Professional Documents
Culture Documents
Peca (Trilogia Peca-Chave - Liv - Annia Elle
Peca (Trilogia Peca-Chave - Liv - Annia Elle
Se você gosta de ler ouvindo música, Peça tem uma playlist no Spotify
com 51 músicas. Cada uma foi escolhida para um capítulo, e estão na
ordem para serem ouvidas com eles.
Nickolay e Alana tem uma música feita especialmente para eles. A
música se chama Peça, e está na última posição da playlist.
Boa leitura!
ㅤ
Itália, 1995.
Quem eu chamava de mãe não havia me ensinado as melhores coisas,
mas amar o mar compensava todas as ruins que aprendi com ela. Os sons, a
água salgada tocando a pele, o cheiro único que trazia de volta as memórias
mais felizes. Minha parte mais mórbida sempre imaginou que, um dia, tudo
acabaria ali.
Então por que parecia tão errado que meu fim fosse junto das ondas?
Não imaginava que seria meu último dia quando me levantei da cama.
Talvez sejam poucas as pessoas com menos de trinta anos que saibam estar
vivendo seus últimos minutos. Eu não sabia, e demorou para meu cérebro
entender que, deitada na areia da praia, desperdiçava meus últimos
segundos de vida.
A água batia nos meus cabelos e molhava o vestido vermelho,
escolhido para aquela quinta-feira. A cor era quente, mas mesmo a
vestindo, fazia frio. Não era para fazer tanto frio em setembro, mas meu
corpo não conseguia parar de tremer, apesar de estar debaixo do sol italiano.
Podia ser desespero. Desespero, por ainda conseguir escutar seu choro.
Usei o resto da força que havia em mim para me prender ao pequeno
embrulho que segurava nos braços, ainda não entendendo que estava
respirando pela última vez o cheiro que tinha aprendido a amar em tão
pouco tempo. Deveria ter amado mais, sorrido mais, ficado mais tempo ao
seu lado.
Que clichê ridículo.
Deveria mesmo era ter ficado quieta, e me contentado com a vida que
levava. Não ter considerado nem mesmo sair de casa. Deveria ter
permanecido deitada na cama macia, ao invés de tentar puxar o ar que não
vinha, estirada na areia dura.
Porque ali na areia, eu não conseguia respirar fundo, eu não conseguia
respirar. Meu peito queimava, e me perguntava se era o mar que estava
salgando minha boca, antes doce. Se tudo ficava escuro pela minha
insistência em encarar o sol. Por que eu não desviava os olhos do sol? Meu
bebê estava chorando e eu precisava me levantar, mas tudo que conseguia
fazer era escutá-la reclamar quieta.
Eu riria, se conseguisse me mexer. Bárbara me avisou tanto. Ela me
avisou tantas vezes sobre esse tipo de amor. Um maior do que tudo, um
pelo qual você daria sua vida de bom grado. Um amor perigoso demais para
ser consumido. Nunca o tive com Vince, e, presa ao meu casamento, não
acreditava que fosse achar alguém para amar assim em vida.
Bastou tê-la uma vez para o sentimento se tornar real. Tão, tão
possível.
Após me casar com um dos homens mais perigosos da Sicília, me
acostumei a acreditar que quase tudo era possível. As impossibilidades
ficavam tão minúsculas, que sempre que a palavra vinha à cabeça, eu
duvidava da chance de justo aquela ser a exceção ao que já considera regra.
E era tão impossível o que acontecia agora. Talvez por isso que morrer
olhando para Katerina doesse tanto.
ㅤ
Por mais que soubesse que meu foco deveria ser outro, as cenas da
última noite se repetiam como um filme irritante na minha cabeça. Os
lábios vermelhos me engolindo, as mãos pequenas agarrando meus cabelos,
ela tremendo, rebolando no meu colo.
Cazzo, meu corpo respondia apenas com a lembrança daquele toque, e
dirigi desconfortáveis cinquenta e cinco minutos até meu endereço
brasileiro. Justo eu, que havia jurado nunca repetir o erro de querer alguém
mais de uma vez, me deixava desejar o corpo pequeno e os olhos cor de
mel, como se Alana fosse minha nova droga.
Parei o carro, entrando na mansão fria que chamava de casa e seguindo
para a mesa de jantar em silêncio. Engolindo a carne com legumes e um
macarrão mole demais, admiti que sentia falta de Barbara e seus almoços, a
comida daquele país conseguindo me deixar com saudades da Itália.
Fui para o escritório, e ao me sentar na cadeira e tirar o laptop da bolsa
de couro, tive meu raciocínio outra vez consumido por ela. O ocorrido
daquela manhã voltava, Alana fingindo que me via pela primeira vez,
mesmo esfregando na minha cara a marca que deixei no seu seio.
Era enervante. A regata molhada parecia estar ali apenas para me
provocar, e por um momento, considerei a garota ter sido paga por algum
dos meus ditos amigos. Poderia ter dedo de Lorenzo ali, o velho insistindo
que acabaria me apaixonando por uma das tantas fodas usadas para
esquecer a vida que vivia fora da cama.
A opção fazia sentido. A mulher que conheci na noite passada teria, no
mínimo, me mandado para o inferno pela nota de cem que esfreguei na sua
cara, e não ignorado eu insinuando que ela era uma puttana[14]. Alana estava
sóbria demais para não se lembrar do feito, eu com certeza mais alcoolizado
do que quem me arrastou numa linha reta perfeita até o banheiro.
