
– Sim – respondo, debilmente. – Roubaram-me a mala.
– Então o que é isto? – Toca com a ponta do cassetete na Nine West que tenho no colo.
– Ele… levou as pulseiras de ouro da minha mãe e deixou a mala.
– Viu a cara dele? Consegue dar-nos uma descrição do ladrão?
– Não. Mas a polícia não conhece todos os gangues da zona? Tenho a certeza de que conseguirão
apanhá-lo. – Agarro-me ao braço dele como se fosse uma boia de salvação. – Por favor, tem de
fazer alguma coisa. Estamos arruinadas se eu não recuperar as pulseiras. Se quiser, posso
apresentar queixa.
– Não lhe adiantará de nada. Isto acontece todos os dias. A menos que nos faça uma descrição,
não podemos fazer nada. Siga o meu conselho: não desperdice o seu tempo e o nosso a apresentar
queixa. Tenha mais cuidado com as suas coisas, para a próxima. – Ajuda-me a levantar, lança-me
um olhar solidário e afasta-se, a bater com o cassetete na mão.
Reviro desesperadamente a mala, mais uma vez, na esperança vã de descobrir as pulseiras, mas
os milagres só acontecem em contos de fadas e em filmes. Sinto um nó na garganta e as lágrimas
começam a deslizar-me pelas faces à medida que a minha mente regista a enormidade da perda. À
minha volta, as pessoas riem-se, comem, fazem compras, gozam o sol. Nenhuma delas pode
compreender o meu tormento interior. Em criança, perdi uma vez a minha boneca preferida e chorei
por causa disso durante dois dias inteiros. Agora, perdi as joias mais preciosas da minha mãe. O
ladrão levou mais do que apenas ouro. Levou o nosso futuro.
Ainda estou a soluçar, sentada no passeio, quando os meus olhos param num cartaz gigante que
mostra a hora e a temperatura. Com um sobressalto, vejo que já passa das duas. Madan, o meu
odioso chefe, não gosta nada que os empregados cheguem atrasados do almoço. Depois de ter
perdido as pulseiras, corro o risco de perder também o emprego.
Desato a correr, com os pés doridos nos sapatos de salto alto, que de vez em quando me fazem
tropeçar, até que chego, ofegante, ao salão de exposições. A loja, contudo, não parece a mesma. Há
vozes elevadas, clientes estupefactos a serem conduzidos à saída com pedidos de desculpa, e a
grade da porta está a ser rapidamente fechada até meio, o equivalente a uma bandeira a meia haste,
sinal garantido de problemas.
Baixo-me e entro por baixo da grade, para descobrir ainda mais caos. Há muitos gritos e
imprecações. Acusações voam pelo ar como aviões de papel. Todos parecem estar reunidos em
volta do cubículo da caixa, incluindo o senhor O. P. Gulati em pessoa, o nosso venerável
proprietário, e alguém solta gritos agonizantes de dor. Abro caminho à força entre a multidão de
moços de recados, empregados de escritório, camionistas e vendedores, e descubro que a origem
dos gritos é o senhor Choubey, o nosso caixa, um homem de cinquenta e cinco anos. Está a rebolar
no chão, enquanto é implacavelmente espancado por Madan, o gerente e o homem mais odiado da
loja.
– Namak-haram10, filho da mãe traidor! – grita Madan, enquanto dá um murro no rosto e um
pontapé na barriga de Choubey. Madan é um homem grosseiro e abrasivo e tem apenas duas paixões
na vida: dar graxa ao senhor Gulati e retirar um prazer sádico de repreender os empregados.
– Não sei como aconteceu. Só saí vinte minutos para almoçar – lamenta-se o caixa, mas não
consegue impedir outro golpe violento. Encolho-me, em solidariedade. Perdi apenas umas pulseiras
de ouro; Choubey perdeu o orgulho, a dignidade.
– O que se passa? – pergunto a Prachi. Ela põe-me a par do que aconteceu na minha ausência. Ao
que parece, o senhor Gulati fez uma inspeção de surpresa e descobriu um buraco de quase 200 000
rupias na caixa do turno da manhã. Uma vez que o dinheiro estava sob a supervisão direta do caixa,
Choubey está a ser acusado de desfalque.
– Juro pelos meus três filhos que não fui eu – lamenta-se ele.
– Diz-me onde está o dinheiro, e talvez te poupe – diz o senhor Gulati, com as sobrancelhas
hirsutas franzidas como duas lagartas a tentarem apanhar-se uma à outra.
– O Madan já me revistou. Não tenho o dinheiro! – grita Choubey.
– O filho da mãe deve tê-lo passado a um cúmplice – especula Madan. – Eu digo para o
entregarmos à polícia. Eles arrancam-lhe a verdade em menos de nada. Há já algum tempo que ando
a tratar bem o Goswami, o inspetor da esquadra de Connaught Place. Está na altura de recorrer a
ele.
– Por favor, não faça isso, sahib! – implora Choubey, agarrado aos pés do senhor Gulati. – Há
trinta anos que trabalho nesta loja. A minha mulher e os meus filhos morrerão, sem mim.
– Eles que morram – diz o senhor Gulati com rancor, libertando a perna. – Madan, ligue ao seu
inspetor – ordena.
Não conheço Choubey muito bem. É um homem calado e reservado. As nossas interações
limitavam-se à troca de cumprimentos e lugares-comuns, mas sempre o achei consciencioso, cortês
e diligente. É inconcebível que tenha defraudado a empresa. E nem mesmo um criminoso inveterado
jura em falso pelo nome dos filhos. É então que me vem à cabeça uma imagem. Vejo Raja Gulati,
sentado na sua motorizada, a contar um maço de notas. Sei que o pai dele não aprova o estilo de
vida de Raja, a bebida e as mulheres. E o maldito filho seria bem capaz de assaltar sub-
repticiamente a caixa para financiar o seu estilo de vida extravagante.
– Espere – digo a Madan. – Como sabe que o senhor Choubey é o culpado?
Todos se viram para mim. Madan lança-me um olhar assassino, mas digna-se a responder.
– É o único que tem as chaves do cofre.
– Não é verdade que a família Gulati também tem as chaves do cofre?
– O que está a insinuar? – interrompe o senhor O. P. Gulati. – Que roubei a minha própria loja?
– Não estou a dizer que foi o senhor. Mas… e o Raja?
Todos sustêm a respiração. Até eu estou espantada com a minha audácia.
– Está louca? – Madan tem um ataque de raiva. – O Raja babu nem sequer esteve na loja hoje.
– Mas eu vi-o lá fora, há cerca de uma hora, a contar um maço de notas.
Vejo que o senhor O. P. Gulati fica perturbado com a informação. Torce as mãos, nervoso,
enquanto morde o lábio, como se pesasse as possibilidades. Por fim, o amor paternal leva a melhor
sobre as dúvidas.
– Como se atreve a fazer uma acusação tão infame contra o meu filho? – ataca-me, com os olhos a
brilhar de fúria. – Mais uma palavra e despeço-a imediatamente.
Calo-me, pois sei que nenhum argumento poderá sobrepor-se ao amor cego de um pai.

Meia hora depois, chega o jipe da polícia, com o inspetor Goswami, um agente alto e corpulento,
que tem recebido um desconto de trinta e cinco por cento em todas as compras que faz na loja.
Agarra no caixa como um talhante pegaria numa galinha. Choubey vai sem protestar, sem fazer
cenas, como se tivesse aceitado o seu destino. Vejo esta caricatura de justiça desenrolar-se perante
os meus olhos com fúria impotente. Choubey foi rotulado de ladrão apenas por ser fraco e indefeso.
E Raja Gulati desfalcou a loja, sem consequências, por ser rico e de boas famílias. Sinto-me tão
agoniada, que quase vomito. Todo o meu corpo treme de ódio por Raja e pelo pai dele. Sei que
aquilo que aconteceu hoje a Choubey pode facilmente acontecer a mim amanhã. E, tal como
Choubey, eu não poderia fazer fosse o que fosse. Só há duas opções para os indefesos deste mundo
– aceitar os abusos ou virar costas, apenas para ir sofrer os mesmos abusos às mãos de outra
pessoa poderosa.
Acharya tem razão. O mundo divide-se realmente entre vencedores e perdedores. As pessoas
como os Gulatis são as vencedoras e as outras, como Choubey e eu, as perdedoras.
A vida gira em torno de alguns momentos cruciais. Este é um deles. Lenta mas seguramente, um
nó de determinação instala-se dentro de mim. Abro a mala e tiro o cartão de visita que Acharya me
deu. Aquela sineta de aviso na minha cabeça recomeça a tocar, mas já não quero saber. Uma
perdedora não tem nada a perder. Respiro fundo e marco o número no meu telemóvel.
Uma voz feminina e educada atende.
– Grupo CEA. Em que posso ser útil?
– Gostaria de falar com o senhor Vinay Mohan Acharya.
– Quem deseja falar?
– Sapna Sinha.
Espero que ela diga «Sapna quem?» e me passe por uma dezena de departamentos, mas em vez
disso oiço:
– Por favor aguarde, minha senhora. – Quase imediatamente, Acharya atende, como se estivesse à
espera do meu telefonema.
– Ainda bem que me ligou – diz ele.
– Decidi aceitar a sua oferta.
– Ótimo – responde, simplesmente. Não se ri de forma triunfal nem se vangloria. – Venha ter ao
meu gabinete às seis da tarde em ponto. A morada está no cartão.
– Mas só saio do trabalho às… – começo, mas Acharya interrompe-me.
– Seis da tarde – repete, e é o fim da conversa.
Olho para a morada no cartão. A sede do Grupo CEA, Kyoko Chambers, fica em Barakhamba
Road, não muito longe de Connaught Place. Olho para as horas. São três e um quarto. Tenho menos
de três horas para me preparar para a reunião que pode mudar a minha vida.
Madan, o nosso chefe tirano, é famoso por não deixar os empregados saírem antes da hora. E,
uma vez que hoje é sábado, isso está fora de questão. A menos que eu consiga arranjar uma
desculpa plausível.
Às cinco e meia, dirijo-me a Madan com ar abatido.
– Senhor, a minha irmã acaba de me ligar. A minha mãe teve outro ataque de asma. Tenho de a
levar ao hospital. Posso sair já?
O gerente franze o rosto, como se alguma coisa cheirasse mal.
– Já temos um caixa a menos, não posso ficar também sem uma vendedora.
– Mas se acontecer alguma coisa à mamã… – Deixo a implicação suspensa no ar. No panteão
indiano, a mãe é o ideal mais elevado, com o qual apenas Deus rivaliza. Nem mesmo Madan se
arriscaria à ignomínia de deixar uma empregada órfã.
– Vá lá, então – diz, resignado, cedendo à minha chantagem emocional.
Dez minutos depois, estou sentada num riquexó motorizado, a caminho de Barakhamba Road.
Ainda visto o uniforme do trabalho, a blusa branca e a saia vermelha, pois decidi não trocar para o
meu salwar kameez, confortável mas informal. Afinal de contas, vou a uma reunião de negócios,
não a um encontro de família.

A sede, Kyoko Chambers, fica num impressionante edifício de quinze andares com uma fachada
toda em vidro. A julgar pela segurança, podiam ser instalações governamentais. Há guardas
privados a patrulhar a entrada e tenho de passar a minha mala numa máquina de raios x para poder
entrar. O átrio faz lembrar o de um hotel elegante, com um candelabro de cristal enorme, sob o qual
há uma grande escultura de bronze de Nandi, o Touro11, o símbolo do Grupo CEA. Um homem alto,
vestido com fato escuro e gravata vermelha, espera-me na receção. Demoro um momento a
reconhecê-lo como Rana, o braço-direito de Acharya.
– Porquê tanta segurança? – pergunto.
– É necessário. Há rivais ansiosos por roubar os nossos segredos – responde, secamente, e
conduz-me a um elevador que nos leva silenciosa e rapidamente ao décimo quinto piso.
Saio do elevador para um átrio dramático, com colunas romanas, uma cascata de seis metros de
altura e teto de vidro, abobadado, que reflete a luz do crepúsculo que se espalha no céu.
Rana conduz-me, através de uma porta de mogno, para uma sala iluminada que parece uma
antecâmara. O local é todo em mármore e mosaicos. As paredes estão pintadas de ouro e a
decoração faz lembrar um opulento salão parisiense, com grandes murais, tapetes espessos e
estátuas de bronze. Outra escultura de Nandi, o Touro, esta coberta de ouro, guarda a entrada dos
aposentos privados de Acharya.
Fico surpreendida por ver uma mulher branca e loira sentada atrás da secretária.
– Esta é a Jennifer, a secretária particular do senhor Acharya – apresenta Rana.
– Deve ser a Sapna – diz ela, levantando-se e estendendo-me a mão. O sotaque dela é igual ao de
Lauren, portanto presumo que é americana. Provavelmente com vinte e muitos anos. A primeira
coisa em que reparo é na altura dela; deve ter pelo menos um metro e setenta e cinco, e agiganta-se
sobre mim como um poste. Os seus olhos azuis estão emoldurados por óculos retangulares e o
cabelo loiro, pelos ombros, parece pronto para uma reportagem fotográfica. Com o seu blazer azul
elegante, por cima de uma camisa creme e calças cinzentas, parece um cruzamento entre uma
apresentadora da CNN e uma prostituta cara.
Mede-me de alto a baixo, como uma amante confrontada com a esposa. O seu olhar frio é meio
curioso, meio condescendente. Instintivamente, antipatizo com ela.
O relógio na parede diz que faltam dois minutos para as seis. Espero dois minutos até ouvir um
zumbido na secretária de Jennifer.
– O senhor Acharya vai recebê-la – diz ela, com um sorriso frio, e conduz-me ao escritório
privado.
O santuário de Acharya é ainda mais impressionante, com uma mesa de reuniões, estantes
repletas de livros e um televisor gigante na parede, onde passam as cotações da bolsa. A mobília
parece sólida, os tapetes, caros.
Os meus olhos são atraídos pela enorme cabeça de mulher dourada que nos observa por cima da
mesa de reuniões. Pelos grandes olhos esbugalhados, reconheço-a como uma daquelas esculturas de
fibra de vidro monumentais de Ravinder Reddy que vi na Galeria Nacional. Os quadros a óleo
originais, nas paredes apaineladas a mogno, também parecem familiares. São cavalos de Husain,
vacas de Manjit Bawa e uma representação cubista de um nu que podia ter sido pintado pelo
próprio Picasso. Se a intenção de Acharya quando me chamou ao seu escritório era deixar-me
assombrada, conseguiu-o.
Está sentado numa cadeira que mais parece um trono, por trás de uma secretária antiga, em forma
de ferradura, junto de uma grande janela. Com o seu fato elegante e um lenço de seda cor-de-rosa
no bolso do peito, parece sem dúvida o magnata empresarial que é. Se eu ainda precisasse de mais
provas, encontrá-las-ia na parede atrás dele, coberta de fotografias emolduradas em que ele surge
lado a lado com dignitários internacionais, desde o papa João Paulo II e o dalai-lama, a Bill
Clinton e Nelson Mandela. Não consigo afastar a sensação de estar num pequeno museu particular,
um monumento de Acharya a si próprio.
– O que acha do meu escritório? – pergunta, convidando-me a sentar com um gesto.
– É muito bonito. – Aceno com a cabeça e deixo-me cair numa cadeira de cabedal em frente dele.
Só então reparo na placa de madeira na secretária. Diz «VISÃO CLARA, DETERMINAÇÃO, DISCIPLINA E
TRABALHO ÁRDUO».
– São os valores essenciais que guiam os nossos empreendimentos no Grupo CEA – diz, tocando
na placa. – Espero que defenda os mesmos valores quando se tornar diretora-geral.
– Quer dizer se me tornar diretora-geral…
– Isso depende apenas de si. Como presidente, a minha tarefa é simplesmente escolher a pessoa
certa e estabelecer o rumo a seguir. Estou convencido de que é a melhor pessoa para esta empresa.
No entanto, a Sapna tem de pensar o mesmo. Lembre-se, o primeiro passo para alcançar o sucesso é
desejá-lo verdadeiramente. – Baixa as pálpebras, como se estivesse a recordar alguma coisa, e cita
um verso em sânscrito perfeito: – Kaama maya evayam purusha iti. Sa Yatha kaamo bhavati tat
kratur bhavati. Yat kratur bhavati tat karma kurute. Yat karma kurte tad abhisam padyate.
O verso é-me familiar. É do Upanixade12 Brihadaranyaka. «És o teu desejo mais profundo e
motivador. Como for o teu desejo, assim é a tua vontade. Como for a tua vontade, assim é a tua
ação. Como for a tua ação, assim é o teu destino.»
– Nunca acreditei no destino – respondo.
– Mas o destino pode acreditar em si – diz ele.
– Nesse caso, vamos lá despachar isto. Suponho que precisa que eu assine aquela garantia.
– Exato. Deixe-me chamar o Rana. – Pressiona um botão e Rana entra na sala com uma pasta de
cabedal na mão. Senta-se ao meu lado e passa-me uma folha de papel. É o mesmo documento que vi
da última vez.
– Antes de assinar, preciso de saber se falou na minha oferta a alguém – diz Acharya.
– Não – respondo. – Não falei no assunto a ninguém.
– Nem sequer à sua mãe e à sua irmã?
– Não. Mas porquê todo o secretismo?
– Bom, como pode ver, os meus métodos são… hã… pouco convencionais. Não quero que os
meus acionistas fiquem nervosos sem necessidade. A confidencialidade absoluta é uma necessidade
nestes assuntos. Não pode dizer uma palavra sobre o nosso acordo a ninguém.
– Não direi. – Aceno com a cabeça. – E esta cláusula que diz que não posso rescindir o contrato
a meio?
– Significa apenas que o contrato está em vigor até os sete testes terem sido concluídos. Não
pode desistir antes disso.
– E se eu falhar em algum dos testes?
– Nesse caso, sou eu que rescindo o contrato, não você.
– Por favor, assine em baixo – diz Rana, estendendo-me uma caneta.
– Antes de assinar, também quero uma coisa.
Acharya franze a testa.
– O quê?
– Quero o dobro.
– Como assim?
– Segundo este contrato, tem de me pagar a soma de um laque de rupias para eu participar nos
testes. Estou a pedir dois laques.
– E o que a faz pensar que aceitarei a sua exigência?
– Na vida, não temos o que merecemos; temos aquilo que negociamos. Não foi o que me disse no
Coffee House? Bom, estou apenas a seguir o seu conselho. Estou a negociar.
– Touché! – Acharya bate palmas, de má vontade. – Já vi que aprende depressa. Contudo, para
negociar, tem de possuir algum tipo de trunfo. Tem alguma alternativa, neste caso?
– Podia fazer-lhe a mesma pergunta. Tem alguma alternativa? Um candidato melhor do que eu?
– Gosto da sua garra – diz Acharya com um aceno da cabeça. – Mas porque precisa de tanto
dinheiro?
– Tenho compromissos familiares urgentes.
Acharya olha para a janela enquanto pensa na minha exigência. Deste ponto panorâmico, como
uma águia no seu poleiro, consegue ver a Deli de Lutyens espalhada à sua frente. Há algo mágico e
místico em ver uma cidade das alturas, longe da fuligem e da poeira da selva de betão, do calor e
do ruído da estrada. Estico o pescoço para ver a capital. Tudo o que consigo ver é uma faixa de
brilho tremeluzente ao longo do horizonte, confundindo a separação entre terra e céu.
Depois de alguns minutos tensos, Acharya finalmente ergue o rosto e acena com a cabeça, como
se tivesse chegado a uma decisão.
– Rana, dá-lhe dois laques.
Rana lança-me um olhar fulminante e sai da sala.
Viro-me para Acharya.
– Posso fazer-lhe uma pergunta?
– Com certeza.
– Porque não pensou no Rana para o lugar que me está a oferecer? Afinal de contas, é o seu
confidente.
– Pelo mesmo motivo que não aceito conselhos sobre investimentos do meu barbeiro – diz,
recostando-se na cadeira, a rodar entre os dedos um pisa-papéis de Ganeixa13 em cristal. – Para
usar uma analogia do críquete, o Rana é um bom jogador, mas daria um mau capitão. Não tem uma
mentalidade de líder. Nunca poderá sentar-se aqui. – Dá uma palmadinha no braço da cadeira. –
Mas a Sapna pode, se for bem-sucedida nos meus sete testes.
– Os seus testes estão a deixar-me apreensiva.
– Não vale a pena. Os meus testes não têm tanto a ver com passar ou falhar, quanto com
descobrir-se a si própria. Através de cada um dos sete testes, ganhará a sabedoria prática sobre
como gerir um negócio no mundo real.
– Faz-me lembrar aquelas histórias antigas de reis que põem os filhos à prova para decidir qual
deles herdará a coroa.
– A minha inspiração é mais moderna. Desprezo a cultura feudal de herança, de filhos ricos e
mimados que recebem tudo de mão beijada, através da sucessão hereditária. Sou um homem que
subiu a pulso, e criei uma cultura de conquista no Grupo CEA. Cada pessoa tem de lutar pelos seus
sonhos e conquistar o seu lugar na empresa.
Apetece-me dizer-lhe que nunca sonhei gerir uma empresa, mas entretanto Rana regressa.
Deposita um envelope castanho à minha frente.
– Estão dois laques aí dentro. Verifique.
Abro o envelope e vejo que está cheio de notas de mil rupias. Parece rude contá-las todas.
– Confio no senhor Acharya – declaro, e assino o documento com um floreado.
Rana pega no papel e guarda-o na pasta.
– Quando começarão os testes? – pergunto, enquanto enfio o envelope na mala.
– Já começaram – diz Acharya, enigmaticamente.
Antes que eu possa fazer mais perguntas, o intercomunicador na secretária dele zumbe. Acharya
fita-o por um momento antes de pressionar um botão vermelho.
– O grupo de Hong Kong está a subir – diz a voz altiva de Jennifer pelo altifalante.
Acharya acena com a cabeça e ergue os olhos para mim.
– Boa sorte – diz, indicando que a reunião terminou.
Cinco minutos depois, estou novamente na rua, a ponderar sobre a estranheza de tudo o que
acabou de acontecer. Tenho mais dinheiro dentro da mala do que alguma vez possuí em toda a
minha vida, e isso enche-me de uma combinação bizarra de júbilo e trepidação. Já sinto a mão
sombria do destino a tocar-me no ombro, como que a avisar-me de que fiz um pacto faustiano e
agora tenho de estar preparada para as consequências.
A primeira coisa que faço depois de sair do gabinete de Acharya é dirigir-me a Hanuman Mandir,
para manifestar a minha gratidão à deusa Durga. Apenas ela pode ajudar-me a navegar nas
correntes traiçoeiras da vida que me espera.
Depois de visitar o templo, faço um pequeno desvio e passo por uma loja no Bloco G, antes de
apanhar o metropolitano. Esta noite não vou até Rithala. Saio em Pitampura e apanho um riquexó
motorizado até casa do tio Deenu. Apesar de ser um empresário rico, ainda vive numa casa velha,
de dois pisos, junto de um canal malcheiroso e entupido de lixo.
A minha tia Manju chachi14, uma mulher gorda e preguiçosa com um estranho gosto por blusas
sem mangas, abre a porta.
– Olá, Sapna – cumprimenta-me, com ar ensonado. O tio Deenu está na sala, vestido apenas com
pijama e um colete, graças ao aquecedor elétrico ligado no máximo. Tem um rosto rechonchudo,
ombros largos e um pescoço inexistente, o que lhe dá um aspeto de velho lutador. Olho em volta,
para os sofás vermelhos garridos, cheios de altos e com as orlas esgaçadas, a coleção
desorganizada de fotografias de família na prateleira, as teias de aranha nos cantos. A sala cheira a
pó e a negligência. Uma vez que sempre vi o tio Deenu através da perspetiva enviesada de membro
da família, nunca me tinha apercebido de como ele é sovina e miserável.
– Se vieste pedir-me que te deixe ficar no apartamento de Rohini, estás a perder tempo – começa
ele, assim que me sento. – A menos que consigas arranjar o dinheiro, prepara-te para sair dentro de
duas semanas.
Apesar de todos os seus defeitos, o meu pai era um homem de princípios inabaláveis. O seu
irmão mais novo não tem nenhum. Deenu é um trapaceiro oportunista sem qualquer tipo de
escrúpulos. Adultera regularmente os seus impostos e provavelmente também trai a mulher gorda.
– Trouxe o dinheiro todo – informo-o, e conto 168 000 rupias.
Ele parece mais chocado do que satisfeito.
– Como conseguiste arranjar tanto dinheiro tão depressa? – pergunta, e lança-me um sorriso
malicioso. – Assaltaste um banco?
– Não é da sua conta, senhorio – respondo secamente, para o calar. – E, uma vez que agora somos
inquilinas que pagam renda, esperamos que faça um contrato legal, que repare as infiltrações na
parede da casa de banho, que arranje o lava-loiça que verte na cozinha e que pinte todo o
apartamento.
Ele fita-me de boca aberta, como um macaco assustado. Nunca falei com ele assim. Por outro
lado, não sou eu que estou a falar. É o poder de todo aquele dinheiro na minha mão, é ele que me dá
voz, que me dá coragem. Com um sorriso presunçoso de triunfo, saio da casa de Deenu e mando
parar outro riquexó.

Quando chego a casa, passa das sete e meia. A minha mãe está na cozinha, a fazer o jantar, e Neha
está refastelada no sofá a ver um concurso de talentos musicais na Zee TV.
– Quanto é que o joalheiro te deu? – quer a minha mãe saber imediatamente. – Foi suficiente?
– Suficiente para pagar ao nosso tio desavergonhado – respondo. – Podemos ficar aqui sem
problemas durante um ano.
– E o que acontecerá ao fim de um ano?
– Pensaremos nisso quando chegar a altura. – Largo a mala em cima da mesa e sento-me ao lado
de Neha no sofá.
Ela está tão atenta ao programa, que mal repara em mim e no saco de compras aos meus pés. No
ecrã, uma concorrente graciosa canta a plenos pulmões uma canção popular do filme Dabangg.
– Eu canto muito melhor do que tu – troça Neha –, e sou sem dúvida muito mais bonita.
– Para de falar com a televisão e vê o que te trouxe – digo-lhe.
Neha vira-se e arregala os olhos quando vê o que tirei do saco de compras – um computador
portátil Acer, novinho em folha.
– Didi! – guincha, deliciada, e abraça-me com força. – És a maior.
Tira-me o computador das mãos e começa a brincar com ele como uma criança com um
brinquedo novo, corada de entusiasmo. A mamã aperta-me gentilmente o ombro.
– O teu pai ficaria muito orgulhoso de ti – diz, limpando os olhos. – Nunca vi a Neha tão feliz.
E quem é que me fará feliz? É o que me apetece perguntar-lhe, antes de ceder à ocasião. Por um
breve momento, estou envolta no brilho quente do amor da minha família e tudo parece cor-de-rosa
e cheio de promessa. Esses momentos são raros, hoje em dia, e desaparecem demasiado depressa.
Dentro de pouco tempo, a mamã ficará de novo distante; Neha voltará a ser a resmungona habitual.
E o desespero, o sofrimento e a dor, os meus companheiros diários, regressarão para me assombrar.
Mas hoje, pelo menos, posso mantê-los ao largo. A minha mente ainda está num turbilhão devido
a todas as possibilidades que se abriram com a oferta de Acharya, e a casa é demasiado pequena
para os meus pensamentos. Assim, saio para o jardim junto dos portões da colónia. Não é realmente
um jardim, apenas um pedaço de terra rodeado por um muro baixo de tijolo, com alguns arbustos e
árvores de fruto. Durante o dia, as crianças da vizinhança usam-no para os seus jogos de críquete,
causando uma barulheira insuportável, mas a esta hora da noite está deserto e silencioso. Sento-me
num dos bancos de madeira. O ar da noite está fresco e o chão sob os meus pés é húmido. Aperto o
xaile de lã à volta dos ombros, para me aquecer.
Estou ali sentada há menos de um minuto quando o popular cantor do cinema indiano Kishore
Kumar começa a fazer-me uma serenata, com uma canção do filme Amar Akbar Anthony.

Chamo-me Anthony Gonzalves.


Estou sozinho no mundo.
O meu coração está vazio, o meu lar também,
Onde viverá alguém afortunado.
Sempre que ela pensar em mim, devia visitar-me:
Palácio da Beleza, Rua do Amor, número 420!

Sinto um calor no rosto, como se estivesse a corar. Sei que esse cantor lendário não regressou do
mundo dos mortos. E também não vive no número 420. A voz melodiosa pertence a Karan Kant,
residente do apartamento B-35.
Karan mudou-se para a Colónia GBR um mês depois de nós. Nos últimos quinze meses, tornou-se
muito mais do que um vizinho para mim. É órfão, não tem família, e trabalha num call center da
Indus Mobile, o terceiro maior operador de telemóveis da Índia. Embora tenha vinte e cinco anos, a
sua aparência pueril fá-lo parecer cinco anos mais novo. Com a sua altura acima da média, corpo
perfeitamente esculpido, rosto perfeito e barbeado e cabelo encaracolado, é sem dúvida o homem
mais atraente de Rohini, se não mesmo de Deli. Se juntarmos o sorriso aberto e os olhos
sonhadores, é o bastante para fazer desfalecer as adolescentes. E não só as adolescentes; até as
donas de casa na menopausa da nossa colónia têm um fraquinho por ele. Estão sempre a arranjar
desculpas para vir à varanda, só para o verem quando regressa a casa do trabalho. Karan, no
entanto, parece só ter olhos para mim. Não sei o que vê em mim. Talvez me considere sua alma
gémea. Somos ambos pessoas com muito potencial que não realizamos, espezinhadas pela vida,
esbofeteadas pelo destino. De todas as pessoas da colónia, foi a mim que ele escolheu para sua
confidente. Ouvimo-nos e somos os maiores apoiantes e os críticos mais honestos um do outro.
Ainda é cedo de mais para dar um nome à nossa relação. Basta dizer que ele é a minha alma
gémea, a minha força, a minha âncora. Às vezes olho para ele como um irmão; outras vezes, como
um companheiro de confiança, e de vez em quando – atrever-me-ei a dizê-lo? – como namorado. Há
sempre um toque vulnerável de sedução nas ações dele, apesar de ele tentar esconder o que sente
com um exterior irreverente e umas palhaçadas. É um imitador extremamente talentoso, capaz de
imitar a voz de qualquer pessoa, desde o ator Shahrukh Khan ao jogador de críquete Sachin
Tendulkar.
Apesar do seu espírito brincalhão, há um brilho de tristeza nos seus olhos. Muitas vezes o
apanhei a olhar para mim com uma expressão torturada e assombrada. Nessas alturas, quase
consigo tocar na solidão do seu coração, e sangro com ele. É um verdadeiro palhaço: faz rir os
outros enquanto chora silenciosamente para dentro.
– Porquê tão séria, madam-ji? – pergunta, enquanto se senta ao meu lado.
– Tive um dia de loucos – respondo, com um suspiro.
– Por acaso (a) ganhaste a lotaria, (b) foste assaltada, (c) recebeste uma oferta de trabalho ou (d)
conheceste uma celebridade? – Está a imitar o apresentador Amitabh Bachchan, a fazer uma
pergunta no concurso Quem Quer Ser Milionário?
– Todas as alíneas – respondo.
Ele semicerra os olhos.
– Nesse caso, gostarias de telefonar a um amigo?
Parece que me leu a mente. Aconteceu tanta coisa nas últimas vinte e quatro horas, que não
consigo continuar a guardar tudo para mim. Preciso de falar com alguém, desabafar. E não vejo
ninguém melhor do que Karan. Lembro-me da advertência severa de Acharya sobre a manutenção
de uma confidencialidade absoluta, mas, se há alguém a quem posso confiar um segredo, é este
homem sentado ao meu lado. Olho para os seus olhos profundos e sinto o mundo parar.
– Não vais acreditar no que te vou contar.
Conto-lhe tudo, começando pelo encontro fortuito com Acharya no templo, passando pelo
telefonema do tio Deenu, o roubo das pulseiras, a cena no salão de exposições com Choubey, e a
reunião final com Acharya no seu gabinete, da qual saíra a fortuna inesperada de dois laques de
rupias em dinheiro vivo.
Karan ouve-me, com profunda atenção. Depois, solta um assobio baixinho.
– Bolas, é uma história para contar aos meus netos!
– Então achas que o Acharya tenciona realmente contratar-me como diretora-geral?
Ele ri-se.
– Estás doida? Isto é um golpe, de certeza. Ninguém oferece, subitamente, a um perfeito
desconhecido uma empresa no valor de dez mil milhões de dólares, de mão beijada.
– Mas eu investiguei o Acharya. Parece sério.
– O mesmo se pode dizer de todos os vigaristas, antes de serem apanhados. O Big Bull Harshad
Mehta era aclamado como génio financeiro antes de fazer cair toda a bolsa de valores.
– Mas o que pode o Acharya querer de mim? Não tenho dinheiro para investir na empresa dele.
– Talvez tenha um fraquinho por belezas morenas.
– Não parece um devasso. E eu não sou bonita como a Bipasha Basu15.
– Há alguma possibilidade de seres a filha ilegítima e há muito perdida dele?
– Deixa-te de piadas. Isto não é um filme de Bollywood.
– Mas já estou a visualizar a cena. – Karan ergue as mãos como um realizador que emoldura uma
imagem. – Chama-te a casa dele, uma noite, já tarde. Não o encontras lá, mas descobres a mulher
dele morta numa poça de sangue. Foi alvejada. E a arma que a matou tem as tuas impressões
digitais. Então, compreendes que tudo isto foi apenas um plano engenhoso para ele se livrar da
mulher e te acusar do crime.
Antes que a imaginação hiperativa dele arranje outro cenário sinistro, corto-lhe a palavra.
– O Acharya não tem mulher. Fim da conspiração.
– Então deve ter outra intenção desonesta qualquer. Toda a gente sabe que o Acharya odeia o
irmão gémeo, o Ajay Krishna Acharya. A Premier Industries é a maior concorrente do Grupo CEA.
E se o Acharya te quer usar como peão para atacar o irmão?
– O Acharya não disse uma única palavra sobre o irmão. E por quem me tomas, por uma estúpida
ignorante que se deixaria usar voluntariamente como peão?
– Não estou a acusar-te. É uma regra básica da natureza humana: a promessa de riqueza
inesperada interfere com a inteligência e o senso comum. É por isso que há aqueles esquemas
Ponzi, esquemas de pirâmide, fraudes de plantações de madeira. Vejo-o acontecer todos os dias, no
call center, com clientes ingénuos que se deixam apanhar por negócios duvidosos impingidos por
operadores de telemarketing pouco escrupulosos que conseguem sempre fugir antes que a polícia
chegue.
– Também existe uma coisa chamada arriscar. Só quem arrisca ir longe de mais descobre até onde
consegue ir.
– Foi o Acharya que disse isso?
– Foi T. S. Eliot. E nem sequer sou eu que estou a correr um risco; é o Acharya. Ele é que está a
apostar em mim. Como é que eu podia deixar passar esta oportunidade única? Pela primeira vez,
vejo uma centelha de esperança no meu futuro.
– Pff! – Ele reage com ironia. – A esperança é uma droga recreativa, dá uma pedra artificial
baseada numa dose de expectativas irrealistas. O que tu precisas é de uma dose de realidade.
– E tu precisas de um bocadinho de sol. Porque tens de ser sempre tão negativo?
– Porque me preocupo contigo e tenho um mau pressentimento em relação a isto, Sapna. Nunca
devias ter aceitado o dinheiro do Acharya.
– Não tive alternativa.
– Só espero que não acabes por te arrepender. Tem de haver um preço. E não sabes
absolutamente nada sobre esses supostos sete testes. O que implicam? Como acontecerão? Quando
terão lugar?
– Sim, também estou um bocadinho apreensiva em relação aos testes.
– Deixa-me contar-te uma pequena fábula, Sapna. Era uma vez um homem que estava desesperado
por ser mais alto. Assim, rezou durante vinte anos, e Deus finalmente concedeu-lhe o seu desejo.
Mas havia uma condição. Deus disse: «Posso tornar-te mais alto, mas por cada centímetro que
acrescentar, serão deduzidos cinco anos da tua vida.» O homem concordou. Assim, Deus deu-lhe
mais três centímetros e o homem morreu instantaneamente. Moral da história: nunca faças um
negócio sem conhecer todos os factos.
– Não tenho intenção de fazer todos os testes. Planeio falhar rapidamente no primeiro e ficar com
os dois laques. Fim da história.
– Se fosse assim tão simples… Um homem como o Acharya certamente que pensou nisto
cuidadosamente antes de te abordar.
O cinismo impiedoso e mórbido de Karan cresce em mim como um fungo. Quando me sento para
jantar com a mamã e com Neha, estou convencida de que assinar aquele contrato com Acharya foi o
pior erro que cometi na vida.
Sempre que estou perturbada, procuro conforto na poesia. Assim, depois de jantar, pego no diário
preto secreto onde escrevo os meus pensamentos e sentimentos desde os nove anos. Enquanto
folheio as páginas gastas, os meus olhos caem num poema intitulado «Amanhã». Foi escrito a 14 de
abril de 1999, quando eu era uma inconsciente menina de onze anos. Talvez por ter sido redigido
numa época mais simples e feliz, é precisamente o tónico de que preciso. Eis o que escrevi:

A esperança é um sol brilhante


Que ilumina cada manhã.
O amor é um vento poderoso
Que afasta a tristeza vã.
O futuro é uma estrada vazia
E eu não tenho medo do amanhã.
1 Indumentária tradicional, usada pelas mulheres na Índia. Salwar é um par de calças largas e kameez, uma camisa comprida. (N. da
T.)

2 Palavra hindi que, no contexto de uma visita ao templo, significa «visita a Deus», ou «audiência com Deus». (N. da T.)

3 Marca que os hindus devotos desenham na testa. Basicamente, a tika invoca um sentimento de sacralidade em quem a usa e nas
pessoas com quem o portador entra em contacto. (N. da T.)

4 Unidade de numeração sul-asiática que equivale a cem mil (100 000). (N. da T.)

5 Grande tecido retangular usado pelos homens, geralmente branco; é enrolado à volta das pernas e amarrado à cintura. (N. da T.)

6 Bebida refrescante, feita de uma mistura de iogurte, água e especiarias. (N. da T.)

7 «Irmã mais velha». (N. da T.)

8 Chacha significa «tio» em hindi. O acrescento do sufixo «ji» a um nome é um sinal de respeito. (N. da T.)

9 Sistema bancário clandestino baseado na confiança, onde é possível disponibilizar dinheiro internacionalmente sem nunca o movimentar
e sem deixar rasto. (N. da T.)

10 Ingrato, pessoa em quem não se pode confiar. (N. da T.)

11 Veículo de Xiva, o deus hindu da destruição. (N. da T.)


12 Os Upanixades são uma coleção de textos filosóficos que formam a base teórica da religião hindu. (N. da T.)

13 Divindade com cabeça de elefante, deus hindu do sucesso. (N. da T.)

14 «Tia» em hindi. (N. da T.)

15 Bipasha Basu é uma modelo e atriz indiana conhecida pela sua beleza morena. (N. da T.)
PRIMEIRO TESTE

Amor no Tempo do Khap

–B em-vindo, meu caro senhor, gostaria de ver a nossa seleção de televisores de ecrã gigante?
Temos algumas ofertas fantásticas, neste momento. – Sorrio ao cliente com o entusiasmo
adulador de uma apresentadora do canal de vendas.
É sábado, dia 18 de dezembro. Passou uma semana desde o meu encontro com Acharya e a minha
mente tem estado repleta de preocupação. Em toda a minha vida, nunca tive medo de exames, mas
basta-me pensar nos testes de Acharya para sentir um aperto na boca do estômago. Principalmente,
porque não sei nada sobre eles, e essa incerteza está a afligir-me. Ainda por cima, a loja
transformou-se numa casa de loucos. A febre do campeonato mundial está a atingir o auge e as
nossas vendas de televisores dispararam. Esta manhã, um frenesim de excitação percorreu os
empregados quando nos disseram que a atriz de Bollywood Priya Capoorr visitará a loja dentro de
duas semanas. É embaixadora de marca da Sinotron Corporation e virá promover os mais recentes
modelos de televisores.
Também houve outros desenvolvimentos. Temos um novo empregado de caixa chamado Arjun
Soni, um porco gordo que está sempre a comer amendoins e responde a perguntas com outras
perguntas. Neelam, uma das vendedoras, despediu-se e vai sair no próximo mês, para se casar. O
rapaz é um indiano que reside em Estocolmo. Ela está entusiasmada com a ideia de ir para a
Suécia, um país sobre o qual não sei praticamente nada.
À tarde, o gerente chama-me ao seu cubículo.
– Sapna, estive a ver os seus números de vendas. Está novamente em primeiro lugar – diz-me,
com um sorriso radiante. O sorriso forçado, com os dentes amarelos, faz-me lembrar um antigo
vilão de filmes indianos chamado Jeevan, o que me deixa instantaneamente de sobreaviso. Madan
só sorri quando quer extorquir um favor a um funcionário, como pedir-nos para ficar até mais tarde
ou para vir trabalhar ao domingo.
– Lembra-se do senhor Kuldip Singh, o homem que comprou um carregamento de artigos a
semana passada? – continua.
– Refere-se ao agricultor de Haryana?
– Sim, sim. – Madan acena com a cabeça. – Bom, telefonou hoje para dizer que ninguém em casa
dele sabe trabalhar com os aparelhos. Quer que alguém da loja vá à aldeia e lhes explique o modo
de funcionamento. Compreende?
– Sim. Porque não manda um dos vendedores?
– O problema é esse. – Madan suspira. – Ele só a quer a si. Pelos vistos, ficou muito
impressionado consigo. Portanto, eis o que lhe proponho: queremos que vá à aldeia dele amanhã e
o ensine a trabalhar com o televisor e a máquina de lavar roupa e o sistema de som e o leitor de
DVD. Suportaremos os custos de viagem e receberá ainda quinhentas rupias para despesas.
– Não vou perder o meu domingo apenas por quinhentas rupias.
– Pense nisso como dinheiro fácil. Descobri que são apenas três horas de viagem até à aldeia de
Chandangarh. Pode facilmente ir de manhã e voltar à noite. Está bem?
– Não está bem. Como pode pedir a uma mulher solteira que vá sozinha a uma aldeia remota?
– Compreendo, compreendo. – Madan abana a cabeça. – Mas o Gulati sahib consideraria isto um
favor pessoal. Por favor, só desta vez – implora.
– Este domingo não posso – digo, e abano a cabeça com ar sério. – É o aniversário da Alka.
– Quem é a Alka?
– A minha irmã que morreu há dois anos.
– Porque é que os mortos têm de interferir nos assuntos dos vivos? – resmunga ele entre dentes,
antes de assentir com a cabeça com ar resignado. – Theek hai, está bem. Pode então ir na segunda-
feira?
– Sim, isso pode ser. Mas fico poucas horas na aldeia. A que horas é que o táxi estará em minha
casa na segunda-feira?
– Táxi? Quem pensa que é? A Priya Capoorr? Vai de autocarro, entendido?
Apetece-me mandá-lo passear, mas há um limite até onde se pode ir com Madan, e acho que já
estou muito próxima desse limite hoje.
Se alguma vez chegar a ser diretora do Grupo CEA, a primeira coisa que farei será comprar a
Gulati & Sons e pôr Madan a varrer o escritório. Por enquanto, contudo, aceno simplesmente com a
cabeça e engulo o orgulho.

A casa enche-se de um ar de melancolia profundamente perturbador. O silêncio cruel e trocista do


destino. Hoje é o aniversário de Alka. Faria dezassete anos, se fosse viva. A minha mãe limpa os
olhos. Eu tenho um nó na garganta que se recusa a desaparecer. O ambiente de homenagem e
penitência envolve-me no seu abraço sufocante.
Não houve um único dia, nos últimos dois anos, em que eu não pensasse em Alka. Os mortos não
morrem. Simplesmente transformam-se em fantasmas, a pairar no ar, a assombrar os nossos
pensamentos, a invadir os nossos sonhos. A ausência de Alka assombra-me todos os dias, mas hoje
mais do que nunca. Há algo particularmente cruel em estar vivo no dia de aniversário de uma irmã
morta.
Enquanto estou sentada a olhar para a fotografia dela, consumida pelo sentimento de culpa dos
sobreviventes, a minha mente enche-se de memórias do nosso tempo em Nainital.
Vivíamos no número 17, uma grande casa de quatro quartos no campus da Academia Windsor,
uma escola interna para rapazes onde o meu pai era o professor de Matemática mais antigo. A
escola, construída na década de 1870, é como uma fortaleza vitoriana que se estende por mais de
quarenta hectares de terreno, completa com torreões guarnecidos de ameias, espirais de pedra e
anjos e gárgulas embutidos na fachada gótica do edifício principal. Empoleirada no cimo de uma
colina verde, está rodeada por montanhas brumosas e por florestas de carvalhos, pinheiros e cedros
dos Himalaias. Da nossa casa, até conseguíamos ver o lago Naini, em forma de olho, com o seu
brilho sombrio.
O papá estava há muito ligado à Academia, onde começara a sua carreira de professor em 1983 e
onde trabalhara de forma ininterrupta durante mais de vinte e cinco anos. Éramos uma família da
classe média e levávamos uma vida sossegada. A atmosfera na nossa casa era de disciplina,
responsabilidade e poucas extravagâncias. Em muitos aspetos, era uma vida idílica, de solidão
tranquila e estudo diligente, pontuada por tempestades de verão, viagens de barco indolentes no
lago e excursões de inverno ao nosso lar ancestral, na pequena cidade de Hardoi.
Embora tivéssemos crescido juntas na mesma casa, eu e as minhas duas irmãs tínhamos
personalidades e maneiras de ver a vida muito diferentes. Eu era a totó, tímida e intelectual. Neha
era a exibicionista snobe. E Alka era o espírito livre que marchava ao som da sua própria música.
Tinha um grande sentido de humor e encontrava alegria nas mais pequenas coisas. Era exuberante,
animada, espontânea, extravagante, por vezes quase imprudente. Porém, assim que mostrava o seu
sorriso endiabrado e dizia «Kamaal ho gaya!», tudo lhe era perdoado. Ela era a luz dos meus
olhos, a alma da festa, o coração da nossa família.
Fomos educadas num ambiente de dever regimentado, em que as regras eram mais importantes do
que os sentimentos. Alka, Neha e eu frequentávamos o Convento de Santa Teresa, um colégio
interno inglês exclusivo, para raparigas, gerido por freiras católicas. Éramos, as três, bolseiras
externas, um privilégio conquistado em virtude do emprego do papá na Academia Windsor, que
tinha um acordo recíproco com o convento. A irmã Agnes, a reitora tirânica, tinha ideias muito
claras sobre aquilo que como raparigas, devíamos fazer, o que não devíamos fazer e aquilo que
nunca podíamos fazer. Em casa, o nosso pai aplicava o mesmo código de conduta rigoroso, que
incluía um recolher obrigatório às oito horas. Sem disciplina, só existe anarquia, costumava ele
dizer. Sendo professor de Matemática, reduzira o seu mundo ao binário de preto e branco, bom e
mau. Não havia tolerância para tons de cinza no seu universo.
Também tinha planeado o futuro das três filhas. Eu, a estudiosa, seria funcionária pública. Neha, a
bonita, seguiria carreira como jornalista de televisão. E Alka, a mais compassiva, seria médica.
Como filha obediente, fiz o que o meu pai esperava de mim. Distingui-me na escola e depois
inscrevi-me no bacharelato na Universidade de Kumaun. Embora a minha área fosse Literatura
Inglesa, lia tudo o que conseguia apanhar. Desde o ciclo de vida de uma traça ao ciclo de
combustível de uma central nuclear, dos buracos negros às nuvens de Brown e à computação em
nuvem, eu devorava toda e qualquer informação, para aperfeiçoar a minha cultura geral, algo
essencial para ter sucesso no exame de funcionária pública.
A regra mais importante do meu pai tinha, inevitavelmente, que ver com rapazes. Alguns anos
antes, um professor seu colega, o senhor Ghildayal, ficara escaldado pelo romance secreto de
Mamta, a sua filha de 18 anos, com o delegado da escola, que resultara numa gravidez inesperada, e
o papá morria de medo de que a nossa família se visse ligada a um escândalo semelhante.
– Se apanhar alguma das minhas filhas a olhar sequer para um rapaz, arranco-lhe o couro –
ameaçava-nos. No entanto, não podia impedir que os rapazes olhassem para nós, ou melhor, para
Neha e Alka. Eram as raparigas mais bonitas num campus cheio de hormonas, onde cada dia trazia
um novo despertar sexual a alguma pobre alma atormentada. Os rapazes eram, na sua maioria,
meninos ricos e mimados de sítios como Deli, Bombaim e Calcutá, que tinham sido castigados
pelos pais e estavam determinados a aproveitar ao máximo a sua nova liberdade. A Academia
Windsor orgulhava-se de ser uma utopia académica. Na verdade, era um antro de corrupção e
degradação. No campus, circulavam livremente todo o tipo de materiais pornográficos e bebidas
alcoólicas. Até havia rumores sombrios de abuso de drogas e visitas de prostitutas.
Eu estava demasiado concentrada nos estudos para reparar em rapazes. Neha tratava-os com
absoluto desprezo. Chegara bem cedo à conclusão de que não era em Nainital que queria passar o
resto da vida, e evitava os habitantes locais como se tivessem a peste. Restava a nossa irmã mais
nova, Alka. Era uma estudante adolescente, a tentar lidar com as mudanças do corpo. Embora
estivesse a crescer fisicamente, a nível emocional era apenas uma miúda que ainda acreditava na
Fada dos Dentes. Para mim, os rapazes eram uma distração evitável; para Neha, um divertimento
passageiro; mas, para Alka, eram um enigma sedutor, visto através da perspetiva cor-de-rosa dos
romances da Mills & Boon, em que era viciada. As severas admoestações do papá de pouco
serviam para a afastar do seu fascínio por esse mundo efémero de fantasia, de heróis arrojados e
donzelas em perigo. Dada a sua inocência, o seu jeito de ser despreocupado e o seu absoluto
desdém pela autoridade, era apenas uma questão de tempo até que algum Romeu predador lhe desse
a volta à cabeça.
Aconteceu mais cedo do que eu esperava. Tive o primeiro indício de que se passava alguma
coisa por ocasião do décimo quinto aniversário de Alka.
O papá não gostava de festas de aniversário, que considerava, a par do Dia dos Namorados, uma
importação ocidental para promover o comercialismo grosseiro. A única exceção que fazia era
permitir que Neha e eu distribuíssemos doces pela nossa turma no nosso dia de anos. Apenas Alka,
a mais mimada das três, podia ter festas de aniversário. Eram sempre encontros modestos,
consistindo apenas de bolo, algumas colegas de escola e um presente pouco dispendioso,
geralmente um livro.
O décimo quinto aniversário de Alka teve o bolo e bolachas obrigatórios, os habituais jogos e
divertimentos. No entanto, além da sua exuberância típica, naquele dia ela emanou uma sexualidade
em bruto, até então escondida. Nessa noite, enquanto inspecionava os presentes dela, encontrei um
frasco de perfume Poison, da Christian Dior, disfarçadamente arrumado entre as suas roupas.
– Uau! Que sorte! – Revirei os olhos. – Mas quem, em Nainital, é que tem dinheiro para comprar
um presente destes?
Com um sorriso encantador, Alka encolheu os ombros e tentou minimizar a ocasião.
– Kamaal ho gaya didi! A Rakhi, a avarenta, tornou-se subitamente generosa.
Eu sabia que ela estava a mentir. Rakhi Rawat era sua colega em Santa Teresa. No ano anterior,
dera a Alka uma arca do tesouro de plástico que custara cinquenta rupias. Era impensável que lhe
tivesse oferecido um perfume importado que custava pelo menos três mil.
Houve outros sinais. Durante as duas semanas de férias de Natal, quando a Academia estava
fechada, apanhei Alka a escrever cartas furtivas, que depositava sub-repticiamente na caixa de
correio encarnada junto dos portões principais da escola. Quando a confrontei, disse-me que eram
para uma correspondente no Brasil. Mais preocupante do que tudo o resto, as notas dela baixaram
ligeiramente. Alka começou a ter insónias, perdeu o apetite.
Tive provas conclusivas no dia em que a Academia reabriu. Ao voltar da biblioteca, ao final do
dia, ouvi sons abafados provenientes de trás do ginásio da escola, deserto àquela hora. Quando me
aproximei, vi uma rapariga e um rapaz unidos num beijo apaixonado por baixo de um carvalho. A
rapariga tinha as mãos nos ombros do rapaz e ele estava a beijá-la nos lábios. Separaram-se assim
que deram pela minha presença. O rapaz deu meia volta e correu pela colina abaixo, desaparecendo
no meio de um pinhal. Não consegui ver-lhe o rosto, mas o casaco verde e as calças cinzentas
denunciavam-no: era o uniforme da escola. A rapariga tentou desviar o rosto e fugir de mim, mas
segurei-lhe a mão. Era Alka.
Nessa noite, fomos dar um longo passeio. Ela recusou-se a dizer-me o nome do rapaz ou a contar-
me qualquer outro detalhe sobre ele, exceto afirmar que era o rapaz mais espetacular do planeta e
que era filho de um homem de negócios muito rico de Deli.
– Estou apaixonada, didi – repetiu várias vezes, chegando mesmo a trautear uma canção de amor
pirosa.
– Ninguém se apaixona com quinze anos, Alka – aconselhei. – Isso é apenas uma paixoneta. O
rapaz está a tentar aproveitar-se de ti.
– O amor não tem limite de idade, didi – retorquiu ela. – Acontece quando tem de acontecer. E
dura a vida inteira. Verás, quando eu me casar com ele.
– E o que dirá o papá quando souber do teu romance?
– Ele não vai descobrir. Sei que guardarás o meu segredo, didi. És a única pessoa a quem
confiaria a minha vida.
– Nesse caso, tens de confiar em mim quando te digo que o que estás a fazer é não apenas
irresponsável e errado, mas também incrivelmente estúpido.
Apesar de recorrer a todos os argumentos, todas as ameaças, e toda a minha influência, não
consegui persuadir Alka a pôr fim à relação. Ela era tão obstinada e teimosa quanto eu era
insistente e persuasiva. Por fim, chegámos a uma espécie de acordo. Arranquei-lhe a promessa de
que ela suspenderia temporariamente a relação com o rapaz. Em troca, eu não falaria daquilo a
ninguém, muito menos ao papá.
Embora eu confiasse em Alka, comecei a controlá-la discretamente a partir desse dia, chegando
mesmo a remexer nas coisas dela quando não estava no quarto. Passaram-se duas semanas sem
quaisquer incidentes e depois, uma noite, descobri um pequeno embrulho que ela escondera dentro
da biqueira do sapato. Era um envelope enrolado. Lá dentro, havia um saquinho de plástico
transparente com uma substância em pó, acastanhada. Parecia um pacote de açúcar amarelo, mas eu
vira filmes suficientes para saber que aquilo era heroína.
Chamei Alka ao meu quarto e fechei a porta.
– Como é que isto veio parar às tuas mãos? – perguntei friamente, com o pacote na mão.
– Onde é que encontraste isso? – quis ela saber, temerosa e agitada.
– Responde à minha pergunta. Quem é que te deu isto? – repeti, em tom severo.
– O meu namorado – respondeu ela de olhos baixos.
– Pensava que te tinhas afastado dele.
– Tentei, mas não consigo – gemeu. – Ele é o meu oxigénio. Morrerei, sem ele. E ele morrerá sem
mim. Quase cortou os pulsos no dia em que lhe disse que não podia continuar a vê-lo.
– Isso só prova que é louco, além de ser traficante de droga.
– Ele não é traficante. E eu não ando metida na droga. Só consumimos uma vez. Apenas como
experiência.
– Uma experiência que pode viciar-te e até acabar por te roubar a vida.
– Porque tens de levar tudo tão a sério, didi?
– Não há nada mais sério do que drogas, Alka. Traíste a minha confiança. Não posso esconder
isto. Tenho de contar ao papá.
– Não, didi! – pediu ela com veemência, agarrada ao meu braço. – Juro que me mato se disseres
alguma coisa ao papá.
– As drogas matar-te-ão antes disso, Alka – respondi, e afastei-a.
O papá estava a ler o jornal quando entrei no escritório dele.
– A sua filha Alka começou a consumir drogas. Por favor, trate dela – disse-lhe, sem preâmbulos,
largando o pacote de plástico no colo dele como se fosse uma casca de banana.
Nessa noite, tivemos a mãe de todos os confrontos em nossa casa. O papá era famoso na
Academia pela sua ética e disciplina rígidas. Considero-me uma rapariga de sorte por ter herdado
apenas a sua pele escura, não o seu temperamento sombrio. O papá sempre acreditou que estava
destinado a voos mais altos, que dar aulas a crianças estava abaixo dele. E descarregava nelas a
sua frustração. Ainda corriam histórias sobre o dia em que açoitara um aluno, que cometera o erro
de trazer para a sala de aula um exemplar contrafeito da revista Playboy, até o rapaz estar reduzido
a uma massa trémula de carne pisada. Os alunos encolhiam-se na presença dele. Os seus testes eram
capazes de reduzir qualquer um a lágrimas. A escola estava ciente do seu estado emocional
irascível, mas tolerava-o porque ele era pura e simplesmente um professor de Matemática
extraordinário, talvez o melhor do país. Conseguia fazer cálculos mais depressa do que um
computador, resolver qualquer equação, provar qualquer teorema.
O que ele não sabia era como lidar com as pressões e a ansiedade de uma adolescente de quinze
anos. Pensei que ele teria uma conversa franca com Alka, que tentaria meter-lhe juízo na cabeça
através da força moral da sua personalidade. Em vez disso, o confronto degenerou rapidamente
numa discussão ruidosa, repleta de drama beligerante, gritos e berros.
– Posso pôr-te na prisão por posse de drogas – disse o papá, tentando assustar Alka.
– Então ponha – ripostou Alka. – Serei mais feliz do que nesta prisão a que chamam casa.
Disseram-se muitas coisas a quente que não deviam ter sido ditas. O papá acusou Alka de ser
uma miúda mimada, uma vergonha para o nome da família. Alka acusou-o de ser um tirano:
– As suas expectativas são irrealistas, os seus testes são impossíveis. – O golpe mais cruel foi
quando o acusou de ser um cobarde. – Toda a escola se ri de si nas suas costas. Não passa de um
falhado perverso e patético, que não merece qualquer respeito! – gritou ela.
Foi como se um vulcão tivesse entrado em erupção.
– Como te atreves?! – troou o papá, com o sangue a subir-lhe ao rosto enquanto se levantava de
um salto. – Como te atreves?! – repetiu, e esbofeteou-a, atirando-a ao chão.
A mamã, Neha e eu olhámos para ele, aturdidas e horrorizadas. Era a primeira vez que o meu pai
levantava a mão para uma das filhas.
Alka levantou-se. Tinha um grande vergão vermelho na face e um arranhão no braço. Os seus
olhos escuros cintilaram com uma fúria incandescente que teria derretido pedra. Olhou para todos
nós e, por fim, o seu olhar parou em mim. Senti um raio laser de ódio puro e incontido trespassar-
me a alma.
– Odeio-te, odeio-vos a todos – disse ela entre os dentes cerrados. Depois, correu para o quarto
e trancou a porta por dentro. Implorei-lhe que me ouvisse, tentei desesperadamente convencê-la a
abrir a porta, mas ela recusou obstinadamente.
Eu mereci o ódio dela. Mereci tudo o que ela me disse nessa noite.
– Ela que apodreça no quarto – disse o papá, em tom desdenhoso. – Foi a nossa complacência
excessiva que permitiu que as coisas chegassem a este ponto.
Nenhum de nós jantou nessa noite.
O dia seguinte foi 26 de janeiro, Dia da República na Índia. A escola estava transformada, com
faixas cor de açafrão, verdes e brancas, as cores da bandeira indiana, espalhadas pelo campus. A
bandeira tricolor esvoaçava orgulhosamente nos postes altos do campo desportivo. Comecei a
ouvir os alunos ensaiar canções patrióticas desde bem cedo, as suas vozes fortes a intensificar o
fervor festivo. Alka, contudo, ainda não saíra do quarto, e eu estava a ficar um pouco preocupada.
Bati várias vezes à porta, mas sem resposta. Assim, aproximei-me pelo jardim das traseiras.
Quando reparei que a janela do quarto dela estava aberta, a minha primeira reação foi pensar que
Alka fugira. Em fundo, ouvia-se o som de «Hum Honge Kamyab» a ser cantada pelos rapazes no
átrio aberto. «Triunfaremos… Triunfaremos… Um dia triunfaremos…»16
Afastei um pouco a cortina grossa e um raio de sol penetrou na penumbra do quarto. Sob essa luz
cortante, vi uma cena que me gelou até aos ossos. Alka estava pendurada na ventoinha do teto, com
a cabeça tombada para o lado. Tinha uma dupatta17 amarela enrolada ao pescoço. A pequena
cadeira de madeira do seu quarto estava tombada no chão.
Fui acometida por uma tontura.
– Papá! – gritei, e recuei aos tropeções, afastando-me da janela.

Caminharemos de mãos dadas, caminharemos de mãos dadas,


Um dia caminharemos de mãos dadas;
Oh, no meu coração eu acredito,
Um dia caminharemos de mãos dadas.

Lembro-me de tudo o resto como se tivesse acontecido em câmara lenta, através de um véu de
lágrimas. O papá a abrir a porta do quarto de Alka com um pontapé, ofegante e agitado como se a
casa estivesse em chamas. A mamã a subir para cima da cama e a segurar o corpo inerte de Alka,
para retirar o seu peso do tecido do qual estava suspensa. Neha a trazer a faca que usámos para o
cortar.

Nada receamos, nada receamos,


Nada receamos neste dia;
Oh, no meu coração eu acredito,
Nada receamos neste dia.

Era tarde de mais. A vida já abandonara a minha linda irmã. Deitámo-la na cama e desamarrámos
o lenço amarelo do seu pescoço. Era um lenço que eu nunca tinha visto. O rosto dela estava pálido
e sereno. Os pés descalços estavam azulados, devido à acumulação de sangue. Uma coloração
conhecida como coloração post mortem ou hipóstase. Mais uma informação absolutamente inútil
que eu retirara da minha base de dados de cultura geral. Na mão direita, Alka tinha uma folha de
papel. Gentilmente, abri-lhe os dedos frios e tirei-a. Escritas na sua caligrafia encantadora e
infantil, estavam as palavras: «O amor nunca morre. Simplesmente adquire outra forma.» Lembrei-
me de que era o slogan de um filme hindi que víramos recentemente na televisão, uma tragédia dos
dias modernos. E, depois, uma última frase: «Perdoo-vos a todos.»
Embalei a minha irmã morta nos braços, de ombros curvados, enquanto sucumbia à cruel
realidade de que os nossos caminhos nunca mais se cruzariam na Terra. O coração dela era quase
demasiado grande para este mundo. Em vida, tocara-nos a todos com a sua presença radiante, a sua
bondade e a sua graça. E, mesmo na morte, optara por nos perdoar. Tal como a irmã Agnes
costumava dizer-nos sobre Jesus, Alka redimira-nos através do seu sangue. Nunca a
compreendemos completamente, e agora ela partira para sempre e fazia-nos sentir muito pequenos.

A verdade libertar-nos-á, a verdade libertar-nos-á,


Um dia a verdade libertar-nos-á;
Oh, no meu coração eu acredito,
Um dia a verdade libertar-nos-á.

A polícia veio, e depois chegou uma ambulância, que levou o corpo de Alka. Os vizinhos
reuniram-se e falaram em tom triste sobre a inevitabilidade do destino. O diretor da Academia
apareceu também, arrancado ao seu discurso do Dia da República. Parecia mais preocupado com a
perturbação do programa do que com a nossa perda. A minha mãe e Neha nem repararam nele.
Estavam ocupadas a carpir. Eu não chorei. Fiquei ali sentada, como uma rocha imóvel, com o rosto
paralisado num ricto retorcido de choque total, misturado com uma dor avassaladora. A imagem
final da minha irmã morta ficou-me gravada na memória para sempre.

Viveremos em paz, viveremos em paz,


Um dia viveremos em paz;
Oh, no meu coração eu acredito,
Um dia viveremos em paz.

Não havia paz. Havia apenas culpa, no rescaldo desta tragédia que nos deixara aturdidos.
Primeiro, vieram os pesadelos, que me faziam acordar a meio da noite encharcada em suor e sem
conseguir respirar. Depois, vieram os ataques de pânico, causados pelas feridas infetadas da
memória. A realidade tornou-se um filme psicadélico, cheio de cortes abruptos e de imagens
estáticas do corpo morto de Alka a balouçar na brisa. Cheguei a um ponto em que não conseguia
olhar para uma ventoinha de teto sem ter vómitos. A minha mãe tinha ataques de ansiedade perante
qualquer tecido amarelo.
O fantasma de Alka perseguia-nos, a todas as horas de todos os dias. A casa do número 17 estava
saturada do cheiro dela, repleta da sua presença. Todas as pequenas coisas no seu quarto nos
recordavam dela. Cada fotografia antiga desencadeava um novo acesso de autoflagelação. Por fim,
não aguentámos mais. Uma vez que a história não podia ser alterada, decidimos mudar a geografia.
Foi Neha que sugeriu que nos mudássemos.
– Vamos para outro lado qualquer, longe de Nainital. Morrerei se ficar aqui.
O papá aceitou a sugestão, quase aliviado. A nódoa do escândalo que sempre tivera tanto cuidado
em evitar espalhara-se muito além do campus, manchando a sua carreira e desgastando a sua
autoestima. Até ele ansiava por se libertar da humilhação diária que enfrentava nos olhares críticos
dos colegas e nos risinhos maliciosos dos alunos. Assim, guardámos os nossos bens em quatro baús
e trocámos o conforto frio de Nainital pelo ar quente e húmido de Deli, a 320 quilómetros de
distância.
Livres da claustrofobia incestuosa da pequena Nainital, procurámos reconstruir as nossas vidas
enxertando-nos no anonimato rude da metrópole. A morte de Alka ensinara-me o sentido da vida,
como ela é frágil e como a tomamos por garantida, despreocupadamente. Acordava muitas manhãs
com a certeza gelada de que aquele dia podia muito bem ser o meu último dia à face da Terra.
Depois de começarmos a viver com a consciência da morte, ganhamos uma urgência, uma
intensidade e uma concentração na vida. Ela ensina-nos a levar uma existência menos trivial,
impele-nos a procurar o máximo valor possível para as nossas ações. Comecei a dar sangue
regularmente para a Cruz Vermelha. Depois da primeira vez que o fiz, descobri que o meu tipo de
sangue era um dos mais raros do mundo, o grupo sanguíneo de Bombaim. Apenas quatro pessoas em
cada milhão o têm. Agora, quando há uma necessidade urgente, a Cruz Vermelha telefona-me,
manda um carro buscar-me. Sou a sua dadora de sangue mais valiosa.
Também fiz voluntariado na Escola dos Cegos, até arranjar o emprego na Gulati & Sons. Agora,
só tenho tempo livre aos domingos, e uso-o para ensinar inglês a um grupo de miúdos dos bairros
de lata próximos da nossa colónia. O que significa que, muito em breve, Suresh, Chunnu, Raju e
Aarti estarão a bater-me à porta.
Enquanto a vaga de memórias se esbate, começo à procura do Simple English Reader, que uso
como manual informal para a minha pequena turma. Descubro que é Neha que tem o livro, e está a
usá-lo como base para o copo de Diet Coke que bebe com gosto. Não parece afetada pelo
aniversário de Alka. Longe de se sentir melancólica, está positivamente fervilhante de entusiasmo.
– Lê isto, didi! – exclama, e estende-me uma carta.
É da organização do Popstar N.º 1, um popular concurso de talentos para o qual ela fez audições.
Dos 500 000 candidatos, Neha foi selecionada para as audições finais em Bombaim, onde vinte dos
melhores cantores serão escolhidos para o programa de televisão. Quatro diretores musicais serão
os «gurus» do júri.
– É a oportunidade por que esperei a vida inteira. Bas, vou ser uma estrela, didi, vais ver! –
guincha.
Sorrio tristemente a Neha, maravilhada com a beleza do acaso, os truques do destino. Alka
deslumbra-me novamente, do seu retrato na parede. Talvez esteja a orquestrar tudo isto de onde
quer que se encontre, ainda a redimir-nos, a dar-nos segundas oportunidades. Olho para os seus
olhos quentes e brilhantes. – Kamaal ho haya! É incrível! – Quase consigo ouvir a sua voz
melodiosa a ecoar na sala.
Os mortos não morrem. Enquanto os recordarmos, estão vivos nos nossos corações.

Na manhã de segunda-feira, o ar está limpo e fresco, com a temperatura a rondar os dez graus
centígrados. É aquele tempo que nos faz desejar estar enroscados na cama. Em vez disso, estou no
Terminal Rodoviário Interestadual de Maharana Pratap, em Kashmiri Gate, ao qual todos se
referem simplesmente como TRIE. O local está cheio de pessoas de todos os géneros – executivos,
estudantes, peregrinos e turistas – prestes a embarcar em viagens para destinos espalhados pelo
Norte da Índia. O meu destino é Karnal, pois não há autocarro direto de Deli para Chandangarh, a
aldeia do senhor Kuldip Singh.
Escolhi vestir-me de forma conservadora, com um salwar kameez branco-sujo e uma dupatta que
é quase invisível sob a gola do meu sobretudo cinzento-escuro. Uma pequena mala contém tudo o
que preciso para a viagem: alguns snacks salgados, uma garrafa de água Bisleri e um livro
amarelecido de poemas de Anna Akhmatova.
Na plataforma 18, fico agradavelmente surpreendida quando descubro que o meu autocarro é um
Volvo novinho em folha, com bancos reclináveis e apoios ajustáveis para os braços. O meu lugar é
junto à janela, ao lado de uma jovem de calças de ganga, com cabelo curto e franja, que parece ter
mais ou menos a minha idade. Não é bonita no sentido convencional, com o cabelo curto e o rosto
quadrado, mas parece-me estranhamente familiar. Apetece-me falar com ela, mas vejo que está
completamente concentrada no telemóvel. Uma vez que não quero incomodar, mergulho também no
livro assim que o autocarro arranca, às nove horas em ponto.
O progresso é lento enquanto estamos na cidade, mas, assim que entramos em Grand Trunk Road,
o Volvo acelera. A autoestrada de quatro faixas serpenteia como uma fita preta pelo território plano,
salpicado de pequenas quintas, fornos de tijolo e manchas urbanas. A viagem é tão suave, que quase
me embala.
Por fim, a mulher sentada ao meu lado farta-se do telemóvel. É então que me viro para ela.
– Desculpe, mas não nos conhecemos?
Ela sorri.
– Não me parece, mas talvez me tenha visto na televisão.
– É atriz?
– Sou repórter de investigação da Sunlight TV.
– Claro – respondo, quando se faz lentamente luz e a reconheço. Não vejo muito frequentemente a
Sunlight TV, mas o canal noticioso é conhecido pelas suas denúncias ousadas («Como o sol que
entra numa sala escura e a ilumina, nós revelamos factos ocultos» diz o slogan do canal).
– Olá! Chamo-me Shalini Grover. – Ela estende a mão, e aperto-a com gosto.
Fico a saber que Shalini vai a caminho de Panipat para investigar um caso de homicídio de honra
que ocorreu seis meses antes. Conta-me que os dois membros de um jovem casal – Mahender e
Ragini – foram assassinados pelos respetivos pais e atirados para um canal de irrigação,
simplesmente por terem desafiado o tabu contra casamentos entre membros da mesma subcasta.
– Homicídios de honra, na Índia? – Ergo as sobrancelhas. – Pensava que esse tipo de coisas só
acontecia no Afeganistão tribal.
– Nunca ouviu falar de khap panchayats? – pergunta ela.
Abano a cabeça. Depois de as minhas aspirações ao funcionalismo público caírem por terra,
deixara de tentar aperfeiçoar a minha cultura geral.
– Os khap panchayats são estruturas sociais existentes em Haryana, no Uttar Pradesh e no
Rajastão, que administram a sua própria forma de justiça violenta. São como conselhos, formados
com base na casta, e consideram-se guardiões de uma moralidade medieval. Uma das suas
prioridades é impedir casamentos por amor entre membros da mesma gotra ou subcasta. Os jovens
casais que desafiam as suas fatwas têm sido ostracizados, espancados, forçados a viver como
irmãos e até mortos. São piores do que julgamentos combinados.
– Sim, mas como é que os pais conseguem matar o próprio filho?
– Conseguem, quando a honra é considerada mais importante do que a vida de um filho ou filha.
Estes khaps têm tido demasiada rédea livre. São compostos por rufias assassinos, que pretendem
apenas perpetuar uma ordem feudal e patriarcal. Até o Supremo Tribunal pediu que fossem
implacavelmente exterminados.
– Disse que o casal foi assassinado há seis meses. Porquê o interesse agora?
– Há muitas Raginis nas nossas aldeias, mas as histórias delas nunca são vistas nem ouvidas.
Quero realçar a opressão aterrorizadora que uma rapariga normal do campo enfrenta, na Índia rural,
se der primazia ao amor sobre o medo.
Ao ouvi-la falar de forma tão apaixonada, começo a sentir aquela sensação de entorpecimento e
peso que me assaltava na escola sempre que algum professor me fazia uma pergunta cuja resposta
eu não sabia. De alguma forma, os meus olhos parecem sempre saltar por cima das histórias
macabras de esposas maltratadas, noivas queimadas e jovens violadas nos nossos jornais.
Para mudar de assunto, olho em volta.
– Onde está a sua equipa com as câmaras?
– Não tenho – responde Shalini. – Esta é apenas uma viagem de pesquisa, para obter
informações.
– Mas, o que acontece se uma jornalista de televisão, como você, encontra por acaso uma história
inesperada?
– Nesse caso, isto torna-se a minha câmara – diz ela, agitando o telemóvel. – Tem um sensor
CMOS de doze megapixéis que me permite gravar vídeos de 640 por 480 a 30 fps. Mais ainda,
posso enviá-los diretamente do telemóvel, basta ligar-me através da Internet ao nosso website
específico.
Agora ela está a falar a minha língua. Envolvemo-nos numa discussão animada sobre os méritos
dos mais recentes smartphones. Algum tempo depois, a conversa muda para filmes hindis. Quando
chegamos a Panipat, já estabelecemos uma ligação confortável uma com a outra.
– Bem, boa sorte – desejo a Shalini enquanto ela se prepara para desembarcar. Trocamos
números de telefone e prometemos manter o contacto, mas é uma daquelas promessas casuais que
os companheiros de viagem fazem uns aos outros, sabendo perfeitamente que os seus caminhos
podem nunca mais se cruzar.
Depois de Panipat, a estrada até Karnal está congestionada e atormentada por um tráfego
complicado. Com os seus mercados movimentados e apartamentos de luxo, no meio de uma
paisagem verdejante, Karnal parece um centro provinciano próspero. Não tenho tempo para
explorar a cidade nem ver as joias de contas de prata ocas pelas quais é famosa, pois tenho de
apanhar outro autocarro para Chandangarh, que ainda fica a quarenta quilómetros dali. Desta vez, o
veículo é um Ashok Leyland velho e enferrujado e a estrada é um caminho de terra e gravilha
esburacado. A incómoda viagem de uma hora até Chandangarh deixa-me enjoada e com dor de
cabeça. No entanto, ao bater do meio-dia, estou na aldeia do senhor Kuldip Singh.
O grande homem veio esperar-me em pessoa.
– Venha, venha, beti – diz, à laia de boas-vindas. – A sua chegada enche de felicidade o meu
coração. – Veste a habitual camisa e dhoti, e o seu bigode de pontas reviradas está magnífico, como
sempre. Entramos no Toyota Innova, conduzido por um motorista, e arrancamos, deixando uma
nuvem de poeira atrás de nós.
– Alguma vez esteve numa aldeia? – pergunta-me Kuldip Singh.
Nego com a cabeça. Fui uma rapariga citadina toda a vida, e tive apenas vislumbres fugazes de
aldeias, das janelas de comboios e autocarros. A minha ideia da vida rural ainda está ancorada nas
aldeias idílicas representadas nos filmes de Bollywood, onde belas donzelas cantam canções
populares atrevidas em campos verdejantes e as pessoas levam vidas alegres, descomplicadas e
comunitárias. É a primeira vez que ponho os pés numa aldeia real.
– A aldeia de Chandangarh tem três mil habitantes – informa-me.
– É menos de um décimo dos habitantes só do Setor 11 de Rohini – comento.
– Ainda não compreendo como conseguem viver em prédios de tantos andares, suspensos entre a
terra e o céu. – Ri-se. – Nós, os aldeões, não conseguimos imaginar viver num sítio onde não
tenhamos um teto sobre a cabeça e chão sólido sob os pés. É a isso que chamamos terra, que
chamamos lar. A terra é o nosso lar. O nosso lar é a terra.
Passamos por uma série de quintas, equipadas com tratores, furos artesianos e debulhadoras. A
estrada já não é toda de terra, tem algumas secções pavimentadas com pedras de granito. Um
agricultor, na sua motorizada, acena-nos quando passamos por ele.
– Então quando é que a sua aldeia teve eletricidade? – pergunto.
Ele olha para mim com ar ligeiramente aborrecido.
– Não sabe que Haryana foi o primeiro estado da Índia a dar eletricidade a todas as aldeias, já
em 1970? E agora todas as aldeias estão ligadas por estradas empedradas. A única coisa que a
nossa aldeia não tem é um hospital, e é possível que ele chegue também, dentro de alguns anos.
Vislumbro o pináculo de um templo por entre as árvores, e cabos elétricos à distância.
– Aquele é o templo de Amba, dedicado à deusa Durga – diz Kuldip Singh. – É a divindade da
nossa aldeia. – O meu respeito por Chandangarh aumenta um pouco e baixo a cabeça em sinal de
reverência.
A casa de Kuldip Singh, descubro, fica bastante perto do templo. É uma construção de tijolo e
cimento, um complexo ancestral desconexo, com muitas divisões. Entro por um pátio soalheiro,
onde um grupo de homens está ocupado a fazer rebuçados. No canto esquerdo fica a cozinha, onde
outro grupo de cozinheiros preparam comida em panelas grandes. As mulheres, vestidas com
indumentárias reluzentes do Punjab, estão reunidas num charpoy. Lançam-me olhares tímidos e
curiosos. Toda a casa está mergulhada na atmosfera festiva de um casamento tradicional.
– Quando é o casamento? – pergunto ao meu anfitrião.
– Só amanhã. Na verdade, devia ficar cá, como convidada de honra. Porque tem tanta pressa em
partir ainda hoje?
– Trabalho – respondo simplesmente, como se isso não necessitasse de mais explicações.
Sou conduzida para um grande quarto caiado, onde existe apenas uma cama e uma cómoda. Um
exército de criados serve-me então um elaborado almoço vegetariano numa bandeja metálica, com
seis tipos diferentes de pratos. Está tudo absolutamente delicioso. O missi roti18 é o melhor que já
provei. Empurro tudo com dois copos de lassi doce.
O trabalho que me trouxe até aqui começa depois de almoço. Um Mahindra Scorpio para no
exterior da casa e dele sai um homem com uma camisola preta, por cima de uma camisa branca, e
calças também pretas. Parece ter quarenta e tal anos e é corpulento, com o rosto barbeado e olhos
pequenos.
– Este é o Badan Singh-ji. – apresenta Kuldip Singh, e conduz-nos para as traseiras da casa, onde
ficam os estábulos. Há mais de uma dúzia de vacas e búfalos a ruminar. À parte dos estábulos, vejo
um casebre de tijolo, com telhado de colmo. Lá dentro, arrumadas ao lado de fardos de palha, estão
as compras que ele fez na loja. Uma lâmpada fluorescente brilha no teto, a única iluminação numa
divisão bastante sombria. Os aparelhos foram retirados das embalagens e estão alinhados. Uma
extensão elétrica comprida, ligada a uma tomada na parede, está enrolada em frente do televisor.
– Não percebo nada destas máquinas modernas – diz o meu anfitrião, timidamente, com um
sorriso. – Nem mesmo o Chhotan, o nosso eletricista local, faz ideia de como ligar a máquina da
roupa. Por isso, tivemos de a incomodar. Por favor, explique o funcionamento ao Badan Singh-ji.
Eu tenho de ir falar com os decoradores.
Sai do casebre, deixando-me a sós com Badan Singh. O ar dentro do casebre parece opressivo,
denso, permeado com o odor do feno, e, por um momento, não consigo respirar.
– Veio de Deli? – pergunta Badan Singh.
– Sim – respondo.
– Todas estas coisas acabarão por ir para nossa casa, por isso achei melhor vir pessoalmente.
Sou da aldeia de Batauli, a cerca de trinta quilómetros daqui. A nossa casa fica do outro lado do
canal.
– É o pai do noivo? – pergunto.
Ele olha para mim de lado.
– Sou o noivo. Pareço-lhe velho?
– Não… não – digo rapidamente, furiosa comigo mesma pelo deslize.
– Chamei os meus trabalhadores. Diga-nos apenas como ligar os aparelhos e trabalhar com eles.
Chhotan, Nanhey – chama, e aparecem dois homens. Pelas roupas empoeiradas, ar deferente,
expressões nervosas e cintos de ferramentas, depreendo que serão um eletricista e um canalizador.
– Começamos pelo televisor? – Introduzo a ficha do Samsung 42C430 na extensão. O ecrã
plasma ganha vida e enche-se de chuva, ao som de estática.
– Sei tudo sobre televisores – declara o eletricista. – Sou o operador de cabo da aldeia. O que
acho complicado é a máquina de lavar. Pode mostrar-nos primeiro como a usar?
– Claro. – Encolho os ombros e ligo a máquina Whirlpool. Assim que carrego no botão, a
lâmpada fluorescente por cima de mim começa a falhar. – O que se passa?
– Kuldip Singh-ji ainda tem o contador de eletricidade antigo, que não aguenta demasiada carga –
troça Badan Singh. – Não teremos esse problema na nossa casa. Podemos ter quatro ares
condicionados ligados ao mesmo tempo.
– A voltagem deve ser um problema nas aldeias. Tem de instalar estabilizadores de voltagem em
todos estes aparelhos – digo, desligando a máquina.
Ao longo da hora que se segue, explico-lhes os programas da máquina de lavar roupa, as funções
do sistema de som, a ligação HDMI entre o leitor de DVD e o televisor, os parâmetros corretos do
frigorífico. Badan Singh e os seus dois lacaios acenam com a cabeça, mas duvido que
compreendam tudo. Durante a minha explicação, têm aquela expressão ligeiramente aturdida e
envergonhada de homens incapazes de lidar com o facto de uma mulher perceber mais de eletrónica
do que eles.
Às duas e meia da tarde, estou despachada. Quero partir imediatamente. Nada me retém nesta
aldeia atrasada, mas o meu autocarro de regresso a Karnal só parte às quatro da tarde.
Kuldip Singh tenta novamente persuadir-me a ficar.
– A Babli é a minha única filha. O casamento dela será um acontecimento inesquecível – diz,
orgulhoso, enquanto me acompanha de novo ao quarto de hóspedes. – Tem a certeza de que não quer
participar nas festividades?
– Absoluta – respondo. – Se não se importa, descansarei uma hora e depois o seu motorista pode
levar-me à paragem do autocarro.
Tranco a porta, dispo o casaco e deito-me na cama para fazer uma pequena sesta. Lá fora, as
mulheres estão a cantar aquilo que me parece ser uma canção de casamento comovente. O som dá-
me sono.
Acordo com barulhos abafados e próximos. Sento-me e olho em volta. Só então reparo na porta
de madeira do outro lado do quarto. Os sons vêm daí.
Oiço um trinco a correr e a porta entreabre-se. Uma rapariga espreita. Tem um rosto belo e
delicado, com olhos grandes e amendoados, lábios cor-de-rosa bem delineados e cabelo preto e
grosso.
– Didi, didi – sussurra –, pode fazer-me um favor? – Tem o ar furtivo de um animal enjaulado.
– Sim – respondo, cautelosamente, e levanto-me da cama. Quando me aproximo, reparo que ela
tem uma nódoa negra na face esquerda, como uma rosa irada a florescer na pele clara. Está
assustadoramente pálida e tem os olhos vermelhos e inchados; percebo que esteve a chorar.
– Pode enviar-me isto, por favor? – Estende-me uma folha de papel dobrado.
– Como se chama? – pergunto.
– Babli – responde ela.
– Oh, então é a noiva?
Ela acena afirmativamente com a cabeça.
– Bom, parabéns pelo casamento.
Não responde, mas a expressão infinitamente triste dos seus olhos diz mais do que palavras.
– Babli? O que é que ainda estás a fazer no quarto? – Oiço uma voz de mulher chamar do outro
lado.
– Sei que vai voltar hoje. Se pudesse pôr este papel num envelope, colar um selo de cinco rupias
e deixá-lo no marco de correio mais próximo, ficar-lhe-ia eternamente grata. Escrevi a morada em
cima. Pode fazer isso por mim?
– Com todo o gosto – respondo, e tiro a folha de papel dobrado das suas mãos pintadas com hena.
– Por favor não se esqueça, didi. É muito importante para mim – diz ela em tom sofrido. Depois,
como uma tartaruga a recolher para dentro da carapaça, recua e tranca de novo a porta.
Ainda estou a tentar absorver o choque deste encontro inesperado, quando oiço bater à porta do
meu quarto.
– Está acordada, beti? – pergunta a voz de Kuldip Singh. Lá fora, o motorista buzina o Innova.
Está na hora do autocarro para Karnal.
Com um último e demorado olhar para a porta trancada, como se estivesse a despedir-me de um
ente querido, visto o casaco e saio do quarto. Kuldip Singh está à minha espera e entrega-me uma
grande caixa de doces laddoos.
– Já que não pode ficar para o casamento, pelo menos leve estes doces. – Sorri. Agradeço
profusamente, despeço-me e entro no Innova.
Enquanto o veículo se afasta da casa, não consigo deixar de pensar em Babli. Há qualquer coisa
nela que me faz lembrar Alka. A sua expressão pesarosa e resignada levanta questões perturbadoras
sobre este casamento. Uma coisa é evidente, esta rapariga de dezoito anos vai casar com um homem
muito mais velho, provavelmente contra a sua vontade. Mas estes casamentos estão sempre a
acontecer neste país. Não há nada que eu possa fazer a esse respeito. Estou apenas de passagem.
Não tenho o direito de interferir nos assuntos privados de uma família.
Quase involuntariamente, enfio a mão no bolso do casaco e retiro o papel que Babli me deu. É
dirigido a alguém chamado Sunil Chaudhaey, que vive em Vaishali, Setor 4, Ghaziabad, e não
resisto a dar uma vista de olhos. Descubro um bilhete escrito na caligrafia trémula de uma menina
de escola, em papel pautado arrancado de um caderno. Eis o que diz, em hindi casto:

Meu querido amor Sunil,

Vão obrigar-me a casar amanhã.


