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nam os fracos em geral com seus poderes migicos e misticos guilo que soba e que o poder secular e fundado na forge fisiea ‘© no monopélio da violéncia nfo pode efetivamente controlar (cE Lewis, 1963). Desse modo, se os inferiores estruturais tém sua forga de trabalho e seu poder de reivindicagao politica re- primidos e bastante limitados, eles podem falar com os espti« tose saber o futuro, obtendo aquela trangtilidade que 0s ricos « podetosos, por definiglo, ndo podem ter. E na umbanda € no camaval, eno, que 0s pobres, e especialmente as mulheres pobres (duplamente reprimidas), se relacionam com as entida- es espirituais (ou com o samba e o ritmo) e podem seduzir e ccurar sem distingdes de poder ou riqueza. A ideologia da cari- ‘dade, do amor, da remincia eda conciliaga &, pois, muito mais {que uma ideologia politica destinada & mistfieagdo. E um va- lor eritico do pedpri sistema hierarquizante, ajudando a erguer ‘com os tijolos da religlto mistica e da afligfoe o cimento forte do futebol do carnaval —e temos aqui atividades fundadas ro desempenho e no na substincia — verdadeiras muralhas contra a insatisfardo social, revestidas pelo conformismo de um sistema que fez da incoeréncia entre pensamento e ado uma de suas marcas registradas Esses sto alguns pontos-chave do dilema brasileiro e da especificagio da nossa sociedade que, como fiearé cada vez ‘mais claro, funciona tl e qual ofado de Chico Buarque e Ruy ‘Guerra, naqueta permanente perplexidade de quem esmaga © ‘rutaliza com as mios, enquanto 0 coragao chora € assim, to cheio de sentimento, faz suportar a tortura, IV SABE COM QUEM ESTA FALANDO? UM ENSAIO SOBRE A DISTINCAO ENTRE INDIViIDUO E PESSOA NO BRASIL ‘Até agora, estive estudando ocasides especiais da vida social do Brasil. Sendo assim, focalizei pelo menos trés formas basi- ‘cas de apresentagio (e representagdo) ritual da sociedade brasi- leira: 0 camaval, a Semana da Paria e as procissies religiosas de Igreja Calica Romane, Sabemos que todas essa formas de desfile,exibicdo e congragamento social sto extraordindrias © reveladoras de aspectos importantes de nossa ordem social AAlém disso, essas formas sdo sempre situadas na categoria ge ral de “festas", indicando-se os seus denominadores comuns ‘como eventos Com tragos semelhantes E realmente, tais momentos se caracterizam por serem coletivamente bem marcados, estarem ofieialmente vinculados 8 sociedade ea cultura brasileira através de alguns érgios do Estado, serem festividades e, como ta, ocasides de profunda ‘motivagio politico-socal, serem momentos especiais na vida social brasileira e assim definidos pelas populagdes que 0s re izam, Agora, porém. é minha intengio interpretar sociologica- ‘mente um outto ritual brasileiro que guarda com os até agora estudados uma relagdo certamente simétrica einversa. stou obviamente me referindo a0 rito do “sabe com quem ‘std falando?", que implica sempre uma separagdo radical e autoritiria de duas posigBes sociais real ou teoricamente dife- renciadas. Talvez por isso, essa maneira de dirigr-se a um ou- tro, t20 popular entre os brailetos, sea sistematicamente ex- cluida dos roteiros — sérios ou superficiais — que visam a defini os tragos essenciais de nosso carter como povo € na~ ‘glo. Osabe com quem esti falando?™, além de ndo ser mot Yo de orgulho para ninguém — dada a Carga considerada anti- ptica e pernéstica da expressto —, fica escondido de nossa imagem (e auto-imagem) como um’ modo indesejével de ser brasileiro, pois que revelador do nosso formalismo e da nossa ‘maneira velada (e até hipSerita) de demonstragio dos mais vio- Tentos preconceitos. De fato, como veremos a seguir, orto do “sabe com quem esti falando?” nos coloca muito mais do lado das escalas hierdrquicas e dos cavias — que sistematicamente {queremos esconder ou, 0 que dé no mesmo, achamos que niio temos a necessidade de mostrar, pois “cada qual deve saber 0 seu lugae”-— do que das associagdes