Mas chegou sexta-feira, e Mantovanni jurava não ter nem mesmo
falado com ela. A garota, sem dúvida, não esperava que a foda da noite
fosse virar seu professor, e o esquecimento era um jeito discreto de me falar
que nada mais aconteceria entre nós.
Não poder tê-la só me fazia querer ainda mais os lábios vermelhos.
Típico, eu perseguindo o impossível desde meu sexto aniversário.
Deveria me preocupar com Emília Ferretti, e não ficar obcecado pela
coincidência que havia sido encontrar quem fugira de mim numa cidade do
tamanho de São Paulo. Forçava-me a lembrar que ela era minha aluna, e por
mais que minha vida não fosse certa, gostaria de, ao menos ali, me manter
correto.
Gostaria ao menos de saber se estava limpa, repeti mais uma vez em
pensamento. A última vez que tinha esquecido da camisinha mal tinha
dezessete, e Alana não se mostrava colaborativa em conversar sobre a noite
de quarta. Eu me convencia ser essa a razão de estar mandando seu nome
para Souza, pedindo para o investigador levantar sua ficha. Bufei, sabendo
que não deveria ordenar prioridade para aquilo como havia feito.
Empurrei para longe a memória de sua língua passando ao meu redor,
voltando minha atenção para a caixa de entrada, encontrando mais e-mails
novos do que gostaria. Passaria o fim de semana revisando materiais e
corrigindo trabalhos, e tal coisa não me animava. Por que havia mesmo
aceitado o emprego de professor?
Ah, o fingimento de uma vida normal que Vincenzo Matarazzo tanto
encorajava ultimamente. Respirei fundo, encostando as costas na cadeira,
tentando não pensar que quem eu chamava de chefe andava incentivando as
coisas mais absurdas. Precisava achar o homem que havia sido corajoso o
suficiente para vender drogas em um dos nossos clubes, ao invés de brincar
de ser normal. Deveria me concentrar em descobrir mais informações sobre
o motivo que nos fazia travar uma guerra com os espanhóis, e não deixar
meus pensamentos voltarem outra e outra vez para framboesas. Framboesas
eram difíceis de se achar naquele país, e aquela era a nona desculpa que
inventava para me deixar pensar nela.
O resto da sexta foi tão produtivo quanto toda a quinta-feira, o fim de
semana seguindo o mesmo caminho. Era ridículo ver os assuntos pendentes
se acumulando enquanto tentava distrair a mente do que me consumia, eu
não querendo estar, mas me forçando a ir para um dos clubes que cuidava.
A danceteria se chamava Inferno, e eu estava no próprio ao reconhecer
o corpo magro que dançava junto de outras três garotas. Mesmo usando um
vestido preto e de cabelos presos, era impossível não identificar os lábios
finos, os olhos únicos insistindo em se manterem no rapaz que eu queria
expulsar do planeta.
Permanecer onde estava foi mais difícil do que forçar interesse na loira
que tocava meu braço, a música estourando nas caixas de som não me
deixando escutar a conversa unilateral que ela insistia em manter. O garoto
que gostaria de dar um fim não deveria ser muito mais alto do que Alana, e
meu cérebro repetir esse nome todas as horas dos meus dias era um grande
tormento. Preferia tê-la mantido como uma desconhecida, ainda mais
quando precisei fechar os olhos e imaginá-la para não me afastar dos lábios
no meu pescoço.
— O que foi? — Meus músculos tencionaram, a respiração quente
contra minha pele causando desconforto.
— Não gosto quando deixam marcas — respondi sem paciência, só
voltando a relaxar ao me afastar da boca insistente, passando os dedos pelos
cabelos ao ver uma mão que não era a minha soltando os castanhos dela.
— Então a última que passou por aqui não deve ter agradado — a voz
fina comentou, provavelmente achando o vergão deixado por Alana, e até
mesmo quem deveria me fazer esquecer conseguia me lembrar do meu
problema.
Forçando os olhos para longe de quem eu queria em cima de mim,
amaldiçoei o que ainda tinha no colo, por mais que fosse apenas sua
companhia que estivesse me impedindo de começar uma briga. Lorenzo
nunca pararia com os sermões caso eu não mantivesse meu bom
comportamento, e isso incluía tiros desnecessários.
Só quando o vi beijar a boca que considerava minha foi que levantei.
Precisava sair dali, e perguntei para quem eu nem mesmo sabia o nome se
gostaria de terminar a noite em outro lugar. O sorriso que recebi foi um sim,
e a língua passando pelos lábios deveria ter me feito querê-la, ao invés de
me fazer odiar a cor do batom que via. Barbara chamaria aquilo de bruxaria,
eu ansiando por conselhos da governanta italiana, ao invés dos que viriam
de Mantovanni.
Agradeci a pressa da mulher, as mãos hábeis nos livrando das roupas, a
loira me empurrando para a cama antes de parar no meio das minhas
pernas. As unhas esmaltadas arranhavam de leve minhas coxas, eu
fechando os olhos pela primeira vez ao receber um boquete. Eram as írises
cor de mel que imaginava me olhando de baixo, os lábios vermelhos ainda
muito vivos em minha memória.