O casamento devia ser entre duas pessoas que se amam e querem dedicar a vida uma à
outra. Mas este casamento é apenas opressão e supressão, porque, para a minha família,
o prestígio é mais importante do que a minha felicidade.
Vou ser vendida a Badan Singh. Para o meu pai, é uma transação de negócios. Para a
minha mãe, é uma forma de se ver livre de mim. Ninguém nesta casa tem a mínima
consideração pelos meus sentimentos. Todos os corações se transformaram em pedra.
Perdoa-me por não ter conseguido contactar-te nos últimos três meses. Depois de te
terem mandado embora daqui, tenho estado aprisionada em casa, sem autorização para
sair por um minuto que seja. Esta noite, porém, serei livre.
Quero apenas que saibas que sempre fui tua e serei sempre tua. Se não nesta vida,
certamente na próxima.

Tua,
Babli

As minhas mãos gelam enquanto leio a carta. Não é uma carta de amor, é uma carta de suicídio.
Sinistramente reminiscente do bilhete que Alka escreveu antes de se enforcar.
Sei que Babli não está a fazer ameaças vãs. Ela vai fazer o que diz. Vi aquela expressão nos
olhos dela, a expressão de uma rapariga que perdeu toda a esperança. Esta noite, porém, serei
livre. Sinto um arrepio na espinha.
O autocarro para Karnal está à espera dos últimos passageiros quando chegamos à paragem.
– Mesmo a tempo. – O motorista limpa a testa, aliviado. – Depressa, senhora. – Apressa-se a
abrir-me a porta, mas eu fico sentada dentro da carrinha, com a mente num turbilhão de indecisão e
ansiedade.
Seria a coisa mais fácil do mundo entrar no autocarro e esquecer Babli e esta aldeia. Posso optar
por enviar a carta dela ou por a rasgar em pedacinhos e a deixar no chão, como um bilhete de
autocarro usado. Mas algo me trava. Sei que é o sentimento de culpa, a rondar-me a mente como um
abutre. De súbito, uma visão paira defronte dos meus olhos: um corpo morto, pendurado numa
ventoinha de teto por um pano amarelo. Quando o corpo baloiça para a esquerda, vejo que é Alka.
Quando baloiça para a direita, é Babli. Fecho os olhos, mas a cena repete-se uma e outra vez, como
um filme louco do qual não consigo desviar os olhos. Um grito de agonia silencioso sobrepõe-se às
imagens angustiantes e sufoca-me os sentidos. Ecoa como um trovão em todos os poros do meu
corpo. Quando cessa, abro os olhos e tenho vontade de vomitar.
– O que se passa, senhora? – O motorista olha para mim, preocupado.
– Nada – respondo, enquanto as teias da incerteza começam a dissipar-se da minha mente. –
Leve-me de volta.
– Para a casa? – O motorista hesita.
– Sim. Não vou para Karnal. Vou voltar para a casa de Kuldip Singh. Acho que, afinal, vou
assistir ao casamento.
– Sim, senhora – diz o motorista com um revirar de olhos exagerado, e começa a dar a volta ao
veículo.
Quinze minutos depois, estou de volta. Kuldip Singh recebe-me com satisfação e surpresa.
– Yeh hui na bat19. Ainda bem que decidiu voltar. Esta noite verá como é uma verdadeira
celebração matrimonial em Haryana.
Estou desesperada por falar com Babli, mas as senhoras da casa insistem para que me junte à
cerimónia de sangeet20. Assim, sento-me na primeira fila e finjo divertir-me com as canções e
danças que têm lugar no pátio, ao som ritmado de um tambor dholak e uma colher. A noiva deveria
estar presente durante o sangeet das mulheres, mas, mesmo três horas depois do início, não há
sinais de Babli. Pergunto delicadamente por ela à esposa de Kuldip Singh, uma mulher rechonchuda
de ar severo.
– A Babli foi ao salão de beleza – diz-me ela.
– A vossa aldeia tem um salão de beleza?
– O que pensava? – Ela sorri, com um brilho triunfante nos olhos. – Não somos tão atrasados
como vocês, nas cidades, julgam.
São quase sete e meia quando Babli regressa, escoltada por três mulheres mais velhas. Enquanto
ela atravessa o pátio, os nossos olhos cruzam-se por um instante. Percebo que ela fica espantada
por me encontrar e vejo uma expressão assustada passar-lhe pelo rosto. Sorrio-lhe de forma
tranquilizadora, tentando transmitir-lhe que o seu segredo está seguro comigo. Sinto uma resposta
no olhar dela, como se tivéssemos acabado de fazer um pacto silencioso.
O salão de beleza fez um bom trabalho. O inchaço dos olhos desapareceu e a nódoa negra na face
foi habilmente coberta com maquilhagem. Babli tem o cabelo preso num carrapito elaborado e a sua
pele ostenta um brilho falso. Vestida com um salwar kameez magenta e um lenço a combinar,
parece-se mais com uma noiva do que a adolescente perturbada dessa tarde. Apenas a tristeza
melancólica nos seus olhos me diz que tudo isto não passa de fingimento.
Depois de um jantar comunitário em que me são apresentadas iguarias tradicionais de fazer
crescer água na boca, estou pronta para me ir deitar. Kuldip Singh oferece-se para me instalar num
quarto luxuoso numa casa adjacente, mas digo-lhe que prefiro o quarto de hóspedes onde estive à
tarde.
Depois de entrar e de correr o trinco, aproximo-me da outra porta em bicos de pés e encosto o
ouvido à madeira. Oiço soluços abafados e vozes de mulher. É evidente que Babli não está sozinha.
Volto para a cama, apago a luz e espero pacientemente que as acompanhantes de Babli
adormeçam. Porém, uma casa na véspera de um casamento é como as Urgências de um hospital,
atormentada por interrupções constantes. Há sempre alguém a entrar ou a sair. Se juntarmos a isso
os soalhos a ranger, as vacas a mugir, os cães a uivar, correntes a chocalhar, panelas a bater e uma
torneira a pingar, é o suficiente para me deixar irritada e com os nervos em franja.
Fico deitada na cama, a olhar para o teto escuro e a tentar habituar-me ao ambiente pouco
familiar. Às duas da manhã, levanto-me e espreito entre as cortinas. O pátio está mergulhado num
silêncio profundo. Nem uma alma se agita no complexo. A casa finalmente adormeceu.
Dirijo-me à porta de Babli em bicos de pés. Sei que ela está acordada, tão tensa como eu.
– Babli! Babli! – sussurro em tom urgente. – Quero falar consigo.
Não acontece nada durante um ou dois minutos. Quando estou prestes a desistir, oiço um som
leve. É o trinco da porta a ser corrido cuidadosamente. Depois, a porta abre-se alguns centímetros e
Babli entra no meu quarto, com uma camisa de noite de seda. Sob a luz pálida da lua, parece uma
boneca de porcelana frágil. Estremece momentaneamente, quando uma brisa fria entra pela minha
janela aberta. Fecho rapidamente as cortinas, mergulhando o quarto na escuridão.
O ambiente entre nós é embaraçoso, ao princípio, e o ar está pesado com os nossos pensamentos.
Estou disposta a ouvir, mas Babli ainda não está pronta para partilhar. Fica em silêncio, cautelosa.
– Tinha uma irmã chamada Alka – revelo, por fim. – Suicidou-se quando tinha apenas quinze
anos.
– Porquê? – pergunta Babli.
– Estava apaixonada por um rapaz que era viciado em drogas. Tentámos forçá-la a separar-se
dele.
– Foi por isso que voltou? Para me forçar a separar-me do Sunil?
– Não. Voltei para lhe dizer que a vida é muito preciosa. E que não temos o direito de acabar com
uma vida, seja a de outra pessoa seja a nossa.
– Diga isso aos meus pais, que acabaram com a minha vida.
– Todos nos aborrecemos com os nossos pais de vez em quando. Mas eles estão sempre a pensar
no que é melhor para nós.
– É casada? – pergunta-me.
– Não – respondo.
– Então como pode compreender a minha dor? Amanhã não é o meu casamento, é o meu funeral.
– Sei que não quer casar-se com o Badan Singh. Porque não diz isso ao seu pai?
– Foi ele que me meteu nesta situação. Eu amo o Sunil. Se não posso casar-me com ele, morrerei.
Esta noite.
– O que vai fazer?
– Vou engolir um frasco de pesticida. E quando chegar lá acima, vou perguntar a Deus porque é
que as raparigas não podem viver como querem. Porque não posso casar-me com o homem que me
ama, o homem que eu amo?
– O Sunil disse aos seus pais que queria casar-se consigo?
– Claro que sim. E o meu pai recusou. Íamos fugir, mas o Baoji descobriu e denunciou-nos ao
khap. Bas, o céu caiu sobre nós. O khap decretou que, como a gotra do Sunil está ligada à minha
subcasta, o casamento entre nós seria como um casamento entre irmão e irmã. Desse dia em diante,
fui aprisionada em casa. E o Sunil foi escorraçado da aldeia, ameaçado de morte se alguma vez
regressasse. Diga-me, didi, cometemos algum crime? Porque nos fazem sentir como se fôssemos
criminosos?
– Quem é este Badan Singh?
– É um velho porco que sempre me desejou. Estou convencida de que ele subornou o chefe do
khap panchayat para pronunciar um veredicto contra o Sunil.
– Tem o número de telefone do Sunil?
– Não. E nem sequer tenho telemóvel. O khap proibiu que as raparigas solteiras da nossa aldeia
tivessem telemóveis. Vivo numa prisão, não numa casa, didi.
Aceno a cabeça, com um trejeito compreensivo. Alka dissera a mesma coisa.
– Às vezes, sinto que a maior das maldições é nascer rapariga – continua ela. – A luta começa
antes mesmo de nascermos, e continua até ao dia da nossa morte. O meu único desejo é ser um
rapaz na próxima vida.
– Não seja tão pessimista. E se eu conseguisse impedir este casamento?
– Como faria uma coisa dessas?
– Não posso dizer-lhe. Mas juro-lhe, pela memória da minha irmã, que não permitirei que esta
falsidade vá avante.
– Nem Deus conseguirá impedir este casamento. Só a minha morte o fará.
A voz dela adquire uma entoação de histeria inconfundível. Pego-lhe na mão e aperto-a.
– Prometa-me, Babli, que não fará nada precipitado esta noite. Na verdade, quero que me dê esse
frasco de pesticida.
Babli fica calada durante muito tempo, como se estivesse a dar voltas à cabeça, a debater-se com
o seu destino. Depois, enfia a mão debaixo da minha cama e tira um frasco de plástico coberto de
rótulos de aviso. «VENENO PERIGOSO; MANTER FORA DO ALCANCE DAS CRIANÇAS; A INGESTÃO PODE
MATAR.» Não fazia ideia de que o meu quarto servia de esconderijo.
– A minha vida está agora nas suas mãos, didi. – Dá-me o frasco com uma expressão suplicante e
sofredora. Depois, tão silenciosamente como entrou no meu quarto, regressa ao dela.
Enquanto seguro o frasco de pesticida, invade-me uma forte sensação de déjà-vu. Já percorri este
caminho tantas vezes, na mente, nos sonhos. E se? Essa pergunta persegue-me desde o suicídio de
Alka. E se eu não a tivesse denunciado ao papá? Não consegui salvar Alka, mas talvez possa salvar
Babli. Este é um momento de graça, uma oportunidade de redenção. Não o farei por Babli. Fá-lo-ei
por mim própria.
Só há um problema. Fiz-lhe uma promessa, mas não tenho a mais pequena ideia de como a
cumprirei. Uma coisa é tentar corrigir um erro antigo, mas como hei de arranjar um final feliz para
uma situação que tem todos os ingredientes de uma tragédia?
Só me resta esperar que o dia traga a resposta.

Chandangarh é uma aldeia de madrugadores. Mesmo antes de o sol se erguer sobre o horizonte,
os aldeões já andam em atividade, a tirar água do poço, a ordenhar as vacas ou a tratar das suas
abluções diárias, como eu.
O conceito de casa de banho no quarto não existe, em casa de Kuldip Singh. Os lavabos
comunitários ficam no extremo ocidental do complexo e são todos de estilo indiano. Tenho de levar
comigo uma bacia cheia, já que da torneira sai ar, não água. É isto que detesto na vida no campo.
As más condições sanitárias. Todos os invernos, o meu pai levava-nos a Hardoi, a sua cidade natal,
onde o avô tinha uma casa grande com um pomar de mangueiras. No entanto, a minha única
recordação dessa casa é o buraco no chão que servia de latrina. Costumava ter pesadelos em que
uma mão emergia desse orifício, me agarrava e puxava para baixo, para o meio das fezes.
Depois de um banho rápido e frio, procuro Kuldip Singh. Está deitado num charpoy, a receber
uma massagem de um massagista magro com dedos ossudos.
No centro do pátio, os trabalhadores constroem o mandap, o pavilhão onde a cerimónia terá lugar
esta noite.
Espero no meu quarto que a massagem termine e Kuldip Singh vista novamente o colete.
– Posso dar-lhe uma palavra? – pergunto. A minha respiração forma nuvens de vapor à frente do
rosto.
– Bilkul, claro – diz ele, expansivamente. – Venha, sente-se aqui. – Dá uma palmadinha no
charpoy.
Sento-me na beira e abordo o assunto de forma hesitante.
– Soube ontem que o noivo da Babli é Badan Singh-ji…
– Sim. Badan Singh é o orgulho da nossa comunidade. Até tem um moinho de arroz. A Babli
viverá como uma rainha.
– Mas não acha que a diferença de idade entre eles é um pouco acentuada?
– Quem disse isso? – De súbito, fica tenso. – A Babli andou a falar consigo?
– Não… não, estava apenas curiosa, mais nada.
– A idade de um homem não interessa. Como se costuma dizer na nossa aldeia, «Joban lugai ka
bees ya tees, ar bael chaley nou saal. Mard aur ghora kadey no ho burha, agar milley khurak»:
Uma mulher só é jovem até aos vinte ou trinta; um boi é ativo durante nove anos; mas os homens e
os cavalos, com uma boa dieta, nunca envelhecem.
– Só espero que a Babli esteja tão contente com este casamento como o senhor…
– Claro que está – diz ele, sublinhando a palavra «está». – Sabe como são as raparigas. Está
triste por deixar a família. Mas uma rapariga é paraya dhan, riqueza de outrem. Um dia tem de
deixar a casa do pai e ir para casa do marido. Você também se casará um dia. Se quiser, posso
sugerir-lhe alguns bons partidos aqui da aldeia.
– Não, obrigada – digo, e levanto-me do charpoy.
– Onde vai?
– Quero visitar o templo de Amba.
– Pode ir no Innova.
– Prefiro ir a pé, apanhar um pouco de ar.
Saio de casa, vestida com as mesmas roupas da véspera. Assim que me afasto, pego no telemóvel
e marco o número de Karan.
– Onde estás? – pergunta ele.
– Na aldeia de Chandangarh, em Haryana.
– O que estás a fazer aí?
– É uma longa história. Para já, preciso que me encontres uma pessoa.
– Quem? O teu irmão gémeo que se perdeu na debandada do Kumbh Mela21?
Para Karan, tudo é uma piada. Para mim, contudo, isto é uma questão de vida ou morte.
– É um homem chamado Sunil Chaudhary, que vive em Ghaziabad. – Leio-lhe a morada de Sunil.
– Quero que me arranjes o número de telemóvel dele.
– Espera – pede Karan. Poucos minutos depois, diz: – Estás com sorte. Sunil Chaudhary tem um
telemóvel Indus. Aponta o número.
Ligo para Sunil, mas esbarro no gravador de chamadas.
– «O telemóvel Indus para o qual está a tentar ligar encontra-se desligado. Por favor, volte a
tentar mais tarde» – diz uma voz feminina. Continuo a ligar-lhe, de dois em dois minutos, mas não
consigo ligação nem por uma vez.
Quando estamos a tentar desesperadamente falar com alguém, a coisa mais frustrante do mundo é
um telefone que se recusa a cumprir a sua função primária. De cada vez que tento apanhar Sunil,
encontro aquela voz de mulher levemente presunçosa, que me dá vontade de a esbofetear.
Por fim, ligo para Madan e informo-o de que não poderei ir trabalhar hoje.
– Ainda estou na aldeia de Chandangarh, com um grave ataque de diarreia.
– O que é que comeu? – pergunta ele.
– O que Kuldip Singh me deu. Oh, dói-me tanto a barriga – finjo um gemido. – Nunca me devia
ter mandado para cá.
– Oiça, lamento muito. Descanse e tome pudin hara22. Eu depois reembolso-a.
Saboreio o prazer raro de ouvir o sentimento de culpa na voz altiva de Madan. Sentindo-me
vingada e arrogante, dirijo-me ao templo de Amba, que fica perto. O templo ergue-se à beira de um
pequeno lago e contém uma estátua antiga de uma Durga de oito braços. Curvo a cabeça perante a
deusa e peço-lhe forças para travar esta batalha em nome de Babli.
Fortificada pela bênção de Durga, parto para aproveitar o dia. Os homens já estão a dirigir-se
aos campos ou aos moinhos próximos, para trabalhar; as mulheres estão ocupadas a fazer bolas de
estrume de vaca para usar como combustível na cozinha.
Ao sair do recinto do templo, cruzo-me com um jipe com uma luz vermelha no tejadilho e uma
inscrição dourada na matrícula, que diz «OFICIAL DE DESENVOLVIMENTO LOCAL».
Sei que o ODL é um funcionário importante, responsável pela formulação e implementação de
vários esquemas governamentais. Os meus olhos iluminam-se perante este inesperado golpe de
sorte. Se há uma entidade capaz de livrar Babli desta situação complicada, é o governo.
O ODL é um sique de meia-idade, com turbante, chamado Inderjit Singh, que ostenta uma barba
desgrenhada salpicada de cinzento. Falo-lhe do problema de Babli e procuro recrutar a sua ajuda
na resolução do mesmo.
Ele ouve-me com ar compreensivo.
– Oiça, não conheço o caso de Babli e de Sunil, mas houve vários casos em que o khap local
criou problemas a casais que foram contra os ditames da comunidade. Num dos casos, obrigaram o
rapaz a beber urina; noutro, passearam-no nu pela aldeia.
– Não devia fazer alguma coisa para pôr fim a esses atos desumanos?
Ele abana lentamente a cabeça.
– Não posso fazer nada a esse respeito. Ninguém luta contra o khap.
– Mesmo quando sabem que o que eles estão a fazer é criminoso e errado?
– Sim. Sei que alguns veredictos deles são contra os pobres e contra as mulheres – diz, com
franqueza. – Mas interferir na hierarquia social local seria estar a pedir sarilhos.
– Se não pode ajudar-me, quem pode?
– Tente compreender que isto é uma aldeia, não a Porta da Índia, onde pode haver manifestações
e vigílias à luz de velas. Aqui não há ativistas sociais capazes de desafiar o khap. Os homens não
querem saber, as mulheres têm medo.
– Eu não tenho medo. Desafiarei o khap. Quem é o líder do khap panchayat?
– Chama-se Sultan Singh. Mora ali. – Aponta para uma casa de tijolo vermelho, à distância. –
Contudo, se pensa que pode chamá-lo à razão, está a ser imprudente.
– Talvez. Mas, como diz um famoso provérbio hindi, agora que decidi pôr a cabeça no almofariz,
porquê ter medo do pilão?
– Bom, nesse caso, boa sorte – diz o ODL, e arranca no seu jipe.
Demoro quinze minutos a chegar ao meu próximo destino. Sultan Singh é um velho enrugado, com
o ar aristocrata e impressionante de um velho zamindar. Recebe-me no alpendre da sua haveli23
degradada, com um colete preto abotoado e uma bengala nas mãos nodosas.
– Sim, o que quer? – pergunta, com maus modos, e fita-me com o olhar desconfiado de um reitor
de uma escola de raparigas.
– O senhor é o venerável líder do khap panchayat e o porta-estandarte dos seus princípios.
Assim, achei que seria indicado procurá-lo diretamente para pedir justiça para a Babli.
– Babli? Quem é a Babli?
– A filha do Kuldip Singh.
– Ah, essa rapariga – diz ele, após uma pausa portentosa. – Wa to aafat ki pudiya sai. Ela só
causa problemas.
– Sabe que ela ama o Sunil. Porque a está a condenar a um casamento sem amor com o Badan
Singh?
– Não sabe que a Babli é da gotra Jorwal e o Sunil é da gotra Jaipal? Na nossa aldeia, as
pessoas dessas duas subcastas têm uma relação de irmandade há séculos. Portanto, um casamento
entre essas duas gotras não pode ser sancionado.
– Quem é que quer saber de gotras nos dias de hoje? Eu nem sequer sei qual é a minha.
– Tenho pena dos seus pais. Não lhe ensinaram nada sobre a nossa herança e as nossas gloriosas
tradições.
– Houve uma altura em que a sati também fazia parte da tradição hindu. As viúvas eram
queimadas vivas nas piras funerárias dos maridos. Perseguir pessoas que estão apaixonadas, e
matá-las, é igualmente repreensível.
– Quem diz que matamos pessoas? – replica ele, em tom aceso, quase me enfiando a bengala na
cara. – Isso é uma mentira espalhada pelas castas inferiores. O nosso khap tem desempenhado um
papel positivo na proibição dos dotes e do consumo de álcool na nossa aldeia.
– Mas proibiram o Sunil de entrar na aldeia. E agora a Babli ameaça suicidar-se.
– Então ela que morra. Ninguém chorará por ela. Uma rapariga desonrada é uma vergonha para a
família – responde ele, em tom impenitente.
– Então o amor não tem qualquer valor para si?
– Esses caprichos modernos do coração não têm lugar na tradição. O khap é uma instituição, uma
instituição muito venerável. Não se meta nas nossas tradições. Vá e diga à Babli que aquilo que não
é possível mudar tem de se aguentar.
– Diga-me, Sultan Singh-ji, quantas mulheres são membros do seu khap panchayat?
– Nenhuma.
– Então as mulheres não têm outro papel senão cumprir os vossos ditames?
– Os nossos ditames são baseados na razão e na lógica. Um casamento entre a Babli e o Sunil é
equivalente a incesto. Como podemos permitir uma tal abominação?
– Mas a Lei de Casamentos Hindu reconhece essas uniões.
Ele ri-se.
– Esta é a minha aldeia. Aqui, o que tem valor são os meus decretos, não os do governo da Índia.
Ouvi-lo enche-me de uma repugnância absoluta. Às vezes, sinto que não há outro país no mundo
com tanto amor desperdiçado como o nosso. Em vez de unir amantes que se atrevem a sonhar para
além das barreiras de casta e classe, as forças da ortodoxia e da tradição separam-nos, magoam-
nos, torturam-nos, matam-nos à fome, assassinam-nos e encontram constantemente formas novas e
horríveis de esmagar o amor. Ainda não consegui compreender qual é o maior horror existencial: a
humanidade perdida dos pais que desmembram os próprios filhos e filhas motivados por uma
vergonha perversa, ou a intrepidez imprudente dos amantes infelizes, que preferem a morte à
separação. Tudo o que sei é que não permitirei que o nome de Babli se junte a esta infeliz lista,
aconteça o que acontecer.
Deixo Sultan Singh e continuo a caminhar entre os campos e os terrenos em pousio. O cenário é
bastante diferente do refúgio pitoresco e tranquilo retratado nos filmes românticos de Yash Chopra.
Em vez de campos soalheiros e verdejantes, amarelos e verdes, a paisagem é de um castanho
uniforme. Em vez de aldeões alegres, vejo apenas homens e mulheres carrancudos, a trabalharem os
seus campos. Os velhos sentam-se nos seus charpoys, a fumar hookahs, enquanto as crianças mais
pequenas brincam na terra.
Esta parte da aldeia é consideravelmente menos próspera. As casas aqui são quase todas
casebres de lama com telhados de colmo. As mulheres lançam-me olhares furiosos sem qualquer
motivo aparente e ninguém me oferece sequer um copo de água.
De súbito, encontro Chhotan, o eletricista, na sua lambreta.
– O que faz aqui? – pergunta ele.
– Nada. Vim só dar um passeio.
Ele desmonta e começa a caminhar ao meu lado. É por ele que fico a saber que a aldeia é um
antro de comunalismo e guerra entre castas.
– Há treze castas em Chandangarh – diz-me. – As castas superiores, como a de Kuldip Singh,
formam quase metade da aldeia. Os restantes são Harijans24 e outras castas inferiores, como a
minha.
– E onde fica a esquadra da polícia local?
– Porquê? Tem alguma queixa a fazer?
– Não. Apenas por curiosidade.
– Do lado oriental, na periferia da aldeia, pouco antes do rio.
– Adorava ver o rio.
– Vou para esses lados. Se quiser, posso dar-lhe boleia.
Um minuto depois, estou sentada atrás dele na lambreta e percorremos os trilhos de terra batida
da aldeia. As pessoas olham para mim com curiosidade, como se nunca tivessem visto uma mulher
em cima de uma lambreta.
A viagem acidentada passa pela escola da aldeia, onde vejo os alunos a preguiçar debaixo de
uma amargoseira.
– Os professores da escola são como deuses – diz Chhotan com ironia. – Pensa-se que existem,
mas nunca ninguém os vê.
O mercado da aldeia é um conglomerado de mercearias kirana, algumas lojas de ferragens,
bancas à beira da estrada que vendem vegetais, massas Maggi e ovos cozidos, um clube de vídeo
com os sucessos mais recentes de Bollywood e até uma loja de Internet. Lenta, mas
implacavelmente, o progresso parece estar a chegar a Chandangarh.
Aos saltos e solavancos, chegamos finalmente à margem do rio. Chhotan deixa-me junto de uma
ponte suspensa e arranca. As águas do Yamuna brilham, castanhas e prateadas, por baixo de mim.
Uma vez que estamos na estação seca do inverno, o rio recuou, expondo os bancos de areia.
Não demoro muito tempo a encontrar a esquadra da polícia. É apenas uma casa de tijolo de uma
só divisão, com um pátio murado. O subinspetor Inder Varma, o oficial no comando, parece um
daqueles polícias dos filmes hindis: a mastigar paan25, de barriga saliente, provavelmente muito
corrupto, também. Ouve-me e depois ri-se.
– Quem é você, alguma espécie de assistente social?
– Não interessa quem sou. Estou a comunicar-lhe um casamento forçado.
– Como sei que é um casamento forçado? Onde está a rapariga? Porque é que ela não apresenta
queixa pessoalmente?
– Já lhe disse que está prisioneira dentro de casa.
– Então tire-a de lá. Traga-a aqui. Ela que me mostre provas de que tem mais de dezoito anos e eu
agirei.
– Promete?
– Oiça, minha senhora, o meu dever é aplicar a lei. Mas a lei exige que eu verifique que a
rapariga é adulta. Se conseguir trazer a Babli até aqui, prometo que farei justiça.
Pela primeira vez, um raio de esperança entra no meu coração. O irascível subinspetor Inder
Varma pode muito bem vir a revelar-se o improvável salvador de Babli.
Ao sair da esquadra, tento mais uma vez ligar para Sunil. A minha sorte parece estar a mudar,
pois desta vez consigo ligação.
– Estou? – atende uma voz cautelosa.
Apresento-me e depois faço-lhe a pergunta decisiva.
– Sunil, ainda ama a Babli?
– Claro que sim – responde ele.
– Nesse caso, porque não casa com ela?
– Ha! – Ele solta uma risada amargurada. – Não sabe o que o khap me fez? Há três meses,
humilharam-me, passearam-me pela aldeia com um sapato na boca. Depois, obrigaram-me a deixar
a aldeia e ameaçaram matar-nos, a mim e à Babli, se eu alguma vez voltasse.
– Bom, agora foram ainda mais longe. Vão casar a Babli com o Badan Singh, esta noite.
– Não! – Ele solta um grito que faz crepitar a ligação, como estática.
– Oiça, Sunil, se puder vir imediatamente à aldeia, ainda podemos impedir este casamento. Falei
com a polícia; eles estão dispostos a ajudar-vos.
– Gostava que me tivesse dito isso ontem.
– Fartei-me de lhe telefonar, mas o telemóvel estava desligado. Ainda não é tarde de mais.
Calculo que não deve demorar mais de umas duas horas a chegar, vindo de Ghaziabad.
– Sim, mas neste momento estou em Chennai, a dois mil quilómetros daí.
– Oh, não!
– Não se preocupe, vou apanhar um avião. Irei o mais depressa que puder. Farei tudo, pela Babli.
– Ótimo. Fico à sua espera. Ligue-me para este número quando chegar a Chandangarh.
– Obrigado – diz ele e, após um momento de hesitação, acrescenta «didi», forjando
instantaneamente uma relação comigo.
Antes mesmo de desligar a chamada, o esboço de um plano começou a ganhar forma na minha
mente. A primeira coisa de que preciso, para que o plano resulte, é de um carro para a fuga.
– Há algum sítio onde eu possa alugar um carro? – pergunto a um aldeão que atravessa a ponte.
Ele olha para mim como se eu tivesse chegado do espaço sideral. Claro que a última coisa que se
pode esperar encontrar numa aldeia como Chandangarh é um serviço de aluguer de viaturas.
– Conhece pelo menos alguém que tenha uma motorizada?
Ele acena afirmativamente com a cabeça.
– O mecânico Babban Sheikh tem uma Hero Honda.
– Como posso contactá-lo?
– Venha, eu levo-a à oficina dele – oferece-se. – Fica em Uttar Pradesh, do outro lado do rio.
Atravessamos a ponte e dou por mim numa colónia muçulmana. Há um pequeno aglomerado de
casas e algumas lojas. Alguns devotos de barba estão reunidos em torno de uma velha mesquita.
A oficina é pouco mais do que um barracão de zinco. Babban Sheikh é um homem baixo e
musculado, de quarenta e poucos anos, com a cara marcada por cicatrizes, e olhos atentos. Tem
vestido um fato-macaco sujo de óleo e está a arranjar uma motorizada Bajaj Pulsar quando eu
chego. Tem um ajudante, um rapaz de quinze ou dezasseis anos, vestido de forma semelhante mas
com o cabelo pintado de castanho-claro, que está a afinar uma Kawasaki Ninja.
– Hã… Babban bhai, posso falar consigo? – pergunto, dirigindo-me ao homem mais velho.
Babban Sheikh pousa a vela de ignição que está a limpar, passa as mãos por um trapo e ergue os
olhos.
– Sim, senhora, o que posso fazer por si?
– Disseram-me que tem uma Hero Honda.
– Sim, é verdade.
– Bom, há um casamento esta noite e…
Ele ouve o meu plano e abana a cabeça.
– Este é um negócio honrado. Não somos gangsters que raptam jovens noivas. Não posso ajudá-
la.
– O futuro de uma rapariga depende de si – imploro, mas ele não se deixa comover.
O jovem ajudante parece mais compreensivo.
– A senhora tem razão, abbu – intercede, revelando-se como filho de Babban. – Devíamos travar
esse casamento. Sei que o Salim Ilyasi o faria. Ele salvou a Priya Capoorr quando ela ia ser
forçada a casar-se com aquele patife do Prakash Puri em Amor em Banguecoque.
O pai não se comove.
– Então andas outra vez a ver filmes, hã? Não sabes que o imã sahib impôs a proibição absoluta
de ver filmes hindis e de ouvir as suas canções obscenas?
– Eu sei, abbu, mas que hei de fazer? Não me consigo controlar sempre que sai um filme novo do
Salim Ilyasi.
– Esses filmes são a raiz de todos os males da nossa sociedade. Se vires mais um que seja, eu
próprio te denunciarei ao imã sahib. E passarás o resto dos teus dias a limpar tapetes na mesquita –
repreende Babban, antes de se aperceber de que eu continuo ali. – O que é que ainda está a fazer
aqui? – Vira-se para mim. – Já perdi tempo de mais consigo. Siga o seu caminho.
Abatida, regresso à ponte em passo lento, com as desilusões desse dia a pesarem sobre mim
como um polegar gigante. O sol está no ponto mais alto, mas o meu coração está mergulhado nas
sombras, repleto de remorsos por ter falhado a Babli.
Quando estou a atravessar a ponte, uma motorizada para ao meu lado. É a Kawasaki Ninja,
conduzida pelo jovem mecânico.
– Peço desculpa pelo acesso de fúria do meu pai. Eu ajudo-a – diz, com um sorriso prestável.
– E o seu pai?
– Pensa que vou entregar a motorizada ao cliente. Não se preocupe com ele. Sei como hei de
apaziguá-lo. Mas como lidaremos com o pai da rapariga? E se ele vier atrás de mim?
– Bom, nesse caso, terá de ser mais rápido do que ele. E eu pago-lhe pelo seu trabalho.
– Não, não aceito dinheiro nenhum por isto – declara, imitando o ar de desprendimento estudado
de Salim Ilyasi. – Para proteger o muhabbat… o amor… Aslam Sheikh dará a própria vida.
O jovem mecânico oferece-se para me deixar em casa de Kuldip Singh e eu aceito de boa
vontade. Desta vez, os aldeões olham para mim de boca aberta, estupefactos, sem saber quem será
esta mulher que anda à boleia primeiro de lambreta e depois de motorizada.
Desço da motorizada a alguma distância da casa de Kuldip Singh, pois não quero despertar
suspeitas. No entanto, é uma precaução desnecessária. A notícia das minhas indiscrições já chegou
à casa. O patriarca está de mau humor e cai-me em cima assim que entro.
– Chamámo-la aqui para nos ensinar a trabalhar com a máquina de lavar roupa, não para lavar a
nossa roupa suja em público. Sultan Singh contou-me tudo. Por favor, saia imediatamente. Não
temos lugar nesta casa para uma agitadora como você.
– Kuldip Singh-ji, compreendeu-me mal – digo, tentando argumentar com ele. – A Babli nunca irá
com este casamento para a frente. Ela prefere morrer a aceitar Badan Singh como marido.
– Aconteça o que acontecer, ela casar-se-á com Badan Singh. Se quer morrer, morrerá na casa do
marido, não na nossa.
– Que espécie de pai é o senhor, capaz de sacrificar a própria filha por um costume atrasado?
– Basta! – berra ele. – Saia imediatamente desta casa ou mando que a expulsem.
– Eu vou, mas não vou sozinha. A Babli irá comigo.
– Enlouqueceu de vez? A Babli é minha filha. Fará aquilo que eu lhe mandar.
– Nesse caso, porque não lhe pergunta? – desafio-o.
Ele aceita o desafio sem hesitar.
– Vamos resolver este assunto imediatamente – diz, e chama: – Mãe da Babli! Traz cá a tua filha.
Babli entra no pátio, a tremer como varas verdes, apertada pela mão da mãe. Olha para os pés,
incapaz de me fitar. Kuldip Singh aponta para mim com o polegar.
– Diz-me, Babli, queres ir com esta mulher?
Babli abana lentamente a cabeça. Depois, desata a chorar, esconde o rosto nas mãos e corre para
o seu quarto.
– Pronto, aí tem a resposta. – Kuldip Singh retorce o bigode, com o sorriso de um mago cruel. –
Agora, saia.
– Não sei se hei de desprezá-lo ou de ter pena de si – digo, à laia de despedida, e saio de casa
dele.
Regresso ao templo de Amba, o meu quartel-general nesta altura de crise. As cinco horas
seguintes são as mais longas da minha vida. Tento insistentemente contactar Sunil, mas parece que
tem o telemóvel desligado outra vez. O desânimo paira sobre mim como uma sombra negra no meu
coração. Desejo que Karan estivesse aqui para me confortar, para me animar. O sacerdote do
templo oferece-me fruta. Sento-me com ele no degrau, a ver a tarde escurecer.
Quando o crepúsculo se instala, o ar começa a vibrar com a cacofonia de uma banda de metais.
Há vários trompetes e um cantor com voz anasalada que entoa «Aaj mere yaar ki shaadi hai»,
«Hoje é o casamento do meu amigo», acompanhado ruidosamente por trombones, tubas, saxofones e
dhols. É a baraat de Badan Singh, a sua procissão matrimonial, a caminho da casa de Kuldip Singh,
que está iluminada por luzinhas tremeluzentes.
É então que o meu telemóvel apita, o sinal de mensagem recebida. É de Sunil, que me informa
que chegou à aldeia. Respondo também por mensagem e digo-lhe para vir imediatamente ao templo.
Sunil Chaudhary impressiona-me logo à primeira vista. É um homem jovem e apresentável de
vinte e quatro anos, com rosto gentil e olhos emotivos. É formado em Engenharia e trabalha
atualmente para uma empresa de software em Noida. É um pouco tímido, algo atrapalhado e
inseguro, mas é inegável que ama muito Babli. Sei que fará tudo para a deixar feliz, para a manter
em segurança.
– Apanhei um avião de Chennai e depois vim de táxi desde Deli. Acabo de ver uma procissão
matrimonial entrar na casa da Babli. Cheguei tarde de mais? – pergunta, o rosto uma máscara de
preocupação e medo.
– Descobriremos em breve. Venha comigo.
Explico o meu plano a Sunil enquanto nos dirigimos apressadamente ao nosso destino. Estacamos
abruptamente, ao ver homens de uniforme a patrulhar o exterior da casa de Kuldip Singh, mas
rapidamente nos apercebemos de que não são guardas armados mas sim os músicos da banda. O seu
trabalho está concluído e agora relaxam, enquanto esperam que o jantar comece. Espreitamos pela
porta aberta. Babli e Badan Singh estão sentados sob o mandap, e um sacerdote acende o fogo
sagrado no centro. O casamento está prestes a começar. Nos filmes hindis, é neste momento que o
herói entra e declara:
– Yeh shaadi nahin ho satki. Este casamento não pode ser celebrado.
O herói pode fazê-lo porque tem a total proteção do realizador. Na vida real, se Sunil tentasse
uma proeza dessas, seria instantaneamente linchado.
Aslam Sheikh está escondido nas sombras de uma viela próxima, com a motorizada a roncar
baixinho, preparado para a fuga. Sorri-me e levanta o polegar. Apresento-o a Sunil e depois dirijo-
me sorrateiramente às traseiras da casa.
Chego aos estábulos sem dificuldade. As vacas e os búfalos ruminam, perfeitamente indiferentes
aos ruidosos festejos matrimoniais.
O casebre que serve de armazém está às escuras quando entro. Ligo o interruptor e uma luz
branca e forte inunda a divisão, refletindo-se nas superfícies vidradas dos eletrodomésticos, que
estão exatamente onde os deixei. Ligo a tomada do televisor e acendo-o. Depois, faço o mesmo ao
leitor de DVD, ao sistema de som e ao frigorífico. A lâmpada começa a piscar de forma alarmante,
incapaz de suportar a carga. Assim que ligo a máquina da roupa, a lâmpada solta um estalido suave
e apaga-se. Ao mesmo tempo, toda a casa fica mergulhada numa escuridão de breu, tal como eu
previra.
Saio e corro de novo para a viela, onde Aslam espera na sua motorizada.
Momentos depois, os músicos da banda, que dormitavam, acordam sobressaltados com a
Kawasaki Ninja que passa por eles na estrada, montada por quatro pessoas, uma delas uma noiva
fugitiva. Ouvimos gritos atrás de nós e sons de passos em perseguição, mas eles estão a pé e nós
temos uma mota de 250 cc.
Sunil, Babli e eu agarramo-nos desesperadamente uns aos outros, enquanto Aslam percorre
habilmente as ruas esburacadas da aldeia. O ar frio de inverno corta-me o rosto como uma luva com
pregos. Felizmente, chegamos à esquadra em apenas cinco minutos. Aslam deixa-nos, faz uma vénia
teatral e desaparece, com a sua missão cumprida.
Babli e Sunil abraçam-se como se não houvesse amanhã.
– Assim que as luzes se apagaram e alguém me pegou no braço, soube que eras tu – diz Babli,
com as lágrimas a deslizar-lhe pelo rosto e a borrar a maquilhagem. Continua, porém, radiante, na
sua saia lehenga vermelha e blusa de brocado. Sunil limpa-lhe ternamente as lágrimas com os
dedos. Quase espero que comecem a cantar uma música cinematográfica a qualquer momento.
Contudo, quando entramos na esquadra, descobrimos que o subinspetor Inder Varma está a cantar
uma melodia muito diferente.
– O que fizeram é muito errado. Vou detê-lo por comportamento ilegal. Raptou uma rapariga – diz
ele, ameaçando Sunil.
– Disse-me para trazer a rapariga. Pois bem, trouxemos a rapariga – intervenho, antes de me virar
para a noiva. – Babli, porque não lhe diz o que passa?
– Sim. A didi e o Sunil salvaram-me de um casamento forçado – diz Babli em tom de desafio. A
presença de Sunil incutiu nela uma nova ousadia. – Não quero casar com Badan Singh. Só quero
casar com o Sunil.
– Oiça, isto não é o registo civil. É uma esquadra de polícia – admoesta Varma, agitando o dedo
em frente do rosto de Babli. – Primeiro que tudo, mostre-me provas de que tem mais de dezoito
anos.
– Provas? Pode ver o meu diploma do liceu. Tem a minha data de nascimento.
– Nesse caso, mostre-mo. Tem-no consigo?
– Como posso tê-lo comigo? Venho de um mandap, não da escola.
– Assim sendo, não posso fazer nada. Vou tratar este caso como um rapto de uma menor. Ram
Kumar – diz, chamando o chefe da polícia –, detenha este rapaz. Telefone ao pai da rapariga e diga-
lhe que venha buscar a filha. E informe também o Sultan Singh-ji.
– Não pode fazer isso! – grito. – É uma injustiça grosseira. Confiámos em si.
Ele sorri, mostrando os dentes manchados de paan.
– Nunca confie num polícia.
– Se chamar o meu pai, Deus não o poupará – diz Babli, com as lágrimas novamente a deslizar-
lhe pelas faces.
– Dentro desta esquadra, eu sou Deus.
– Oiça, inspetor sahib – tento de novo –, este é um caso simples de um rapaz e de uma rapariga
que se amam profundamente, ambos adultos, e que querem casar-se. Em vez de os ameaçar, devia
estar a ajudá-los.
– Nada é simples nesta vida, e muito menos no casamento – diz. – Não se meta nisto, caso
contrário prendo-a com o rapaz, como cúmplice de rapto.
Todas as nossas súplicas caem em saco roto. Este abuso de autoridade deliberado enche-me de
revolta. Sinto a raiva impotente daqueles que veem um ditador arrogante e arbitrário negar-lhes os
seus direitos. É então que me lembro de Shalini Grover. Aproveito a preocupação do inspetor com
Sunil e Babli, corro para a casa de banho das senhoras e ligo rapidamente para a repórter de
investigação do meu telemóvel.
– Shalini – sussurro –, estava a investigar o caso de um casal assassinado pelos ditames de um
khap? Estou na esquadra da polícia de Chandangarh, onde um jovem casal pode estar prestes a ser
assassinado, neste momento, por ir contra a vontade do khap. Pode vir imediatamente? Só você
pode salvá-los.
– Ainda estou em Panipat – diz Shalini, despejando um balde de água fria sobre as minhas
esperanças. – Nunca conseguirei chegar a Chandangarh a tempo.
Quando saio da casa de banho, Ram Kumar já fez os seus telefonemas. Um Innova trava
ruidosamente em frente da esquadra e Kuldip Singh entra, acompanhado por Badan Singh e por um
grupo de meia dúzia de homens da família, todos com espingardas na mão. Lança-me um olhar
fulminante e dirige-se ao inspetor. Vejo algum dinheiro a trocar de mãos e percebo que, para o
subinspetor Varma, esta é uma oportunidade de negócio.
Depois de pagar ao inspetor, Kuldip Singh pega na mão de Babli.
– Vem comigo imediatamente. Nem uma puta envergonha tanto uma família como tu envergonhaste
a nossa.
De alguma forma, Babli consegue libertar-se do pai e esconde-se debaixo da secretária de
madeira do inspetor. Quando Kuldip Singh se baixa para a apanhar, ela agarra-se a uma das pernas
da mesa.
– Não vou. Terão de me cortar, se quiserem levar-me! – grita.
– Então serás cortada, cabra, e os pedaços atirados ao Yamuna – declara Badan Singh, e também
ele se junta a Kuldip Singh para tentar puxar Babli.
– Tenho de admitir que a rapariga tem dum26 – diz o polícia, enquanto se agacha para ver melhor.
– Ajude-a – peço a Ram Kumar, quando Sultan Singh entra na esquadra. O chefe do khap
panchayat está interessado apenas em Sunil.
– Com que então, atreveste-te a voltar? – pergunta, com um gesto teatral da bengala. – Agora
verás o que acontece a quem viola as nossas tradições sagradas.
Não veio sozinho: pelo menos cinquenta dos seus apoiantes cercam a esquadra e entoam «Morte
a quem desafia o khap!». É um grupo de linchamento que não hesitará em desmembrar Sunil, Babli
e eu. Como os mortos-vivos irracionais dos filmes de terror de série B, é impossível detê-los, só se
pode satisfazê-los.
Deste ponto em diante, as coisas acontecem com a inevitabilidade de uma tragédia grega. Babli é
finalmente arrancada à mesa. Grita e arranha o chão, enquanto Badan Singh e Kuldip Singh a
arrastam até à porta. O inspetor entrega Sunil aos brutamontes do khap.
– Façam o que quiserem com ele. Eu lavo as mãos desta complicação toda.
Sultan Singh gira a bengala, exultante.
– Acabaremos com ele agora mesmo.
– Aceitem o meu conselho e façam-no do outro lado do rio. Aí cairá na jurisdição da esquadra de
Bhojpura, e será um problema da polícia de Uttar Pradesh – avisa o inspetor, friamente.
– Sunil! – grita Babli, com um último esforço para se libertar das mãos do pai.
– Babli! – Sunil tenta tocar-lhe enquanto é embrulhado numa manta e pontapeado repetidamente
pelos rufias de Sultan Singh. O inspetor e os seus agentes assistem a tudo isto com uma indiferença
calma, como se fosse um espetáculo à beira da estrada. Tenho vontade de vomitar.
É Ram Kumar, o chefe da polícia, que chama a atenção para mim.
– E ela, senhor? – pergunta, com um gesto de cabeça na minha direção. – Parece-me uma
verdadeira arruaceira.
O inspetor suspira, dando a entender que me considera uma complicação desnecessária com a
qual tem de lidar.
– Exatamente qual é o seu interesse no caso? É professora da Babli ou irmã do Sunil?
– Nem uma coisa nem outra – respondo. – Sou apenas uma cidadã preocupada que tentou ajudá-
los.
– Não conheço muitas vendedoras assim. Parece-me mais uma daquelas jornalistas metediças. A
que jornal pertence? O Punjab Kesari ou o Jag Bani?
– Não sou jornalista. Sou apenas…
Varma corta-me a palavra.
– Sabe o que fazemos a jornalistas agitadores? Encontramo-los27. – E depois, sem mais nem
menos, esbofeteia-me.
Sinto-me mais estupefacta do que insultada. É a primeira vez que alguém me esbofeteia em toda a
minha vida.
– Como pode?… – começo, com o sangue a subir-me ao rosto, mas ele levanta a mão.
– Cale a boca ou a seguir será pior. Ram Kumar, detenha-a.
– Com que acusação? – exijo saber.
– Oh, não há falta de acusações. Podemos encontrar drogas na sua mala, prendê-la por
conspiração criminosa, por um crime de ódio ou até por prostituição.
O meu corpo perde literalmente as forças quando oiço essas palavras. Precisamente quando a
minha visão começa a desfocar-se e a escuridão me rodeia por todos os lados, o silêncio
ensurdecedor na minha cabeça é interrompido pelo som de sirenes distantes, várias e cada vez mais
próximas. Parece a caravana do primeiro-ministro a passar pela aldeia.
O cortejo para mesmo em frente da esquadra. Ouve-se o som de portas a abrir e depois um
político bem vestido e com ar importante entra, acompanhado por meia dúzia de agentes de
uniforme e burocratas em fatos impecavelmente engomados.
O subinspetor Inder Varma, estupefacto, põe-se de imediato em sentido. O chefe da polícia, Ram
Kumar, está demasiado atrapalhado para fazer continência, aparentemente esmagado pela visão de
tanta gente importante na mesma sala.
– Prenda-os – ordena o político, e um agente da polícia, com um emblema nacional com uma
estrela prateada nas divisas, ergue um par de algemas.
– O que… o que aconteceu… senhor? – gagueja Inder Varma, enquanto as algemas se fecham
sobre os seus pulsos.
– Está consciente do espetáculo ao vivo que tem estado a passar na Sunlight TV na última meia
hora? – pergunta outro polícia graduado. As três estrelas nas suas divisas identificam-no como
vice-inspetor-geral da polícia. – Todo o país o viu aterrorizar um rapaz e uma rapariga inocentes,
permitir que o khap faça lei pelas próprias mãos, e intimidar uma boa samaritana, lançando falsas
acusações contra ela. O senhor é uma vergonha para a polícia.
– Reportagem ao vivo? Sunlight? Mas, senhor, não há aqui câmaras de televisão. – Varma olha
rapidamente para a esquerda e para a direita.
O vice-inspetor-geral aproxima-se de mim e retira cuidadosamente o telemóvel que espreita do
bolso de cima do meu casaco, com a câmara virada para fora.
– Penso que já não precisamos da transmissão em direto. – Desliga-o e devolve-mo.
Varma arregala os olhos quando finalmente percebe. Lanço-lhe um sorriso atrevido. Assim que
percebi que Shalini não conseguiria chegar a tempo, decidi tornar-me jornalista infiltrada. Usei o
telemóvel e comecei a gravar secretamente tudo o que se passava na esquadra, enviando o vídeo em
tempo real para o site da Sunlight TV.
O que se segue faz lembrar o fim de um filme de Bollywood. O subinspetor Inder Varma e o chefe
da polícia Ram Kumar são detidos. A multidão agitada lá fora é dispersa com uma carga de
cassetete. Sultan Singh foge com o rabo entre as pernas. E Kuldip Singh muda instantaneamente de
ideias e decide que o melhor par para Babli é Sunil.
Nessa noite, quando vejo os felizes noivos darem as sete voltas em torno do fogo sagrado, não
resisto a erguer os olhos para o céu. Pisco o olho a Alka e murmuro:
– Kamaal ho gaya! Aconteceu uma coisa espantosa hoje!

Chego a Deli na manhã seguinte, levada pelo Toyota Innova de Kuldip Singh mesmo até à porta
de casa. Depois de um duche rápido e de vestir roupa lavada, saio para o trabalho e para a rotina
diária.
– Não parece nada doente. – Madan lança-me um olhar desconfiado assim que entro no salão de
exposições.
– Graças à pudin hara.
Depois de tudo o que aconteceu na véspera, o regresso ao mundo enfadonho de máquinas de lavar
loiça e micro-ondas parece uma canseira. No entanto, prefiro estar a vender televisores a correr o
risco de ser esbofeteada por um polícia louco.
Nessa tarde, recebo um telefonema de Shalini Grover.
– Parabéns, Sapna. Conseguiu mesmo. Foi incrível – elogia-me.
– Não teria conseguido sem si – respondo. – Foi a Shalini que me ensinou a aceder ao website da
Sunlight TV.
– Oiça, também escrevo uma coluna no Daily Times. Na próxima, quero escrever sobre si. É uma
inspiração para as mulheres indianas.
– Não – recuso, com firmeza. – Não quero os meus quinze minutos de fama. Isso só deixará as
pessoas com inveja, e os rufias do khap panchayat podem transformar-me em alvo.
– Sim, corre esse risco – admite Shalini. – E se eu escrever o artigo sem usar o seu nome
verdadeiro?
– Em princípio, não há problema – respondo com relutância, ainda sem aceitar completamente a
ideia.
– Que nome hei de usar?
– Que tal Nisha?
– Pode ser. Mas porquê Nisha?
– Não vê? É um anagrama perfeito de Sinha!

Dois dias depois, recebo um telefonema de Rana.


– O senhor Acharya quer falar consigo hoje. Venha ao escritório às seis da tarde. Não se atrase.
Um nó de apreensão forma-se no meu estômago. Fico tão atrapalhada, que nem sequer consigo
inventar uma desculpa nova. Assim, recorro à mesma quando me dirijo a Madan, no cubículo do
gerente.
– Senhor, a minha mãe teve uma recaída. Tenho de ir novamente com ela ao hospital.
Madan ergue as mãos, exasperado.
– Isto está a tornar-se aborrecido. Porque não põe a sua mãe permanentemente no hospital? Se
tiver de sair mais cedo dia sim, dia não, serei obrigado a despedi-la.
– Desculpe. Eu compenso com mais horas para a semana. Mas tenho de sair já.
A resposta acalma um pouco o gerente, e a sua atitude ameaçadora transforma-se em aceitação
solene. Às 17h45m estou, mais uma vez, a caminho do escritório de Kyoko Chambers.
Rana recebe-me no átrio e Jennifer abre-me a porta do gabinete de Acharya às seis em ponto.
– Parabéns! – O homem de negócios recebe-me com um sorriso caloroso.
– Parabéns porquê?
– Por ter passado o primeiro teste.
– Que teste?
– O teste da liderança.
– Desculpe, mas não estou a perceber.
– Olhe para isto. – Acharya pega num jornal que tem em cima da secretária. É o Daily Times de
hoje. Aponta para o artigo de Shalini, intitulado «AMOR NO TEMPO DO KHAP». – Viu este artigo?
Digo que sim com a cabeça.
– Sei que é a heroína desta história.
– O que o leva a dizer isso? O artigo é sobre uma operadora de call centre chamada Nisha.
– Não é necessário fingir comigo. O vice-inspetor da polícia que a visitou na esquadra de
Chandangarh é filho de um velho amigo meu. Contou-me tudo. E também falei com a Babli e o
Sunil.
– Como é que sabia que eu tinha ido a Chandangarh?
– Soube pelo salão de exposições. Oiça, Sapna, não é importante como eu sei. O que importa é
que passou no primeiro teste. Se quisesse, podia ter voltado costas a tudo, deixado a Babli entregue
ao seu destino. Mas optou por assumir a responsabilidade de fazer o que devia ser feito. Decidiu
lutar contra uma injustiça, apesar de as probabilidades estarem contra si. Para mim, isso faz de si
uma líder.
– Não sabia que isto era um teste preparado por si.
– Por mim, não; pela vida. O que é que eu lhe disse? Que a vida nos testa todos os dias,
forçando-nos a fazer escolhas. A Sapna fez as escolhas certas naquela aldeia. Mostrou capacidades
de verdadeira liderança. – Deixa cair o jornal no colo e esfrega a testa. – A capacidade de
liderança é a única competência que não se aprende nas escolas de gestão. Um gestor é treinado
para fazer as coisas bem; um líder faz as coisas certas. Não é uma questão de treino e preparação,
mas de instinto e consciência.
– Escute, senhor Acharya, o facto de eu ter ajudado a Babli não significa que me tenha tornado
uma grande líder. Sou apenas uma vendedora vulgar.
– É precisamente essa a questão. Um líder não precisa de ser o mais inteligente, o mais forte ou o
mais bonito. Preferia ter como diretor-geral um líder, mesmo que não fosse brilhante, a ter um génio
subserviente e sem coragem, porque a liderança é o fator mais importante para o sucesso de um
negócio. Tal como as máquinas precisam de manutenção e os produtos precisam de marketing, os
empregados precisam de orientação. É o líder que lhes dá essa orientação, que encoraja e inspira
as pessoas vulgares a fazerem coisas extraordinárias. Para isso, um líder tem de dar o exemplo.
Parafraseando Thomas Jefferson: em questões de estilo, um líder nada com a corrente; mas, em
questões de princípio, é firme como uma rocha. A Sapna foi uma rocha, em Chandangarh. Não estou
apenas orgulhoso de si, Sapna; estou orgulhoso de ser seu mentor.
Não oiço tantos elogios e palavras de reconhecimento desde a universidade. Fazem com que me
sinta fortemente constrangida.
– Bom… não sei o que dizer.
– Não diga nada, simplesmente aja. Continue a seguir a sua consciência e passará os restantes
testes sem dificuldade.
Tenho de recordar a mim própria que, para Acharya, isto não passa de um jogo. Nem eu me tornei
uma líder, nem ele é o meu mentor. É simplesmente um homem rico e enfadado que me usa como
brinquedo para se divertir. E eu tenho de entrar no jogo porque ele me deu 200 000 rupias. Assim,
olho para ele e abro um sorriso grato. Um sorriso de dois laques.

Nessa noite, partilho os mais recentes desenvolvimentos com Karan, no nosso encontro habitual
no jardim.
– O Acharya diz que passei no primeiro teste. Já sou uma líder certificada.
– Ha! – ri-se ele. – Esse homem pensa que somos imbecis certificados. Não teve nada a ver com
o que aconteceu naquela aldeia, e está a reclamar mérito por isso. Seja como for, para o diabo com
o Acharya. Estou orgulhoso de ti, por aquilo que fizeste pela Babli e pelo Sunil.
– Achas que viverão felizes para sempre?
– Não sei. Mas, graças a ti, pelo menos viverão. – Olha para longe. Há uma tensão curiosa nas
feições dele; tem o maxilar contraído. Depois, entreabre os lábios num meio sorriso. – Na verdade,
só há uma classe de pessoas que vive feliz para sempre.
– Quem?
– Os mortos.
16 Este e os seguintes versos fazem parte da canção de protesto que se veio a tornar o hino do Movimento dos Direitos Civis dos
Negros nos EUA, We Shall Overcome. (N. da T.)

17 Lenço comprido que as mulheres usam sobre a cabeça ou os ombros. (N. da T.)

18 Pão clássico do Norte da Índia feito com uma combinação de farinha de trigo e farinha de grão, e servido com vegetais temperados.
(N. da T.)

19 «Agora sim!» ou «Era mesmo isto que eu queria!» (N. da T.)

20 Parte integrante dos casamentos no Norte da Índia e na qual as mulheres da casa se reúnem em torno da noiva e cantam canções
matrimoniais tradicionais enquanto dançam e se divertem. (N. da T.)

21 Maior encontro de pessoas da Terra. Tem lugar nas margens do rio Ganges, em Allahabad, de 12 em 12 anos. Os antigos filmes
hindis eram famosos por usar uma debandada no Kumbh Mela como momento em que irmãos ou irmãs separados em circunstâncias
invulgares se reencontravam passado muito tempo. (N. da T.)

22 Cápsula natural feita de extratos de menta, considerada um remédio fiável e de efeito rápido para problemas digestivos. (N. da T.)

23 Mansão particular, geralmente de grande significado histórico e arquitetónico. (N. da T.)

24 Expressão inventada por Gandhi para os «intocáveis». Significa filhos de Deus. (N. da T.)

25 Nozes de bétele. (N. da T.)

26 Força e energia duradouras. (N. da T.)


27 Encounter no original: expressão do inglês indiano que se refere a uma morte num «encontro», em que a polícia abate alegados
terroristas. (N. da T.)
SEGUNDO TESTE

Diamantes e Ferrugem

S ão 11 da manhã de sexta-feira, dia 31 de dezembro, o último dia do ano, e já se formou uma fila
de um quilómetro em frente da loja. Num país onde quinhentas pessoas se juntam rotineiramente
para assistir a uma luta na rua, é perfeitamente natural que apareçam cinco mil para ver uma
celebridade.
Sim, hoje é o grande dia em que Priya Capoorr honra o nosso salão de exposições com a sua
presença, como embaixadora de marca dos televisores Sinotron.
Há dois dias, uma mulher arrogante chamada Rosie Mascarenhas, agente e relações-públicas da
atriz, veio à loja escolher uma «acompanhante» para a senhora Capoorr. Os requisitos eram muito
específicos.
– Tem de ser uma rapariga. Tem de saber falar perfeitamente inglês. E tem de ter uma voz suave e
boas maneiras.
As quatro vendedoras desfilaram perante ela e eu fui a escolhida. Sem dúvida por proporcionar o
melhor contraste com a tez clara da senhora Capoorr, permitindo-lhe brilhar com mais intensidade.
A mudança do meu estatuto de «vendedora» para «acompanhante» é profundamente irritante, mas
toda a loja se comporta como se me tivesse saído a sorte grande.
– Vais privar com uma estrela. Que sorte, amiga – diz Prachi com ar sonhador. – Quem sabe,
pode ser que ela te ofereça um papel no seu próximo filme.
Gosto de ver filmes hindis, mas não sou grande fã de Priya Capoorr. Não tem realmente talento; é
apenas uma boneca glamorosa cuja única razão de fama é ser descendente de uma das dinastias
mais antigas de Bollywood. E esta veneração cega das celebridades deixa-me agoniada. Não tenho
inveja das celebridades; tenho pena delas. São seres humanos anormais, palhaços tristes que
dançam para entreter os outros, condenados a viver as suas vidas num aquário, sob os olhares
ávidos das suas legiões de fãs.
Os fãs são ainda mais patéticos. São tolos enfadonhos, deslumbrados, que seguem cegamente as
celebridades, seduzidos pela falsa intimidade dos seus tweets. Deviam fazer um exame à cabeça.
Swati, a nossa rececionista, por exemplo, afirma sentir-se mais próxima de Priya Capoorr do que
da própria mãe!
A maioria das celebridades é tão insegura que eleva a superstição a um patamar novo. Priya
Capoorr é um exemplo perfeito disso mesmo. O nome com que nasceu foi Priyanka. Quando o seu
filme de estreia fracassou, encurtou o nome para Priya, por conselho de um astrólogo. Depois,
mudou o apelido de Kapoor para Capoor. E, finalmente, por insistência do seu numerólogo,
acrescentou outro «r», de tal forma que agora, para pronunciar o nome dela, temos de ronronar
como um gato. E não é tudo. Se os rumores que correm forem verdadeiros, já fez mais cirurgias
cosméticas do que Pamela Anderson: encheu os lábios com colagénio, aumentou o peito e reduziu o
nariz. Consequentemente, tem a aparência de uma Barbie, bizarra e plástica, e parece mais velha do
que os seus vinte e seis anos. Ainda assim, produziu três megassucessos seguidos e encontra-se
agora entre as quatro maiores heroínas de Bollywood.
A visita está marcada para o meio-dia e temos estado a trabalhar como loucos para ter tudo
pronto. Toda a loja foi decorada com balões e serpentinas. Cartazes publicitários dos televisores
Sinotron adornam todas as paredes. Montaram um palco improvisado de um dos lados do salão de
exposições principal, com o rosto gigantesco da atriz em pano de fundo, e os hinos de dança dos
seus filmes troam nos altifalantes, criando um ambiente que faz lembrar uma discoteca.
Às 11h30m, a porta da frente é aberta e a multidão entra e instala-se. Segundos depois, cada
centímetro de espaço no salão principal, no átrio e nos corredores está cheio de pessoas. A
expectativa e a ansiedade são palpáveis.
– Priya! Priya! Priya! – começa alguém a entoar. Rapidamente outras pessoas se juntam ao coro, e
a atmosfera fica ao rubro.
Priya Capoorr chega, elegantemente atrasada, à uma e meia, uma hora e meia depois do previsto.
Não vem sozinha. Traz consigo toda uma comitiva, composta por seis guarda-costas corpulentos, a
relações-públicas, um maquilhador e até uma cabeleireira. Entra pela porta das traseiras e é
conduzida ao escritório, que foi limpo e convertido em zona de espera. O proprietário, o senhor
Gulati, e o seu filho Raja estão lá para a receber pessoalmente, tal como um homem de aspeto
chinês chamado Robert Lee, que é diretor de marketing da Sinotron Corporation.
Tenho de admitir que, ao vivo, Priya Capoorr é tão encantadora como parece nos filmes, apenas
um pouco mais baixa. O cabelo castanho-claro está penteado em canudos que lhe emolduram o
rosto oval e caem sobre os ombros em ondas suaves, ligeiramente rebeldes. Os anos que leva a
semicerrar os olhos, a fazer trejeitos, a sorrir afetadamente e a requebrar-se no ecrã transformaram
os cantos dos seus olhos de gazela no olhar de aço de um predador, perturbador e intenso. Vestida
com uma camisa branca franzida e uma mala castanha, complementados por calças de ganga justas,
botas de pele e uma mala Birkin, move-se com a confiança e a presunção de uma diva arrogante que
sabe exatamente aquilo que vale. Raja Gulati quase cai de joelhos quando lhe tenta oferecer um
ramo de rosas.
– Obrigada – murmura ela, com o sorriso vazio de uma mulher numa festa que mal pode esperar
por abandonar.
Minutos depois da sua chegada, a porta do escritório está bloqueada pelos funcionários, todos de
pescoço esticado para vislumbrar a atriz. Estão assombrados, embriagados com a excitação de ver
uma estrela de cinema em carne e osso. Normalmente, eu seria a última pessoa a ficar atrapalhada
com a ideia de estar na presença de uma celebridade, mas, ao ver a forma como todos se
comportam, tenho dificuldade em não me deixar apanhar também pelo drama da situação.
Os guarda-costas enxotam finalmente toda a gente, e Priya fica apenas com a relações-públicas, o
maquilhador, a cabeleireira e eu. Sentam-se em volta de uma mesa. Eu fico em pé, atrás, de forma
deferente, pronta a oferecer chá, refrigerantes e sanduíches previamente preparadas.
– Faltam menos de quatro meses para o torneio e ainda não identificaste a equipa – oiço Priya
dizer a Rosie Mascarenhas. Arrebito as orelhas. Faltam cerca de dois meses para o Campeonato do
Mundo de Críquete, portanto devem estar a falar da Primeira Liga indiana, que começa em abril.
– Estou a tratar disso – diz a relações-públicas.
– Não me interessa qual das equipas é, mas tenho mesmo de ser vista na Primeira Liga.
A atriz não repara sequer em mim enquanto o maquilhador lhe empoa a testa. Para ela, sou apenas
parte do cenário. Ao vê-la presumir-se tão superior a mim (e a todos os outros, na verdade), sinto-
me invadir pela mesma indignação ardente que senti na aldeia de Chandangarh. Lá, havia um
sistema de castas, mas em Bollywood também há um sistema de castas. Um sistema que confere
uma vantagem injusta a alguns poucos privilegiados – os filhos e filhas de estrelas de cinema e
produtores, que alcançam fama e fortuna às custas do seu sobrenome, muitas vezes sem terem
beleza nem talento. Pessoas como Priya Capoorr nascem em berço de ouro e estão destinadas ao
sucesso mesmo antes de aprenderem a andar. Ela nunca teve de trabalhar como figurante e dançar
em formação geométrica numa praia, com um grupo de raparigas seminuas, enquanto o herói e a
heroína se divertem no mar. Sabia que começaria a sua carreira como heroína e depois,
inevitavelmente, se tornaria uma estrela. Porém, por cada Priya Capoorr, há milhares de aspirantes
a atrizes e atores que desembarcam nas costas de Bombaim, todos os dias, e que nunca têm um
golpe de sorte. Nunca ninguém saiu das fileiras dos figurantes sem rosto e se tornou uma estrela
famosa, com a possível exceção de Salim Ilyasi. E mesmo ele tinha o músculo financeiro do
industrial Ram Mohammad Thomas a apoiá-lo.
Na verdade, em tempos, Priya teve um romance tórrido com Salim Ilyasi, que desencadeou
rumores de que em breve se casariam. Mas, depois, ela encontrou melhor partido em Rocky M,
filho do bilionário magnata do carvão Laxman Mudaliar. Namoram há cerca de dois anos e consta
que Rocky já a pediu em casamento. Se isso for verdade, Priya não só tem o presente garantido,
como garantiu também, astutamente, o futuro.
Depois de estar maquilhada, abre a mala Birkin e retira dela um anel de diamantes, que enfia no
dedo anelar da mão esquerda. Vejo que lhe está grande; não fica justo ao dedo. Priya ajeita-o uma
ou duas vezes, para ficar centrado. É evidente que quer exibi-lo. E porque não? Nunca vi um
diamante tão grande. Deve ter pelo menos quatro quilates, provavelmente mais. Sob a luz fria da
lâmpada fluorescente, reluz como uma estrela brilhante num mar de ouro, e a sua radiância
encandeia e lança um arco-íris de cores para os meus olhos.
Rosie Mascarenhas levanta o dedo.
– Tem a certeza de que quer usar isso aqui?
– Sim – responde Priya. – Está mais do que na altura.
– As pessoas vão falar. A imprensa ficará num frenesim. Virão atrás de si como uma matilha de
cães esfomeados atrás de um osso inesperado.
– Sei como lidar com cães.
– Não estou muito à vontade neste cenário. Preferia que fizéssemos um exclusivo sobre o noivado
com a Filmfare.
– Não quero mais discussões sobre o assunto. Farei como muito bem entender – diz ela, erguendo
a voz apenas o suficiente para recordar à agente quem é que manda.
A cabeleireira, uma rapariga do Nordeste com olhos pequenos e tristes, retoca gentilmente os
caracóis de Priya. A atriz olha uma última vez para o espelho que o maquilhador segura e levanta-
se da cadeira.
– Muito bem, vamos lá despachar isto.
Precisamente quando se prepara para sair para o salão, Raja Gulati aparece a correr e pede-lhe
para esperar.
– Lamento, minha senhora, estamos a ter problemas com o sistema de som. Precisamos de mais
dez minutos para o reparar.
Vejo que Priya está a ficar impaciente.
– Por que raio não tinham um sistema de reserva? – resmunga. Para passar o tempo, tira o
BlackBerry da mala e começa a escrever. Mas não está com muita vontade. Pouco depois, põe o
aparelho de lado, visivelmente entediada.
– Tem conta no Twitter? – pergunto, só para quebrar o silêncio.
Ela ergue os olhos, como se estivesse a ver-me pela primeira vez. Rosie apressa-se a apresentar-
me.
– Esta é a Sapna, uma das vendedoras da loja.
Priya mira-me de alto a baixo, tirando-me as medidas.
– Não, não tenho conta no Twitter, e não quero ter conta no Twitter – responde, agitando as mãos
de forma teatral. – Sabe, sou uma estrela, e as estrelas são, por definição, misteriosas e distantes.
Demasiada familiaridade mata a mística. Uma marca bem-sucedida tem de ser única e exclusiva, e
eu agora sou uma marca, não sou?
É uma pergunta retórica; ela não espera que eu responda. Apesar disso, respondo.
– O Salim Ilyasi diz a mesma coisa na nova biografia dele. Já a leu?
– Não leio – responde ela, terminantemente. – Quase não tenho tempo e, para ser franca, os livros
aborrecem-me. Porquê perder uma semana a ler um livro, se podemos ver o filme em duas horas? E
hoje em dia fazemos muitos filmes baseados em livros.
– O que achou de Quem Quer Ser Bilionário?
– Gostei bastante. Mas, só porque foi um branco que realizou o filme, o nosso povo ficou
invejoso.
Mesmo enquanto faz estas revelações francas, o seu rosto não se suaviza nem um pouco. Está
apenas a fazer-me a vontade, não a convidar-me para me aproximar dela.
– Qual foi o último filme meu que viu? – pergunta, de súbito.
Penso nisso. O último filme que vi com Priya foi Homicídio em Bombaim e era execrável. Nem
consegui vê-lo até ao fim.
– Cidade de Pó – minto.
Ela ergue as sobrancelhas perfeitamente delineadas.
– Esse já saiu há dois anos.
– Sim, mas vi-o na televisão há dois dias.
– E o que achou?
– Achei bom, bastante bom. Arriscou num papel menos glamoroso, para variar.
Ela acena com a cabeça e torna-se mais animada.
– Sim. Foi um grande desafio, representar uma simples aldeã, mas consegui. Quase recebi o
Prémio Nacional por esse papel.
– Devo dizer que o final me deixou um pouco confusa.
O olhar gelado que ela me lança diz-me que estou a pisar terreno perigoso.
– E o que é que não percebeu exatamente no final? – pergunta, friamente.
– Bom, quase todo o filme é uma crítica sensível e pós-moderna à cultura materialista, mas
depois, perto do fim, aparece subitamente um grande número de dança elaborado, consigo em
calças de harém. Achei um pouco contraditório, apenas isso.
Lança-me um olhar sardónico.
– Não percebeu mesmo, pois não?
Olho para ela, sem compreender.
– Disse-me que viu o filme há duas noites, certo?
Aceno afirmativamente com a cabeça.
– Aconselho-a a refletir nele por mais cinco dias.
– Desculpe?
– Sabe, é que este filme foi feito para as elites, não para as massas. As pessoas como você
precisam de o analisar durante pelo menos uma semana para o compreenderem na totalidade.
Geralmente, é o tempo que demora a acender-se a lâmpada no vosso cérebro.
A raiva incendeia-se dentro de mim. «Pessoas como você» – essa expressão exaspera-me, como
um insulto que não pode ficar sem resposta. Mas Rosie Mascarenhas já me está a lançar um olhar
furioso, avisando-me a não abrir a boca.
– Porque não nos serve um chá? – intervém.
– Sim, um chá é boa ideia – concorda Priya, apoiando a ideia e pondo-me ainda com mais
firmeza no meu lugar, ao recordar-me que ela é que é a celebridade e eu sou apenas uma
acompanhante. As pessoas como eu servem chá e as pessoas como ela bebem-no. Passo-lhe a
chávena, com a autocomiseração a escorrer-me por todos os poros.
Depois, ela não se digna a dirigir-me outra palavra. De qualquer maneira, o sistema de som
rapidamente fica arranjado e Priya sai para o salão. Sigo-a e observo das filas de trás.
Ela faz uma representação exímia e lança-se num discurso ensaiado sobre as características
superiores dos televisores Sinotron, posando para as fotografias em frente dos aparelhos topo de
gama.
Quando a sessão de perguntas e respostas começa, os repórteres mostram pouca gratidão pela
hospitalidade da Sinotron. Não têm qualquer interesse em televisores de plasma e painéis de LED.
Têm os olhos pregados no dedo anelar de Priya, e nos seus lábios há apenas uma pergunta:
– Esse é o seu anel de noivado?
– Sim, é – responde Priya, mostrando orgulhosamente a joia sob um coro de gemidos e suspiros
dos homens da audiência e os olhares fascinados das mulheres.
– Quantos quilates tem?
Ela ergue cinco dedos, arrancando «ohs» e «ahs».
– Quando é que vai casar com Rocky M?
– Não temos pressa. Nunca nos próximos dois anos.
– Qual é o valor do anel?
– Incalculável.
Com um último floreado, põe fim à sessão, depois de reduzir ao silêncio tanto os repórteres como
o público. Admiro a sua perspicácia para os negócios, a forma como conseguiu extrair tanta
publicidade para a marca Priya Capoorr mesmo de um enfadonho lançamento de produto.
Quando reentra no escritório, ostenta o sorriso satisfeito de uma mulher que conseguiu o que
queria.
– Então o que vai fazer no fim de ano? – pergunta-me, talvez como forma de me compensar pelas
palavras duras que me dirigiu antes.
– Nada – respondo. – Para mim, o dia 31 de dezembro é igual a qualquer outro.
– Pois bem, não é – argumenta ela. – É o fim de um ano e o princípio de outro. Um ano novo
enterra o que é velho e traz consigo novos sonhos, novas esperanças e aspirações. – Di-lo de forma
tão superficial e animada, que mais parece uma frase de um dos seus filmes.
Apetece-me dizer-lhe que um ano novo nem sempre enterra os detritos do passado. Haverá no
ano novo a mesma repetição lenta das nossas penas duradouras e dos velhos arrependimentos. Em
vez disso, pergunto:
– Então o que vai fazer esta noite?
– Oh, o Rocky vai dar uma grande festa no Regency e vou celebrar a noite inteira. Na verdade,
está convidada a juntar-se a nós. Venha por volta das onze e meia. Poderá ver como a outra metade
da sociedade festeja.
Parece uma daquelas ofertas impulsivas da qual pode já estar arrependida. Rosie Mascarenhas
fica suficientemente alarmada para ter um ataque de tosse. De qualquer maneira, não tenho a mínima
intenção de suportar outra dose de condescendência por parte da outra metade da sociedade.
– Obrigada pelo convite. – Sorrio-lhe. – Mas acabo de me lembrar que prometi a uma amiga
americana ir à festa de ano novo dela, em Mehrauli.
Nesta altura, Rosie e a equipa já terminaram de arrumar os artigos que tinham espalhados. A
relações-públicas olha em volta uma última vez, antes de anunciar:
– Acho que estamos prontas.
Priya continua a olhar para mim, como se eu fosse um brinquedo novo do qual está relutante em
separar-se.
– Não quer um autógrafo antes de eu me ir embora?
A pergunta é tão inesperada, que sou apanhada de surpresa.
– Claro – murmuro.
– Onde está o seu livro de autógrafos?
Não tenho um livro de autógrafos. Nem sequer tenho nada que possa usar como livro de
autógrafos. Olho em volta, em pânico, com a mente num turbilhão de atrapalhação. Só vejo os
livros de registos nas estantes, arrumados por ano. E depois reparo num volume fino em cima de
uma prateleira. Tiro-o e sacudo o pó da capa de cabedal. É um álbum de fotografias vazio, com as
páginas grossas cobertas por capas de plástico transparente. Perfeito!
Tiro o plástico de uma página no meio e estendo-o a Priya, que já está de caneta em punho. «Para
a Sapna, com amor, Priya Capoorr», escrevinha na página, com caligrafia expansiva. Nesse
momento, há uma agitação à porta. Viro-me e vejo um fã que tenta entrar à força na sala. Há uma
pequena escaramuça com os guarda-costas, mas nada sério.
Priya fecha o álbum e estende-mo.
– Tome, é melhor guardá-lo num lugar seguro.
Vejo Raja Gulati entrar na sala e ponho o álbum apressadamente de novo na prateleira.
– Obrigado, Priya-ji, foi fantástica – diz ele, bajulador. Desta vez, Priya não lhe sorri. Mal dá
pela nossa presença enquanto entra na limusina. Com um aceno educado mas desdenhoso, fecha os
vidros fumados e o carro arranca.
– Pensava que os vidros fumados eram proibidos em Deli. – Viro-me para Raja Gulati.
– Para mim e para ti – responde ele, ainda a olhar para a esquina onde o carro desapareceu. –
Não para superestrelas como a que acabámos de ver.
Volto para a loja e sou atacada pelas outras raparigas como se fosse uma estrela de rock.
– Do que é que tu e a Priya falaram? – pergunta Prachi, sem fôlego.
– O Rocky M telefonou-lhe? – Neelam puxa-me o braço.
– Ela deu-te algumas dicas de maquilhagem? – quer saber Jyoti.
Toda a loja rejubila no brilho refletido da visita de uma celebridade, mas a euforia dura apenas
uma hora, porque, às três da tarde, a atriz está de volta à Gulati & Sons, zangada e perturbada.
Parece que não encontra o seu anel de noivado de cinco quilates. Escorregou-lhe do dedo e ela
está convencida de que o deixou cair algures na loja. Manda-nos expulsar todos os clientes e fechar
as portas. Depois, ao longo da hora seguinte, faz-nos esquadrinhar cada centímetro da loja.
Procuramos nos soalhos, debaixo de cadeiras e mesas, atrás de televisores e máquinas de lavar,
dentro de sanitas e cestos de papéis, mas não encontramos o anel desaparecido.
A polícia é chamada, liderada pelo mesmo inspetor Goswami que lidou com o nosso ex-
contabilista, Choubey.
– Parece-me evidente que um de vocês tem o anel – declara em tom ameaçador, enquanto caminha
pela loja e estuda os nossos rostos como se estivéssemos numa linha de identificação na esquadra.
– Ainda não é tarde de mais para confessar – continua, com o ar paciente de um pai aborrecido que
partilha uma pérola de sabedoria importante. – A senhora Capoorr não apresentará queixa se
devolverem o anel.
Ao deparar com um muro de silêncio, vira-se para a atriz.
– Priya-ji, suspeita de alguém em particular?
Priya estuda também o círculo de funcionários, com olhos duros e frios. Quando chega a mim,
para e tenta ler a minha expressão. O meu coração bate com tanta força, que estou certa de que
todos o conseguem ouvir. Depois, ela aponta para mim com o dedo bem arranjado.
– Esta rapariga foi quem passou mais tempo comigo. Tenho a certeza de que sabe onde está o meu
anel. Revistem-lhe a mala!
Olho para ela de boca aberta, incrédula. Um agente aproxima-se para me tirar a mala Nine West
da mão. Estou demasiado aturdida para protestar. Além disso, protestar seria uma admissão de
culpa implícita. Assim, deixo o polícia abrir a minha mala e despejá-la em cima da mesa. Observo,
num suspense agonizante, enquanto ele remexe nas minhas coisas, como um agente alfandegário a
inspecionar a bagagem de um contrabandista. Escusado será dizer que o anel não se encontra no
meio das chaves, cartões, travessões, lenços de papel, bilhetes, recibos, batom, spray de gás
pimenta e telemóvel que caíram sobre a mesa.
Priya ainda não acabou.
– Revistem-na – ordena, como se fosse ela o inspetor. Está a exercer a mais óbvia prerrogativa
das celebridades: o poder. Antes que eu possa abrir a boca para falar, sou empurrada para a casa
de banho das senhoras por uma mulher-polícia com tatuagens nos braços, que me pede que me
dispa.
– O quê?
– Ouviu muito bem, dispa a roupa – rosna ela, empurrando-me contra a parede, o seu hálito
quente no meu rosto. Está a exercer a mais óbvia prerrogativa do poder: a licença para abusar.
– Tire as mãos de cima de mim. Nem pense que me vou despir. Não pode obrigar-me.
– Até posso obrigá-la a comer merda, percebeu? – De súbito, agarra-me pelo cabelo e enfia-me a
cabeça na sanita, até o meu rosto estar a centímetros da água. Uma onda de terror puro percorre-me
e convence-me do seu poder bruto. O medo força-me à submissão.
Os minutos seguintes são os mais humilhantes da minha vida, enquanto a mulher-polícia me
arranca a saia e a camisa e enfia os dedos dentro do meu soutien e das minhas cuecas. Fecho os
olhos e desejo que o chão se abra para me engolir.
Dois minutos depois, saio da casa de banho, com o orgulho em farrapos mas a honradez intacta.
– Ela não tem o anel – suspira a mulher-polícia.
A atriz está inconsolável.
– Esse anel vale dois crores… vinte milhões de rupias! Se não o encontrar, o meu noivo mata-me.
Continuem a procurar até ele aparecer.
– Com certeza, minha senhora. – A garantia tranquilizadora de Raja Gulati é tão solene quanto
falsa.
Assim que Priya Capoorr sai, abrimos as portas do salão de exposições e retomamos o
funcionamento normal, mas tudo mudou para mim. Os olhares de lado que os outros funcionários me
lançam, olhares que variam entre a piedade e a satisfação maldosa, são pura e simplesmente
insuportáveis. No espaço de poucas horas, passei de estrela de rock a suspeita de roubo.
Pouco antes do fecho, Prachi e Neelam aproximam-se de mim.
– O que te aconteceu não foi nada bom, yaar – diz Prachi, tentando aliviar a dor dos meus
sentimentos feridos. – Estas estrelas de cinema mimadas acham que podem acusar quem quiserem.
– Nunca mais vou ver um filme dela – declara Neelam. – E, se alguma vez tiver oportunidade,
arranco os olhos daquela cabra.
– Não sejamos hipócritas, Neelam – interrompe Prachi. – Dizes isso hoje, mas aposto que, se
desses por ti na mesma sala que a Priya amanhã, não lhe arrancarias os olhos, pedirias um
autógrafo.
É então que me lembro do autógrafo que Priya me deu. No tumulto dos acontecimentos após o
desaparecimento do anel, esquecera-me por completo dele.
Quando me vejo sozinha, entro no escritório e tiro o álbum de fotografias da prateleira onde o
coloquei. «Para a Sapna, com amor.» A inscrição queima-me a consciência como um ferro de
marcar gado. É o emblema da minha humilhação. Com a bílis amarga a subir-me pela garganta,
arranco a página, rasgo-a em pedacinhos e atiro-os para um cesto de papéis próximo.
Quando vou fechar o álbum, oiço um som metálico. Intrigada, examino-o de novo e arregalo os
olhos, horrorizada. Porque, encaixado no espaço estreito dentro da mola metálica da encadernação,
está o anel de diamantes de cinco quilates de Priya. Não faço ideia de como lhe saiu do dedo e se
alojou ali. Provavelmente há uma hipótese num bilião de tal coisa acontecer, mas aconteceu.
Enquanto me esforço por analisar esta nova situação, a minha mente estuda rapidamente as
opções que tenho. Uma: podia deixar o anel no álbum e fingir que não o tinha encontrado. Duas:
podia levar o anel a Raja Gulati, dizer-lhe como o encontrara e pedir-lhe para o devolver a Priya.
O problema de ambas as opções é que não me absolvem completamente da culpa que me foi
imputada. Ficará sempre a dúvida, na cabeça das pessoas, de que talvez eu tenha escondido o anel
no álbum e perdido a coragem no último minuto.
É então que me ocorre uma terceira opção. Podia levar eu própria o anel a Priya, dizer-lhe onde
o encontrara e encerrar este lamentável episódio.
Antes de conseguir refletir melhor, oiço passos. Quase instintivamente, enfio o anel no bolso, no
instante em que Madan entra no escritório.
– O que está a fazer aqui? – pergunta ele, com maus modos.
– Nada. Vim só ver se tinha deixado aqui a minha caneta.
– Não vejo caneta nenhuma.
– Devo-a ter deixado noutro lado – digo, e saio rapidamente da sala, com o coração aos saltos.