espontineas, livres eamo- rosas dos futebsis, cervejas na praia, camavais e samba. todos os brasileiros sabem que a expresso € 0 reflexo ritualizado e quase sempre dramatico de uma separagio social {que nos coloea bem longe da figura do “malandro”e dos seus recursos de sobrevivencia social, Pois o “sabe com quem esta falando?” & a negagio do “jitinho”, da “cordialidade” e da “malandragem", esses tragos Sempre tomadios para defini. como fez Sérgio Buarque de Holanda (1973), 0 nosso modo de sere, ‘até mesmo, como sugeriv Antonio Candido (1970), para mar- ‘caro naseimento de nosse literatura. Pelo reconhecimento social extensivo © intensivo em to- das as camadas, clases esegmentos socias, em jomais, livros, historias populares, anedotirio e revists, a forma de interago balizada pelo “sabe com quem esti falando?” parece estar mes- mo implantada — a0 lado do carnaval, do jogo do bicho, do futebol e da malandragem — no nosso ¢oragao cultural. O que cla nao tem — e por isso mesmo esse ito € bisico para ser testudado em referencia aos capitulos anteriores — é uma data fixa e coletivamente demareada para seu uso ou aparecimento. “Temas, ent, dois tragos muito importantes no “sabe com quem esti falando?” Se vee gues aera sags ie rar, en ta acon Ser ees Rear pts ies Um deles éoaspecto escondido ou latente do uso (e apren- \dizado) da expresso, quase sempre vista como um recurso es- uso ou ilegitimo a disposigdo dos membros da sociedade bra- sileira. Em outras palavras, ensinamos © samba e 0 futebol, falamos da praiae da mulher brasileira, das nossas informalidades e aberturas (certamente indicadoras de nossa vocagao realmen- te democratica), mas jamais estampamos diante da crianga © {do estrangeiro 0 “sabe com quem estéfalando?”. Ao contério, chegamas até a proibir o seu uso como indesejavel, embora iss0 seja feito somente para usar a exeerivel formalidade na primeira situagio no dia seguinte. Consideramos a expresso ‘como parte do “mundo real", da “dura realidade da vida”, um recurso ensinado e ativado no mundo da rua, esse universo de ‘eruezas que separamos e defendemos — como jé vimos no Ca- itulo II — do nosso “lar", da nossa “morada”, da nossa “casa” ‘© mundo da rua usa o “sabe com quem esti falando?”, mas nds Aecidimos no integrar 0 rito no modo doce, gostoso © nao- rotinizado com que preferimos tomer consciéncia do nosso luniverso social. Desse modo, “sabe com quem est falando?” niio € levado a sério em nossas reflexdes (eruditas ou de senso ccomum), do mesmo modo que ainda nao deu letra de samba, Outro trago do “sabe com quem estéfalando?” € que a expresso remete @ uma vertenteindesejavel da cultura brasi- leira. Pois o rito autoritério indica sempre uma situagio conflitiva, € a sociedade brasileira parece avessa ao conflito Nao que com isso se elimine o confit. Av contério, como toda sociedade dependente, colonial e periférica, a nossa tem lum alto nivel de confitos ede crises. Mas entre a existéncia da crise © o seu reconhecimento existe um vasto caminho a ser Percorrido. Hi formagdes sociais que logo buscam enfrentar as crises, tomando-as como parte intrinseca de sua vida politica e social, enquanto que, em outras ordens sociais a crise eo con- slo inadmissiveis. Numa sociedade a crise indica algo a ser corrigido: noutra, representa o fim de uma era, sendo um sinal de catéstrofe. Tudo indica que, no Brasil, concebemos os Conflitos como prességios do fim do mundo, e como fraquezas =o que tora dificil admiti-los como parte de nossa historia, has Suns verses ofcaise necessriamente solidrias. ‘Tomamos, entlo, o partido de sempre prvilegiar nossas vertentes mais universlistas ¢ cosmopoitas, deixando de lado Uma visio mais percuciente e genuina dos nossos problemas. ‘Als, sera mais correla dizet — mesmo sob pena de estarmos realizando uma digressio longa e prematura— que as cama- das dominantes vencedoras sempre adotam a perspectiva da solidariedade, ao passo que os dissidentes e dominados assu- ‘mem sistematicamente