E ali estava, novamente, meu problema. Precisava transar, precisava
foder até tirar da cabeça qualquer lembrança da pele macia e do cheiro de
framboesa, e até isso, Alana impedia. Não havia mais uma válvula de
escape que funcionasse, café e nicotina sendo muito fracos, a única que
desejava querendo distância. Era esperto da parte dela se manter longe, eu
sabendo que me apegar a uma só seria mais uma péssima escolha, por mais
que fosse a única vontade da minha parte irracional.
Queria sua boca me chupando, e forcei meus olhos a encararem quem
o fazia. Achei a camisinha no bolso traseiro da calça, tentando inutilmente
deixar meu interesse no momento de agora. Quem abria as pernas para mim
passava longe de ter um corpo normal, então por que cazzo eu precisava
focar em outra para continuar duro?
A mulher que eu beijava deixava um gosto amargo na boca, tão
diferente do doce que buscava sentir novamente. Fugi dos lábios grossos,
suas mãos me puxando de um jeito errado apenas por não ser o dela. Foi
necessário desviar dos olhos verdes e lembrar de todos os detalhes que
queria esquecer para conseguir acabar com a transa mais mecânica da
minha vida.
De olhos fechados, era possível ter o aroma de framboesa, os lábios da
cor da fruta me engolindo, as unhas curtas arranhando minhas tatuagens.
Alana nunca nem ao menos o falara, mas tê-la gemendo meu nome em
pensamento bastou, e mordi o lábio para não deixar o dela sair quando
gozei.
Deixei claro o quanto queria companhia trancando a porta do banheiro
do hotel, lembrando mais uma vez do que havíamos feito na quarta ao jogar
a camisinha usada no lixo. Já debaixo do chuveiro, amaldiçoava não ter
insistido em usar uma com ela, um filho na vida que levava sendo a última
coisa que precisava acontecer.
Ao menos ela sabia onde me encontrar, viesse um positivo.
Eu não deveria querer um positivo.
Merda.
Nunca conseguiria tirá-la de mim, vendo-a uma vez a cada sete dias.
Até mais, se a garota continuasse insistindo em frequentar os mesmos
lugares que eu. Sacudi a cabeça, deixando a água correr nas minhas costas,
meus músculos ainda tensos me provando o quanto sexo sem ela seria inútil
para relaxar.
Alana era fogo puro, e mesmo embaixo da água gelada, ainda sentia
seu calor me queimando. Eu queria chamá-la de minha, por mais não
recíproca que fosse a vontade. Provavelmente era aquele o motivo do meu
desejo anormal, eu não acostumado a ouvir negativas femininas. Seu não
iria me deixar louco, e sabia que não podia me dar ao luxo da loucura
novamente.
Estava acostumado a resolver situações muito mais complexas, e ainda
assim, não fazia ideia de como lidar com aquela. Repetia outra e outra vez
que era a dificuldade que me deixava queimando apenas com seu
pensamento, a negação, Alana não querendo minhas mãos em sua pele. A
pele era tão macia quanto sua boca, e eu lembrava da sua suavidade
enquanto gemia seu nome no banheiro.
Isso era ridículo. Tinha uma modelo me esperando na cama, e eu
escolhi bater uma punheta debaixo do chuveiro, pensando numa mulher
completamente fora do meu padrão. Era difícil admitir, e impossível adiar
mais a única conclusão coerente que minha mente me dava: eu estava
fodido.
— Carlos disse que tem um professor novo que não sai do seu pé —
escutei de Leonardo, nós três parados perto de uma das paredes. —
Verdade? — O moreno me olhou curioso, e eu imaginava o que Carlos
havia contado para o namorado antes daquela tarde.
Se Carlos saísse mais, eu viveria colada nele. Os dois garotos que
dividiam aquela festa comigo eram as companhias perfeitas, eu estando
presa numa conversa que espantava meu nervosismo desde que pedimos um
Uber. Ali não eram feitas perguntas desconfortáveis, e eu conseguia manter
minha calma e até me divertir com uma água na mão.
— Você disse, é? — Virei para meu amigo, antes de voltar a atenção
para seu namorado. — É verdade — confessei com um meio sorriso,
fazendo Leo levantar as sobrancelhas antes de me dar um igual.
— Quer aprender alguma coisa em italiano pra falar pra ele? — Sim, a
companhia dos dois era a distração que eu precisava.
— O que você tem pra me ensinar? — perguntei, verdadeiramente
interessada em ter algo para pronunciar na língua de quem me mostrou
saber fazer maravilhas com a sua.
Leonardo estava para abrir a boca quando o namorado o fez primeiro,
cutucando meu braço.
— Então Pipoca, eu acredito no que você disse sobre não ter transado
com o objeto de desejo de toda a turma — Carlos começou, e vi a atenção
dos dois ir para um homem que me entregava um copo.
Peguei a bebida, largando a garrafa d’água vazia na lixeira, e meus
olhos seguiram o bartender até ele retornar para trás da bancada de vidro.
Encostado nela, de braços cruzados e me olhando sem um traço de
felicidade, estava o tópico da nossa conversa.
— Mas mata minha curiosidade. Me explica por que ele tá aqui te
pagando um drink.