Sentada no metropolitano, no caminho para casa, ainda sinto as faces quentes de vergonha. Não
consigo parar de rever a cena na casa de banho, e, para me distrair, tiro o anel da mala. Faço-o
girar nos dedos, fascinada pelas facetas cintilantes. É um solitário redondo, que parece pulsar com
uma energia oculta, brilhar com um fogo iridescente. Priya calculou o seu preço em dois crores. O
valor da joia deixa-me a boca seca. Teria de trabalhar quase cem anos para receber um valor
equivalente. Cuidadosamente, olho para a esquerda e para a direita. A carruagem está quase vazia,
ainda é cedo para as multidões de ano novo. Com as mãos a tremer, enfio o anel no dedo do meio.
Serve-me perfeitamente. Admiro-o por um instante e depois, sentindo-me como uma ladra apanhada
em flagrante, tiro-o apressadamente e arrumo-o de novo na mala.
Em casa, estou inquieta, consumida por uma energia nervosa. Neha já saiu para a festa com as
colegas da universidade, e a minha mãe está reclinada na cama, a olhar para o teto com expressão
vazia. Retirou-se tão profundamente para o pântano da sua dor, que nem sequer dá pelo final do
ano. Sinto uma pontada de sentimento de culpa por a deixar sozinha, enquanto mudo de roupa e saio
apressadamente de casa às dez da noite.
Apanho o metropolitano para Dhaula Kuan. É um trajeto complicado, que exige que mude de
linha três vezes. De Dhaula Kuan apanho um riquexó motorizado para Bhikaji Cama Place, onde
fica o Grand Regency.
Quando entro no hotel, o porteiro lança um olhar desconfiado às minhas calças de ganga e
camisola cinzenta, decididamente uma indumentária pouco elegante. Paro um momento para admirar
o esplendor polido do átrio, antes de me aproximar do balcão da receção. A rececionista é
declaradamente fria comigo. Vejo nos seus olhos a mesma expressão condescendente que as minhas
colegas vendedoras reservam para as pessoas que vêm só ver a montra. Talvez tenha percebido,
pelas minhas roupas e ar de atrapalhação, que não sou pessoa que costume almoçar todas as
semanas no Polo Lounge do hotel.
– Venho falar com a senhora Priya Capoorr – anuncio, na esperança de que isso a impressione.
– Lamento, minha senhora – responde ela instantaneamente. – Não temos nenhuma hóspede com
esse nome.
– Estou a falar da atriz de cinema.
– A resposta é a mesma.
– Talvez não esteja a perceber. A senhora Capoorr convidou-me pessoalmente para a festa que o
namorado dela vai dar esta noite.
– Já lhe disse que ela não está cá hospedada. Mas, se quiser, pode experimentar o salão de baile
do Regency, lá em baixo.
Quando chego ao átrio do salão de baile, sou detida por uma funcionária ainda mais séria.
Percorre com o dedo uma lista de convidados que tem em cima da secretária e abana a cabeça.
– Lamento, mas o seu nome não está na lista.
– Oiça, pode perguntar à Rosie Mascarenhas: a Priya convidou-me pessoalmente. Se me deixar
entrar por um segundo, posso esclarecer tudo.
Ela fita-me com o punho encostado ao queixo, como se conseguisse ver através de mim.
– Lamento, mas é uma festa particular, só por convite. Sem convite, não a posso deixar entrar.
– Está bem, pode pelo menos mandar-lhe um recado, dizer que a Sapna Sinha está à espera cá
fora?
– Não posso fazer isso e não posso permitir-lhe que espere aqui. Sugiro que saia, ou terei de
chamar a segurança.
É impossível argumentar com ela. E não tenho forma de chegar a Priya. O muro de
inacessibilidade erigido em torno da atriz é impossível de derrubar. Após quinze minutos de
esforços infrutíferos, saio do hotel, frustrada e irritada. Apanho o primeiro riquexó que encontro e
peço ao motorista que me leve diretamente a casa de Lauren, em Mehrauli. O ideal seria voltar a
Dhaula Kuan e apanhar o metropolitano, mas ainda estou furiosa com a desconsideração da
rececionista. E, quando se tem uma pedra no valor de dois crores no bolso, nem se pensa duas
vezes antes de pagar uma viagem de cem rupias.
Neste momento, preciso do bálsamo da amizade, e ninguém o dará melhor do que Lauren. Em
apenas dezoito meses, tornou-se uma parte preciosa da minha vida. O nosso elo de ligação foi
forjado no cadinho da tragédia. Foi ela que assistiu ao acidente do meu pai e o levou para o
hospital.

Quando chegámos a Nova Deli, em março de 2009, o meu pai arrendou um pequeno apartamento
em RK Puram e tentámos construir uma vida nova em torno do núcleo do Sul de Deli. Eu
candidatei-me ao mestrado de Inglês na Universidade de Jawaharlal Nehru, e Neha ao bacharelato
de Artes em Kamala Nehru. Durante algum tempo, parecia que tínhamos conseguido ultrapassar a
tragédia do passado, mas era uma ilusão. O papá já não era a mesma pessoa. A insolência e a
arrogância anteriores tinham desaparecido. Tornara-se um pântano trémulo de remorsos e
autocomiseração. Na verdade, um mês depois de nos mudarmos para Deli, a sua mão direita, a que
usara para esbofetear Alka, desenvolveu uma forma ligeira de paralisia. Encontrou emprego como
professor de Matemática numa escola em Vasant Kunj, mas já não conseguia ensinar. O sentimento
de culpa deixara-o oco por dentro. Vivia praticamente como um sonâmbulo. E morreu da única
forma que um sonâmbulo pode morrer – num atropelamento sem sentido.
Deli tem mais carros do que Bombaim, Calcutá e Chennai juntas, o que significa que a
probabilidade de se ter um acidente na estrada é maior em Deli do que em qualquer outra cidade da
Índia. Se não for um autocarro da Blue Line, será certamente um BMW. O meu pai foi morto por um
camião em excesso de velocidade, junto do Parque dos Veados, no Sul de Deli, perto da meia-noite
do dia 8 de junho de 2009. Estava a tentar atravessar a estrada, quando o camião o atingiu e lhe
passou por cima. Até hoje, não conseguimos descobrir o que é que ele estava a fazer no Parque dos
Veados, tão longe de casa, a uma hora tão tardia. E o camionista assassino nunca foi apanhado.
Lauren estava, por acaso, a sair do Instituto Indiano de Tecnologia em Deli, quase à mesma hora,
pois o seu namorado da altura era professor no Departamento de Engenharia Química. Viu o papá
caído à beira da estrada, numa poça de sangue. Vários carros passaram pelo cruzamento
movimentado, mas nenhum parou para o ajudar. Foi Lauren que enfiou o nosso pai ensanguentado no
seu Maruti 800 e o levou às Urgências do Hospital de Moolchand. Aparentemente, o meu pai ainda
esteve algum tempo consciente, mas a única coisa que Lauren o ouviu murmurar foi o que lhe
pareceu ser «hiran», «veado» em hindi. Talvez estivesse a tentar explicar o que fazia no Parque dos
Veados. Não tivemos oportunidade de lhe perguntar, pois ele entrou em coma pouco depois de
chegar ao hospital. Esteve na UCI durante três dias, mas não voltou a recuperar a consciência. No
dia 12 de junho, morreu.
A morte de Alka tinha-nos deixado psicologicamente arrasados; a morte do papá arrasou-nos
também financeiramente. Era o único ganha-pão da família. Com a sua morte, o fardo caiu sobre
mim, a filha mais velha. Isso alterou por completo a trajetória da minha vida. Tive de desistir dos
estudos e começar a procurar trabalho.
Embora o papá quisesse que eu fosse funcionária pública, o meu sonho, enquanto cresci, sempre
foi ser escritora. Assim, candidatei-me ao cargo de assistente numa editora muito conhecida. Para
minha surpresa, consegui o emprego. O editor ficou mais impressionado com a minha coleção de
poesia amadora do que com a minha licenciatura em Literatura Inglesa. No entanto, o salário que
ofereciam era de apenas 9000 rupias, ainda menos do que um funcionário inferior do governo ganha
atualmente. Embora com relutância, tive de pôr o ordenado à frente da paixão.
Depois de uma série de trabalhos temporários, encontrei finalmente um emprego mais permanente
na Gulati & Sons. De aspirante a escritora, tornei-me vendedora. Foi penoso fazer a transição de
Tennyson para televisores, de Fitzgerald para frigoríficos. No entanto, o plano era usar este
emprego como solução provisória até encontrar algo melhor, mais adequado aos meus gostos. Já
passou mais de um ano, e ainda não encontrei nada melhor.
Lauren é a única pessoa com quem posso discutir literatura e poesia. Licenciou-se em Vassar e
tem um espírito intelectual e uma paixão pelas artes. Sempre que nos encontramos para tomar café,
trocamos ideias e recomendações de livros, e a diferença de catorze anos entre as nossas idades
evapora-se. Ela diz que, como Colombo com a América, veio para a Índia por engano.
– Para a minha tese de doutoramento, tive oportunidade de fazer um estudo no terreno, com uma
bolsa – contou-me. – Escolhi fazer o estudo no Nepal, mas o meu bilhete de avião fazia escala na
Índia. Inicialmente, pensei em ficar apenas dois dias. Já cá estou há quinze anos. E acho que nunca
mais vou voltar. Estou completamente enfeitiçada por este país espantoso, que apenas adiciona e
nunca subtrai.
A casa onde Lauren vive é tão interessante como ela. Fica perto do Qutub Minar e é uma haveli
velha e semiarruinada que foi em tempos a residência do nawab28 de um estado nobre qualquer.
Embora o estuque esteja a cair e a mobília antiga esteja manchada e esfolada e os tapetes tão gastos
que se vê o chão por baixo, o local tem personalidade. Os magníficos candelabros de cristal e os
tetos altos confirmam o seu anterior esplendor. E Lauren arranjou o jardim da frente e cobriu o
pátio de buganvílias e jasmim, para criar um ambiente caloroso e acolhedor. É um refúgio seguro
para qualquer pessoa que passe pelo portão de entrada, especialmente crianças maltratadas e sem-
abrigo, que são o alvo principal da Fundação Asha RMT, a instituição de caridade que Lauren
estabeleceu há oito anos com fundos fornecidos pelo industrial bilionário Ram Mohammad Thomas,
que foi ele próprio um miúdo de rua. Hoje, a fundação apoia mais de mil crianças, proporcionando-
lhes abrigo, educação e um ambiente afetuoso onde podem crescer com dignidade e orgulho. Acima
de tudo, dá-lhes esperança – asha.
Apesar de ser anfitriã de uma festa de ano novo, Lauren está vestida no habitual estilo prático. O
cabelo louro escuro está preso num carrapito severo. Tem um xaile phulkari bordado por cima do
kurti branco e das calças de ganga, e nos pés os habituais chinelos artesanais kolhapuri. Os
exuberantes olhos cor de avelã dela iluminam-se quando me vê. Recebe-me nos degraus do pátio
com um abraço caloroso e um beijo em cada face.
Lá dentro, na sala espaçosa, a lareira está acesa e há um barril de cerveja. São perto de quarenta
convidados, na sua maioria indianos, com alguns estrangeiros pelo meio. As mulheres têm grandes
bindis no meio da testa, e os homens, barbas hirsutas. Todos vestem kurtas das lojas Fabindia e
calças de ganga desbotadas e têm sacos de pano a tiracolo. São parte daquilo a que se chama a
jholawala ou grupo ONG. São os defensores apaixonados nas reuniões ambientais, a presença
colorida nos fóruns de desenvolvimento social, as vozes de protesto em conferências de imprensa
oficiais e os manifestantes com cartazes nas cimeiras globais.
– Este é o James Atlee – diz Lauren, apresentando-me um britânico alto, com cabelo louro
revolto e olhos azuis atraentes. Pela forma como James lhe passa o braço pela cintura, depreendo
que é o seu namorado atual. Invejo a forma como as mulheres ocidentais encontram o amor tão
facilmente. James é o terceiro namorado de Lauren em dezoito meses, prova de que elas se
desapaixonam com igual rapidez.
– Então, também anda a tentar salvar o mundo? – pergunto-lhe.
– Essa é a área da Lauren. – Ele sorri. – Eu tento apenas salvar empresas.
– Como assim?
– Sou consultor de marca.
– Nunca tinha conhecido um consultor de marca.
– Somos os tipos que ajudam as organizações a construir, gerir, alterar ou reanimar a sua imagem
de marca. Em termos mais simples, ajudamos a criar a identidade única de uma empresa, às vezes
até o seu nome e logótipo.
Aceno com a cabeça, impressionada.
– Onde trabalha? Em Londres?
– Trabalhava em Londres, mas agora vivo em Nova Deli. Tenho um contrato de um ano com a
Indus Mobile, estou a tentar redesenhar a imagem deles. A empresa está cheia de dinheiro e planeia
uma expansão importante.
– Oh, tenho um amigo que trabalha na Indus, o Karan Kant. Conhece-o?
– O que é que ele faz?
– Trabalha no call center.
– Nesse caso, não o devo conhecer. Só lido com os gestores de topo, em particular com o senhor
Swapan Karak, o dono.
Depois de conversar com James, circulo entre os outros convidados. Um homem de óculos e
barba aproxima-se de mim e agita uma brochura da Fundação Asha na minha cara.
– Também trabalha para a Lauren?
– Não, sou só amiga dela.
– Então, diga-me, como é que ela consegue pagar esta casa magnífica?
– Perdão?
– Segundo esta brochura, ela é depositária da fundação. Mas a primeira regra de um depositário é
que não pode obter qualquer lucro. Esta fundação tresanda a corrupção.
O hálito dele também tresanda, a demasiado uísque. Peço licença, educadamente, e afasto-me
dele. Consigo tolerar um bêbedo, mas não um ingrato que abusa da hospitalidade desta casa.
Faço conversa de circunstância com alguns convidados, mas sem grande interesse. Não tenho
nada em comum com estas pessoas. E a conversa de circunstância enfada-me. Além disso, estou
inquieta por outro motivo. Sei que tenho o anel escondido na mala.
– Não me sinto muito bem – digo, e peço desculpa a Lauren. – Se calhar é melhor ir para casa.
Podes chamar-me um riquexó?
Ela é compreensiva, como de costume.
– Não te aconselho a apanhar um riquexó a esta hora da noite. Eu peço ao Shantanu que te leve.
Shantanu é o dedicado motorista que trabalha para Lauren há oito anos. É um homem magro e
desengonçado, de quarenta e tal anos. Leva-me a casa no velho Maruti 800 de 1999 de Lauren.
Quando passamos por Hauz Khas, o céu ilumina-se subitamente com fogo de artifício, o que
significa que é meia-noite.
– Feliz ano novo, minha senhora! – diz Shantanu, olhando para o espelho retrovisor.
– Para si também. Que todos os seus sonhos se realizem no novo ano.
– Não desperdice os seus desejos comigo. Eu já deixei de sonhar.
– Porquê?
– Se nos agarrarmos a um sonho durante demasiado tempo, ele fica com ferrugem. E não há nada
mais perigoso do que sonhos ferrugentos. Envenenam o coração.
– Qual era o seu sonho?
– Ter a minha própria oficina de mecânica. Mas nunca acontecerá. Nunca conseguirei juntar
dinheiro suficiente para isso. Essa oficina está enferrujada. Como o meu cérebro. – Tem a voz
embargada pela amargura da desilusão e da derrota.
Por um segundo, sinto-me tentada a tirar o anel da mala e a dá-lo a Shantanu, aqui e agora. Pode
comprar dez oficinas com ele. Mas a pequena sineta na minha cabeça diz «Não! Não! Não!»,
avisando-me de que o anel não me pertence. E eu nunca vivi segundo o ditado «achado não é
roubado». Sou apenas uma depositária do anel. E a primeira regra de uma depositária é que não
pode obter qualquer lucro.

À primeira luz do ano novo, reexamino o anel. Como um feitiço que perdeu o efeito, desta vez
não sinto nada. Olho para as suas facetas, mas ele não passa de uma pedra brilhante. Tenho vontade
de mostrar o anel a Neha, que dorme tranquilamente na sua cama, mas ponho a ideia de lado. É um
segredo vergonhoso que não me atrevo a partilhar com ninguém, nem mesmo com Karan.
Passam-me vários planos impossíveis pela cabeça. Posso atirar o anel para o rio Yamuna, como
no Titanic. Posso vendê-lo a um joalheiro de reputação duvidosa e dar o dinheiro à instituição de
Lauren. Posso enfiá-lo no bolso de Madan sem ele ver e fazê-lo passar por ladrão. Tudo o que sei é
que não quero devolvê-lo a Priya Capoorr. A atriz perdeu o direito à joia devido à forma como me
tratou.
Rosie Mascarenhas telefona para a loja quatro vezes durante o dia, para saber se conseguimos
encontrar o anel. Madan não é capaz de manter a farsa durante mais tempo.
– Não, minha senhora – informa –, não o encontrámos e acho que já não o vamos encontrar.
Na segunda-feira, 3 de janeiro, faço algo audacioso. Ponho o anel no dedo e uso-o durante a
viagem de metropolitano para o trabalho. É um gesto de desafio calculado. Rodo o pulso, roo as
unhas, agito a mão, para mostrar à multidão da hora de ponta que tenho no dedo uma joia de dois
crores. Quero que reparem no tamanho e no brilho do diamante, quero ouvir as suas exclamações de
admiração, mas não obtenho qualquer reação. Ninguém repara em mim, nem no diamante no meu
dedo. É então que compreendo. As pessoas não se apercebem de que tenho um diamante no dedo.
Pensam que é um anel barato de zircónio cúbico, daqueles que se compram em Janpath por poucas
centenas de rupias. Sabem que uma pessoa com um diamante verdadeiro não andaria de
metropolitano. Um sorriso amargo passa-me pelos lábios perante a ironia da situação. Mesmo
quando uso um diamante verdadeiro, as pessoas pensam que é falso. E, mesmo que Priya Capoorr
usasse um diamante falso, todos pensariam que era verdadeiro. Nunca vemos as coisas como elas
são. Tal como a beleza está nos olhos de quem a vê, o valor está na mente de quem o vê.
Rosie Mascarenhas volta a telefonar, mas já sem grande convicção. A meio da semana, deixa de
ligar. Para todos os efeitos, Priya está resignada com a perda do anel; é meu, para sempre. Porém,
quanto mais tempo fico com ele, mais ele me oprime. O diamante tornou-se criptonite, suga-me as
forças, deixa-me melancólica. Sinto que chegou a altura de me separar dele.
Consigo encontrar o número de Rosie Mascarenhas na agenda telefónica de Madan e ligo para a
relações-públicas em Bombaim.
– Acho que encontrei o anel.
– Não acredito! – exclama ela. – Vou apanhar imediatamente um avião para Deli para o ir buscar.
– Não. Só o entrego à sua patroa.
– Ora, isso não é…
– Oiça – interrompo. – Ou a Priya vem a minha casa às sete da manhã de amanhã, ou o anel vai
parar ao Yamuna. A escolha é sua.

Às 18h45m do dia 7 de janeiro, um BMW preto para no portão da Colónia GBR. Priya Capoorr
chegou quinze minutos adiantada. A maioria dos residentes ainda dorme, incluindo Neha. A atriz
que entra na minha sala é muito diferente daquela que visitou a loja. Em vez de uma diva vaidosa,
vejo uma noiva perturbada, arrasada pela perda. Veio sozinha, sem o maquilhador e a cabeleireira e
a relações-públicas. Está nervosa e agitada, rói as unhas, em suspense, atrapalha-se com o
telemóvel quando se senta no sofá. Parece ter estado a chorar: tem o rosto manchado e molhado. O
seu cabelo está uma desgraça. É evidente que esteve a beber. Não admira que o guarda no portão
nem sequer a tenha reconhecido.
– É verdade que tem o meu anel? – pergunta-me, com voz trémula.
– Sim – respondo. – Encontrei-o no mesmo dia em que esteve na loja. Ficou preso na espiral do
álbum onde me deu o seu autógrafo.
– Posso… posso vê-lo, por favor?
Tiro o anel da mala e dou-lho. Ela examina-o, enfia-o no dedo e acena com a cabeça, satisfeita.
– Sim, é o meu anel. – Enfia-o no bolso e levanta-se.
– Não quer ficar mais um pouco?
– Não – diz ela, olhando em volta pela primeira vez. Quando vê a tinta descascada e as cores
desbotadas, vejo o seu rosto adquirir a mesma máscara de desdém e repugnância que vi uma vez no
rosto de um homem de negócios engravatado, no metropolitano, quando um bebé bolçou em cima
dele ao arrotar.
– Tome pelo menos um chá.
– Não tenho tempo. Vou apanhar o primeiro avião para Bombaim – diz, e começa a dirigir-se à
porta. Depois, para e vira-se. – Antes de ir, posso perguntar-lhe uma coisa?
– Claro.
– Porque é que o devolveu? É um anel muito valioso. Podia ter ficado com ele, se quisesse.
– Não podia ficar com ele. Não gosto muito de diamantes.
– Nesse caso, porque demorou tanto tempo a devolvê-lo? – exige saber. – Faz ideia do
sofrimento que me causou? – O tom de gratidão desapareceu. Voltou a ser cruel e autoritária.
– Que posso fazer, minha senhora? – suspiro. – Sabe, é que, nas pessoas como nós, a lâmpada
demora uma semana a acender.

Uma semana depois, Acharya convida-me de novo a ir ao seu escritório. Para variar, tem alguma
consideração e marca a reunião para a uma e meia, de modo a apanhar a minha hora de almoço.
– Muito bem, Sapna! – diz. – Fico feliz por ver que passou no segundo teste. O teste da
integridade.
– Integridade? Como?
– Devolveu o anel de diamante à Priya Capoorr.
Sinto a cabeça a girar. É impossível que ele saiba da devolução do anel. Foi algo que teve lugar
apenas entre mim, a atriz e as paredes da minha sala.
– Mas como soube disso?
– Tenho os meus métodos.
– Está a vigiar-me?
– Claro que não. Na verdade, é muito simples. Sabe que o Grupo CEA também produz filmes. A
Priya Capoorr é a heroína do filme mais recente da minha produtora. Ela contou a história do anel
ao maquilhador, que, por sua vez, contou ao realizador, que contou ao produtor, que me contou a
mim.
Não tenho forma de saber se o que ele está a dizer é verdade ou apenas um teste à minha
credulidade. Seja como for, decido limitar-me aos factos.
– Devia ter devolvido o anel logo no primeiro dia. Não me deu prazer nenhum ficar com ele uma
semana.
– Integridade significa mais do que apenas honestidade, Sapna. O verdadeiro teste de integridade
é ser honesto mesmo quando não está ninguém a ver. Provou ter uma noção sólida do que é certo e
errado. Lembre-se: um bom líder tem de ter um carácter exemplar. Só assim pode inspirar
confiança. Nada prejudica mais uma organização do que a desonestidade dos seus funcionários. E,
se o próprio diretor-geral for desonesto, Deus ajude a empresa.
Chama-me para junto de si.
– Venha cá. Olhe para a rua lá em baixo. O que vê?
Olho pela janela para Barakhamba Road, repleta de tráfego.
– Vejo centenas de carros e pessoas.
– Sim. Aqui de cima consegue ver as cabeças delas, mas não consegue ver o que está dentro
dessas cabeças. – Suspira, como se tivesse passado por uma provação. – As pessoas tornaram-se
especialistas em disfarçar a sua verdadeira natureza. Um burlão hábil consegue falsificar facilmente
o teste de integridade que fazemos nas entrevistas de emprego, até mesmo enganar um polígrafo.
– Então como sabe que está a contratar uma pessoa honesta?
– Esse é o maior desafio, para um diretor-geral. Não há software nem aparelho que possa revelar,
com cem por cento de exatidão, os verdadeiros sentimentos de uma pessoa. Eu sempre segui o meu
instinto, rodeando-me de pessoas que acredito serem de confiança e leais. Apesar disso, de vez em
quando, até eu me engano.
– O que é que quer dizer?
– Temos um informador no sistema. Alguém que tem estado a passar informações confidenciais
sobre a empresa aos nossos rivais.
– Isso é terrível!
– Não se preocupe, acabaremos por descobrir o traidor. Não quero que perca o sono com isso.
Tem de se preparar para o terceiro teste.
– Qual será o terceiro teste?
– Não faço ideia. É a vida que dá as cartas e é a Sapna que as joga. Eu sou apenas o croupier que
anuncia os resultados. Adeus, por agora.

Mais tarde, pego no braço de Karan, aproximo o rosto do ouvido dele e falo no sussurro
conspirador exagerado de alguém prestes a partilhar um grave segredo.
– Há um traidor no Grupo CEA que tem estado a passar informação confidencial aos rivais do
Acharya.
– Aha! – exclama ele. – O mistério adensa-se!
Estamos sentados num dos bancos do jardim da colónia, rodeados pelo fresco da noite. Há uma
semana que não o via.
– Gostava de saber porque é que ele me contou algo tão delicado.
– Eu digo-te porquê. Porque tudo isto é um esquema para te atrair, para te levar a confiar nele.
Esse homem está a jogar um jogo mental distorcido e doentio contigo.
– Eu sei. Mas parecia tão sincero, que quase acreditei nele.
– Nesse caso, tens de ter ainda mais cuidado. Acorda para as mentiras do inimigo, Sapna.
Acorda, antes que sejas sugada para o abismo.
– Estou acordada e alerta. Tu é que estavas a dormir quando a Priya Capoorr visitou a minha
casa.
– O quê? A Priya Capoorr esteve na Colónia GBR?
– Sim, senhor. Para variar, consegui pôr uma superestrela no seu devido lugar. – Conto-lhe o
episódio com a atriz.
– Isso é incrível. Então devolveste-lhe mesmo o diamante de dois crores, hã?
– Sim. Os diamantes não são os meus melhores amigos. Tu é que és.
28 Muçulmano nobre ou pessoa de estatuto elevado. (N. da T.)
TERCEIRO TESTE

Sonhos Fechados à Chave

–R epitam

depois de mim,
, cold, yani
C-O-L-D
C-O-L-D, cold,
29
que significa thanda. T-A-L-L, tall, que significa lamba.
thanda. T-A-L-L, tall, yani lamba – repetem os alunos em coro, antes
de desatarem a rir.
É a aula de inglês de domingo, que tem lugar na sala de estar do nosso apartamento. Sentados à
minha frente, estão Chunnu, Raju, Aarti e Suresh. Todos têm entre dez e doze anos de idade e vivem
perto, na Colónia da Corporação Municipal de Deli, o bairro de lata. Chunnu é filho de Sohan Lal,
que trabalha como jardineiro no Parque Japonês. O pai de Raju, Tilak Raj, é auxiliar no hospital
público no Setor 17. E Aarti e Suresh são filhos de Kalawati, uma mãe solteira que trabalha como
criada em part-time, em várias casas na Colónia GBR, mas não na nossa. Não posso pagar a uma
empregada, com o meu salário.
Foi Kalawati que me convenceu a dar aulas de inglês, seis meses antes.
– O Aarti e o Suresh andam na escola pública, mas aprendem tudo em hindi. Se não aprenderem
um pouco de inglês, como arranjarão um bom emprego? – perguntou-me, ralada, antes de me pegar
nas mãos. – O futuro deles está nas suas mãos, didi. Por favor, ajude-os. – Incapaz de fazer ouvidos
moucos às suas súplicas incessantes, concordei em dar aulas semanais de inglês aos filhos dela.
Pouco depois, Raju e Chunnu juntaram-se ao grupo.
Na verdade, gosto de ensinar estes miúdos. Podem não ter todas as oportunidades, mas têm
ambição e motivação. Os sonhos deles ainda não foram corrompidos pelo destino e pelas
circunstâncias. Os destinos deles não estão limitados pelo pântano da casta e da classe. Têm uma
centelha nos olhos e esperança no rosto, que lhes permitirão alcançar uma posição mais elevada na
vida do que os pais.
Quando estou prestes a terminar a lição de hoje, o meu telemóvel toca. É Lauren.
– Sapna, minha querida, acabo de receber uma informação anónima sobre uma fábrica de
fechaduras ilegal na Colónia CMD em Rohini. Não é perto de onde moras?
– Sim. Essa colónia fica praticamente nas nossas traseiras.
– Disseram-me que a fábrica tem vinte crianças a trabalhar em condições extremamente
perigosas.
– Isso é chocante!
– Não é? Ouve, preciso que me faças um favor. Quero que faças algumas perguntas,
discretamente, aos habitantes da Colónia CMD, para descobrir se a informação é verdadeira. Podes
fazê-lo? – A voz dela tem um tom desesperado e suplicante.
– Não te preocupes. Digo-te qualquer coisa ainda hoje.
Desligo e viro-me para as crianças.
– Há alguma fábrica de fechaduras no bairro de lata?
– Sim, didi – confirma Suresh. – É gerida pelo Anees Mirza.
– Quem é o Anees Mirza?
– É um dom da máfia. Toda a colónia tem medo dele.
– Podem mostrar-me onde fica a fábrica?
Suresh começa a coçar a cabeça.
– A mamã deu-me instruções rígidas para nunca me aproximar desse sítio. Se ela me apanhar…
– Eu levo-a, didi – diz Chunnu. – Fica mesmo ao lado da minha casa. Até me ofereceram
trabalho, uma vez. Prometiam oitenta rupias por dia, mas eu disse que não. Prefiro ir para a escola.
– Fazes muito bem, Chunnu.
Quando lhe transmito a informação, Lauren fica imediatamente perturbada.
– Temos de salvar essas crianças o mais depressa possível. Não posso esperar nem mais um
minuto.
– Não devíamos informar as autoridades?
– Só depois de eu ver o local pessoalmente. Vou imediatamente para Rohini. Podes arranjar-me
um guia local?
– Tenho-o mesmo aqui ao pé de mim – respondo.

Uma hora depois, Lauren e eu seguimos Chunnu enquanto este nos guia pelo labirinto de becos
sujos. É melhor do que alguns dos outros bairros de lata que já vi. Em vez de barracas temporárias
feitas de chapa ondulada, lona, cartão e sacos de plástico, a maioria das casas é feita de tijolo e
cimento, embora sejam pequenas e atafulhadas. As estradas exteriores do bairro estão relativamente
limpas, mas, quando entramos, o cheiro pútrido de dejetos humanos invade todos os espaços.
Vemos esgotos a transbordar e pilhas de lixo à beira dos passeios. Paira no ar uma neblina de fumo
de querosene que lança um manto enegrecido sobre tudo.
Chunnu conduz-nos e passamos por pequenos restaurantes e vendedores ambulantes de
mercearias, até chegarmos ao canal de esgoto que assinala a fronteira norte do bairro de lata. As
casas do outro lado do canal de esgoto são maiores e melhores. Chunnu aponta para uma casa de
dois pisos, pintada de amarelo claro.
– A fábrica é ali. Mas não digam a ninguém que fui eu que vos trouxe – pede, e depois desaparece
em direção a casa, uma barraca de uma só divisão na periferia do bairro de lata.
Aproximo-me do edifício vulgar com os passos hesitantes de um especialista em
desmantelamento de bombas. Lauren, ao contrário de mim, mal se consegue conter.
– Muito bem, eis o plano – diz. – Estamos perdidas. E andamos a pedir indicações do caminho
para a Universidade de Engenharia de Deli. – Bate à porta e espera. Depois de uma demora
desconfortável, a porta metálica abre-se e à nossa frente aparece um rapazinho de cerca de dez
anos, vestido apenas com um colete sujo e calções. Olha para Lauren como se nunca tivesse visto
uma mulher branca. – Olá, podemos falar com o teu pai? – pergunta Lauren em hindi perfeito.
Por um momento, a criança fica em silêncio, chocada. Não esperava ver uma estrangeira, e muito
menos uma estrangeira a falar hindi.
– O Anees bhai30 saiu. Volta depois da uma – responde.
– Nesse caso, nós esperamos – diz Lauren e, sem aguardar resposta, entra e puxa-me consigo.
Nunca esquecerei a cena que encontramos. Há cerca de trinta crianças apinhadas numa sala
comprida, baixa e abafada. O chão é de cimento reles; as paredes estão imundas. A iluminação é
proveniente apenas de duas lâmpadas fluorescentes e não há qualquer ventilação. Os meus ouvidos
são atacados pelos sons de martelos a baterem em metal e de ferramentas elétricas a zumbirem e a
rangerem. Os meus olhos começam a arder por causa dos vapores pesados e tóxicos que se
contorcem no ar como cobras voadoras.
As crianças, que têm todas entre oito e catorze anos, estão envolvidas em várias atividades,
desde a operação de prensas manuais a trabalhos de polimento, cromagem e pintura com sprays.
Nenhuma delas tem qualquer tipo de equipamento de proteção. Erguem brevemente os olhos quando
Lauren e eu entramos, e depois voltam ao que estavam a fazer. Não há adultos na sala.
– É pior do que eu pensava – murmura Lauren. – Isto é uma fábrica clandestina e funciona
unicamente com trabalho infantil. – Pega no telemóvel e começa a tirar fotografias.
– Eh, o que está a fazer? – Um rapaz alto, que parece ser o líder da equipa, larga o spray de tinta
e olha para nós com ar beligerante.
– Calma – diz Lauren. – Não sou inspetora de trabalho.
– Mas o patrão disse-nos para não deixarmos ninguém tirar fotografias.
– Isso não se aplica a nós.
– Quem são vocês? – pergunta, com ar desconfiado.
– Somos importadoras da América. E viemos ver a qualidade das vossas fechaduras, para ver se
queremos comprá-las – diz Lauren sem hesitar, intimidando-o para que aceite a nossa presença,
embora ele ainda esteja desconfiado.
– Como te chamas? – pergunto-lhe.
– Guddu – responde ele.
– Até que horas trabalham?
– Depende do Anees bhai. Às vezes até às oito, outras vezes até às dez da noite.
– Há quanto tempo fazes isto, Guddu?
– Há cinco anos. Desde que o Anees bhai veio de Aligarh e abriu a fábrica. Tornei-me um
especialista tão bom em fechaduras e chaves, que consigo abrir qualquer fechadura em menos de
um minuto.
Observo os jovens a trabalharem com prensas manuais para cortar os diferentes componentes das
fechaduras. Aquilo em que reparo instantaneamente é que muitas das crianças têm pensos nos
dedos.
– Estas pobres crianças ficam muitas vezes sem as pontas dos dedos, por acidentes causados pela
exaustão – explica Lauren, com os olhos cheios de lágrimas.
Aproximo-me de um miúdo que está a trabalhar com a máquina usada para polir as fechaduras.
Está coberto de pó de esmeril preto, o que o faz parecer um mineiro de carvão. Quando se debruça
sobre a máquina em movimento, a menos de trinta centímetros das engrenagens, vejo que inala o pó
de esmeril, o que lhe causa ataques de tosse periódicos. Até eu tenho de tapar o nariz e a boca para
não respirar aquele pó metálico e fino.
– Muitas destas crianças terão problemas respiratórios, asma e tuberculose – lamenta Lauren.
Outro rapaz parece ter uma erupção cutânea nas costas. Quando passo suavemente o dedo sobre a
pele dele, descubro que é uma teia de vergões inflamados.
– Como é que fizeste isto? – pergunto-lhe.
Ele não diz nada, mas o rapaz ao seu lado responde por ele.
– O Radhua foi castigado pelo Anees bhai. O patrão não gosta que os rapazes cometam
demasiados erros e ainda por cima cheguem atrasados ao trabalho.
Estremeço, revoltada.
– Aquele homem é um monstro sádico – sussurro a Lauren. – Vamos embora antes que ele chegue.
– Está bem, acho que já vimos o suficiente – anuncia Lauren em voz alta, e guarda o telemóvel. –
Vamos embora.
Estamos à porta quando Guddu grita:
– Esperem!
– Sim? – Lauren vira-se lentamente.
– Não nos disseram como se chamam. Se o patrão perguntar quem esteve cá, o que é que lhe
digo?
Lauren pensa nisso por um instante.
– Diz-lhe que a Ma Barker de Nova Iorque o veio visitar.
– Ma… o quê?
– Ela é a Ma. – Lauren aponta para mim. – E eu sou a Barker.

– A Ma Barker não era uma criminosa famosa? – pergunto a Lauren enquanto regressamos
apressadamente ao meu apartamento. – Parece que me lembro de uma canção dos Boney M sobre
ela.
– Essa canção chamava-se «Ma Baker» – explica Lauren. – Mas é a mesma pessoa. Mudaram o
nome, porque «Baker» soava melhor. No entanto, até o crime dela era insignificante, em
comparação com o que este homem faz – continua, sufocada pela raiva. – O gangue dela limitou-se
a roubar dinheiro. Este Anees roubou o futuro daquelas crianças.
– Então qual é o nosso próximo passo?
– Denunciamos a situação ao magistrado da subdivisão local. Será ele que terá de organizar um
grupo para salvar aquelas crianças e encerrar a fábrica. Vamos lá imediatamente.
– Mas hoje é domingo. O escritório está fechado.
– Raios, esqueci-me completamente. Então teremos de ir amanhã, logo de manhã.

Na segunda-feira, às nove da manhã em ponto, estamos no gabinete do magistrado da subdivisão.


É um escritório governamental típico, de paredes brancas adornadas com os retratos de líderes
nacionais, mobiliário utilitário e livros de registos e pastas empilhados por todo o lado. Há
multidões no exterior do edifício, mas a atmosfera no interior é de pura letargia. A presença de
Lauren, contudo, desperta o interesse de um funcionário de meia-idade chamado Keemti Lal, um
homem com queixo duplo, bigode farfalhudo e patilhas grisalhas.
– Sim, minha senhora, como posso ajudá-la? Precisa de registar uma propriedade?
– Vim denunciar a existência de uma fábrica ilegal que usa trabalho infantil. Quando é que o
magistrado nos pode receber?
– Infelizmente, o magistrado sahib não chega antes das dez e meia. Mas pode conversar comigo.
Na meia hora seguinte, explicamos pacientemente o que vimos dentro da fábrica, a natureza ilegal
da operação e os perigos para a saúde das crianças e do ambiente em geral. Lauren até imprimiu as
fotografias que tirou com o telemóvel. O funcionário pede-nos que apresentemos um relatório por
escrito e que assinemos vários impressos. Começo a ficar irritada com tanta burocracia. Para
apresentar uma simples queixa parece ser necessária mais papelada do que para pedir um
empréstimo ao banco.
– É uma situação muito grave – sublinha Lauren. – Espero que tomem ações imediatas para salvar
as pobres crianças.
Keemti Lal acena a cabeça com ar sério.
– Com certeza, minha senhora. Mas temos de seguir os procedimentos estabelecidos para estes
casos. Terá de ser entregue uma citação, a que se seguirá uma investigação, que pode levar a um
recurso… tudo isto demora o seu tempo. No entanto, as coisas podem ser apressadas se…
Deixa a frase no ar mas, pela expressão expectante no seu rosto de fuinha, percebemos a intenção.
Está a pedir-nos um suborno.
Fico indignada.
– Que raio de homem é você, a tentar enriquecer à custa de crianças inocentes? – repreendo.
Lauren, contudo, simplesmente franze os lábios e acena com a cabeça. Com uma indiferença
filosófica, abre a carteira e tira cinco notas de mil rupias.
– Chega?
– Oh, minha senhora, está a deixar-me embaraçado – diz Keemti Lal em tom adulador, enquanto
aceita o dinheiro e o enfia no bolso da camisa. – Fique descansada, eu informo o magistrado sahib
assim que ele chegar. Namaste. – Cruza as mãos. Eu fecho as minhas para não lhe arrancar o
sorriso do rosto à força.
Quando saímos do edifício, não consigo deixar de dizer a Lauren:
– Não esperava que untasses as mãos daquele porco tão depressa.
– Para mim, o mais importante é salvar as crianças. Se for preciso algum dinheiro para acelerar o
processo, não me importo.
– Parece que nos tornámos uma nação de subornados e subornadores. – Abano a cabeça,
consternada.
– Se isso te faz sentir melhor, posso dizer-te que na América também há subornos.
– A sério?
– Sim. Só que nós refinámos o suborno e transformámo-lo numa arte. Chamamos-lhe lobbying.

É dia 26 de janeiro. Dia da República da Índia. Para a nação, assinala-se o aniversário do


nascimento da Constituição indiana. Para mim e para a minha família, assinala-se o aniversário da
morte de Alka.
Lá fora, canções patrióticas troam nos altifalantes. Dentro da nossa casa, o ambiente é triste e
pensativo. Hoje todas somos refugiadas emocionais à procura de asilo para a nossa dor coletiva. A
mamã, mergulhada na religião, refugia-se no Bhagwad Gita, as escrituras sagradas. Neha esconde-
se atrás do leitor de MP3 e tapa os ouvidos com uma qualquer música de dança ritmada. Eu tento
distrair-me com um livro, mas não consigo concentrar-me. Assim, sento-me em frente do televisor,
a fazer rabiscos num guardanapo de papel e a ver a transmissão em direto da parada do Dia da
República. Está uma manhã de nevoeiro e o céu está cinzento, mas milhares de espectadores foram
suficientemente corajosos para enfrentar o frio e aplaudir os contingentes de marcha e as colunas
mecanizadas que se dirigem de Raisina Hill a Red Fort. Uma sucessão de quadros representa o
nosso poderio militar e diversidade cultural. Há tanques e mísseis, intercalados com tradições sufis
de Bihar e danças de festivais de Sikkim.
– Porque estás a perder tempo a ver essas canções e danças? – repreende-me uma voz à porta.
Viro-me e vejo Nirmala Ben a entrar no apartamento.
Nirmala Ben vive no B-25, três portas abaixo da nossa, no mesmo piso. É uma mulher magra e
minúscula, de sessenta e poucos anos, com olhos rápidos e vivos que veem tudo o que a rodeia.
Tem o cabelo grisalho preso na nuca num pequeno carrapito. Como de costume, veste um sari
branco simples e calça chinelos.
A história de vida de Nirmala Ben tem algumas semelhanças com a nossa. Antes de casar,
chamava-se Nirmala Mukherjeee e era uma bengali de Calcutá apaixonada pelas Rabindra Sangeet,
as canções de Tagore. Aos vinte e quatro anos, apaixonou-se por um contabilista de Guzarate
chamado Hasmukh Shah. Apesar da oposição da família, casou-se com ele e mudaram-se para
Surate. Tiveram apenas um filho, um rapaz chamado Sumit. Infelizmente, o marido morreu de
repente, com um ataque cardíaco, em 1985. Depois disso, todas as esperanças de Nirmala se
concentraram no filho. O seu coração encheu-se de orgulho quando Sumit se alistou no Exército
indiano e foi destacado para os Fuzileiros de Rajputana. Foi colocado em Assam e em Deli e, por
fim, enviado para Caxemira. Foi aí que se tornou um mártir, no dia 13 de junho de 1999, quando
combatia corajosamente o inimigo nas encostas geladas do setor Drass, na Guerra de Kargil.
Depois da morte de Sumit, Nirmala Ben mudou-se para Deli. O seu apartamento é um santuário
ao filho, cheio de fotografias emolduradas do elegante oficial que recebeu, a título póstumo, o Maha
Vir Chakra, a segunda condecoração nacional mais importante em tempo de guerra. Porém,
juntamente com as recordações do filho, é possível encontrar também rodas de fiar em miniatura e
bustos de Mahatma Gandhi. Tem uma estante cheia com as Obras Completas de Gandhi, todos os
noventa volumes.
– Fiquei completamente arrasada com a morte do Sumit – disse-me ela uma vez. – Chorei-o
durante quase dois anos, até descobrir Mohandas Karamchand Gandhi. Comecei a ler tudo o que ele
escreveu. Foi o bapu31 que me abriu os olhos para o verdadeiro significado da verdade, da não-
violência e do autossacrifício.
Desde então, Nirmala Ben dedicou a vida a Gandhi e à promoção dos seus princípios. Da
harmonia comunitária à proteção das vacas, está sempre pronta para emprestar a voz e as mãos a
todas as campanhas públicas.
De vez em quando, os residentes da colónia têm de ouvir os seus pequenos sermões sobre a luta
contra a injustiça, sobre amar os inimigos e vencer o mal com o bem. Ela é antiguerra, é
antiglobalização, mas, acima de tudo, é anticorrupção.
– O meu filho não foi morto pelas balas do inimigo – nunca se cansa de dizer. – Foi morto pela
corrupção. As armas que lhe deram estavam defeituosas, o seu colete à prova de bala era de má
qualidade e, quando ele morreu, até ganharam dinheiro com o caixão. Digo-vos, a corrupção é o
cancro que está a consumir a nossa sociedade a partir do interior.
Passa os dias numa cacofonia de insultos, invetivas e injúrias dirigidas à classe política indiana.
Porém, por trás desse exterior mal-humorado, tem um coração de ouro. Ben significa «irmã», em
guzarate, e ela é verdadeiramente a irmã mais velha de toda a colónia, bondosa, altruísta e generosa
como ninguém. Perdemos a conta à quantidade de vezes que nos regalámos com deliciosas
guloseimas da sua cozinha.
Estava praticamente destinado que, de todas as pessoas da colónia, Nirmala Ben estabelecesse
uma ligação especial com Susheela Sinha, a minha mãe. Ambas partilham a experiência traumática
de ter perdido um marido e um filho. Os modos obstinados desta devota de Gandhi e a sua língua
afiada formam um contraste perfeito com os modos suaves e o senso comum e terra a terra da minha
mãe.
Um efeito secundário desta amizade comovente é que Nirmala Ben me adotou mais ou menos
como filha, e está sempre a certificar-se de que como bem, de que não trabalho de mais e de que
durmo o suficiente.
Senta-se ao meu lado, tira os óculos redondos e começa a limpá-los com a ponta do sari.
– Também estava a ver televisão em casa, mas é demasiado deprimente – diz.
– Como pode achar a parada do Dia da República deprimente?
– Não estava a ver a parada, mas sim as notícias. Só falavam de corrupção: a fraude das
telecomunicações de 2G, a fraude das minas em Karnataka, a fraude dos terrenos em Uttar Pradesh,
a fraude do açúcar em Kerala. E, como se isso não fosse suficiente, os médicos em Patna estão em
greve, os rebeldes naxalitas mataram dez seguranças em Chhattisgarh, e as cebolas atingiram as
cinquenta rupias por quilo. O que se passa com o nosso país?
– Foi por tudo isso que deixei de ver as notícias – digo, em tom mais ligeiro.
– Esse é o verdadeiro problema deste país. Os jovens, como tu, não querem envolver-se na
nação. Arrey, têm de agarrar o touro pelos cornos. Só assim conseguiremos acabar com todas estas
fraudes.
– Mas o governo não nomeou já comités para as investigar?
– Ha! – exclama ela em tom desdenhoso. – É a única coisa que o governo faz: nomear um comité
que entrega um relatório cinco anos depois. Nessa altura, já aconteceram mais quinze fraudes. Não
precisamos de comités, precisamos de coragem. Coragem para expor as pessoas que estão
realmente por trás destas burlas. Coragem para desmascarar a Atlas.
Eu sei a que se refere Nirmala Ben. Ultimamente, as notícias têm falado muito sobre a Atlas
Investments, uma empresa de fachada que, alegadamente, está por trás da maioria dos esquemas
ilegais no país. Porém, ninguém parecer saber a identidade de quem está realmente por trás da
Atlas. E o governo diz não ter forma de descobrir.
– Seja como for, não estraguemos a nossa disposição com conversa sobre as fraudes – digo, para
a tentar distrair.
– Pelo contrário, temos de falar só sobre as fraudes. É assim que o público será educado, para
poder lutar contra a corrupção. Tenho andado a ler sobre o assunto, a tirar apontamentos. Vê a
pesquisa que fiz sobre a Atlas. – Apresenta-me um caderno, com as páginas cheias da sua caligrafia
densa, a lápis. O lápis está no fim, afiado tantas vezes que é pouco mais do que um coto com dois
centímetros. Mas Nirmala Ben é assim, relutante em desperdiçar ou deitar fora até as mais
pequenas coisas. O apartamento dela está atafulhado de todo o tipo de bugigangas. Contudo, na sua
maioria, elas não lhe pertencem. Por várias vezes já encontrei as nossas colheres e garfos na
cozinha dela. Tem o estranho hábito de levar pequenas coisas das casas e lojas que visita: um corta-
unhas aqui, uma caneta ali. Mesmo coisas para as quais não tem qualquer utilidade, como uma bola
de críquete ou um isqueiro. Na colónia, falamos discretamente sobre o problema dela. Em
linguagem psicológica, chama-se cleptomania: a vontade irresistível de roubar coisas de que não se
precisa e que, geralmente, têm pouco valor. Nirmala Ben é, muito possivelmente, a única devota de
Gandhi cleptomaníaca do mundo.
Enquanto conversamos, é óbvio que ela está seriamente preocupada com a questão da sombria
Atlas.
– Um dia dizem-nos que a Atlas tem sede na Suíça, no dia seguinte já é no Mónaco. No terceiro
dia é nas Maurícias, e no quarto dia em Chipre. Arrey, precisaremos de um atlas para localizar esta
Atlas? – pergunta, com um sorriso escarninho.
– Mas o que podemos nós fazer, os cidadãos comuns?
– Temos de lançar uma luta. A corrupção tem de ser travada. Este país precisa é de uma segunda
revolução como a de Gandhi.
– E como lançamos essa revolução?
– Não sei. O bapu há de mostrar-me o caminho. Como sempre faz. – Olha para o relógio na
parede e levanta-se com relutância. – Tenho de ir andando. Está na altura da oração do meio-dia.
Só depois de ela sair dou pela falta da minha esferográfica, aquela com que estava a fazer
rabiscos no guardanapo.

Às seis da tarde a campainha toca e Neha diz-me que estão dois estranhos à porta para falar
comigo.
Recebo-os na sala. Têm ambos trinta e tal anos. Um é baixo, moreno, sem barba, com um gorro
de lã. Tem o aspeto matreiro de alguém que resolve problemas complicados. O outro é um tipo
completamente careca, mais alto e mais corpulento, com o ar perigoso de um criminoso experiente
que acaba de sair da penitenciária de Tihar.
– É a Sapna Sinha? – pergunta o homem mais baixo.
Aceno afirmativamente com a cabeça.
– De que se trata?
– É sobre a queixa que a senhora e a sua amiga americana apresentaram contra a Mirza Metal
Works, há dois dias.
– São empregados do Anees Mirza?
– Sim e não. Estamos apenas a tentar resolver a situação. – Inclina-se para a frente e fala no tom
conciliatório de um negociador de reféns. – Minha senhora, viemos pedir-lhe que retire a queixa.
– E deixar aquelas pobres crianças continuarem a sofrer?
– Quem disse que as crianças estavam a sofrer? Oiça, não é trabalho escravo. As crianças
procuram-nos voluntariamente. E pagamos-lhes um bom salário.
– Mas é ilegal empregar crianças com menos de catorze anos.
– Esqueça a lei e olhe para a realidade. Se estas crianças não trabalharem para nós, trabalharão
noutro lado qualquer. Se não fizerem fechaduras, farão tijolos ou tapetes ou pulseiras. Pior ainda,
andarão a roubar ou a pedir. Pelo menos nós damos-lhes uma forma honrada de ganhar a vida,
permitimos-lhes comer izzat ki roti32.
– Não vejo nada de honrado em obrigar crianças a trabalhar doze horas por dia em condições
perigosas. Elas deviam estar na escola.
– Os miúdos não querem andar na escola. Querem ganhar dinheiro para ajudar as famílias.
– Isso porque ninguém lhes deu uma oportunidade.
– E tenciona dar-lhes uma oportunidade, adotá-los a todos?
– A minha amiga Lauren fá-lo-á. Ela gere uma instituição de caridade chamada Fundação Asha.
– Volto a repetir, peço-lhe de mãos juntas, reconsidere a sua decisão, por favor. Escolheu a
pessoa errada com quem se meter. O Anees bhai é um homem razoável, mas também pode ser
bastante vingativo.
– Está a ameaçar-me?
– Não, não. Não ameaçamos cidadãs decentes como a senhora. Considere-o um conselho de
amigo. Muito bem, vamos andando.
O homem mais baixo levanta-se, com os lábios grossos entreabertos num sorriso desagradável. O
careca continua sentado, relutante em partir.
– Vamos, Joginder – diz o outro. – Não devemos abusar da hospitalidade da nossa anfitriã.
Joginder ergue-se do sofá. Levanta-se e flete os bíceps, como se estivesse a fazer uma
demonstração de musculação. Depois, passa a mão pela cabeça calva e lança-me um olhar
maldoso. Cerro as mãos em punhos enquanto vejo os dois homens saírem. Juntos, formam uma
equipa perfeita de arruaceiros determinados, o cérebro e o músculo.
Apercebo-me de que tenho o corpo todo a tremer, mas não sei se é de raiva ou de medo. Talvez
uma combinação de ambas as coisas. Neste momento, é difícil pensar noutra coisa que não seja o
sabor amargo de bílis na minha garganta.
A mamã e Neha saem de trás da cortina de contas e rodeiam-me. Parece que estiveram a ouvir
toda a conversa. A minha mãe já está histérica.
– Beti, filha, vai imediatamente retirar a queixa. Caso contrário outra calamidade se abaterá
sobre a nossa família – preocupa-se, com a premonição instintiva de uma mãe.
– Porque tens sempre de te comportar como a Rani de Jhansi33, didi? – pergunta Neha, com a voz
repleta de insinuações. – Sabes que tenho de ir a Bombaim para participar no concurso. Nada é
mais importante para o futuro da nossa família. Mesmo assim, tens de te meter nos assuntos dos
outros.
– Como podes ser tão egoísta, Neha?! – riposto, furiosa. – Não te preocupas minimamente com
aquelas trinta crianças que trabalham como escravas?
– Não – insiste ela. – É trabalho para a polícia, não para raparigas respeitáveis como nós.
– A Neha tem toda a razão, beti – intervém a minha mãe. – Faz o que for preciso, mas não quero
aqueles goondas, aqueles rufias, outra vez na nossa casa.
– Não adianta falar com vocês as duas. – Ergo as mãos para o céu e saio intempestivamente de
casa.
Sempre senti um ódio patológico e visceral por arruaceiros, por pessoas que usam o seu poder,
autoridade ou tamanho para se meterem com os que são mais fracos ou mais pequenos. A maioria
dessas pessoas pensam que são fortes, mas na verdade são medrosos doentios e sem coragem, que
recuarão se forem enfrentados. Aprendi esta lição importante bem cedo na minha vida.
Houve uma altura em que andava a ser intimidada por um grupo de colegas em Santa Teresa.
Intitulavam-se Spice Girls, embora se chamassem Amrita, Brinda e Chavi, e a única música de que
fossem capazes fosse a da crueldade e do insulto. Eram as minhas némesis, as minhas opressoras.
Eram maiores do que eu em tamanho, mas muito mais fracas em intelecto. Intimidaram-me durante
todo o quinto ano e nos primeiros seis meses do sexto ano. O meu único crime era ser
invariavelmente a melhor aluna da turma e ser independente, ao contrário das outras raparigas, que
tinham todas os seus círculos e cliques. Atormentavam-me e provocavam-me incessantemente, nos
corredores, no recreio, nos intervalos. Ser ridicularizada tornara-se parte da minha vida diária, o
que me fazia sentir tão pequena quanto era humanamente possível. Roubavam-me os livros,
riscavam-me os cadernos. Puxavam-me a cadeira quando eu me ia sentar e fechavam-me as portas
na cara. Uma vez, fui trancada dentro da casa de banho; noutra ocasião, quase me pegaram fogo ao
cabelo.
Toda a situação fazia com que me odiasse a mim própria, dava-me uma mentalidade de vítima.
Comecei a pensar na automutilação, todos os fins de semana planeava o meu suicídio e fantasiava
sobre a minha morte. Até que, um dia, decidi acabar com tudo. Estava determinada. Ia matar-me,
mas antes mataria as minhas torturadoras.
Nesse dia, fui para a escola com uma faca de cozinha na mochila. Na hora de almoço, dirigi-me a
uma sala de aula vazia no terceiro piso, onde sabia que as Spice Girls me encurralariam. E, tal
como eu previra, elas seguiram-me, entraram na sala e começaram a chamar-me nomes. Ouvi
silenciosamente o ataque verbal delas, durante um minuto, e depois tirei a faca do bolso da saia.
– Chega, suas cabras – rosnei, mostrando os dentes, revirando os olhos e tentando falar de forma
tão rouca e desumana como Linda Blair em O Exorcista. – Mais uma palavra, e corto-vos as
línguas. – Depois, como uma pantera a saltar sobre a presa, apanhei Amrita, a líder do gangue, pela
garganta, e apertei com força, quase a sufocando. As outras duas raparigas sustiveram a respiração
quando, lenta e deliberadamente, comecei a cortar uma madeixa do cabelo dela com a faca que
tinha na mão livre, impelida por alguma força atávica enterrada dentro de mim. Nenhuma delas
soltou um pio. O único som que eu ouvia era a adrenalina a correr nas minhas veias e o sangue a
cantar nos meus músculos, como a vibração estimulante da batalha. Foi tão excitante quanto
aterrorizador. Nesse momento, a campainha da escola tocou, anunciando o fim da hora de almoço.
Foi como se um feitiço se quebrasse. As três raparigas gritaram em uníssono e saíram a correr da
sala como se esta estivesse a arder, deixando-me sozinha, com a faca numa mão e uma madeixa de
cabelo na outra. Eu sabia que elas correriam ao encontro da irmã Agnes. Esperei que a autoritária
reitora entrasse a qualquer minuto para anunciar que me ia suspender da escola. Tencionava sorrir
de forma trocista e depois cravar a faca na barriga, num haraquiri, um suicídio violento na
tranquila Nainital.
Esperei durante muito tempo, mas não apareceu ninguém, nem a reitora, nem nenhum professor.
Lentamente, escondi a faca no bolso da saia e regressei à sala, onde a aula de História estava
prestes a começar. As Spice Girls encolheram-se nos seus lugares assim que eu entrei na sala e
fingiram olhar para outro lado. Descobri mais tarde que não apresentaram queixa contra mim.
Puseram-me a alcunha de «Psico», mas nunca mais me chatearam depois disso.
O encontro com os homens de Anees Mirza trouxe ao de cima essa memória há muito esquecida e
gerou as mesmas emoções. Ainda estou furiosa quando encontro Karan no piso térreo.
– Vi dois tipos de ar duvidoso a perguntarem onde era o teu apartamento – diz ele. – Está tudo
bem?
– Não, não está – respondo, e conto-lhe o que se passou com a fábrica ilegal.
– Como se atrevem a ameaçar-te?! Como se atrevem?! – indigna-se Karan, com o rosto distorcido
pela fúria. – Se voltarem a pôr os pés na colónia, avisa-me. Eu trato desses filhos da mãe.
– Não estou muito preocupada comigo. Mas tenho medo de que comecem a importunar a Neha.
– Ouve, amanhã vou arranjar-te um botão de pânico.
– O que é isso?
– É um aparelho eletrónico que, quando ativado, envia um sinal que alerta outra pessoa para uma
situação de emergência. Neste caso, o sinal virá para mim e eu irei imediatamente em teu
salvamento, como o Super-Homem.
Quanto mais o oiço, mais agradeço a Durga Ma por me ter dado um vizinho tão maravilhoso. Não
há nada mais tranquilizador do que um amigo que simplesmente se recusa a deixar-se abalar, com
quem podemos sempre contar, que está sempre presente quando precisamos dele.
– Comes alguma coisa especial que te deixe assim tão corajoso? – provoco-o.
– Sim, sim. – Ele sorri. – O truque é consumir muita coragem líquida.
– E que bebida é essa?
– Apenas outro nome para álcool!

Passa uma semana e não recebo mais visitas do esquadrão dos rufias. Gradualmente, o incidente
começa a dissipar-se na minha mente e leva consigo as insónias. De qualquer maneira, com o botão
de pânico de Karan dentro da mala, sinto-me muito mais segura.
Na terça-feira, 3 de fevereiro, é dia de inventário e, como de costume, o trabalho prolonga-se
muito além da hora de fecho. Só consigo sair da loja às dez e um quarto da noite. Assim que saio da
estação de metropolitano de Rithala, um jovem vendedor ambulante começa a seguir-me.
– Tenho uma coisa perfeita para si – diz, mostrando uma faca de cozinha com cabo de madeira,
com o logótipo de uma empresa chamada KK Thermoware. Olho bem para ele. Veste calças
rasgadas e uma camisola imunda e esfarrapada, vários números acima do seu, e não parece ter mais
de dez anos. Tem a aparência débil e anémica de um doente com febre. Ainda por cima, está
ranhoso e limpa constantemente o nariz à manga. Contudo, isso não o impede de começar a cantar
um verso em hindi, a enaltecer as virtudes da sua faca:

Ela corta e trincha e pica e fatia,


a lâmina de aço inoxidável é uma categoria.
Para um marido que queira agradar a Maria,
Uma faca KK será motivo de alegria!

– Não pareces estar muito bem – digo-lhe. – Porque não vais para casa?
– Não posso ir para casa sem vender as facas todas. Já só falta uma. Compre-a. Só cem rupias.
– Não preciso de uma faca. Tenho muitas em casa – digo, e dirijo-me a Rammurti Passi Marg.
Ele continua a importunar-me.
– Está bem, por ser para si, faço um desconto. Cinquenta rupias.
– Não.
– E se for vinte?
– Continuo a não estar interessada.
– Muito bem, última oportunidade. Dez rupias.
– Já te disse que não quero uma faca.
– Didi, não como nada desde esta tarde. Vendo-lha por apenas cinco rupias. Não encontrará
melhor negócio em toda a cidade de Deli. Por favor, compre-a.
É impossível resistir àquele rosto suplicante. Pego na faca e dou-lhe uma nota de dez rupias.
– Fica com o troco. E agora vai descansar.
Ele quase me arranca a nota da mão, e desaparece nas sombras.
Enfio a faca na mala e acelero o passo ao aproximar-me do Parque Swarn Jayanti, mais
conhecido como Parque Japonês, um imenso pulmão verde com jardins bem tratados, lagos com
pequenos barcos, fontes e trilhos para correr. Embora, durante o dia, seja um paraíso para
entusiastas do exercício e famílias, à noite é uma zona bastante insegura. O ano passado, uma
mulher foi assassinada perto do portão número 1, e, já este ano, um conhecido criminoso foi
abatido a tiro dentro do parque, num confronto com a polícia.
Acabo de atravessar o portão número 2 do parque quando, de súbito, três jovens saltam de cima
do muro. Com as camisas abertas e cabelo comprido, parecem aqueles jovens rebeldes e
desempregados que se encontram por todo o país, a rondar as lojas de chai, a assediar as raparigas,
a assobiar estridentemente nas cadeiras dos cinemas. Em Nainital, tínhamos um nome para eles –
chavanni chaap, «só valem um quarto de rupia». Porém, os danos que são capazes de causar a
pessoas e bens são consideravelmente superiores. O que me deixa ainda mais apreensiva é o facto
de a zona onde me encontro estar mal iluminada e deserta. Não há outros pedestres à vista. Enfio
imediatamente a mão na mala, por reflexo condicionado, e fecho os dedos sobre o botão de pânico.
Estou bastante certa de que Karan está fora do alcance do aparelho, mas ativo-o de qualquer
maneira.
A minha apreensão revela-se justificada quando os três jovens começam a seguir-me. Acelero o
passo e eles fazem o mesmo. Com meia dúzia de passos longos e determinados, estão junto de mim
e rodeiam-me.
– Jaaneman34, porque estás com tanta pressa? Olha bem para nós – diz o rufia que está atrás de
mim, e toca-me no ombro. Parece ser o líder do grupo, com olhos cortantes e cruéis e um bigode
fino.
A minha resposta é tirar o spray de gás pimenta da mala e rodar sobre mim própria.
– Mais um passo e cego-vos a todos – digo entre dentes, com o spray ao nível dos olhos deles.
O rufia, sobressaltado, recua um passo, mas o seu companheiro à minha direita estica os punhos
num movimento rápido. Sinto uma pancada no antebraço e o spray escorrega-me da mão como um
sabonete molhado.
– Ha! – O líder solta uma gargalhada. – Trazes mais alguma arma? Gostávamos de a ver. Vamos,
passa para cá a mala.
As expressões sanguinárias nos seus rostos dizem-me que querem mais do que apenas a minha
mala. É a primeira vez na vida que me sinto fisicamente, mortalmente, ameaçada. Falta-me o ar. Um
nó gelado de medo forma-se-me na boca do estômago. É então que me lembro da faca que acabei de
comprar.
A mala, que seguro com a mão esquerda, já está aberta. Consigo ver a faca, a lâmina de aço a
brilhar sob a luz amarela do candeeiro de rua. Tiro-a rapidamente com a mão direita e atiro ao
mesmo tempo a mala para o chão.
– Para trás! – grito, girando sobre mim própria e cortando o ar com a faca. – Corto o primeiro
filho da mãe que tentar aproximar-se.
Fico preocupada quando os rufias não se mostram intimidados. Recuam alguns passos, mas
continuam a olhar para mim com ar de desdém divertido.
– Se não me deixarem em paz, corto-vos a todos – ameaço de novo, apertando mais o cabo da
faca.
– Achas que nos metes medo com essa faquinha? – provoca-me o líder. – Então tens de ver isto. –
Tira uma pistola prateada da parte de trás das calças e aponta-a ao meu rosto.
– Larga a faca – rosna o bandido à minha direita.
É muito desmoralizante ser confrontada com uma arma carregada. Obedeço. A faca cai no chão
com um tinido que lembra moedas a baterem umas nas outras dentro de um bolso. O jovem à minha
direita apanha-a cuidadosamente, segurando-a pela ponta, como um investigador forense a apanhar
a arma do homicídio no local de um crime.
– É bem afiada – comenta, antes de a atirar para dentro da minha mala.
– Vamos entrar no parque, querida. – O líder sorri de forma maliciosa. Recuso a mover-me. Sei
que, assim que entrar no parque escuro, algo muito mau me acontecerá.
Olho para os rostos dos meus algozes com os olhos semicerrados, tentando discernir feições,
cicatrizes, tatuagens, quaisquer características identificativas que possa transmitir à polícia quando
me perguntarem. Subitamente, ocorre-me que posso nunca ter oportunidade de falar com a polícia.
Eles vão violar-me e depois matar-me. Enquanto esta certeza agonizante me invade, sinto-me
esmagada por uma tristeza quase insuportável. O que acontecerá a Neha e à minha mãe depois de eu
morrer? Como conseguirão viver, sozinhas?
O bandido inclina-se para a frente e encosta-me a arma à cara, deixando-me um bindi no meio da
testa.
– Não ouviste o que eu disse? És surda?
– Por favor, por favor, deixem-me ir embora. – Solto um som que parece um gemido e sinto o
coração quase a parar.
– Como é que podemos fazer isso? És tão bonita – diz ele, e o tom duro desaparece. Olha para os
outros dois. – O que me dizem? Está na hora da diversão. – Todos se riem. É esta satisfação
maldosa que me deixa agoniada, que me enche de um ódio puro e genuíno. Um polícia esbofeteou-
me, outra enfiou-me a cabeça numa sanita e, agora, estes rufias planeiam violar-me. O que sou? Um
animal, para levar pontapés? Um brinquedo para destruir? Só porque, por acaso, nasci mulher?
Nesse instante, algo se parte dentro de mim, como um elástico demasiado esticado. Não me
interessa se vou ser alvejada e cortada, mas não vou aceitar isto sem lutar. Repleta da mesma raiva
primitiva com que enfrentei as Spice Girls, levanto a perna direita e dou um pontapé com todas as
minhas forças entre as pernas do líder. Ele cai por terra como uma árvore cortada, dobrado com
dores. A memória dessa tarde na sala de aula deserta invade-me o cérebro e começo a atacar os
outros dois, com socos, pontapés, com as unhas. Arde dentro de mim um fogo escaldante, que me
consome. Odeio estes filhos da mãe, odeio-os mais do que qualquer outra coisa neste mundo. O
calor sobe-me às faces e o meu coração bate como um tambor. Começo a ver tudo vermelho e fico
cega. Tudo em mim quer lutar, ferir, simplesmente matar, matar, matar…
O meu contra-ataque inesperado resulta durante algum tempo, mas a força dos números está
contra mim. Antes que eu consiga desferir um golpe decisivo, o líder dos bandidos volta à ação.
Pelo canto do olho, vejo-o levantar a cabeça. Pega na arma pelo cano e bate-me com ela. Sinto uma
dor no estômago, tropeço e caio. Outro bandido dá-me um pontapé nas costas.
Poucos minutos depois, já me arrastaram para o meio da vegetação do Parque Japonês. O líder
prende-me ao chão e tira uma faca de ponta e mola cintilante do bolso das calças. Abre-a e revela
uma lâmina assustadora de vinte centímetros.
– Se quiseres assustar alguém, não uses uma faca de cozinha. Usa uma faca Rampuri, como a
minha. – Sorri e faz deslizar a faca sobre o meu corpo até parar no pescoço. Sinto na pele o calor
do seu hálito nauseabundo.
Debato-me contra o meu captor, tento libertar-me, mas ele encosta o dedo aos lábios.
– Cala-te. – A sua voz rasteja sobre mim e entra-me no ouvido. – Senão, tenho de te matar.
Sem qualquer emoção nos olhos mortos, faz deslizar a ponta da faca sobre a minha face,
pressionando a lâmina de aço contra a pele. Um pouco mais de força e rasgará a pele,
desfigurando-me para sempre. Sinto todo o corpo quente, como se estivesse a arder. O fogo
percorre-me as veias e faz-me tremer com a antecipação da morte. Só quero que isto acabe e rezo a
Deus para que me deixe morrer rapidamente, de preferência pelo revólver. Uma bala na cabeça e
pronto. Não quero que ele me corte, pedacinho a pedacinho, que golpeie e golpeie com a sua faca
até eu ser uma massa trémula de sangue e ossos, um monte patético de músculos em espasmos e
membros em convulsões. Não me parece que seja capaz de suportar tanta dor.
– Larguem-na! – Uma voz ecoa subitamente na escuridão. É um barítono ribombante que soa
como um trovão no silêncio do parque. Os rufias olham em volta e depois uns para os outros,
completamente desorientados. O líder afasta a faca e agacha-se, como um cão, enquanto tenta
identificar o intruso.
– Polícia! – grita novamente a voz, de uma forma que faz lembrar as instruções que os polícias
dão pelos altifalantes durante uma rusga. Instantaneamente, os meus captores fogem. Dispersam-se e
correm como galinhas sem cabeça pelo Parque Japonês, desaparecendo na escuridão.
Pouco depois, uma figura surge entre as sombras. Espero ver um inspetor da polícia, mas afinal é
Karan. Nunca, em toda a minha vida, me senti tão aliviada como naquele momento.
Karan corre para mim e ajuda-me a levantar. Aperto-o com força, ainda a tremer de medo. Ele
sussurra o meu nome e eu sussurro o dele. Aperto-o mais contra mim, sentindo o seu calor, com os
seios esmagados contra o peito dele. Presa nessa posição, sinto uma flor nova e estranha a
desabrochar no meu coração, enchendo-me de uma força sensual. Quase involuntariamente, começo
a beijá-lo. Começo pelo queixo, depois passo para as faces e, por fim, para os lábios. Estou
desesperada, grata e confusa, apenas vagamente consciente do que estou a fazer, e tento avidamente
encher o vazio da minha vida com o seu cheiro, o seu sabor, o seu sopro de vida.
Karan fica tenso e sinto-o retrair-se de forma quase impercetível – uma reação que me gela o
coração. Liberta-se suavemente de mim e aponta uma lanterna para o meu rosto, para verificar se
estou ferida.
– Precisas de ir ao médico? – pergunta, e a sua preocupação prática devolve alguma sanidade à
situação.
– Não… não – respondo, ainda com a respiração irregular. – Estou bem. Vê se encontras a minha
mala.
Ele procura nas imediações, apenas para confirmar aquilo que eu já temia. Os bandidos fugiram
com a minha Nine West.
– Tinhas muito dinheiro?
– Nem por isso. A coisa mais cara era o meu telemóvel.
– Não te preocupes. Eu trago-te um novo da Indus.
– Como… como é que me encontraste?
– Foi o sinal do botão de pânico. Não estavas em casa, por isso calculei que devias estar a vir do
trabalho. Corri para a estação o mais depressa que pude. Depois, ouvi vozes no Parque Japonês e
decidi investigar.
– Chegaste mesmo a tempo. Não sei o que podia ter acontecido se…
– Nem sequer penses mais nisso. Vamos diretamente à polícia. Aqueles desgraçados têm de ser
apanhados.
– Não. – Abano a cabeça com veemência. – Não tenho forças para enfrentar um interrogatório. E
sei que a polícia nunca os encontrará. Leva-me para casa, está bem?
– Se é isso que queres… – Ele encolhe os ombros.
– Faz-me outro favor – peço. – Não digas nada sobre o que aconteceu à minha mãe e à Neha.

– De certeza que eram homens do Anees Mirza – diz Lauren, quando lhe conto o incidente, no dia
seguinte.
– Mas não temos provas.
– É uma coincidência demasiado grande. Acho desprezível a forma como o Mirza tem tido rédea
livre durante todo este tempo.
– Há algum progresso na nossa queixa?
– Não – diz ela. – Acho que o Keemti Lal nos enganou bem enganadas. Não fez praticamente nada
para investigar aquela fábrica. As pobres crianças continuam a sofrer. Tentei falar com o
magistrado várias vezes, mas estão sempre a despachar-me. Tentei ir à polícia, mas disseram-me
para ir ao gabinete do magistrado. Não sei o que fazer. – O tom dela é desanimado.
– Eu sei o que fazer. Vamos ao gabinete do magistrado. Uma última vez.

Na manhã seguinte, acompanho Lauren ao gabinete do magistrado, antes de ir trabalhar. O local


está apinhado e somos informadas de que ele não poderá receber-nos.
– O sahib está muito ocupado. Hoje, é impossível – diz-nos o funcionário.
Mostro-me igualmente inflexível.
– Diga ao seu chefe que não saímos daqui enquanto ele não nos receber. Nem que tenhamos de
acampar à porta durante uma semana.
O bluff resulta. Uma hora depois, somos chamadas à presença do magistrado. Parece um homem
vago, uma impressão reforçada pelo seu rosto insípido, quase desprovido de feições, e pelo seu
hábito peculiar de deixar as frases a meio, como se esperasse que o interlocutor as terminasse por
si.
– Sim, a vossa queixa… – começa, e depois cala-se.
– Foi investigar a fábrica? – quer saber Lauren. – Eu até deixei provas documentais.
– Estas coisas demoram muito tempo, muito tempo. Não é possível…
– Quanto tempo devemos esperar?
– Tem de compreender que é um processo. Não podemos simplesmente…
– Mas aquelas crianças estão a sofrer todos os dias.
– Não estão a sofrer. Estão a ganhar a vida. Tal como vocês. Tal como eu. Devemos mesmo
impedi-las de?…
– Empregar crianças em indústrias perigosas é proibido, não é?
– O que é perigoso? O ar que respiramos nesta cidade também é perigoso. Significa isso que?…
– Então devemos simplesmente deixar aquelas crianças à mercê do Anees Mirza?
– O Anees Mirza não é um homem mau, per se. Ele é…
É como ter uma conversa com uma parede. Lauren está a ferver quando saímos do gabinete do
burocrata.
– Já percebi tudo. O Keemti Lal aceitou um pequeno suborno meu. Este homem aceitou um
suborno muito maior do Anees Mirza.
Não é difícil concordar com ela. O fedor da corrupção paira sobre o edifício, como um manto.
Em todas as mesas se fazem negociatas. Vejo Keemti Lal sentado na sua secretária de canto, imerso
em conversa com um cavalheiro de idade, sem dúvida a extrair outro suborno. Evito
deliberadamente o contacto visual com ele. É então que vejo um cartaz preso ao quadro de avisos à
saída do gabinete. É sobre a Lei do Direito à Informação.
– Olha – chamo Lauren. – Ainda nos resta uma opção. Vamos usar a LDI.
– Como é que isso pode ajudar?
– «Ao abrigo da Lei do Direito à Informação, as autoridades públicas têm de dar informações
sobre qualquer assunto escolhido pelo requerente, num máximo de trinta dias» – leio no cartaz. –
Vamos fazer um pedido ao magistrado, ao abrigo desta lei, para que nos informe sobre o que
aconteceu à nossa queixa. Pelo menos fará alguma pressão sobre ele.
Lauren está cética.
– Duvido que consigamos levar o magistrado a agir com um pedido escrito.
– Não perdemos nada em tentar. E só custa vinte e cinco rupias.
Tiro um impresso da LDI de cima do balcão e preencho-o, pedindo um relatório do progresso da
nossa queixa e acrescentando, pelo sim, pelo não, como Anees Mirza tentou intimidar-me com os
seus rufias. Depois, despeço-me de Lauren e apanho o metropolitano para Connaught Place.