a posigo de revelar 0 conflto, a crise © 8 violéncia do nosso sistema. O erro, e isso nos pareve eviden- te, 6 perder de vista as dialéticas da vida social e tomar uma das posigdes como cert, achando que somente ela representa uma visio correta da nossa realidade social 7 "Temos, assim, de adentear uma temética muito mais am- pla apaixonante, bisica mesmo, falando do nosso “sabe com ‘quem estéfalando?” e procurando interpretara expresso como tim rito de autoridade — um trago sério e revelador da nossa vida soci Se inibimos ou escondemos dos olhos do estrangeiro ou do inocente 0 “sabe com quem esti falando?”, deixando de Integrio em nossa visto corrente do que & 0 Brasil, € cert mente porgue oritorevela confit, ¢ somos avessos ds crises. [Esabemos que oconfito abertoe marcado pela epresentatividade de opinides é, sem dlivida alguma, um trago revelador de um iqualitarismo individualista que, entre nés, quase sempre se choca de modo violento com o esqueletohierarquizante de nossa sociedade Claro esté que o “sabe com quem esta falando?” denuncia em niveis cotidianos essa ajeriza & discordia ea cris, trago que ‘ejo como bésico num sistema social extremamente preocupa~ do com “cada qual no seu lugar, sto €, com hierarquia © com ‘8 autoridade. Nessa perspectiva, descobre-se por que 0 “sabe ‘com quem esté falando?” causa embarago. Realmente, num ‘mundo que tem de se mover obedecendo dis engrenagens de {uma hierarqia que deve ser vista como algo natural, os confli- tos tendem a ser tomados como irregularidades. O mundo tem de se movimentar em termos de uma harmonia absoluta,fruto ‘evidente de um sistema dominado pela totaidade (ef. Dumont, 1977) que conduz @ um pacto profundo entre fortes eTracos. E, Portanto, nesse sistema de dominagao em que 0 conflitoaberto evitado que encontramos, dentro mesmo da relago entre su- pero © infor, a idia de consideracto como valor funda mental esse quadro, 6 confito nfo pode se visto como um si toma de crise no sistema, mas como uma revolta que deve & precisa ser reprimida. Como erise, o esforgo seria para modi car toda a teia de relagdes implicadas na estrutura, mas, como ‘evolta, o conflito é pessoalmente ciunsctito, e assim resoh do. E como faz o Pedro Malasartes (estudado no Capitulo V) ‘que, diante do fazendeiro cruel e explorador, nfo acusao siste- ‘ma de dominagto, mas o fazendeiro. Entre a moditicagao do sistema ou do seu agente, Pedro Malasartes atua com aquela _generosidade tipica dos pobres:castiga 0 agente e mantém 0 sistema. Pois nfo € de outro modo que os informantes interpretam ‘0 “sabe com quem esti falando?” Nunea tomam a expresso ‘como a atualizagao de valores e principios estruturis de nossa sociedade, mas sempre como a manifestagBo de tagos pessoais indesejaveis. Neste sentido, o “sabe com quem esta falando’”™ setia como 0 racismo e o autoritarisme: algo que ocorre entre és por acaso, sendo dependente apenas de um “sistema im- plantado pelos grupos que detéi © poder, E evidente, como ‘estou procurando demonstrar nese liv, que a situagao ¢, infe- lizmente, muito mais complexa, ‘Mas permanece o fato de termos um sistema social com aspectos conhecidos, mas no reconhecidos pelos seus mem- bros. Na coleta de dados para este ensaio, pessoas de nivel u versitirio se faziam de mal-entendidas ¢ outras se recusaram ‘mesmo a responder a duas ou trés questdes elementares colo- «das no nivel do uso da expresso e da coleta de casos. Uma eonstante foi a dicotomia — signifcativa para o que estamos investigando aqui — entre, digamos. a gramatica do “sabe com ‘quem esté falando?