ㅤ
Decidi parar de nos torturar após passar uma hora evitando olhá-la
enquanto discorria sobre exigências de mercado. O desinteresse com a aula
naquela quinta era palpável, minha voz tendo colocado pelo menos metade
da sala em estado catatônico. Terminei a última frase com alívio, voltando
para a cadeira atrás da mesa que havia usado de encosto.
Os olhos de Alana não eram os únicos em mim. O amigo, sua
companhia no último sábado, me encarava com uma curiosidade não muito
gentil, até eu lhe devolver um olhar pior. Sentir minha expressão suavizar
ao achar meu rosto favorito gritava problema.
— Senhorita Martins, se puder ficar alguns minutos. — Ainda assim,
ignorei todos os protestos em minha mente ao fazer o pedido.
Alana esperou a sala ficar vazia antes de se levantar.
— Senhorita Martins? — ela perguntou com deboche ao parar na
minha frente, o vestido de verão a fazendo aparentar muito mais seus vinte
e três anos do que as roupas que usava durante suas noites. — Voltamos
para o sobrenome, professor DeLucca?
Os hematomas da última sexta já não eram mais vistos no braço, mas o
rosto com mais maquiagem do que me acostumei a olhar era uma
lembrança do que estava sendo escondido.
— Seria apropriado te chamar de dolcezza na frente de toda a turma?
— retruquei ao me levantar, expondo nossa diferença de altura.
— Eu ainda estou tentando descobrir se é apropriado você ter um
apelido pra mim.
Não era, mas em vinte e oito anos de vida, era a primeira vez que não
queria abrir mão de algo, o nome carinhoso e o cheiro de framboesa não
tendo preço. Alana, ao invés de recuar, se aproximou mais ao sentir meus
dedos passarem pela pele do seu ombro. Ela me fez ter outra vez noção do
seu perigo ao me fazer perder as palavras com apenas um toque, me
oferecendo seus lábios enquanto acariciava a mesma mão que beijou na
noite de sábado.
— Descubra tomando um café comigo.
Tinha felicidade, uma coisa tão rara nos meus últimos anos, naqueles
olhos.
— Eu gosto de café.
— Eu gosto quando eles não acabam na minha cara.
A risada que ela me deu foi sua primeira verdadeira.
— Isso só depende de você.
— Costuma sempre chamar suas alunas pra atividades
extracurriculares, Nickolay? — A pergunta veio quando me sentei com
nossas bebidas, o croissant de chocolate posto em sua frente fazendo-a ver
que eu havia prestado mais atenção do que Alana esperava. — Eu não pedi
um doce.
— Pediu com seus olhos — respondi, tomando o primeiro gole do
expresso duplo. — E não, essa é a primeira vez que chamo uma aluna para
sair. Assim como esse é meu primeiro emprego como professor.
— Mentira! — E me perguntei sobre qual dos fatos ela se referia. — É
sério? Você é bom demais falando pra essa ser sua primeira vez.
Sorrir com ela era natural demais.
— Eu não vou mentir para ti. — Falar, também.
Observei-a dar a primeira mordida no pão, satisfeito ao ver a expressão
em seu rosto mudar de uma descrente para uma prazerosa. Era o melhor
croissant de toda São Paulo, e eu pensava em como conseguiria manter a
promessa que acabara de fazer.
— Como você veio parar em São Paulo, Nickolay DeLucca? — Já
considerava quebrá-la em menos de um minuto.
— Há dois anos, eu... — Eu quase encontrei minha morte. Com
certeza, aquele não era um bom começo. — Precisei me mudar para o
Brasil para resolver alguns assuntos de família.
— Você tem família aqui? — Sacudi a cabeça, o pão doce apetitoso
demais naquela boca.
— No. Apenas negócios.
— E você dá aulas — ela disse, eu não conseguindo mais desviar dos
lábios sujos de chocolate. — Por prazer, certo? Você não parece precisar de
um salário. — Fiz que sim, pela primeira vez feliz com o emprego que
Matarazzo me sugeriu assumir.
— Ensinar é um dos meus três prazeres.
— Quais são os outros dois? — Claro que ela perguntaria.
— Temo pela minha segurança se revelar todos — respondi, deixando
a mão tocar na que ela descansava sobre a mesa, entrelaçando meus dedos
nos de unhas roídas. Ela deixar era como uma vitória que não deveria
querer. — Além de ensinar, eu gosto de beber. Às vezes café, às vezes
whisky.
— Vinho também? — Tinha curiosidade nos olhos mel. — Eu não sou
a maior fã de whisky.
— Vinho também, dolcezza. — Vê-la sorrir estava rapidamente se
tornando o quarto. Olhar para aqueles lábios assim era tão fácil quanto
querer me perder em sua boca.
Ela tomou um gole do café com leite antes de resolver seguir com o
que estava considerando falar. Se fosse continuar com aquele absurdo,
deveria me acostumar que Alana era tão fácil quanto a vida que tinha
escolhido.
— Posso estar errada, mas você não tem cara de um herdeiro que cuida
dos negócios da família, Nickolay. — Alana não poderia estar mais
equivocada: eu tinha o rosto e corpo de alguém que resolvia os assuntos da
Famiglia. Mas ela não precisava saber, não agora. — Você não parece um
homem qualquer, não bate como um homem qualquer. Você não é um, estou
certa?
— Também está longe de ser uma qualquer. — Ela pareceu surpresa.