Hoje é o último dia de Neelam. Vai casar-se para a semana. Imediatamente depois do casamento,
parte para a Suécia. Parece mais entusiasmada com a sua primeira viagem ao estrangeiro do que
com o seu primeiro casamento.
– E tu, Sapna? – pergunta-me. – Quando pensas casar-te?
– Sabes o que se costuma dizer sobre o casamento: acontece quando tem de acontecer.
– Mas já encontraste o homem certo?
Não respondo, mas a pergunta traz-me memórias daquela noite em que beijei Karan. O sabor dele
ainda permanece nos meus lábios, o cheiro dele ainda paira no ar à minha volta. Porém, existe
agora uma distância embaraçosa entre nós, como se eu tivesse cruzado alguma fronteira invisível,
uma lakshman rekha35. Sinto-me magoada, quase traída pela frieza dele nessa noite. Deixou-me
confusa e perplexa. Será que já não gosta de mim? Terá uma namorada secreta? Será apenas muito
tímido? Ou estarei a julgar precipitadamente alguém que, provavelmente, estava tão atrapalhado
com a situação como eu? Há tantas perguntas a arder dentro de mim. No entanto, não me atrevo a
fazê-las, porque temo a resposta dele. Tudo o que sei é que não quero perder Karan. Preciso de
tempo para pensar e perceber tudo isto, esclarecer quais são os sentimentos de Karan em relação a
mim, sentimentos que mantém escondidos dentro de si, fechados nalguma caixa negra e escura.
Hei de encontrar a chave dessa caixa. Até lá, fecharei os meus sonhos dentro do coração, onde
ninguém os pode roubar.

Duas semanas depois, o Campeonato do Mundo de Críquete começa e tudo o mais passa para
segundo plano. Tal como o resto do país, também eu sou apanhada pela agitação em torno da vitória
da equipa indiana contra o Bangladesh no jogo de abertura.
Passa mais uma semana. Nesta altura, já quase esqueci o meu pedido LDI quando,
inesperadamente, recebo um telefonema no trabalho. É o magistrado em pessoa.
– Minha senhora, queria apenas dizer-lhe que… – começa, e depois para abruptamente.
– Que quê?
– Que hoje fizemos uma rusga na fábrica de fechaduras ilegal e…
– E o quê?
– E fechámo-la. Salvámos trinta e cinco crianças. Todas elas receberão…
– Receberão o quê, por amor de Deus?
– Reabilitação educativa no valor de vinte mil rupias cada uma, fornecidas ao abrigo da Lei de
Trabalho Infantil. Há mais alguma?…
– Nada – digo, e pouso o auscultador, sem querer acreditar na notícia. Parece bom de mais para
ser verdade. No entanto, os jornais da tarde trazem a notícia sobre o encerramento forçado da
Mirza Metal Works. Até há fotografias de Anees Mirza a ser levado pela polícia, como um
criminoso vulgar, com o rosto escondido por um lenço.
Lauren está delirante.
– Viva a LDI! – exclama. – Sempre me disseram que informação é poder. Agora vi-o com os
meus próprios olhos. Hoje, começámos a moldar o futuro de cada uma daquelas trinta e cinco
crianças.
– Sim – concordo. – Hoje, libertámos os sonhos delas.

– Porque não me disse que mudou de número de telemóvel? – queixa-se Acharya, assim que entro
no seu escritório. É quinta-feira, dia 3 de março, e fui convocada, como de costume, com apenas
uma hora de antecedência.
– O meu velho Nokia foi roubado – explico. – Agora tenho um telemóvel da Indus Mobile.
– É a minha rede. Pelo menos, não terei de pagar quando lhe ligar. Veja se dá o número novo ao
Rana. É importante que esteja sempre acessível para mim.
Uma vaga de irritação percorre-me. Estou quase capaz de lhe dizer que não é meu dono, quando o
vejo sorrir.
– Seja como for, chamei-a para lhe dar os parabéns por ter passado no terceiro teste.
– E o que foi exatamente esse teste?
– O teste da coragem. A forma como defendeu aquelas crianças, a forma como aguentou as
ameaças do Anees Mirza, o chefe da máfia, recusando-se a recuar enquanto aquela fábrica ilegal
não fosse fechada, só pode ser descrita como corajosa.
Levanto-me de um salto.
– Chega. Não vou participar mais nos seus testes.
Ele ergue os olhos, surpreendido.
– Porquê? O que se passa?
– Negou que estivesse a vigiar-me, mas é absolutamente impossível que pudesse saber do meu
confronto com o Anees Mirza. Nem sequer contei a ninguém na loja.
– Mas apresentou um pedido ao abrigo da Lei do Direito à Informação, e fiquei a saber da
história aqui – diz, erguendo uma revista.
Tiro-lha das mãos. É o exemplar de fevereiro de uma publicação chamada Notícias LDI,
publicada por uma ONG chamada Índia Ressurgente, e na página 32 há um artigo a explicar como a
minha intervenção atempada com recurso à LDI ajudou a salvar trinta e cinco crianças de um
trabalho perigoso. É enervante como o industrial consegue obter todas as informaçõezinhas
relativas a mim.
– Um líder, para traçar um plano de ação e o seguir até ao fim, tem de mostrar muita coragem –
continua Acharya. – E não me estou a referir à coragem física de que um soldado precisa para o
combate, mas à coragem moral de fazer sempre a coisa certa, independentemente das
consequências. Lembre-se: a coragem não é a ausência de medo; é a capacidade de agir apesar do
medo e de uma oposição esmagadora.
– Continuo sem perceber como é que a coragem se aplica a uma empresa.
– É simples. – Acharya sorri. – O medo mais comum de um diretor-geral é o medo de falhar. Um
bom líder é aquele que aprendeu a conquistar esse medo. Ele ou ela corre riscos calculados com
ousadia, sabendo que o seu maior medo não é agir de forma errada, mas sim não agir. Esse é o
medo do arrependimento, do arrependimento de não ter tentado.
Aceno com a cabeça. Faz-me lembrar uma citação de Kirkegaard que li em tempos.
– Ousar é perder momentaneamente o equilíbrio. Não ousar é perdermo-nos a nós próprios.
– Nunca devemos permitir que o medo nos limite. Enfrentar um desafio com coragem é o
verdadeiro teste de liderança. Liderança sem coragem é como um carro de corridas sem acelerador.
O motor pode trabalhar durante muito tempo, mas nunca cruzará a meta. – Baixa um pouco a voz e
oiço uma nota de amargura no seu tom. – Claro, às vezes, mesmo com o melhor carro de corridas, é
impossível cruzar a meta, se tivermos um sabotador no nosso seio.
Aproveito a alusão mordaz.
– Por falar nisso, tem mais notícias do traidor na sua empresa?
– Não – suspira ele. – Mas ainda a semana passada perdemos mais um concurso para o Premier
Group, um concurso de fornecimento de tecnologia para o bilhete de identidade nacional.
– Então o traidor é obviamente alguém que está a fornecer informação ao Premier Group.
– Correto. Sempre foi assim que o meu irmão, Ajay Krishna Acharya, agiu. Subterfúgio,
duplicidade e trapaça são métodos que lhe saem naturalmente.
– Espero que encontre o traidor, quem quer que ele seja – compadeço-me.
– Hei de encontrar – diz ele, em tom grave.
Olho para o relógio. São quase duas da tarde.
– Tenho de ir andando. – Levanto-me. – Devo também avisá-lo de que não estarei por cá durante
o resto do mês.
Ele ergue os olhos.
– Vai a algum lado?
– A Bombaim. A minha irmã, Neha, foi selecionada para a audição final do programa Popstar N.º
1 e eu vou acompanhá-la. Já pedi duas semanas de férias.
– Nesse caso, boa sorte para a sua irmã. E para si também.
– Porquê para mim?
– Quem sabe? Pode haver outro teste à sua espera.

– Já pensaste numa possibilidade? – pergunta-me Karan quando lhe relato o meu último encontro
com Acharya.
– Qual?
– Que aqueles rapazes que te atacaram no Parque Japonês possam não ter sido contratados pelo
Anees Mirza.
– Então quem os mandou?
– O meu palpite é que foram contratados pelo Acharya. Só para poder dar-te o certificado de
coragem.
A sugestão é tão horrível, que fico sem palavras.
– Porque não desistes deste disparate, não deixas de falar com esse filho da mãe doentio?
Ergo determinadamente o queixo e pego-lhe na mão.
– De acordo. Se vier a descobrir que isto foi obra do Acharya, nunca mais terei nada a ver com
ele. Nunca mais.
29 «Significado». (N. da T.)

30 Bhai significa «irmão», forma por que são geralmente tratados os dons da máfia. (N. da T.)

31 Mahatma Gandhi era afetuosamente tratado por bapu, que significa «pai». (N. da T.)

32 Pão ganho por meios honestos ou através de trabalho honrado. (N. da T.)

33 Rani (rainha) de Jhansi (1835-1858) foi uma grande heroína nacionalista da primeira guerra de libertação da Índia, um símbolo de
resistência contra o domínio britânico. (N. da T.)

34 «Querida». (N. da T.)

35 Convenção ou regra severa e rigorosa que nunca deve ser infringida. Refere-se frequentemente aos limites éticos de uma ação, que,
se ultrapassados, podem levar a consequências indesejadas. (N. da T.)
QUARTO TESTE

A Cegueira da Fama

D e súbito, há um silêncio no ar. O céu enrubesce, com as tonalidades opalescentes do dia


moribundo, enquanto a bola vermelha do sol começa a afundar-se lentamente no oceano,
iluminando a silhueta dos barcos dos pescadores que baloiçam na água dourada. À distância, os
baluartes de arranha-céus e condomínios altos erguem-se num relevo nítido. O clamor incessante do
mundo silencia-se e nem o vento sopra. Existem apenas as ondas pequenas que rebentam aos meus
pés, a areia no meio dos meus dedos, os gritos agudos das gaivotas que voam em círculos por cima
de mim, e o cheiro forte do sal nas minhas narinas.
Para uma pessoa como eu, que nunca tinha molhado os pés no oceano, é uma sensação extasiante
de pura transcendência. As montanhas de Nainital evocavam em mim uma experiência espiritual,
uma sensação de permanência e intemporalidade. O oceano espumoso de Bombaim transmite um
sentimento de liberdade ilimitada, tal como a própria cidade. Deli parece um bastião de
conservadorismo, em comparação com a promiscuidade relaxada de Bombaim. Há namorados a
beijarem-se descaradamente atrás de mim, na praia de Chowpatty, indiferentes aos risinhos dos
espectadores. As raparigas, modernas e elegantes, não têm qualquer problema em mostrar ao mundo
o decote e o umbigo. Até os pedintes que rodeiam os turistas no Portão da Índia não têm a mínima
vergonha de exibir os seus passos de dança em público.
Neha e eu chegámos há menos de vinte e quatro horas e já estamos enfeitiçadas por Bombaim. As
pessoas dizem que, em Bombaim, o que interessa é o dinheiro, e, em Deli, o poder, mas isso não é
inteiramente verdade. Bombaim, em última análise, tem a ver com oportunidades, é uma cidade
agressiva, de grandes sonhos e ambição brutal, com o coração ao pé da boca. É também uma cidade
de hipérbole, onde tudo é maior, mais alto, mais rápido. Para quem vive aqui, Bombaim é como um
país independente. Porém, para o resto da Índia, é uma sereia, com o seu canto irresistivelmente
sedutor de encanto, glória e ouro.
Neha está completamente seduzida. Consegue farejar o seu destino no ar húmido de Bombaim.
Esta é a cidade que ela nasceu para governar. E o seu bilhete para o sucesso é o Popstar N.º 1, o
concurso de talentos musicais que nos trouxe até aqui.
Chegámos à estação VT na noite anterior, vindas de comboio de Deli, e fomos levadas para
Colaba, no extremo sul da cidade. Foi aí que tivemos o primeiro choque. O alojamento que os
organizadores nos forneceram fica numa escola primária degradada. As salas de aula foram
convertidas em dormitórios, e colocaram-nos num deles, com mais sete concorrentes e respetivos
acompanhantes. Neha ficou horrorizada perante a perspetiva de partilhar o quarto com uma data de
desconhecidos e ter de usar casas de banho comunitárias. Provavelmente, estava à espera de ser
instalada no Taj.
Hoje tivemos o dia livre, para passear. E vimos tudo, desde os Jardins Suspensos, ao Passeio
Marítimo, até Haji Ali. Passámos pelos bairros de lata de Dharavi e pelos arranha-céus de Nariman
Point. Viajámos nos comboios suburbanos apinhados, onde a pressão de corpos suados que nos
apertam por todos os lados é quase avassaladora. Espreitámos os chawls – os prédios que
oferecem alojamentos baratos e básicos – repletos de homens de colete, descontraidamente
debruçados nas varandas, a verem a vida nas ruas por baixo. Comemos vada pav em Prabhadevi e
bhel puri em Juhu. E agora estamos em Chowpatty, a última paragem antes de regressar a Colaba.
A mera dimensão de Bombaim é assombrosa. É mesmo a cidade máxima, onde ricos e pobres,
santos e pecadores, se acotovelam todos os dias em perseguição do mesmo sonho de sucesso.
Agora, aos habitantes da cidade, juntaram-se quarenta concorrentes novos, os candidatos ao
Popstar N.º 1, todos entre os dezasseis e os vinte e dois anos, todos atraídos pela promessa de
sucesso repentino e fama instantânea.

Nessa noite, sou apresentada pela primeira vez aos sete ocupantes do nosso dormitório.
Gaurav Karmahe é de Jharkhand, um estado famoso por causa de MS Dhoni, capitão da equipa de
críquete indiana. Gaurav é estudante no terceiro ano de Engenharia Mecânica em IIT-Kharagpur e
afirma que cantar lhe está no sangue.
– Se me ouvirem cantar, pensarão que o Mohammad Rafi reencarnou – declara.
Anita Patel é uma rapariga de óculos, estudante de Ciência, originária de Bhavnagar, em
Guzarate. O seu porta-voz é o pai, um homem de negócios astuto, com mente calculista e tendência
para lidar com números elevados.
– Quando a Anita vencer o concurso, ganhará um contrato de gravação e quarenta laques em
dinheiro – diz. – Decidi pôr os quarenta laques num fundo de rendimento fixo. Ao fim de vinte anos
receberemos, no mínimo, dois crores, mais um seguro de vida gratuito. Não é um mau investimento,
hã?
Javed Ansari, um rapaz de dezasseis anos, filho de um condutor de riquexó de Lucknow, emana
um charme juvenil e uma confiança que roça a arrogância.
– Canto desde os cinco anos. Foi o destino que me trouxe a Bombaim – diz-me. – Não me
interessa se ganho ou não, mas não vou voltar para Lucknow depois disto. Esta é a cidade onde
tenho de deixar a minha marca. E deixarei a minha marca. Nada pode impedir-me.
Koyal Yadav, de dezoito anos, é uma menina-prodígio do fim de mundo de Bihar.
– Começou a cantar com apenas dois anos. Foi por isso que lhe pusemos o nome Koyal, cuco –
diz a mãe, orgulhosa. – O pai dela também é um tocador de harmónio muito conhecido, que trabalha
com um grupo musical de Bhojpuri. O kismat36 da minha filha é muito forte. Sinto que algo grande a
espera.
Jasbeer Deol é o único sique da competição. É um adolescente robusto cujo pai tem um negócio
próspero de fabrico de cobertores de lã, em Ludhiana.
– Porque decidiu ser cantor? – pergunto-lhe. – Não teria ficado bem no negócio da família?
– Não quero dinheiro – responde ele com franqueza. – Quero reconhecimento.
– E porquê?
– Sabe, o meu pai trabalhou como um escravo durante trinta anos para ganhar o dinheiro que tem.
Mas, apesar disso, o retrato dele não apareceu no jornal nem uma vez. Eu cantei três minutos para
ganhar a audição regional e, no dia seguinte, a minha cara estava em todos os jornais locais. O que
é que isso mostra? Que é melhor ser famoso do que rico.
Segundo a lista do dormitório que nos deram, há ainda outra rapariga de dezanove anos, Mercy,
sem apelido. Descubro-a escondida atrás da cortina, com um crucifixo de prata ao pescoço. Veste
um sari de algodão barato, tem uma aparência frágil, cabelo frisado, dentes tortos e o rosto
desfigurado pela leucodermia. As manchas brancas conferem à sua pele uma palidez doentia, como
se fosse feita de cera e estivesse a derreter lentamente.
– De onde veio? – pergunto-lhe gentilmente.
– De Goa – responde ela, olhando fixamente para os pés calçados com chinelos de borracha
velhos.
– Quem veio consigo? O seu pai?
– Não tenho ninguém – responde ela, encolhendo-se dentro de si própria, como se estivesse a
tentar fazer-se mais pequena do que já é.
Antes de poder fazer-lhe mais perguntas, sou abordada por Nisar Malik, um atraente rapaz de
dezassete anos que veio de Pahalgam, na distante Caxemira.
– Didda, pode emprestar-me vinte rupias?
– Porquê? – Ergo as sobrancelhas. – Não tem dinheiro?
– Não. – Abana a cabeça. – Saí de casa há três dias apenas com cem rupias no bolso. Agora nem
sequer tenho uma moeda de vinte e cinco paise37. Não se preocupe, pago-lhe com juros quando
ganhar.
Com relutância, dou-lhe uma nota de vinte rupias.
– O que o fez participar no concurso?
– Apenas uma coisa: o desejo de fama – diz ele, com uma sinceridade melancólica. – Não quero
viver uma vida de anonimato, didda. Prefiro morrer amanhã famoso a viver cem anos na
obscuridade.
Ouvir as convicções penosas destes concorrentes, a forma como se vangloriam sem ironia, faz-
me pensar. O que leva as pessoas a estarem tão desesperadas por fama? Porquê esta busca perpétua
de reconhecimento, esta obsessão em dar nas vistas, em se destacarem da multidão? Penso que é
uma espécie de doença, um vírus do sangue, que a televisão faz circular. E a infeção disseminou-se
muito, de Caxemira a Kanyakumari. A fama já não é vista como uma consequência do talento, mas
como um objetivo em si mesmo. Toda a gente quer ser uma celebridade instantânea. E aparecer na
televisão é a forma mais rápida de o conseguir. É por isso que temos concorrentes dispostos a fazer
praticamente tudo para entrar num reality show. Comem baratas, tratam mal os pais, fazem sexo,
casam-se, anunciam divórcios e até dão à luz perante uma câmara. Tudo o que é possível fazer na
vida real está a ser embalado e apresentado como reality show. E forçam-se constantemente os
limites. Já temos um programa baseado em regressão a vidas passadas, como se esta vida não fosse
suficientemente excitante.
Acho os reality shows tão morbidamente fascinantes como um acidente de viação – queremos
desviar os olhos, mas não conseguimos deixar de ser apanhados pelo que está a acontecer.
Neha não tem esses pensamentos. Está ocupada a avaliar a concorrência.
– Se os restantes forem como estes idiotas – diz, olhando em volta com desdém –, ganho à
vontade.
Admiro a sua autoconfiança inabalável. Porém, também tenho medo de como lidará com o
fracasso. Tal como acontece noutros concursos de televisão, o vencedor do Popstar N.º 1 será, no
fim, escolhido pela votação do público. E, como os nossos políticos já perceberam uma e outra
vez, não há nada mais volúvel do que um eleitor.

O programa começa a sério no dia seguinte. Somos levados para o Estúdio Mehboob em Bandra,
onde os quarenta concorrentes são formalmente apresentados uns aos outros.
O cenário é retro-chique, e pretende parecer uma discoteca elegante, do tipo que era bastante
comum em filmes hindis nos anos 70. Pintado com vários tons escuros de vermelho e castanho,
azuis e roxos profundos, tem um palco preto circular e giratório a imitar um disco de vinil da era
das 78 rpm. A atmosfera sombria é acentuada pela iluminação dramática de vermelhos e roxos
difusos que banham o palco num brilho sonhador. Estão mais de duzentas pessoas no público, entre
espectadores anónimos e amigos e familiares dos concorrentes.
O produtor/realizador é um hipster alto e magricela que parece um músico de reggae, com a sua
barbicha e dreadlocks. É um sírio cristão, de Kerala, chamado Mathew George. Vestido com calças
de ganga desbotadas e ténis, explica aos concorrentes as regras básicas, como um treinador que
prepara uma equipa nova.
– A primeira coisa que têm de saber é que o Popstar N.º 1 não é um concurso de talentos
musicais. É um programa de entretenimento, um cruzamento entre o Big Brother e o Ídolos.
Portanto, não quero apenas as vossas canções, quero também as vossas vidas, com todas as
complicações, problemas, incertezas, o bonito e o feio. Quero as vossas lágrimas, quero os vossos
medos. Quero discussões, escândalos, arrufos entre namorados. Quero os vossos segredos mais
sombrios, a roupa suja. Quero que tudo o que têm dentro de vocês brote ruidosamente, que
anunciem ao mundo por que motivo merecem ser a Popstar N.º 1, e que nada vos impedirá de lá
chegar. Lembrem-se o mundo só venera o número um. Não há espaço para segundos lugares. A
História é dura com quem perde. Portanto, ergam-se, lutem e conquistem a vossa coroa.
Faz uma pausa e olha para os concorrentes reunidos nos bastidores. Alguns roem as unhas ou
batem o pé, nervosos.
– Perceberam?
Não sei quanto aos outros, mas Neha de certeza que percebeu.
– É agora, é agora, didi. – Aperta-me a mão. – Sinto nos ossos que vou ser a número um.
– Os outros trinta e nove estão a pensar o mesmo – suspiro.
Pouco depois, os jurados entram. São os quatro «Gurus Musicais». Bashir Ahmad, um homem de
constituição forte, é o diretor musical du jour em Bollywood, depois de ter dado música a vários
filmes de sucesso, integrado no duo Bashir-Omar. Tem também um talento lamentável para a
autopromoção. Tohit Kalra é um conhecido escritor de canções e cantor de ghazal38, que também já
tentou representar, sem sucesso. Embora tenha agora o aspeto confortável da meia-idade, ainda
possui um certo charme dissoluto, realçado pelo cabelo comprido e rebelde. Udita Sapru preenche
a quota de glam. É uma cantora atraente, com voz quente, que foi, ela própria, descoberta há três
anos num concurso de talentos chamado Canção da Vida. E, por último, Vinayak Raoji Wagh, com
os óculos escuros que são a sua imagem de marca. Raoji tem cinquenta e muitos anos e é uma
presença regular em concursos de talentos musicais. É considerado uma lenda viva e é o único
músico, compositor e cantor cego de Bollywood. O rosto picado das bexigas deve-se a uma doença
de infância, mas a cicatriz dramática que o desfigura por baixo do olho esquerdo é legado de um
incidente macabro que lhe roubou a visão. Uma fã tresloucada atacou-o com uma faca, num
concerto, há cerca de seis anos, e quase lhe arrancou os olhos. De seguida, suicidou-se, cortando o
pescoço com a mesma faca. Raoji perdeu a visão mas não o espírito. Continuou a criar bandas
sonoras para filmes e está prestes a entrar para o Livro de Recordes do Guinness como o
compositor cego mais prolífico do mundo.
Depois de os gurus se terem sentado nos seus lugares, no pódio do júri, Mathew George explica o
formato do concurso.
– Os quarenta concorrentes serão divididos em grupos de dez, e cada grupo terá um dos gurus
musicais como mentor. Nas próximas duas semanas faremos as rondas de eliminação direta, para
selecionar os vinte melhores concorrentes. Depois, começarão as votações em direto na televisão,
permitindo ao público escolher, até ao final do ano, que cantor será coroado Popstar N.º 1.
Estala os dedos e as luzes diminuem. Um foco incide no palco. Ao mesmo tempo, a orquestra
lança-se no tema de abertura do programa.
– Agora, quero que cada um de vocês se dirija à frente do palco e cante uma canção à vossa
escolha, com base na qual os jurados formarão as quatro equipas.
É disto que tenho estado à espera, de uma oportunidade de ver se estes cabeças-no-ar pomposos
têm alguma habilidade para cantar. Recosto-me, como o resto do público, enquanto, um a um, os
concorrentes se dirigem ao palco por uma ordem predeterminada.
Há algo de transformador em se estar num palco em frente de uma multidão. Maravilhada, vejo a
curiosa alquimia pela qual estes zés-ninguém de poeirentas cidadezinhas perdidas se transfiguram
em vocalistas vaidosos, num piscar de olhos. Assim que param debaixo do holofote e seguram o
microfone, toda a sua linguagem corporal muda. Já não são engenheiros e agricultores, estudantes e
vendedoras; erguem-se acima da sua vulgaridade, para se tornarem artistas em palco,
instantaneamente dotados de uma aura de estrelato pelas câmaras de televisão.
Ao longo das três horas seguintes, oiço trinta e sete dos concorrentes cantarem todo o tipo de
canções, acompanhados por uma orquestra completa. As minhas impressões são, decididamente,
mistas. Alguns são obviamente cantores com formação, capazes de levar uma canção até ao fim. E
há outros sem o mínimo talento musical. Cantam de forma tão inexpressiva, que me pergunto se
terão pagado para chegar até aqui.
Depois, chega a vez de Neha. Canta o tema do filme Cidade de Pó. Os jurados – Raoji em
particular – acenam com a cabeça, impressionados tanto com a sua capacidade vocal, como com a
sua presença em palco. É, sem dúvida, a melhor até agora, uma combinação rara de uma voz boa,
um rosto bonito e uma presença imponente.
A seguir a Neha é Javed. O filho do condutor de riquexós surpreende toda a gente com o seu
desempenho impecável. Escolhe um hino popular de Amor em Banguecoque, e quase
imediatamente, o público grita a sua aprovação e os jurados batem com os pés ao ritmo
sincronizado da sua rica voz de barítono.
Neha irrita-se por se ver forçada a admitir a existência de um concorrente com uma «qualidade
de estrela» superior à dela.
O público ainda está a gritar «Javed! Javed!» quando, erguendo-se sobre o barulho, se ouve o fio
delicado de uma melodia sublime. É a última concorrente, a jovem órfã Mercy. Embora o seu corpo
seja frágil e esguio, o som que lhe sai dos lábios é como uma torrente de água a fluir sobre as areias
ressequidas do deserto. A sua voz ergue-se como uma oração, tocando nas partes mais remotas da
minha alma e transportando-me para um lugar celestial de profunda calma e felicidade. A sala
silencia-se. É o silêncio extasiado de uma multidão que sabe que se lhe deparou algo maior do que
ela própria, uma experiência que é especial, quase mágica.
Vejo que os gurus estão hipnotizados pelo timbre único da voz dela, mas George abana a cabeça
lentamente, em negação. Mercy não tem a mais pequena hipótese de ser coroada Popstar N.º 1.
Pode ter a voz de uma deusa, mas tem a personalidade de uma batata.
Depois de ouvirem todos os concorrentes, os jurados reúnem-se. Os concorrentes estão na
expectativa, como estudantes nervosos à espera dos resultados de um exame. Parece que todos
querem ficar na equipa de Bashi Ahmad ou de Raoji. São os diretores musicais que podem dar a um
cantor novo a muito desejada oportunidade no cinema.
Quando os resultados são finalmente revelados, há rostos desolados e rostos jubilosos. Javed foi
escolhido por Bashir Ahmad para fazer parte da sua equipa. Mercy fica com Udita, Nisar Malik, o
rapaz de Caxemira, fica com Rohit Kalra. E a minha irmã é acolhida sob as asas do cego Raoji.
Neha está fora de si de alegria:
– Nem acredito que vou aprender com um músico do calibre do Raoji.

No dia seguinte, o diretor musical veterano convida os dez membros da equipa para irem à sua
casa palaciana, com três pisos, em Juhu, onde tem o seu próprio estúdio particular. Raoji é um
solteirão inveterado e vive sozinho com um velho criado que parece ser também quase cego. O
estúdio de gravação é ultramoderno, com vários sintetizadores. Rapidamente tem início um ensaio
improvisado. Alguém começa a tocar harmónio, outra pessoa pega numa guitarra. Começo a sentir-
me como uma groupie numa festa de bastidores, enquanto os acordes das ragas39 enchem o ar.
Raoji ouve pacientemente e destaca Neha para fazer um louvor especial.
– Sinto a presença da deusa Saraswati40 na tua voz. Chegarás longe, minha menina.
Neha inclina-se e toca-lhe nos pés.
– Quero ser sua discípula e absorver todo o conhecimento que possui, guru-ji.
– E assim será. Mas não te esqueças do meu guru-dakshina – diz, a rir, referindo-se à tradição de
pagar ao professor depois de concluídos os estudos.
Sei que os cegos têm um sexto sentido, mas, pela maneira como Raoji fala, com a cabeça
inclinada e a olhar diretamente para Neha, por um momento parece que consegue mesmo vê-la.
Nessa noite, Mercy aborda-me, à hora de jantar.
– Diga à sua irmã que tenha cuidado com o Raoji – diz-me, enigmaticamente.
– Sabe alguma coisa que nós não saibamos? – pressiono.
Ela morde o lábio e não responde.

Depois de as equipas terem sido formadas, as eliminações começam, com o mesmo formato
estafado e previsível que já vi em inúmeros concursos de televisão. Em cada sessão, são
escolhidos quatro cantores, um de cada grupo. Têm de cantar uma canção escolhida pelo seu guru.
Depois, os outros jurados criticam o seu desempenho e o mais fraco é eliminado. É o equivalente à
morte súbita; não há segundas oportunidades para os eliminados.
Pankaj Rane, um delegado de informação médica de vinte e dois anos, de Nagpur, com pouco
talento e ainda menos personalidade, é o primeiro a ser expulso. Vai-se abaixo e começa a chorar,
inconsolável. As câmaras aproximam-se do seu rosto lavado em lágrimas. Vejo Mathew George
sorrir. É exatamente isto que ele quer.
Fico triste, por estes jovens concorrentes e pela sua ambição cega. O programa só consagrará um
vencedor. Todos os restantes serão mastigados e cuspidos, deixando para trás os destroços
queimados de esperanças vandalizadas e sonhos destruídos. Estes aspirantes chegaram com estrelas
nos olhos, mas ver-se-ão subitamente rejeitados, esquecidos e sozinhos. Mathew George tem razão.
Isto não é um concurso de talentos. É um reality show desprezível.

Dois dias depois, Raoji manda o seu carro buscar Neha para um ensaio. Decido ir também.
Chegamos a casa dele e descobrimos que somos as únicas; não convidou mais nenhum dos outros
membros do grupo.
– Porquê esta atenção especial à Neha? – pergunto gentilmente, depois de nos instalarmos no
estúdio de gravação.
– A sua irmã passará sem dificuldade as eliminações – responde ele. – Tenho de começar a
prepará-la para a segunda fase, em que todo o país votará. Se a Neha escolher as canções certas,
tem muito boas hipóteses de se tornar a Popstar N.º 1.
É exatamente o que Neha quer ouvir.
– Que canções recomenda, guru-ji? – Bate as pestanas para o músico cego, como uma miúda
desesperada por aprovação.
– Comecemos pelo clássico Kuhu Kuhu Bole Koyaliya, «O Cuco Faz Cu-Cu».
Recordo-a como uma canção muito obscura do filme Swarna Sundari, de 1958. Para minha
surpresa, Neha conhece-a. Lança-se na canção com o entusiasmo habitual, mas a sua voz falha, não
consegue atingir as notas mais altas.
Raoji bate com o punho na palma da outra mão e grita:
– Não! Não! Não!
Neha para a meio de um verso.
– O que aconteceu, guru-ji?
– Esta canção está para além das suas capacidades – diz ele sem rodeios. – É uma das canções
mais difíceis de dominar, porque os quatro versos são baseados em quatro ragas diferentes. Só uma
vocalista extremamente versátil consegue transpor as transições entre essas ragas sem a voz lhe
falhar e sem desafinar. Ainda não está nessa categoria. Mas, com bastante treino, chegará lá.
Depois de a deitar abaixo, a sua voz suaviza-se.
– Muito bem, tentemos um número mais ligeiro. Que tal a canção da Udita Sapru «It’s Raining»?
Neha ilumina-se.
– É uma das minhas preferidas – diz. Desta vez, assume o controlo desde o princípio, cantando a
melodia animada, daquelas que ficam no ouvido, e a voz dela percorre facilmente as escalas.
Raoji aplaude quando ela termina.
– Ah! Perfeito! Agora venha cá e ponha-se à minha frente. Quero vê-la.
Neha aproxima-se dele, com hesitação.
– Mas… o senhor não vê.
– Um cego não vê com os olhos, mas vê com as mãos – diz ele, e começa a passar gentilmente as
pontas dos dedos pelo rosto de Neha, como se quisesse memorizar cada curva. Um arrepio de
constrangimento percorre-me, enquanto a palma da mão dele continua a mover-se, descendo pelo
pescoço de Neha, cada vez mais para baixo, até estar quase sobre o seio dela.
Neha tem a respiração suspensa e está paralisada. Vê que estou prestes a intervir e levanta a mão
para me deter. Tenho de apertar o braço da cadeira e de cerrar os lábios com força para não
interromper aquele silêncio aterrorizador. Um momento depois, Raoji afasta a mão.
– Já a vi – declara. – É tão bela como a sua voz.
Neha pisca-me o olho, com os cantos da boca erguidos numa expressão divertida.
Mais tarde, quando o motorista de Raoji nos leva de novo para Colaba, Neha desata a rir, um riso
histérico e incontrolável.
– Foi tão patético!
– Não é motivo para risos – digo, em tom severo. – Ele estava decididamente a tentar apalpar-te.
– Não faz mal, didi. – Neha ignora os meus receios com um aceno altivo da mão. – Não vamos
fazer disto um caso de assédio sexual. O pobre cego queria apenas um pouco de contacto humano.
Tenho pena dele, a sério. Imagina, ter de tropeçar pela vida, na escuridão total, sem cores, sem
formas, sem esperança. – Estremece como se o pensamento a agoniasse. – Preferia morrer a viver
assim.
– Há qualquer coisa no Raoji que não me parece bem – insisto. – Daqui em diante, não devias
permitir que ele se aproximasse de ti.
– Pelo contrário, tenho de ficar perto dele – afirma Neha. – Não é todos os dias que temos
oportunidade de ajudar um cego. E a bênção dele não fará mal nenhum às minhas perspetivas de
vencer o concurso.
Sacudo a cabeça, perante a sua indiferença calculista, e percebo que tenho em mãos uma tarefa
duplamente difícil. Não só tenho de salvar Neha de Raoji, como tenho de salvar a minha irmã de si
própria.

O resto da semana passa num turbilhão de ensaios, atuações, mudanças de guarda-roupa e sessões
fotográficas. Os que são eliminados fingem sorrir por entre as lágrimas. Os sobreviventes
agradecem à sorte e trocam palavras de encorajamento.
Não tenho muito que fazer; sou simplesmente a claque de Neha. Com tanto tempo livre, os meus
pensamentos acabam sempre por regressar a Karan. Falamos ao telefone quase todos os dias.
– Quando voltas? – pergunta-me. – Estou a sofrer de uma deficiência aguda de vitamina S.
Sempre que oiço a voz grave e suave dele, o meu coração bate mais depressa. As memórias da
noite em que o beijei invadem-me a mente. A única poesia que escrevo, ultimamente, nasce de
momentos de emoção indizível, em que a minha caneta sangra com a agonia insuportável da
separação e a dor crua da saudade. Será uma reação a todas as canções de amor lamechas que tenho
ouvido os concorrentes a cantar? Ou estarei mesmo a apaixonar-me? Karan é divertido. É
inteligente. É deslumbrante. É o homem perfeito para mim. Porém, quanto mais me aproximo dele,
mais sinto que ele me está a esconder alguma coisa. E a minha mente traiçoeira começa a sussurrar
as suas dúvidas venenosas, causando-me um aperto súbito no estômago. Serei suficientemente boa
para ele? Lá porque passamos horas a conversar, não significa que ele esteja apaixonado por mim.
Se estivesse, não teria retribuído o meu beijo?
Para tirar estes pensamentos perturbadores da cabeça, começo a passar o tempo com Mercy. De
todos os concorrentes, é a que me intriga mais. Os seus agudos arrebatadores e graves suaves
ficaram-me gravados nos ouvidos. Contudo, mais do que a sua voz, são os seus olhos que falam
comigo. Parecem estar sempre à beira das lágrimas, como se houvesse uma perpétua fonte
borbulhante de tristeza dentro do seu coração.
Mercy é uma pessoa solitária e tenta sempre evitar companhia. Quando a vejo sentada, sozinha,
faz-me lembrar um cão maltratado encolhido a um canto.
– Porque decidiu vir a este programa? – pergunto-lhe, uma noite. – Para ser Popstar N.º 1 é
preciso mais do que a voz.
Embora ela seja boa a esconder os seus verdadeiros sentimentos, desta vez consigo atravessar as
suas defesas.
– Vim para ver o Raoji – responde, abruptamente.
Sou apanhada de surpresa.
– O Raoji? Que motivo é esse?
Pouco a pouco, ela despeja a história e fico a saber a desagradável verdade sobre Raoji. A irmã
mais velha de Mercy, Gracie Fernandez, era uma aspirante a cantora que veio de Goa para
Bombaim há oito anos. Raoji tornou-se seu mentor e começou a treiná-la. Pouco depois, forçou-a a
entrar numa relação física. Porém, assim que Gracie engravidou dele, Raoji tornou-se uma pessoa
completamente diferente. Chamou-lhe puta e recusou-se a casar com ela. Gracie suplicou-lhe que
reconsiderasse, mas ele ignorou todas as suas súplicas. A irmã de Mercy cometeu então o erro fatal
de ameaçar falar com a imprensa. Raoji ficou furioso. Deu-lhe uma tareia com o cinto e disse-lhe
que a mataria. Gracie sofreu um aborto espontâneo e ficou seis semanas internada no hospital.
Quando saiu, vinha consumida pela sede de vingança. Fora ela que atacara Raoji com uma faca, no
concerto, seis anos antes.
– A minha irmã não era louca – conclui Mercy, com lágrimas nos olhos. – Aquele homem não lhe
deixou outra opção. O mundo pensa que a Gracie se suicidou, mas na verdade foi assassinada. O
Raoji levou-a a acabar com a própria vida.
– E porque é que nada disto veio a público?
– Porque a minha irmã era uma desconhecida insignificante de Goa, e o Raoji tem dinheiro e
poder. Subornou a polícia, encobriu tudo.
– Então veio para matar o Raoji, para se vingar?
– Não. – Ela estremece e ergue o crucifixo. – Jesus é minha testemunha: sou incapaz de matar uma
mosca. A justiça e a vingança são para Deus.
– Qual é o seu plano, nesse caso?
– Não tenho plano nenhum. Quando soube que o Raoji ia ser jurado neste programa, decidi
concorrer. Queria apenas ver o homem que destruiu a vida da minha irmã. Ela era a minha guru, foi
ela que me ensinou a cantar. O sonho dela era ver-me vencer um concurso de talentos. Não vim para
a vingar, apenas para lhe prestar homenagem.
– E o Raoji?
– Acabará por ser julgado no tribunal de Cristo.
Ao ouvir esta história trágica, não posso deixar de admirar a indulgência de Mercy. Se estivesse
no lugar dela, acho que não conseguiria olhar para a cara de Raoji sem querer cuspir-lhe em cima.
Nem teria paciência para aguardar o julgamento de Deus.
A história de Gracie faz mais do que comover-me: reforça também as minhas suspeitas crescentes
em relação ao diretor musical.
– Daqui em diante, não te encontrarás com o Raoji em circunstância alguma – ordeno a Neha. –
Para mim, uma vez sádico, sempre sádico.
– Isto é uma estupidez! – enfurece-se Neha. – Ele é o meu guru, por amor de Deus. E chamou-me
para um ensaio final, esta noite.
– Diz-lhe que não vais.
– E perder a oportunidade de ser Popstar N.º 1? Não digas disparates, didi. Além disso, que mal
pode um homem cego fazer-me? Não vou faltar ao ensaio, de maneira nenhuma.
– Se insistes em ir, então eu insisto em ir também.

Raoji recebe-nos no terraço da sua casa. A noite está fresca e corre uma brisa. A lua cheia brilha
no céu limpo, iluminando a enorme mansão.
Vestido com uma kurta de seda, o diretor musical é encantador como sempre, mas agora não
consigo olhar para ele sem um estremecimento de ódio por aquilo que fez à irmã de Mercy.
Neha está linda, com um salwar de crepe rosa-suave, que comprou na véspera no mercado de
Crawford. Só a dupatta de chiffon custou-me 800 rupias.
O criado de Raoji entra, com um tabuleiro de bebidas. Eu pedi um sumo de laranja, Neha, uma
Diet Coke. O veneno de eleição de Raoji, descubro, é uísque de malte.
– Esta noite, darei à Neha a minha maior lição – diz, de forma algo misteriosa, enquanto enche o
copo com o líquido dourado. – Estamos quase no fim da primeira fase. Amanhã são as últimas
eliminações. Depois disso, Neha, será imparável! À nossa! – Ergue o copo num brinde e esvazia-o
com dois goles.
Neha envolve-se numa acesa discussão com Raoji sobre técnicas de canto. Dirijo-me à beira do
terraço, apoio os cotovelos na balaustrada de pedra esculpida e olho para a vasta conurbação que
se estende para lá do veludo ondulante do oceano. O horizonte de Bombaim é espetacular, à noite.
Um manto de luzes cintilantes cobre a cidade, brilhando com a luminescência de uma miragem. Os
sinais de néon reluzem suavemente nos arranha-céus junto à costa. Os mercados estão vivos com o
som do comércio. Ainda há carros nas ruas. Esta é verdadeiramente a cidade que nunca dorme.
O ar está repleto da fragrância embriagante de um jasmim noturno que cresce no seu vaso. O
aroma mistura-se com o cheiro húmido e salgado do oceano, deixando-me sonolenta. Bebo mais um
gole do sumo. Tem um sabor um pouco estranho. De súbito, sinto a cabeça a latejar e os joelhos
fracos. Sinto-me como se estivesse prestes a vomitar e corro para a casa de banho do outro lado do
terraço.
Cambaleio até ao lavatório, onde olho para o espelho. As minhas pálpebras parecem
invulgarmente pesadas. Vagas de sono atacam-me a mente, uma após a outra. Estou letárgica e
enjoada. Só com um esforço sobre-humano consigo molhar a cara com água fria. Tento pestanejar e
devolver a nitidez ao mundo à minha volta, mas a minha cabeça recusa-se a colaborar. Encosto-me
à parede e tento perceber o que se passa comigo.
Raoji deve ter dito ao criado para me drogar a bebida, compreendo. Vejo-o pela janela, a dar
palmadinhas nas costas de Neha. Na minha visão distorcida, ele torna-se duplo, depois triplo, e
continua a multiplicar-se até a minha mente se encher com a alucinação de um Raoji de dez
cabeças, a sorrir perversamente como o demónio Ravan.
– Vamos descer para o estúdio – oiço, como um eco distante. – Pode guiar-me?
Através das pupilas desfocadas, vejo Neha pegar no braço de Raoji e conduzi-lo em direção às
escadas. Quero gritar «Não!», invadida por uma terrível premonição de perigo iminente, mas
descubro que não consigo mexer-me nem falar. É como se tivesse sido hipnotizada, posta em transe.
O meu cérebro já não parece estar ligado ao meu corpo.
Combato a paralisia que me invade e saio da casa de banho, a cambalear. Raoji e Neha já
desapareceram, deixando para trás uma tigela de cajus salgados.
O meu coração afunda-se e o meu corpo está tão mole, que mal consigo erguer a cabeça. Sei que
estou prestes a tombar, como uma bêbeda. É então que os meus olhos caem sobre a garrafa de
uísque Talisker, meio vazia, a reluzir em cima da mesa. Agarro-a com ambas as mãos. Parece pesar
uma tonelada. Recorrendo a todas as minhas reservas de energia, ergo-a acima da cabeça e bato
com ela no chão de cimento, onde se estilhaça. O cheiro pungente de uísque enche o ar. Fico apenas
com o gargalo da garrafa na mão, com dentes afiados e irregulares onde se partiu. Ainda tonta e a
cambalear, respiro fundo e cravo o vidro afiado na coxa esquerda, como um punhal. A ponta
atravessa o tecido fino do meu salwar e perfura a pele. Uma dor quente, escaldante e lancinante
percorre-me a perna e irradia ao resto do corpo, limpando instantaneamente o nevoeiro do meu
cérebro e despertando todos os meus sentidos.
Ignoro a dor agonizante e cambaleio pelas escadas abaixo, atravesso a sala de estar e entro de
rompante no estúdio, onde encontro Neha e Raoji enrolados num sofá. O músico tem os braços à
volta da cintura dela e prende-lhe os braços de ambos os lados. Está a tentar beijá-la, enquanto ela
luta desesperadamente, para se libertar.
– Raoji! – grito, e arranco Neha dos seus braços.
Ele larga-a, ofegante como um homem prestes a ter um ataque cardíaco. Tem saliva a escorrer da
boca e as veias do rosto salientes.
– Vai, Neha! – exclama. – Estava só a tentar ajudar-te, mas não és digna da minha atenção.
Estou a ferver, a arder de indignação. Afasto Neha com uma mão e ataco-o com a perna direita.
No instante seguinte, o rosto dele contorce-se numa expressão de dor quando o salto do meu sapato
o atinge no plexo solar.
– Cabra! – geme, com a voz estrangulada, agarrado à barriga.
A minha fúria aumenta, num crescendo.
– Não mereces viver, porco! – Desfiro um soco, mas, com reflexos surpreendentemente rápidos,
ele agarra-me no braço. Vira-me, empurra-me o rosto contra a parede e torce-me o braço até quase
o partir. Contorço-me, cheia de dores.
– Posso esmagar-te como a uma mosca – sibila ao meu ouvido. Depois, com igual brusquidão,
larga-me.
– Acabaram-se os ensaios! – diz, à laia de despedida. – Saiam as duas da minha casa.

Neha fica muito abalada pelo incidente. Quase consigo sentir a vergonha, o horror e a
repugnância que emanam dela como uma tempestade no deserto, enquanto seguimos de táxi até
Colaba.
– Ele… ele tentou… tocar-me – balbucia. – Tinhas razão em relação a ele, didi. – Esconde o
rosto no meu colo e dissolve-se em lágrimas.
– Não te preocupes, vai correr tudo bem – digo, em tom tranquilizador, enquanto lhe acaricio o
cabelo.
A mão dela roça acidentalmente na minha coxa, onde encontra uma zona molhada e peganhenta no
meu salwar. A ferida ainda está a sangrar.
– Oh, meu Deus, estás a sangrar, didi! – grita ela. A dor latejante, que a adrenalina no meu
sistema entorpeceu até agora, volta com toda a força. A ferida arde como se tivesse sido causada
por ácido.
Sem hesitar, Neha tira a sua dupatta nova e usa-a como ligadura, enrolando-a à volta da minha
perna, para estancar o sangue.
Sentadas no banco de trás daquele táxi, redescobrimo-nos uma à outra. Talvez pela primeira vez
na vida, vejo Neha sob uma luz diferente, ligo-me verdadeiramente a ela. Sinto o bater do coração
profundo e caloroso que ela escondeu sob aquele verniz narcisista de egocentrismo,
superficialidade e frivolidade.
– Sempre pensei que gostavas mais da Alka do que de mim – diz Neha em tom sofrido, com toda
a mágoa e amargura que acumulou ao longo dos anos. – Mas já não penso assim.
Está a ser uma noite de surpresas, de confissões e de revelações.
– E eu sempre pensei que farias qualquer coisa pela fama – respondo, com igual franqueza. – Mas
também já não penso assim.
Abraçamo-nos, como duas sobreviventes num dilúvio, agarradas ao mesmo tronco.
A vida não nos dá a opção de escolher uma relação de sangue, mas dá-nos sempre a oportunidade
de a reparar.

Neha continua agarrada a mim mesmo depois de chegarmos à segurança do dormitório. Toco-lhe
na testa e parece-me febril. Mercy ajuda-me a pô-la na cama. Quando me viro para me afastar,
Neha agarra-me no braço.
– Onde vais agora, didi?
– À esquadra da polícia, apresentar queixa contra o Raoji. Tentou drogar-me e violar-te.
– Não, didi. – Neha salta da cama e barra-me a passagem. – Não te deixarei fazer isso.
– Mas porquê?
– Porque destruirá todas as minhas possibilidades de vencer o concurso.
– Estás maluca? Ainda estás a pensar no concurso depois do que ele te fez?
– Ouve, eu digo ao George para me mudar de equipa depois desta ronda. Não terei mais contacto
com o porco do Raoji. Mas não quero perder esta oportunidade. Estou quase lá. Depois de chegar
aos últimos vinte, nem o Raoji conseguirá deter-me. Não me tires a minha única esperança, o meu
único sonho, didi. – Recomeça a soluçar.
Cedo.
– Está bem. Não apresentarei queixa do Raoji, se é isso que queres.
Mercy, que ouviu a conversa, está mais preocupada com a ferida na minha perna.
– Tem de ir ao médico, didi. Se não for tratada, a ferida pode infetar.
Acompanha-me a uma clínica nas imediações, onde uma enfermeira limpa e desinfeta a ferida. O
caminho passa por um mercado de rua. No regresso, cruzamo-nos com um inspetor com o uniforme
da Polícia de Maharashtra. Está ocupado a regatear com um vendedor de brinquedos, enquanto a
motorizada Rajdoot ronrona como um gato à beira da estrada.
Mercy tenta empurrar-me suavemente na direção do agente.
– Ainda podemos ir à polícia.
– Não posso. Prometi à Neha.
Ela aperta-me o braço.
– Não devíamos permitir que o Raoji ficasse novamente impune, didi. – Os olhos dela ardem com
um fogo negro, como lava preta de um vulcão que entrou em erupção dentro dela.
Olho para ela, para a loja de brinquedos, e tenho uma ideia.
– Tenho um plano – sussurro-lhe.
– Conte-me – murmura ela.

Há uma eletricidade no ar. É a última ronda de eliminações. Hoje, serão expulsos os dois últimos
cantores, deixando apenas os vinte concorrentes que lutarão pela ambicionada coroa na televisão
em direto.
Espero com o resto do público, enquanto a tensão atinge o auge.
Um a um, os jurados anunciam os nomes dos concorrentes de hoje. É como um jogo de xadrez; o
truque está em antecipar a jogada do adversário. Os jurados tentam proteger os seus bens, pôr os
seus melhores cantores a competir diretamente contra adversários mais fracos, de modo a fazer
xeque-mate às outras equipas.
– Nomeio o Javed – declara Bashir Ahmad. Uma vaga de excitação percorre o público. Javed
Ansari é o claro favorito, até agora. A jogada de Bashir é um gambito à rainha.
– Escolho a Sujata Meena – diz Udita Sapru. Sujata é uma cantora natural, com voz rouca. É o
equivalente ao cavalo, a incógnita do grupo, capaz de agitar as águas.
– O meu guerreiro é o Nisar Malik – diz Rohit Kalra. O nativo de Caxemira não é o melhor
cantor da equipa. É um peão que pode ser sacrificado.
– E eu apresento a Neha – anuncia Raoji. Uma exclamação de espanto escapa dos lábios de
todos. Um confronto entre Javed e Neha não faz sentido, nesta fase preliminar. É como lançar duas
rainhas uma contra a outra no gambito de abertura.
Os quatro concorrentes alinham-se em palco e a ronda de eliminação começa.
Bashir Ahmad escolhe uma poderosa canção de amor para Javed, e o seu protegido canta-a
impecavelmente, deixando toda a gente deslumbrada com o alcance, intensidade e expressividade
da sua voz.
O forte de Sujata Meena são as canções populares, e a sua guru deixa-a fazer aquilo em que é
melhor. A balada do Rajastão que ela canta deixa a audiência extasiada. A sua voz tem garra e é
descontraída, um contraponto irresistível à perfeição calculada do estilo vocal de Neha.
A interpretação de Nisar Malik, de uma canção trágica de Kishore Kumar, também é
surpreendentemente impressionante, carregada da melancolia e da desilusão de um coração partido.
Por fim, é a vez de Neha. Todos olham para Raoji, expectantes. Neha aguarda no palco, com um
sorriso angélico, mas sei que deve estar muito nervosa. A única coisa que lhe interessa é vencer
este concurso. E este é o momento decisivo.
Raoji pigarreia.
– A Neha é a minha melhor cantora, portanto vou dar-lhe uma canção que demonstra todo o seu
alcance vocal. – O seu rosto é inexpressivo, por trás dos óculos escuros, enquanto diz a Neha: –
Beti, quero que cante Kuhu Kuhu Bole Koyaliya.
Estou estupefacta. O esgar tenso na boca de Neha diz-me que nem ela estava à espera disto. Raoji
montou-lhe uma armadilha inteligente. Infelizmente, a minha irmã não tem como a evitar. Tenta
corajosamente interpretar a canção, mas aquilo por que passou ontem deixou-a abalada. As suas
notas soam um pouco cansadas e tensas. Mais uma vez, os registos mais altos na antara mais difícil
da canção levam a sua voz ao limite, e ela perde a expressividade.
O resultado é inevitável. Na opinião dos jurados, bem como na do público, Neha é a cantora mais
fraca do grupo. É eliminada.
Um silêncio solene abate-se sobre a audiência quando se apercebe de que uma das preferidas
ficou pelo caminho. Neha tem uma expressão empedernida e aceita o veredicto com resignação
estoica.
A ronda final de eliminação começa imediatamente a seguir e, nesta, Mercy enfrenta três cantores,
todos muito inferiores a ela.
Udita Sapru pede a Mercy que cante Aye Mere Watan Ke Logon, «Oh, o Povo do Meu País», uma
canção patriótica de Lata Mangeshkar, que é venerada como o derradeiro tributo aos soldados
indianos mortos na guerra de 1962 com a China. Hoje, Mercy supera-se. Atravessa as suas
profundezas e canta com um abandono corajoso e dotado. A canção ganha asas, como se fosse
libertada dos seus limites mundanos. A voz melodiosa sobe até aos céus, arrebatando a orquestra,
os jurados, o público, tudo no seu caminho. Imbuído da agonia refinada da perda, o hino fúnebre é
quase como uma catarse, uma elegia à sua irmã morta. Fico com pele de galinha quando oiço as
notas atingirem uma pureza de perfeição sem paralelo na história do concurso.
Quando a canção termina, ela recolhe-se na sua concha, corada como um corredor exausto. Os
jurados trocam murmúrios entre si e olhares embaraçados com o produtor. É evidente que estão a
tentar encontrar estratégias para justificar a eliminação dela do concurso.
Bashir Ahmad bebe um gole de água do copo que tem à sua frente antes de anunciar o veredicto.
– Foi uma… ah, uma boa interpretação. Não há dúvidas de que é talentosa. Mas não me parece
que esteja pronta para o próximo nível. Há uma inexperiência na sua voz que necessita de ser
polida.
Rohit Kalra põe defeitos na expressão impassível de Mercy e na sua falta de à-vontade.
– Cantar não é apenas acertar nas notas – observa. – É também a forma como se transmite a
mensagem ao público.
Raoji descobre um lapso de concentração imaginário na penúltima estrofe.
– Para mim, essa pequena falha estragou toda a canção. Mas digo-lhe uma coisa: um pouco mais
de riyaaz… um pouco mais de prática… e ninguém a impedirá de vencer o concurso do próximo
ano.
– Obrigada, senhor – diz Mercy. – Preciso da sua bênção.
– Vou dar-lha pessoalmente – diz Raoji. Sai do pódio dos jurados e dirige-se ao palco, usando a
bengala para apalpar o caminho. Mathew George ajuda-o a subir os degraus. Mercy inclina a
cabeça quando Raoji se aproxima dela. Quando ele está a menos de dez passos, ela salta, com um
grito silencioso, e uma faca surge-lhe na mão direita, como que por magia. Sob o holofote
vermelho, a lâmina de serrilha parece estar coberta de sangue.
Uma exclamação chocada ergue-se entre o público e ecoa pelo auditório.
Quando Mercy brande a faca em arco na direção do peito de Raoji, o diretor musical estica
instintivamente as mãos para se defender. Larga a bengala e salta do palco com um grito abafado e
uma expressão de pânico no rosto.
Uma exclamação ainda mais audível ecoa entre o público.
– Você… você vê? – pergunta Bashir Ahmad, de boca aberta.
– É verdade – digo, subindo ao palco e pegando no microfone. – A Mercy não queria matar o
Raoji, apenas desmascará-lo.
Mercy, ofegante com a emoção, atira para o chão a faca de plástico que comprei ontem à noite no
mercado de rua. Cai de joelhos, benze-se e beija o crucifixo que tem ao pescoço. Com as lágrimas
a deslizar-lhe pelo rosto, ergue as mãos em oração.
– Senhor, tem misericórdia da alma da minha irmã.
– O Raoji não é cego, pelo menos não dos dois olhos – continuo. – Manteve essa fachada para
poder apalpar raparigas jovens, atraí-las pela compaixão e, por fim, explorá-las, como explorou a
irmã da Mercy, Gracie, levando-a a suicidar-se. Ontem à noite tentou o mesmo truque sujo com a
Neha. Este homem perverso merece ser chicoteado em público.
A multidão solta um rugido de aprovação.
Udita Sapru levanta-se subitamente.
– Não suporto estar na mesma sala que este monstro – declara, em voz trémula, e depois cala-se,
como se estivesse a debater consigo própria se deve ou não continuar. – Ele… ele… fez-me o
mesmo, quando eu era concorrente em Canção da Vida.
A revelação é recebida com choque, espanto e, por fim, fúria pelo público. Dois homens
avançam sobre Raoji com ar ameaçador e este encolhe-se, com medo.
– Corta! – Mathew George salta da cadeira de realizador. – O que é que vem a ser isto? –
pergunta, a ninguém em particular, esforçando-se por manter um ar calmo e profissional.
– Nunca devia ter concordado em ser jurada deste concurso de terceira categoria. – Udita lança-
lhe um olhar de desprezo. – Despeço-me.
– E eu também – diz Bashir Ahmad.
– E eu – diz Rohit Kalra.
Saem do estúdio com ar ofendido, deixando Raoji à mercê das hordas de pessoas que o rodeiam
por todos os lados.

Meia hora depois, descubro Mathew George sentado num banco, com ar perdido, a olhar para as
ruínas do cenário que o público enlouquecido vandalizou.
– Já viu o que fez?! – grita-me o produtor/realizador. – O Raoji está no hospital, com cinquenta
ossos partidos. E o meu concurso acabou antes mesmo de começar.
– Não ponha as culpas em mim – respondo, calmamente. – Dei-lhe apenas aquilo que queria.
– Porque havia eu de querer destruir o meu próprio programa?! – grita ele, puxando o cabelo
como um louco.
– Queria a nossa roupa suja, os nossos segredos e as nossas confissões. Bom, dei-lhe um
escândalo de primeira categoria. Divirta-se.

Neha e eu apanhamos o comboio para Deli nessa mesma tarde. Passamos a viagem de dezoito
horas num silêncio quase absoluto, absorvidas nos nossos pensamentos. O rosto de Karan paira na
minha mente como um sonho febril persistente. Neha está invulgarmente deprimida, com uma
expressão distante nos olhos.
– Acabaram-se os concursos de canto para mim – diz-me. Viu o verdadeiro rosto do mundo, por
fim, e isso destruiu as suas ilusões, extinguiu as suas ambições ardentes de estrelato instantâneo.
Temos uma surpresa agradável quando o comboio entra na estação de Paharganj, às sete da manhã
do dia seguinte. À espera na plataforma está Karan Kant, com um grande ramo de cravos amarelos.
Eu informara-o da nossa chegada e contara-lhe o fiasco do Popstar N.º 1, mas não esperava que nos
viesse buscar à estação, ainda por cima com um presente de boas-vindas. O fracasso e a frustração
de Bombaim derretem-se num instante e sinto-me verdadeiramente especial.
Está muito bonito, com uma camisa às riscas e calças de caqui. Sinto o rosto enrubescer e o
coração quase me salta da garganta quando avanço para receber as flores.
Para meu espanto total, ele passa por mim e coloca o ramo nas mãos de Neha.
– Bem-vinda, Rainha Cantora. – Sorri-lhe. É um gesto bonito, para a animar, mas não posso
deixar de me sentir um pouco traída. Uma pontada doentia de ciúmes trespassa-me quando vejo
Neha corar.
Talvez Karan tenha antecipado a minha reação, pois vira-se para mim logo a seguir.
– E não penses que me esqueci de ti! – Sorri, como um mágico no fim de um truque, e apresenta-
me uma rosa vermelha, enrolada em celofane. Oferece-ma com uma pequena vénia. Ao ver que
continuo confusa, coça a cabeça e revira os olhos.
– Não gostas de rosas? Preferias uma chávena fumegante de chá? – Franze o rosto e entoa com
voz rouca «Chai! Chai garam!»41, imitando a voz melodiosa dos vendedores de chai que
apareciam no nosso compartimento em cada paragem.
E vejo então que é o mesmo Karan de sempre. O Karan que esconde os seus verdadeiros
sentimentos por trás de banalidades. Continua tão frustrantemente inescrutável como antes. Ainda
por cima, agora deixou-me mais um enigma para resolver. Valerá uma rosa vermelha mais do que
uma dúzia de cravos amarelos?

Vinay Mohan Acharya chama-me ao seu escritório na tarde desse mesmo dia.
Quando chego à receção, no décimo quinto piso, encontro uma rapariga sul-indiana de aspeto
modesto sentada atrás da secretária.
– Olá, menina Sapna. Sou a Revathi Balasubramaniam – cumprimenta-me. Sorri timidamente e
uma covinha surge-lhe no rosto. Antes que eu possa devolver o cumprimento, o altifalante na sua
secretária zumbe e sou levada à presença do industrial.
– O que aconteceu à Jennifer? – pergunto a Acharya.
– Despedi-a – diz ele, com uma careta.
– Porquê?
– Era a serpente entre nós, a que estava a passar ao Premier Group informações sensíveis da
empresa.
– Meu Deus!
– Foi o Rana que a desmascarou. Conseguiu obter os registos de chamadas do telemóvel pessoal
dela. Descobrimos muitos telefonemas para o número privado do Ajay Krishna Acharya, o diretor
das Premier Industries. Foi especialmente intrigante ver chamadas para o meu irmão feitas na
mesma noite em que terminámos a nossa proposta para o concurso de software para o bilhete de
identidade nacional.
– E confrontou-a com isso?
– Ela negou, claro. Disse que alguém devia ter forjado os registos de chamadas para fazer dela
bode expiatório. Mas todos os ladrões negam ser ladrões. – Olha pensativamente para a janela,
para o céu que escurece. – Posso perdoar a um inimigo, mas não a um traidor – resume, com a voz
vazia, como se estivesse dominado por uma emoção forte. – Um erro pode ser corrigido, mas a
confiança, depois de traída, desaparece para sempre.
Aceno silenciosamente com a cabeça, em assentimento.
– De qualquer maneira, não a chamei para me queixar da Jennifer, mas sim para lhe dar os
parabéns. Passou no quarto teste com distinção.
– E que teste era esse?
– O teste da intuição.
– Não compreendo. O que é que eu fiz para mostrar intuição?
Ele aponta para o monte de jornais em cima da secretária. Quase todos desmascaram Raoji na
primeira página.
– Foi preciso um homem cego para revelar a sua intuição estratégica. Sentiu que havia algo
errado com o Raoji e delineou um plano engenhoso para desmascarar esse charlatão. Bravo.
– Mas como soube do meu papel no caso? Nenhum dos jornais que li menciona o meu nome.
– Mas falam de uma certa Mercy Fernandez. Ela contou-me toda a história. Contou-me que a
Sapna desconfiou do Raoji desde o princípio. E contou-me aquilo que fez para salvar a sua irmã
das garras dele.
– Como conhece a Mercy?
– Acabámos de a contratar como artista de dobragem de vozes, para a nossa divisão de cinema.
– Ela sair-se-á muito bem. Tem uma voz de anjo.
– Mas terá a visão de um profeta? Acredito que a única forma de nos prepararmos para o futuro é
planeá-lo. Os que não planeiam, falham. A intuição é a arte de ler astutamente uma situação e
antecipar os acontecimentos. É essencial para o sucesso de uma organização. Há trinta e cinco anos,
vi o meu primeiro computador, um Commodore PET, e soube instintivamente que aquela máquina
viria a alterar a forma como fazemos as coisas no nosso dia a dia. Foi então que fiz a minha
primeira incursão no negócio dos computadores. Hoje, a CEA Computers controla trinta e dois por
cento do mercado de hardware na Índia.
Continua a falar durante quinze minutos sobre o seu tópico preferido: ele próprio. Eu, contudo, já
deixei de o ouvir. A sua vaidade infantil incomoda-me menos do que a sua confiança imerecida nas
minhas capacidades. Quem me dera ter intuição. Se a tivesse, nunca teria deixado que Alka se
suicidasse.
O mundo está cheio de santos e astrólogos que afirmam conhecer o futuro. Mas ninguém o
conhece, realmente. O futuro é um mistério que nunca nos é completamente revelado; só o podemos
vislumbrar tenuemente nos nossos sonhos e imaginação. A intuição é apenas um nome pretensioso
dado ao processo de aprender com os fracassos e sucessos do passado e planear um futuro melhor.
É um processo que os humanos seguem desde a alvorada da História. E chama-se sobrevivência.
36 «Destino». (N. da T.)

37 100 paise = 1 rupia (N. da T.)

38 Forma poética. (N. da T.)

39 Raga é um dos modos melódicos da música clássica indiana. (N. da T.)

40 Deusa do conhecimento. (N. da T.)

41 «Chá quente!» (N. da T.)


QUINTO TESTE

O Atlas da Revolução

P arece um cruzamento entre o Diwali e o Dia da Independência. Há fogo de artifício por toda a
cidade e as estradas estão cheias de carros em marcha lenta que buzinam em aprovação,
camiões carregados de fãs ruidosos que agitam bandeiras tricolores, e multidões de peões que
dançam e cantam «Viva a Índia!» e «Jai Ho!».
Apesar de ser quase meia-noite, ninguém na nossa colónia quer dormir. Neha e eu também somos
apanhadas pela excitação da vitória da Índia sobre o Paquistão na meia-final do Campeonato do
Mundo de Críquete, uma partida rotulada como «a mãe de todos os jogos» pela comunicação social
hiperbólica. Estivemos coladas ao televisor a noite toda, nervosas até à última série, e depois,
quando o último wicket paquistanês caiu, toda a colónia irrompeu em festejos estridentes, com
apitos ensurdecedores, gritos agudos e aplausos ribombantes. O senhor J. P. Aggarwal, o vendedor
de ferragens louco por críquete do apartamento B-27, correu de imediato para o mercado e voltou
com uma grande taça de rasagullas para distribuir pelos vizinhos do segundo piso. Até a minha
mãe, que acha o críquete tão divertido como depilar as pernas, se juntou à celebração, enfiando
discretamente uma rasagulla suculenta na boca, ignorando a diabetes crónica e os avisos severos
do seu médico, o doutor Mittal, para evitar qualquer tipo de doces.
No entanto, há uma vizinha que se mantém completamente à parte da agitação. É Nirmala Ben, do
B-25, a nossa devota de Gandhi. Encontro-a sozinha, sentada no quarto, com um livro de citações
do bapu no colo, a olhar para a parede como um profeta à espera de uma revelação.
– Nirmala Ben, o que está a fazer aqui, quando toda a colónia celebra a vitória da Índia?
– Poupem-me a esta loucura – responde ela, secamente.
– Oh, vá lá, não seja desmancha-prazeres. Vamos todos subir ao telhado para ver o fogo de
artifício.
Reage como se eu lhe tivesse remexido numa ferida recente.
– Fazes alguma ideia de quantos crores são desperdiçados nesses foguetes? Quando milhões de
pessoas vão para a cama de barriga vazia, quando milhares de crianças morrem por falta de
remédios, quando famílias inteiras vivem nas ruas porque não podem pagar uma casa, é o cúmulo
da loucura queimar, literalmente, dinheiro nisto. E este Campeonato do Mundo, o que nos trará?
Acabará com a pobreza e o analfabetismo no nosso país? Impedirá os agricultores de se
suicidarem? No outro dia, o filho do Kalawati, o Suresh, disse-me que reza todos os dias pela
vitória da Índia no Campeonato do Mundo. Eu rezo para que o bom senso prevaleça nos meus
conterrâneos. Sabko Sanmati De Bhagwan42.
Apanhada de surpresa com esta explosão, debato-me para encontrar uma resposta.
– O que se passa atualmente no nosso país é verdadeiramente assustador – continua ela. –
Fraudes atrás de fraudes, todas organizadas pela Atlas, e ninguém parece ter qualquer pista sobre a
identidade do homem por trás da empresa. Arrey, será que este Atlas veio da lua ou de outro
planeta? Será invisível, como Deus?
– Dizem que a Atlas também está por trás da fraude de empréstimos falsos para habitação que o
Gabinete Central de Investigação desmascarou a semana passada – acrescento, recordando a
manchete das notícias de hoje.
– Bahut thaigyoo. Basta – declara ela. – Não posso simplesmente assistir de braços cruzados a
este saque e pilhagem da riqueza nacional. Não foi por isto que o bapu lutou e morreu.
– E o que propõe que façamos?
– Ainda estava à procura de uma maneira, mas um vidente de Rishikesh veio ver-me e iluminou o
meu caminho.
– O que é que ele disse?
– Disse-me: «Agite o mundo suavemente.»
– E como tenciona fazê-lo?
– Lançarei uma revolução popular. É a única forma de esmagar o cancro da corrupção e de
denunciar as forças por trás da Atlas.
– Então vai organizar uma manifestação ou coisa do género?
– Não. Farei uma greve de fome, até à morte. Até que o governo ceda à minha exigência de uma
investigação minuciosa à Atlas Investments.
A sineta de alarme começa instantaneamente a tocar na minha cabeça. Tento dissuadi-la.
– Não faça isso, Nirmala Ben. Uma greve de fome não é uma agitação simbólica de um dia só.
– Quem disse que era? – responde, surpreendida com o meu comentário. – Só há dois resultados
possíveis quando um satyagrahi43 recorre a uma greve de fome até à morte. O governo ou cede ou
terá de ver-se livre do meu cadáver. Afinal de contas, todas as revoluções precisam de um mártir.
– As revoluções também precisam de seguidores, e de uma organização. E você não tem uma
coisa nem outra.
– Mas tenho-me a mim própria. – Sorri, como que para sublinhar a natureza autoevidente da sua
afirmação. – E, quando nos temos a nós próprios, não precisamos de mais ninguém. Basta uma
pessoa para fazer a diferença. – Em voz suave e melodiosa começa a cantar «Jodi tor dak shune
keu na ashe tobe ekla cholo re», «Se não responderem ao teu chamamento, caminha sozinho»,
versos de uma canção bengali de Rabindranath Ragore que era uma das preferidas de Gandhi.
Enquanto a sua voz sentimental enche o quarto, resta-me esperar que ela não cumpra a sua
promessa de caminhar sozinha. Porque, por melhor cantora que a senhora Nirmala Mukherjee Shah
possa ser, a sua voz solitária não será suficiente para agitar o mundo suavemente.

Sexta-feira, 1 de abril, começa como um dia de trabalho normal. O meu primeiro cliente da
manhã é um homem de negócios sique extremamente bem-educado, com barba e bigode bem
aparados. Está quase decidido a comprar um televisor de plasma Panasonic Viera com ecrã de
cinquenta polegadas.
– É para o meu filho Randeep – diz-me. – O rapaz insiste que só verá a final do Campeonato do
Mundo de amanhã num televisor de ecrã gigante.
Aceno com a cabeça, com ar compreensivo, e começo a explicar-lhe as vantagens de uma
garantia alargada, quando o meu telemóvel Indus vibra.
Tiro o telemóvel do bolso da saia e olho para o ecrã de testa franzida. Hoje em dia, setenta por
cento das chamadas que recebo no telemóvel são de telemarketing e, quando vejo um número que
não reconheço, normalmente nem me dou ao trabalho de atender. O número que vejo é de um
telefone fixo que começa por +22, o indicativo de Bombaim. Intrigada, atendo.
– Estou?
– Estou, posso falar com a senhora Sapna Sinha? – diz uma voz familiar do outro lado.
– É a própria.
– Sapna-ji, fala Salim Ilyasi, de Bombaim.
Claro! Como é que posso esquecer aquela voz profunda e masculina que seduziu milhões de
cinéfilos? Salim Ilyasi é o atual rei de Bollywood e o ídolo de praticamente todas as raparigas na
Índia. O facto de a superestrela se dignar a falar comigo, sem mais nem menos, parece estranho,
mas têm-me acontecido tantas coisas estranhas, ultimamente, que já nada me surpreende.
– Parabéns! Foi selecionada como cliente do mês da Indus Mobile. O que significa que terá um
jantar exclusivo comigo no domingo, dia dez de abril, no Maurya Sheraton em Deli. Estamos
combinados?
Salim Ilyasi quer jantar comigo. Comigo? Uma vaga de euforia percorre-me o corpo e varre
todos os pensamentos racionais da minha mente. Sempre me considerei uma realista pragmática,
imune ao culto das celebridades. No entanto, neste momento extravagante, o meu cérebro desfaz-se
numa massa trémula e gelatinosa. Que concurso é este da Indus? E como é que eu ganhei? Todas
estas considerações mundanas desaparecem e retrocedo às fantasias adolescentes de veneração de
heróis.
– S-sim – balbucio, sentindo o calor espalhar-se na minha pele. – Eu… eu gostaria muito.
– Ora, aí está o que eu chamo fantabulástico! – exulta ele, repetindo uma expressão que tornou
famosa em Amor em Banguecoque. – Mas há um problema. Como a reconhecerei?
– Eu… posso usar algo que me distinga.
– Sim, boa ideia. A minha cor preferida é o amarelo. Tem alguma coisa em amarelo?
Penso rapidamente, revendo a minha pobre coleção de salwars.
– Hã… acho que não tenho nenhum fato amarelo, mas posso comprar um.
– Não é preciso. Fazemos assim: vista aquilo que quiser. Basta pôr um post-it amarelo em cima.
– Post-it?
– Sim, com as letras D-I-A-D-A-S-M-E-N-T-I-R-A-S. Fixou?
Só então é que percebo.
– Karan Kant, és tu, não és?
Uma gargalhada ruidosa soa do outro lado da linha.
– Enganei-te, não foi?
Quase consigo imaginá-lo a rebolar-se no chão, agarrado à barriga, perdido de riso. Fico
embaraçada com a minha credulidade, a minha ingenuidade.
– Vou matar-te! – grito a Karan.
– Oh, isso já não será tão fantabulástico! – diz ele, à laia de despedida, e desliga.
Enquanto guardo o telemóvel, vejo o meu primeiro cliente do dia a correr para a porta.
– Senhor Singh! – chamo. – Onde vai?
Ele faz uma pausa breve e lança-me o olhar irónico e compadecido reservado aos loucos
varridos. Depois, sai porta fora.
Karan tem um brilhozinho nos olhos quando o encontro no pátio da colónia, nessa noite.
– Malvado! – Dou-lhe um soco ao de leve nas costelas. – A tua imitação do Salim Ilyasi foi tão
boa, que nem me passou pela cabeça que pudesse ser outra pessoa.
– Bom, se te serve de consolo, preguei a mesma partida a mais dez clientes da Indus. Nenhuma
delas descobriu. Todos nos fartámos de rir, no call center, com a minha partida do Dia das
Mentiras.
– Mas como conseguiste fingir o número de Bombaim? Foi isso que me fez acreditar que a
chamada era genuína.
– Chama-se spoofing. Uma vez que somos nós que controlamos a rede, podemos fazer qualquer
número aparecer no ecrã dos nossos clientes.
Nesse momento, Neha aproxima-se.
– O que fazes aqui? – pergunta ela a Karan. – Andam à tua procura por todo o lado.
– Quem? – pergunta Karan.
– A polícia. Um inspetor e dois agentes.
– O quê? – pergunta ele com voz rouca e expressão preocupada.
– Porque é que a polícia andará à tua procura? – pergunto-lhe, também preocupada.
– Não faço ideia. Deve… deve ser algum engano.
– Bom, então é melhor ires esclarecê-lo – diz Neha. – Estão quase a arrombar a tua porta.
– Não! – Karan solta um grito angustiado. – Não podem entrar no meu quarto. – Sobe as escadas
a correr, de dois em dois degraus, com o passo largo de um atleta. Neha e eu seguimo-lo.
Estou completamente exausta e ofegante, quando chegamos ao patamar do terceiro andar. Karan
vira a esquina e estaca abruptamente no corredor do apartamento B-35. Não há ninguém à vista.
– Parece que já entraram – diz Neha.
– Oh, não! – murmura Karan, recuando para as sombras e encostando-se à parede.
– Não vais lá ver? – pergunto.
Com passo inseguro, ele aproxima-se da porta. Só então vê o papel colado por baixo do óculo.
Tem um bobo desenhado com uma placa na mão que diz «FELIZ DIA DAS MENTIRAS!».
– Apanhado! – Neha solta um grito triunfante enquanto Karan coça a cabeça, aborrecido e
embaraçado. – Também consigo jogar o teu jogo. – Ela lança-lhe um olhar eloquente e desce as
escadas rapidamente.
– Neha Sinha, vais pagar por isto! – rosna Karan com a voz de Prakash Puri, o famoso vilão, e
corre atrás dela.
Observo a cena num silêncio divertido e tolerante. Karan também deve ter telefonado a Neha, a
fazer-se passar por Salim Ilyasi, concluo. E ela vingou-se. Então porque é que me sinto como se
tivesse sido eu a apanhada pela partida?

O sol que nasce no dia 2 de abril é especial e carrega em si as esperanças de mil milhões de
indianos. A Índia joga esta noite contra o Sri Lanka, na final do Campeonato do Mundo de Críquete,
e todo o país reza pela vitória da equipa nacional.
O críquete é o único tema de conversa no salão de exposições. Há no ar um sentimento de
excitação e expectativa. A loucura pelo jogo é tal, que metade do pessoal meteu o dia para o ver.
Pouco depois do almoço, Madan chama-me ao seu cubículo.
– Preciso de um favor – diz, com um sorriso.
– O que é agora? – pergunto. – Quer mandar-me a outra aldeia qualquer?
– Não, não, nada disso. Alguém encomendou uma Sony KDL-65. Preciso que faça uma EVE
urgente.
EVE é o código da loja para «entrega de valor elevado». A política da Gulati & Sons é que, para
qualquer entrega cujo valor seja superior a 200 000 rupias, um funcionário tem de acompanhar
pessoalmente os artigos, de modo a garantir que eles chegam em segurança e para obter a assinatura
do cliente no formulário de pré-instalação.
– Sabe muito bem que não faço entregas – resmungo. – Porque não manda um dos rapazes?
– Dois estão em serviço fora da loja e os restantes meteram o dia. Por favor, não demora mais de
meia hora e ainda lhe dou um bónus.
– Que bónus?
– Depois da entrega pode ir para casa, assistir à final.
Não há dúvida de que é uma oferta tentadora.
– Qual é a morada de entrega?
Ele consulta a folha de encomenda.
– Diz aqui Lote Número 133-C, Poorvi Marg, Vasant Vihar.
– Como se chama o cliente?
– Não me disseram. Parece que é um presente de aniversário para alguém e querem manter o
segredo.
– Está bem – acedo. – Eu vou.