™, isto ¢, as situagdes que permitem ou nto © uso da expressio, ¢ 0 nimera de casos em que o informante estava implicado, Getalmente, a situagio era @ de considerar indesejivel o uso da expresso, mas ser um praticante dela. Tal omo nos cass das pst soe poconcet rail 0s ceonsideram o preconceito indesejével, mas em situagOes con- creas especiicas todos se revelam rc ‘O que significa isso do ponto de vista sociolbgico? Sere- mos um povo contraditéri, incapaz de reconhecer noss0s ‘eis de irracionalidade? Ou uma sociedade que prvilegia al- ‘Buns dos seus aspectos¢ 0s oma como veiculos para a constr ‘fo de sue auto-representagdo? evidente que a resposta jaz na resoluglo do segundo problema, Mas entfo €necessirio descobrir quais 0s aspectos tomados sistematicamente como positivos, capazes de servir como tijolos ideol6gicos na constituigdo de uma identidade brasileira. Ora, o que o estudo do “sabe com quem est flan nan OSBEAIZ7OD te. uma descrigdo pormenorizada do mundo social brasileiro {que nenhum outro escrtor jamais replicou, seja socidlogo ou romancista. Uma descrigdo que viueom profundidade inigualavel as contradiges de uma sociedad com dois ideas: oda igual- dade eo da hierarquia, ‘Assim, diz o etndgrafo Lima Barreto falando de nos mes- “passando assim pelos preparatérios [Lima Barreto se referia aos exames de ingresso as escolas superiores. © ‘eserevia em 1917] 0s futuros diretores da Repiblica dos Estados Unidos de Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presungosos do que quando lé entram. Sto esses tais que berram: — Sou formado! Esti falando com tum homem formado!” conta, em seguida, que — Ia em Bruzundangs — ha todo um exéreito para “organizar o entusiasmo”. Algo assim ‘como uma corporagio especial destinada a homenageat as pes- 5088 importantes, © que certamente impediria, como impede também no Brasil, essas exaltadas invectivas de esmagamento social e separaglo violenta pelo “sabe com quem esta falan- do?” porque 86 seriam homenageados os grandes do local. "Assim, é um hibito em Bruzundanga associar-se a uma atisto- pondentes de individualism e igualitarismo) € dominante como ‘categoria e unidade filosofica, juriice, politica, social, econd- mica e religiosa — tem sido projetada para fora do sistema ‘ocidental, servindo para exprimir realidades em que so teria cexisténeia “empirica” (ou natural, sua existéncia como um fato social sendo dada apenas em situagdes especiais. ‘A sociologia tem primado pelo uso € abuso da noglo de individuo (¢ individualismo) no estudo de realidades nio-oci dentais, 0 que, nos Gltimos anos, tem sido relativizado sobretu- do pelo trabalho de Dumont. Por outro lado, a noglo de pessoa surgiu claramente com Marcel Mauss (1974), num artigo clas sico em que acompanha 8 trjetria da nogdo que recobriria a idgia de um personagem (nas sociedades tribais), endo pro- ‘ressivamente individualizada até chegar&idéia da pessoa como “ser psicoldgico”e altamente individualizado, ‘Nota-se perfeitamente a idéia de Mauss de que a pessoa ‘era de fato um ponto de encontro entre a nogdo de individuo psicolégico ¢ uma unidade social. Mas & importante observar {que, para ele, a nogio de pessoa desembocava na idéia de indi vvidvo. As mesmasoscilagdes surgem também na obra de A. R, Radcliffe-Brown (1974) e de outros antropdlogos ingleses, j {que a idéia de individuo tornou-se uma espécie de problema na ‘aniropologia social britinica, como demonstram Viveiros de Castro e Benzaquem de Araijo (1977). Agu, & meu interesse procurar mostrar, seguindo Dumont, que a nogao de individuo também social. Em seguida, desejo revelar que a nogdo de individuo pode ser posta em contraste com a iia de pessoa (também uma construgio social), que exprime outro aspecto 4a realidade humana. F,finalmente, espero demonstrar como as duas nogdes permitem introduzit na andlise socioldgiea 0 dinamismo necessirio para poder revela a dialtiea do univer: 0 socal com uma larga aplicago, sbretudo no caso do Brasil O primeiro ponto a ser estabelecido é que idea de ind duo compora ts eixos isicos. Num plano, mos a nogdo ‘empiricamente dada do individuo como reelidade eoncreta, natural, inevtive,independente das ideologias ou representa. 