— Estou errado em afirmar que passa longe da normalidade, Alana?
Foi ali sentado que notei pela primeira vez. Matarazzo se orgulhava em
dizer que seu filho tinha o dom de descobrir mentiras, mas as inverdades
estavam nos pequenos detalhes. Alana não precisou abrir a boca para me
dar todos os que precisava, a mordida no lábio inferior denunciando-a. Ela
sempre o fazia quando nervosa, mas havia um desconforto novo em seu
rosto doce.
Havia dor nos seus olhos, e eu quis enchê-la com toda a normalidade
que era capaz de oferecer. Foi embora tão rápido quanto apareceu, mas
estava lá. Algo que ela queria compartilhar tanto quanto eu gostaria de
discorrer sobre meus piores trabalhos, ou os últimos anos vividos na Itália.
— Não me olhe assim. — Ela franziu o cenho, incomodada. — É
intimidante.
— Digo o mesmo. — E outra vez a risada, Alana passando a mão
pelos cabelos longos, do jeito que esperei que tivesse feito na nossa
primeira noite. Não me privei de sorrir, contente ao ver seu corpo flertando
comigo. — Muito intimidante, dolcezza.
— Eu não intimido! — A frase não estava mais longe da verdade.
— O normal me intimida, Alana. E eu vejo o normal em ti: uma altura
mediana, um nome simples, café com açúcar. — Ela era a normalidade que
eu busquei por grande parte de minha vida. Tê-la nas mãos justo agora não
poderia ser mais intimidante.
— Italiano... — Era o apelido que ela tinha resolvido me dar desde
nossa primeira vez. — Se esse é seu jeito de me fazer sentir especial, a
gente tem que melhorar essa sua habilidade aí. — Ela usar nós me fazia
desejar ainda mais a realidade que já havia tomado conta da minha
imaginação.
— Eu não quero te fazer especial, Alana. Nunca precisei te fazer,
simplesmente é. — Minha confissão surpreendeu a nós dois, e agarrei com
mais força a mão pequena antes que ela tentasse se afastar. — O que vejo
em ti é normal. Fala comigo como se eu fosse um qualquer. Me enfrenta
sem medo, joga café na minha cara. Todos podem te reconhecer como uma
mulher comum, mas é extraordinária para mim. É tão irritante te ver desse
jeito.
E os olhos outra vez desviavam dos meus, Alana se interessando mais
pelo último pedaço do croissant. A simples sensação de pele contra pele me
deixava inquieto, minha boca pedindo para sentir o gosto de qualquer parte
dela.
— Por que, Alana? — perguntei, levando sua palma até meus lábios.
Por um segundo fechei os olhos, seu cheiro misturado com o de chocolate
deixando-a quase impossível de resistir. — Me ajude a descobrir o que eu
vejo, porque não consigo entender. Isso vai parar se conseguir o que quero?
Era engraçado me ver nela. Tinha a certeza de que meu rosto carregava
a mesma surpresa que reconhecia nos traços delicados, assim como sabia
que a próxima pergunta só era feita pela necessidade de escutar o que eu já
tinha deixado claro em outras palavras.
— O que você quer?
Respirei fundo, me esquecendo de todos os motivos que tinha para
inventar mentiras e mandá-la embora. Pela primeira vez em muito tempo,
eu estava sendo egoísta. Alana me encarava sabendo da resposta que viria,
eu sabendo que se a falasse, estaria assinando minha desistência em mandá-
la embora.
E ali estava eu, outra vez me contando mentiras. Mandá-la embora
nunca foi uma opção.
— Você.
ㅤ
Frustração era uma boa definição para meu estado quando passei pela
porta. Depois de uma hora de pura enrolação, não consegui remédio
nenhum, mas sim uma orientação de 2 sessões semanais por um mês para
então negociar qualquer medicação. Terapeuta filha da mãe, e eu acabaria
comprando uma receita.
O telefone tocou enquanto fazia minha própria cura para um sono sem
sonhos, o nome na tela fazendo meu coração se confortar mais do que o
primeiro gole de vodca.
— Mi stai facendo morire[49], Alana. — A voz de Nickolay era uma
lamentação linda, o barulho de ondas estourando do outro lado da linha.
— Português, Nico. — O lembrei, dando risada, ainda me
surpreendendo como era assustadoramente fácil fazer isso com ele.
— Madonna mia[50], vai me matar se me enviar outra foto parecida!
Quinta feira está distante demais — ele reclamou, sua voz contrastando
com outra usando a língua que eu não entendia. — Uma foto não é o
suficiente. Seu corpo está muito longe da minha cama.
— Tá na hora de voltar pra eu apagar esse seu fogo, italiano —
brinquei, guardando o que havia comprado além de álcool para encher os
armários da cozinha. Um dia de terapia, e já estava enchendo a despensa.
Talvez devesse me orgulhar disso.
Com certeza me orgulhava da foto mandada.
— Eu não quero que apague meu fogo — foi a resposta que veio, a
voz rouca me causando um arrepio. — Quero que queime comigo. —
Italiano filho da mãe, pensei ao desejá-lo muito mais perto do que
estávamos agora. — Preciso de ti, Alana. De preferência, vestindo apenas o
que me mandou.
Muito filho da mãe. Respirei fundo, fechando os olhos e tentando tirar
da cabeça a imagem dele no meu chuveiro.