Dez minutos depois, estou sentada no banco do passageiro da carrinha de entregas, uma velha
Bajaj Tempo, conduzida por Sharad, um dos nossos motoristas mais antigos. A viagem de quarenta
minutos até à morada de entrega é agitada, ruidosa e quente, pois o ar condicionado da carrinha há
muito que deixou de funcionar.
Vasant Vihar, no Sudoeste de Deli, tem fama de ser uma das zonas residenciais mais caras do
mundo, e apenas milionários conseguem lá viver. Quando chegamos à morada de entrega, contudo,
vejo que chegámos à residência de um bilionário.
Uma equipa de guardas, de casaco de fato e óculos escuros, equipados com walkie-talkies e
auriculares, mandam-nos parar do lado de fora dos portões automáticos, cobertos de câmaras e
sistemas de segurança. A nossa guia de transporte é cuidadosamente examinada antes de nos
permitirem prosseguir até uma guarita onde têm lugar mais verificações. A carrinha é revista com
um scanner que procura bombas escondidas, e Sharad tem de abrir o capô e o porta-bagagens para
inspeção. Por fim, os portões abrem-se e entramos na propriedade.
À distância, vejo uma mansão enorme, como as que aparecem nos filmes de Bollywood, no meio
de hectares de terreno. Para lá chegar, temos de percorrer uma longa passagem curva, ladeada por
sebes. Pelo caminho, vejo dois dobermans com ar feroz presos ao tronco de uma árvore. Assim que
veem a carrinha, começam a esticar as trelas. Toda esta segurança me deixa pouco à vontade.
Deixa-me também curiosa em relação à identidade do proprietário. A placa de mármore no exterior
do muro mencionava apenas o nome da casa: «Prarthana», «Oração» em hindi.
A residência principal é uma estrutura grandiosa e vistosa, com colunas coríntias, janelas
palacianas e cascadas de buganvílias em flor a caírem de varandas francesas. Um empregado de
libré abre a porta de bronze ornamentada e entro numa sala opulenta, com mobílias douradas, belos
tapetes persas e até um piano de cauda.
– Ah, já cá está! – Um homem levanta-se do sofá. – Bem-vinda a Prarthana.
É Vinay Mohan Acharya.
– O que é que faz aqui?! – pergunto, espantada.
– Estou a receber o televisor que encomendei – diz ele impassível. É então que percebo que estou
na residência do industrial.
– Faz anos?
– Não. O televisor foi apenas uma desculpa para a trazer até aqui.
– O que foi agora? Que novo teste passei ou chumbei? – pergunto, aborrecida.
– Desta vez, não tem a ver com teste nenhum – responde ele. – Chamei-a aqui porque quero que
esteja presente numa reunião de negócios muito importante que vou ter.
– Com quem?
– Já verá – diz ele, e manda Sharad sair. – Pode ir. Eu depois mando alguém levar a senhora
Sinha a casa.
Nos quinze minutos seguintes, oferece-me uma visita guiada à propriedade. Vejo a piscina
interior, o ginásio completamente equipado e o templo com estátuas de divindades em ouro e
marfim. Há salas e mais salas repletas de antiguidades incríveis, provenientes de todo o mundo, e
uma coleção de arte magnífica, que inclui um mural na sala de jantar pintado por Tyeb Mehta. Há
criados de libré por todo o lado, prontos para satisfazer qualquer capricho ou necessidade que os
hóspedes possam ter.
– Quantas divisões tem esta casa? – pergunto, curiosa, quando entramos no escritório.
– Nunca as contei, mas, se incluirmos os aposentos dos criados no outro lado do complexo,
devem ser perto de cinquenta.
O escritório é igualmente opulento, uma sala de teto alto com painéis de carvalho nas paredes,
soalhos de madeira e uma minibiblioteca de livros encadernados a cabedal, de aspeto antigo. As
portadas abrem para um jardim luxuriante e bem tratado, com fontes de mármore e estátuas.
Acabo de me afundar numa poltrona luxuosa, de costas altas, quando oiço o zumbido de um
intercomunicador. É o segurança do portão, a informar que o convidado chegou.
– Mandem-no entrar – diz Acharya.
– Nunca vi tanta segurança numa residência particular – observo, em tom seco.
– Deli não é uma cidade segura. Temos de impedir a entrada de desconhecidos no complexo.
– Ninguém toma tantas precauções apenas para deter desconhecidos.
– Não é do conhecimento público, mas já fui alvo de dois atentados. E tenho fortes suspeitas de
que ambos foram organizados pela pessoa que estou prestes a receber. Ele é mais perigoso do que
uma cobra venenosa.
– Nesse caso, porque vai recebê-lo?
– Foi ele que pediu esta reunião.
– Pelo menos diga-me o nome dessa pessoa misteriosa.
– É o meu irmão gémeo, Ajay Krishna Acharya, ou AK, como gosta de ser tratado. O dono da
Premier Industries.
Uma corrente elétrica percorre-me o corpo e faz-me saltar da cadeira.
– Nesse caso, não assistirei à reunião – anuncio.
– Porquê?
– Não me parece boa ideia envolver-me na vossa rivalidade – respondo. As palavras de Karan
ecoam-me nos ouvidos: «O Acharya vai usar-te como um peão para atacar o irmão.»
Acharya leva os dedos às têmporas, e faz uma expressão subitamente contrariada. É evidente que
não esperava esta reação.
– «Conhecer os inimigos» é a primeira regra de estratégia nos negócios – diz. – Queria que
conhecesse o maior inimigo do Grupo CEA. O homem que tentou infiltrar-se na minha organização.
O homem que tenta destruir-me, desesperadamente, há mais de trinta anos.
Nesse momento, a campainha toca. Oiço a porta da frente abrir-se.
– Depressa! – Conduz-me à porta interior. – Se não quer estar presente, pelo menos observe.
Antes que possa protestar, já me enxotou para a sala adjacente, que é o quarto principal. A
divisão é dominada por uma majestosa cama de mogno, com uma cabeceira alta e esculpida e uma
colcha roxa sumptuosa. Na parede da esquerda, há um espelho oval enorme, feito de ónix preto. Na
parede da direita, vejo o retrato de um homem idoso, de expressão severa, com bigode comprido e
roupas dos anos 40, provavelmente o pai de Acharya. Numa mesinha, por baixo do retrato, há uma
coleção de fotografias de família.
Sinto-me apreensiva e inquieta enquanto puxo uma cadeira estofada que está junto aos pés da
cama e me sento virada para a porta, que Acharya deixou entreaberta para que eu possa ver o que
se passa.
O homem que entra no escritório é uma cópia exata de Acharya – a mesma altura, a mesma
constituição, as mesmas feições. É perturbador ver na mesma divisão dois homens que parecem o
reflexo um do outro, com os mesmos olhos castanhos penetrantes, nariz aquilino e boca firme. A
única coisa que os distingue é o cabelo. AK tem uma barba francesa bem aparada, e o cabelo negro,
penteado para trás, é obviamente pintado. Em contraste com Acharya, parece um pouco dândi, todo
vestido de preto – camisa de seda, calças justas e sapatos bicudos. O rosto bronzeado parece ter
levado uma dose recente de Botox, ou estar embalsamado, consoante o gosto. O efeito geral é o de
um playboy afetado e envelhecido, um velho que se esforça por parecer novo.
Senta-se na cadeira em frente de Acharya, que chama um criado.
– O que bebes, AK?
– Um martíni com gelo – diz o seu gémeo. Até a voz é estranhamente parecida com a de Acharya.
– Desculpa, não servimos álcool nesta casa.
– Continuas o mesmo velho puritano, não é? Bom, então pode ser uma nimbu paani, uma
limonada.
Enquanto Acharya dá as ordens ao criado, AK tira um charuto do bolso e acende-o. Estica as
pernas e sopra o fumo para o teto.
Acharya olha para ele de sobrolho franzido.
– Receio que não possas fumar aqui. Prarthana é uma zona livre de fumo.
– Então para que serve isto? – AK aponta com ar desdenhoso para um cinzeiro de mármore na
mesa central. Apaga o charuto com gestos rápidos e violentos e sopra uma última baforada.
– Sobre o que querias falar comigo, afinal? – pergunta Acharya.
– Sobre o Grupo CEA. E como as coisas estão a correr mal.
– Estamos muito bem, obrigado.
– Sim? Soube que os resultados do primeiro trimestre serão muito dececionantes: as receitas
baixaram 8,52 por cento em janeiro e 4,7 por cento em fevereiro.
– Os resultados do primeiro trimestre ainda não foram anunciados. Onde arranjaste esses
valores?
– Tenho as minhas fontes.
– O mesmo informador que te tem estado a transmitir informações secretas, que te permitiu
superar-nos na proposta de software para o bilhete de identidade nacional, por uma rupia?
AK ignora o comentário.
– As más notícias não se ficam por aí. Não tens praticamente fontes novas de receita, nem
dinheiro de atividades de financiamento, e as despesas continuam a aumentar devido à tua recusa
obstinada em despedir trabalhadores.
– Vieste aqui para me dizer como devo gerir o meu negócio?
– Não. Vim para ver se consigo meter-te algum bom senso na cabeça. A catástrofe está iminente,
quer queiras vê-la quer não. Admite: perdeste o jeito, Vinay Mohan. O Grupo CEA foi derrotado
pelo Premier Group em sete concursos consecutivos. O teu negócio com a Nippon Steel está em
perigo. A proposta de aquisição da Clemantis Windpower será provavelmente rejeitada pelos
acionistas.
– Andas a dar ouvidos a demasiados rumores. Vai direto ao assunto, AK – diz Acharya com maus
modos.
– Bom, o assunto é este: sei que o Grupo CEA enfrenta um problema de dinheiro e que está a
renegociar a linha de crédito com os bancos. Eu posso arranjar-te esse dinheiro.
– Desculpa, mas não estamos a lançar mais ações.
– Não quero comprar as tuas ações. Quero adquirir a tua empresa, na totalidade. Vende-me tudo.
Estou disposto a fazer uma oferta razoável pelo Grupo CEA, posso ir até aos cinco mil milhões de
dólares.
– Nunca! – Acharya quase salta da cadeira como se tivesse molas. – Sei como fazes negócios,
AK. És um rufia ateu que compra empresas apenas para as sugar até ao tutano. Nunca permitirei que
o Grupo CEA seja gerido por escumalha como tu.
– Acalma-te, Vinay. Estou a falar unicamente de negócios, não é nada pessoal.
A atmosfera torna-se tão elétrica, que quase consigo ver as faíscas a voarem entre os dois. Pela
primeira vez na minha vida, estou a testemunhar a guerra do mundo dos negócios. Como os
negócios são feitos e rejeitados. Acharya e o seu irmão são cópias genéticas um do outro e, apesar
disso, imensamente diferentes. Um deles é um tirano despreocupado que governa por instinto e
convicção; o outro, um oportunista astuto que enriquece através de fraude e artimanhas. É como ver
dois touros enfrentar-se, as duas personalidades contrastantes a colidir, como nuvens de
tempestade, a sala a ecoar com o trovão da sua animosidade mútua.
AK ainda não desistiu.
– Ouve, irmão – diz, inclinando-se para a frente e falando em tom suave. – Estamos unidos por
laços de sangue. Ambos enfrentámos tragédias pessoais. Tu perdeste a tua mulher e a tua filha. O
meu único filho suicidou-se. Porque não podemos enterrar o machado de guerra? Unidos, somos
fortes; divididos, caímos.
– Parece que me recordo de, há muitos anos, teres feito uma súplica semelhante à mãe. A pobre
amma vendeu a quota dela e tu gastaste tudo em mulheres e cavalos.
– Isso é passado. É melhor não trazeres a mãe para a discussão.
– Nesse caso, é melhor não trazeres o Grupo CEA para a discussão.
– Se eu não o fizer, outra pessoa o fará. Chegou-me aos ouvidos que tens tido problemas de
saúde, ultimamente.
– Mentiras!
– Mesmo assim, já pensaste no que acontecerá ao Grupo CEA depois da tua morte?
– Tenho um plano para a minha sucessão.
– E quem é esse sucessor, posso saber?
– Alguém que acredita nos mesmos valores que eu. Alguém que manterá o Grupo CEA a salvo de
predadores como tu.
– Não precisas de um plano de sucessão; precisas de um plano de salvamento. Ainda dou valor
aos nossos laços de sangue e a minha oferta de aquisição mantém-se. Podes fazer com que ela se
concretize ou, no mínimo, deixar que se concretize. Caso contrário, Vinay, garanto-te que nem
saberás o que te aconteceu.
– Chega. – Acharya ergue o tom de voz. – Sugiro que saias.
– Muito bem. – AK levanta-se e alisa a camisa. – A próxima vez que te vir será no teu funeral.
Assim que AK parte, Acharya entra de rompante no quarto, com as narinas abertas, o maxilar
tenso de fúria.
– Quem é que aquele fanático grosseiro pensa que é? O rei de Inglaterra?
Assumo a atitude neutra de um juiz num processo de divórcio particularmente azedo.
– O AK pode ser um imbecil desagradável, mas os factos e números que ele mencionou são
verdadeiros? O Grupo CEA está mesmo em maus lençóis?
– De maneira alguma – nega Acharya com veemência. – Fomos afetados pelo abrandamento
global, como toda a gente. Mas a situação está longe de ser tão má como o AK quis fazer parecer. O
nosso balanço é bastante saudável e o rácio de endividamento é inferior a um. É por isso que ele
quer comprar-nos.
– Mas rejeitou a oferta dele sem hesitar. Era demasiado baixa?
– Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: Aceitaria casar-se com um mulherengo inveterado, bêbedo e
ainda por cima ladrão?
– Claro que não.
– Exato. É por isso que eu nunca venderei o meu negócio ao Premier Group, nem que eles me
ofereçam vinte mil milhões. O grupo é gerido por uma cabala de vigaristas, encabeçada pelo maior
de todos os vilões, o AK.
– Ele também disse qualquer coisa sobre a sua recusa em despedir trabalhadores.
– Posso despedir empregados por traição e deslealdade, mas não por causa de uma crise
económica que não foram eles que criaram. Antes de despedir um trabalhador, é preciso pensar nos
custos sociais de um despedimento e não apenas nos benefícios económicos. A nossa fábrica de
cimento no Laos, por exemplo. Está a dar prejuízo, mas não tanto que tenhamos de a encerrar. As
pessoas lá são pobres. Se despedirmos os trabalhadores, as famílias deles morrerão à fome. Não
posso permitir que isso aconteça.
– E eu que pensava que as corporações empresariais eram insensíveis e inescrupulosas,
interessadas unicamente nos lucros.
– As corporações tradicionais são, efetivamente, assim. Pela sua própria natureza, o negócio tem
a ver com decisões económicas frias, sem espaço para a emoção. As empresas preocupam-se
apenas em ganhar o máximo de dinheiro possível, sem qualquer preocupação com o bem comum.
Eu também comecei a fazer negócios assim, antes de me aperceber de que era a forma errada.
Agora, para mim, os valores vêm em primeiro lugar e o lucro em segundo. – Faz uma pausa e olha
para mim. – Sabe quem me ensinou esta verdade?
– O seu pai?
– Não, foi a Maya, a minha filha. Era dotada de uma sabedoria superior à sua idade. Foi por isso
que Deus a levou apenas com vinte e cinco anos.
Aproximo-me da mesa e pego numa fotografia de uma adolescente sentada numa poltrona, com os
olhos negros e rasgados franzidos num sorriso.
– É ela?
– Sim. Todos os dias sinto a falta dela.
Procuro no rosto da rapariga alguma semelhança com o meu, mas não há sequer uma parecença
superficial. De certeza que Acharya não me escolheu por eu lhe fazer lembrar a filha.
– As feições dela não parecem tipicamente indianas – comento.
– Porque a mãe dela, a minha mulher, era japonesa.
– Onde a conheceu?
– Em Nagasáqui. Fui estudar para o Japão e acabei por lá ficar dez anos. Apaixonei-me pela
cultura e por uma rapariga chamada Kyoko.
Pego noutra fotografia, esta de uma mulher esguia, de rosto gentil, vestida com um quimono.
– É a Kyoko?
Ele acena afirmativamente com a cabeça.
– Morreu no mesmo acidente de aviação que a Maya.
Acharya tira-me a moldura das mãos e olha para o retrato com ar saudoso.
– As mulheres japonesas são muito semelhantes às indianas. São gentis, sinceras, bondosas e
dedicadas à família. Tal como as esposas indianas, compreendem a hierarquia.
Entendo o comentário como uma indireta subtil, dirigida a mim. Tenho de compreender e
obedecer à hierarquia.
Quando ele coloca a fotografia de novo na mesa, vejo uma lágrima escapar-lhe pelo canto do
olho. É a primeira vez que deixa o seu exterior taciturno revelar um lado mais suave. Apesar das
minhas reservas em relação a todo este projeto, não posso deixar de sentir compaixão por ele. Vejo
os estragos da solidão nos seus olhos cansados, que lhe conferem ao rosto uma certa tristeza nobre.
Percebo agora que o seu egoísmo monumental é, na verdade, um mecanismo de defesa para ocultar
a sua vulnerabilidade. Ainda é um marido em sofrimento e um pai desolado. Foi bem-sucedido nos
negócios, na compra de empresas e fábricas, mas toda essa riqueza não consegue preencher o vazio
do seu coração.
Acharya repara que estou a olhar para ele e desvia o rosto, ligeiramente corado, como que
embaraçado pelo seu próprio sentimentalismo.
– Agora que viu o AK, consegue compreender por que motivo preciso de o manter à distância? –
pergunta, obviamente para mudar de assunto.
– Devo admitir que o achei incrivelmente arrogante e rude.
– O verdadeiro problema dele não é a rudeza: é a volatilidade. Alguma vez pensou por que razão
o símbolo do Premier Group é um touro a investir? É porque é exatamente isso que o AK é, um
touro furioso. Nada o impedirá de obter o que quer.
– É mesmo assim tão poderoso?
– Um poder que vem de conluios e corrupção. Deixe-me partilhar algo consigo, em estrita
confidência. Já ouviu falar da Atlas Investments?
– Sim, claro. É a empresa de fachada por trás de praticamente todas as fraudes na Índia.
– Bom, tenho um forte palpite de que o AK é o cérebro por trás da Atlas.
– O quê? – Ergo abruptamente a cabeça. – É uma acusação bastante grave.
– Claro que não tenho provas concretas, mas analisei cuidadosamente os padrões dos
investimentos recentes do Premier Group e parecem coincidir com a cronologia das fraudes. Além
do mais, como já viu, ele parece estar cheio de dinheiro. Resta-nos adivinhar de onde é que todo
esse dinheiro apareceu.
– Nesse caso, porque é que ninguém lhe faz frente?
– Porque estão todos metidos nisto. Para o desmascarar, precisamos de provas inabaláveis de
transferências de subornos para as contas bancárias secretas dele.
– Há uma senhora de idade na nossa colónia, uma devota de Gandhi chamada Nirmala Ben, que
ameaça iniciar uma revolução popular para obrigar o governo a revelar a identidade do vigarista
por trás da Atlas.
Acharya agita a mão num gesto desdenhoso.
– Diga-lhe que não perca tempo com a Atlas. A rede de subornos é tão grande e profunda, que
nada menos do que uma análise totalmente transparente da estrutura de proprietários poderá revelar
o verdadeiro culpado. E isso não vai acontecer tão cedo.
Nesse momento, Rana entra, com uma pasta grossa na mão. Fica surpreendido por me ver com o
senhor Acharya.
– Trouxe-lhe o contrato da Avantha para assinar, senhor – diz ao industrial.
– Com certeza – responde Acharya, como se acabasse de recordar algo importante.
De súbito, sinto-me embaraçada, ali de pé no meio do quarto de Acharya.
– Posso ir? Gostava de ainda ver um pouco do críquete.
Acharya aponta para Rana.
– O Rana tratará de que a deixem em casa.
Com expressão contrariada, Rana conduz-me a uma garagem subterrânea com espaço para seis
carros. Há um BMW, um Mercedes, um Jaguar, um Porsche e, de forma algo incongruente, uma
carrinha Tata Indica.
– O que faz uma Indica no meio destes carros de luxo importados? – pergunto a Rana.
Ele franze ainda mais a testa.
– Por acaso, é o meu carro. Não gosto de depender de boleias nos carros dos outros – diz, em
tom frio, enquanto chama um motorista de uniforme.
Dois minutos depois, saio da mansão num Mercedes-Benz. É a primeira vez que ando num
automóvel de luxo. Estico as pernas, vejo a cidade passar do outro lado dos vidros fumados, e
sinto-me instantaneamente enérgica e animada. Os bancos de pele, o ambiente com temperatura
controlada e a voz suave de Jagjit Singh a sair das colunas de som têm algo a ver com isso. Mas,
acima de tudo, é o pensamento de que este carro pode um dia vir a ser meu.
Quando chego a Rohini, são quase cinco da tarde. Por coincidência, Karan passa os portões da
colónia ao mesmo tempo que eu. Vê-me descer do Mercedes, estaca abruptamente e assume a
postura rígida de um soldado profissional.
– Ba-adab, ba-mulahiza hoshiyar, Mallika-e-Hindustan aa rahi hain. Com respeito, em sentido,
alerta, a imperatriz da Índia está a chegar – entoa, fingindo ser uma sentinela medieval a anunciar a
chegada de uma rainha mogol.
– Takhliya, à vontade – respondo, em tom igualmente altivo, antes de soltar uma risada.
– Então este será o teu meio de transporte habitual daqui em diante? – Aponta com o polegar para
o Mercedes, que se afasta.
– Quem me dera. O Acharya mandou que me trouxessem a casa, porque eu estava na residência
dele, em Vasant Vihar.
Ele revira os olhos.
– O que estavas a fazer em casa dele?
– A assistir a uma reunião bizarra – digo, e conto-lhe a cena tempestuosa entre Acharya e AK.
– Ah, finalmente, o AK entra em cena. – Karan suspira. – O que achaste dele?
– É evidente que há qualquer coisa séria entre os dois. «Estou a falar unicamente de negócios,
não é nada pessoal», disse o AK, mas, na verdade, parece exatamente o contrário. O que eu vi não
tinha a ver com negócios: era puramente pessoal.
– Por mim, podem apodrecer os dois no inferno – diz Karan. – Vou ver o jogo. Até logo.
O pátio, que normalmente está cheio de moradores, encontra-se hoje completamente deserto. A
Índia está prestes a começar a jogar e toda a colónia está colada ao televisor. Quando passo pelo
apartamento de Nirmala Ben, vejo um cadeado pendurado na sua porta, o que não é decididamente
bom sinal.
– Viu a Nirmala Ben? – pergunto à minha mãe, que fica agradavelmente surpreendida por me ver
chegar mais cedo.
– Veio devolver a tesoura que eu lhe tinha emprestado e disse-me que se ia ausentar durante
algum tempo.
– Disse-te para onde ia?
– Não, mas estava um pouco estranha. Abraçou-me como se não tencionasse voltar.
Dhiman Singh, o guarda da colónia, confirma os meus receios. Nirmala Ben foi vista a deixar a
colónia às duas da tarde, com uma pequena mala e dois cartazes. Ele não faz ideia do destino dela,
mas eu faço. Mando imediatamente parar um riquexó motorizado e digo ao condutor para me levar a
Jantar Mantar.

Jantar Mantar, situado em Parliament Street, é um observatório astronómico, com instrumentos de


alvenaria, construído pelo rajá Jai Singh II de Jaipur, há quase trezentos anos. Hoje em dia, é mais
conhecido como o Hyde Park de Deli, o único local onde partidos políticos, cidadãos vulgares e
grupos de ativistas têm permissão legal para fazer manifestações quando o Parlamento está reunido.
Os protestos propriamente ditos têm lugar em Jantar Mantar Road, uma rua sombria perto de
Connaught Place, onde pessoas com queixas convergem, de todo o país, na esperança de obterem
uma audiência ou, no mínimo, algum tempo de antena na comunicação social. Geralmente, evito
essa montra caótica e ruidosa da nossa democracia, constantemente apinhada de manifestantes que
gritam palavras de ordem e agitam cartazes. Há grupos que acampam no passeio durante semanas a
fio, praticamente fazendo do lugar uma segunda casa.
Hoje, os manifestantes são poucos e estão dispersos. Há um casal de meia-idade de Madhya
Pradesh, encolhido na sua tenda improvisada. Um cartaz feito à mão declara que estão a protestar
contra a inação da polícia para encontrar a sua filha adolescente, Parvati, desaparecida desde 6 de
janeiro. Ao lado deles está uma associação de comerciantes que exige que o governo imponha uma
proibição total à entrada de empresas multinacionais e grandes corporações no comércio retalhista.
Um terceiro grupo consiste de alguns estudantes da Universidade de Deli, com máscaras antigás,
que se manifestam para salvar o rio Yamuna da poluição. E, por fim, uma mulher sozinha, com um
sari branco, sentada no passeio sujo, à frente de um lençol puído que transformou numa faixa de
protesto. «GREVE DE FOME SEM FIM DETERMINADO CONTRA A CORRUPÇÃO», declara a faixa em tinta
vermelha. Em cada mão, segura um cartaz retangular com pegas de madeira. Um diz «DESMASCAREM
A ATLAS» e o outro, «SALVEM A ÍNDIA».
Os seus olhos iluminam-se assim que me vê.
– Sapna, beti, vieste juntar-te ao meu protesto?
– Não, Nirmala Ben – respondo. – Vim buscá-la para a levar para casa.
– Não vou fazer tal coisa – declara ela, e abana a cabeça com firmeza. – Já te disse, só saio daqui
quando o governo me garantir que revelará quem está por trás da Atlas. Caso contrário, esta greve
continuará até à minha morte.
– Vê alguém a dar apoio à sua greve de fome? – pergunto, exasperada. – Escolheu o pior dia
possível para protestar. Toda a gente está a ver o críquete.
– Uns amigos meus da Associação Durga Pooja e da Gujarati Samaj prometeram vir.
– Então porque é que não estão aqui? Porque é que não aceita o facto de eles não quererem saber
da sua causa?
– Não importa. Depois de iniciar uma greve de fome por convicção, uma satyagrahi tem de se
manter determinada, quer haja possibilidade de a sua ação dar frutos ou não. Barobar chee ne44?
Não há argumentos capazes de persuadir Nirmala Ben a desistir da sua greve de fome. É teimosa
como uma adolescente, e faz-me lembrar Alka. Igualmente frustrada e preocupada, sento-me ao lado
dela, na esperança de que o bom senso leve a melhor nas próximas horas.
Às nove da noite, começo a sentir as pontadas da fome. Viro-me para Nirmala Ben.
– Não quer comer qualquer coisa? – pergunto-lhe.
– Como posso comer durante uma greve de fome? Vai tu comer qualquer coisa. Eu contento-me
com isto. – Tira uma garrafa de água da mala e bebe um gole.
Uma hora depois, um agente da polícia aparece no local. Corpulento e com cara de rato, olha
para nós com ar desconfiado.
– O que é isto? – Toca com o cassetete no cartaz que Nirmala Ben tem na mão.
– Chama-se um protesto – respondo, em tom mais sarcástico do que tencionara.
– Pediram autorização? Onde está a sua licença?
– Não sabia que era preciso uma licença para protestar. Afinal de contas, vivemos numa
democracia.
– Venha comigo à esquadra de Parliament Street – diz ele com ironia –, e eu ensino-lhe como
funciona a democracia.
– Oiça, filho – intervém Nirmala Ben –, não queremos problemas. É um protesto pacífico, para
fazer do nosso país um sítio melhor.
– Oiça, budhiya45 – resmunga o polícia –, isto não é a sua propriedade privada, onde pode
pendurar um cartaz sempre que quiser. Mostre-me a sua licença ou corro consigo à força.
– Não pedirei licença nenhuma – diz Nirmala Ben. – E não arredo pé daqui.
– Mulher estúpida, está a tentar discutir comigo? – Range os dentes e levanta o cassetete para lhe
bater, mas eu ponho-me imediatamente entre eles.
– Vamos resolver o assunto de forma civilizada. Eu arranjo a licença amanhã. Permita-nos apenas
ficar aqui esta noite. E, por favor, aceite este pequeno símbolo da nossa gratidão. – Abro a mala e
ofereço-lhe uma nota de cinquenta rupias.
Ele arranca-me o dinheiro da mão e guarda-o no bolso.
– Pronto, está bem. Deixo-as ficar esta noite porque toda a cidade está concentrada no
Campeonato do Mundo. Mas amanhã têm de sair – diz, em tom severo, e afasta-se com ar altivo.
– Porque subornaste o polícia? – ralha Nirmala Ben. – É exatamente contra isso que estou a lutar.
– Se eu não o tivesse subornado, o bruto ter-lhe-ia batido.
– Devias ter deixado que me batesse. – Sorri. – A essência da satyagraha é a força da alma
contra a força bruta. É a única maneira de afastar essas pessoas do caminho do ódio e da violência.
Sou irremediavelmente atraída pelo seu sorriso carinhoso, cheio de bondade e coragem. E
apercebo-me de que, no fundo, estamos juntas nisto. Posso não concordar com o método dela, mas
acredito na sua causa. E caminharei com ela, mesmo que mais ninguém esteja disposto a segui-la.
Entretanto, a noite escureceu para um negro sinistro e sei que tenho de ir para casa. Não quero
deixar Nirmala Ben sozinha, mas também me recuso a dormir no passeio. Com relutância, despeço-
me dela e apanho o último metropolitano para Rohini.
Ainda estou no comboio quando o meu telemóvel toca. É Neha, aos gritos de alegria.
– Didi, onde estás?
– Porquê? O que aconteceu?
– A Índia ganhou o Campeonato do Mundo, ao fim de vinte e oito anos!
Sou recebida por uma banda completa quando desembarco em Rohini. Soam trompas e trompetes,
e um rapaz com as cores da bandeira pintadas na cara faz piruetas. As ruas estão cheias de carros e
de pessoas e o céu explode com fogo de artifício. Parece-me tudo um borrão. Os festejos parecem
vazios, porque falta uma residente da colónia. Toda a nação incentivou a equipa de críquete da
Índia no seu combate com o Sri Lanka, mas ninguém está a apoiar uma mulher heroica que trava
uma batalha muito mais importante.
A minha mãe é a única que se preocupa com Nirmala Ben.
– Leva-me até ela, beti. Eu consigo persuadi-la a voltar.
– Ela não está disposta a dar ouvidos a ninguém.
– Então sentar-me-ei a fazer greve de fome com ela.
– Não seja ridícula.
– Nunca contei isto a ninguém, mas devo a vida à Nirmala Ben.
Olho para ela, surpreendida.
– O que está a dizer?
– É verdade. Há seis semanas, os meus níveis de açúcar caíram a pique e desmaiei na cozinha. Se
não fosse a Nirmala Ben, que me levou ao hospital, podia ter morrido nessa tarde.
– E só agora é que me está a contar isso?
– Não queria que tu e a Neha ficassem preocupadas sem necessidade.
– Porque tem sempre de ser a mãe a carregar o peso do mundo às costas? – Disfarço a minha
preocupação com irritação. – Às vezes, parece que a mãe e a Nirmala Ben são gémeas idênticas,
feitas do mesmo material.
A mamã torce as mãos.
– Não consigo dormir, sabendo que devia estar com ela.
Nem eu. Pensar em Nirmala Ben sozinha, deitada no passeio, não me deixa pregar olho a noite
inteira. Tenho para com ela uma dívida maior do que julgava.

Os manifestantes da véspera ainda estão a dormir, enrolados em cobertores dentro das suas
tendas improvisadas. Este grupo heterogéneo de estudantes, comerciantes e donas de casa não
inspira muita confiança. Na verdade, todo este troço de estrada parece menos uma montra da
democracia do que um museu dos impotentes.
Nirmala Ben é a única que já está a pé e em atividade. Já terminou as suas abluções diárias numa
casa de banho pública nas imediações e está a cantar Raghupati Raghav Raja Ram46 quando
chegamos.
– Ben, acabe com esta teimosia e venha para casa connosco – implora a minha mãe, mas ela
limita-se a sorrir. – Durante quanto tempo pode ficar assim, sem comida? – tenta a mamã de novo.
– Enquanto tiver força interior. E enquanto o governo não responder às minhas exigências.
– Mas o governo nem sequer sabe das suas exigências! – exclamo. – E, que digo, nem sequer as
pessoas vulgares sabem dela. Acabou de passar um leiteiro a fazer distribuição. Perguntei-lhe se
apoiava a sua causa. Ele disse que nunca tinha ouvido falar da Atlas Investments.
– Se lhe tivesses perguntado sobre corrupção, a resposta seria outra. O bapu disse que a verdade
é, por natureza, autoevidente. Assim que limpamos as teias de aranha de ignorância que a rodeiam,
a verdade brilha fortemente. A minha satyagraha é despertar os impotentes e envergonhar os
poderosos – diz Nirmala Ben. – Verás como o meu protesto se transformará num movimento que
mudará o rumo da História.
Compreendo então que Nirmala Ben não voltará à colónia. Animada por uma injustiça grandiosa
e seduzida pela visão imponente da revolução, continuará com a greve de fome até morrer. Mas a
sua morte será em vão. Os impotentes deste mundo não podem mudar a História, nem criá-la.
Estamos condenados apenas a estudá-la.

– A tensão arterial está a subir e o ritmo cardíaco está acelerado. Ainda não corre risco de vida,
mas não me parece que possa continuar muito mais tempo sem comida. Devia desistir da greve de
fome – diz o médico, enquanto arruma o estetoscópio e estende a mão para receber o pagamento.
Dou-lhe uma nota de cem rupias e ele desaparece rapidamente para a sua clínica de vão de escada.
É quarta-feira, 6 de abril, e Nirmala Ben não come uma migalha há quatro dias. Mais preocupante
ainda, o seu protesto não encontrou qualquer tração. Atraiu alguns curiosos, mas, tirando isso, é
como se estivesse em greve de fome na lua. Até a polícia deixou de a incomodar, considerando-a
apenas uma excêntrica. A verdade é que, sem uma brigada de apoiantes a gritarem palavras de
ordem e seguidores a empunharem cartazes, o seu protesto não se parece nada com um protesto:
parece apenas uma mulher sem-abrigo abandonada num canto da cidade.
– Faz alguma coisa, beti, antes que seja tarde de mais – preocupa-se a minha mãe. Fizemos uma
escala entre ambas. A mamã fica com Nirmala Ben todo o dia e faz-lhe companhia. Eu visito-a
sempre que posso sair da loja, que fica a poucos minutos.
Nirmala Ben perdeu algum peso, mas o seu zelo pela cruzada e a sua fé na natureza humana estão
intactas.
– As pessoas acabarão por vir – diz, ainda esperançosa.
Ninguém vem, claro, mas na minha hora de almoço encontro por acaso Shalini Grover, a minha
amiga da Sunlight TV. Parece que um dos estudantes com máscaras antigás que protestam contra a
poluição no Yamuna é seu sobrinho.
Peço-lhe conselhos.
– Como podemos espalhar rapidamente a notícia da greve de fome da Nirmala Ben?
– Têm de conseguir atrair as câmaras de televisão – diz ela. – É a única maneira de iniciar uma
reação em cadeia.
– Não pode trazer uma equipa de câmaras?
– Somos um canal de investigação, não um canal noticioso. E mesmo os jornalistas desses canais
só dão tempo de antena a um protesto se ele for significativo.
– E o que é que torna um protesto significativo?
– Ou o tema é apelativo, ou os números têm de ser grandes. Alguma vez se perguntou por que
motivo há mil jornalistas a cobrir as modelos glamorosas que desfilam pela passarela na Semana
da Moda da Índia, mas eu ando sozinha a relatar os suicídios dos agricultores em Vidarbha? As más
notícias não vendem. A greve de fome da Nirmala Ben, contra uma empresa de fachada pouco clara,
não é suficientemente sexy. No entanto, se ela conseguisse que as mulheres de Deli organizassem
uma manifestação do género da SlutWalk, que teve lugar há alguns dias em Toronto, isso atrairia
instantaneamente as atenções e tornar-se-ia um acontecimento mediático.
– A Atlas Investments é apenas um símbolo. O verdadeiro alvo dela é a corrupção ao mais alto
nível.
– Não me faça bocejar. Ninguém se rala com a corrupção neste país. Metade da classe média
pratica subornos e a outra metade não está para se dar ao trabalho de sair à rua e lutar contra isso.
– Não acha que está a ser um bocadinho injusta com a classe média? – protesto.
– Estou apenas a dizer-lhe como as coisas são. A classe média não quer saber de nada… não
votamos, não participamos nas eleições… portanto, ninguém quer saber da classe média.
O dia seguinte não traz mais apoiantes para a causa. A única alteração na situação é que a saúde
de Nirmala Ben está cada vez mais fraca.
– A pulsação dela é oitenta e oito e a tensão arterial é cento e cinquenta/noventa. Podem vir a ser
necessários cuidados médicos urgentes nas próximas vinte e quatro a quarenta e oito horas. Por
favor, tenham uma ambulância de prontidão – diz o médico depois de terminar o exame.
Nirmala Ben perdeu mais de três quilos nos últimos seis dias. A sua tez escureceu, devido à
desidratação, e o rosto adquiriu uma magreza perigosa, exacerbada pelas olheiras escuras. Já não
tem forças para estar sentada o dia todo. Passa a maior parte do tempo deitada em cima de um
lençol. A sua mente, porém, continua lúcida.
– Nirmala Ben, por favor, acabe com esta loucura – imploro. – Vamos aceitar o facto de que
falhámos, desta vez. Tem de viver, para poder continuar a lutar.
– Não – responde ela com firmeza. – Agora, só o meu cadáver sairá daqui.
A sua firmeza e determinação deixam-me enregelada.
Vinay Mohan Acharya vem visitar-nos ao meio-dia. Afirma ter ouvido uma breve menção à greve
de fome de Nirmala Ben na Sunlight TV.
– É esta a revolução popular que me prometeu? – Olha para a devota de Gandhi deitada no chão,
sozinha. – Mas onde estão as pessoas?
– A Nirmala Ben está a morrer. – Torço as mãos. – E ninguém parece importar-se.
– Eu disse-lhe que ela perderia tempo com a Atlas. – Solta uma risada desdenhosa. – Também eu
tentei ser um agente da mudança, mas desencadear uma revolução neste país é impossível. A
História diz-nos que, para uma revolução ser bem-sucedida, é preciso uma de duas coisas: ou uma
figura governante universalmente odiada, ou uma figura de oposição universalmente amada. Na
Índia, não temos uma coisa nem outra. Nós, os indianos, não sentimos demasiado ódio nem
demasiado amor por ninguém.
– Não há nada que possamos fazer para galvanizar as pessoas para a causa dela?
– Esqueça. As pessoas só são galvanizadas para entrar em ação por questões que lhes toquem no
coração. E, lamento dizê-lo, mas eliminar a corrupção ainda não é uma questão emotiva para
ninguém. As pessoas acham que ela está demasiado enraizada para poder ser suprimida.
O industrial parte, depois de fazer a sua homilia, mas eu não estou disposta a aceitar a derrota tão
facilmente. De regresso à loja, espremo o cérebro em busca de uma solução. Sei que está na altura
de uma nova abordagem. As pessoas não vão aparecer por vontade própria para apoiar uma mulher
desconhecida que não tem uma organização a apoiá-la. É uma regra fundamental do marketing: é
preciso construir uma presença na mente dos consumidores antes de os poder convencer a comprar
o produto. A publicidade baseia-se nisso. Mas como vender um protesto?
É então que os meus olhos incidem num cartaz gigante que se ergue sobre Jantar Mantar. Mostra a
atriz Priya Capoorr, com o rosto a brilhar e uma bisnaga de creme Amla na mão. A resposta surge-
me como um clarão: também Nirmala Ben precisa do patrocínio de uma celebridade.
Ainda tenho o número de Rosie Mascarenhas, a relações-públicas e agente da atriz. Ligo-lhe e
explico a minha proposta.
– Acha que a Priya acederia a dizer algumas palavras de apoio à greve de fome da Nirmala Ben?
É por uma causa nobre.
A relações-públicas não acha graça nenhuma.
– É preciso ter descaramento para me telefonar depois da forma como se comportou com a Priya
– reclama, e depois acrescenta: – Quem é que já ouviu falar dessa Nirmala Ben? Não nos
associamos a marcas desconhecidas.
Sem me deixar desencorajar, passo ao plano B e recorro a Karan.
– Se a Priya Capoorr não quer apoiar a greve de fome da Nirmala Ben, o Salim Ilyasi fá-lo-á.
– Mas como entramos em contacto com ele? Não tenho o número da secretária dele.
– Tu és o Salim Ilyasi. Lembras-te da partida que me pregaste no Dia das Mentiras? Quero que
faças o mesmo pela Nirmala Ben.
– Não estou a perceber.
– Quero que graves uma mensagem com a voz do Salim Ilyasi, a pedir às pessoas que se juntem à
Nirmala Ben no seu protesto, e que a envies para os clientes da Indus.
– Espera aí! Queres que eu vá parar à cadeia? E se o Salim me processar?
– Não usamos o nome do Salim Ilyasi. Não temos culpa se outra pessoa tem uma voz igualzinha à
dele, pois não?
– E a empresa? Se o meu patrão descobrir que enviei uma mensagem em massa, de graça, serei
despedido.
– Sei que é um risco, mas é a nossa única alternativa. Caso contrário, a Nirmala Ben morrerá.
É preciso algum esforço para convencer Karan, mas, depois de aceder, ele entrega-se de corpo e
alma. Já tenho um texto preparado e Karan grava-o na perfeição, com a voz idêntica à de Salim
Ilyasi. Até ele fica impressionado com a imitação.
– Os cem milhões de assinantes da Indus nem sabem a surpresa que os espera – diz, com um
sorriso.
Três horas depois, o meu telemóvel apita, com uma mensagem recebida de um número de
Bombaim. Oiço-a e fico instantaneamente cativada pela voz de barítono de Salim Ilyasi.
– Amigos, o nosso país está a passar por tempos difíceis – diz a superestrela. – As fraudes
sucessivas abalaram a confiança do povo. Não podemos continuar a assistir de braços cruzados.
Assim, decidi juntar-me à luta corajosa de Nirmala Ben contra a corrupção. Estarei a apoiá-la, em
Jantar Mantar, no sábado dia 9 de abril. E todos deviam fazer o mesmo. Juntos, podemos tornar a
Índia um lugar melhor. Venham. Será fantabulástico!
Ligo a Karan.
– Está soberbo! Mas preocupa-me um pouco o número de Bombaim que usaste. É mesmo o
telefone do Salim Ilyasi?
– Estás doida? Seria preso se fizesse uma coisa dessas.
– Então de quem é?
– É um número inexistente, mas, se mudares o último dígito, de zero para um, estabelecerás
ligação.
– Com quem?
– Com o Manicómio de Andheri!

O plano resulta melhor do que eu poderia ter imaginado. A mensagem falsa de Salim Ilyasi
propaga-se como um vírus. Os detalhes da greve de fome de Nirmala Ben espalham-se através de
blogues, do Twitter, do Facebook, do MySpace e do YouTube, até que se atinge uma espécie de
massa crítica. As pessoas começam a aparecer no local da greve de fome muito cedo, na manhã de
sábado. Vêm à procura de Salim Ilyasi, mas depois acontece algo curioso. Veem Nirmala Ben, uma
mulher idosa e frágil que está sem comer há uma semana, e sentem-se tão atraídas pela sua
perseverança inabalável como pela perspetiva de verem uma superestrela de Bollywood.
À tarde, a multidão atinge as oito mil pessoas, talvez mais. É então que acontece outra coisa
interessante. Quase espontaneamente, forma-se uma força de voluntários ativos. Começam a
construir um palco. Alguém passa um balde para donativos e estes começam a aparecer em
catadupa. O dono de uma casa de tendas empresta-nos uma grande tenda shamiana, que fornece a
proteção necessária contra o sol forte. Alguém traz um gerador portátil, outra pessoa um sistema de
som. Um grupo de cantores e músicos locais junta-se a Nirmala Ben em palco e o ar começa a
vibrar com hinos religiosos e canções patrióticas.
Nada reanima mais depressa um manifestante do que a visão de uma multidão a apoiá-lo. Nirmala
Ben enche-se de energia renovada e novo zelo. Até consegue pôr-se de pé e fazer um discurso
apaixonado, pedindo à multidão que lance uma nova revolução e limpe o país da corrupção.
– Desmascarar a Atlas é desferir um golpe mortal nos conluios corporativos – declara, ao som de
aplausos contínuos, com a voz a pulsar de fervor e autoridade maternal.
Depois disto, não demora muito tempo para que o ciclo noticioso da comunicação social comece.
Repórteres, fotógrafos e equipas de jornalistas de televisão convergem para Jantar Mantar como
tubarões para sangue fresco no mar.
Assim que a notícia da greve de fome surge no horário nobre, a afluência de pessoas torna-se uma
maré. Poucas horas depois, Nirmala Ben domina as ondas hertzianas, ultrapassando mesmo a festa
do críquete da Primeira Liga indiana, que começou um dia antes. Formam-se apressadamente
painéis para discutir o assunto, e tudo quanto é gente manifesta opinião sobre a greve de fome e
contra a corrupção em geral, bem como contra a Atlas em particular.
No domingo, o protesto cresce e torna-se uma avalanche. Jantar Mantar Road está completamente
apinhada de manifestantes que agitam bandeiras nacionais e cantam e dançam ao som de tambores,
numa atmosfera quase de festa. Mais de cem pessoas decidem juntar-se à greve de fome de Nirmala
Ben, incluindo um veterano dos combates pela liberdade, de noventa e dois anos, disposto a dar a
vida se o governo não ceder. Desconhecidos abraçam-se e gritam palavras de ordem, aclamando
Nirmala Ben como um novo Gandhi.
A torrente de pessoas continua, sem diminuir, ao longo do dia. Chegam de comboio e de
autocarro, de bicicleta e a pé. Vêm de aldeias distantes e de povoações poeirentas, de centros
comerciais modernos e de escritórios com ar condicionado. Há agricultores gujjares de Haryana,
jovens desempregados de Noida, estudantes de RK Puram, donas de casa de Chittaranjan Park,
trabalhadores dos laticínios de Jind, clérigos de uma madraça em Nangloi, alfaiates de Ghaziabad,
eunucos de Yusuf Sarai, e executivos de call centers de Gurgaon. É difícil imaginar um grupo mais
díspar e amorfo, unido apenas pelo ultraje contra a cultura de corrupção e nepotismo. Todas estas
pessoas enfrentaram a corrupção na sua vida quotidiana, desde o pai obrigado a fazer uma
«doação» a uma escola privada para conseguir lugar para o filho, ao trabalhador da construção
civil que teve de subornar um funcionário para obter senhas de racionamento. É uma coligação
espontânea dos descontentes e dos prejudicados. Nirmala Ben tornou-se o ponto de união das suas
frustrações diárias e aspirações por realizar. E «Desmascarar a Atlas» tornou-se o grito de guerra
de uma nação furiosa, que finalmente decidiu manifestar-se.
Enquanto vejo o mar de punhos que se erguem em uníssono, enquanto oiço os gritos de «Nirmala
Ben zindabad!» («Viva Nirmala Ben!») vindos do palco, viro-me para Karan, que está ao meu lado
num canto relativamente menos apinhado.
– Obrigada. – Aperto-lhe a mão, grata. – Imaginaste este espetáculo quando enviaste aquela
mensagem de voz?
– Queres dizer que fui eu que causei esta confusão toda? – Karan olha, espantado, para a multidão
de pessoas que se acotovelam para conseguir ver Nirmala Ben.
Do palco, chega o som de uma bateria, seguido de gritos agudos.
– Oh, meu Deus! – exclama Karan. – Parece que os Desi Nirvana estão aqui.
– Sim. Vieram apoiar a Nirmala Ben com um concerto gratuito.
– Passar o domingo com a plebe da Índia, a ouvir uma banda de rock, não é propriamente a minha
ideia de diversão. Por outro lado, dificilmente terei uma oportunidade destas outra vez – diz,
enquanto se junta à multidão de militantes. – Anda, vem comigo.
– Vai tu – digo-lhe. – Não sou grande fã de hard rock. Além disso, estou à espera do doutor
Motwani, do Hospital Apollo. É o cardiologista mais caro da Índia. E ofereceu-se para monitorizar
o estado de saúde da Nirmala Ben, de graça.
A notícia do apoio crescente à greve de fome até atraiu o namorado de Lauren, James Atlee, o
especialista de marcas.
– Tem de me dar umas dicas – diz o inglês, estupefacto. – Conseguiu algo que eu não conseguiria.
Transformou uma perfeita desconhecida num ícone internacional.
– Com uma ajudinha do Salim Ilyasi – digo, com uma piscadela de olho.
– Metade da minha empresa parece ter vindo dar apoio ao protesto. Até já vi o filho do patrão no
meio da multidão.
– O filho do seu patrão? Refere-se ao dono da Indus Mobile?
– Sim, o Karak Júnior. Tem só dezanove ou vinte anos, mas é uma desgraça total, posso dizer-lhe.
É um anormal, provavelmente anda metido em drogas.
– O que é que ele está a fazer aqui?
– Isso é fácil de adivinhar. Toda a gente anda a tentar perceber como é que a mensagem do Salim
Ilyasi foi transmitida pela rede.
A sineta de alarme começa instantaneamente a tocar na minha cabeça. Procuro Karan,
freneticamente. Demoro vinte minutos a encontrá-lo. Está a comer um gelado comprado a um
vendedor ambulante.
– Queres um? – pergunta, com um sorriso.
– Estive com o namorado da Lauren, o James – informo-o. – Ele diz que o filho do dono da
empresa, o Karak Júnior, também está cá.
– O quê? – Karan empalidece e o seu sorriso evapora-se. Atira o gelado para um caixote do lixo
e torce as mãos, nervoso. – Estou feito – murmura. – Significa que o Salim Ilyasi se queixou e a
empresa lançou uma investigação. Merda!
– Talvez o filho do teu patrão tenha vindo apenas ver o protesto.
– Não o conheces – diz Karan. – É um filho da mãe. Quando anda à procura de alguma coisa,
nunca desiste.
– Achas que podes perder o emprego?
– Cobri bastante bem o meu rasto. Só espero que os meus amigos no call center que sabem o que
fiz não me denunciem. É melhor ir-me embora. – Dá meia volta e afasta-se sem sequer se despedir.
Volto ao estrado onde Nirmala Ben está deitada, com a minha mãe a cuidar dela. Está mais fraca
e extremamente magra. O doutor Motwani, depois de a examinar, proíbe-a de falar e de se cansar.
Diz que ela não aguentará mais de dois dias sem comida.
– Nem toda a adulação de massas do mundo substituiria a nutrição – diz.
Ao final do dia, o governo envia finalmente um emissário para se encontrar com Nirmala Ben. É
um reles subsecretário do Ministério da Economia.
– Estamos a fazer todos os esforços para identificar as pessoas por trás da Atlas – diz. – O
processo é complicado. Precisamos de tempo.
Nirmala Ben ouve-o e ergue dois dedos.
– O que significa isso? – pergunta o burocrata à minha mãe, que, sem saber como, se tornou a
porta-voz oficiosa de Nirmala Ben.
– Significa que ela pode dar-vos dois meses, sessenta dias – diz a minha mãe.
– Não será suficiente. – O funcionário abana a cabeça. – Precisamos, no mínimo, de oito meses a
um ano.
Nirmala Ben agita a mão.
– Então, pode ir – traduz a minha mãe. – Não temos acordo.

Chega a segunda-feira e as multidões recusam-se a arredar pé de Jantar Mantar, o que causa o


caos no tráfego de Connaught Place.
Além das conotações políticas, a greve de fome torna-se um fenómeno cultural. Os bonés com a
cara de Gandhi voam das prateleiras das lojas. O sari branco de Nirmala Ben adquire o estatuto de
um ícone de moda e desfila nas passarelas. Rohit Kalra, o escritor de canções de Bollywood, lança
uma remix atrevida com o refrão «A minha mulher não me beija, porque a Atlas não há quem a
veja», que rapidamente se torna uma sensação no YouTube. Grupos de cidadãos por toda a Índia
começam a organizar fogueiras nas quais queimam simbolicamente exemplares de atlas escolares.
Ao final de terça-feira, só há um programa no país: o programa de Nirmala Ben. O rosto da
devota de Gandhi está por todo o lado: nos jornais, na televisão, em cartazes, T-shirts, bonés e nas
unhas das senhoras. Tal como Amitabh Bachchan é afetuosamente tratado por «Big B», Nirmala Ben
é rapidamente batizada de «Big Ben». Até Priya Capoorr aproveita a onda. Retiro uma certa
satisfação maliciosa de a ver na Star News, a debitar lugares-comuns sobre como sempre admirou
Nirmala Ben e como gostaria de se juntar à greve de fome, mas está de momento em Istambul na
rodagem do seu próximo filme.
Estou tão envolvida na união embriagante da revolução do povo, que o boletim médico mais
recente do doutor Motwani cai como uma bomba. Por volta da meia-noite, o cardiologista anuncia
com ar grave que a saúde de Nirmala Ben se deteriorou consideravelmente e que ela pode morrer
se não for imediatamente posta a soro.
Previsivelmente, Nirmala Ben recusa-se a interromper a greve de fome ou a aceitar o soro.
– Se o meu filho pôde dar a vida pelo seu país, eu posso fazer o mesmo – declara num fio de voz,
cada inspiração um esforço sobre-humano. Numa cidade onde a vida pode terminar de forma
demasiado abrupta e demasiado anónima para ser homenageada, o espetáculo de um martírio
público tem, para ela, um apelo perigosamente sedutor.
A notícia da morte iminente de Nirmala Ben espalha-se como fogo em palha seca. O movimento,
que foi perfeitamente pacífico até agora, torna-se violento. Multidões iradas incendeiam autocarros
e veículos governamentais. Os manifestantes entram em confrontos com a polícia por todo o país.
Os partidos da oposição pedem uma greve geral.
Perante um eleitorado cada vez mais hostil, e sentindo o estado de espírito popular, o governo
tenta recuperar a iniciativa e o ministro da Economia em pessoa apresenta uma declaração escrita
em que garante a Nirmala Ben que investigará a Atlas e revelará a identidade do seu líder no prazo
de sessenta dias.
– Não é uma capitulação – declara, aos repórteres reunidos. – É pragmatismo, baseado numa
noção clara do interesse nacional.
Às 12h01m de quarta-feira, 13 de abril, Nirmala Ben põe fim à sua greve de fome, em direto na
televisão, aceitando um copo de sumo oferecido por uma menina, e todo o país irrompe em
aplausos.
Nirmala Ben é levada imediatamente para o Hospital Apollo, seguida por uma legião de
admiradores devotados e um pequeno exército de médicos. A mamã e eu ficamos com a tarefa de
encerrar os protestos e levar as coisas de Nirmala Ben para a Colónia GBR.
Nessa noite, enquanto arrumamos as coisas dela no apartamento B-25, abro a sua velha mala, a
que levou para Jantar Mantar. Contém o lençol que usou como cartaz e dois saris simples, mas, por
baixo das roupas, há uma série de lenços, colheres, pratos, copos, fitas de cabelo, pulseiras,
isqueiros e canetas. Até um estetoscópio e um relógio Titan de homem. Coisas que não podem de
forma alguma pertencer a Nirmala Ben.
Perante esta descoberta, abano a cabeça. Percebo que a greve de fome não curou a sua
cleptomania.
Big Ben tornou-se um novo ícone nacional. Mas mantém os seus velhos hábitos.

Quando Acharya me chama ao seu escritório na quinta-feira à noite, não fico surpreendida.
– Convocou-me por causa da greve de fome da Nirmala Ben, não foi? – pergunto, assim que
Revathi me faz entrar no gabinete dele.
– Correto. Passou o quinto teste, o teste do engenho, mostrando que pode ser uma boa
solucionadora de problemas. Para fazer com que a greve de fome da Nirmala Ben fosse bem-
sucedida, até navegou pelas águas turvas da política de massas. Não é coisa pouca.
– Não foi fácil, isso é certo.
– É precisamente essa a questão. O engenho é a capacidade de agir de forma eficaz e imaginativa,
especialmente em situações difíceis. Um diretor-geral é, acima de tudo, um mestre de estratégia.
Um jogador de xadrez que antecipou todas as jogadas do adversário. Os líderes engenhosos fazem
as coisas acontecer nas horas mais difíceis, quando a situação parece desesperada. Conseguem
trabalhar nas condições mais complicadas. Nunca desistem. Se o muro for demasiado alto para
escalar, encontram forma de o contornar.
– Tudo o que eu fiz, o que quer que tenha sido, foi pela Nirmala Ben. Não podia deixá-la morrer.
– Teve também a previdência de saber que a Nirmala Ben estava a canalizar a fúria popular
contra a corrupção para o seu símbolo mais visível, a Atlas. E fez com que as pessoas acreditassem
que valia a pena apoiar aquilo que a Nirmala Ben estava a fazer. A mesma estratégia que usou hoje,
para transformar uma obscura devota de Gandhi numa heroína popular, pode usar amanhã para
transformar um produto numa marca. Pode ser o seu segredo mais valioso, quando se tornar
diretora-geral do Grupo CEA.
– Bom, suponho que tive sorte – admito, com um sorriso.
– A sorte não teve nada a ver com isso. Até conseguiu persuadir o Salim Ilyasi a apoiar a greve
de fome da Nirmala Ben. Recebi uma mensagem de voz do ator no meu telemóvel. Como é que
conseguiu uma coisa dessas?
– É um segredo do negócio que não me atrevo a revelar!
Karan passou os últimos três dias a evitar-me. Sempre que o vejo, tem o ar preocupado de um
aluno que anda a estudar para o exame final e não tem um momento a perder. Assim, quando
aparece no jardim nessa noite, não sei o que esperar.
Primeiro, conto-lhe sobre a minha reunião com Acharya.
– Cinco já estão. Faltam dois, não é? – diz ele.
– Ouve, eu sei e tu sabes que o Acharya me está a enganar. Tenho tantas hipóteses de gerir uma
empresa de dez mil milhões de dólares como de ganhar a coroa de Miss Mundo.
– Não diria isso em relação à coroa de Miss Mundo, mas não é importante. O importante é que te
mantenhas um passo à frente do Acharya.
– E tu? A empresa ainda está a investigar a mensagem do Salim Ilyasi?
– Era a principal prioridade do Swapan Karak, o proprietário da Indus – responde ele com ar
grave.
– E descobriu que foste tu? – pergunto, com o coração nas mãos.
– Safei-me! – Sorri. – O Swapan Karak não faz a mais pequena ideia de que fui eu que estive por
trás da mensagem. A investigação terminou hoje. Chegaram à conclusão de que a mensagem foi uma
«partida de utilidade social» levada a cabo por um grupo de hackers independentes.
Solto um suspiro de alívio.
– Ufa! Foi por pouco. Nem imaginas como me senti culpada nestes últimos quatro dias.
Ele dá-me uma palmadinha nas costas.
– Imagino. Foi por isso que estive mesmo tentado a enviar-te outra mensagem, desta vez com a
voz do Aamir Khan em Três Idiotas.
– A dizer o quê?
– Apenas três palavras: «Ezztá tudo beem47.»
42 «Que Deus dê bom senso a todos.» É um verso de um dos hinos mais famosos cantados por Mahatma Gandhi. (N. da T.)

43 Alguém que segue a prática de Gandhi da satyagraha, ou força da verdade. (N. da T.)

44 «Não é assim?», em guzarate. (N. da T.)

45 «Velha». (N. da T.)

46 Hino religioso hindu popular. Um dos favoritos de Mahatma Gandhi, que o cantou, com os seus seguidores, na Marcha do Sal, de 388
quilómetros, até Dandi. (N. da T.)

47 No original, «All izz well», uma frase que se tornou popular através do filme de Bollywood Três Idiotas, com Aamir Khan, que é o
filme hindi mais lucrativo de todos os tempos. (N. da T.)
SEXTO TESTE

150 Gramas de Sacrifício

A Colónia GBR funciona, tal como o resto da Índia da classe média, numa intrincada teia de
laços, relações, obrigações e favores. Toda a gente conhece alguém que conhece alguém. O
senhor Gupta do A-49, por exemplo, é amigo de um técnico de informática que trata de todos os
problemas de computadores dos residentes. O senhor J. P. Aggarwal, do B-27, é a pessoa a
procurar para todas as necessidades relacionadas com ferragens. A senhora Lalita, do C-18, é a
metediça com um talento único para descobrir pechinchas, especialmente em roupas. Nirmala Ben,
do B-25, é a irmã mais velha de toda a gente (entretanto elevada a líder universal). E o doutor
Dheeraj Mittal, do D-58, funciona como médico residente da colónia.
De três em três meses, usamos a nossa relação com o doutor Mittal para a mamã fazer exames de
rotina no Hospital Público da CMD no Setor 17, onde o doutor Mittal trabalha como nefrologista.
Ele podia facilmente pagar um apartamento melhor, mas prefere a Colónia GBR por questões de
conveniência. No seu Ford Fiesta, consegue pôr-se no hospital em menos de dez minutos.
A minha relação com hospitais é como a de uma mulher maltratada que está sempre a voltar para
o marido violento. Odeio visitá-los. Uma viagem ao hospital público é suficiente para transformar
um crente num ateu. Vemos tanta dor e sofrimento, que isso nos faz pensar: como é que um deus
misericordioso pode permitir que exista doença? No entanto, não posso passar sem os hospitais.
São os barcos que transportam as almas danificadas através do rio da doença humana. Fornecem-
me um certificado trimestral de que está tudo bem com a minha mãe e com o mundo.
Nesta altura, já é uma rotina estabelecida. Levo a mamã ao hospital bem cedo, a um domingo de
manhã. Eles recolhem sangue e urina dela. Verificam se tem deficiência de vitamina B12,
deficiência de ferro ou anemia. Fazem-lhe uma radiografia ao tórax, bem como um exame aos olhos.
Depois, temos uma consulta com o doutor Mittal, em pessoa, armado com o hemograma completo, o
valor dos níveis de açúcar em jejum e pós-prandiais, da creatinina no sangue e das culturas de
urina. Dá-lhe um bom sermão sobre a importância de uma dieta isenta de açúcar e a toma regular da
medicação, e passa-lhe mais receitas: glibenclamida para a diabetes, inaladores de salbutamol para
a asma, diclofenac em 50mg para a artrite e telmisartan em 40mg para a hipertensão.
– A sua mãe está bem – costuma ele dizer. Depois, faz-me sinal com o polegar levantado. –
Traga-a novamente daqui a três meses.
Os últimos três meses terminaram no princípio de abril. Nessa altura, estávamos ocupadas com a
greve de fome histórica de Nirmala Ben. Porém, no primeiro domingo imediatamente a seguir, estou
no hospital público com a minha mãe.
Está um dia limpo, de sol, mas o interior do hospital é sombrio e cinzento. A maioria das
lâmpadas fluorescentes está fundida e apenas o sol que entra pelas duas janelas de ambos os lados
ilumina a área da receção. As paredes ostentam o ar desbotado e negligenciado de um sítio que já
viu melhores dias. O ar tresanda a suor e vibra com o ruído das pessoas. Uma jovem mãe de sari
azul está agachada a um canto, a chorar inconsolavelmente. Há longas filas em frente do balcão de
inscrições. Para quem não tem influência nem conhecimentos, são precisas três horas só para obter
um cartão do hospital.
Enquanto percorro os corredores até ao serviço de nefrologia, o cheiro amargo e químico do
hospital invade-me as narinas e faz-me acelerar o passo. O consultório do doutor Mittal, no terceiro
piso, está igualmente apinhado. Na sua maioria, são pacientes idosos, com problemas crónicos,
desconfortavelmente instalados nas cadeiras de plástico duras da sala de espera. Alguns lançam
olhares curiosos à minha mãe, talvez tentando recordar de onde a conhecem. Os que conseguirem
recordá-la-ão como a mulher desconhecida que estava ao lado de Nirmala Ben na cobertura
televisiva da greve de fome.
Como de costume, a enfermeira de serviço deixa-nos passar à frente e, dez minutos depois,
estamos na presença do doutor Dheeraj Mittal. O doutor Mittal, um homem baixo de quarenta e tal
anos, tem o aspeto ligeiramente despenteado de um professor distraído, com o cabelo escuro
revolto e os óculos sem aros. Contudo, compensa-o largamente com os seus modos agradáveis e os
seus profundos conhecimentos médicos. Emana confiança e competência.
– Bem-vinda, Maa-ji – cumprimenta, quando vê a minha mãe. – Ouvi dizer que também se tornou
uma celebridade, graças à Nirmala Ben.
– A Nirmala Ben tem sorte – responde a minha mãe em tom amargo. – Não tem de suportar estas
visitas constantes ao hospital.
– Se conseguisse manter um peso regular, eu também lhe pouparia estes check-ups. No entanto, de
cada vez que a vejo, perdeu mais peso.
– Que hei de fazer? – suspira a mamã. – A Nirmala Ben está forte e robusta mesmo depois de
duas semanas de jejum. Eu como três vezes por dia e não consigo engordar.
O doutor Mittal olha para mim.
– Sabe que há cerca de dois meses a Maa-ji perdeu os sentidos em casa, por hipoglicemia?
– A mamã não me contou, doutor. Só soube há alguns dias.
– É por isso que, desta vez, temos de fazer um exame mais completo – diz o doutor Mittal,
enquanto escreve no seu bloco.
Pede uma série de análises novas: Hba1C, frutosamina, 1,5-anidroglucitol, microalbuminúria,
perfil metabólico completo, azoto ureico no sangue, cistatina C, peptídeo C – é o primeiro sinal de
aviso de que este check-up não está a seguir o mesmo guião.
Os exames demoram um dia inteiro, e os resultados uma semana. Como de costume, vão
diretamente para o doutor Mittal. Sempre achei estranho que os resultados dos exames sejam
mostrados primeiro ao médico, como se não se pudessem confiar aos doentes as análises dos seus
próprios corpos.
É isso que aumenta a mística da profissão médica. Os médicos e os mecânicos de automóveis têm
algo em comum. Ambos trabalham debaixo do capô e nós não temos forma de saber o que se passa
lá, nas entranhas do corpo humano ou do motor de um carro. Tal como um carro perfeitamente bom
pode avariar-se de repente, também os nossos corpos podem trair-nos de inúmeras formas. Assim,
quando o doutor Mittal me chama ao hospital às onze da manhã de domingo, dia 24 de abril, entro
no seu gabinete com o nervosismo de uma aluna medíocre prestes a receber o boletim das notas.
– Está tudo bem com a minha mãe, doutor? – pergunto, assim que me sento na cadeira em frente
dele.
A expressão grave do seu rosto causa-me um aperto no peito.
– Sempre defendi a sinceridade total com os meus doentes – começa. – É por isso…
– Por favor, não me diga que é cancro – interrompo, em tom suplicante.
– Não, não é cancro – diz.
– Graças a Deus – suspiro.
– Não agradeça ainda. A sua mãe tem IRCT, que é igualmente má.
– IRCT? O que é isso?
– Insuficiência renal crónica terminal, a última fase da insuficiência renal crónica. A diabetes e a
hipertensão são as causas mais comuns de IRCT, e a sua mãe tem ambas. São as doenças que afetam
os vasos sanguíneos e prejudicam a capacidade dos rins de filtrarem o sangue e de regularem os
fluidos do corpo. Na insuficiência renal crónica terminal, os rins funcionam a menos de quinze por
cento da sua capacidade normal.
Estou chocada.
– Mas… mas ela parece boa. Deve haver algum engano.
– Os resultados dos exames estão à minha frente, e não mentem. – Pega numa folha e começa a
debitar valores: – Hemoglobina seis gramas, açúcar em jejum oitenta, açúcar pós-prandial cento e
dez, creatinina no soro sete vírgula cinco miligramas. A urina mostra mais de três de proteína e
também mais de três de açúcar. – Tira os óculos e coça a testa. – Se estes não são indicadores de
IRCT, então o que são?
– E porque é que só descobrimos isto agora?
– A insuficiência renal é um assassino silencioso, que avança sorrateiramente ao longo de muitos
anos, sem sinais nem sintomas que o doente possa reconhecer. Quando é detetada tarde, como no
caso da sua mãe, pode ser fatal.
Fatal. A palavra causa-me um arrepio na espinha.
– A única forma de tratar a IRCT é com diálise ou transplante – continua ele. – E vocês não
podem pagar a diálise permanente. Assim, só vos resta uma opção.
– E qual é?
– Um transplante de rim. A sua mãe precisa de um rim novo, e depressa.
– E quanto é que um rim novo nos vai custar?
– Nada.
– Nada? Como assim?
– Porque será um dos seus. Ou da sua irmã.
– Eu… não compreendo.
– Ao abrigo da Lei de Transplante de Órgãos Humanos de 1994, apenas dadores vivos que sejam
familiares diretos podem doar órgãos a um doente. Isso inclui pai, mãe, irmão e irmã.
– Dar sangue é uma coisa. Mas como pode uma pessoa viva dar um órgão como o rim?
– Chama-se transplante renal de dador vivo. O rim tem a vantagem de ser um órgão duplo. Temos
dois. O segundo rim é, na realidade, redundante, porque não tem qualquer finalidade útil. Na
verdade, há quem diga que é um desperdício de recursos do corpo. Portanto, é possível tirar um rim
a uma pessoa viva. Os seres humanos, desde que sejam razoavelmente saudáveis, podem viver
bastante bem apenas com um rim. A única questão é se a Sapna e a Neha estarão dispostas a isso.
Olho para o chão, de cabeça baixa, enquanto tento desesperadamente não vomitar. Aceno
fracamente com a cabeça e pergunto:
– O que é que fazemos agora?
– Bom, preciso que a Sapna e a Neha venham fazer análises ao sangue. Se possível, hoje mesmo.
A boa notícia é que o tipo de sangue da sua mãe é AB-positivo, o que faz dela recetora universal.
Tenho apenas de fazer uma análise de compatibilidade de tecidos e antigénios, para determinar a
compatibilidade final para doação de órgãos.
– E se nem a Neha nem eu formos compatíveis?
– Pensaremos nisso se lá chegarmos, está bem? – Oferece-me um sorriso encorajador, que não faz
muito para me animar.
– Obrigada, doutor – digo, com voz rouca e pouco natural, e saio do consultório.
Na sala de espera, há um cartaz desbotado que mostra a estrutura do sistema urinário. Nunca
olhei duas vezes para ele. Hoje, porém, atrai-me como um íman. Estudo os dois órgãos escuros, em
forma de feijão, localizados de ambos os lados da coluna, logo abaixo das costelas, como se
fossem coordenadas para algum tesouro há muito escondido. Parecem bastante pequenos, cada um
do tamanho de uma mão fechada. Ambos estão cobertos por uma rede de tecido fibroso, nervos e
vasos sanguíneos. Ambos têm canais que os ligam à bexiga. Para mim, o rim esquerdo e o rim
direito parecem idênticos. E não há nada no diagrama que sugira que um deles é redundante.
Quando chego a casa, tenho a mente num turbilhão, a rodopiar com os piores cenários possíveis.
A minha mãe está na cozinha, como de costume, a fazer o almoço. Nem sequer se dá ao trabalho de
me perguntar pelos resultados dos seus exames. Mentalizou-se para aceitar que a morte é inevitável
e que não há antibióticos que a possam salvar quando chegar a sua hora. A única coisa que a
mantém viva é um último desejo, uma última esperança.
– Só estou à espera de ver as minhas duas filhas casadas e arrumadas – disse a Nirmala Ben,
inúmeras vezes. – Depois disso, posso morrer em paz.
Neha, como de costume, está absorta em si própria. Quando entro no nosso quarto, está a
pavonear-se em frente do espelho, a imitar a pose icónica de Pryia Capoorr em Amor em
Banguecoque.
– Decidi concorrer ao concurso de Miss Índia, didi – informa-me. – Uma voz pode ter altos e
baixos, mas não há como duvidar de um rosto bonito. Afinal de contas, uma rosa é sempre uma
rosa, não é?
– Para variar, podes pensar noutra coisa que não seja concursos de beleza e competições de
modelos? – ralho. – O doutor Mittal viu os resultados dos exames da mamã e diz que ela tem
insuficiência renal crónica terminal. Precisa de um rim novo.
– Um rim novo? E onde é que o compramos? No Big Bazaar?
– Isto não é uma piada, Neha. Não podemos comprar um rim: só podemos doá-lo. O doutor Mittal
pediu que fôssemos fazer uma análise de sangue, para ver se alguma de nós pode doar um rim à
mamã.
Neha encolhe-se como se eu a tivesse esbofeteado.
– Doar um rim? Estás maluca, didi? Nem penses que vou dar um dos meus rins.
– Está bem. Então vai tu dizer-lhe que ela vai morrer.
Consigo pelo menos envergonhá-la ao ponto de a convencer a vir comigo ao hospital. Passamos
pela receção e dirigimo-nos ao laboratório clínico no primeiro piso.
A enfermeira de serviço é uma mulher de meia-idade, com má cara, num uniforme branco muito
engomado, que já recebeu instruções do doutor Mittal. Com uma eficiência fria, encontra uma veia
no interior do meu cotovelo e está preparada para perfurar a pele com a agulha quando o meu
telemóvel toca. É a Cruz Vermelha, que me liga para me recordar do Dia Mundial de Doação de
Sangue a 14 de junho.
– O centro de sangue está a ficar outra vez com poucas reservas do grupo sanguíneo de Bombaim
– informa a funcionária. – Quer vir fazer a sua doação trimestral? Podemos até mandar um carro
buscá-la.
O sentido de oportunidade deles espanta-me.
– Desculpe – digo à funcionária. – Estou no hospital, prestes a dar sangue, para a minha mãe.
Desta vez não posso ajudar.
A enfermeira lança-me um olhar desaprovador e enfia a agulha na minha veia. Já dei sangue
muitas vezes, mas esta, por algum motivo, parece-me diferente. Enquanto o líquido escuro e carmim
enche a seringa, invade-me um temor indefinível, um monstro mutante que assume a forma dos meus
piores receios. A amostra será rapidamente analisada e revelará os seus segredos, revelará os seus
antigénios e anticorpos. E sei, no fundo do coração, que este é um teste que ficarei feliz por não
passar.
Neha, que nunca deu sangue, está agitada e nervosa quando chega a sua vez. Morde o lábio
inferior, cerra as mãos e desvia os olhos da seringa. Assim que a agulha lhe penetra na pele, fica
com a respiração acelerada e queixa-se de fraqueza e tonturas.
– Não seja maricas – ralha a enfermeira, e continua a tirar sangue. Neha aguenta o procedimento
com os dentes cerrados, lançando punhais com os olhos à enfermeira, e vomita assim que esta
acaba.
Depois de tirarmos sangue, temos uma agonizante espera de três horas até sabermos os
resultados. Finalmente, o doutor Mittal chama-nos ao seu gabinete.
– Tenho boas notícias – diz, dirigindo-se a mim. – A análise de HLA revelou uma
compatibilidade perfeita de seis em seis para a Neha e uma semicompatibilidade, ou seja três em
seis, para si, o que é igualmente bom, porque a rejeição parcial pode ser ultrapassada com
medicamentos imunossupressores. E o teste de compatibilidade tecidual é negativo para ambas.
– Negativo? – Neha, que tem estado a apertar o braço da cadeira, abre subitamente a mão. Passa-
lhe pelo rosto uma rápida expressão de alívio. – Isso significa que somos incompatíveis com o
grupo sanguíneo da mamã, não é?
– Pelo contrário, significa que a compatibilidade é perfeita. Nesta análise, misturamos glóbulos
brancos do dador com o sangue do recetor. Se os glóbulos brancos forem atacados e morrerem, o
teste de compatibilidade tecidual é «positivo», o que significa que o sistema imunitário do recetor
não pode aceitar o órgão doado. Mas se o teste de compatibilidade tecidual for «negativo», então
os antigénios do dador são compatíveis com os do recetor. Tanto o seu sangue como o da Sapna são
compatíveis com o da Maa-ji, e ambas podem doar um dos rins. Agora cabe às irmãs decidir qual
de vós ama mais a mãe.
Neha e eu olhamos uma para a outra e depois desviamos o olhar. O ar na sala fica denso e
opressivo, sobrecarregado com a gravidade da situação e o ambiente sinistro do hospital.
O doutor Mittal sente a tensão palpável entre nós.
– Não é uma decisão fácil. É por isso que quero que ambas pensem nisso muito bem e voltem a
falar comigo dentro de setenta e duas horas. São três dias.
Regressamos a casa em silêncio, sem saber o que dizer ou fazer a seguir. É um desafio novo para
ambas, algo que nunca enfrentámos. A única coisa em que estamos de acordo é em não dizer
absolutamente nada à mamã.

Nessa noite, deitada às escuras, oiço Neha às voltas na cama e sei que ela está a pensar o mesmo
que eu. Todo o nosso amor e devoção filial se reduziu a esta questão difícil e bizarra: quem
amamos mais? A nossa mãe ou o nosso rim?
É uma pergunta que gostava que nenhuma filha alguma vez tivesse de responder, pois tem o
potencial de lançar irmã contra irmã, expondo as fraquezas escondidas da alma. Todas as
ansiedades, todas as dúvidas, todas as fraquezas e desculpas se atravessam no caminho da minha
decisão. Todos os desejos egoístas florescem no jardim do meu medo.
Para me manter ocupada, faço pesquisa sobre IRCT e transplantes renais. Fico a saber que o rim
de um adulto mede entre dez e doze centímetros de comprimento, contém um milhão de nefrónios e
pesa aproximadamente cento e cinquenta gramas. Vasculho a Internet, à procura de inspiração em
pessoas que doaram rins a entes queridos e ainda levam vidas felizes e saudáveis.
Neha passa o tempo a pesquisar o oposto, a reunir argumentos contra a doação. Conversa em
sussurros comigo depois de a mamã adormecer.
– Doar um rim não é como dar o iPod a um amigo – diz ela. – É uma cirurgia importante e
acarreta riscos a longo prazo. Depois da operação, podes esquecer todos os desportos ou
atividades físicas. Além disso, nem sequer acredito nesse argumento de que o segundo rim é
redundante. Deus não permita, mas se alguma coisa me acontecer um dia, como um acidente ou
alguma doença grave, o segundo rim pode dar jeito.
Há alguma verdade no que ela diz. A minha pesquisa revela que as pessoas com apenas um rim
têm tendência a ter problemas numa fase posterior da vida. Algumas têm tensão arterial alta, outras
uma condição chamada proteinúria, que é o excesso de proteína na urina, e há ainda uma terceira
categoria de pessoas que sofrem de uma taxa de filtração glomerular reduzida, o que significa,
basicamente, que o rim delas já não é eficaz na remoção de impurezas da corrente sanguínea.
– Depois de saber de tudo isto, ainda achas que devíamos ir em frente com a doação do rim? –
pergunta Neha.
– Não temos alternativa. Se a mamã não receber um rim novo, morre – respondo. – As ligações
de sangue têm um preço. O amor exige sacrifício.
– Então faz tu o sacrifício – diz ela, com a sua franqueza característica. – Eu tenho de estar nas
eliminatórias regionais do concurso de Miss Índia. Não posso aparecer pálida e com ar doente.
Além disso, tu és a mais velha.
Neha já me magoou antes; agora, está a tentar atraiçoar-me. Sinto a faca da traição a torcer-se
dentro de mim. E isso enche-me de pura revolta.
– Porquê? Que especiais favores é que vocês alguma vez me fizeram? – expludo, numa ira
virtuosa. – Onde é que diz que a mais velha é que tem de sofrer pelos outros todos? Eu desisti dos
meus sonhos, interrompi os estudos, e agora queres obrigar-me a dar também uma parte do meu
corpo?
Para variar, Neha fica atónita. Recua involuntariamente, com os olhos muito abertos numa
expressão de incredulidade. Depois, escapa-lhe dos lábios uma exclamação contrita e cai aos meus
pés.
– Perdoa-me, didi – chora, agarrada às minhas pernas. – Retiro o que disse. Depois de tudo o que
fizeste por mim, como pude ser tão ingrata? Não mereço viver.
É o suficiente para me fazer chorar. Ajudo-a a levantar-se e murmuro:
– Estamos juntas nisto, sua parva.
Abraçamo-nos, duas almas assustadas a tentarem desesperadamente arranjar coragem para fazer
uma coisa corajosa.