48es coletivase individvas. Sabemos, que nfo hi formagio Social humana sem o individuo. Mas entre reconhecer a exis- téncia empirica do individuo ¢ surpreendé-lo como unidade social relevane eativa numa formosa social, capaz de gerar (0s ideais concomitantes de individualism e iguaitarismo, & ‘um fato sociale histérico, bjetvamente dado, produto do de- senvolvimento de uma formagdo social especifica: a eiviliza- ‘lo ocidental, E36 nesta cvilizagto que a idéia de individuo foi apropriada idcologicamente,sendo construida a ideologia do individvo como centr efoco do univers socal, contendo dentro desi a sociedade, como fazem provas os n05808 mitos do Robinson Crusoe e dos super-homens das histrias em qu ‘rintos os caubsissoltrios edetetives particulares, © ponto aqui &o seguinte: embora toda a Sociedade hu- ‘mana seja constituida de individuos empiricamente (ou nati- ralmente) dados, nem toda a Sociedade tomou esse fato como Ponto central de sua elaboragloideoligica. Embora nfo reste ‘vida de que Mauss est certo quando diz que “éevidente(.) «ue jamais houve ser humano que nao tenhatdo o sentido, néo apenas do seu corpo, como também de sus individualidade a tum tempo espirtual corpora” (1974:211,¢igualmente cer= to— como diz ainda Mauss — que aida de pessoa, do “cu”. nasceu e “muito lentamentecresceu no euso de muitos séculos € através de muitas vicissitudes, a ponto de, ainda hoje, ser flutuante, delicada, preciosa e estar por ser elaborada” (1974:209), E essa elaboragio social que interessa pois a partir dela sdb construidas as ideologias. Assim. o sociol6gico, ou melhor, © social, & aquilo que & tomado de empiricamente dado (natu- tera) e conscientemente elaborado por alguma entidade, de ‘modo que ela possa tomar uma posigdo ou eriar uma pers- pectiva, A idéia de individuo recebeu duas elaboragdes distintas Numa delas, como acabamos de ver, tomow-se a sua vertente zante, dando-se énfase ao “eu individual”, repositério de sentimentos, emop8es, liberdade, espago inter- ‘no, capar portanto de pretender a liberdade ea jgualdade, sen- doa soliddo ¢ 0 amor dois de seus tragos bisicos (cf. Viveiros ide Castro e Benzaquem de Aragjo, 1977), ¢ 0 poder de optar e excolher, um dos seus direitos mais fundamentais. Nessa cons- trugdo — que corresponde & construgo oeidental — a parte €, de Fato, mais importante do que 0 todo. Ea nogdo geval. univer- salmenteaccita, a de que a sociedade deve estar a servigo do individuo, 0 contriro sendo uma injustga que importa corigit. ‘Outta vertente importante do individuo natural ou ‘empiricamente dado é a elaboragdo do seu polo social. Aqui vertente desenvolvida pela ideologia ndo ¢ mais a de igualdade paralela de todos, mas da complementaridade de cada um para formar uma totalidade que s8 pode see consttuida quando se tem todas as partes. Em vez de termos a sociedade contida no {ndividuo,temos 0 oposto0ndividuo contidoeimerso a socie- dade, Essa vertente que corresponde & nogdo de pessoa como centidade capaz de remeter ao todo, € mio mais & unidade, € ‘ainda como o elemento bisico por meio do qual se cristalizam relagaes essenciais e complementares do universo social. ‘Como se observa, as duas nogies so bisicas, e ambas sto largamente wilizadas em todas as sociedades humanas. Ocorre apenas que a nogto de individuo como unidade isolada e utocontida foi desenvolvida no Ocidente, a0 passo que nas sociedades holistias, hierarquizantes e tradicionais, a nogdo de pessoa é dominante. Mas —e esse ponto € importante — as ‘duas nogdes esto sempre presentes, e de fato existe uma dialétca entre elas. Eessa dialética que o estudo do "sabe com awl {quem esti falando?” permite surpreender e, assim, sugerir @ importincia tebriea das duas eategorias para'aandlise sociolé- ica geral ‘A nogio de pessoa pode entdo ser sumariamente caracte~ rizada como uma vertente coletiva da individualidade, uma ‘mascara colocada em cima do individuo ou entidade individua- lizada (linhagem, cla, familia, metade, clube, associagio ete.) ‘que desse modo se transforma em ser social. Quando a socie- dade atribui méscaras a elementos que deseja incorporar no seu bojo, 0 faz por meio de ritusis, penetrando por assim dizer