— Falar isso não está me ajudando. — Ele riu.
Chuveiro que eu precisaria usar, Nickolay fazendo meu verão durar
para sempre.
— Não vou conseguir parar de olhar para sua foto. — E eu, no caso,
gostaria de uma dele. — Não deveria, mas te quero aqui.
— Nickolay...
— Só te ouvir falando meu nome basta para me tirar o sono. — Se
fotos como aquela me rendessem ligações como essa, mandaria uma todos
os dias. — È così bello sentirti gemere il mio nome[51], poderia passar a vida
ouvindo isso. O que está fazendo comigo, Alana?
Conseguia imaginá-lo passando a mão pelos cabelos, o meio sorriso
que eu aprendi a desejar em seus lábios.
— Eu acho que estou começando a te entender. — disse, antes de
escutar o nome dele ser chamado por uma voz masculina. — Tem alguém
com você?
— Lorenzo. — Ouvi um suspiro. — Melhor eu ir. Sonhe comigo,
dolcezza. — Eu queria. — Buonasera.
Só até quinta-feira. Eu conseguia ignorar as batidas até quinta.
E eu ignorei, com a ajuda de uma garrafa inteira de Absolut. Nem
mesmo me atrasei durante a semana, uma coisa rara de se ver, e muito bem
apreciada por Mila.
Esperava achá-lo antes do começo da sua aula, mas não havia sinal de
Nickolay na faculdade. Considerei ir até a sala dos professores, desistindo
no último minuto. Não estava tão desesperada, me enganei, esperando o
elevador para voltar ao andar no qual deveria estar.
Já fazia um tempo que não me sentia uma trouxa — mais de oito
meses. Quando as portas do elevador se abriram, me mostrando uma mulher
conhecida agarrada no italiano que me pediu para esperá-lo, eu me senti a
maior trouxa do planeta.
Ela tocava seu peito e beijava a boca que era minha, e eu não estava
disposta a querer algo que tivesse que dividir. Aquela paz precisava ser só
minha.
Nickolay era meu. Ou ao menos, era o que o homem tinha me feito
acreditar.
Mas pessoas não eram coisas para tomarmos posse, e eu nunca deveria
ter dado qualquer poder para o italiano que esmigalhava o resto que tinha de
coração. Fingir que estava tudo bem enquanto me virava e ia embora dali
foi impossível, a dor de vê-lo com outra nos braços continuando no meu
peito ao descer correndo as escadas.
Eu era tão idiota.
ㅤ
Não colocava os pés naquela praia fazia anos, a última vez sendo
quando me despedi da minha segunda família. Perder Giovanna e Nicolas
doeu tanto quanto perder meus pais, e anos atrás, ainda ajoelhado na areia,
jurava me esforçar para nunca mais sentir nenhuma dor parecida.
Consegui com maestria até Alana.
Bastou uma noite para esquecer a promessa que havia feito. Uma
segunda para ficar totalmente confortável ao lado da mulher que me fazia
sorrir com as coisas mais simples. Eu, que nunca mais queria qualquer
família, me deixava imaginar como poderia ser uma com ela.
E era lindo de se fantasiar, e mais perigoso do que tudo que precisava
enfrentar no dia a dia. Maldito seja o momento que escolhi tê-la, e bendito
seja o segundo que ela fez o mesmo.
Descobrir a foto que ela havia mandado foi a única coisa boa da terça,
as memórias e trabalhos feitos desde o final da segunda-feira se tornando
quase leves. Ela me atender amenizou a dor dos pontos que carregava no
abdômen, me fazendo esquecer por um momento o quão errado era querer
trazê-la para minha vida.
Porque era muito errado, e as tatuagens que eu carregava eram um
constante lembrete de como não deveria incluir alguém normal em nenhum
plano. Matarazzo não estava feliz, o rosto uma eterna carranca,
principalmente depois de eu chegar sangrando e atrasado na mesa de jantar.
Ele não parecia mais querer fazer vista grossa para minhas merdas, e
Mantovanni tinha razão em me mandar calar a boca e ouvi-lo quieto.
Claro que não o fiz, e disse ser absurdo sequer insinuar um casamento
entre quem ele insistia em chamar de filho e a mulher que ainda estava de
luto pelo marido. Sabia que Ferreti estava tão de luto quanto eu era filho do
velho, mas o mau humor de Vincenzo apenas aumentou com minha
negação, então o deixei continuar insinuando que era sua família. Era para
aumentá-la com Emília que ele tinha me chamado para a Itália, e descobrir
o plano me causava enjoo.
Lorenzo não foi nem um pouco gentil ao derramar álcool sobre meu
corte, nem ao passar a agulha e fio pela minha pele enquanto me censurava.
Reclamava de como eu testava demais minha sorte, nunca confiando nele
quando mandava eu ficar de boca fechada. Poderia me chamar de pirralho
inconsequente o quanto quisesse, mas não havia nada que pudesse fazer eu
querer me casar com alguém que não fosse Alana.
Processar o que tinha pensado foi como um banho de água fria. O
homem ainda dava seu sermão, terminando os últimos pontos, mas minha
atenção já não estava mais com ele. Se percebeu minha mão trêmula,
Mantovanni fez um bom trabalho a ignorando.