Quando o instinto moral de amor filial choca com o instinto primitivo de autopreservação, a
primeira baixa é a capacidade de tomar decisões. Tentamos adiar o inevitável, afundando-nos na
rotina mundana da vida diária. Eu vou trabalhar, Neha vai para a faculdade. À noite, fechadas no
mesmo quarto, mal falamos uma com a outra, sufocadas pelas nossas ansiedades.
Durante quarenta e oito horas ficamos bloqueadas, tensas de incerteza, divididas pela
irresolução, como um júri incapaz de chegar a um veredicto.
É Neha que sugere uma forma de sairmos do impasse, na terceira manhã.
– Vamos atirar uma moeda ao ar, como fazem no críquete. Eu sou cara. Tu és coroa. Está bem?
Aceno afirmativamente com a cabeça. Talvez seja a maneira mais simples. Por vezes, as grandes
decisões da vida têm de ser deixadas à sorte, pura e dura.
Neha remexe na gaveta da roupa e encontra uma velha moeda de uma rupia, com a superfície
manchada pelo tempo. Juntamo-nos no meio do quarto, como duas duelistas prestes a enfrentar o
seu destino. Neha mostra-me ambos os lados, para eu confirmar que a moeda é verdadeira. Depois,
sem mais preâmbulos, atira-a ao ar. Embora velha e gasta, a moeda capta o sol que entra pela janela
aberta enquanto rodopia no ar. Neha apanha-a habilmente quando começa a descer. Passa-a para as
costas da outra mão, sem a revelar.
– A nossa decisão está selada. Não haverá segundas oportunidades, de acordo? – pergunta, em
voz trémula.
– De acordo. Cara ou coroa, será a decisão de Deus, não nossa. Vamos comprometer-nos em
honrá-la.
Neha acena com a cabeça.
– Vou repetir: cara serei eu, coroa serás tu.
– Tira a mão – peço-lhe, e engulo em seco. – Vejamos o nosso destino.
Lentamente, muito lentamente, como um enredo que se revela numa telenovela, Neha afasta a mão.
O sol incide na moeda e as três cabeças de leão do nosso emblema nacional cintilam.
Uma expressão de choque invade o rosto de Neha. Sufoca um soluço perante a finalidade terrível
do veredicto. Porém, recupera a compostura com igual rapidez, exibindo a mesma determinação
estoica que mostrou em Bombaim.
– Se sou eu, serei eu. Darei de boa vontade o meu rim à mamã.
Encontrámos finalmente uma solução, mas, em vez de me sentir melhor, sinto-me miserável.
Quero abraçar a minha irmã e dizer-lhe «Não te deixarei fazer uma coisa dessas. Cumprirei o meu
dever de irmã mais velha». No entanto, o que me sai da boca, em voz estrangulada, é:
– Lamento! Foi azar!
Pouco depois, estamos a caminho do hospital para o encontro com o doutor Mittal. Como é dia de
semana, há menos gente no hospital. No entanto, ele tem o mesmo cheiro a sangue e antissético que
me dá vontade de vomitar.
Quando chegamos ao terceiro piso, somos abordadas por um homem moreno. Reconheço-o. É
Tilak Raj, que trabalha como auxiliar no hospital. O seu filho Raju é um dos meus alunos das aulas
de inglês de domingo.
– Minha senhora, posso falar consigo? – sussurra, puxando-nos para um canto.
– Sim? – pergunto, cautelosamente.
– Ouvi dizer que a sua mãe precisa de um rim novo.
– É verdade. Como soube?
– Ouvi o doutor Mittal a falar com a enfermeira de serviço. O que vão fazer para arranjar o rim?
– A Neha vai doar um dos seus.
– Tss tss. – Abana a cabeça. – O que é isso? Uma jovem tão bonita, e quer acabar com o futuro
dela? Depois de doar o rim, ela secará como uma flor murcha. Aceite o meu conselho, não faça
isso.
– Que alternativa temos? Não podemos pagar diálise permanente.
– Há outra forma. – Pisca o olho.
– Diga-me! – Neha aperta-lhe o braço.
– Podem comprar um rim.
– Comprar? Mas isso é ilegal – digo. – A Lei de Transplantes não o permite.
– Vai pensar na lei ou no futuro da sua irmã? Se quiserem um rim, eu arranjo-vos um rim, e muito
barato.
– Quanto? – pergunta Neha.
– Ficarão a saber quando forem a esta morada. – Tira um papel do bolso e dá-mo. Tem os
contactos particulares de um doutor J. K. Nath, um nefrologista que trabalha no Unity Kidney
Institute, um hospital particular no Setor 15 de Rohini.
– Este hospital não pertence ao nosso membro local da Assembleia Legislativa, Anwar Noorani?
– pergunto, lembrando-me do político de cabelo pintado e patilhas que encontrei uma vez no metro.
– Exato – confirma Tilak Raj. – O membro sahib da Assembleia Legislativa é muito prestável.
Foi ele que me arranjou este emprego. E ajudará também a sua mãe. O hospital dele é especializado
em transplantes de rim.
– E os custos?
– Digam ao doutor Nath que vão da minha parte. Ele fará um bom preço. – Tilak Raj sorri com ar
cúmplice e desaparece silenciosamente pelas escadas.
– Não sabia que o Tilak Raj era um angariador envolvido num esquema de rins ilegais – comento,
enquanto o vejo desaparecer.
– Não me interessa se é ilegal ou não, didi – diz Neha. – Gostava de ir falar com o doutor Nath.
– Acho que seria um erro. Devíamos falar primeiro com o doutor Mittal.
– Porque é o meu rim, não o teu, não é? – diz Neha, com súbita veemência. Nesse momento de
descuido, a sua máscara de coragem dissipa-se. Cai de joelhos no chão e toda a ansiedade e
frustração acumuladas transbordam em soluços incontroláveis.
Sinto uma vaga de compaixão por ela, a par de uma centelha de esperança. Talvez haja a
possibilidade de um milagre.
– Hoje não vou trabalhar – digo a Neha. – Anda, vamos falar com o doutor Nath.
Saímos do hospital e apanhamos um riquexó até ao Setor 15. Trinta rupias e 15 minutos depois,
estamos à porta do Unity Kidney Institute.
De fora, o hospital parece um prédio de escritórios, com uma fachada toda em vidro. Lá dentro,
assemelha-se ao átrio de um hotel, tudo em pedra e mármore, imaculadamente limpo.
A receção tem a eficiência ruidosa de um acantonamento militar. Fico surpreendida ao ver alguns
estrangeiros na fila. Uma rececionista jovem e elegante sorri-nos.
– Bom dia, em que posso ajudar?
– Viemos falar com o doutor J. K. Nath – digo.
– Têm consulta marcada?
– Não. Será possível ele receber-nos?
O doutor Nath recebe-nos uma hora depois. É um homem careca e pequeno, de cinquenta e
poucos anos, com o rosto barbeado e dentes amarelos. Embora vista uma bata de médico, há
qualquer coisa nele que me faz lembrar Keemti Lal, o funcionário fuinha do gabinete do magistrado
da subdivisão. Sorri-nos com simpatia, mas o brilho ávido nos seus olhos denuncia-o e deixa-me
desconfiada.
– O Tilak Raj, do hospital público no Setor 17, disse-nos que o procurássemos – começo, com
hesitação.
– Muito bem. – Meneia a cabeça. – Isso significa que precisam de um rim. É para ela? – Aponta
para Neha com o polegar.
– Não. É para a nossa mãe. Tem IRCT.
– Bom, vieram ao sítio certo. Posso arranjar um rim novo para a vossa mãe assim que tenha as
análises dela.
– De um dador falecido?
– Não, vivo. É o que tem de bom a economia de mercado do século vinte e um. É possível
comprar um rim tão facilmente como se compra um carro. É tudo uma questão de oferta e procura.
– Mas não será ilegal? Disseram-me que apenas familiares diretos podiam doar rins.
– É evidente que não leu a totalidade da Lei de 1994. Há uma cláusula de doação altruísta,
segundo a qual qualquer pessoa, mesmo que não seja familiar, pode doar um rim, desde que se sinta
emocionalmente ligada ao recetor.
– Mas nós não conhecemos ninguém assim.
– Deixem isso comigo. Eu encontrarei um dador, e será tudo perfeitamente legal. Ficarão
surpreendidas ao ver com que rapidez é possível formar uma ligação emocional assim que se fala
em dinheiro.
– E de quanto estamos a falar?
– No UKI, cobramos um valor fixo de seis laques por um pacote de transplante renal, com tudo
incluído.
– Seis laques? Está muito acima das nossas posses.
Ele passa a mão pela cabeça calva.
– Nesse caso, é melhor irem a outro lado. Mas saibam que há mais de cento e cinquenta mil
indianos que precisam de um transplante de rim, por ano, mas só há três mil e quinhentos rins
disponíveis. É por isso que é caro. E temos muitos doentes, tanto da Índia como estrangeiros,
dispostos a pagar o preço. Seis laques é uma pechincha. É menos de quinze mil dólares. Na
América, teriam de pagar mais de dez vezes esse valor por um transplante de rim.
É evidente que estamos a lidar com um homem de negócios, mais do que com um médico de
princípios. E não temos forma alguma de poder pagar os preços que ele exige.
– Vamos. – Puxo o braço de Neha. – Não vale a pena perdermos mais tempo aqui. O doutor
Mittal está à nossa espera.
– Não, didi – diz Neha, abanando a cabeça com expressão firme. – Aconteça o que acontecer, não
vou voltar ao hospital público.
Fico sem palavras perante a determinação súbita e insensata que se apoderou de Neha. Está
desesperada por comprar um rim, seja qual for o preço.
Neha assume as negociações a partir desse momento.
– Sou apenas uma estudante. Não pode fazer-me um desconto para estudantes? – pergunta ao
doutor Nath, curvando os lábios num sorriso que é, ao mesmo tempo, suplicante e provocador.
O doutor fica instantaneamente seduzido.
– Bom, por ser para si, posso baixar uma laque. Que me diz a cinco laques?
– Ainda é demasiado caro – diz Neha, com um beicinho.
Assisto, em silêncio, enquanto ela troca valores com o doutor Nath como uma regateadora
experiente. Por fim, o especialista ergue as mãos para o céu.
– Acha que isto é o quê, um mercado de rua? O meu último preço são dois laques, e só porque
tenho pena de si. É pegar ou largar.
– Aceitamos – diz Neha rapidamente.
Inclino-me para o ouvido dela.
– Onde é que vamos arranjar tanto dinheiro? – pergunto, num murmúrio furioso. – A mamã já não
tem joias nenhumas.
– Deixa isso comigo – diz ela em tom confiante, e levanta-se para apertar a mão do doutor Nath.
– Obrigada, doutor. Teremos o dinheiro em menos de uma semana.
– Nesse caso, temos de começar imediatamente os procedimentos necessários. Traga a sua mãe
amanhã, para fazer uma análise ao sangue – diz o médico.
Quando saímos do hospital, Neha ergue momentaneamente os olhos para o céu. Inclino também a
cabeça e fito as nuvens que flutuam sobre o azul. Não sei o que Neha viu, mas eu não vislumbrei
qualquer sinal de milagre.
Neha só revela a sua estratégia quando estamos a meio do caminho para casa.
– Tenho muitas amigas que são podres de ricas. Elas emprestam-me o dinheiro. Dois laques são
trocos para elas, provavelmente menos do que a conta mensal de ração do seu poodle.
Apetece-me perguntar-lhe onde estavam essas amigas quando precisámos de dinheiro para manter
a casa, mas decido calar-me. Quem sou eu para a julgar? Afinal de contas, é o rim dela que está em
jogo. E, por mim, ela pode mendigar, pedir emprestado ou roubar, tanto me faz.

Há uma grande multidão reunida no pátio, quando o riquexó nos deixa em frente da Colónia GBR.
Dhiman Singh diz-me que a senhora Nirmala Ben, a nossa vizinha mais famosa, vai deixar o
apartamento B-25 e mudar-se para Gandhi Niketan, um centro comunitário que pratica os valores de
Gandhi, na localidade elegante e luxuosa de West End, no Sul de Deli.
A mudança não é uma surpresa para mim. Nirmala Ben já não é a simples devota de Gandhi com
o estilo de vida frugal que eu conhecia. Assumiu a vida de uma guru endinheirada. O seu cabelo,
agora, está sempre impecavelmente arranjado, as chappals simples foram substituídas por
sandálias de marca, e até o sari que a caracteriza parece mais branco. Hoje em dia, está
constantemente rodeada por um séquito de seguidores fiéis, admiradores e parasitas. Embora o seu
apartamento fique apenas três portas abaixo do nosso, a sua fama criou uma distância entre nós, um
abismo demasiado profundo para se atravessar facilmente.
– Arrey, Sapna, beti – chama-me, assim que me vê. – Como tens estado? – Abraça-me
afetuosamente.
– Bem. Mas porque vai abandonar a colónia?
– Shoo karoon? O que hei de fazer? – suspira. – Não queria ir, mas os meus camaradas insistem
que esta casa é demasiado pequena para as minhas palestras diárias.
– Vou ter saudades suas – digo-lhe, com sinceridade.
– Arrey, não vou deixar a cidade, estarei a poucos quilómetros daqui. Tu e a Susheela têm de me
ir visitar, sempre que queiram dhoklas e rasagullas caseiras.
Enquanto a vejo entrar para o banco de trás de um elegante Hyundai Sonata, tenho a distinta
sensação de que a estou a ver em pessoa pela última vez. Daqui para a frente, só a verei nas
páginas dos jornais e no ecrã do televisor.
Pelo menos, está a servir-se da fama recém-adquirida para influenciar as vidas de outras pessoas
e inspirar mudanças positivas. A sua campanha contra a corrupção nas altas esferas continuou a
ganhar força. Há notícias todos os dias de que o nó se está a apertar em torno da Atlas Investments.
Os investigadores do governo afirmam ter conseguido informações cruciais nas Maurícias, o que
desencadeou uma vaga de especulações de que os nomes dos indivíduos por trás da Atlas serão
revelados em breve.

No nosso apartamento, a mamã está sentada à mesa de jantar, com a cabeça nos braços, a chorar
baixinho. Está inconsolável com a partida de Nirmala Ben.
– A minha melhor amiga na colónia partiu – lamenta-se. – Quem me dera deixar este mundo de
uma vez.
– Não vai a lado nenhum – ralho.
– O que ando aqui a fazer? – Abre as mãos. – As minhas filhas nunca me dizem nada. Tratam-me
como uma criança, fazem coisas nas minhas costas.
Troco um olhar desconfiado com Neha. A minha mãe está a ter um dos períodos habituais de
depressão, em que imagina conspirações em todo o lado.
– O que é que lhe escondemos? – pergunto, em tom de desafio.
– Sei que tu e a Neha andam a tramar alguma coisa. Tem a ver com os resultados dos meus
exames? Pelo menos digam-me o que o doutor Mittal disse. Quanto tempo me resta?
Sinto que chegou o momento de abrir o jogo.
– O doutor Mittal disse que tem uma doença chamada IRCT, devido à qual os rins começam a
falhar. É por isso que se tem sentido cansada, sem apetite, com dores musculares. Precisa de um rim
novo. E nós estamos a tratar disso.
– Como? Vão dar-me um dos vossos? – A mamã leva a mão aos lábios, horrorizada com essa
perspetiva. – Que Deus me leve se alguma vez causar mal às minhas filhas. A obrigação de uma
mãe é dar, nunca tirar.
– Não será um rim nosso – tranquilizo-a. – Será de outro dador.
– Porquê privar alguém de um rim por minha causa? Ninguém sabe quanto tempo tem neste
mundo. Talvez tenha chegado a minha hora – diz, com o ar fatigado de uma mulher muito mais
velha. – Não vale a pena gastar dinheiro em operações e medicamentos para mim.
As mães têm uma capacidade fantástica de fazer com que os filhos se sintam instantaneamente
humildes. Nunca na vida pensámos na mamã como um ser independente da cozinha. Só por ela ser
uma simples dona de casa de uma cidade de província de Mainpuri, só ter o ensino básico e não
conhecer Camus, não saber nada de computadores e não falar inglês, nunca a levámos a sério, nunca
tentámos realmente compreendê-la. Alka era, das três, a que estava mais próxima dela. A atitude do
papá em relação a ela era de superioridade altiva, e Neha e eu, inconscientemente, imitávamo-lo.
Relegámos a mamã para uma presença em segundo plano, alguém que mantinha a casa em
funcionamento e se lembrava de assinalar as ocasiões religiosas e geria a rede de relações com tias
afastadas e primos ainda mais afastados, enquanto nós nos debatíamos com coisas muito mais
importantes, como equações quadráticas e Hamlet. Mesmo depois da morte do meu pai, nunca nos
passou pela cabeça tentar saber como é que ela se estava a aguentar. Sentir-se-ia sozinha, ou
sobrecarregada pelo peso da rotina diária? Anulou todas as suas necessidades e desejos em favor
dos nossos. E, agora, que a sua vida está em risco, está disposta a sacrificar até isso por nós.
Corro para ela e abraço-a, com o sentimento de culpa a crescer dentro de mim, num soluço sem
lágrimas.
– A mamã tem apenas quarenta e sete anos – recordo-lhe. – A sua hora ainda não chegou e não vai
chegar tão cedo. Cumpriu o seu dever como mãe e agora nós vamos cumprir o nosso dever como
filhas.
– Nós não, eu – interrompe Neha. – Eu é que estou a tratar de arranjar um rim novo para si, no
melhor hospital renal da cidade.
Olho para ela, de boca aberta. Não é apenas aquilo que disse, mas a forma como o disse, num
tom ao mesmo tempo provocador e condescendente.
– Mas deve ser muito caro – preocupa-se a minha mãe.
– Não precisa de se preocupar com dinheiro enquanto eu estiver aqui para cuidar de si – diz
Neha, lançando-me mais uma farpa.
– Minha querida filha! – A mamã limpa os olhos e aperta Neha contra o peito.
Sinto-me sequestrada, excluída desta cena familiar, como uma convidada indesejada numa festa.
De súbito, Neha está a comportar-se de forma muito adulta e tenho dificuldade em lidar com a
situação. Por outro lado, eu é que tenho a culpa. Ao abdicar da minha responsabilidade como filha
mais velha, ao fugir do meu dever, permiti que Neha usurpasse o meu lugar. E agora ela deixou-me
de fora, fez de mim uma pária na minha própria casa.
Vou para a cama com o ego ferido e a consciência pesada. O dinheiro pode comprar um rim, mas
não compra o respeito de uma irmã.

O doutor Mittal liga-me no dia seguinte, precisamente quando estou a explicar a um cliente as
características únicas da série BX420 de televisores LED da Sony.
– O que aconteceu? Pensei que a Sapna e a Neha vinham falar comigo ontem. – Parece zangado e
um pouco agitado.
– Houve uma mudança de planos – informo. – Vamos explorar a possibilidade de obter um rim
pela categoria de doação altruísta.
Silêncio do outro lado da linha. Por fim, ele pergunta:
– E quem é esse dador altruísta?
– Um amigo nosso.
– Nesse caso, é melhor trazerem-no cá. Preciso de o examinar. É essencial que o transplante seja
efetuado nos próximos cinco a sete dias. O estado da sua mãe é muito grave. Ela está a morrer um
pouco todos os dias.
– Compreendo, doutor. – Desligo rapidamente, sentindo-me esgotada e abalada.
Depois disso, não consigo concentrar-me mais no trabalho, o que me garante uma repreensão do
gerente, que ainda está aborrecido com a minha falta inesperada na véspera.

Passam dois dias e Neha consegue arranjar apenas dez mil rupias. Aparentemente, as suas amigas
não são tão generosas como ela pensava. Ainda assim, não está disposta a admitir a derrota.
– Algumas das minhas amigas estão fora. Estou à espera de que regressem. Descansa, vou
conseguir o dinheiro todo.
A única boa notícia vem do doutor Nath.
– Sucesso! – diz ao telefone, exultante, a Neha. – Encontrei um dador excelente para a sua mãe. É
uma rapariga jovem e extremamente saudável. E todos os parâmetros são perfeitamente compatíveis
com a sua mãe. Quando vem fazer o pagamento? Precisamos da totalidade do valor, e em dinheiro.
– Em breve, doutor – garante-lhe Neha. – Estou a tratar disso.

Na segunda-feira, 2 de maio, o dia começa com a notícia da morte de Osama bin Laden. Ficamos
estupefactos ao saber que foi abatido numa troca de tiros com comandos americanos nas
profundezas do Paquistão.
A notícia da morte de Osama não me entusiasma tanto como a boa notícia que Neha me dá nessa
noite.
– Consegui, didi! Tenho os dois laques.
– A sério?
Ela pega na mala, uma Gucci de imitação.
– Ta-da! – Imita uma fanfarra de trompetes enquanto deposita dois grossos maços de notas de mil
rupias em cima da cama. – Cem mil em cada maço.
Dou-lhe uma palmadinha no ombro.
– Estou orgulhosa de ti. Quem foi essa amiga tão magnânima?
– Não posso dizer-te o nome dele.
– Dele? Queres dizer que foi um homem?
Neha fica subitamente zangada.
– Ouve, queres comer mangas ou contar as árvores? O importante é que temos o dinheiro, não
como o consegui ou quem mo deu.
– Tens razão – admito. – O importante é que agora podemos avançar com a operação da mamã.
Nessa noite, deito-me com o coração quente. Osama bin Laden está morto. E a mamã vai viver.
O consultório do doutor Nath tresanda a um perfume enjoativo quando lá entro às dez da manhã
do dia seguinte, vestida com um salwar kameez branco.
O especialista recebe-me com a avidez desavergonhada de um adolescente no seu primeiro
encontro com uma rapariga.
– Onde está a sua irmã? – pergunta, com um olhar esperançoso na direção da porta.
– A Neha tem exames. Não voltará ao hospital – respondo, enquanto ajeito a dupatta sobre o
peito, quase involuntariamente.
– Oh. – O doutor Nath tenta esconder a sua desilusão com um comportamento solícito e
profissional. – Reservei a sala de operações para depois de amanhã. Temos de internar a sua mãe
amanhã, de modo a monitorizarmos o estado dela.
– Com certeza.
– Tem o dinheiro?
– Sim, exatamente dois laques. – Abro a mala e começo a tirar as notas.
– Espere – detém-me ele. – Eu não lido com dinheiro. Tem de o depositar na caixa, lá em baixo, e
trazer-me o recibo.
– Tenho um pedido a fazer.
– Sim?
– Gostava de conhecer pessoalmente a dadora, para lhe agradecer. Será possível?
– Oiça, nestes casos é melhor não saber de mais. Seguimos a mesma política das doações
anónimas.
– Mas a dadora ficará bem depois da operação, não é assim, doutor?
– Claro que sim. Os seres humanos saudáveis podem viver facilmente apenas com um rim.
– Pelo menos diga-me como ela se chama.
– Para quê? Se quer mesmo saber, chama-se Sita Devi, como a mulher de Ram em Ramayana.
Satisfeita? Agora vá e traga-me o recibo da caixa.
Saio do gabinete e apanho o elevador até ao piso térreo. A caixa para pagamentos fica no lado
oposto da receção. Mal acabo de fazer o pagamento, oiço o que me parece ser o som de uma
altercação na receção.
– Já lhe disse para não vir aqui. Será que é surda? – repreende um homem em tom severo.
– Que hei de fazer, sahib? Preciso do dinheiro com urgência. O meu filho está muito doente –
geme a voz queixosa de uma mulher. Não a consigo ver porque um dos pilares me bloqueia a linha
de visão.
– Receberá o dinheiro amanhã, depois da operação. Mas deixe-me avisá-la, Sita, se voltar a pôr
aqui os pés, deixamos de fazer negócio consigo. Depois, não me culpe se os seus familiares
morrerem à fome. Agora volte para a clínica.
Sita. Arrebito as orelhas ao ouvir o nome. Quase instintivamente, viro a cabeça na direção das
vozes e inclino-a para espreitar para trás do pilar. Espero ver uma rapariga saudável e jovem, mas
a suplicante que se afasta do balcão, desanimada, é uma mulher de meia-idade, vestida com um sari
verde esfarrapado. Parece um esqueleto, com os olhos fundos, o rosto macilento e magro, os lábios
gretados. Tem o cabelo sujo e desgrenhado. As costelas são claramente visíveis por baixo da blusa,
e a sua pele é seca e mirrada como pergaminho. Arrasta os pés lentamente, como se estivesse a
recuperar de uma operação complicada. No ambiente pretensioso do Unity Kidney Institute, parece
tão deslocada como um prato de carne numa refeição vegetariana.
Não, digo a mim própria. Não pode ser esta a dadora da minha mãe. Contudo, algo na mulher me
espicaça a curiosidade, como uma história que tem de ser lida. Enfio o recibo na mala e sigo-a
enquanto ela sai do hospital com passo arrastado.
De cabeça baixa, dirige-se a uma paragem de autocarro. Dez minutos depois, aparece um
autocarro da Corporação de Transportes de Deli, com destino a Gurgaon, e ela entra. Após um
instante de hesitação, subo também e sento-me em frente dela.
Assim, sentada tão perto de Sita que lhe poderia tocar, observo-a melhor. Vejo uma ligadura a
espreitar na gola, vinda das costas, e os seus braços estão cobertos de marcas de agulhas. Fico
ainda com mais curiosidade por falar com ela, mas a mulher nem repara em mim. Sou apenas uma
estranha num autocarro cheio de estranhos. De vez em quando, passa o polegar pelos olhos para
limpar as lágrimas.
O autocarro faz um caminho que não me é familiar, por Outer Ring Road, uma via que está muito
congestionada. Para onde quer que olhe, só vejo pessoas, carros e mais pessoas. Enquanto observo
as ruas apinhadas e o tráfego enlouquecedor da cidade, sinto-me invadir por uma estranha vaga de
emoção. Quão vasta é a cidade e, contudo, quão solitária. Ninguém tem tempo para ninguém. As
nossas vidas são governadas pelo relógio, todos nós presos ao seu tiquetaque, encurralados numa
corrida de ratos sem fim à vista. Talvez não sejamos diferentes dos carros, cada um de nós um
casulo fechado, cada um a viajar separado dos outros, a toda a velocidade, por uma estrada que não
vai dar a lado nenhum.
Perdida nos meus pensamentos, nem dou pela passagem do tempo. O autocarro já está em
Gurgaon e a minha presa levantou-se e prepara-se para sair.
O autocarro para em frente de um centro comercial reluzente, cheio de lojas de marca e cafés
elegantes. Através da fachada de vidro, vislumbro a área de restauração no primeiro piso, repleta
de executivos de call center e yuppies suburbanos, a absorverem a atmosfera moderna. O centro
comercial é um emblema de Gurgaon, uma cidade de novos-ricos onde se aglomeram prédios de
escritórios elegantes, complexos de cinemas e condomínios luxuosos. Dizem que se parece mais
com Dallas do que com Deli. Talvez seja por isso que se tornou um centro preferido por muitas
empresas multinacionais.
Sita lança um olhar melancólico ao centro comercial, hipnotizada pelos ideogramas de néon, que
prometem pizas e frango frito. Depois, com o ar resignado de uma mulher que aceitou a sua sorte na
vida, vira-se e atravessa a estrada.
Sigo-a ao longo de dois quarteirões, com cuidado para ela não se aperceber da minha presença.
Por fim, vejo-a virar para uma rua lateral e dou por mim numa zona residencial sombria. Tem casas
grandes, passeios pavimentados e poucos transeuntes. Depois da azáfama do centro comercial, a
zona é um paraíso de solidão, em que a calma indolente do meio-dia é interrompida apenas pelo
zumbido dos ares condicionados, por um ou outro carro a passar e pelo som distante de música jazz
proveniente de uma janela aberta, algures.
Sita para em frente de uma casa de dois pisos, modesta, pintada de branco, com portadas verdes
nas janelas. Uma placa de madeira na parede identifica a casa simplesmente como «3734». Não tem
o nome do ocupante. O outro dado intrigante é que tem uma guarita, com um guarda de uniforme.
Sita fala com o guarda e ele deixa-a passar pelo portão de metal. Ainda estou a pensar no que hei
de fazer, quando vejo um rosto familiar aproximar-se do outro lado da estrada. É, nem mais nem
menos, Tilak Raj, o auxiliar do hospital público, e traz consigo um homem que, pela sujidade e
poeira da roupa, parece um operário. Escondo-me atrás de uma árvore e espero que Tilak Raj
passe. O destino dele, porém, é também a casa número 3734. Vejo-o trocar algumas palavras com o
guarda e entrar no edifício com o seu companheiro.
Nesta altura, estou a morrer de curiosidade. Tenho de descobrir o que se passa dentro daquela
casa. Encho-me de coragem e aproximo-me do guarda.
– Sim? O que deseja? – pergunta ele, fitando-me com desconfiança.
– Vim encontrar-me com o Tilak Raj – respondo, apertando a mala na mão com nervosismo. –
Disse-me para vir ter com ele aqui.
– Sim, ele está lá dentro. – O guarda acena e destranca o portão.
Entro para o que parece ser uma sala de espera. O operário está sentado numa cadeira de
plástico, com mais dois homens e Sita. Não há sinais de Tilak Raj.
Saio da sala de espera, para um corredor. O resto da casa é bastante espaçoso. Há pelo menos
duas outras divisões no piso térreo.
Espreito para dentro da primeira e vejo um homem deitado numa cama de ferro, com um acesso
venoso no braço.
– Está a doer muito, irmã – geme ele, julgando que sou uma enfermeira.
Aproximo-me. Uma prancheta presa à cama identifica-o como Mohammad Idris. Diz no papel que
tem vinte e nove anos, mas parece pelo menos dez anos mais velho, com a barba grisalha hirsuta e
as faces encovadas.
– Veja, irmã, é aqui que dói – murmura, e levanta a camisa. Recuo, chocada com o que os meus
olhos veem. Ele tem uma ferida horrenda, com cerca de vinte centímetros de comprimento, fechada
por linha de cirurgia preta. Parece um trabalho atamancado, feito por um cirurgião particularmente
insensível.
– Se soubesse que ia ser tão doloroso, teria pensado duas vezes antes de aceitar vender o rim –
diz ele, e tem um ataque de tosse.
Entro no quarto ao lado e descubro uma mulher em estado semelhante. Sunita, de trinta e oito
anos, está ligada a vários tubos, que se enrolam nos seus braços e sobre o peito. Tem a pele escura
esticada sobre as maçãs do rosto e olheiras escuras. Também ela tem uma incisão exatamente no
mesmo sítio que Idris, e a ferida está a escorrer líquido, apesar dos pontos que a fecham.
Ao contrário de Idris, Sunita não se arrepende da sua opção.
– O doutor babu disse que o segundo rim não serve para nada e ocupa espaço desnecessário.
Mais vale ganhar algum dinheiro com ele.
– Quanto recebeu? – pergunto-lhe.
– Prometeram-me trinta, mas deram-me vinte mil. Ainda assim, é o suficiente para viver durante
pelo menos seis meses – responde.
Então, ambos os pacientes venderam os rins e estão a recuperar, no pós-operatório. Mas quem fez
as operações, e onde?
O mistério fica resolvido quando subo as escadas para o primeiro piso. Entro, por duas portas de
batente, numa espécie de átrio. De um dos lados, há uma casa de banho e uma porta metálica com
duas janelas redondas de vidro. Por cima da porta, uma luz vermelha pisca como um farol. Espreito
pela janela e fico paralisada. Perante os meus olhos, está uma cena saída de um filme de terror
macabro. Há um paciente em cima da mesa de operações, rodeado por médicos de batas verdes e
máscaras, e técnicos com batas brancas. Vejo tanques de oxigénio, máquinas de anestesia e
aparelhos e engenhocas que nunca vi antes. Há instrumentos cirúrgicos alinhados em cima de mesas
e as prateleiras estão cheias de material cirúrgico. Estou a olhar para uma sala de operações. O ar
no seu interior, contudo, está longe de ser antissético. Tresanda a desespero e exploração.
O esquema começa a ficar claro para mim. Este é o mercado negro de rins que levou ao
surgimento do fenómeno do «turismo de transplante». O doutor Nath arranja pessoas pobres e
indigentes para lhe venderem os rins, que são recolhidos nestas instalações e depois fornecidos a
doentes indianos ricos e a turistas estrangeiros dispostos a pagar bom dinheiro por um transplante.
O membro da Assembleia Legislativa Anwar Noorani é o último elo da cadeia, aquele que fornece
proteção política a esta operação fraudulenta e vil.
Não sei o que me ultraja mais, se esta recolha descarada de órgãos humanos ou se a minha
própria tentativa censurável de obter um rim de um dador vivo. Esta clínica discreta fica a trinta
quilómetros do pretensioso Unity Kidney Institute, mas a distância que separa doadores e recetores
é muito maior do que isso. A Mirza Metal Works era uma fábrica clandestina operada por crianças.
Isto é pior: uma armadilha de morte para os pobres.
Agoniada e confusa, viro costas à sala de operações e dou de caras com Tilak Raj.
– O que faz aqui? – pergunta ele, de olhos arregalados.
– Vim conhecer a dadora que vai dar o rim à minha mãe. Vejo agora que foi um erro. Nunca devia
ter vindo.
– Pois não. Quem gosta de comer carne não deve visitar o matadouro. – Sorri. Esse sorriso
sinistro deixa-me enjoada. Percebo agora que ele faz parte desta operação ilegal, tanto como o
doutor Nath.
– Seja como for, a operação da Sita terá lugar hoje – continua, enquanto me acompanha até à sala
de espera. – Amanhã, o rim da sua mãe será entregue.
– Já não o quero.
– O que está a dizer? – Tilak Raj fica boquiaberto. – Não quero o rim da Sita? – pergunta, em voz
suficientemente alta para todas as pessoas na sala de espera ouvirem.
– Não. Não posso ficar com o rim dela. A felicidade de uma pessoa não pode derivar da
infelicidade de outra.
Sita salta da cadeira e corre para mim.
– O que disse? – pergunta, com um brilho de loucura nos olhos.
– Não quero o seu rim – repito. – Seria um pecado aceitá-lo.
– Não! – Ela solta um grito terrível. – O meu filho morrerá. Prometeram-me trinta mil. Onde é
que arranjarei tanto dinheiro? Já dei o fígado. Só me resta o rim. Por favor, fique com ele.
– Lamento muito.
– Lamenta? – Curva-se e começa a andar à minha volta como um predador. – Vocês, ricos,
pensam que basta dizer «lamento» e fica tudo bem. Vou matar-te, kutiya, saali48. – Atira-se a mim e
arranha-me o rosto como se estivesse possuída.
Apanhada de surpresa, caio para trás e quase bato numa cadeira.
Ela prende-me ao chão e começa a esmurrar-me a cabeça e os ombros, com uma máscara de
loucura e fúria no rosto. Tento defender-me, afastá-la de cima de mim, mas sem sucesso. A
necessidade dela, tal como a sua raiva, é superior à minha.
É Tilak Raj que vem em meu auxílio e tira Sita de cima de mim.
– Enlouqueceu? – Segura-a pelo pescoço e dá-lhe duas bofetadas.
Ela continua a olhar para mim com ar amuado, como uma criança repreendida, enquanto respira
pesadamente pelas narinas.
Tilak Raj vira-se para mim.
– Posso fazer-lhe uma pergunta?
Anuo com a cabeça.
– Porque não aceita o rim da Sita? Garanto-lhe que é perfeitamente saudável, cem por cento
garantido.
– Não é uma questão de saúde, mas sim de moralidade. Fui fraca. Por isso é que procurei uma
saída fácil. Mas apercebo-me agora de que não há atalhos para uma consciência limpa.
– Tudo isso me ultrapassa. – Tilak Raj agita a mão. – Diga-me só, sinceramente: encontrou outro
rim noutra clínica?
– Não, claro que não.
– Então e que me diz do rim dele? – Dá uma palmadinha no ombro do homem com quem entrou. –
Este é o Gyasuddin, pintor de casas. – Aperta os bíceps do homem. – Vê? Muito saudável.
– Não, também não quero o rim dele.
– Está preocupada por ele ser muçulmano? O rim não diz se é de um muçulmano ou de um hindu.
Pertence a quem o pagar.
– Não está a perceber – digo, com alguma irritação. – Não quero rim nenhum deste lugar.
– Então onde é que a sua mãe irá buscar um rim novo?
– A mim.
– O quê? Doará o seu próprio rim?
– Sim. – A resposta esteve à frente dos meus olhos desde o princípio. Só não tivera coragem de a
enfrentar.
Sita revira os olhos.
– Estava a chamar-me louca – diz ela a Tilak Raj, com um sorriso irónico –, mas esta mulher é
mais louca do que eu. Ab mera kya hoga? E, agora, o que me vai acontecer?
– Se ela não ficar com o seu rim, outra pessoa ficará – tranquiliza-a Tilak Raj. – Só terá de
esperar um pouco.
– Não posso esperar! – grita ela. – O meu Babloo morrerá se não receber tratamento até amanhã.
Oh, Babloo, Babloo, Babloo! – Começa a bater no peito como uma mãe que já perdeu o filho.
– O que se passa com o Babloo? – pergunto a Tilak Raj.
– Leu-ce-mia – responde Sita, devagar, para me deixar absorver a palavra. – Tem leu-ce-mia. O
hospital particular pediu dez mil rupias pelo tratamento. Como é que arranjarei tanto dinheiro?
Quem é que mo dará?
– Eu dou-lho – respondo baixinho.
Tilak Raj vira-se para mim.
– Não brinque com as emoções dos pobres. As pragas deles costumam concretizar-se.
Abro a mala e tiro o envelope que recebi há três dias na loja, com o meu salário do mês de abril.
Conto dez mil rupias, dobro as notas e ofereço-as a Sita.
Ela olha para mim, incrédula, e não se mexe, como um gato cauteloso com medo de tocar numa
taça de leite desconhecida. Por fim, a esperança leva a melhor. Agarra nas notas e começa a contá-
las, lambendo o polegar de vez em quando.
– Sim, são dez mil! – Solta uma exclamação confusa. – Vai mesmo dar-me este dinheiro todo?
– Sim. – Tento sorrir, mas o que sai é apenas um esgar. Fico ali de pé e luto para combater as
lágrimas. Estou no mundo dos miseráveis, repleto de infelicidade e pobreza. Para estas pessoas, o
rim não é um órgão, mas um bem para vender, para alimentar as famílias, para salvar um filho
doente. E dez mil rupias é apenas uma gota de água num deserto ressequido.
– É um milagre! – grita Sita, de novo com o brilho tresloucado nos olhos. – Hoje, vi um milagre.
Apetece-me dizer-lhe que o maior milagre é o facto de eu ter acordado, de ter saído do nevoeiro
venenoso que me envolveu nos últimos sete dias.
Ela olha para mim, grata e desconfiada, como se estivesse com medo de que eu ainda mudasse de
ideias. Depois, enfia o dinheiro dentro da blusa e sai a correr, como quem foge de um edifício em
chamas.
– É melhor ir também – diz Tilak Raj, e abana a cabeça, aparentemente frustrado. – De onde é
que vem esta gente, a roubar-me a comissão? – oiço-o resmungar entre dentes, enquanto me empurra
na direção da porta. Sei que está a falar de mim, não de Sita.
Saio da clínica de cabeça erguida e mais leve, como se me tivessem tirado um fardo dos ombros.
Como é excitante estar livre do peso esmagador da culpa! Como a vida parece deslumbrante
quando fazemos parte da cura e não parte do sofrimento!

Volto ao Unity Kidney Institute no mesmo autocarro e dirijo-me ao balcão de pagamentos.


– Mudei de ideias em relação ao transplante. Quero o meu dinheiro de volta.
O caixa liga imediatamente ao doutor Nath, que me convida a subir até ao seu gabinete.
– O que se passa? Fiz-lhe o melhor preço possível. Está tudo preparado para o transplante.
– Não quero o rim da Sita. Acabo de a conhecer.
– Conheceu-a? Onde?
– Venho da sua clínica em Gurgaon.
– Esteve na clínica em Gurgaon? – Franze a testa, com ar preocupado. – Por favor, aguarde. – Sai
do consultório e, pela pequena janela de vidro, vejo-o fazer uma chamada no telemóvel.
Pouco depois, o membro da Assembleia Legislativa, Anwar Noorani, aparece.
– Sim, qual é o problema? – pergunta-me, com um sorriso levemente condescendente.
– Nenhum. Não quero fazer o transplante aqui e quero que me devolvam o dinheiro.
– Pode mostrar-me o recibo?
Mostro-lhe o recibo. Ele examina-o e enfia-o no bolso do colete khadi.
– E por que motivo, exatamente, é que não quer fazer o transplante aqui? Temos as melhores
instalações de Deli.
– Vi o esquema ilegal que têm montado, a roubar os órgãos dos pobres. É uma perfeita vergonha.
– Somos apenas fornecedores de serviços, ajudamos pessoas como você – diz ele, em tom
ameaçador. – Seja como for, é tarde de mais para um reembolso, quer faça o transplante ou não.
– Mas isso é ridículo!
– Não, não é. Diga-me: que loja de Deli é que devolve dinheiro? Nós também somos um
estabelecimento comercial. Depois de o negócio estar feito, não pode voltar atrás sem
consequências.
– Vou apresentar queixa de vocês, se não me devolverem o dinheiro.
– Negaremos tê-lo recebido. Na verdade, não recebemos nada, pois não? – Troca um olhar com o
doutor Nath. Depois, tira o recibo do bolso e rasga-o em mil pedaços, perante o meu olhar
horrorizado.
– Não pode fazer isso. Vou imediatamente à polícia.
– Esteja à vontade. Em quem acha que vão acreditar, num político respeitado como eu ou numa
vendedora reles como você? Aceite um conselho: vá buscar a sua mãe e resolveremos isto de forma
amigável.
Por trás do sorriso untuoso, apercebo-me da ameaça velada das suas palavras. Traçou uma linha
na areia e está a desafiar-me a atravessá-la, por minha conta e risco.
– Vou pensar nisso – digo, e saio. Sinto-me revoltada, enganada e completamente furiosa.
Assim que saio do hospital, pego no telemóvel e faço dois telefonemas. O primeiro é para o
doutor Mittal.
– Doutor, peço desculpa por o ter enganado. Não havia amigo nenhum a doar o rim. Serei eu a
dadora. Quando pode fazer a operação?
– Depois de amanhã – responde ele, claramente satisfeito com esta reviravolta dos
acontecimentos.
O segundo telefonema é para Shalini Grover, a repórter de investigação da Sunlight TV.
– Tenho uma história para si – começo.

O relógio na parede marca quatro da tarde. Visto a bata azul e disforme do hospital e estou
prestes a ser levada para a sala de operações. O doutor Mittal anda atarefado, a fazer perguntas às
enfermeiras, a verificar se está tudo em ordem, antes de o anestesista me vir pôr a dormir.
– Vai acabar tudo num instante. – Dá-me uma palmadinha no ombro. – É uma jovem muito
corajosa.
Não sinto ansiedade nem medo, apenas uma sensação profunda e intensa de estar viva. De ter um
objetivo. É agora que a minha mãe tem uma segunda oportunidade na vida. E eu, uma nova
oportunidade de merecer respeito, ao renovar as minhas credenciais de filha mais velha.
Neha também está no quarto. Aceitou a perda dos dois laques, mas ainda não se reconciliou com
a ideia de eu ser dadora.
– Porque é que tens de insistir em ser uma mártir? – chora, e aperta-me a mão.
– Não estou a ser uma mártir – respondo. – Estou apenas a ser a filha mais velha.
– Quem me dera ter a tua coragem.
– O doutor Mittal garantiu-me que a operação é perfeitamente segura. Pensa nisto como tirar
cento e cinquenta gramas de redundância do corpo.
– O Karan queria vir também, mas o doutor Mittal não deixou. Só os familiares diretos podem
estar dentro da UCI.
– Como está a mamã? – Tento parecer indiferente, na esperança de que Neha não repare no afluxo
de sangue às minhas faces, assim que fala no nome de Karan. Não o vejo há mais de uma semana e
estou a sofrer de uma deficiência grave de vitamina K.
– Continua a louvar-te a tudo e a todos – diz Neha. A mamã quase deitou o plano por terra,
quando se recusou terminantemente a aceitar a doação do meu rim. O doutor Mittal disse-me que
ela entrou na sala de preparação aos gritos e aos pontapés. Foram precisos todos os esforços dele
para a convencer do milagre médico que é o transplante de órgãos.
– Está na hora de irmos – diz o doutor Mittal a Neha.
Com um olhar triste e uma palmadinha de consolo no meu braço, ela levanta-se e sai rapidamente
do quarto.
Um minuto depois, o anestesista entra, com um estetoscópio pendurado ao pescoço e vestido com
uma bata branca. É um homem ainda jovem, com cabelo escuro e espesso e olhos sonhadores.
Pega-me no braço, estica-o e espeta-lhe uma agulha. Começo a perder a consciência e, durante
algum tempo, apercebo-me vagamente dos sons na sala, do movimento das enfermeiras à minha
volta, do cheiro antissético do hospital, até que uma confortável ausência de peso me envolve e
mergulho finalmente no sono sintético.

Quando acordo, ainda sinto o cheiro antissético adstringente da enfermaria de hospital, mas o
entorpecimento do meu corpo desapareceu. Em vez dele, tenho uma sensação de formigueiro, como
se houvesse milhares de formigas a passear-se sobre a minha pele. Abro os olhos, tonta da
anestesia, e vejo um homem com um vestido branco debruçado sobre a minha cama. Imagino que
deve ser o doutor Mittal, mas, à medida que a imagem se torna gradualmente mais nítida, emito uma
exclamação de surpresa porque reconheço imediatamente o nariz aquilino e o cabelo prateado. É o
industrial Vinay Mohan Acharya, com um fato de seda branco-sujo e uma pashmina branca por
cima dos ombros. Embora esteja vestido exatamente da mesma forma que no dia em que o conheci,
no templo de Hanuman, parece-me diferente. O seu rosto está mais magro e pálido, os seus olhos,
mais fundos, e o corpo parece ter encolhido, perdido parte do volume.
– Parabéns – diz, com um sorriso, e senta-se na cadeira ao lado da minha cama. – Passou no sexto
teste.
Gemo, amaldiçoando o dia em que aceitei a oferta dele. Desde então, a minha vida tornou-se um
longo exame, com Deus a testar-me por um lado e o industrial a testar-me pelo outro.
– Este era o teste do poder de decisão – continua. – O poder de decisão é a capacidade de tomar
decisões, mesmo em face da complexidade ou da incerteza. Um diretor-geral tem de tomar decisões
difíceis e aceitar as consequências. A Sapna mostrou essa capacidade quando tomou a corajosa
decisão de doar o rim. Foi um gesto não só corajoso, mas também o correto. Não há nada mais
altruísta do que dar um órgão em vida.
– Mas como soube que eu tinha doado um rim?
– Pelo doutor Mittal. Sabe, ele agora trabalha para mim.
– Trabalha para si? – Esta reviravolta inesperada faz-me sentar na cama. Olho em volta, à
procura de uma enfermeira, mas não vejo ninguém. – E… e a operação para me tirar o rim? Correu
bem?
– Não houve operação nenhuma. Os seus rins estão intactos.
Levo imediatamente a mão ao lado do corpo, à procura do penso sobre as suturas, mas encontro
apenas pele lisa. Não tenho corte nenhum no abdómen.
– E a minha mãe? Como é que ela fará o transplante?
– A sua mãe está boa. Nunca precisou de um transplante de rim. Isso porque não tem nenhuma
doença renal.
Sinto-me tonta e a escuridão ameaça invadir-me de novo o cérebro.
– Então tudo isto foi…
– Um esquema. Surpreende-me que não tenha percebido mais cedo.
– Quando é que isto começou? – pergunto, com voz débil.
– No dia em que o seu tio Dinesh ameaçou despejá-la do apartamento. Fui eu que lhe pedi que o
fizesse. Não é espantoso o que as pessoas fazem por dinheiro?
Franzo a testa, confusa.
– Também fui eu que mandei roubar a sua mala em Connaught Place, quando tinha as pulseiras de
ouro da sua mãe.
– Não! – exclamo. – Não acredito! Está a inventar tudo isto.
– Bom, nesse caso, talvez queira ver isto. – Tira duas pulseiras de ouro do bolso da kurta. O
ouro reluz sob a luz fluorescente. Os padrões gravados são perfeitamente visíveis. Não tenho de
lhes tocar para saber que são as da minha mãe.
– Mas isso é uma loucura! Porque faria uma coisa dessas?
– Porque estava desesperado para que a Sapna participasse nos meus sete testes. Queria ter a
certeza de que tinha o temperamento necessário para sobreviver no mundo duro dos negócios.
– Então todos os testes foram preparados?
– Nada foi preparado. Tudo o que eu fiz foi criar condições para que os seus instintos naturais
entrassem em ação. O primeiro teste, por exemplo: a minha tarefa era apenas garantir que a Sapna
chegaria à aldeia de Chandangarh, esse antro de homicídios por honra. Assim que soubemos do que
se passava entre a Babli e o Sunil, foi relativamente fácil persuadir o Kuldip Singh a ir comprar o
dote da filha na sua loja.
– Mas… e se a Babli não me tivesse dado aquele bilhete?
– Eu teria encontrado outra forma qualquer de a envolver. Tenho uma equipa de cinco elementos
estabelecida em Chandangarh desde setembro. No entanto, devo dizê-lo, surpreendeu-nos a todos,
ao enfrentar o khap panchayat como fez.
– E o segundo teste? Também organizou a visita da Priya Capoorr ao salão de exposições?
– Ela não é uma atriz que representa por dinheiro? Ainda assim, tive de recorrer a todos os meus
poderes de persuasão para que ela concordasse em deixar o anel de noivado consigo. Ela queria
usar uma imitação barata. Aquela semana que a Sapna demorou a devolver o anel foi um verdadeiro
inferno para ela. Queixou-se todos os dias, estava convencida de que nunca o recuperaria.
– Se conseguiu convencer a Priya Capoorr a «perder» um anel, deve ter sido uma brincadeira de
crianças montar a fábrica de fechaduras e enchê-la de crianças.
– Não, não tive nada a ver com essa fábrica. Preferia morrer a explorar crianças inocentes. Mas,
sim, foi o Rana que informou a sua amiga Lauren Lockwood sobre a Mirza Metal Works.
– E os rufias que me ameaçaram, eram homens do Mirza ou seus?
– Foram contratados por mim – admite ele, com ar envergonhado. – O trabalho deles era
simplesmente assustá-la. Não lhe teriam feito mal nenhum.
– Suponho que ser ameaçada de violação no Parque Japonês não cai na sua definição de fazer
mal?
– Violação? Parque Japonês? Do que está a falar?
– Não finja que não sabe. Fez o mesmo com a Neha.
– Não tive nada a ver com o que aconteceu à sua irmã. A única coisa que fiz foi garantir que ela
entraria no concurso e ficaria na equipa do Raoji. No meio, toda a gente sabia que o Raoji tinha um
fraco por raparigas, mas ninguém sabia que ele andava a fingir-se cego.
– Sabe que o Raoji quase conseguiu violar a Neha?
– Sei que a Sapna a salvou mesmo a tempo. Admito, porém, que às vezes é difícil evitar danos
colaterais.
– E se a Nirmala Ben tivesse morrido, seria também um dano colateral, certo?
– Ah, a Nirmala Ben. Devo dizer que a nossa devota de Gandhi me colocou um desafio único. O
meu papel foi apenas plantar a semente da ideia na cabeça dela, sabe, a de agitar o mundo
suavemente. O resto encaixou maravilhosamente no lugar. – Esfrega as mãos e sorri-me. – Tem de
admitir que ninguém sofreu nenhum mal verdadeiro em resultado dos meus testes.
A forma superficial como ele fala dos seis testes faz-me contrair o maxilar. Que idiota que fui, a
viver num universo de ilusões até este momento, presa num mundo em que tudo não passava de
fumo e espelhos. Acharya foi o marionetista e eu a marioneta, a dançar nos fios puxados por ele.
Uma raiva fria e assassina apodera-se de mim.
– Quem pensa que é? Deus? – inquiro.
– Não posso afirmar ser Deus – diz ele. – Mas, tal como Deus, criei o seu mundo e depois deixei-
a desenrascar-se por si própria. Orquestrei o processo, não os desfechos. Foi a Sapna que os criou,
com o seu livre-arbítrio.
– Sabe que é louco, não sabe?
– Não sou louco, apenas diferente.
– O Karan tinha razão sobre si. Nunca devia ter acedido em participar no seu esquema doentio.
– Oh, então discutiu o nosso acordo com terceiros? – Franze a testa, numa expressão de
desaprovação. – Sabe que isso não era permitido, pelos termos do contrato.
– Vão para o diabo, o senhor e o seu contrato. Não quero voltar a pôr-lhe a vista em cima. É um
homem doente que merecia ser fechado num manicómio.
– Esperava essa reação da sua parte. Mas, acredite, tudo o que eu fiz foi necessário.
– Necessário para quê? Para as suas fantasias sádicas?
– Para a sua aprendizagem. O verdadeiro teste de um diretor-geral é a forma como enfrenta uma
crise. É aí que a pessoa revela a sua fibra. Eu criei seis crises para si, e a Sapna emergiu triunfante
de todas elas. Através destes seis testes, aprendeu mais em cinco meses do que Harvard lhe poderia
ensinar em cinco anos. E, assim que passar no sétimo teste, estará pronta para assumir o cargo de
diretora-geral do Grupo CEA.
– Não tenho qualquer intenção de fazer mais testes. Desisto, agora mesmo.
– Desculpe, mas não pode desistir a meio, segundo os termos do contrato. Pode falhar, mas não
desistir. E porque havia de querer desistir agora, quando tem a direção de uma companhia de dez
mil milhões de dólares ao alcance das mãos?
– Por amor de Deus, pare com essa conversa. Tem estado a enganar-me este tempo todo.
– Está a ser injusta. A única pessoa que a tem enganado é o Karan Kant, o seu suposto namorado.
Lanço-lhe um olhar cortante.
– O que quer dizer com isso?
– Veja com os seus próprios olhos – diz, e pega num envelope castanho. Abre-o sobre a minha
cama e caem seis fotografias grandes, a cores. Sinto um aperto no peito quando olho para elas.
Diz-se que nem sempre reconhecemos o momento em que o amor começa, mas que sabemos
sempre quando ele acaba. O meu amor por Karan acabou às 6h35m da manhã de sexta-feira, dia 6
de maio.
Nada que Acharya pudesse ter dito ou feito teria abalado a minha confiança em Karan, mas a
câmara não mente e a meia dúzia de instantâneos em cima da minha cama são provas agonizantes de
traição e duplicidade. Mostram um casal abraçado, naquilo que parece ser o quarto do meu
apartamento em Rohini. As fotografias parecem ter sido tiradas durante o dia, com uma
teleobjetiva, e em cada uma delas a imagem aumenta. A cada uma que vejo, o meu coração encolhe
mais e, quando chego à última, está completamente esmagado: mostra um beijo intenso entre a
minha irmã e o meu melhor amigo.
Caio para trás, a gemer como um animal ferido.
– Leve-as, leve-as daqui – choro. – Não consigo olhar para elas.
– Este Karan é qualquer coisa – diz Acharya, enquanto reúne as fotos e as enfia de novo no
envelope. – Há qualquer coisa errada com ele. Deu uma tareia ao detetive que o andava a seguir,
por instruções minhas.
Mal o oiço, pois a minha mente ainda está a tentar lidar com o choque da descoberta. Porque será
que são as pessoas mais próximas que nos magoam mais? E, de todas as pessoas no mundo, porque
tinha Karan de escolher Neha? O esquema de Acharya não é nada, em comparação com a traição
monumental de Karan e a deslealdade doentia de Neha.
O industrial poisa a mão no meu ombro e eu não me afasto. Preciso do bálsamo reconfortante de
um toque humano, de palavras amáveis.
– Lamento muito não ter sido completamente sincero consigo – diz. – Mas tem de acreditar em
mim, quando lhe digo que está apenas a um passo de realizar todos os seus sonhos.
– Por favor… – Fito-o nos olhos e tento lê-lo. – Pare de brincar comigo. Isto é mais um dos seus
testes?
– Isso será mais tarde. O teste final.
– Porquê? Porquê? Porquê? – pergunto, em tom suplicante, como uma raposa exausta no fim da
caça. – Diga-me, por favor: por que motivo me escolheu como cobaia? Podia ter escolhido
qualquer pessoa para a sua empresa, qualquer pessoa desta cidade. Há milhões de pessoas mais
qualificadas do que eu para gerir o seu negócio.
– As qualificações não interessam. É a atitude que importa. E impressionam-me a sua dedicação,
a sua vontade e entusiasmo em aprender. Saiu-se extraordinariamente bem até agora, e demonstrou
qualidades de liderança, integridade, coragem, perspicácia, engenho e poder de decisão. Agora,
tem de se preparar para o último teste.
Abano a cabeça, cansada.
– Acho que não tenho forças para mais um teste. Por favor, liberte-me do contrato.
Ele levanta-se abruptamente da cadeira e abre a porta do quarto. Este fica na enfermaria geral e o
meu nariz é imediatamente assaltado pelos cheiros de desinfetante e doença. Olho para um corredor
comprido, apinhado de camas e corpos. O ar ecoa com os gemidos solitários dos doentes,
intercalados com o choro de uma criança com fome.
– É assim que quer passar o resto da vida? – Aponta para o rio de miséria e sofrimento do outro
lado da porta. – Entre os esfomeados, os desgraçados e os pobres?
– Não é vergonha nenhuma ser pobre – respondo, em tom de desafio.
– Poupe-me essa empatia deslocada com os fracassados do mundo – diz ele em tom desdenhoso.
– Querer ajudá-los é uma coisa, querer ser como eles é outra. Estou preparado para lhe dar uma
posição muito acima da mediocridade atroz das massas. Contudo, se quer viver como eles e morrer
como eles, assim seja. Mas, lembre-se, há três coisas que não esperam por ninguém: o tempo, a
morte e a oportunidade. Se perder esta oportunidade, ela nunca mais surgirá. É consigo.
Fecho os olhos, incapaz de suportar o seu olhar trocista.
– Mesmo que eu lhe dissesse que sim – respondo, passado algum tempo –, que explicação daria à
mamã e à Neha por não ter doado o rim?
– O doutor Mittal tratará dessa parte – diz ele. – Tudo o que lhe peço é que mantenha o nosso
acordo confidencial até ter passado no sétimo teste. De acordo?
Chegou o momento da decisão; não posso escapar-lhe mais. Reflito no deserto árido em que a
minha vida se tornou. Não tenho nada por que ansiar, ninguém em quem possa confiar, nenhum
emprego para onde queira ir. Vejo um futuro sugado de toda a cor, de todo o prazer. Tornei-me mais
uma vez uma perdedora. E um perdedor não tem mais nada a perder.
– Está bem – digo, com um suspiro. – Conte comigo. Agora, diga-me, qual será o último teste?
– Não posso dizer-lhe. – Abana a cabeça. – Isso seria batota. Posso apenas adiantar que será o
mais difícil de todos.
– Pelo menos, diga-me o que posso esperar.
Ele pensa cuidadosamente antes de responder:
– O inesperado.

As formalidades da alta demoram menos de uma hora. O doutor Mittal chama Neha ao
consultório e conta-lhe um disparate qualquer sobre um medicamento novo e revolucionário
chamado Imunoglobulina X.
– Este medicamento milagroso foi lançado no mercado apenas ontem. Se é possível restaurar a
saúde da sua mãe com uns comprimidos, não há necessidade de fazer um transplante, não concorda?
Não tem sequer coragem de falar comigo. Vejo-o passar rapidamente pela porta, quando estou a
sair do hospital com a mamã. Pelo menos, tem a decência de se sentir culpado por aquilo que me
fez, por ordens de Acharya.
Neha, por outro lado, não mostra qualquer remorso pelas suas ações. Na verdade, quando
chegamos a casa, até faz uma pequena dança.
– A isto é que eu chamo ter tudo! – rejubila. – Salvámos o teu rim e salvámos também a mamã.
Viva a Imunoglobulina X!
– Há alguma coisa que queiras dizer-me? – Fito-a com um olhar de aço.
– O quê? – Ela olha para mim, mas não desvia o rosto nem parece minimamente envergonhada. O
seu descaramento deixa-me estupefacta.
Não suporto estar na mesma sala que ela. Viro-me para a janela e encolho-me ao recordar que ela
beijou Karan neste mesmo local. Até o ar à minha volta parece agora contaminado com o cheiro de
subterfúgio e segredos.
– Nada – respondo, e forço um sorriso irónico.
Com Karan, o embaraço é ainda maior. Também ele age sem indícios de culpa, um traidor par
excellence. Começo a evitá-lo o máximo que posso. Acabo completamente com as visitas noturnas
ao jardim.
Sem uma irmã com quem falar, sem um amigo em quem me apoiar, fico envolta num pesado
sudário de melancolia. É em parte raiva, em parte frustração, mas, na sua maioria, é uma tristeza
deprimente que me persegue como uma sombra.
O trabalho torna-se o meu único refúgio. Concentrar-me no emprego de vendedora funciona como
uma terapia para mim, e ganho mesmo um elogio de Madan. Passo os dias a trabalhar como uma
escrava na loja, e as noites a sonhar com o pote de ouro prometido por Acharya. Ele parece ser o
único raio de luz no meio das nuvens negras que se acumularam sobre a minha vida. Até aqui,
sempre pensei nos testes dele como uma abstração. Agora que falta apenas um, sinto a adrenalina
da recompensa real e tangível. Dez mil milhões de dólares! Só de pensar nesse dinheiro, fico com
pele de galinha. Pela primeira vez, sinto a atração do destino. De tal forma, que, uma noite, ao
regressar a casa do trabalho, compro impulsivamente um livro de «negócios» a um vendedor
ambulante, por noventa e cinco rupias. É de um especialista em gestão americano, chamado Steven
Katzenberg, e intitula-se Como Ser Diretor-Geral: Cinquenta Segredos para Chegar ao Topo e lá
Ficar.
48 Imprecações. (N. da T.)
SÉTIMO TESTE

Chuva Ácida

O primeiro segredo para ser diretor-geral de uma empresa é saber que o sucesso não tem
segredos. É sempre resultado de trabalho árduo, concentração, planeamento cuidado e
persistência. O sucesso não é uma lotaria, mas sim um sistema, e este livro vai ensinar-lhe
cinquenta segredos partilhados em horas de conversas com os maiores diretores-gerais do
mundo, para que possa implementar esse sistema na sua vida quotidiana e chegar ao topo.

N ão há muito que fazer na loja e estou a passar o tempo com a sabedoria do senhor Steven
Katzenberg, o especialista em gestão.
Prachi aponta para o livro que tenho nas mãos.
– Desde quando é que lês guias de negócios?
– É melhor do que matar moscas, não é? – respondo.
– Estás a pensar em tirar um curso de Gestão? – Ela fita-me com desconfiança.
– Quem é que vai tirar um curso com a minha idade? – Suspiro e tento mudar de assunto. – Como
vão as coisas contigo? O nosso amigo Raja Gulati tem-te chateado?
– O tarado esteve cá ontem – diz Prachi – e prometeu-me um aumento. A empresa teve lucros
recordes neste ano fiscal.
– Então também espero ser aumentada.
– A Neelam escreveu-te?
Estou quase a perguntar «Qual Neelam?», quando percebo que está a falar da nossa ex-colega.
Passaram quase três meses desde o casamento dela. É espantoso com que rapidez quem está longe
da vista fica longe do coração.
– Não, porquê?
– Porque recebi uma carta dela ontem. Da Suécia.
– O que é que ela diz? Está feliz?
– Feliz? Está louca de alegria. A casa dela é uma mansão de seis assoalhadas em Estocolmo. Diz
que é a cidade mais limpa do mundo. Anda de Jaguar. E o marido ganha o equivalente a seis laques
por mês. Imagina! Seis laques por mês! São quase vinte mil rupias por dia.
– Que bom para ela.
– Estou sempre à espera de que um milionário alto e bonito entre na loja e me leve daqui – diz
ela, com melancolia. – Às vezes sinto-me tão encurralada, quando penso que terei de fazer este
trabalho para o resto da vida. Também sonhas em ser rica?
Imagino o choque no rosto dela se lhe dissesse que estou prestes a tornar-me diretora-geral de
uma empresa que vale dez mil milhões de dólares. Em vez disso, respondo com o velho lugar-
comum:
– O dinheiro não compra o amor.
– Quem é que falou em amor? – pergunta Prachi com desdém. – Eu quero é aquela mala Bottega
Veneta que vi no centro comercial Emporium.
No corredor adjacente, Madhavan, um dos vendedores, está a mudar os canais de um televisor
LG Pen Touch, ligado a uma antena de satélite, quando vislumbro fugazmente Shalini Grover.
– Para, para, para! – grito, assustando-o tanto, que quase deixa cair o comando.
É realmente Shalini Grover, na Sunlight TV, em frente de uma casa de aspeto normal, pintada de
branco com portadas verdes nas janelas.
– Voltamos à nossa história. Esta é a casa número 3734, a partir da qual funcionava o vil
comércio de rins – diz ela. – Num dia repleto de desenvolvimentos, o doutor J. K. Nath… ou devo
dizer «doutor Rim»?… foi detido pela polícia de Deli. Foi acusado de extrair ilegalmente rins de
mais de quinhentas pessoas, na sua maioria pobres. O Unity Kidney Institute, onde esses rins eram
vendidos a doentes ricos, foi encerrado e há um mandado de captura de Anwar Noorani, membro da
Assembleia Legislativa, que presidia a todo este esquema. – Faz uma pausa e aponta para a câmara.
– Lembre-se: ouviu tudo isto primeiro aqui, na Sunlight TV, o canal que descobre a verdade, de
forma insistente, consistente e persistente.

Não resisto a telefonar a Shalini na minha hora de almoço.


– Parabéns pela reportagem. Mas porque demorou tanto tempo?
– Depois de a Sapna me falar da clínica, lancei uma grande operação clandestina, que incluiu
entrevistas com mais de duas dúzias de vítimas. Demorou algum tempo, mas estes bandidos não têm
fuga possível. Foram apanhados com a mão na massa – diz.
– O Anwar Noorani ficou-me com dois laques. Espero que apodreça na prisão durante pelo
menos vinte anos.
– Ainda não foi apanhado. Tenha cuidado, Sapna. Ele sabe que foi você que me informou do
assunto, e pode ser um homem perigoso.
– Não se preocupe. Se ele tinha o doutor Rim, eu tenho o doutor Mirchi para me proteger.
– O doutor Mirchi? Quem é?
– O quê? Não conhece o doutor Mirchi? É o melhor amigo das raparigas, também conhecido
como spray de gás pimenta!

No regresso do almoço, encontro Raja Gulati junto à porta das traseiras. Parece um palhaço, com
a camisa de seda roxa desabotoada e as calças apertadas. Estica o braço e barra-me a entrada.
– Deixa-me passar – digo, friamente.
– Porque estás sempre tão distante, Princesa de Gelo? – pergunta, com um sorriso lascivo. – Até
o gelo derrete no verão.
– Mas um idiota é sempre um idiota, seja qual for a estação – respondo secamente.
– A quem é que estás a chamar idiota, cabra?! – sussurra ele, explodindo como uma diva
temperamental, e agarra-me no pulso.
– Não te atrevas a tocar-me. – Luto para me soltar do punho dele.
– Primeiro, pede-me desculpa – exige.
– Filho da mãe! – Rodo sobre mim própria e esbofeteio-o.
Ele larga-me o pulso, com a boca aberta numa expressão chocada.
– Vais pagar por isto, cabra – sibila, quando o empurro e entro na loja.

Mesmo antes de fechar, Madan chama-me ao seu cubículo.


– Vamos fazer outro inventário. Preciso de si na loja, no domingo – diz, sem me fitar diretamente.
– No dia doze de junho? É o aniversário da morte do meu pai – respondo. – Não posso vir.
– Quem pensa que é?! – grita ele. – Uma rainha, que pode decidir quando vem trabalhar e quando
não vem? Estou farto dos seus aniversários de vida e de morte. Se não vier trabalhar no domingo,
será despedida.
Eu já estava a ferver por causa da afronta descarada de Raja. As ameaças de Madan são
suficientes para me empurrar para o abismo do desemprego.
– Vão para o diabo, você e a sua loja! – grito. – Despeço-me!
– Boa viagem. E assim não teremos de lhe pagar o período de pré-aviso – responde ele, tentando
esconder a satisfação na voz.

O verdadeiro valor de um emprego revela-se na quantidade de tempo que demoramos a deixá-lo.


Eu tinha investido tão pouco no meu, que demorei menos de vinte minutos a sair da Gulati & Sons.
A maior parte dos vendedores fica feliz por me ver pelas costas. Agora, podem aspirar ao lugar de
melhor vendedor. Prachi é a única que fica verdadeiramente triste com a minha partida.
– Não devias ter reagido daquela maneira – diz. – Se quiseres, posso falar com o Madan e tentar
resolver isto.
– Estou farta da Gulati & Sons – digo-lhe. – Não te preocupes, vou encontrar outro emprego mais
depressa do que o Raja Gulati consegue encontrar outra garrafa.
Quando saio do salão de exposições pela última vez, às 19h45m de quarta-feira, dia 8 de junho,
estou calma e de cabeça limpa. Nunca me senti mais leve, mais livre do que neste momento, como
uma condenada acabada de ser libertada da prisão. Era isso que a Gulati & Sons se tornara: uma
prisão da mente. Todos os dias eu odiava a viagem perigosa até ao trabalho, os puxões e empurrões
da humanidade no metropolitano sobrelotado, a cacofonia e o ruído de Connaught Place, os clientes
irritantes, o patrão insuportável, os colegas apáticos… Foi uma labuta diária miserável e
interminável e estou contente por me ver livre dela.

Sentada no metropolitano, a caminho de casa, tiro da mala o livro de Steven Katzenberg e abro-o
numa página ao acaso. Uma citação do industrial Ram Mohammad Thomas salta-me à vista.

Aprendi mais com a vida do que com os livros, e a vida ensinou-me que só precisamos de
três coisas para sermos verdadeiramente felizes neste mundo: uma pessoa para amar, um
emprego de que gostemos e um sonho pelo qual possamos viver.
Reflito nestas palavras sábias. Pela medida dele, talvez eu nunca venha a ser verdadeiramente
feliz. Não tenho ninguém para amar e não tenho emprego, mas tenho um sonho pelo qual viver, o
sonho de me tornar diretora-geral do Grupo CEA.
Esta tornou-se agora a paixão que me consome na vida. Todas as noites, deito-me na cama e
sonho com a promessa tentadora de um salário de sete dígitos.
Não tenho notícias do industrial há mais de um mês. Talvez ainda esteja a planear o sétimo teste.
O Sétimo Teste. Assim que penso nele, apodera-se de mim a convicção súbita de que pode já ter
começado. Acharya dissera que seria o mais difícil de todos. E se foi ele que preparou aquele
confronto com Raja Gulati, que me preparou mais uma crise?
Sinto o suor brotar-me na testa. Terei feito bem em despedir-me de forma tão impulsiva? O que
está em jogo é tão importante que falhar agora seria catastrófico.
Desesperada, recorro ao guia de Katzenberg e viro rapidamente as páginas até ao Capítulo 27.
Chama-se «Segredo Número 25: Como Lidar com Uma Crise».

Quando chego a casa, Neha desfila pela sala em cima de sapatos de salto alto, a abanar as ancas
como uma modelo na passarela.
– O que é que lhe deu? – pergunto à minha mãe.
– A Neha não te contou? – pergunta a mamã, e estende-me um envelope. – Isto chegou hoje.
O envelope contém uma carta da Agência de Talentos Nova, uma agência de Bombaim, e oferece
a Neha um contrato de modelo.
– Sabes o que isto significa, não sabes, didi? – Neha abraça-me o pescoço, num gesto
excessivamente afetuoso. – Significa que encontrei finalmente a minha verdadeira vocação. Agora
verás como deixo a minha marca no mundo.
– Tens a certeza de que é uma agência séria? – pergunto, libertando-me dos braços dela.
– Uma das melhores. Até têm um acordo com a Ford Models, de Nova Iorque. Dizem que posso
estar na passarela já no próximo mês, na Semana de Alta Costura de Deli – exulta ela. – E também
acham que a minha vitória no concurso de Miss Índia está garantida.
Não consigo impedir que uma expressão de contrariedade me passe pelo rosto. Acabo de perder
o emprego e Neha conseguiu um contrato impressionante. Ultimamente, a relação entre mim e a
minha irmã tornou-se um jogo desequilibrado. Cada azar que me acontece parece ser acompanhado
por um golpe de sorte correspondente para Neha.
– E os teus estudos? – pergunto, friamente.
– Quero lá saber dos exames – diz Neha com indiferença. – Quando for modelo, posso fazer um
curso por correspondência.

Depois de jantar, concentro-me de novo no Capítulo 27, mas Neha não para de me distrair,
sempre a rondar-me, como um gato ávido por atenção, até que não aguento mais.
– O que foi agora? – pergunto, irritada.
Ela enrola uma madeixa de cabelo no dedo, com um brilho de impertinência indolente nos olhos.
– Porque é que já não vais ao jardim?
– Porquê? É obrigatório dar um passeio depois de jantar?
– O Karan diz que tens andado muito fria com ele.
– Não me interessa o que ele diz.
– Ele pediu-me para te dizer que vai deixar a colónia.
– Boa viagem.
– Estás a ser muito ingrata.
– Ingrata? Tens um grande descaramento, em chamar-me ingrata depois do que tens andado a fazer
com o Karan.
Neha fica tensa.
– E a que te referes, exatamente, didi?
– Não finjas que não sabes – respondo, e o sarcasmo da minha voz transforma-se em raiva.
– Não sei o que queres dizer – diz Neha, ainda a fingir ser uma menina perdida.
Toda a mágoa e azedume que tenho acumulado vêm ao de cima.
– Tens andado com o Karan, nas minhas costas. Vocês andaram a enganar-me.
Ela olha para mim de boca aberta, momentaneamente aturdida. O choque parece genuíno, mas
rapidamente é substituído por uma belicosidade determinada.
– Acho melhor que te expliques, didi – exige, num exemplo clássico do ladrão que é apanhado em
flagrante e desafia o inspetor.
– Vi fotografias dos dois, neste mesmo quarto.
– Fotografias? Que fotografias?
– Para de fingir. É ou não verdade que beijaste o Karan, aqui ao pé da janela?
– Oh, isso! – Ela baixa os olhos, e uma expressão arrependida cruza-lhe o rosto, por fim. –
Confesso que não o devia ter feito. Mas não penses que foi alguma coisa especial. Não estou
apaixonada pelo Karan, nem nada que se pareça. Ele está reservado apenas para ti. Mas eu estava
tão agradecida, que o beijei, por impulso. Foi apenas um beijo de agradecimento.
– Um beijo de agradecimento? Agradecimento porquê?
– Não devia estar a contar-te isto, mas foi o Karan que me emprestou aqueles dois laques para o
transplante.
– O quê?
– Sim, é verdade. Todas as minhas amigas me falharam. Estava desesperada e pedi ajuda ao
Karan. Ele foi espantoso. Primeiro, foi ter com o doutor Nath e ofereceu-se para doar o próprio rim
à mamã, mas não era compatível. Depois, o pobre coitado vendeu metade daquilo que tinha e pediu
um empréstimo no trabalho, para conseguir juntar aquele dinheiro todo. Eu queria contar-te, mas ele
proibiu-me. Nunca poderemos pagar a dívida que temos para com ele. Digo-te, didi, és a pessoa
mais sortuda do mundo por teres um amigo como…
Não espero que ela termine. Saio a correr do apartamento e subo, dois a dois, os degraus até ao
terceiro piso, com a mente num turbilhão de ódio por mim própria e vergonha. Fui terrivelmente
injusta com o Karan e nunca poderei corrigir o meu erro.
Bato à porta do B-35 como uma viajante à procura de abrigo numa noite de tempestade. A porta
não se abre durante tanto tempo, que quase perco a esperança. Sinto o coração apertado quando
percebo que Karan pode já ter partido para sempre.
Precisamente quando estou prestes a virar costas, desesperada e de rastos, oiço o trinco e o rosto
de Karan espreita pela fresta.
– Sim? – Está de pé, com as mãos nas ancas, a olhar para mim com ar desconfiado, como se
fôssemos dois desconhecidos.
– Vim pedir-te perdão – murmuro.
– Perdão porquê?
– Por te ter tratado tão mal, depois de tudo o que fizeste por nós. A Neha contou-me tudo.
Ele continua a olhar para mim, a julgar-me em silêncio. Sustenho a respiração, à espera, e
preparo-me para uma explosão de cólera justificada, quando, de súbito, Karan estende a mão, com
a palma virada para cima.
Olho para ele de boca aberta, completamente confusa.
– A salvação é de graça, balika, mas uma doação de cem rupias ajudava – entoa, com a
gravidade de um guru a pontificar no canal Aastha. Depois, solta uma gargalhada sonora e abre-me
os braços, como uma fortaleza impenetrável a abrir as portas.
O riso dele é um bálsamo para o meu coração. Atiro-me para os seus braços. Sentir aquele peito
masculino, apertado contra o meu, enche-me de tanta alegria e paz, que esqueço tudo o resto. As
lágrimas começam a cair-me pelas faces, derretendo a dor, a vergonha, os sincelos de culpa
agarrados às arestas irregulares da minha alma.
Karan perdoara-me. Ia ficar tudo bem entre nós. E isso era tudo o que importava para mim.

Temos uma conversa mais longa nessa noite, no jardim. Conto-lhe tudo o que aconteceu entre mim
e Acharya.
– Meu Deus! – Ele escuta-me com espanto crescente. – Então foi tudo um plano, tal como eu
sempre suspeitei.
– Sim – respondo, com um sorriso embaraçado –, fui a heroína de uma telenovela privada, escrita
e realizada pelo Acharya.
– Esse homem merecia ser fuzilado! Tem andado a vigiar-te, a ti e a toda a tua família. Até tentou
pôr um detetive atrás de mim, mas eu apanhei esse desgraçado a meter o nariz nas minhas coisas e
dei-lhe uma tareia tão grande, que não se atreveu a aproximar-se novamente de mim.
– O Acharya falou-me nisso. Seja como for, está quase a acabar tudo. Tenho um pressentimento
de que o sétimo e último teste já começou.
Karan franze a testa, numa expressão confusa.
– Queres dizer que, mesmo depois de tudo isto, ainda não puseste fim à charada do Acharya?
– Já cheguei tão longe, porque não ir até ao fim?
– Como é possível? – Dá uma palmada no banco, frustrado. – Ainda acreditas que aquele maluco
fala a sério quando diz que quer fazer de ti diretora-geral da empresa?
– Ouve: ele não é maluco. É um velho desesperado por encontrar um sucessor. E acha que eu
tenho as qualidades necessárias para gerir a empresa dele.
– É louco!
– Mas não é maldoso. Acredita em certos valores.
– Então tu é que és louca. – Lança-me um olhar fulminante. – Não sabia que estavas assim tão
desesperada por dinheiro.
– Não estou! – exclamo energicamente, surpreendida com a minha própria veemência. – O homem
não vive só de pão. As vidas vulgares, de vez em quando, precisam da centelha do extraordinário.
Precisamos de deslumbramento, precisamos de surpresa, precisamos de esperança. Mesmo que a
oferta do Acharya continue a ser apenas um sonho, estou feliz por ele me ter mostrado isso.
– Talvez tenhas razão – diz Karan, lentamente. – Todos precisamos de qualquer coisa mais na
vida. Seja como for, a vida é tua e tu és a melhor juíza do que fazer. Só quero que sejas feliz.
Os nossos olhos encontram-se e uma sensação estranha abate-se sobre mim. Sinto o nascimento
de um entendimento mais suave entre nós, um novo convénio forjado no caldeirão do sofrimento e
da reconciliação.
Talvez seja da lua cheia, talvez haja algo no ar, a brisa fresca que sugou subitamente toda a
humidade como um mata-borrão, mas sinto-me presa de uma vontade desesperada e irresistível de
o beijar. Embora estejamos sentados no banco com trinta centímetros entre nós, sinto o calor do
corpo dele na minha pele, e esse calor desperta um calor correspondente em mim, um desejo tão
forte, que é quase luxúria. Fico com as palmas das mãos húmidas e a respiração ofegante.
Acho que Karan sente os sinais febris emitidos pelo meu corpo, pois muda de assunto
abruptamente.
– A Neha disse-te que vou deixar a colónia?
– Sim. – Anuo com a cabeça. – É verdade?
– Não é toda a verdade. Não vou deixar apenas a colónia; vou deixar o país.
– Vais sair da Índia? Mas… mas porquê?
– Não há falta de ambição na Índia, Sapna – diz ele, olhando em frente. – O que há é falta de
oportunidades. Por isso, decidi ir para a terra da oportunidade, a América.
– América? Mas isto é tão repentino! – respondo, com a expressão chocada de alguém que
embateu contra uma parede.
– Tenho um amigo na Califórnia que me ligou, sem eu estar à espera, e me fez uma oferta de
trabalho fantástica. É uma oportunidade boa de mais para não aproveitar.
– Estás a cometer um erro. O mundo inteiro está a vir para a Índia e tu queres ir na direção
oposta?
Ele solta uma risada amarga.
– Deixa-me dizer-te uma coisa, Sapna. Para pessoas como nós, não há futuro neste país. Só os
muito ricos e os muito pobres sabem como sobreviver na Índia. Ninguém quer saber dos restantes.
Nem sequer precisam de nós quando é altura de votar.
Sinto-me como se uma garra gelada estivesse a apertar-me o coração. A minha mente grita Não
vás, amo-te, morrerei sem ti. Contudo, o que sai realmente dos meus lábios é:
– E quando partes?
– Amanhã. Já tenho o visto. O meu voo parte às oito e quarenta e cinco da manhã. – Faz uma
pausa e respira fundo. – Agora que me vou embora, quero dizer-te uma coisa.
Pela forma como me fita com os olhos castanhos e sonhadores, a forma como a sua maçã de Adão
se mexe quando engole em seco, penso que vai dizer algo especial, talvez até sentimental. Sinto as
faces coradas com a perceção intuitiva de que a nossa corte está a chegar a um momento climático.
Karan está finalmente a preparar-se para abrir aquela caixa negra, para revelar os seus verdadeiros
sentimentos por mim. Um milhão de emoções agita-se dentro de mim. Espero que ele diga aquela
palavra mágica que há tanto tempo anseio ouvir.
Os lábios dele estremecem, mas o que diz é muito diferente daquilo que eu esperava.
– Sou homossexual.
Estou quase a dar-lhe uma cotovelada nas costelas por estar a armar-se em engraçadinho, quando
a expressão torturada no rosto dele me paralisa. É uma confirmação instintiva de que está a dizer a
verdade, e vejo a angústia que esta verdade lhe tem causado.
De certa forma, isso explica tudo: a sua estranha relutância em se envolver numa relação séria
comigo, o facto inexplicável de não ter devolvido o meu beijo, o estilo de vida reservado, a
decisão de fugir da Índia. No entanto, é tão inesperado, que me deixa tonta.
Não tenho nada contra os homossexuais. São das pessoas mais simpáticas do mundo,
maravilhosamente afetuosas e carinhosas, sensíveis, leais e altruístas. No entanto, de alguma forma,
o facto de Karan ser homossexual parece uma partida cruel contra mim. Ranjo os dentes perante a
injustiça da situação. Não é o ultraje de uma intolerante, mas a frustração de uma apaixonada
desprezada, incapaz de aceitar a realidade.
– Espero que possamos continuar a ser amigos – murmura Karan num tom de vergonha submissa,
encolhido dentro de si próprio. Parece tão frágil neste momento, que temo que uma palavra errada o
possa destruir completamente.
O meu coração aperta-se por ele.
– Claro que serás sempre meu amigo, o meu melhor amigo – digo, e aperto-lhe a mão. Porém,
mesmo enquanto o consolo, sinto uma nova distância entre nós. É como se, de súbito, a terra se
tivesse aberto, deixando-nos em lados opostos do abismo. O pensamento que se repete na minha
mente, como um mantra, é que Karan já não é meu. Talvez nunca tenha sido.
O silêncio entre nós prolonga-se e torna-se embaraçoso.
– Bem, boa sorte para a tua nova vida – digo, com um sorriso forçado. Depois, dou meia volta e
dirijo-me ao meu apartamento.
Entro no quarto e escondo o rosto na almofada, para abafar os soluços que ameaçam submergir-
me numa maré de tristeza. Todos os meus sonhos incluíam Karan e, de repente, esses sonhos foram
esmagados, transformados em pó. Ganhei Karan, apenas para o perder para sempre.

Karan parte para o aeroporto às 5h45m da manhã, em ponto. Vejo-o, da varanda, arrastar uma
mala de viagem velha até ao portão, vestido com uma T-shirt branca, com o logótipo da Indus, e
calças de ganga coçadas. Dhiman Singh, o guarda da colónia, já mandou parar um riquexó
motorizado para ele. Karan entra sem sequer olhar para trás. Contudo, quando o motorista está
prestes a arrancar, inclina-se para fora e olha para cima, à procura da varanda do segundo piso do
Bloco B. Vê-me e ergue a mão direita num gesto hesitante, um misto de saudação e pedido de
desculpas, mas depois o riquexó arranca com um solavanco e ele tomba para o interior.
Fico a olhar para o veículo até ele desaparecer à distância, tal como vi Nirmala Ben deixar a
colónia um mês antes. Um a um, os meus amigos estão a abandonar-me, a partir para uma vida
melhor.
O papá costumava dizer que a vida é esquecer e seguir em frente. Mas não posso apagar Karan da
minha vida como um erro num papel. De cada vez que passo pelo apartamento dele, as memórias
enchem-me a mente. O sólido cadeado na porta dele troça de mim, é como um salpico de água suja
no meu rosto.
Até o tempo começa a conspirar contra mim, passando de desconfortavelmente quente para
insuportavelmente húmido. Embora falte mais de um mês para a monção, o ar está pesado com a
promessa de chuva. A humidade está suspensa na atmosfera como um balão gigante e inchado que
se recusa a partir.
Sem emprego e sem Karan, encho-me de um vazio cortante. A necessidade desesperada de
preencher este súbito vazio na minha vida empurra-me para Neha. O seu entusiasmo apaixonado
pela carreira de modelo é contagioso, precisamente a centelha de que preciso para não cair na
espiral descendente das recordações e do arrependimento. Decido dedicar-me de alma e coração à
nova carreira dela. Passamos o dia inteiro a estudar revistas de moda e de Bollywood, a planear as
suas indumentárias e maquilhagem. Neha, contudo, não se dá por satisfeita apenas com
maquilhagem. Quer uma remodelação total. E isso começa com um penteado novo.
– Didi, o cabelo é muito importante para uma modelo – declara. – Tens de me levar ao melhor
salão de cabeleireiro da cidade.
– Há um mesmo ao lado da nossa colónia – sugiro. – Posso recomendar sem hesitação o Salão
Sweety Beauty.
– Não brinques! – Ela faz uma careta. – Preciso de um profissional, não de um barbeiro de vão de
escada.