essa coisa que deve ser convertida em algo socialmente signfi- eativo Iso equivale a tomar algo que antes era empiricamente ado (algo natural), como uma crianga, uma érvore, um pedago 4e peda, uma casa recém-construida para elaborar uma rela- ‘¢do essencial, ideologicamente marcada, E essa operagao que faz 0 elemento tomar-se pessoa ou ser social. Nas sociedades tribais, por exemplo, a transformagio da crianga em pessoa implica uma série de etapas rtualmente marcedas, envolvendo {quase sempre a agdofisiea: perfuragdo das orethas, dos labios (cf. Seeger, 1975), do septo nasal etc. E como se a totalidade estivesse penetrando 0 elemento individualizado, para, o mo- ‘mento mesmo dessa penetragdo, liquidar de vez.com seu espa {0 intemo, incorporando-o definitivamente & coletividade e & {otalidade. Assim, explica-se melhor, ereio, a razlo do estado liminar oy marginal (cf. Van Gennep, 1978: Turner, 1967) dos novigos. E que eles slo, primeiramente, individualizados, € ‘como nas formages sociais tribais o individu é em geral, ‘perigoso e por isso mesmo controlado, os novigos tém de set ‘expulsos da coletividade para depois serem nela incorporados, Jf agora como figuras complementares e como partes de uma {otalidade que tem com eles uma relagio essencial ou substantiva ‘Assim, em sociedades holisticas a marca tem de ser usada ‘pelo resto da vida — como ocorre com os judeus —, a socieda- de imprimindo-se realmente no individu. Nessas formages sociais, devo ainda notar, a mascara social no € algo que possa ser retirado, como uma vestimenta ou farda, mas uma cicatriz. ‘um corte. um furo, sinais de prerrogativas sociais que geral- ‘mente so marcadas por uma ideologia complementare funda- dana reciprocidade. Por outro Indo essasincorporagdes slo relativas. Os ind ‘vidwos so incorporados & sociedade, mas através de uma in- ‘corporagio numa linhagem, cla ou metade. Em outras pala- vas, entre o elemento ea totalidade no hi uma relagdo deta, pois um segmento intermediario faz essa mediaglo. Aqui, inexiste a noglo da sociedade como socieras, isto é, um grupo de personalidades individuais que de modo voluntirio (por um ‘contrato) se juntam para formar um grupo por meio de leis ‘a8 ¢ iguais para todos. O que existe de modo imediato é um Segmento social que estabelece as prerogativas de cada unida- de, Num sistema de casts, isso € claramente visivel, pois a ‘ada uma delas corresponde ceria taefa, cada uma complementa ‘our em termos de pureza ou impureza (ef. Dumont, 1965, 1970a, 19706). Pode-se agora ver com mais lareza que o lugar do indivi- ‘duo — em oposigio a0 lugar da pessoa —é nos sistemas onde nao existem segmentos, ou melhor, onde os grupos que ocu- pam o lugar dos segmentos tradicionais slo associagbes. De fato, 0 lugar do individuo 6, com j disse Mauss, numa forma de totalidade radicalmente diferente: na nagdo (cf. Mauss. [1920-2123] 1972, vol. Il) “De saida, no pode haver uma na- {elo sem que exisia cera integragao da sociedade, quer dizer, ue essa naglo deverd ter abolido toda segmentagao: cl dade, tribos, reinos e dominios feudais.” E, mais adiante: “Essa integragao é tal que, nas nagBes de um tipo naturalmente aca- bado, nfo existe, por assim dizer, intermeditio entre a nagao © © cidadio que desapareceu (..)em qualquer tipo de subgrupo; ‘que 0 poder enorme do individuo sobre a sociedade e da socie- dade sobre o individu — que se exerce sem freio ou engrena- ‘gem — tem algo de nfo regulamentado, e que © problema que se coloca é 0 da reconstrugdo dos subgrupos, sob uma forma diferente da do cli ou do governo local soberano e, em qual- {quer ca30, diferente de um seecionamento” (1972, vol. HL p. 290, ¢ também Dumont, 1970b: Capitulo 5). “Mauss vé com precisto @ concomitancia da nag8o, como uma nova forma de organizagio social e politica. o individuo, E ainda como, nesse modo de coletividade, os individuos atu- 1m socialmente de forma diversa, Ou seja: na nago, os indivi-

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