Ouvir a voz dela depois de um dia de inferno era um incentivo para
aguentar o resto das horas naquele país, e só pensei novamente o quanto
estava fodido quando finalizei a ligação.
— Como está Alana? — Lorenzo perguntou assim que desliguei o
telefone, o sorriso irritante de quem sabia demais nos lábios. — Precisa
parar de se martirizar desse jeito por algo que te faz bem.
Queria socá-lo, a vontade presente demais desde que desembarquei.
— Me diz isso depois de ouvir o que seu chefe compartilhou com toda
a mesa? — Não tinha coragem de continuar encarando os olhos que
mostravam cuidado demais, preferindo a água fria do mar italiano. — Alana
pode me fazer bem, mas acha que posso dar o mesmo para ela? Acha que é
bom essa garota criar raízes em mim, é bom eu criar raízes em alguém, com
Matarazzo querendo me casar para manter alianças?
Larguei o corpo sentado na areia, deixando a água salgada alcançar
meus pés.
— E o pior é que, depois de hoje, ele já desconfia. Acha que o homem
vai reagir como, quando me achar feliz com uma mulher nova, ao invés de
viver de luto pela filha morta? — confessei o que tomou conta da minha
mente durante toda a viagem de ida.
Vincenzo se enxergava demais em mim. Dois homens que haviam
perdido o que consideravam o amor da sua vida, cada um de seu jeito.
Durante os últimos quatro anos, tudo que ele encontrava quando olhava
para mim era escuridão.
Ele conseguiu ver luz quando respondi que Emília não me interessava
como mulher. Talvez tenha começado a enxergar ao reconhecer uma
cozinha que não era a da mansão, ao escutar a voz macia que chamava meu
apelido.
— Me tira o sono pensar em sequer falar o nome de Alana para ele,
por mais que não haja saída para isso. — Não haveria, se continuasse
deixando-a fazer parte do meu tempo livre.
A mão de Lorenzo apertando meu ombro era um conforto que não
merecia.
— Vincenzo não quer você lamentando Giovanna para sempre.
— Ele quer sim. Ele me quer de luto, não tem como negar isso com o
Don querendo me casar justo com Emília. — O mais velho fez o favor de,
pelo menos agora, escolher o silêncio. — Graças às últimas descobertas,
Matarazzo está puto, e parece estar se esforçando para me deixar com o
mesmo humor. Não me sinto nem perto de resolver o caso depois do que
descobrimos de Barbosa. Ele passou décadas achando que foram os
espanhóis os responsáveis pela morte de Catarina, e agora sabe que
vingança não tinha relação com o assassinato da esposa.
Respirei o cheiro de sal, a lua cheia iluminando a praia escura. Era tão
egoísta eu querer Alana ali para me confortar com seu perfume. Tão egoísta
querer alguém que viveria presa a mim e a toda a morte que eu trazia.
— Eu não sei quem matou Catarina, não sei onde a filha dela e de
Vincenzo está, sequer sei se continua viva! E só tenho um mundo inteiro
para procurar! — Passei a mão pelos cabelos antes de acender o último
cigarro do maço, e era irritante como a nicotina não fazia um bom serviço
nos últimos dias. — E quando descobrirmos que a garota não está no
Brasil? Ou que ela está morta? Me sinto um monstro maior do que já sou,
mas tem dias que torço para a última possibilidade, porque...
Eu não aguentava mais.
E Lorenzo via que eu estava no meu limite, os olhos claros tentando
me passar a tranquilidade que só tinha conseguido achar nos dela. Era por
isso que ele incentivava tanto o relacionamento que eu não deveria ter?
Achava que manter alguém em minha vida seria uma âncora para minha
sanidade?
Porque parecia estar acontecendo o contrário, eu acordando da minha
dormência desde a primeira noite dividida com ela. Era muito mais fácil
trabalhar para aquele velho estando dormente.
— Viajamos amanhã cedo. Tente descansar. — Mantovanni se
levantou, me deixando sozinho na praia.
Esperava passar o resto da noite assim, mas já havia aprendido que as
coisas nunca aconteciam exatamente como planejava. A batida na porta do
quarto veio depois da meia noite, e quase não abri os olhos ao lembrar do
voo que teria que pegar antes das dez.
Seja lá quem estivesse batendo, era insistente. E eu achando que minha
melhor escolha tinha sido escolher um hotel, lamentei ao me levantar da
cama.
— Oi, Nico.
— Emília? — Era a última pessoa que esperava estar do outro lado da
porta. — Achei que passaria o resto de seu tempo aqui com sua família. O
que está fazendo num hotel?
— Não aguentava mais os olhares de pena e peguei um quarto aqui. —
A mão fina parou no meu peito, as unhas vermelhas impecáveis me fazendo
desejar as curtas e imperfeitas de Alana. — Esperava não ter que usá-lo.
Minha expressão contou a resposta antes das palavras virem, a mão se
afastando, quem eu agora considerava apenas uma conhecida me dando um
sorriso amargo.
— Eu não posso, Emília.
Mesmo assim ela passou pela porta, a visão da mulher em uma
camisola que revelava mais do que estava disposto a olhar trazendo apenas
desconforto. Alana poderia conseguir se livrar de qualquer sentimento, mas
em mim, a maldita já estava mais funda do que achei que a deixaria chegar.