E é assim que, às quatro da tarde de sábado, dia 11 de junho, nos encontramos no novo Centro
Comercial City, no Setor 10. Eu visto um churidar branco e uma kurta com bordado a combinar.
Neha veste as habituais calças de ganga e uma T-shirt cor-de-rosa da Hello Kitty.
O centro comercial está cheio de compradores de fim de semana, que esbanjam dinheiro em
artigos de marca. Hoje é o Dia da Pechincha e a maioria das lojas faz um desconto de dez por
cento.
O Centro Comercial City não é, normalmente, um sítio onde eu vá fazer compras. Os preços são
suficientemente altos para provocar uma hemorragia nasal a qualquer pessoa. Mas Neha insistiu que
queria arranjar o cabelo no Salão de Cabeleireiro Naved Habib, que fica no segundo andar do
centro.
O salão é impressionante, com o seu design contemporâneo e decorações elegantes, mas olho
para a tabela de preços e quase me engasgo. Um corte com secagem e penteado custa a quantia
assombrosa de 1500 rupias! O meu corte de cabelo no Salão Sweety Beauty custa apenas 175
rupias. No entanto, não fico ressentida por abrir os cordões à bolsa. Neha recebeu uma
oportunidade fantástica e tem de estar preparada para a aproveitar ao máximo.
Enquanto a minha irmã faz o corte de cabelo mais caro da cidade, vou passear para uma boutique
de luxo. Olho para os preços da sombra de olhos L’Oréal, do batom Revlon e do rímel Max
Factor, e começo a temer a perspetiva de ir com Neha às compras de cosméticos. As minhas
reservas de dinheiro estão a diminuir rapidamente e em breve terei de consolidar as minhas
finanças com um novo emprego.
Às cinco da tarde, Neha está despachada. Tenho de admitir que a cabeleireira fez um bom
trabalho. Neha está mais deslumbrante do que nunca, com o seu penteado novo e elegante – um
corte escadeado, mais curto em cima –, que lhe favorece o rosto oval e realça os seus lindos olhos.
Vejo os homens a admirarem-na quando saímos do centro comercial. Para eles, Neha já é uma
modelo.
Um bando de condutores de riquexó rodeia-nos imediatamente.
– Venham comigo, venham comigo – dizem.
Viro-me para um homem mais velho, com um colete e um lungi49, cujos músculos bronzeados
brilham com o suor que lhe cobre o corpo.
– Pode levar-nos à Colónia GBR no Setor 11?
– Trinta rupias, memsahib – diz ele, limpando a testa com um trapo.
– Arrey, pensa que somos forasteiras? – repreendo. – Pagámos vinte rupias para vir até aqui.
– Não faz mal, didi – diz Neha generosamente, e sobe para o riquexó. Depois de um instante de
reflexão, subo também, percebendo que é uma futilidade estar a discutir por causa de dez rupias
depois de estoirar 1500 num corte de cabelo.
Como é sábado, não há muito trânsito nas estradas e o riquexó não tem dificuldade em chegar ao
Setor 11. Quando viramos para Rammurti Passi Marg, oiço o som de uma motorizada a acelerar na
estrada atrás de nós. Um segundo depois, está ao nosso lado, montada por dois jovens de calças de
ganga apertadas, ambos com capacetes com visores escuros que lhes escondem o rosto. Parecem
desordeiros vadios no seu passatempo preferido: meter-se com raparigas. Na verdade, o condutor
aproxima-se tanto do riquexó, que quase poderia tocar em Neha. Estou prestes a gritar com ele
quando a motorizada se afasta e passa por nós a toda a velocidade, fazendo o cabelo de Neha voar
para o meu rosto. O jovem que vai atrás ergue o punho fechado no ar, a troçar de nós.
– Cães! – resmungo entre dentes.
Poucos minutos depois, quando estamos junto do complexo do Centro Comercial Metro Walk,
oiço outra vez o som de uma motorizada a aproximar-se atrás de nós. Viro-me e vejo que são os
mesmos homens, que aceleram na nossa direção. O rugido do motor está cada vez mais próximo.
Há algo sinistro nas suas ações. Tenho um mau pressentimento. Porém, antes que consiga tirar o
spray de gás pimenta da mala, a motorizada está ao nosso lado.
Pelo canto do olho, vejo o tipo que vai atrás tirar a tampa de um frasco que tem na mão. A sineta
de aviso na minha cabeça dispara instantaneamente.
– Neha! Cuidado! – grito, quando o rufia atira o conteúdo do frasco para a cara de Neha. Vejo
salpicos de um líquido escuro e oleoso e, no instante seguinte, o grito de agonia de Neha corta o ar.
A motorizada desaparece à distância, deixando Neha a contorcer-se no riquexó.
– Estou a arder, estou a arder, didi! – grita ela. – Por amor de Deus, faz alguma coisa! Salva-me!
– Só então percebo que foi atacada com ácido.
O seu corpo entra em convulsões quando o ácido lhe penetra na pele. Escorre-lhe para o cabelo e
desliza pelo rosto, para a boca. Quando ela tenta limpá-lo, o ácido desliza-lhe pelos dedos, para os
antebraços.
Aperto-a no meu colo, completamente impotente para impedir a lenta desintegração do seu rosto.
O cabelo dela está a arder, a pele, a derreter como cera. Estremeço ao pensar nas dores que ela
deve estar a sentir.
– Chame uma ambulância! – grito a plenos pulmões para o condutor do riquexó, que parece uma
estátua, paralisado de medo. Felizmente, uma carrinha da polícia que vai a passar vem em nosso
auxílio e leva-nos para o Hospital Público de Shastri, no Setor 5.

Três horas depois, ainda estou no hospital, numa vigília ansiosa à porta da sala de operações
onde os cirurgiões lutam para salvar a minha irmã.
Dentro da sala, Neha está entre a vida e a morte; cá fora, a minha mãe e eu estamos entre o horror
e a histeria.
– O que fizemos para merecer tanta desgraça, Ishwar? – a minha mãe olha para o teto,
interrogando os seus deuses. Depois, rebenta em soluços dilacerantes. – Porque é que Deus não me
levou a mim e poupou a minha flor? – pergunta, agarrada ao meu braço.
Não tenho resposta para as perguntas dela. A minha mente está ensombrada por fúria e maldade.
Quero sair, encontrar os selvagens que fizeram isto a Neha e destruí-los com igual selvajaria.
Imagino-me a arrancar-lhes os olhos, a cortar-lhes as orelhas, a esmagar-lhes os narizes, a decepar-
lhes os dedos um a um e, quando estiverem a suplicar misericórdia, a esmagar-lhes a cabeça com
uma pedra.
Como queria ter Karan ao meu lado. Só ele pode salvar-me do abismo de ódio que ameaça
engolir-me. Mas Karan está a um milhão de quilómetros de distância e não tenho maneira de o
contactar.

O ataque com ácido a Neha tornou-se um caso de polícia e um oficial arrogante, o subinspetor S.
P. Bhatia da esquadra de Rohini, foi destacado para o investigar. O seu interrogatório incessante
está a causar-me uma dor de cabeça violenta.
– Reconheceu os dois jovens na motorizada?
– Não. Tinham capacetes, por isso não lhes vi a cara.
– Há alguém que quisesse vingar-se da sua irmã?
– Não sei. Só um louco psicopata faria uma coisa destas.
– Conhece algum louco psicopata em Deli?
– Não. E o senhor?
– A sua irmã tem namorado?
– É possível. Não sei.
– Acha que isto pode ser obra de um ex-namorado?
– Não sei.
– Parece que não conhece muito bem a sua irmã.
– Talvez não conheça.
Ele acaricia o queixo, com ar pensativo.
– Há alguma possibilidade de que fosse você o alvo do ataque?
A pergunta sobressalta-me.
– Eu? Porque havia alguém de querer fazer-me mal?
– A senhora é que sabe. Tem algum esqueleto no armário?
– Não. Nenhum.
– Não diga nenhum. Toda a gente tem esqueletos no armário. Todas as pessoas são potenciais
criminosos. E a linha que separa a sanidade da loucura é muito ténue.
– Eu sei. – Confirmo com a cabeça. – Estou equilibrada mesmo em cima dela. Se não
encontrarem a pessoa que fez isto, enlouquecerei.
– Toda a cidade enlouqueceu – suspira ele. – Os apoiantes do membro da Assembleia Legislativa
Anwar Noorani fizeram uma manifestação no mercado do Setor 7, esta tarde, para protestar contra a
detenção dele.
– Meu Deus! – exclamo, quando me vem à cabeça a memória de uma conversa que tive com
Shalini Grover. Anwar Noorani é um homem perigoso, avisou-me ela. E o ataque com ácido
encaixa perfeitamente na sua natureza vingativa e temperamento volátil. – Isto foi obra do Noorani,
tenho a certeza. – Aperto o braço do subinspetor com a certeza instintiva da convicção feminina.
– Mas ele está preso na cadeia de Tihar.
– A cadeia de Tihar não impediu o Babloo Tiwari de continuar o seu negócio de rapto e extorsão.
Vá imediatamente interrogar o Noorani. Estou convencida de que ele organizou o ataque contra a
Neha, porque eu ajudei a denunciar o esquema ilegal de venda de rins dele.
O subinspetor Bhatia ouve-me pacientemente, mas a expressão dos seus olhos sugere que é um
homem que acha que está a perder tempo. Por fim, fecha o bloco de notas e vira-se para a minha
mãe.
– Preciso de interrogar a sua filha, se ela recuperar a consciência.
A mamã olha para ele, em estado de choque, e desata novamente a chorar.
O subinspetor corrige-se rapidamente.
– Quer dizer, quando ela recuperar a consciência.

O especialista em queimaduras do hospital de Shastri é o doutor Atul Bansal, um homem na casa


dos quarenta, de óculos, com modos suaves e a expressão estoica e cansada de um condenado à
morte. Não o censuro. De todas as enfermarias do hospital, a enfermaria de queimados é a mais
melancólica, perpetuamente saturada de tragédia. Chegam constantemente vítimas de queimaduras
graves. As causas variam – algumas são queimaduras sofridas em explosões de gás, outras são
causadas por ácido ou eletricidade –, mas o resultado final é o mesmo: rostos horrivelmente
desfigurados, carne exposta e pendurada, pele coberta de bolhas e furúnculos. Ouvir os gritos de
agonia que ecoam pelos corredores é o suficiente para fazer qualquer pessoa desejar ser
temporariamente surda.
– A Neha teve muita sorte – diz o doutor Bansal enquanto nos acompanha à UCI, para onde Neha
foi transferida depois da operação. – Sofreu apenas quarenta por cento de queimaduras no corpo,
essencialmente no lado direito do rosto, pescoço e peito. Podia facilmente ter perdido os olhos e as
orelhas.
Do lado oposto do corredor, um auxiliar empurra uma maca. Olho para o rosto do doente e recuo
imediatamente, chocada e horrorizada. É um homem de meia-idade, com cerca de cinquenta anos.
Todo o lado direito do seu rosto foi arrancado, o que o torna, mais do que deformado, informe. É
como se músculos, ossos e tecidos ainda estivessem em desenvolvimento, ainda estivessem a tentar
perceber a interação de sangue, fibras, nervos e veias que dá força e vitalidade à estrutura. Mas o
processo parece ter sido interrompido a meio, antes de a última camada exterior, a epiderme, cobrir
a estrutura. O resultado é uma massa de carne de uma tonalidade carmim peculiar. Onde ainda
existe alguma pele, esta transformou-se em pequenos glóbulos transparentes, como se a cabeça
tivesse sido mergulhada em água a ferver e o rosto tivesse borbulhado.
– Não é bonito de se ver, pois não? – comenta o doutor Bansal, habituado que está a ser exposto a
estes horrores todos os dias.
– Quem é que lhe fez isto?
– A mulher com quem era casado há trinta anos.
Ergo as sobrancelhas, espantada.
– Sei que deve estar surpreendida. Oitenta por cento das vítimas de queimaduras que aqui chegam
são mulheres. Os casos habituais de assédio sexual e problemas de dote. Este caso é uma exceção.
O marido era um homem violento, que agredia a mulher todos os dias. Ontem, ela vingou-se.
Deitou-lhe ácido sulfúrico para a cara enquanto ele dormia, cegando-o e desfigurando-o para o
resto da vida.
Não consigo imaginar o turbilhão interior que teria levado a mulher a dar um passo tão
irrevocável.
– O que lhe vai acontecer agora?
– Provavelmente passará o resto da vida na prisão – diz o doutor Bansal, enquanto nos desviamos
de grupos de doentes, familiares e enfermeiras. A UCI parece uma cena pós-batalha de um filme de
guerra, com corpos deformados e mutilados em vários estados de recuperação. A cama de Neha
fica mesmo ao fundo da enfermaria, encostada a uma parede caiada, coberta de fendas, onde uma
pequena janela quadrada dá para o pátio central.
Fico com um nó na garganta quando me aproximo de Neha. O rosto da minha irmã está
completamente envolto em ligaduras. Apenas os olhos estão à vista, o que me faz lembrar o Homem
Invisível. Gentilmente, pego-lhe na mão e aperto-a ao de leve. Ela puxa-a rapidamente, como se
fugisse do toque de um leproso, e agarra-se à mão da mamã. A dor no meu coração torna-se ainda
mais aguda.
Há uma frieza percetível no comportamento de Neha para comigo, quase uma hostilidade. Talvez
pense que não fiz o suficiente para a proteger. Ou que aquilo que lhe aconteceu foi culpa minha, de
alguma forma.
Chamo o doutor Bansal à parte.
– O que devemos esperar quando as ligaduras forem removidas?
– Um rosto permanentemente desfigurado – responde ele. – Será uma experiência muito penosa,
tanto para ela como para vocês.
Um soluço escapa-me do peito. O doutor Bansal faz uma expressão compreensiva.
– A Neha que conhecia desapareceu para sempre. Quanto mais depressa o aceitar, melhor.
– Não podemos fazer nada para lhe devolver o rosto?
– Claro que sim. Mas seriam precisos anos de cirurgias plásticas e reconstrutivas e muitos
laques.
– Eu arranjo o dinheiro – digo, com uma determinação feroz, e pego no telemóvel. Saio para o
corredor e marco o número de Acharya.
Ele atende quase imediatamente.
– Não é um pouco tarde para me ligar, Sapna?
– Nunca lhe pedi nada – começo –, mas hoje preciso da sua ajuda, para a minha irmã Neha.
Preciso de dinheiro para uma operação.
– O que é que aconteceu?
– Alguém lhe atirou ácido para a cara. Está no hospital, a lutar pela vida.
– Tss, tss… – Acharya solta um estalido com a língua. – Que tristeza. Já apanharam os rapazes
que fizeram isso?
– Rapazes? – Faço uma pausa súbita. – Como sabe quem o fez? E que era mais de um rapaz? Eu
não falei nisso.
Ele não diz nada durante um longo momento.
– Eu… calculei que devia ter sido mais de uma pessoa.
– Meu Deus! Então é você que está por trás do ataque! – exclamo, e a compreensão atinge-me
como um raio. – Isto é outro dos seus testes dementes?
– Não vamos tirar conclusões pre…
– O que é que fez?! – grito, com as mãos fechadas em punhos. – É um louco e ultrapassou todos
os limites!
– Não faço ideia do que quer dizer.
– Não minta. Foi você que orquestrou o ataque com o ácido, não foi?
– Claro que não. Mas avisei-a de que o último teste seria o mais difícil.
– Porque é que teve de envolver a minha irmã nisto?
– Não fui eu. Foi Deus. Não lhe disse também que podia haver… ah… danos colaterais?
– Acha que destruir a cara de uma pessoa é um dano colateral?! – guincho.
– Os japoneses têm uma expressão… «shikata ga nai», que significa «não pode ser evitado». É
preciso suportar os infortúnios.
O seu pretensiosismo moralista enfurece-me ainda mais. Não há mais nada a dizer. Todas as
ilusões que alimentei ao longo dos últimos cinco meses são finalmente destruídas. Karan teve
razão, desde o princípio. Acharya é um sádico violento e eu, uma louca por me ter tornado
voluntariamente um peão no seu esquema perverso.
Um vulcão de ódio explode no meu cérebro. Uma vaga de raiva pura, fervente e primitiva
percorre-me as veias e os meus dedos estremecem. Quero fechá-los sobre a garganta de Acharya e
apertá-la até os olhos lhe saltarem das órbitas.
– Você é um monstro. Vou matá-lo! – grito ao telefone. Os outros familiares na enfermaria de
queimados erguem os olhos. Uma enfermeira franze a testa e leva o dedo aos lábios.
– Silêncio, por favor.
– Está a enervar-se sem necessidade – diz Acharya. – Porque não vem a Prarthana? Eu explico-
lhe tudo.
– Vou imediatamente para aí. Espere por mim, seu filho da mãe.
Desligo e saio da enfermaria.
No exterior do hospital, o tempo mudou completamente. O calor húmido deu lugar a uma chuva
torrencial. Fora de estação e, por isso mesmo, ainda mais assustadora. Um relâmpago corta o céu
negro, como uma grande faca azul, seguido por um trovão ribombante que faz estremecer a paragem
de autocarro do outro lado da rua. Sem chapéu de chuva, fico encharcada até aos ossos em poucos
segundos. Mas não importa. Tal como não importa que não tenha comido nada desde o almoço.
Nada importa a não ser o meu desejo ardente de vingança.
Demoro dez minutos a encontrar um riquexó motorizado. Explico a morada de Acharya, em
Vasant Vihar, ao condutor.
– Vai-lhe custar duzentas rupias, minha senhora – diz ele, fazendo-me o dobro do preço normal.
– Dou-lhe trezentas se me puser lá depressa.

Durante a viagem de quarenta e cinco minutos, no meio da chuva torrencial e do vento forte,
mantenho um silêncio glacial. Os meus pensamentos estão presos num turbilhão de gritos
agonizantes e nas sensações-fantasma do corpo trémulo de Neha nos meus braços. O seu rosto
enfaixado paira perante os meus olhos, bloqueando todos os outros pensamentos. O meu mundo foi
destruído e nada pode voltar a reconstruí-lo. E agora vou acabar com o mundo de Acharya,
submetê-lo ao meu julgamento.
Quando o riquexó se aproxima do lote número 133-C, o meu coração começa a bater mais
depressa. Abro e fecho as mãos.
Dois seguranças com auriculares e rádios detêm-me junto dos portões imponentes de Prarthana.
– É a Sapna Sinha? – pergunta um deles, e aponta uma lanterna para o meu rosto.
– Sim – respondo.
Manda-me passar até à guarita, onde dois guardas uniformizados começam a discutir um com o
outro.
– Jaane de na. Deixa-a passar – diz um deles. – O patrão disse-nos que estava à espera dela.
– Não – responde o outro. – Ninguém pode entrar sem confirmação do patrão. – Pega no
intercomunicador e carrega num botão. – Senhor, a Sapna Sinha está aqui.
– Mandem-na entrar – oiço Acharya dizer secamente. O guarda acena-me com a cabeça e dá-me
um chapéu de chuva.
Olho para ele, furiosa.
– Espera que eu caminhe até à residência com este tempo? Porque não posso levar o riquexó?
– Lamento, senhora, mas os riquexós motorizados são proibidos em Prarthana. O senhor Acharya
deu instruções rigorosas. Terá de ir a pé. São apenas cinco minutos.
Abano a cabeça perante esta regra ridícula e viro-me para o condutor.
– Espere aqui – digo-lhe. – Não me demoro.
Ele olha para o céu. A chuva não mostra sinais de abrandar. Olha para a estrada deserta.
Dificilmente encontrará outro cliente.
– Tudo bem – diz, e enfia um paan na boca. – Terá de pagar mais cem rupias pela espera.
Abro o chapéu de chuva e começo a longa caminhada pelo caminho curvo. O vento aumenta de
intensidade e assobia entre as sebes bem tratadas, como uma canção de embalar macabra. A chuva
bate com força no chapéu de chuva e escorre pelo pano preto como uma cascata. Avanço em
direção à casa, com os sapatos cheios de água, o churidar molhado colado ao corpo, como uma
segunda pele.
A meio, o caminho faz uma curva para a direita e vejo que está barrado por dois cães de ar feroz,
que me recebem com rosnados graves. São os dobermans, cujos olhos cintilam como brasas na
noite e cujo pelo negro e curto brilha como pedra molhada. Embora estejam presos a um tronco,
desvio-me para o lado mais distante do caminho, tentando fazer o máximo de distância possível
entre mim e eles. Outro relâmpago ilumina o céu e vejo a mansão, como um negativo exposto. Uma
rajada de vento quase me vira o chapéu de chuva.
Chegar ao abrigo do pórtico coberto parece-me uma grande vitória. Fecho o chapéu de chuva,
sacudo a água do cabelo e toco à campainha.
Espero quase dois minutos, mas ninguém abre a porta. Toco novamente à campainha. Nada. É
então que reparo que a porta está entreaberta. Empurro-a e entro. Quase automaticamente, começo a
limpar os pés no tapete da entrada, para tirar o excesso de água.
– Senhor Acharya? – chamo, mas oiço apenas a minha própria voz ecoar no átrio de mármore.
O silêncio sinistro é perturbador. Na minha última visita, a casa estava cheia de criados. Esta
noite, parece um castelo assombrado. As salas vastas e vazias parecem misteriosas e sinistras
quando as percorro, as sombras nas paredes parecem observar todos os meus movimentos,
sussurrando conspirações umas às outras em resposta ao chiar da sola de borracha dos meus ténis
no chão de madeira.
Atravesso as salas de estar e de jantar e entro no escritório, que está igualmente vazio.
Cuidadosamente, empurro a porta que dá ligação ao quarto e espreito.
Uma luz fraca incide sobre o retrato do pai de Acharya. O resto do quarto está completamente às
escuras.
– Senhor Acharya? – chamo, de novo, pensando que talvez ele esteja na casa de banho.
Quando não obtenho resposta, entro no quarto com passo hesitante e procuro o interruptor da luz,
às apalpadelas. Passado algum tempo, os meus dedos encontram um painel de plástico e ligo todos
os interruptores. A súbita explosão de luz faz-me proteger os olhos com a mão.
O quarto está praticamente igual à última vez que o vi. A mesma cama de mogno com a colcha
roxa, o espelho de ónix preto e a mesa coberta de velhas fotografias de família. A única diferença
no quarto é uma televisão Sony de sessenta e cinco polegadas, montada na parede em frente da
cama.
– Senhor Acharya? Onde está?! – grito, sentindo vagas de frustração e impaciência rebentar
dentro de mim. É evidente que ele está a evitar-me deliberadamente. A casa de banho parece o sítio
mais provável para o encontrar. Começo a dirigir-me à porta de carvalho maciço do outro lado do
quarto, quando oiço chapinhar. Olho para baixo e recuo, horrorizada. Pisei uma pequena poça
vermelha. Rapidamente percebo que aquilo que vejo é sangue fresco, uma poça a reluzir como óleo
no meio do chão, e agora também na sola do meu sapato.
Percorro o chão com os olhos, freneticamente, à procura da origem do sangue. O rasto contorna a
cama e termina em algo que me faz estacar, gelada. Há um corpo caído no chão, do outro lado da
cama. Parece um homem, vestido com um fato branco-sujo. De onde me encontro, não consigo ver-
lhe o rosto, mas é evidente que está morto, pois vejo o cabo de madeira de uma faca na sua barriga,
como uma vela num bolo de aniversário.
Um grito morre-me nos lábios. Acabo de ver o primeiro homicídio da minha vida, e a visão causa
em mim uma tal náusea, que me dobro ao meio e quase vomito o almoço. Vem-me à cabeça um
cenário pintado há muito por Karan. Acharya chama-me a sua casa, à noite. Não o encontro, mas
descubro um cadáver – e sou acusada do homicídio. No retrato que Karan pintou com as palavras, o
corpo era o da mulher de Acharya. Aqui, estou a fitar o corpo morto de um homem e não tenho
coragem de olhar para ele. Sei que caí numa armadilha montada por Acharya. A qualquer minuto, os
seguranças entrarão pela porta da frente e soltarão os cães. Fico arrepiada só de pensar naquelas
duas feras a saltarem sobre mim, a rasgarem-me a pele com os dentes fortes e afiados. Não, não
posso correr o risco de ser encontrada no local de um crime. O que significa que tenho de fingir que
não vi crime nenhum e sair daqui o mais depressa possível.
Sem pensar mais, descalço-me e, com os sapatos na mão, saio do quarto. Regresso
cuidadosamente à porta da entrada, saio de casa e calço-me. Depois, abro o chapéu de chuva e
tento caminhar com naturalidade até ao portão.
Um rosnado feroz quase me faz dar um salto, e recorda-me de que estou a aproximar-me dos cães.
Eles começam a ladrar desvairadamente assim que me veem, como se algum sexto sentido já os
tivesse avisado do homicídio ocorrido na residência. Passo por eles em bicos de pés.
A tensão dentro de mim está no auge quando faço a curva que me afasta da linha de visão dos
dobermans. Tento acalmar a respiração ao aproximar-me da guarita.
– Foi rápido – diz o guarda de serviço, quando lhe devolvo o chapéu de chuva.
– Sim – respondo, com um sorriso débil, e subo para o riquexó. – Leve-me de volta a Rohini. –
Tenho de dar um toque no condutor, que dormita ao volante. – Depressa.
Ele olha para mim.
– Está tudo bem? Parece que viu um fantasma.
– Não fale – respondo, com os dentes cerrados. – Conduza.
Com um encolher de ombros indiferente, ele cospe o sumo de paan e liga o motor. O riquexó
recusa-se a pegar, o que me deixa os nervos ainda mais em frangalhos. Fico com as mãos frias e
peganhentas, o coração bate-me violentamente no peito e tenho o estômago às voltas como uma
betoneira. Por fim, o motor pega, mas não aguento mais. Mal percorremos cinquenta metros quando
vomito no banco de trás.

As luzes fortes do hospital são um refúgio bem-vindo depois do mundo de pesadelo ao qual
escapei. Até os rostos mutilados na enfermaria de queimados parecem preferíveis à visão do corpo
assassinado em Prarthana.
Embora passe da meia-noite, a mamã ainda está à cabeceira de Neha.
– Onde é que foste, tão de repente? – pergunta-me.
– Consultar um cirurgião plástico – minto, despreocupadamente.
– E o que é que ele disse? É possível reconstruir o rosto da Neha?
– Sim, mas não temos dinheiro para isso.
A mamã desvia o rosto, já à espera desta resposta.
– Falarei com a Nirmala Ben. Talvez ela possa ajudar-nos a angariar o dinheiro.
– Porque não vai para casa? – Pouso-lhe a mão no ombro. – Eu fico aqui com a Neha.
– Os hospitais tornaram-se a minha casa – responde-me. – Vai tu e descansa um pouco.
Olho pela janela. Parou de chover, mas a atmosfera continua carregada de eletricidade. A nuvem
terrível do homicídio paira sobre a cidade como um sudário.
Sento-me na cadeira vazia ao lado da cama de Neha. Fecho os olhos e tento organizar os
pensamentos, encontrar algum sentido no caos do meu cérebro. Acharya contratou dois jovens para
atirarem ácido para a cara de Neha. Depois, matou alguém, em sua casa. Fez todos os possíveis
para me incriminar do homicídio, mas eu consegui sair mesmo a tempo. Apesar disso, de certeza
que a polícia me vai interrogar, e decido contar-lhes tudo. Revelarei a natureza perversa dos seus
sete testes, mostrarei ao mundo o verdadeiro rosto de Vinay Mohan Acharya. Mas há algumas
coisas que não vou dizer à polícia. Como o facto de ter entrado no quarto de Acharya e encontrado
o corpo.
Vou à casa de banho e inspeciono as minhas roupas. Não há uma gota de sangue nelas. Descalço
os ténis e lavo-os muito bem, para remover todos os vestígios de sangue das solas. Depois, volto
para a cadeira e tento dormir, mas o cadáver flutua na minha mente como um sonho febril. A faca
ergue-se perante mim como uma visão trocista, sempre fora do meu alcance. É impossível dormir,
impossível descansar, impossível fingir que não aconteceu nada.
Vencida pela fome e pela exaustão, caio por fim num sono agitado, por volta das quatro da manhã,
apenas para ser acordada meia hora depois por um polícia que me empurra com o seu cassetete.
– É a Sapna Sinha? – pergunta-me. Atrás dele estão mais alguns agentes.
Anuo com a cabeça, ainda ensonada. A minha mãe fica imediatamente tensa. O seu instinto
maternal avisa-a de que está prestes a acontecer alguma coisa má.
– Está presa – diz ele.
– Porquê?
– Pelo homicídio de Vinay Mohan Acharya.
Desperto bruscamente.
– Deve estar a brincar.
– Isto parece-lhe uma brincadeira? – diz, erguendo o mandado de captura com o meu nome.
– Deve haver algum eng…
A minha mãe não me deixa terminar a frase. Solta um uivo de angústia e desmaia.

Ser presa é, sem margem para dúvidas, a experiência mais demolidora e desorientadora da vida.
Parte o nosso mundo em dois, o antes e o depois da detenção. De súbito, somos arrancados à nossa
vida normal, aos nossos amigos e família, e atirados para um ambiente totalmente estranho.
Levam-me para a esquadra de Vasant Vihar e acusam-me de homicídio. Tiram-me as impressões
digitais, amostras de ADN e fotografias. O meu apartamento é revistado, e o meu computador, bem
como o meu diário, levados como prova. As roupas que vestia ontem, bem como os meus sapatos e
telemóvel, são confiscados. Sou levada à presença de um magistrado, que me nega a possibilidade
de fiança e me entrega à custódia da polícia durante sete dias.
Agora estou à mercê do subcomissário de polícia I. Q. Khan. É um homem alto e magro, de rosto
duro, com um bigode bem aparado, e há nele algo muito pouco policial. Tem o porte militar de um
soldado e a graciosidade educada de um velho aristocrata.
Uma mulher-polícia chamada Pushpa Thanvi foi destacada para me acompanhar e cola-se a mim
com uma gémea siamesa. É uma mulher gorda, com um busto avantajado, tez irregular e uma voz
que faz lembrar um pato com laringite. Vigia-me como um falcão e tem o hábito desconcertante de
me espetar com o dedo sempre que quer chamar-me a atenção.
Mais desconcertante ainda é o olhar fixo do subcomissário Khan, sentado à minha frente. A fadiga
da noite anterior, aliada a toda a correria desde esta manhã, deixou-me esgotada. O único
pensamento que circula na minha cabeça é que isto não passa de um sonho horrível, do qual
acordarei em breve.
Estamos no gabinete do subcomissário Khan, uma divisão grande e triste, que as pesadas cortinas
de veludo tornam ainda mais abafada. As paredes brancas estão adornadas com fotografias
emolduradas de Gandhi, Nehru e Subhash Chandra Bose, e citações motivacionais de Einstein e
Kahlil Gibran. O televisor Philips montado na parede está apagado, mas o ponteiro dos segundos
do relógio ao seu lado corre para as 15h55m.
– Está pronta para confessar? – pergunta ele, fitando-me nos olhos.
Desvio o rosto, constrangida sob o seu escrutínio implacável.
– Não tenho nada a confessar.
– Foi a casa do senhor Acharya ontem à noite, ou vai negar isso também?
– Fui a casa do Acharya, sim. Mas não o matei. Para ser mais exata, nem sequer o vi. Toquei
várias vezes à campainha mas ninguém respondeu. Portanto, voltei para o hospital.
– Então não encontrou o cadáver no quarto?
– Não. Não entrei no quarto dele. Na verdade, ainda nem acredito que ele está morto.
– Nesse caso, veja esta fotografia – diz, e empurra uma foto colorida sobre a mesa.
É a «fotografia oficial» do homem assassinado, tirada pelo fotógrafo da polícia. Vejo um rosto
pálido como cera sob uma juba de cabelo prateado. Parece realmente Vinay Mohan Acharya. Jaz
caído numa poça de sangue, vestido com uma kurta de seda branco-suja. Tem os olhos abertos, mas
está morto, as feições paralisadas num esgar de agonia, e tem uma faca com cabo de madeira
espetada no peito ensanguentado.
Um estremecimento involuntário percorre-me o corpo quando olho para a foto. Embora tenha
visto o cadáver com os meus próprios olhos, não consigo afastar a sensação de irrealidade em
relação à morte de Acharya, como se ainda estivesse à espera de o ver entrar na esquadra e
declarar «Falhou no sétimo teste!».
A única coisa que não sinto é pesar. Acharya cometeu um crime horrível e merecia morrer. Mas
quem o matou, e porquê? Esse era um mistério ainda por resolver.
Devolvo a fotografia ao subcomissário Khan.
– Quem descobriu o corpo?
– Foi o doutor Kabir Seth, o médico pessoal do senhor Acharya. O senhor Acharya esteve em
Bombaim a semana passada, internado no Tata Memorial Hospital. Só chegou a Deli ontem. A noite
passada, por volta das vinte e duas horas e cinquenta minutos, ligou ao doutor Seth e queixou-se de
se sentir indisposto. Pediu-lhe que fosse a Prarthana. Quando o doutor Seth chegou à casa, pouco
antes da meia-noite, encontrou o senhor Acharya morto, numa poça do seu próprio sangue, e alertou
de imediato os seguranças no portão, algo que a senhora devia ter feito, se não assassinou o senhor
Acharya.
– O que o leva a pensar que assassinei o Acharya?
– Bom, vejamos… Pelo menos vinte pessoas no Hospital de Shastri a ouviram aos gritos ao
telefone com o senhor Acharya, por volta das vinte e duas horas, a ameaçá-lo de morte. Chegou a
casa dele, no meio de uma chuva torrencial, às vinte e duas e cinquenta e oito. O guarda ao portão
falou pessoalmente com o senhor Acharya pelo intercomunicador e recebeu instruções para a deixar
entrar.
– Sim, eu também o ouvi.
– Nesse caso, também confirma que ele estava vivo às vinte e três horas. O médico legista
determinou que a morte ocorreu entre as vinte e duas e as vinte e três e quinze. Uma vez que o
senhor Acharya estava vivo às vinte e três horas, significa que foi assassinado entre as vinte e três e
as vinte e três e quinze. E a senhora foi a única que esteve dentro da casa nesse período. Portanto,
mais ninguém podia ter assassinado o senhor Acharya.
– Como sabe que fui a única a entrar na casa? O verdadeiro assassino devia estar lá escondido.
– Prarthana é uma fortaleza. Nem os pássaros se atrevem a sobrevoar a propriedade sem
autorização. No sábado, dia onze de junho, apenas dois visitantes entraram nas instalações. Um foi
o Rana, o assistente do senhor Acharya, que chegou perto das dezanove e trinta, esteve uma hora
com o senhor Acharya e saiu às vinte e trinta e cinco. A outra pessoa foi a senhora. – Faz uma pausa
para consultar os seus apontamentos. – Depois de regressar de Bombaim, às dez da manhã, o senhor
Acharya não voltou a sair de casa. Almoçou à hora habitual, treze e trinta, e jantou às dezanove
horas. Depois dispensou todo o pessoal pelo resto da noite, dizendo que não queria ser
incomodado, fossem quais fossem as circunstâncias. Todos os criados saíram às vinte horas e trinta
minutos. O Rana saiu cinco minutos depois, às vinte e trinta e cinco. Depois disso, mais ninguém
entrou em casa até à sua chegada. O segurança ao portão está absolutamente seguro disso. O que
significa que, quando a senhora entrou em Prarthana, não havia mais ninguém em casa senão o
senhor Acharya. Dez minutos depois, ele estava morto e a senhora estava num riquexó motorizado,
em fuga. – Faz uma pausa e fita-me fixamente. – Então, porque matou o senhor Acharya? Por aquilo
que conheço dele, era um homem bom e gentil. Uma fonte de generosidade filantrópica.
– Era um monstro – digo, entre dentes cerrados. – Não sabe nada sobre ele. Destruiu a vida da
Neha. E agora destruiu a minha. Tudo por causa dos malditos sete testes.
– Que sete testes?
Respiro fundo e começo:
– Tudo começou quando ele me abordou no templo de Hanuman, numa tarde de inverno…
Falo sem parar durante mais de uma hora e conto-lhe tudo, desde aquele fatídico encontro em
Connaught Place, até ao ataque com ácido a Neha.
O subcomissário Khan ouve-me com toda a atenção e toma notas num pequeno bloco. Quando
termino, solta a respiração, esfrega o nariz com ar pensativo e cita um dístico urdu:
– Katl bhi hue hain hum aur kasoorwar bhi hum the/Apne hi katil se ishq me giraftar bhi hum
the. («Eu sou o homem assassinado, bem como o culpado/O meu crime: amar a minha própria
assassina.»)
– O Acharya não estava apaixonado por mim, nem eu por ele – corrijo.
– Veremos – diz ele, e nesse momento um subinspetor entra na sala e faz continência.
– Jai Hind50, senhor. Reuniram-se lá fora muitos jornalistas. O que devo dizer-lhes?
O subcomissário Khan suspira, exasperado, e anui com a cabeça.
– Diga-lhes que já vou fazer uma declaração.
Levanta-se e vira-se para Pushpa Thanvi.
– Vigie-a. – Depois sai, com passo largo.
Agora que está sozinha comigo, o rosto de Pushpa franze-se num sorriso presumido. Aproxima-se
da janela, levanta a cortina e espreita.
– Estão cá todos. – Solta um risinho.
– Todos, quem?
– Aaj Tak, Zee News, Star, IBN-7, NDTV, Sunlight, ITN… Parece que finalmente vou conseguir
realizar o meu sonho de aparecer na televisão. – Tira um pequeno espelho do bolso e verifica
rapidamente os dentes.

O subcomissário Khan está ausente mais de uma hora. Quando volta, a sua linguagem corporal é
bastante diferente.
– Espero que tenha usado este intervalo sensatamente, para se arrepender – diz, parando ao meu
lado.
Olho pensativamente para o chão de cimento, enquanto puxo os fios do meu salwar azul-celeste.
Ele sorri tristemente e cita mais um dístico urdu:
– Voh kaun hain jinhen tauba ki mil gai fursat/Hamein gunaah bhi karne ko zindagi kam hai.
(«Quem são os afortunados que têm o luxo de se arrepender?/Eu não tenho tempo sequer de
pecar.»)
Senta-se na sua cadeira e continua em tom seco:
– Acabámos de encontrar o testamento do senhor Acharya.
– E?
– E ele doou toda a sua fortuna pessoal a obras de caridade. Portanto, se estava à espera de
herdar uma fortuna, lamento muito.
– O Acharya era contra a cultura da herança. Prometeu apenas fazer-me sua diretora-geral, não
sua herdeira.
– Receio ter mais más notícias para si.
– O que foi agora?
– O laboratório médico-legal acaba de confirmar que o sangue nos seus ténis pertence ao senhor
Acharya. Tomou a precaução de lavar os sapatos, mas não reparou no sangue que se infiltrara no
espaço entre a parte superior e a sola. Nós encontrámo-lo.
O meu coração bate violentamente e o sangue sobe-me à cabeça. Abro a boca para falar, mas ele
levanta a mão.
– Espere. Há uma notícia pior. O laboratório confirmou também que as impressões digitais na
faca usada para matar o senhor Acharya são as suas.
– Isso é completamente impossível! Nunca toquei na faca!
– Talvez isto refresque a sua memória – diz ele, erguendo a arma do crime, dentro de um saco de
plástico. Agora, que a vejo de perto, parece-me estranhamente familiar. Distingo as letras KK
Thermoware gravadas no cabo de madeira e o reconhecimento atinge-me como um soco na barriga.
É a faca que comprei ao vendedor de rua, na noite em que fui atacada por aqueles três bandidos no
Parque Japonês.
– Isto é aquilo a que, tecnicamente, chamamos um caso encerrado – diz o subcomissário Khan, e
fecha o bloco. – Portanto, poupe-nos a um interrogatório prolongado e assine uma confissão. – Fita-
me com ar esperançoso.
Abano a cabeça.
– Não assassinei o Acharya. Mas agora tenho uma boa ideia de quem o matou.
– Pois diga.
– Foi o Rana. Apenas ele teve acesso à faca com as minhas impressões digitais.
– Como?
– Não vê? O Acharya mandou aqueles bandidos atacarem-me no Parque Japonês, como parte do
terceiro teste. Eles tiraram-me a faca e devem tê-la entregado ao Acharya ou ao Rana. E, agora,
essa mesma faca foi usada para assassinar o Acharya. O que significa que apenas o Rana o poderia
ter feito.
– Mas o Rana saiu de Prarthana às vinte horas e trinta e cinco minutos e só voltou depois da
meia-noite.
Enquanto reflito no problema, ocorre-me outra ideia.
– E se não foi um homicídio, mas sim um suicídio?
Ele fita-me atentamente.
– Decidiu tentar declarar-se inocente por motivos de insanidade?
– E se foi suicídio? – repito. – Lembra-se do sétimo teste? O Acharya disse que seria o mais
difícil de todos. Bom, é isto.
– Não está a dizer coisa com coisa.
– Oiça, foi o Acharya que mandou aqueles rufias atacarem-me no Parque Japonês, para poder
deitar a mão à faca com as minhas impressões digitais. Depois, atraiu-me a sua casa com o ataque à
Neha. Assim que eu me fiz ao caminho, ele matou-se com essa mesma faca, para que eu fosse
acusada do crime. Esta é, sem dúvida alguma, a maior crise da minha vida. Logo, é o teste final.
– Pode contar essas teorias rebuscadas ao advogado que o Estado lhe atribuir. – O subcomissário
Khan ri-se e faz sinal à mulher-polícia, indicando que o interrogatório terminou, por agora. – Leve-
a para a cela das mulheres.
– Jai Hind, senhor. – Pushpa faz uma continência frouxa e espeta-me o dedo na testa. – Chalo.
Vamos.
Escolta-me por um corredor curto. Passamos pela cela dos homens, onde vejo alguns homens
desgrenhados, com a barba por fazer, atrás da porta de grades. Observam-me com curiosidade.
Tapo o nariz, incapaz de suportar o forte cheiro a álcool que emana deles, como fumo de incenso.
Na outra ponta do corredor, fica a cela das mulheres, que está, misericordiosamente, vazia.
Pushpa destranca a porta da cela. Espera que eu entre e fecha-a com tanta força, que o eco metálico
ecoa nos meus ouvidos como um trovão. Por um momento, fico a olhar para a luz fraca e suja que
passa pelas grades da porta de ferro, a pestanejar para afastar as lágrimas, a absorver o facto de
que me tornei finalmente uma prisioneira.
Em teoria, um acusado sob custódia policial é temporariamente mantido na esquadra, sob
vigilância policial, até ao julgamento. Na prática, fica-se preso numa cela fétida e opressiva que
tresanda a miséria humana. As paredes da cela das mulheres estão cobertas de mofo, graffiti e anos
de sujidade. O chão é cimento em bruto. A cela não tem janela, nem sol, o que a torna um local
escuro e deprimente mesmo a meio do dia. A cama é um colchão velho, infestado de piolhos. Pior
do que tudo o resto, a casa de banho não é separada do resto da cela. Por trás de um muro baixo, há
uma casa de banho indiana, sem caneca, sem papel higiénico, sem água corrente. Emite o fedor
detestável dos excrementos e urina das ocupantes anteriores. O balde de metal ao canto está sujo de
fezes. O cheiro é tão distinto, tão avassalador, que quase consigo sentir-lhe o gosto.
Suportei a provação da detenção e do interrogatório com coragem e determinação, mas não
suporto estar nesta cela horrível e fedorenta. Faz-me querer morrer. Sei que, se ficar neste buraco
infernal mais de vinte e quatro horas, perderei o juízo.
As paredes opressivas fecham-se sobre mim. Esforço-me o mais que posso, mas não consigo
respirar. Arrasto-me até à porta da cela e agarro as barras de ferro.
– Ajudem-me! – grito, como uma doente louca num manicómio. – Tirem-me daqui! Por favor, por
amor de Deus!
– Kya hai? Que se passa? – Pushpa Thanvi aparece pouco depois. – Porque é que está a fazer
tanto barulho?
– Não posso ficar aqui.
– O que esperava? O Sheraton?
– Eu… eu tenho de ir à casa de banho.
– Então porque não vai? – pergunta, com maus modos. – Tem aí uma casa de banho atrás de si.
– Não consigo ir aqui. Por favor, pode pelo menos levar-me a uma casa de banho a sério, lá fora?
– Não – declara, com a solenidade de um juiz que dá um veredicto. – As detidas têm de usar a
casa de banho dentro da cela.
– Suplico-lhe – choro. – Por favor, conceda-me pelo menos esta consideração.
O subcomissário Khan ouve as minhas súplicas e aparece ao fundo do corredor. Vê o meu rosto
molhado de lágrimas e assente com a cabeça, compreensivo.
– Muito bem, excecionalmente vou permitir-lhe que use a casa de banho das mulheres-polícias.
Pushpa – diz –, leve-a, mas mantenha a porta fechada à chave.
– Sim, senhor – diz Pushpa em tom seco, claramente aborrecida por ter sido contrariada.
Conduz-me através de um pátio retangular, com uma grande goiabeira no meio. O pátio está
rodeado por várias portas. Leio os nomes nas placas de madeira em cada uma delas: Caserna,
Computadores, Interrogatórios, Gabinete do Investigador, Telégrafo, Sala de Provas…
A casa de banho das senhoras fica no lado noroeste do pátio, perto do fundo do edifício, em
frente à sala de descanso das mulheres, onde vejo cinco mulheres-polícias sentadas a ver televisão.
Pushpa abre a porta da casa de banho com uma chave e empurra-me com maus modos.
– Bata na porta quando estiver despachada. Eu fico aqui a ver televisão com as minhas amigas.
Quando a chave roda na fechadura, sou acometida por uma vaga agonizante de vergonha e
degradação. Em que é que a minha vida se tornou?, pergunto a mim própria, uma e outra vez. Agora,
até tenho de pedir a alguém para fazer chichi.
Sento-me no tampo rachado da sanita, fecho os olhos e tento imaginar-me noutro lugar. Uma tarde
soalheira de domingo, com nuvens brancas e finas a deslizarem num céu azul perfeito. À distância,
a neblina ergue-se das montanhas cobertas de pinheiros. Estou sentada debaixo de um carvalho,
com um livro de poesia. Atrás de mim, a mamã e o papá estão sentados em cadeiras de verga, a rir
e a conversar. Alka e Neha estão deitadas na relva, a apanhar sol. É um lugar sem medo, sem
tristeza, sem polícia. Perco-me neste mundo há muito perdido, até que sou arrancada à minha
fantasia por pancadas fortes na porta. Oiço a voz irritante de Pushpa Thanvi, que me traz de volta à
realidade:
– Arrey, está a cagar ou a vestir-se para uma festa? Está aí dentro há meia hora!
Quando regresso à cela, tenho o jantar à minha espera. É surpreendentemente apetitoso: consiste
de galouti kebabs e biryani de frango. Pushpa diz que a comida veio de casa do subcomissário
Khan.
– Que magia negra lhe fez, para ele ser tão generoso consigo? – pergunta, com maus modos.
A bondade do subcomissário Khan traz-me lágrimas aos olhos e torna a prisão ligeiramente mais
suportável. Mesmo assim, passo a noite encostada à parede, em vez de me deitar no colchão
infestado de piolhos.

De manhã, o novo dia traz-me uma visita bem-vinda, a minha mãe. Encontramo-nos na sala das
visitas, sob os olhos de águia de Pushpa.
– Como estás, beti? – pergunta a minha mãe, tão preocupada, que não tenho coragem de lhe dizer
a verdade.
– Estou bem, mamã, está tudo bem. Como está a Neha?
– Recupera bem. Manda-te beijos.
Uma lágrima escapa-me do olho e, quando dou por isso, estou a soluçar perdidamente. A mamã
puxa-me para o peito e começa a acariciar-me a cabeça, cobrindo-me silenciosamente de amor e
afeto. Ficamos assim perto de dez minutos, numa comunhão telepática que não precisa de palavras
nem de gestos desnecessários. E sinto algo passar dela para mim, uma garantia protetora de que não
estou sozinha, uma energia espiritual e curativa que afasta de mim a tensão e o negativismo.
Nessa manhã, compreendo pela primeira vez a verdadeira profundidade do elo entre mãe e filha,
a sua intensidade feroz, a sua natureza indestrutível e, acima de tudo, o seu poder redentor.

Pouco antes do meio-dia, o advogado oficioso também aparece. O senhor Trilok Chand é um
homem baixo e magro, vestido com um casaco preto demasiado grande, e inspira tanta confiança
como um penso higiénico feito em casa.
– Vi o seu processo – diz-me, num murmúrio conspirador –, e o caso está mal parado.
– Para mim ou para a polícia? – sinto-me obrigada a perguntar.
– Para si. As provas são bastante fortes. O sangue do homem assassinado nos seus sapatos, as
suas impressões digitais na arma do crime. Mentiu à polícia quando disse que não tinha entrado na
casa. Tinha motivos, meios e oportunidade, as três coisas necessárias para garantir uma
condenação.
– Fala mais como advogado de acusação do que como meu advogado de defesa.
– Não precisa de um advogado – diz ele, humedecendo os lábios gretados. – Precisa é de um juiz
corrupto.

A novidade mais surpreendente do dia tem lugar às três da tarde. O subcomissário Khan chama-
me ao seu gabinete, onde tem um olho no telefone e outro no televisor LCD ligado na Sunlight TV.
Shalini Grover está em frente do edifício onde fica a sede da empresa de Acharya, Kyoko
Chambers, rodeada de carros da polícia.
– Esta é, sem dúvida, a maior história do ano – diz ela para o microfone, ofegante. – Dois dias
depois do sensacional homicídio do industrial Vinay Mohan Acharya, a polícia entrou na elegante
sede do Grupo CEA, à procura de mais pistas sobre a sua morte macabra, e descobriu algo
completamente inesperado. Dentro do cofre fechado do senhor Acharya, no seu gabinete privado, os
investigadores encontraram uma série de documentos secretos que fazem as revelações da
Wikileaks parecer uma partida de crianças.
A câmara passa para a imagem de um detetive da Divisão Criminal.
– Ainda estamos a examinar todos os dados recolhidos do cofre, mas uma análise preliminar
leva-nos a crer que existe uma ligação entre Acharya e a Atlas Investments.
– Não! – exclamo.
– Sim – contradiz Shalini, como se me tivesse ouvido. – A Sunlight pode declarar, com toda a
certeza, que Vinay Mohan Acharya foi desmascarado como o cérebro por trás da Atlas, essa elusiva
empresa de fachada que está no centro de praticamente todas as fraudes ocorridas recentemente na
Índia.
O subcomissário Khan desliga o televisor com o comando.
– Espantoso, não é? – Vira-se para mim. – O homem doa toda a riqueza que tem à caridade e
depois descobrimos que essa riqueza foi obtida ilegalmente. O Acharya fingia ser a epítome da
retidão, mas na realidade era o maior vigarista que este país alguma vez viu. – Lança-se de
imediato noutro verso: – «Oh, virtuoso, como eu te venerava/Mas afinal és um pecador ainda maior
do que eu.»
– Isto terá algum impacto no meu caso?
– Homicídio é homicídio – diz ele, secamente. – Quer assassine um salteador ou uma freira, o
castigo é o mesmo.
– O que acontecerá agora à empresa do Acharya?
– Não sei. Até pode entrar em liquidação, se as autoridades fiscais aplicarem uma multa pesada
sobre os rendimentos ilegais do Acharya. Ou o conselho de administração pode decidir vendê-la a
outro conglomerado. Parece que o irmão gémeo do senhor Acharya, o Ajay Krishna Acharya, está
ansioso por comprar o Grupo CEA. Provavelmente agora conseguirá.
– Isso seria a derradeira ironia. O Acharya odiava o irmão, como se fosse veneno. Na verdade,
confidenciou-me uma vez que achava que o AK era a mente por trás da Atlas. – Ergo os olhos para
o subcomissário Khan e sustenho a respiração, como costuma acontecer quando temos uma
revelação súbita. – Claro! O AK mandou matar o Acharya para poder apoderar-se da empresa do
irmão.
O subcomissário Khan abana lentamente a cabeça.
– Já pensei nessa possibilidade. O AK estava no Grand Regency Hotel na noite em que o Acharya
foi assassinado.
– O que estava ele a fazer no Regency?
– A dar uma palestra, numa conferência de cuidados de saúde, em frente de mil delegados de
informação médica. É impossível que tivesse sido ele a assassinar o irmão.
– Ainda acho que o Rana é a chave deste caso. Não lhe parece que está na altura de o interrogar?
– Já o mandei chamar. Deve chegar dentro de cinco minutos.

Rana entra na sala do subcomissário Khan e acho-o diferente da última vez que o vi. Talvez seja
por causa da sua indumentária: do polo, das calças de caqui e dos sapatos elegantes, que lhe dão
um toque de prosperidade.
– Espero que apodreça no inferno – sussurra, furiosamente, quando se senta ao meu lado.
O subcomissário Khan lida com ele com a competência brusca de um investigador experiente.
– Qual era a natureza da sua relação com o senhor Acharya?
– Era assistente pessoal dele. Pode ver-me como uma espécie de secretário confidencial.
– Então é verdade que o senhor Acharya tinha escolhido a senhora Sapna Sinha como candidata
ao lugar de diretora-geral do Grupo CEA?
Ele anui com a cabeça, com uma careta.
– Foi um erro, e eu disse-o ao patrão.
– O que levou o senhor Acharya a escolher a senhora Sapna?
– Não faço ideia. O patrão não partilhava tudo comigo. O meu palpite é que se sentia atraído por
ela, por algum motivo. Foi por isso que, em setembro passado, comprou a Gulati & Sons em
segredo.
– Mas isso foi antes sequer de me conhecer! – interrompo.
– Continue – pede o subcomissário. – Então o senhor Acharya adquiriu a empresa onde a senhora
Sapna trabalhava. Depois, conheceu-a e disse-lhe que queria que ela fosse diretora-geral do grupo,
desde que conseguisse passar nos seus sete testes, correto?
Rana anui com a cabeça.
– E o senhor ajudou-o a executar esses sete testes?
– Não, apenas seis.
– O que quer dizer?
– O senhor Acharya adoeceu gravemente, há pouco tempo, e não teve tempo de preparar o sétimo
teste.
– Isso é mentira! – interrompo de novo.
– Sahib, pode falar com o doutor Chitnis, do Tata Memorial Hospital em Bombaim – diz Rana,
calmamente. – Ele pode mostrar-lhe a ficha médica do senhor Acharya, que prova que o patrão
tinha cancro do pâncreas. Em estado terminal. Ia morrer brevemente, de qualquer maneira. Mas esta
mulher – faz uma pausa para me lançar um olhar de desdém – não conseguiu esperar mais.
– Ele está a inventar tudo isto – declaro.
O subcomissário lança-me um olhar severo antes de continuar o interrogatório.
– Sabia que o senhor Acharya era o cérebro por trás da Atlas?
– Não fazia ideia. Foi um grande choque para mim.
– Mas o senhor era o assistente de confiança dele. Porque é que não sabia das contas bancárias
secretas?
– Suponho que há segredos que nunca são partilhados. No entanto, posso dizer-lhe uma coisa: o
senhor Acharya era um homem bom, não o monstro que a comunicação social está a fazer dele.
Espanto-me com as capacidades de representação de Rana. Ainda veste a máscara de doçura
servil, fingindo ser o servo devotado, o assistente leal.
– Posso perguntar-lhe quando foi a última vez que viu o senhor Acharya com vida?
– Quando saí de Prarthana no domingo, pouco depois das oito e meia da noite.
– E para onde foi, depois de deixar a residência do senhor Acharya?
– Para minha casa.
– E onde fica a sua casa, exatamente?
– Colónia APD, Apartamento 4245, Setor C-1, Vasant Kunj.
– Ficou em casa o resto da noite?
– Não. Às dez e meia saí e fui ao Infra Red, o bar em Basant Lok.
– E quanto tempo lá ficou?
– Até à meia-noite, quando recebi um telefonema do segurança de Prarthana a informar-me do
homicídio do patrão.
– E o que fez a seguir?
– Fui imediatamente para a residência do senhor Acharya, onde me encontrei com o doutor Seth.
A polícia chegou um minuto depois.
O interrogatório prolonga-se por mais quinze minutos, mas não estamos a chegar a lado nenhum e
eu estou cada vez mais impaciente.
– Se não foi o Acharya que mandou atacar a Neha com ácido, quem foi?! – exijo saber,
encolerizada.
– Como é que quer que eu saiba? – responde ele. – A polícia é que tem de descobrir.
– E descobriremos – responde o subcomissário Khan.
Lauren vem visitar-me nessa tarde, acompanhada por um miúdo alto, de cabelo escuro.
– Lembras-te dele? – pergunta.
Olho para o rapaz e reconheço-o.
– Guddu, não é? O especialista em fechaduras.
Um sorriso tímido cruza o rosto de Guddu.
– Sim, senhora. Trabalhava na Mirza Metal Works até a senhora e a Lauren me salvarem.
– O que fazes agora?
– Estou a aprender informática na fundação.
– Cabeça erguida – diz Lauren. – Se não tivéssemos inverno, a primavera não seria tão
agradável; se não passássemos pela adversidade de vez em quando, a prosperidade não seria tão
bem-vinda. – Está a citar a poeta Anne Bradstreet.
O meu desânimo é tal, que, em troca, só consigo citar «A Balada do Cárcere de Reading», de
Oscar Wilde, sobre a vida na prisão:
– «Os pobres prisioneiros só sabem/que as muralhas da prisão são fortes/e que um dia é mais
longo do que um ano,/e um ano é interminável. »

Às seis da tarde, o subcomissário Khan chama-me de novo ao seu gabinete. Fita-me com
expressão solene enquanto me sento em frente dele.
– As coisas não estão boas para si – diz. – Falei com o doutor Chitnis, do Tata Memorial
Hospital em Bombaim. Ele confirmou o que o Rana nos disse. O senhor Acharya sofria realmente
de cancro pancreático metastático. A taxa de sobrevivência média é de apenas três a cinco meses.
O estado do senhor Acharya tinha-se deteriorado de tal maneira, que o doutor Chitnis lhe dissera
que não devia ter mais de duas semanas de vida.
Arregalo os olhos.
– O Acharya nunca me falou do cancro!
– Também vi imagens das câmaras de segurança do Infra Red. O Rana esteve realmente lá, das
dez e quarenta e cinco às onze e cinquenta e cinco, o que significa que tem um álibi sólido.
– Só pode ter manipulado as câmaras, de alguma maneira. Tenho a certeza de que ele estava em
casa do Acharya quando entrei. Matou-o e conseguiu escapar ludibriando o segurança ao portão.
– Mas porque é que o Rana havia de querer matar o patrão?
– Pela mais básica das razões: ódio. O Rana odiava o Acharya, por não o ter escolhido para o
cargo de diretor-geral. E odiava-me a mim, por ter sido a escolhida. Assim, matou o Acharya e
incriminou-me, e matou dois coelhos de uma cajadada.
– E se tivesse passado no sétimo teste? Acha que o Acharya a teria realmente nomeado diretora-
geral do grupo?
– Não sei – respondo, e mordo o lábio.
– Acho que ele estava a usá-la como bode expiatório. Teria sido você a ficar com a confusão da
Atlas entre mãos.
– Sim. – Aceno lentamente com a cabeça. – Ele era muito mais tortuoso do que parecia.
O subcomissário Khan cruza os dedos e fita-me nos olhos.
– Já está preparada para confessar?
Devolvo o olhar.
– Acredita realmente que eu assassinei o Acharya? É assim tão simples?
Ele suspira.
– O homicídio nunca é simples – diz. – Mas temos de nos guiar pelos factos. E os factos estão
contra si. Seja como for, já não estou à frente do caso. Tornou-se demasiado grande para esta
esquadra. A Divisão Criminal assumiu a liderança. Eles é que a vão interrogar a partir de agora.

O meu primeiro encontro com a Divisão Criminal é as oito da noite desse dia.
– Chamaram-na à Sala de Interrogatórios – anuncia Pushpa, causando-me um arrepio na espinha.
Imagino uma cave sombria, iluminada por uma lâmpada suspensa sobre a mesa, em torno da qual se
sentam homens sérios, no meio das sombras, com o rosto oculto por fumo de cigarro.
Na verdade, a sala de interrogatório está muito bem iluminada e tem a atmosfera de uma sala de
aula acolhedora. Há uma mesa de madeira rodeada por cadeiras sólidas de metal, e até um quadro
negro. Os três homens sentados à volta da mesa, contudo, não se parecem nada com professores.
Vestidos de forma idêntica, com fatos básicos, têm a expressão impassível de detetives
governamentais.
Dizem-me para me sentar na cadeira em frente deles, deixando bem claro que sou eu contra eles,
uma contra três.
O interrogatório começa. Ao princípio, são educados e fazem-me perguntas de rotina sobre a
minha família, o emprego na Gulati & Sons e as minhas interações com o Acharya. Depois, aos
poucos, o tom muda. As perguntas tornam-se mais contundentes, sugestivas e mesmo ofensivas.
– Tinha uma relação sexual com o Acharya? Quantas vezes é que ele a chamou ao quarto dele?
Sabia da ligação do Acharya à Atlas?
Durante três horas, os investigadores da Divisão Criminal interrogam-me sem misericórdia,
tentando forçar-me a admitir o homicídio de Acharya. Como me mantenho firme, gritam e berram e
intimidam-me.
– Será enforcada por este crime se não confessar.
– Então enforquem-me – digo, em tom de desafio. – Mas não confessarei um crime que não
cometi.

Começo a perceber que estar envolvida numa investigação policial é como pisar areias
movediças. Por mais que lutemos para sair, só nos afundamos cada vez mais. Pouco a pouco, os
detetives da Divisão Criminal reúnem provas contra mim, unindo os pontos, criando uma acusação
estanque. Por aquilo que percebo, na cabeça deles, o caso contra mim é este: eu era amante de
Acharya, tinha um caso com ele; Acharya prometeu-me o cargo de diretora-geral da sua empresa,
desde que eu passasse nos sete testes; depois de completar seis testes, eu fiquei impaciente, ansiosa
por deitar as mãos ao dinheiro; entretanto, aconteceu um incidente sem qualquer relação, o ataque a
Neha; julgando que fora obra de Acharya, fui a casa dele com uma faca, para o chantagear; Acharya
recusou as minhas exigências e, num acesso de fúria, ataquei-o com a faca e assassinei-o.
Tenho de admitir que a hipótese parece bastante plausível. Na verdade, ao fim da terceira ronda
de interrogatório coercivo, eu própria estou quase convencida. Talvez eu tenha realmente matado
Acharya e a experiência tenha sido tão traumática, que tranquei a memória dentro de mim e deitei
fora a chave.
Como parte da sua estratégia, os agentes da Divisão Criminal tentam todo o tipo de jogos
mentais. Privam-me de sono e de comida. Dão instruções para eu ser tratada como uma criminosa
de máxima segurança. Tenho agora um guarda de plantão à porta da minha cela todas as noites,
como se eu fosse alguma espécie de Houdini, capaz de fugir de uma cela trancada e sem janelas.
O interesse da comunicação social no caso não mostra sinais de diminuir. Há mais carrinhas de
transmissão estacionadas em frente da esquadra de Vasant Vihar do que em frente do número sete de
Race Course Road, a residência do primeiro-ministro. A minha detenção é a história mais falada da
Índia e tem mais audiências até do que as telenovelas. Um realizador famoso anuncia que tenciona
fazer um filme baseado na minha história. Como ele diz, «todos os escândalos interessantes giram à
volta de homicídio, dinheiro ou sexo. E quando as três coisas se juntam, como no caso da Sapna
Sinha, temos um supersucesso em mãos!».

Nirmala Ben visita-me no quinto dia da minha detenção. A notícia da sua chegada causa sensação
na esquadra.
– Conhece a Big Ben? – pergunta-me Pushpa Thanvi, em tom reverente, e olha para mim com um
novo respeito.
A devota de Gandhi chega à uma da tarde, mas não a trazem diretamente à minha presença.
Primeiro, é-lhe oferecida uma chávena de chá no gabinete do subcomissário Khan. Depois, ele faz-
lhe uma visita guiada às instalações. Ela espreita para as várias salas em torno do pátio, posa para
as fotografias, até dá autógrafos.
– Big Ben, Big Ben! – Oiço cânticos, gritos e aplausos. A minha antecipação está no auge quando
a senhora Nirmala Mukherjee Shah entra na sala de visitas, que foi varrida e enfeitada com um
ramo de flores.
Parece elegante e confortável, num simples sari branco. Um rebanho de fotógrafos e operadores
de câmara segue-a como um tsunami. Os repórteres tropeçam nos cabos e uns nos outros, na
tentativa desesperada de apanhar cada palavra. Não é todos os dias que têm oportunidade de gravar
o encontro entre a mais famosa lutadora anticorrupção da Índia e a prisioneira mais falada do país.
Pushpa aperalta-se ao meu lado enquanto os flashes disparam de todas as direções. Os repórteres
aproximam-se mais e espetam os microfones na minha direção, como punhais. Ergo as mãos à frente
do rosto, para me proteger das luzes fortes e das vozes agudas, de todas estas pessoas que querem
transformar a minha desgraça num espetáculo.
O subcomissário Khan tenta convencer os jornalistas e equipas de televisão a saírem depois das
fotografias, mas ninguém lhe dá ouvidos. Cabe a Nirmala Ben restaurar alguma ordem.
– Dekhiye, é uma visita privada – diz, com as mãos cruzadas. – Por favor, deixem-me falar com a
minha afilhada a sós e depois falarei convosco lá fora. Barobar chhe ne? Pode ser?
É como um mágico a fazer um truque de hipnose de massas. As hordas partem instantaneamente,
deixando Nirmala Ben comigo, com o subcomissário Khan e com Pushpa.
Ela fita-me, com olhar penetrante, e encontra a verdade que procurava. Tal como um bom médico,
que sabe o que se passa com um doente só por lhe medir a pulsação, ela reconhece aquilo por que
estou a passar, compreende o meu tormento.
– Coragem, minha querida – diz. – Lembra-te: a coragem não é uma qualidade do corpo, mas sim
da alma. – Depois, abraça-me e aperta-me contra si. Agarro-me a ela, sentindo o seu calor, à
procura do manancial de compaixão e compreensão que encontrei na minha mãe. Embora me
esforce arduamente para não chorar, o poço de tristeza e desespero na minha alma transborda e
começo a soluçar como uma criança perdida. Ela passa-me a mão pelo cabelo, reconfortando-me. –
Não te preocupes, tudo se resolverá. Também já disse à Susheela que farei tudo o que puder pela
Neha.
Vinte minutos depois, Nirmala Ben prepara-se para partir.
– Encerra o dia com uma oração, para que tenhas uma noite descansada, livre de sonhos e
pesadelos – diz-me, à laia de conselho de despedida, e segura-me nas mãos. Sinto algo metálico
passar para a minha palma e, instintivamente, fecho a mão. Depois, ela inclina a cabeça em
namaste e sai.
– Que mulher admirável – diz o subcomissário Khan enquanto me escolta de volta à cela.
– Tirei uma fotografia com ela, senhor – diz Pushpa com um sorriso radiante, o que faz com que o
seu chefe franza a testa.
Abro a mão e descubro uma pequena chave.

Nirmala Ben partiu, deixando-me com um mistério. Que chave é esta, o que será que abre, e
porque ma deu?
Viro e reviro a chave nas mãos. É uma chave vulgar, de aço inoxidável, nada de especial. O tipo
de chaves que fecham armários. Mas não há armário nenhum dentro da cela. Provavelmente é a
cleptomania de Nirmala Ben outra vez em ação, penso, e enfio-a no bolso do meu kameez.
Mais tarde, um médico vem examinar-me. O interrogatório incessante dos agentes da Divisão
Criminal afetou a minha saúde, tanto mental como física. Uma combinação de temor, infelicidade,
desespero e impotência instalou-se de forma permanente nas profundezas do meu estômago.
Inevitavelmente, afeta os meus intestinos, o que causa ataques de diarreia que me fazem correr para
a casa de banho a qualquer hora do dia e da noite, para grande aborrecimento de Pushpa.

Passa da meia-noite, mas o sono teima em não chegar. Embora o desânimo seja uma constante
todos os dias, esta noite sinto-me particularmente em baixo. Fala-se da minha transferência para a
cadeia de Tihar, onde são detidos apenas os criminosos mais inveterados. A perspetiva de passar o
resto da vida atrás das grades estende-se perante mim como um inverno siberiano, árido, ermo e
completamente desolado.
Ainda tenho alguma fé no subcomissário Khan, mas ele foi reduzido ao estatuto de espectador
impotente. Os detetives da Divisão Criminal são a lei, e nada os impedirá de garantir uma
condenação por homicídio. Sinto todas as portas fechar-se sobre mim.
– Só um milagre pode salvá-la agora – diz o meu advogado. Mas até a deusa Durga parece ter-me
abandonado, fazendo vacilar a minha fé.
Perdida em pensamentos, mal oiço a porta da cela abrir-se. É Pushpa Thanvi, com a habitual
expressão azeda.
– Estou farta dos seus amigos – declara.
– Porquê? – pergunto. – O que aconteceu?
– Agora tem um telefonema.
– De onde?
– De Kochi.
– Kochi? Não conheço ninguém nessa zona.
– Nesse caso, bem pode dizer àquele morcego para parar de nos incomodar a estas horas – diz
ela, e acompanha-me à sala de comunicações, onde três polícias estão reunidos em torno de um
antigo telefone de disco, como cães à volta de um osso.
Pego no auscultador.
– Estou?
– És tu, Sapna? – Oiço uma voz através da estática da longa distância. É uma voz que eu
reconheceria a um milhão de anos-luz.
– Karan? – pergunto, encantada e espantada. – De onde estás a ligar?
– De Coachella, na Califórnia.
O som da voz dele é como um bálsamo para a minha alma ferida, e fecha de imediato o grande
abismo da distância e do tempo que nos separam.
– Lamento tanto – continua ele. – Só agora soube o que aconteceu ao Acharya. Estou a tentar
arranjar dinheiro para apanhar um avião para Deli o mais depressa possível.
– Não vale a pena – digo-lhe. – Tens coisas mais importantes…
– Nada é mais importante para mim do que tu – interrompe ele. – Comecei há pouco tempo no
emprego novo, mas isso pode esperar. Primeiro, tenho de te ajudar a sair desta complicação.
– Não há nada que possas fazer, Karan.
– Já estou a fazer alguma coisa daqui, Sapna. Os meus amigos na Indus têm-me enviado os
registos de chamadas mais recentes do Rana. E adivinha com quem é que ele tem falado todos os
dias desde a morte do Acharya?
– Com quem?
– Com o Ajay Krishna Acharya. Estou convencido de que o assassinato do Acharya foi uma
conspiração entre o Rana e o AK. O AK é parecido com o irmão e tem a voz igual. E se era ele que
estava em Prarthana naquela noite?
– Meu Deus! – murmuro. – Essa possibilidade nunca me ocorreu.
– Vou desmascarar isto tudo. Espera por mim, Sapna. Vou a caminho – diz, antes de a chamada
cair no meio de estática.

Volto para a cela repleta de coragem e com uma esperança renovada. Karan pode ser
homossexual e estar a um mundo de distância, mas ainda é a minha âncora e, com ele a meu lado,
talvez ainda consiga provar a minha inocência.
Ao mesmo tempo, apodera-se de mim uma convicção súbita e irresistível de que tenho de pegar
nas rédeas da situação, de sair desta prisão sufocante.
Caminho pela cela com passo nervoso durante as duas horas seguintes, tentando delinear um
plano de fuga, quando começo a sentir novamente a barriga às voltas. Cólicas intensas trespassam-
me o abdómen e fazem-me gritar de dor. Arrasto-me até à porta da cela e chamo o guarda, que
dormita numa cadeira.
– Tenho de ir à casa de banho. Por favor, chame a Pushpa.
Minutos depois, Pushpa aparece, a esfregar os olhos ensonados.
– Nem as bruxas estão acordadas a esta hora – resmunga, enquanto abre a cela. – Oh, as chatices
que me tem causado.
O pátio está silencioso como um túmulo. Até oiço roncos provenientes de algumas das salas.
Pushpa empurra-me para a casa de banho das senhoras com um grunhido.
– Não me demoro – murmuro.
– Por mim, pode apodrecer aí dentro a noite toda – responde ela, enquanto procura a chave da
casa de banho nos bolsos. Fica ainda mais irritada quando não a encontra. – Onde diabo está? –
murmura, e enfia a mão no bolso das calças. – A Sarla já perdeu a dela. Anda algum filho da mãe a
roubar-nos as chaves da casa de banho?
Por fim, encontra-a no bolso da camisa.
– Aqui está! – exclama em tom triunfante, erguendo-a como se fosse um artefacto antigo
descoberto numa escavação arqueológica. Olho para ela, fascinada.
– Cague à vontade. Tem trinta minutos. Mas, depois disso, não se atreva a incomodar-me outra
vez esta noite, ouviu? – Lança-me um olhar mortífero, fecha a porta e tranca-a pelo lado de fora.
Enfio a mão no bolso e tiro a chave que Nirmala Ben me deu. Parece exatamente igual à de
Pushpa.
Num súbito clarão de entendimento, compreendo o objetivo da chave. Abre a casa de banho das
senhoras. Há cinco mulheres-polícias na esquadra, e todas têm uma chave da casa de banho.
Nirmala Ben deve-a ter surripiado a uma delas.
Começo a tremer com as possibilidades que se abriram subitamente perante mim. Tenho nas mãos
a chave, não apenas da casa de banho, mas também da minha liberdade. Uma ideia impulsiva e
louca apodera-se de mim e faz-me atirar para trás das costas todas as cautelas. Espero até ouvir o
eco dos passos de Pushpa a afastar-se da porta. Depois, conto até duzentos e enfio a chave na
ranhura. Encaixa perfeitamente. Rezo baixinho uma oração rápida e rodo a chave o mais
silenciosamente possível. O som que oiço a seguir é o mais belo que um prisioneiro alguma vez
pode ouvir: o clique de uma porta a abrir-se.
Saio pé ante pé, tranco novamente a porta e olho em volta. Não há sinais de Pushpa Thanvi e não
se ouve nada na sala de descanso das mulheres. O pátio ainda parece deserto e o silêncio reina na
noite.
Com passos furtivos, saio para o corredor ocidental. Depois de passar pela sala do Telégrafo,
oiço uma porta bater atrás de mim. O som sobressalta-me de tal maneira, que quase perco o
equilíbrio. De alguma forma, consigo manter a presença de espírito suficiente para me esconder
atrás de um pilar. Espreito e vejo um homem sair da sala de Investigação, vestido apenas com um
colete e ceroulas às riscas. Por um momento fica parado, com ar ensonado e confuso, e depois solta
um gás sonoro. Por fim, coça o traseiro e vira para a esquerda, indubitavelmente na direção da casa
de banho dos homens.
Mal recuperei deste choque quando oiço outro som no corredor. É uma batida suave, como
alguém a bater com um pau no chão. Só pode ser o guarda-noturno, nas suas rondas. Fico
paralisada, como um ladrão apanhado em flagrante, certa de que ele me viu. Porém,
miraculosamente, o guarda faz uma pausa quando se cruza com o homem das ceroulas às riscas.
Oiço os sons abafados de vozes, seguidos por uma gargalhada divertida. Percebo que esta será a
minha única oportunidade e corro para dentro da porta entreaberta da sala de Investigação.
Agacho-me na semiobscuridade e espero que o guarda passe. Ele caminha com o passo indolente
de alguém que tem todo o tempo do mundo. À medida que os seus passos se aproximam mais e
mais, sinto o suor brotar-me na testa. E depois ele para, quase diretamente em frente da porta.
Sustenho a respiração. A ventoinha de teto está ligada na velocidade máxima, mas tudo o que oiço é
o som ensurdecedor do sangue a correr-me nas veias. Oiço o guarda pigarrear e cuspir qualquer
coisa. Depois, passa pela porta e segue caminho, com as botas a ranger sobre o chão de pedra como
dobradiças ferrugentas.
O alívio invade-me como o sol da manhã. Nesta altura, a minha visão já se ajustou à penumbra
dentro da pequena sala. Vejo uma mesa, uma cama de armar e uma mesa de cabeceira, em cima da
qual está um jarro de água tapado. É evidente que a sala é usada como quarto por um dos
subinspetores. Precisamente quando estou prestes a sair, duas coisas chamam a minha atenção. A
primeira é um uniforme pendurado num cabide, na parede por trás da cama. E a segunda é um
coldre de cabedal em cima da mesa.
Outra ideia audaz germina na minha mente e faz o meu coração bater mais depressa. Ponho-me em
bicos de pés e estico a mão para o cabide.

Saio da sala de Investigação com o ar de alguém que vai para um baile de máscaras. A camisa é
dois números acima do meu. As calças são demasiado compridas e fazem um fole em torno dos
meus sapatos, como meias largas. No entanto, digo a mim própria que é preferível parecer uma
palhaça a parecer uma prisioneira em fuga.
Dirijo-me ao fundo do corredor, atenta a todas as portas, mas, em vez de virar à esquerda, na
direção da cela das mulheres, e correr o risco de encontrar o guarda, viro à direita, para onde os
escritórios se juntam ao pátio. O gabinete do subcomissário Khan está trancado, mas há vários
agentes de serviço na sala de comunicações. Estão tão concentrados no seu jogo de cartas, que mal
dão por mim quando passo pela janela aberta, em direção ao portão exterior.
– Eh, Pushpa! – grita um deles. – Aquela chhori ainda te anda a tirar o sono? – Os outros riem-se.
Todos os nervos do meu corpo estão tensos como molas enquanto me dirijo ao portão. Estou
morta de medo de que alguém perceba que visto um uniforme de homem demasiado grande por cima
do meu salwar de senhora e lance o alarme. Estou à espera de ouvir uma sirene a qualquer instante
e de sentir mãos agarrarem-me por trás. Mas ninguém me chama; não sou detida quando saio pelo
portão metálico.
A esquadra fica muito perto do complexo Priya em Vasant Vihar, famoso pelos seus bares e
restaurantes, e é para lá que sigo. Belisco-me de vez em quando, para confirmar que isto não é
apenas uma alucinação. É difícil acreditar que estou finalmente livre. Agora tenho o meu destino
nas mãos.
Mesmo a esta hora tardia, o complexo está cheio de vida. As pessoas ainda andam pelos bares e
há tráfego nas ruas. Vejo um riquexó motorizado a deixar um casal jovem e entro imediatamente.
– Leve-me a Vasant Kunj, Setor C, depressa – digo ao condutor.
– Primeiro, pague-me cento e cinquenta rupias – responde ele, sem sequer se dar ao trabalho de
ver quem é o cliente.
– Desde quando é que os condutores pedem dinheiro adiantado? – pergunto, com maus modos.
Ele vira a cabeça e vejo um rosto escuro, marcado pelas bexigas. Só então é que ele repara no
meu uniforme e toda a sua atitude muda.
– Desculpe, minha senhora. Paga o que disser no contador – diz, em tom submisso, e liga o
contador digital. Sorrio, com a satisfação de ter conseguido esse raro triunfo que é pôr no seu
devido lugar um condutor de riquexó de Deli.
Estamos a chegar a Nelson Mandela Marg, quando ouvimos uma sirene, que interrompe o silêncio
da noite como um grito. O condutor arrebita as orelhas.
– Parece que um ladrão qualquer escapou – comenta.
– Sim. – Confirmo com ar sério. – Parece que sim. Quem terá sido?
Nelson Mandela Marg está vazia e desolada enquanto nos dirigimos a Vasant Kunj. Esta estrada
de oito faixas é a artéria que liga Vasant Vihar a Vasant Kunj. Tem um hotel de cinco estrelas,
algumas escolas de topo e dois dos maiores centros comerciais de Deli. É também conhecida por
ser uma das zonas menos seguras da capital depois de escurecer, graças ao pouco patrulhamento, à
iluminação insuficiente e à vegetação densa de ambos os lados, sem habitações, e tudo isto vem
mesmo a calhar para mim.
Os primeiros sinais de problemas surgem quando estamos na secção que passa por cima da crista
de terra perto da Universidade de Jawaharlal Nehru. À distância, vejo barricadas de metal a ser
colocadas no meio da estrada, um posto de controlo a ser montado. Uma pontada de medo
trespassa-me o ventre. Não imaginei que a notícia da minha fuga fosse transmitida tão depressa a
todas as unidades policiais da cidade.
– Pare! Pare! Pare! – Puxo o colarinho do condutor. – Eu fico aqui.
– Aqui? – espanta-se ele. – Mas não há nada nem ninguém num raio de quilómetros!
– Está a ver aquilo? – Aponto para uma barraca de latão abandonada, à beira da estrada, que foi
provavelmente em tempos uma banca de chá. – Mandaram-me investigar.
– Como queira. – Encolhe os ombros e desliga o motor. – São cinquenta e duas rupias, minha
senhora – diz, depois de consultar uma tabela. É o que o contador marca, mais uma taxa de vinte e
cinco por cento pelo serviço noturno.
Desço do riquexó e enfio as mãos nos bolsos do uniforme, na esperança de encontrar algum
dinheiro, mas não tenho essa sorte.
– Está a pedir dinheiro a uma agente da polícia em serviço? – pergunto, tentando imitar o tom
impaciente de um agente.
– Onde é que diz que os polícias não têm de pagar? – desafia-me ele. – O mês passado, um
inspetor tentou a mesma coisa e o nosso sindicato foi diretamente ao comissário e ameaçou-o com
uma greve.
– Não posso dar-lhe dinheiro. – Abano a cabeça. – Mas posso dar-lhe uma bala. – Enquanto o
digo, tiro o revólver do bolso das calças e aponto-o ao rosto dele, com os gestos teatrais de um
vilão de Bollywood.
Ele arregala os olhos, horrorizado, e vejo uma expressão de reconhecimento passar-lhe pelo
rosto.
– Arrey baap re! Meu Deus! É a rapariga que vi na televisão, a assassina.
Agito o revólver, que me parece muito pesado.
– Sim. E não tenho qualquer problema em o matar também.
– Não… não. Por favor, poupe-me a vida. Tenho mulher e três filhas. Morrerão, sem mim.
– Então vá imediatamente. Volte para trás pelo mesmo caminho. E nem uma palavra a ninguém.
– Prometo, prometo. Estou a ir… estou a ir… – Treme enquanto liga o motor. Faz inversão de
marcha, aponta o veículo na direção de Vasant Vihar e pisa o acelerador até ao fundo.
Fico a olhar para o riquexó, até ele se tornar um pontinho à distância. Depois, corro para a
barraca e encolho-me atrás dela, com o corpo dorido de fadiga e insónias. Preciso de descansar um
pouco, de tempo para pensar no meu próximo passo. Por baixo de mim, a floresta ergue-se, escura e
ameaçadora. Na verdade, é o pico da antiga serrania Aravalli, conhecida como Crista Sul-Central.
Estou sentada há menos de dez minutos quando o ar começa a ecoar com o uivo de várias sirenes.
Espreito por trás da barraca e vejo meia dúzia de carros da polícia aproximar-se, vindos de Vasant
Vihar, com as luzes a piscar como sinais para um óvni. Viro-me e vejo um número igual de viaturas
aproximar-se da direção de Vasant Kunj. Todos parecem convergir para a barraca.
Percebo que o condutor do riquexó deu com a língua nos dentes e, agora, a polícia chegou para
me capturar. Ficar na estrada já não é opção. Assim, viro-me para o único refúgio possível: a
floresta.
Olho para a encosta íngreme à minha frente, que desce até à ravina. Parece terrivelmente
escarpada e pedregosa, mas tempos desesperados exigem medidas desesperadas. Puxo as calças
roubadas para cima e começo a perigosa descida. Ramos e espinhos espetam-se nos meus
tornozelos, a terra solta entra-me nos sapatos e pedras bicudas cravam-se nos meus joelhos, mas
continuo a descer com movimentos lentos e deliberados, até que, subitamente, perco o equilíbrio e
caio a rebolar pela encosta rochosa. Sinto uma pontada de dor quando raspo o joelho. Depois, bato
com a cabeça numa pedra e perco momentaneamente os sentidos.
Quando acordo, estou deitada no chão, como uma boneca de trapos, com as pernas e os braços
esticados. Tenho terra na boca e folhas no cabelo. Gemo, levanto-me e estudo o que me rodeia.
À minha volta, há árvores altas, que formam uma abóbada densa. O chão está coberto de arbustos
espinhosos, sarças e silvas. A floresta primitiva ecoa com os sons dos seus habitantes noturnos.
Corujas piam, insetos zumbem. Algo desliza à minha esquerda e dou um salto para trás, assustada,
com medo de que seja uma cobra.
Depois, oiço algo que me gela o sangue: os latidos agudos de cães, vindos de cima. Encosto-me a
uma árvore grande, ergo a cabeça e olho para cima. Vejo raios de luz no céu. A polícia não veio
sozinha. Trouxe holofotes e cães.
Agora, pela primeira vez, a realidade de ser uma fugitiva da justiça atinge-me, como uma bala
lenta. A minha cabeça enche-se de imagens daqueles dobermans que vi em casa de Acharya, e fujo.
Os ramos atingem-me o rosto como chicotes; os espinheiros tentam pregar-me rasteiras, como
arame farpado; as folhas grossas picam-me as faces como mil agulhas, enquanto corro cegamente
pelo bosque. Não faço ideia da direção que estou a seguir, mas sei que tenho de afastar-me dos
cães.
Tropeço e caio algumas vezes, a minha camisa rasga-se e tenho inúmeros cortes e nódoas negras
no rosto e nos braços, mas continuo a correr. Todos os meus poros estão cheios de suor, tenho os
músculos rígidos, estou ofegante e não consigo conter os soluços, o coração bate-me com toda a
força no peito, mas não abrando. Estou consciente apenas do cheiro do bosque, dos ramos que se
partem sob os meus pés e do vento que sopra entre as folhas. Mais do que pânico, mais do que
instinto, é pura força de vontade que me move. Há uma voz na minha cabeça que me impele a
avançar, que me dá a determinação pura para ignorar todas as exigências do meu corpo, de sono, de
comida e de água, e para continuar a andar. Esta noite, estou a correr pela minha liberdade, e nada
pode deter-me.

Depois de três horas de corrida intermitente, a escuridão começa a diminuir e as árvores à minha
volta a rarear. Os primeiros raios da luz do dia penetram como lanças na abóbada da floresta,
afastando as sombras. Os pássaros começam a chilrear e oiço o barulho suave de um ribeiro. No
entanto, há um som que se sobrepõe a estes: o barulho discordante do tráfego a acelerar por uma
estrada próxima.
Sigo o som da estrada por mais uma centena de metros e estaco abruptamente. Cheguei à orla da
floresta e, em vez de plantas verdejantes, dou por mim num poço de gravilha. Vejo tubos de betão
enormes espalhados sobre o solo, sem dúvida em preparação para a construção de mais um hotel de
cinco estrelas ou centro comercial opulento. Lenta mas irremediavelmente, este pulmão verde está a
ser sacrificado no altar do desenvolvimento comercial.
À distância, vejo a parte de trás de um complexo qualquer, coroado por uma cúpula cintilante,
que me parece muito familiar. Espremo o cérebro e lembro-me de a ter visto no Centro Comercial
Emporium. O que significa que cheguei a Vasant Kunj.
É uma área cuja geografia conheço bastante bem, principalmente porque o meu pai deu aulas
durante algum tempo na Escola Internacional Ryan, no Setor C.
O horizonte torna-se um íman místico, que me atrai. A adrenalina ainda me corre pelas veias.
Tenho as pernas tão dormentes, que já nem sinto a dor e a fadiga.
Dispo o uniforme policial, já todo esfarrapado, e escondo-o dentro de um tubo. Sopeso o
revólver nas mãos, antes de o enfiar no bolso interior do kameez. Aliso o salwar, esfrego a cara e
puxo o cabelo para trás. Depois, respiro fundo e começo a correr pela última vez.
Dirijo-me para a estrada, para o Setor C-1, para Rana.

O Setor C é o primeiro setor quando se entra em Vasant Kunj, se se vier do lado de Vasant Vihar.
A Bolsa 1 fica mesmo na estrada principal, e a cacofonia de tráfego em Abdul Gaffar Khan Marg é
um sinal reconfortante de que a notícia da minha fuga ainda não perturbou o ritmo do dia.
A colónia ainda está a acordar quando me aproximo do portão. O segurança é um jovem que olha
para mim com desconfiança.
– Nayi aayi kya? É nova aqui? – Fala comigo em tom descontraído e brusco, como se estivesse a
falar com alguém de estatuto inferior.
Ao princípio, não compreendo. Depois, percebo que ele pensa que sou uma criada nova.
Não o censuro por isso. Sou banal, desinteressante. Nada no meu rosto chama a atenção. Ainda
por cima, com o pó no cabelo e a sujidade na roupa, ele só podia considerar-me uma criada. Eu
podia ser uma Bela ou Champa, Phholmati ou Dharamwati, ou qualquer uma dos milhares de
criadas que passam pelas casas e ruas de Deli todos os dias.
– Sim. – Anuo com a cabeça com veemência. – Começo hoje na colónia.
– Onde?
– Na casa de Rana sahib, número 4245.
– Mas a Putli já não trabalha para ele?
– Partiu ontem, para a aldeia – improviso. – É por isso que estou aqui, para fazer o trabalho da
Putli até ela voltar.
– Ah, é uma trabalhadora temporária. Traz o registo criminal?
– Não. O que é isso?
– Pergunte ao Rana-babu. É uma exigência da Associação de Residentes para todo o pessoal
doméstico.
– Quer dizer que não posso trabalhar enquanto não o tiver?
– Claro que pode. Temos de nos ajudar uns aos outros, não é? – Pisca o olho e manda-me entrar.
– É verdade, não me disse como se chama.
– Oh, sou a Pinky.
– Muito bem. Até logo, Pinky.
Entro no complexo e estudo o que me rodeia. Os apartamentos térreos têm jardins bem tratados e
sebes aparadas. Os telhados cintilam, cobertos de antenas de satélite e tanques de armazenamento
de água. Quase todas as casas têm vasos de flores e cestos pendurados com plantas. Há veículos
utilitários e carros de luxo estacionados à sombra. A Bolsa C-1 tem o brilho refinado da
prosperidade suburbana da classe média.
A casa de Rana fica no primeiro edifício à minha esquerda, junto do muro da colónia. Enquanto
subo as escadas até ao quarto andar, um nó de tensão forma-se no meu peito. Lentamente, sem dar
nas vistas, tiro o revólver do bolso e seguro-o com a mão direita. Depois, toco à campainha do
4245 e espero.
Imagino o choque na cara de Rana, quando abrir a porta e der por si a olhar para o cano de um
revólver. Tenciono empurrá-lo rudemente para dentro, obrigá-lo a ajoelhar-se no chão e forçá-lo a
contar-me toda a história sórdida de como assassinou Acharya, em conluio com AK, e me implicou
no crime. Depois, ligarei ao subcomissário Khan, farei com que ele grave a confissão de Rana e
porei fim ao pesadelo em que vivo desde a minha detenção.
Há sempre a possibilidade de as coisas não correrem de acordo com o plano. Rana pode optar
por fazer bluff mais uma vez, julgando-me incapaz de disparar contra ele. Como se enganaria! O
revólver já não me pesa na mão, antes o sinto como letal. E sei, no fundo do coração, que puxarei o
gatilho se tiver de o fazer. Sou suspeita de homicídio, já não tenho nada a perder.
Passam quase cinco minutos e a porta não se abre. Rodo a maçaneta, mas está trancada. Toco
repetidamente à campainha, mas Rana não responde. Depois de dez minutos infrutíferos, chego à
conclusão de que a minha presa não está em casa. Sinto o coração apertado quando penso que Rana
pode ter deixado Deli, fugido. Esta possibilidade nunca me tinha passado pela cabeça.
Quando me viro, abatida, vejo algo pelo canto do olho que me chama a atenção. É uma mancha
azul, lá em baixo na estrada. Olho para Abdul Gaffar Khan Marg. Nos curtos intervalos entre as
vagas de tráfego matinal, vislumbro um grupo de corredores, de fatos de treino e ténis, que se
dirigem ao Setor C. É então que vejo a mancha azul. Mas já lá não está. Não, esperem, ali está. É
um homem com um fato de treino Reebok azul-escuro. Move-se com graciosidade e fluidez.
Enquanto o sigo com os olhos, sinto um formigueiro nas palmas das mãos. É, nem mais nem menos,
Rana.
O desânimo no meu coração é substituído pela satisfação sinistra de um caçador paciente que
finalmente avista a sua presa. Sim, Deus existe mesmo e finalmente será feita justiça.
O grupo está agora quase diretamente em frente do Portão Número 4, do outro lado da estrada.
Vejo Rana separar-se dos restantes e acenar em despedida. Agacha-se à beira da estrada, como um
atleta cansado que recupera o fôlego, e espera por uma pausa no tráfego para atravessar.
Depois, endireita-se e tira um telemóvel do bolso. Cola o aparelho ao ouvido, como se tivesse
recebido um telefonema, e começa a atravessar a estrada. Ainda nem sequer chegou à divisória
quando, do nada, um camião de mercadorias aparece atrás dele, a acelerar a uma velocidade
vertiginosa. Rana está demasiado concentrado no telefone para ter tempo de ver ou de se desviar do
camião, e o veículo atinge-o em cheio. Oiço o impacto chocante de metal contra carne e osso. O
telemóvel voa-lhe das mãos. O seu corpo é projetado no ar e atinge o pavimento com um baque. O
camião, depois de atropelar Rana, prossegue o seu caminho. Não oiço o chiar de travões. Pelo
contrário, o condutor acelera ainda mais, desesperado por desaparecer.
Acontece tudo tão depressa, que só consigo olhar, horrorizada e impotente. Mas, depois, o meu
cérebro começa a transmitir mensagens urgentes, a dizer-me que, se Rana morrer, perco a última
oportunidade de provar a minha inocência.
– Nãããããooo! – grito, e corro pelas escadas abaixo.
Saio pelo portão da colónia e atravesso a estrada a correr, arriscando também a vida. Quando
chego ao pé dele, Rana ainda está vivo, mas por pouco. O pavimento está salpicado de sangue, e o
lado direito da sua cara é uma massa de carne viva e tecido cerebral. O telemóvel está estilhaçado,
caído a alguma distância. Ajoelho-me no chão e seguro-lhe na cabeça.
– Rana… Rana – sussurro em tom urgente. – É a Sapna.
– Sapna? – repete ele num murmúrio rouco. Depois, tosse e cospe sangue. Está a respirar com
dificuldade e a pulsação no seu pescoço é irregular. Sei que não lhe resta muito tempo.
– O que… o que aconteceu? Quem é que lhe fez isto?
– Ele… eu… enganar – balbucia ele de forma incoerente.
– Quem? Diga-me, diga-me agora – peço, tentando arrancar-lhe uma confissão.
– Desculpe – diz ele com o último fôlego, e olha para mim com uma mistura de compreensão e
arrependimento. Tosse outra vez e revira os olhos. A pulsação no pescoço abranda e depois para
completamente.
Nesta altura, já se juntou um grande grupo de espectadores à minha volta.
– Arrey, chamem uma ambulância, depressa! – grita alguém.
– Não vale a pena – diz outra voz. – Khatam ho gaya. Está morto.
– Era seu marido? – pergunta outra pessoa.
– Não. – Abano a cabeça. – Apenas alguém que eu conhecia.
Surpreendentemente, o tráfego continua a circular em Abdul Gaffar Khan Marg, como se nada
tivesse acontecido. A morte de Rana é apenas mais uma estatística fria de um acidente de tráfego.
Uma morte anónima numa cidade perigosa.
Mas a polícia tem de a registar. Pouco depois, através do ruído, oiço o som de uma sirene da
polícia, e sei que está na altura de sair daqui. Levanto-me e descubro que tenho o salwar sujo de
sangue e uma camada das vísceras de Rana nos ténis.
– Tenho de ir – digo, à procura de uma abertura no círculo compacto de espectadores.
– Meu Deus! Não é a Sapna Sinha, a rapariga que assassinou o Vinay Mohan Acharya?! – grita
uma voz, de repente. Os espectadores recuam com a brusquidão de um estremecimento.
Fico paralisada, como uma estátua, com todo o corpo entorpecido pelo pânico. Sai daqui! O
pensamento ecoa na minha mente com a clareza de um alarme. Sai já daqui! Corro para a multidão,
como um touro numa arena, e abro caminho à força. Sem saber em que direção ir, corro ao acaso
para o outro lado da estrada e quase sou atingida por um autocarro.
– Apanhem-na! – berra um homem.
É então que me lembro da arma. Tiro-a do bolso de dentro, paro e giro sobre mim própria.
– O próximo que se aproximar de mim leva um tiro na cabeça – rosno aos meus perseguidores.
Eles veem o revólver e dispersam-se como um bando de pombos.
Estou tão atenta a vê-los fugir, que não reparo no homem que se aproxima por trás de mim, com
um taco de críquete na mão direita. Quando me viro, é tarde de mais. Ele sussurra uma obscenidade
e brande o taco, acertando-me em cheio no estômago. O ar abandona-me os pulmões e caio por
terra, tonta e aturdida. O revólver salta-me da mão e vai parar à sarjeta.
Não sei como, mas consigo levantar-me e começo a correr com pernas bambas, agoniada. O
homem do taco tenta apanhar-me de lado e atinjo-o com o corpo, com toda a força, fazendo-o cair
de costas na sarjeta.
Nesta altura, a multidão já se entusiasmou com a excitação visceral da caça. Mais de uma dúzia
de homens começam a perseguir-me. Corro sem ver nada. Passo por casinhas bem arranjadas e por
uma banca da Mother Dairy, sem me atrever a olhar para trás, mas a multidão segue-me como uma
sombra.
«Mais depressa!» ordena a voz na minha cabeça, mas as minhas pernas não têm mais forças. O
meu coração está prestes a explodir e o cérebro ameaça rebentar.
Estou quase a cair no passeio, quando vejo um Maruti Swift vermelho parar ao meu lado. A porta
de trás abre-se e uma mulher ordena:
– Entre!
Atiro-me para o banco de trás com a obediência irrefletida do membro de um culto. Assim que
entro, o carro afasta-se do passeio e acelera. Quando levanto a cabeça, vejo uma mulher de T-shirt
azul a olhar para mim, no banco do passageiro, à frente. Parece Shalini Grover, da Sunlight TV. O
condutor é um homem magro de cabelo revolto que nunca vi antes.
– Sente-se bem, Sapna? – pergunta a mulher, e solto um suspiro de alívio. É realmente a minha
amiga Shalini.
– Como… como me encontrou?
– Há dois dias que vigio a casa do Rana, na esperança de provar a ligação dele ao homicídio do
Acharya. Vi-o ser atropelado por aquele camião. E um minuto depois vi-a a si, de revólver em
punho e a correr como a atleta P. T. Usha. Quando vi aquela multidão capaz de a linchar, disse ao
D’Souza, o meu operador de câmara, que tínhamos de ser o seu carro de fuga.
– Olá, sou o D’Souza. – O condutor cumprimenta-me de trás do volante.
Shalini acende um cigarro com um isqueiro e oferece-mo. Só então reparo na nicotina embebida
nas superfícies interiores do carro, como uma tatuagem. Deve ser uma fumadora inveterada.
– Não, obrigada – recuso, ainda com a cabeça a latejar depois de ter escapado por um triz.
– Presumo que fugiu da prisão – diz Shalini, passado algum tempo.
Anuo com a cabeça, temerosa.
– Vai entregar-me à polícia?
– Acha que sou doida? – Ela ri-se. – Tenho um plano melhor para a minha fonte mais preciosa.
Vou levá-la para a nossa casa segura em Daryaganj.
– De que adianta? – pergunto, com o sabor amargo da bílis a subir-me à garganta. – A morte do
Rana esmagou todas as minhas esperanças.
– Pelo contrário, é uma prova definitiva de que não passou de um peão num jogo muito maior. A
forma como aquele camião acertou no Rana pareceu-me planeada. Não foi um acidente; foi um
homicídio – diz, e sopra um anel de fumo para a minha cara.
– Alguém lhe ligou para o telemóvel mesmo antes de o camião aparecer.
– Sim. E tenho uma boa ideia de quem terá sido.
– Quem? Foi o AK? – pergunto.
– Não, provavelmente foi o proprietário da Indus Mobile, o Swapan Karak.
– Porque diz isso?
– Havia qualquer coisa entre o Karak e o Rana. Vi-o entrar no apartamento do Rana, ontem, e
ficou lá mais de duas horas.
– Mas que assunto podia o dono da Indus ter a tratar com o Rana?
– É isso que vou investigar. Agora relaxe, tente dormir um pouco – diz Shalini, e liga o rádio do
carro.
Os acordes serenos da raga Khamas, cantada por Pandit Jasraj, brotam das colunas, acalmando o
mundo de caos que me rodeia. Fecho os olhos pela primeira vez em mais de vinte e quatro horas. A
confiança reconfortante de uma amiga e os movimentos suaves do carro permitem-me mergulhar
num sono muito necessário, até que o som de sirenes me faz acordar, sobressaltada.
– Merda, merda, merda! – oiço D’Souza praguejar. – Estamos a ser seguidos por três carros da
polícia.
– Alguém deve ter apontado a nossa matrícula – murmura Shalini, enquanto olha para o espelho
retrovisor.
– Foste tu que me meteste neste sarilho, agora resolve-o! – lamenta-se D’Souza.
– Tem calma – ordena Shalini com maus modos, e acende outro cigarro.
Pestanejo várias vezes, para tentar acordar, e procuro localizar-me. Parece que estamos perto da
Porta da Índia, a aproximarmo-nos de um semáforo que está vermelho.
– O que é que eu faço? – pergunta D’Souza.
– Para começar, passa o vermelho – diz Shalini calmamente.
– O quê?
– Passa-o!
Soam buzinas e os veículos desviam-se quando D’Souza atravessa o cruzamento a toda a
velocidade.
– Agora vão arranjar problemas por minha causa – digo a Shalini, preocupada.
– Não se preocupe – diz ela. – Podemos dizer à polícia que foi a Sapna que nos raptou.
Precisamente quando começo a achar que conseguimos enganar a polícia, mais sirenes enchem o
ar, cada vez mais perto.
D’Souza sai da estrada principal e vira para uma rua secundária. Com uma mão colada à buzina,
ziguezagueia por um labirinto de vielas estreitas, mudando de direção como uma bússola indecisa.
Mesmo assim, não conseguimos deixar completamente para trás o único carro da polícia que ainda
nos segue. Desesperado, D’Souza corta através de três faixas de trânsito em sentido contrário e
enfia-se no caos da hora de ponta em Janpath.
A opção acaba por se revelar desastrosa. Assim que nos juntamos ao mar de carros no círculo
exterior de Connaught Place, Shalini percebe que é impossível chegarmos à casa segura.
– Para o carro – diz ao operador de câmara.
D’Souza acena com a cabeça e trava abruptamente em frente do Cinema Regal.
– Sapna, é melhor sair aqui e procurar um esconderijo – aconselha-me Shalini. – Nós conduzimos
mais uns quilómetros, até a polícia nos apanhar. Pelo menos, terá algum avanço.
Abro rapidamente a porta e saio. Shalini estende o braço pela janela e agarra-me a mão num
gesto de solidariedade fraternal.
– Não desista de lutar, Sapna – diz. – Nunca desista. E leve isto. – Pega numa mala de cabedal
castanho que tem aos pés. – É o meu kit de viagem de emergência. Tem algum dinheiro, uma muda
de roupa, papel higiénico, lanterna, canivete e até fita adesiva.
Pego na mala e lanço um sorriso débil a Shalini, na esperança de que ela consiga ver a gratidão
nos meus olhos, por trás da pátina de medo e incerteza.
– Como poderei alguma vez pagar-lhe por isto?
– É simples. Dê-me uma entrevista exclusiva depois de provar a sua inocência. Agora vá, vá! –
diz, enquanto D’Souza arranca com o carro.
Por um momento, fico imóvel, como uma pessoa apanhada no rescaldo desorientador de um
acidente de automóvel. Shalini quer que eu me esconda em Connaught Place, mas não conheço um
único esconderijo aqui. Na verdade, seria impossível esconder-me no coração agitado e palpitante
da cidade.
Sinto o pânico a apoderar-se de mim e os meus olhos são atraídos para uma esquina, onde um
vendedor ambulante espalhou alguns posters religiosos para venda. A deusa Durga chama-me,
como um farol a um navio no meio de uma tempestade. E sei que tenho um local de refúgio em
Connaught Place.
Puxo o chunni para a cabeça, escondendo parcialmente o rosto, e junto-me ao fluxo de pedestres
que se dirigem aos escritórios e lojas. Depois de virar à esquerda para Baba Kharak Singh Marg,
dirijo-me a Hanuman Mandir.

Embora passe pouco das nove da manhã, o complexo de templos está cheio de movimento.
Artistas de tatuagens e mehndi, vendedores de pulseiras e astrólogos de beira de estrada, todos já
montaram as suas bancas. Um velho «Leitor Espiritual de Testas», que oferece os seus serviços
pelo preço auspicioso de 101 rupias, aborda-me.
– Quer saber o futuro? – pergunta. Apetece-me dizer-lhe que nem mesmo Deus sabe o meu futuro.
Deixo os ténis com a velha à entrada do templo e subo os degraus, dois a dois. Segundos depois,
estou na presença de Durga Ma. Basta-me ver o seu rosto divino para me encher de tal paz, que
esqueço todas as minhas tribulações. Deve haver alguma coincidência cósmica, porque hoje é
sexta-feira, o dia da deusa. Talvez Durga Ma me estivesse a chamar, e tudo isto tenha acontecido
para que eu estivesse aqui hoje.
Um grupo de mulheres de saris vermelhos, carregadas de oferendas de frutos e flores, já estão a
instalar-se no chão de mármore, preparadas para ouvir uma devota de meia-idade, de sari branco,
cantar bhajans. Sento-me discretamente no meio delas, de cabeça baixa, para que ninguém me veja
o rosto.
As canções fazem a sua magia e, pouco depois, todas as devotas estão a baloiçar-se juntas,
mergulhadas na maré crescente de amor devocional e na verdade simples da mensagem. Sinto uma
chuva de graça divina curar-me, renovar-me. A agonia no meu estômago e a dor latejante na minha
cabeça desaparecem miraculosamente.
Fico no templo perto de nove horas. Até já não conseguir ignorar mais as pontadas de fome.

Quando saio, o cinzento do crepúsculo espalha-se sobre a cidade, envolvendo tudo numa neblina
azul-clara. Os candeeiros de rua começam a acender-se, lançando sombras sinistras sobre os
passeios. A mala de Shalini contém a boa soma de três mil rupias, e compro um prato de puri-aloo
a um vendedor à beira da estrada.
Sento-me num banco e vejo a maré de humanidade passar. Bancários e funcionários públicos
correm para o metropolitano, ansiosos por voltar para casa depois de mais um dia de trabalho duro.
No banco ao meu lado, um par de namorados troca palavras de despedida inconsoláveis e
desoladas, em surdina. Um vendedor de flautas aproxima-se deles e começa a tocar uma canção
adequadamente trágica de Kal Ho Na Ho. A melodia silencia a cacofonia que acompanha
normalmente a hora de ponta em Connaught Place, até que as sirenes da polícia quebram o encanto
do momento.
Pouco depois, todas as esquinas estão ocupadas por homens fardados, desconfiados e alerta.
Estão a montar barricadas nos cruzamentos, para intercetar os carros. Perto do parque de
estacionamento do Bloco A, vejo um inspetor interrogar o funcionário, mostrar-lhe uma fotografia.
Não tenho dúvidas de que é a minha. A minha respiração acelera. O suor humedece-me as palmas
das mãos. Parte de mim quer apenas que isto chegue ao fim. Quero entregar-me. Esta vida
miserável, de viver em medo e secretismo constantes, é pior do que a morte. Mas a velha
tenacidade também cresce dentro de mim e diz-me que tenho de continuar a fugir, se não por mim,
pelo menos pela minha mãe e por Neha.
Nas duas horas seguintes, escondo-me e desvio-me, abrindo caminho pelo bazar movimentado e
entre o tráfego. Pouco depois das nove da noite, dou por mim no Bloco L, em frente da Agência de
Viagens Jain. Os meus olhos incidem na montra, que oferece promoções de verão para Gangotri,
Kedarnath, Badrinath, Almora e Nainital.
Nainital. Ver aquela palavra traz-me tantas memórias, que quase desato a chorar. Tomo a decisão
naquele instante.
O empregado, um velho de ar aborrecido, está a folhear uma revista de televisão quando lhe peço
um bilhete para Nainital.
– Oitocentas rupias – diz, no tom cansado de alguém que preferia estar em casa a ver televisão. –
O autocarro parte às dez e meia, ali à frente. Não aceitamos cancelamentos e não fazemos
devoluções.
Quando chego ao local do embarque, descubro que os meus companheiros de viagem são um
grande grupo de rapazes e raparigas de uma universidade local, descontraidamente vestidos com
calças de ganga e T-shirts, e armados de malas e mochilas. De cabeça baixa, sento-me mesmo ao
fundo do autocarro e escondo o rosto numa revista.
Fico com os nervos em franja quando o autocarro se aproxima do posto de controlo da polícia.
Quando um agente suado sobe as escadas e entra, o coração quase me salta da boca. Ele lança uma
olhadela superficial aos rostos jovens e sorridentes à sua frente e, com um meneio de cabeça
entediado, manda-nos seguir caminho.
Há um enorme engarrafamento na Ring Road, por causa de todos os controlos de segurança, e o
autocarro demora duas horas só para chegar à Estrada Nacional 24. A minha tensão paranoica só
acalma quando deixamos para trás os limites municipais de Deli.
O resto da viagem é um turbilhão confuso de canções desafinadas, piadas obscenas, tagarelice
constante e a exuberância juvenil de estudantes universitários em viagem. Observo toda a gente,
observo tudo, mas não abro a boca. Os estudantes também me deixam em paz. Estão demasiado
envolvidos no seu mundo despreocupado para se aperceberem de que viajam com a mulher mais
procurada da Índia.
O ar condicionado maravilhoso, o zumbido constante do motor e os movimentos suaves do
autocarro rapidamente me embalam até adormecer. Quando abro os olhos, o sol quente espreita
pela fresta das cortinas. Olho para fora e vejo que a paisagem plana e castanha das planícies
empoeiradas deu lugar aos sopés verdes e viçosos das colinas dos Himalaias. A primeira visão das
montanhas distantes e sombrias, envoltas em neblina, deixa-me fascinada.
O caminho é agora mais acidentado, e a estrada serpenteia em curvas apertadas. Paramos em
Haldwani para tomar o pequeno-almoço numa dhaba local. A comida é deliciosa e o ar fresco é
revigorante. O restaurante tem também uma pequena loja que vende várias bugigangas, e compro um
par de óculos escuros grandes. Vejo-me ao espelho e reparo, com satisfação, que os óculos cobrem
uma boa parte do meu rosto. Mas, depois, olho por acaso para o televisor montado na parede e oiço
a notícia devastadora de que Shalini Grover foi detida pela polícia por cumplicidade com uma
fugitiva. Uma vaga de tristeza invade-me e corro para o autocarro, onde me encolho no meu lugar
antes que alguém repare na minha perturbação.
Os quarenta quilómetros restantes passam numa neblina de lágrimas. E, às sete horas, estou
novamente na cidade da minha infância e juventude.

Na luz matinal do pino do verão, Nainital parece uma estação de comboio apinhada de gente.
Mall Road está cheia de casais animados em lua de mel e punjabis barulhentos. Riquexós puxados
por bicicletas avançam lentamente pelo bazar, tocando as campainhas para as pessoas se afastarem.
O lago cintila à minha frente, cheio e convidativo. Uma onda lenta e sensual rola como um ombro
contra o Clube Naval. As sete colinas orgulhosas que rodeiam o lago emprestam um ar místico ao
cenário, num contraste majestoso com a beleza fútil e fabricada de Deli. Enquanto absorvo o
panorama à minha frente – as Flats, o templo de Naina Devi, o Cinema Capitol, Thandi Road –,
toda a minha antiga vida me vem à cabeça.
Alguém me dá um toque no ombro. Encolho-me, alarmada, mas é apenas uma família sul-indiana
a olhar para mim – pai, mãe e duas filhas. O pai, vestido de linho branco imaculado, com uma
marca de casta amarela na testa, aproxima-se de novo.
– Perdão, minha senhora, mas pode por favor indicar-nos o caminho para a Casa de Hóspedes
Rosy? – Tem o ar hesitante de um turista num sítio desconhecido, com os dedos fechados sobre a
pega de uma velha mala preta.
– Lamento – respondo, ajeitando os óculos de sol. – Também não sou de cá.
Viro-lhe costas e olho para o Grand Hotel, do outro lado do lago, o lado de Mallital. É um
edifício baixo, de estilo colonial, com varandas compridas e abertas. Lentamente, o meu olhar sobe
até um ponto na colina coberta de nuvens baixas, por trás do hotel. Era ali que ficava a Academia
Windsor.
Quase como que impelida por uma mão invisível, começo a caminhar em direção à escola. A
estrada, com as suas curvas suaves, passa pelas lojas de recordações e pelos operadores turísticos
baratos, pela Igreja Metodista e pelo Colégio Inter. Quando chego à entrada da Academia, estou
ofegante devido ao esforço.
O portão de ferro forjado, com o logótipo azul e branco da escola, chama-me. A escola deve
estar encerrada para as férias de verão, já que não está ninguém ao portão. Entro pela entrada dos
pedestres e subo o caminho de lajes ladeado por cedros imponentes. O caminho bifurca-se no cimo
da colina; de um lado, segue na direção do gabinete da diretora e do edifício principal, do outro,
das residências do pessoal.
Sigo pelo caminho da esquerda, em direção àquilo a que chamávamos a Colónia dos Professores.
Consiste de uma grelha geométrica de casinhas caiadas de branco, dispostas em filas e separadas
por caminhos largos. Alka achava os alojamentos sinistros por causa da sua disposição
extremamente metódica. Eu sempre os considerei um refúgio, um antídoto contra a loucura
espalhada pelos turistas desordeiros do lado de fora.
A colónia está estranhamente silenciosa. Não há vivalma à vista. Os residentes provavelmente
ainda estão a desfrutar das horas de sono do fim de semana. Enquanto passo pelas casas numeradas,
os nomes surgem-me automaticamente na cabeça. Número 12, o professor Emmanuel; número 13, a
professora Da Costa; número 14, o professor Pant; número 15, o professor Siddiqui; número 16, a
professora Edwards; e, quando dou por mim, estou em frente da minha antiga casa.
Paro em frente do número 17 e olho, chocada. A casa não se parece nada com uma casa. Parece
um chiqueiro negligenciado. O relvado magnífico, que eu regava com diligência, é uma selva de
ervas daninhas, relva densa e arbustos descontrolados. As paredes estão tingidas de verde e
cobertas de bafio. O alpendre, que costumávamos decorar com diyas no Diwali, está coberto de
lixo soprado pelo vento. A chaminé, que se ergue no telhado baixo, como um torreão, ostenta agora
um ninho de pássaro.
Sinto uma vaga de fúria contra os moradores atuais, que deixaram o número 17 chegar a este
estado lastimável. Esta foi a casa onde passei a minha infância, a casa onde aprendi as duras
verdades da vida de adulta. As melhores memórias da minha vida estão ligadas a ela, memórias de
mangas doces de Dussehri e histórias à lareira, da família feliz que aqui vivia antes de a tragédia se
abater sobre ela.
Enquanto continuo a olhar para a casa, sinto essas memórias regressarem. A qualquer minuto,
Neha sairá da porta da cozinha a dançar uma raga ensinada por aquele rabugento mestre-ji. Vejo o
papá sentado na cadeira de verga, a baixar o jornal para olhar para mim com afeto austero, e Alka,
a querida e doce Alka, sair a correr de trás do velho carvalho no jardim das traseiras a gritar
«Kamaal ho gaya, didi!».
Com cada recordação nostálgica, assola-me uma vaga de emoções perturbadoras. Vozes
familiares ecoam-me na cabeça. Parece que algumas fibras do meu corpo ainda estão ligadas a esta
casa, a esta cidade. Reflito no balanço da minha vida, o que se ganhou e perdeu na transição para
Deli.
O toque de uma campainha arranca-me aos meus pensamentos. Viro-me e vejo um rapazinho de
triciclo a pedir-me para o deixar passar. Fita-me com a curiosidade imperturbável de uma criança
de quatro anos.
– Sabes quem vive nesta casa? – pergunto-lhe, com um sorriso.
– Bhoot, fantasma – responde ele, laconicamente.
– Como?
– Não vive aqui ninguém, só o fantasma da rapariga que lá morreu. Não se demore muito tempo,
ou ela chupa-lhe o sangue. É o que a minha mãe diz – conta ele, no tom exagerado de uma criança
que partilha um segredo. Depois, acena-me com a mão e afasta-se no seu triciclo.
Percebo que a casa está vazia. Provavelmente ficou vazia desde que nos mudámos. A morte de
Alka sujou-a, com a mácula do escândalo e do suicídio. E agora ninguém a quer.
Abro caminho entre as ervas, até às traseiras da casa, e descubro os mesmos detritos apodrecidos
que desfiguram a parte da frente. O jardim tornou-se uma lixeira para os vizinhos, e emite o fedor
fétido de uma fossa. Um monte de mobílias velhas e equipamentos estragados acumulou-se mesmo
em frente da porta da cozinha. Contorno uma sanita virada de pernas para o ar e espreito pelos
vidros da porta. A luz fraca que passa pelo vidro sujo banha a cozinha numa aura fantasmagórica,
dando-lhe o ar abandonado de um navio-fantasma.
Reparo que um dos painéis de vidro da porta está rachado. Basta um pequeno empurrão para ele
se estilhaçar em pedaços pelo chão. Com a mão direita, abro o trinco.
A casa escura e sinistra condiz com o meu estado de espírito. O cheiro bafiento a mofo e
humidade assalta-me os sentidos e faz-me espirrar. Dirijo-me à sala de jantar, aos tropeções, e abro
as portadas. Um raio de luz trespassa a escuridão, iluminando as partículas de poeira que dançam
no ar. Nessa luz suave, vejo uma sala coberta por uma fina camada de pó cinzento. Há teias de
aranha suspensas do teto, como estalactites. O soalho de madeira está salpicado de excrementos de
rato. Se não fosse a minha sensação de familiaridade com o local, pareceria perfeitamente espetral,
saído de um filme de terror.
Enquanto me aventuro pela casa, os sussurros do passado rodeiam-me. A cada divisão em que
entro, memórias e recordações inundam-me a mente. A sala de estar, onde costumávamos ver
televisão enquanto comíamos amendoins; o escritório, onde Alka lançou o seu derradeiro motim; o
quarto principal, com a pequena alcova que a mamã convertera no seu santuário privado; a janela
no quarto de Neha, de onde espiávamos o número 18; e finalmente o meu quarto, onde, encostada a
uma almofada, eu escrevia no meu diário secreto e fantasiava sobre vir a ser escritora, um dia. O
quarto de Alka é o único onde não tenho coragem de entrar.
Tudo me parece diferente, agora. Esta já não é a casa dos meus sonhos. As divisões amplas e
vazias parecem conchas ocas, sem alma. De súbito, sinto-me como uma invasora na casa de outra
pessoa.
Algumas memórias, percebo, deviam ficar sempre apenas memórias, arrumadas em paz num canto
fundo e escuro da mente. Quando postas em contacto com a luz dura da realidade, entram
instantaneamente em combustão, transformam-se em pó.

Depois de inspecionar toda a casa, decido fazer dela a minha morada temporária. A sua fama
como casa assombrada afastará os curiosos. E esconder-me aqui durante alguns dias permitir-me-á
recarregar as baterias, antes de ir atrás do AK. Primeiro, porém, tenho de mudar alguma coisa na
minha aparência.
O kit de emergência de Shalini é mais uma vez útil, pois contém uma tesoura. Entro na velha casa
de banho e olho para o meu reflexo no espelho antigo e rachado, ainda salpicado de manchas de
pasta de dentes. A memória de estar em frente deste espelho todas as manhãs, a lavar os dentes, é
suficiente para me encher os olhos de lágrimas. Sei que esses dias tranquilos nunca mais voltarão.
O pensamento deixa-me também inexplicavelmente zangada. O que fiz para merecer esta sorte,
esta vida de um animal perseguido? A ferver com uma fúria quase primitiva, ataco o cabelo com a
tesoura e corto uma madeixa.
Cada espelho rachado, cada janela fechada, cada teia de aranha nestas salas e quartos me
recordam o passado. E, a cada recordação, choro mais um pouco e fecho as lâminas da tesoura.
Poucos minutos depois, o meu cabelo comprido foi-se, substituído por um corte supercurto.
Depois de secar as lágrimas, troco também o meu salwar malcheiroso pelas calças de ganga justas
e T-shirt preta que encontro na mala castanha de Shalini.
Quando ponho os óculos escuros e olho novamente para o espelho, vejo uma desconhecida
elegante a olhar para mim. De certa forma, este novo visual parece-me adequado. Pois foi nisto que
me tornei: uma estranha na minha própria casa.
Felizmente, ainda há água corrente nas torneiras e o cilindro na cozinha ainda tem algum gás.
Assim, passo o resto do dia a limpar meticulosamente a casa e a preparar a cozinha. Limpo o pó do
meu quarto, a sujidade da minha casa de banho, e a fina camada de pó que se instalou sobre o
balcão da cozinha. Este período de domesticidade é precisamente aquilo de que preciso para me
distrair da direção cada vez mais deprimente que os meus pensamentos estão a tomar.

Com as primeiras sombras do crepúsculo, sinto a confiança necessária para sair dos terrenos da
escola. Evito as luzes e dirijo-me à Loja de Provisões Thapa, que fica a pouca distância dos
portões.
Thapa, o proprietário, é um velho nepalês enrugado, com cabelo à escovinha e um sorriso
arruinado pelos dentes podres. Olha para mim com os olhos turvos.
– Nunca a vi por aqui. Por acaso é a senhora Nancy, a nova professora de Biologia da escola?
– Não – respondo, tentando manter a naturalidade. – Sou a senhora Nisha, de Nagpur.
Fiz compras na loja de Thapa durante mais de dez anos, mas esta noite ele não me reconheceu.
Considero o facto uma pequena vitória e faço as minhas compras.
Meia hora depois, quando regresso discretamente ao número 17, tenho provisões suficientes para
uma semana. Chá, leite, açúcar e pão para as minhas manhãs; fósforos e velas para iluminar as
minhas noites; massa e refeições instantâneas para almoços e jantares; e artigos de higiene
suficientes para me manter limpa.
Depois de um jantar rápido e pouco apetitoso, saio pela porta das traseiras. O ar da noite está
frio e, mesmo com o kameez por cima da T-shirt, sinto um arrepio.
Sento-me debaixo do carvalho, a observar o lago, em silêncio. Sob o céu repleto de estrelas, as
águas escuras parecem vivas, com um caleidoscópio de padrões formados pelas luzes fortes do
Clube Naval, que se fundem com o néon tremeluzente da baixa de Nainital. É tão bonito, quase
melancólico.
Os meus pensamentos dirigem-se instantaneamente para a minha família e os meus amigos.
Pergunto-me como estará Neha, como a mamã se estará a aguentar. Quero desesperadamente falar
com Shalini, e quero acreditar que Karan vem a caminho da Índia. É dilacerante estar isolada das
pessoas que mais amo.
Por fim, exausta com os meus pensamentos, volto para dentro de casa, deito-me no chão frio do
meu antigo quarto e adormeço.

Em Rohini, costumava acordar com o som das buzinas dos camiões que passavam pela Colónia
GBR. No campus da Academia Windsor, desperto ao som de pássaros a cantar. Espreito pela
janela do quarto e vejo um pisco empoleirado num ramo de pinheiro. O ar está limpo e consigo ver
a grande distância, até ao horizonte longínquo, onde os picos irregulares e cobertos de neve marcam
a sua presença no céu da manhã. Delicadas nuvens cor-de-rosa flutuam sobre as colinas, como
bolas de algodão-doce sob a primeira luz do dia. Uma brisa suave sopra entre os girassóis, ainda
molhados de orvalho cintilante. Sinto-me abençoada, reconfortada pela grandiosidade reservada e
serena de Nainital. Regressar às montanhas é regressar a um mundo de suavidade e cor, depois da
severidade cinzenta do betão da cidade.
Vejo também um jornal enrolado no alpendre do número 16. O rapaz dos jornais deve tê-lo
entregado bem cedo. Uma vontade irresistível de ler as notícias faz-me entrar sorrateiramente no
jardim dos meus vizinhos e roubar-lhes o jornal.
A decisão é um erro. O jornal está cheio de informações deprimentes sobre mim. A polícia
chama-lhe a maior caça ao homem desde os ataques terroristas de 26 de novembro de 2008 e
anunciou uma recompensa de 200 000 rupias por informações que levem à minha captura. Embora
eu já não tenha o revólver, sou descrita como «armada e perigosa». Há também quem tente
implicar-me na morte de Rana. As únicas notícias boas são que a agente Pushpa Thanvi foi
suspensa e que Shalini Grover foi libertada sob fiança.
Fico também a saber, pela secção de negócios, que o Conselho de Administração do Grupo CEA
aprovou a aquisição da empresa pela Premier Industries. Há um retrato de Ajay Krishna Acharya a
sorrir em frente do edifício de Kyoko Chambers. A cada dia que passa, o cérebro por trás do
assassinato de Acharya reforça a sua posição, e eu continuo a ser uma fugitiva.
Rasgo a fotografia e começo a furar os olhos de AK, a cortar-lhe a boca, a desfazê-lo em
pedacinhos, descarregando todos os meus medos e frustrações naquele pedaço de papel de jornal.

O tempo passa entre o tédio e o terror. Quando estou acordada, passo o tempo paranoica, a
antecipar uma rusga policial. Durante a noite, o meu sono é uma fantasmagoria caótica de sonhos,
recordações e pesadelos. Estou a dar em louca nesta casa escura e fria. Será que troquei uma prisão
por outra?
Todas as noites faço um plano novo para desmascarar AK, apenas para o pôr de lado à luz fria do
dia, por ser impraticável, inútil ou apenas idiota. Nem sequer sei onde ele vive. E, sem uma arma,
sem um parceiro e sem o elemento de surpresa, caçar o industrial parece tão impossível como
escalar o monte Evereste de chinelos.
Ao fim do quarto dia, uma lassitude paralisante abate-se sobre mim. Não me apetece comer, não
me apetece dormir e, acima de tudo, não me apetece pensar.
Karan é, agora, a minha única esperança. Apenas ele conseguirá fazer um milagre, encontrar
alguma prova irrefutável capaz de desmascarar o plano sinistro de AK e devolver-me a liberdade.
*

São oito da noite e estou sentada na sala de jantar. Uma vela, presa ao soalho com cera derretida,
é a única luz. Rodeada pelo seu brilho suave, tento preparar-me psicologicamente para a batalha
com AK. Dou voltas à cabeça, à procura de um plano novo, qualquer que seja ele. Porém, por mais
que me esforce, não me ocorre nada.
Apenas para me distrair, pego no dinheiro que me resta e começo a contá-lo. Depois das
compras, sobram-me 1420 rupias. Despejo a mala de Shalini, para ver se me escapou alguma coisa,
e cai dela uma moeda de cinco rupias. Tal como uma jante solta, rola pelo chão de madeira. Sigo-a
com os olhos enquanto percorre rapidamente as tábuas lisas, mas depois a moeda curva para a
direita e sai para o corredor, onde passa por baixo da porta do quarto de Alka e desaparece.
Com um gemido de frustração, levanto-me e arranco a vela ao seu ninho de cera. Depois, saio da
sala de jantar.
Hesito por um momento em frente da porta de Alka, como se a divisão ainda contivesse algum
espírito maligno que não posso deixar escapar. Parece-me ouvir vozes estranhas e sussurrantes a
falar dentro do quarto, numa língua indecifrável. Ignoro-as, como fruto da minha imaginação, culpa
de demasiados filmes de fantasmas. Mas, depois, deteto um som ligeiro, como se algo ou alguém
estivesse a mover-se sobre o soalho dentro do quarto. Encolho-me e recuo, horrorizada.
Durante alguns momentos, o único som que me ecoa nos ouvidos é o da minha respiração
ofegante e do bater acelerado do meu coração, enquanto reúno coragem para enfrentar os meus
demónios, imaginários e reais. Respiro fundo, esvazio a mente de todos os pensamentos, rodo
corajosamente a maçaneta e abro a porta. Um pequeno rato sai a correr, com um guincho, e o meu
estômago contrai-se com repugnância.
As vozes sussurrantes tornam-se mais altas quando entro no quarto de Alka. A chama
tremeluzente da vela lança sombras grotescas na parede, tornando o ambiente ainda mais sinistro. O
quarto está totalmente vazio, mas a minha mente vê a cama de madeira de Alka. Quase sem querer,
ergo os olhos para o teto e vejo por um instante a imagem do corpo morto de Alka, como uma cena
escura iluminada momentaneamente por um relâmpago. Vejo claramente o rosto dela, ali pendurada
da ventoinha, a cabeça para o lado, uma dupatta amarela enrolada ao pescoço. Essa memória
macabra inunda-me completamente os sentidos e é tão real, que sustenho a respiração.
Preciso de toda a minha força de vontade para afastar a imagem da mente. Houve uma altura em
que adorei este quarto, recordo a mim própria, e lembro os dias soalheiros que passei entre estas
quatro paredes, a trocar piadas com a minha irmã, e as noites em que Alka se aconchegava a mim,
de pijama, e eu a regalava com histórias, inventadas na hora, de reis sábios e feiticeiros cruéis.
Depois de restaurar o equilíbrio da mente, tento afastar completamente a memória de Alka e
concentro-me na tarefa que me trouxe aqui: encontrar a moeda de cinco rupias. Não a vejo no chão.
À luz fraca da vela, olho em todas as direções, procuro em todos os recantos sombrios, mas não
encontro a moeda. Parece ter-se evaporado sem deixar rasto.
Uma vez que nunca acreditei em magia, isso só pode significar uma coisa: a moeda caiu por uma
fenda entre as tábuas do soalho. Agacho-me e começo a bater nas tábuas com os nós dos dedos, à
procura de alguma que esteja solta. Demoro algum tempo, mas encontro o que procurava exatamente
no centro do quarto, onde costumava estar a cama de Alka. A madeira nessa zona é mais clara, e a
tábua emite o som oco que eu esperava.
Tento puxar a tábua, mas o espaço não é suficientemente largo para que eu consiga enfiar os
dedos. Sem me deixar desencorajar, vou buscar o canivete à mala de Shalini e uso-o para levantar
uma das pontas. Enfio os dedos por baixo e desta vez consigo tirar a tábua.
Afasto-a e olho para dentro da cavidade. A moeda de cinco rupias reluz em cima de um montinho
de pó acumulado. No entanto, por baixo da moeda, há outra coisa, uma caixa de cartão estreita.
Mais consternada do que intrigada, tiro a caixa. Um cheiro bafiento ergue-se e faz-me cócegas no
nariz. Com dedos trémulos, abro a caixa e descubro um maço de cartas. Por um momento, sinto-me
culpada, como uma voyeur apanhada a olhar para algo privado ou proibido. Depois, a minha
curiosidade leva a melhor e começo a passar as folhas. As cartas estão cheias de expressões de
afeto apaixonadas e declarações de amor ardentes, todas dirigidas a «minha querida Alka» e
assinadas apenas «Hiren».
Hiren. Essa palavra agita algo na minha memória, mas a recordação desvanece-se antes que
consiga fixá-la. Perturbada, vejo que algumas das cartas parecem estar escritas com sangue, e
outras estão adornadas com símbolos satânicos. Uma declara, de forma arrepiante: «És a minha luz
na escuridão. Procurarei e destruirei qualquer pessoa que se atravesse à frente do nosso amor
eterno.»
Por baixo do monte de cartas, está um postal de parabéns, sem dúvida oferecido por ocasião do
décimo quinto aniversário de Alka. Quando o abro, caem algumas fotografias a cores. Olho para
elas e sinto o mundo à minha volta começar a girar e o meu corpo ficar entorpecido.
As fotografias mostram um rapaz atraente, alto e bem constituído, com cabelo liso e preto caído
sobre a testa e um bigode que lhe dá um toque de masculinidade. São os olhos que o denunciam. Eu
teria reconhecido aqueles olhos em qualquer lugar.
Não, não pode ser ele, tento dizer a mim própria, mas no meu coração sei que é. Uma inscrição
por trás da fotografia diz-me o seu nome completo. «ALKA SINHA + HIREN KARAK = A MAIOR HISTÓRIA
DE AMOR DO MUNDO.»
Então o namorado de Alka era Hiren Karak. A minha mente é um inferno tumultuoso de emoções
contraditórias, e várias imagens passam-me perante os olhos. Lembro-me das palavras de Shalini
sobre a relação do dono da Indus, Swapan Karak, com Rana. Lembro-me do namorado de Lauren,
James, me dizer em Jantar Mantar que vira Karak Júnior na greve de fome de Nirmala Ben. E as
últimas palavras do meu pai ressoam-me na mente como um eco numa gruta. Lauren pensava ter
ouvido «hiran» – veado –, mas agora sei que o papá estava a dizer «Hiren».
Sinto o sangue gelado. Uma escuridão impenetrável apodera-se da minha mente. Tenho de apoiar
a mão no chão para me equilibrar.
De súbito, como a morte, a verdade ergue-se perante mim. Nesse instante, sei o que tenho de
fazer.
Enfio as cartas e as fotografias na mala castanha, pego no dinheiro e saio silenciosamente de
casa.
Quando saio pelo portão da Academia Windsor, uma forte sensação de determinação apodera-se
de mim. Não há nenhuma dúvida na minha mente sobre o motivo da minha presença aqui, sobre o
que me trouxe a este lugar. Foi aqui que tudo começou, foi aqui que um acontecimento traumático
desencadeou uma reação em cadeia, de destruição calculada e arbitrária. E há uma justiça poética
no facto de tudo terminar aqui.
Dirijo-me ao Centro de Comunicações de Rawat, que funcionava como centro de telefones
públicos local antes da era dos telemóveis, e descubro que ainda existe. Entro numa das pequenas
cabinas de madeira, com o interior desfigurado por incontáveis números de telefone, e ligo para o
telemóvel de Lauren.
Ela atende ao quinto toque.
– Lauren, fala a Sapna – digo, em voz baixa.
– Sapna, és mesmo… – começa ela, mas corto-lhe a palavra.
– Não tenho tempo, Lauren. Preciso que me faças um favor. Diz ao Guddu que se encontre comigo
em frente da Colónia GBR amanhã às seis da manhã.
– Para que precisas do Guddu? Onde estás?
– É melhor se não souberes – digo, e desligo.
Enquanto pago o telefonema, pergunto ao jovem funcionário:
– Sabe a que horas parte o autocarro da noite para Deli?
– Às dez horas – diz ele. – Pertence à Academia, didi?
Anuo com a cabeça.
– Dizem que o fantasma daquela rapariga voltou a assombrar o número 17.
– A sério?
– Sim. O assistente do laboratório viu uma vela acesa dentro da casa há dois dias. E um dos
professores ouviu sons estranhos vindos de lá.
– Não acredito em fantasmas. – Sorrio-lhe tristemente. – E, mesmo que exista lá algum, algo me
diz que ele será exorcizado amanhã.

É a estação das águas.


A monção de sudoeste chegou cinco dias antes da data normal, e toda a cidade está envolta no seu
abraço húmido. A chuva fraca e intermitente que começou a cair quando cheguei a Deli, às cinco da
manhã, transformou-se numa tempestade. Nuvens escuras e zangadas correm pelo céu cinzento antes
de rebentarem sobre edifícios, ruas e campos. A chuva cai com tanta força que magoa, e veem-se
relâmpagos a intervalos regulares.
Estou em frente do apartamento B-35, que tem um sólido cadeado metálico na porta.
– Vá lá – digo, incentivando Guddu. – Disseste que conseguias abrir qualquer fechadura. Vamos
lá ver-te abrir esta.
Guddu lança imediatamente mãos à obra, e começa a trabalhar com um grande molho de chaves.
Prova ser realmente um serralheiro de qualidade e demora menos de três minutos a abrir o cadeado.
Mostro o meu agradecimento com uma nota de quinhentas rupias, praticamente tudo o que me resta
do fundo de emergência de Shalini. Sei que não precisarei mais dele. Cheguei ao fim da minha
viagem.
– Agora podes ir – digo a Guddu. – Eu trato do resto sozinha.
Quando Guddu parte, rodo a maçaneta e entro no apartamento. Parece uma casa típica de homem
solteiro, com pouca mobília, um grande televisor, uma consola PS3 e uma cozinha que não é usada
há vários dias. Atravesso a sala e entro no primeiro quarto. Tem apenas um almirah, mais nada. O
segundo quarto está às escuras quando entro, mas sou de imediato assaltada por um cheiro
enjoativo.
Ligo o interruptor, banhando o quarto na luz amarela de uma lâmpada nua. Quando olho em volta,
os meus olhos arregalam-se, em choque. Sinto-me tonta. O quarto é um santuário a Alka. Grandes
fotografias da minha irmã cobrem as paredes. Há um lenço amarelo num canto, enrolado como uma
grinalda. É muito parecido com a dupatta que Alka usou para se suicidar. E depois há fotografias
mórbidas de sangue e morte, crânios, serpentes e bestas satânicas. Prova de que estou no santuário
de um psicopata criminoso.
Passo os trinta minutos seguintes a revistar o quarto, a abrir gavetas, a remexer nos armários, até
viro o colchão. Descubro muito dinheiro, muita cocaína e uma dúzia de cartas de Alka para Hiren.
Quando começo a ler as cartas, recuo no tempo, até ao mundo idílico de uma jovem inocente de
quinze anos, com estrelas nos olhos e sonhos no coração. Muitas das cartas falam em mim, em como
Alka me adorava, em como me confiaria a própria vida, e por fim não aguento mais. Deixo-me cair
no chão, agarrada a estas últimas relíquias de Alka. As lágrimas que se recusaram a sair no dia em
que ela morreu caem agora numa cascata, e choro a morte da minha irmã.
Faz-me bem chorar. Sinto-me limpa por dentro, como se tivesse lavado um depósito maligno que
me envolvia o coração.
Estou tão perdida na minha nuvem de dor, que nem reparo quando a porta se abre e alguém entra
em bicos de pés. Quando dou por isso, tenho um cano frio e metálico encostado às costas.
Viro-me e olho para o homem que empunha a arma. Vestido com um fato de treino branco da
Adidas, parece despenteado e tem mau aspeto. O cabelo voltou ao que era naquelas fotografias
antigas, comprido e liso. O bigode também voltou a crescer, mais denso, até um pouco mais escuro.
– Olá, Karan – digo-lhe, enquanto limpo os olhos. – Ou preferes que te chame Hiren?
– Um sexto sentido disse-me que voltarias à colónia. Mas não esperava encontrar-te na minha
casa – sussurra ele, incrédulo. – Pensava ter apagado bastante bem o meu rasto.
– E apagaste, mas uma moeda da sorte conduziu-me até ti. Foste mesmo para a América?
– Nunca saí de Deli. – Ele sorri.
– E quantos anos tens, exatamente?
– Vinte. Idade suficiente para saber o que significa perder a pessoa que mais se ama no mundo.
– Também perdi uma irmã. A Alka era…
– Não te atrevas a pronunciar o nome da Alka! – grita ele, furioso. Inclina-se, agarra-me no
cabelo e puxa-me para trás. Sinto uma pontada de dor no couro cabeludo e no pescoço. Com a mão
livre, ele puxa a minha T-shirt e rasga-a, deixando o meu soutien à mostra. – Só para confirmar se
trazes um aparelho de escuta. – Depois, pega na mala castanha e despeja-a. – Ótimo. – Acena com a
cabeça. – Também não há gravadores aqui.
– Não foi a polícia que me mandou cá.
– Foi o que eu calculei. Significa que ninguém sabe o meu segredo. Exceto tu.
– E o que tencionas fazer comigo? – pergunto, enquanto um relâmpago ilumina o quarto, como um
olho enraivecido que tudo vê.
– Matar-te, claro – diz ele sem entoação, com a arma apontada para mim, e um trovão ribomba,
fazendo estremecer as paredes e abrindo a janela. – Ninguém ouvirá o tiro, no meio desta trovoada.
E posso livrar-me facilmente do corpo.
– Mata-me, se tens de o fazer – digo-lhe, calmamente. – Mas podes pelo menos explicar-me
porque fizeste tudo isto? E diz a verdade, para variar.
– A verdade? – Ele solta uma risada escarninha. – Sempre foste uma cabra hipócrita. Tal e qual
como o teu pai.
– Odiava-lo, não era?
– Ódio é uma palavra demasiado fraca. Abominava-o completamente, por aquilo que fez à Alka,
por aquilo que todos vocês fizeram à Alka.
Aponto para a dupatta amarela ao canto.
– Como é que tens este pano?
– Faz parte de um pacto com a Alka – diz ele, e a sua voz adquire um tom doce de reminiscência
melancólica. – Na noite da morte dela, entrei no quarto pela janela. Jurámos fugir juntos e casar
num templo de Arya Samaj. O pano amarelo serviria para o nó matrimonial, um para ela e um para
mim. Ela pediu-me apenas algumas horas para fazer as malas. Fiquei à espera na estação de
autocarros, mas ela nunca apareceu. Amava demasiado a família, uma família que não merecia o
amor dela. Preferiu morrer a fugir comigo. O seu nó matrimonial acabou por ser a corda que a
enforcou.
Olha para mim com expressão furiosa, antes de continuar.
– Tiraram-me a única coisa que era importante para mim. Quando a Alka morreu, eu morri
também. O mundo tornou-se um lugar sombrio. Os estudos pareciam inúteis. Desisti da escola,
animado apenas por um desejo: vingar-me. – Faz uma pausa para respirar e o seu tom de voz muda.
O amante sofredor desapareceu, substituído pelo psicopata tortuoso. – Podia ter eliminado toda a
tua família num segundo. Mas isso seria fácil de mais. Queria fazer-vos sofrer. Tal como eu sofri
desde a morte da minha amada.
– Então seguiste-nos até Deli?
– Sim. Primeiro livrei-me do verme do teu pai, o Pramod Sinha. Fui eu que o atraí ao Parque dos
Veados. Nada me aqueceu mais o coração do que vê-lo ser atropelado por aquele camião.
– E a Neha? Como é que ela encaixa no teu esquema doentio?
– A Alka nunca se deu bem com ela. A Neha estava demasiado apaixonada por si própria,
obcecada com a sua beleza. Não me teria importado de a desonrar, mas ela rejeitou-me. Disse que
um beijo seria tudo o que me daria. Portanto, tive de lhe dar uma lição. Era eu que ia na motorizada,
fui eu que a queimei com o ácido. – Faz um esgar de satisfação doentia. – A cabra estava a pedi-las.
Sei que estou na presença do mal puro. O turbilhão que se agita no meu cérebro há tanto tempo
está quase a explodir, e fico sem palavras por um instante. Nesse momento, o único som que se
ouve é o da chuva a cair.
– Mas a minha maior vingança estava reservada para quem traiu a Alka… tu – diz, com o rosto
contorcido numa máscara grotesca de ira e ódio.
– Então foste tu que levaste o Acharya a propor-me aqueles sete testes?
– Não. Não tive nada a ver com esse louco. Na verdade, ainda não percebi por que raio ele te
escolheu, do nada, para seres diretora-geral dele.
– Mas de certeza que tiveste um dedo na morte dele, não?
– Claro que sim. Quando não consegui dissuadir-te de participar nos jogos mentais do Acharya,
decidi jogar também. Depois do segundo teste, encontrei-me com o Rana e fiz-lhe uma proposta
irrecusável.
– Foste tu que mandaste aqueles bandidos atacarem-me no Parque Japonês.
– Quem havia de ser? Precisava da faca com as tuas impressões digitais.
– E depois usaste a mesma faca para matar o Acharya e me incriminar.
– Bingo! O plano era mandar-te para a prisão durante pelo menos vinte anos.
– Já agora, podes contar-me o que aconteceu na noite do homicídio.
– Correu exatamente como eu planeara. Depois de tratar do assunto da Neha, fui para casa do
Acharya, escondido no carro do Rana. Deixámo-lo acabar de jantar e subir para o quarto. Apontei-
lhe uma arma e disse-lhe para não fazer barulho. A melhor parte foi ligar aos idiotas dos criados,
fazendo-me passar pelo Acharya, e mandá-los para casa. O Rana saiu cinco minutos depois, mas eu
fiquei a fazer companhia ao Acharya, com a arma apontada à cabeça dele. Quando lhe ligaste do
hospital, fui eu que atendi. Sempre fui bom imitador, e imitar a voz característica do Acharya foi
muito fácil.
– Quando é que o mataste, exatamente?
– Logo depois do telefonema. Assim que saíste do hospital para Prarthana, assinaste a sentença
de morte dele. Devias ter visto como o velho guinchou quando o apunhalei. Depois de ele morrer,
substituí simplesmente a faca pela que tinha as tuas impressões digitais. E esperei que caísses na
armadilha.
– Então estavas em Prarthana quando eu cheguei?
– Claro que sim. Fui eu que falei com os guardas pelo intercomunicador. E fiquei mesmo depois
de tu saíres, escondido na garagem. O Rana voltou pouco depois da meia-noite, e saí como tinha
entrado, escondido no carro dele. Tens de admitir que foi o plano mais engenhoso alguma vez
concebido.
Fico calada, ainda a processar o que ele me disse.
– Se quiseres, também posso contar-te o lado da história referente à Atlas.
– Acho que já sei. O Grupo Indus era a fachada da Atlas, não era?
– Exato. Mas o meu pai, Swapan Karak, só me revelou esse segredo muito mais tarde. Se
soubesse, nunca teria aceitado imitar o Salim Ilyasi.
– Não só mataste o Acharya, como também o incriminaste.
– Foi uma prenda para o meu pai – diz ele. – O meu pai nunca gostou de mim, sempre preferiu o
meu irmão mais velho, o Biren. Depois de eu desistir da escola, praticamente renegou-me. Contudo,
quando o nó da Atlas lhe começou a apertar o pescoço, procurou-me, em pânico. E eu tratei do
assunto. Bastou pedir ao Rana que colocasse os documentos secretos do meu pai no cofre do
Acharya. E, assim, consegui matar dois coelhos de uma cajadada.
– E depois atraiçoaste o Rana.
– Aquele canalha começou a ficar ganancioso. Começou a exigir mais. Por isso, o meu pai e eu
tivemos de tratar do assunto. E agora vou fazer o mesmo contigo.
Parece-me inconcebível alguma vez ter amado este homem. Tudo o que sinto por ele agora é um
ódio devorador. E não suporto a ideia de ele conseguir sair impune de tudo isto. Olho em volta e
vejo um pisa-papéis com o logótipo da Indus, quase ao alcance da minha mão. Ainda tenho as
cartas de Alka apertadas entre os dedos. Num instante de temeridade, atiro-as para a cara dele e
consigo sobressaltá-lo momentaneamente. Ao mesmo tempo, estico a mão direita, pego no pisa-
papéis e arremesso-o. Faço pontaria à cara dele, mas acerto-lhe no peito, o que o desequilibra.
Levanto-me atabalhoadamente, mas, antes de conseguir pôr-me de pé, Hiren estica a perna e atira-
me novamente ao chão. Gemo de dor, e depois grito quando Hiren me pisa o estômago, prendendo-
me ao chão.
– Tiveste coragem, mas não pontaria – murmura, com os dentes à mostra, como um lobo.
– Tenho apenas mais uma pergunta…
– Chega de conversa – interrompe ele. – Vou acabar contigo. – Levanta o revólver e aponta-o à
minha cara.
Uma terrível sensação de déjà-vu apodera-se de mim e a adrenalina do perigo físico intensifica
os meus sentidos. Olho para aquele rosto resoluto e inflexível, para os olhos que brilham com uma
frieza fanática, e sei que não posso esperar qualquer misericórdia.
Com a certeza desanimadora de que falhei a minha missão, chego a uma conclusão mais madura.
É melhor deixar a justiça, a vingança, a retribuição para os deuses do karma. Vou juntar-me a Alka
e ao papá e quero ir com o coração em paz. Nesse momento, esvazio a mente de tudo, até do
pensamento de Deus. Liberto-me de todo o ressentimento, de todo o arrependimento, de toda a
amargura, de todo o rancor, e fica apenas um resíduo de tristeza, por não ter conseguido fazer
melhor pela minha mãe e por Neha.
– Acaba com isto – digo, precisamente quando outro trovão rebenta lá fora.
Hiren enfia-me o revólver na boca. Sinto o sabor frio e metálico da morte nos lábios. Pelo
menos, será rápido.
A cena desenrola-se com a clareza terrível de um pesadelo. Uma obscenidade brota dos lábios de
Hiren, o seu dedo treme sobre o gatilho, ouve-se um tiro e eu encolho-me. Mas, em vez de cair
morta, vejo Hiren recuar com um passo cambaleante, com uma expressão incrédula. Leva a mão ao
ombro esquerdo, onde uma grande flor de sangue floresce no casaco de fato de treino.
O subcomissário Khan entra no quarto, de revólver em punho, o fumo ainda a erguer-se do cano.
O cheiro acre de cordite enche-me os sentidos.
– Prendam-no – ordena aos agentes que surgem atrás de si. E, atrás de todos, está Shalini Grover.
Ela abraça-me.
– Sapna, graças a Deus que está bem.
Olho para ela com o ar espantado de uma doente de coma que acabou de recuperar a consciência.
– O que se passa? Quem é que chamou o subcomissário Khan? E o que é que você está a fazer
aqui?
– É uma longa história, mas, basicamente, tem de agradecer a isto. – Pega na mala castanha caída
no chão. – A minha mala de emergência também é um kit de espionagem completo, com uma
minicâmara na fivela, um gravador de áudio cosido no forro e um transmissor sem fios na base.
Segui todos os seus movimentos desde que foi para Nainital. No entanto, quando descobri que
estava de novo em Deli, alertei o subcomissário Khan. Gravámos todas as palavras que o Hiren
disse. Desta vez, ele não se conseguirá safar.

O som das sirenes e das vozes nos rádios da polícia ergue-se no ar molhado, enquanto caminho
por entre o caos de carros-patrulha, polícias e paramédicos.
Paro no pátio e olho para o céu. Parou completamente de chover e as nuvens começam a dissipar-
se. Parece que vai ser um lindo dia. Depois de tudo aquilo por que passei, essa simples garantia
reacende algo no meu coração que não sentia há muito tempo. Esperança.
Ajustei uma conta antiga. O passado foi finalmente enterrado. Para lá do horizonte, a leste, o
futuro chama-me, ainda nublado, mas cada vez mais luminoso.
49 Pano de algodão que cobre o corpo da cintura aos joelhos. (N. da T.)
50 Saudação com conotações patrióticas, usada na polícia. Significa «Vitória para a Índia!» (N. da T.)
EPÍLOGO

E stá um dia escuro e nublado e chove de forma intermitente. Estou sentada à janela da minha
casa nova em Saket, a beber café e a ouvir as gotas a caírem da árvore gulmohar encostada ao
muro do complexo. Está em flor, e os botões cor de fogo proporcionam um apontamento de cor
deslumbrante contra o céu cinzento e turbulento.
Fiquei com esta casa apenas por causa da árvore. Conforta-me, é um refúgio sombrio e escarlate
num canto agitado da cidade.
Passaram três meses desde os acontecimentos traumáticos de junho. Nas primeiras semanas, a
comunicação social perseguiu-me implacavelmente. Apareci em capas de revistas, estive nos tops
do Twitter, tornei-me tema de discussão em talk-shows.
O único resultado positivo da minha notoriedade recente foi ter arranjado um emprego de sonho
como editora de ficção na Publicon, uma editora pequena mas prestigiada. O salário é bom, mas,
mais do que isso, é muito recompensador poder finalmente fazer algo relacionado com a minha
paixão.
Além de editar as histórias dos outros, também estou a escrever a minha. Uma das principais
editoras britânicas pediu-me para escrever o meu livro de estreia, essencialmente um livro de
memórias sobre estes seis meses tumultuosos da minha vida.
Os meus editores britânicos também me deram um adiantamento generoso. O dinheiro permitiu
que Neha começasse os tratamentos cirúrgicos de reconstrução. Cada dia traz uma nova alegria ao
seu rosto e os médicos dizem que, em breve, ela poderá retomar a vida normal.
A mamã juntou-se a Nirmala Ben e vive agora com ela em Gandhi Niketan. A vida austera da fé,
da simplicidade e da caridade é boa para ela e já causou uma melhoria dramática no seu estado de
saúde.
Shalini Grover está na primeira página dos jornais hoje, porque recebeu o Prémio de Jornalismo
Corajoso. Quando olho para a fotografia, encho-me de orgulho por ela. Afinal, não precisava da tal
entrevista exclusiva comigo. A primeira página menciona também que os pedidos de fiança de
Hiren Karak e Swapan Karak foram recusados, mais uma vez. O vicecomissário Khan (foi
promovido no mês passado) disse-me que, mesmo que consigam escapar à pena de morte, pai e
filho têm pela frente penas de vinte anos de prisão, no mínimo. O Grupo Indus (batizado pela
comunicação social como «O Atlas Saqueador») entrou em liquidação, e os seus bens foram
penhorados.
Acabo de pousar a chávena de café quando a campainha da porta toca. Solto um gemido.
Provavelmente, é mais um repórter chato. Levanto-me, abro a porta com o ar enfadado de um
funcionário público perto da hora de saída, e recuo, chocada. Porque, à minha porta, está um
fantasma. É Vinay Mohan Acharya, vestido com a habitual indumentária de seda branco-suja, uma
pashmina branca sobre os ombros e uma tika escarlate na testa. Exatamente igual ao que era no dia
em que o conheci.
– Eu… não acredito – murmuro, com a cabeça a andar à roda, e perco a força nos joelhos. Só a
rapidez de reação do meu visitante, que estende os braços, me impede de cair ao chão.
– Lamento muito tê-la assustado – diz ele, enquanto me ajuda a levantar. – Sou Ajay Krishna
Acharya, dono do Grupo CEA.
– Quer dizer… o AK? O irmão do senhor Vinay Mohan Acharya? – pergunto, debilmente.
Ele confirma com a cabeça.
– Posso entrar?
Ainda me sinto envolta num nevoeiro de surrealidade quando ele se senta no sofá de verga da
sala.
– Está muito diferente da última vez que o vi, em casa do senhor Acharya – comento.
– Mudei – responde ele. – A morte do meu irmão fez-me olhar bem para mim próprio, para os
meus métodos de fazer negócios.
– O Rana era o seu espião no Grupo CEA, não era?
– Sim – suspira ele. – O Rana era um canalha, capaz de vender a alma a quem pagasse mais.
Estava na minha folha de pagamentos desde 2009. No entanto, quando ele ajudou o Hiren a
assassinar o Vinay Mohan por um punhado de prata, foi então que algo acordou dentro de mim. É
triste, mas só descobri o meu irmão depois da sua morte. E também descobri Deus. Ficará feliz por
saber que acabo de dar um cheque de dois crores à instituição da sua amiga Lauren.
– Então o que deseja de mim?
– Quero que leia isto – diz ele, e passa-me uma folha de papel dobrada.
– O que é?
– Uma mensagem do meu irmão, dirigida a si. Só a encontrei ontem, enquanto dava a volta aos
documentos do Vinay Mohan. Achei que devia lê-la.
Desdobro o papel e vejo que é uma carta, escrita em papel timbrado com o monograma de
Acharya, as suas iniciais. Está datada de 10 de junho, um dia antes de ele ser assassinado, e eis o
que diz, na sua caligrafia fluida:

Minha querida Sapna,

Se está a ler isto, significa que eu já abandonei este mundo. O cancro pancreático
levou-me um pouco mais cedo do que eu esperava.
Escrevo-lhe no meu quarto privado no Tata Memorial Hospital, onde os médicos estão
prestes a operar-me. Posso não sobreviver à operação. E, mesmo que sobreviva, dizem-me
que tenho menos de três semanas de vida. O meu cancro, que, primeiro, se espalhou aos
nódulos linfáticos à volta do pâncreas, passou agora para o fígado e para os pulmões.
Mesmo com quimioterapia agressiva, as minhas hipóteses de sobrevivência são inferiores
a cinco por cento. Com estas probabilidades, recusei a quimioterapia e prefiro morrer
com dignidade. Como a minha filha Maya costumava dizer, é a qualidade de vida que
importa, não a quantidade.
Tenho muitos arrependimentos nos últimos anos, mas nenhum maior do que não poder
ter passado tanto tempo consigo como desejava. A Sapna faz-me lembrar tanto a minha
filha.
Quando me conheceu, naquela tarde cinzenta e fria do dia 10 de dezembro, disse-lhe
que tinha visto um brilho nos seus olhos, mas essa não era toda a verdade. A Sapna tem
algo mais, uma generosidade de espírito que é muito raro encontrar.
Não sei se a data 23 de agosto tem algum significado para si. Provavelmente, para si,
foi apenas um dia como os outros, mas para mim foi um dia de renascimento.
Tenho um dos mais raros grupos sanguíneos do mundo, o grupo sanguíneo de Bombaim.
No dia 23 de agosto último, tive de ser submetido a uma cirurgia de urgência. Estava em
estado crítico e precisei de cinco unidades de sangue, mas nenhum dos bancos de sangue
da cidade tinha o grupo sanguíneo de Bombaim. Os médicos já quase tinham desistido de
mim, quando a Sapna se ofereceu para doar o seu sangue.
Nesse dia, salvou-me a vida. Foi nesse dia que decidi fazer de si diretora-geral do meu
grupo. Disse-lhe que era a sétima candidata, mas não era verdade. Foi sempre a única.
Deve ter pensado que eu era um sádico sem coração por lhe ter preparado aqueles
testes. Mas herdar uma posição é fácil; mantê-la é que é difícil. O mundo dos negócios
modernos é um mundo cruel, cheio de riscos e armadilhas. Queria ter a certeza de que a
Sapna tinha as qualidades necessárias, não só para liderar a minha empresa, mas também
para a fazer avançar. Mais importante ainda, queria que o cargo fosse merecido, não
apenas um presente.
Através dos seis testes, já lhe ensinei os atributos da liderança, da integridade, da
coragem, da intuição, do engenho e do poder de decisão. Infelizmente, não poderei
completar o sétimo teste. No entanto, através desta carta, estou a passar-lhe a minha
última lição.
Um dos paradoxos do sucesso é que, quanto mais poder ganhamos, mais controlo
perdemos. Não há previdência, planificação ou engenho que consigam manter-nos
completamente protegidos das vicissitudes do mundo exterior. O desempenho passado não
é garantia de resultados futuros. A verdade é que nada permanece constante. Podemos
estar no cimo da montanha hoje, mas há sempre rivais, dentro e fora do nosso círculo, à
espera para nos fazer cair. E, quando isso acontece, precisamos da qualidade mais
essencial de um líder: sabedoria.
Muitas pessoas pensam que a sabedoria resulta da idade, mas não é verdade. As únicas
coisas que resultam da idade são os cabelos brancos e as rugas. A sabedoria resulta de
uma combinação de intuição e valores, de fazer escolhas e aprender com elas. Resulta da
capacidade de lidar com o fracasso e com a rejeição. Cada um dos meus seis testes lhe
ensinou uma lição valiosa. Porém, a lição mais valiosa da vida é confiarmos nos nossos
instintos. Conhecer o mundo é esperteza; conhecermo-nos a nós próprios é sabedoria.
Assim, faça o que fizer, seja você própria. Oiça sempre o seu coração, faça aquilo que
considera certo e defenda os princípios em que acredita. Tudo o resto correrá bem.
Para mostrar que cumpro aquilo que digo, vou nomeá-la diretora-geral do Grupo CEA.
Deixo o meu negócio nas mãos da candidata mais merecedora: a Sapna.
Agora, cabe-lhe a si determinar o rumo da empresa e continuar o meu legado. Os meus
desejos de felicidades estarão sempre consigo.
Boa sorte e Deus a abençoe.

Com afeto,
Vinay Mohan Acharya
Dobro a carta com os olhos cheios de lágrimas. Por trás da fachada austera, Acharya era um pai
carinhoso e um professor determinado, que se esforçou por transmitir os seus conhecimentos até ao
derradeiro fôlego. Mesmo dando uma última lição a partir do além.
– Obrigada – digo a AK, limpando os olhos. – Fico contente por me ter mostrado a carta.
– Não vim apenas para lhe mostrar a carta – responde ele. – Vim para lhe fazer a mesma oferta
que o meu irmão lhe teria feito em pessoa, se não tivesse sido brutalmente assassinado.
– Desculpe, não estou a compreender.
– Seja diretora-geral do Grupo CEA. Desta vez, não há teste nenhum. Já provou o seu valor.
Fico calada, com os olhos semicerrados, enquanto as memórias dos testes de Acharya me passam
pela cabeça como um filme acelerado.
– Que me diz de um salário de um crore por ano?
Um crore. São dez milhões de rupias. Pensar em tanto dinheiro deixa-me a garganta seca.
Depois de o choque inicial se dissipar, avalio a oferta friamente. Todos aqueles zeros seduziram-
me a mente; agora, tento ouvir o coração.
A resposta surge-me numa fração de segundo e sei que é a única decisão a tomar.
– Não quero – digo.
Ele franze a testa.
– Desculpe?
– Não quero ser diretora-geral do Grupo CEA. Não fui feita para o mundo impiedoso dos
negócios.
– Penso que está a subestimar-se – diz ele. – Pode dar muito à empresa.
– Estou a confiar na minha voz interior. Tal como o senhor Acharya queria que eu fizesse. Sei que
serei mais feliz como aspirante a escritora do que como magnata dos negócios.
– Não consigo fazê-la mudar de ideias?
– Não – respondo, com firmeza.
– Muito bem. Assim sendo, respeito a sua vontade, Sapna. – Suspira e levanta-se.

Enquanto vejo o industrial entrar no seu Bentley com motorista, não sinto qualquer sinal de
remorsos. Percebi que é preciso mais do que dinheiro para ser verdadeiramente feliz neste mundo.
O que me sustém é o amor e o apoio da minha família, a bondade dos meus amigos, a simpatia de
estranhos e os pequenos milagres com que Deus nos abençoa todos os dias.
Um deles tem lugar neste momento, perante os meus olhos. As nuvens negras abrem-se
subitamente e deixam passar o sol. Depois, surge um arco-íris magnífico, que pinta o céu com as
suas cores belas e mágicas, inundando-me a alma de sentimentos avassaladores de alegria e
deslumbramento. Não me resta qualquer dúvida. Sei quem sou e aquilo que quero ser.
Por vezes, é preciso uma prova de fogo para ultrapassarmos os nossos piores medos, para
descobrirmos aquilo de que somos realmente feitos. Passei sete testes, mas haverá mais. E estarei
pronta para eles, pois Acharya ensinou-me a mais importante de todas as lições.
Não acredito em lotarias: acredito em mim própria. A vida nem sempre nos dá aquilo que
desejamos, mas acaba por nos dar aquilo que merecemos.
AGRADECIMENTOS

Este livro nasceu a partir de uma imagem que me surgiu, espontaneamente, há vários anos: um
bilionário idoso em Hanuman Mandir, em Connaught Place, à procura de alguém.
A partir dessa semente, começou a crescer uma história, enquanto eu tentava perceber o como e o
porquê de ele ali estar. A viagem acabou por me levar a Sapna Sinha. Nos dezoito meses que
demorei a traçar o trajeto dela, Sapna tornou-se mais do que uma personagem; tornou-se uma voz
por mérito próprio, uma voz que aprendi a respeitar e a confiar.
Tive a sorte de poder pedir à minha família e amigos conselhos sobre o planeamento dos sete
testes. O meu pai ajudou-me com algumas das complexidades legais. Sheel Madhur e o doutor
Harjender Chaudhary deram-me opiniões criativas essenciais. O doutor Kushal Mital e o doutor
Edmond Ruitenberg contribuíram com os seus extensos conhecimentos médicos. Varuna Srivastava
foi a minha primeira leitora e a minha melhor apoiante.
Um dos versos citados pelo subcomissário Khan é de Markandey Singh, também conhecido por
Shayar Aadin.
A minha mulher, Aparna, partilhou generosamente a sua visão sobre o mundo das mulheres. Os
meus filhos, Aditya e Varun, foram ambos críticos ferozes e ouvintes preciosos.
O livro beneficiou também das sugestões feitas pelos meus agentes, Peter e Rosemarie Buckman.
Suzanne Baboneau, diretora editorial na Simon & Schuster UK, conquistou a minha gratidão e
respeito, por receber este romance com tanto entusiasmo. Sou abençoado por ter uma editora como
Clare Hey, cujas perceções astutas ajudaram a afinar o texto final.
Este livro foi escrito enquanto eu estava destacado em Osaka-Kobe. Aprendi muito com a
bondade, honestidade, generosidade e coragem das pessoas do Japão. Há nesse país uma ordem e
uma serenidade que, ao mesmo tempo, acalmam e excitam a mente criativa.
Por fim, um grande obrigado aos meus leitores, pela sua paciência, lealdade e encorajamento.
Esse é o combustível que me alimenta, como escritor.

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