— Você nunca pode. Quem está salvando agora? — ela perguntou, nos
lembrando de todo o ocorrido de anos atrás. Não tinha felicidade no sorriso
que dei, meu cérebro respondendo que deixar a mulher que queria perto de
mim era o oposto de salvá-la. — É engraçado como nosso tempo nunca se
encontra, Nico. Achei que fossemos finalmente ter uma chance quando
recebi a ligação de Vincenzo. Não imaginava que sua resposta fosse
encurtar nossa estadia na Itália. Consigo te fazer mudar de ideia?
Ignorei o detalhe que ela escolheu me revelar, minha preocupação em
relação à negativa que havia dado para o chefe da Famiglia aumentando.
— Eu já estive no seu lugar. O que veio buscar aqui não é a solução,
acredite. — disse, lembrando ter falado algo muito similar semanas atrás
para quem eu queria que estivesse na minha frente.
— Você não amava Giovanna para poder estar no meu lugar — Emília
retrucou, ignorando minha vontade de ficar sozinho e sentando-se na minha
cama.
Era do conhecimento de todos que Ferreti também não tinha tais
sentimentos pelo marido, mas escolhi por não piorar a situação e manter o
pensamento para mim.
— Eu a amava do meu jeito.
E o celular vibrou, perto demais da mulher, a tela acendendo. Claro
que, com a sorte que tinha, Alana escolheria justo agora para se manifestar.
A foto que havia sido tirada durante o café da manhã de domingo
denunciava quem era o contato salvo como dolcezza, Emília reconhecendo
imediatamente o motivo de eu estar a negando.
— Alana Martins, Nico? — E eu era um idiota por associar alguém tão
importante justo comigo, um novato por colocá-la no meio dos meus
contatos. — É uma de minhas alunas. Uma de suas alunas. — Ela balançou
a cabeça, levantando-se da cama. — E mais uma vez, sou trocada por uma
garota mais nova.
— Não é o que está acontecendo aqui. — Porque para ser trocada, a
mulher precisava ter primeiro sido escolhida.
Sabia que responder aquilo era começar uma guerra desnecessária com
alguém que parecia ter poder demais, então me mantive em silêncio pela
segunda vez, segurando a porta aberta.
— Ela ainda não faz ideia do que você faz, estou certa? Sabe o que vai
acontecer com essa garota se ela continuar na sua vida, não sabe? — Ela
estava, e eu sabia.
Mas Emília insistiu em me lembrar.
— Se relacionar com você vai colocar toda a família dela em risco. Vai
colocar Alana em risco. Ela vai passar a viver com seguranças para cima e
para baixo, vai ver coisas que uma garota que desconhece a vida que
levamos não está preparada para aceitar. E ela não vai entender, não vai
aceitar, e vai odiar você, Nickolay. E vai ser tarde demais para mandá-la
embora com vida quando a menina souber. Ela vai ter que entrar, ou vai ter
que morrer. — A intenção que a mulher tinha em machucar fez eu sentir
menos culpa ao mandá-la embora. — Ficar com alguém do seu mundo seria
muito mais fácil. Eu sei, e você também sabe. Por que não nos dá uma
chance?
A raiva realmente me fazia falar demais.
— Porque ficar com qualquer outra não é uma opção.
Recuei da mão que tentou novamente me tocar, ignorando os olhos
claros que pediam por alguma afeição.
— Durma bem, Emília.
Horas depois de sair da terapia, estando entre acabar com meia garrafa
de vodca ou fumar o último cigarro, escolhi justo o que afirmei que não
faria. Abandonando o resto de macarrão instantâneo que havia preparado na
bancada da cozinha, joguei uma água no rosto, peguei o celular e a chave
do carro e tranquei a porta.
Eu era boa com endereços, aquilo me fazendo escolher dirigir até onde
não sabia o nome da rua, mas lembrava do percurso, ao invés de mandar
uma mensagem. Esperar uma resposta iria me deixar ansiosa demais, e ter
uma chamada não atendida me faria desistir de tentar de novo.
Parei na frente da mansão que jurava ser a mesma que vi naquele
sábado de manhã, por mais que a noite não exatamente ajudasse a
diferenciá-la das outras. Só pensei na merda que eu estava fazendo quando
abaixei a janela, meus olhos travando no interfone, eu me sentindo estúpida
por dirigir até onde nem mesmo sabia se Nickolay estava. Por tudo que
sabia, ele poderia estar com a mulher que o peguei beijando, e lembrar
daquilo também fazia um bom trabalho em me tirar o ar.
Estava a segundos de desistir quando o portão abriu. Eu não lembrava
de como a mansão era grande, e me surpreendi com o tamanho ao dirigir
entrada adentro. Já era quase meia-noite, mas havia mais do que um carro
na garagem aberta. O mesmo homem que tinha me levado para casa
naquela manhã de sábado — que eu tinha certeza ser um segurança, e não
apenas motorista — foi para minha frente assim que desci do veículo.
— Signorina[52]?
— Deixa ela entrar, Matteo. — Foi um senhor de cabelos grisalhos que
disse ao abrir a porta da frente, segurando-a para eu passar. Franzi a testa,
por um momento me perguntando se havia escolhido a casa certa, ou essa
seria mais uma decisão errada tomada na vida. — Primeira à esquerda,
Alana.
Tentei não parecer tão impressionada ao ser chamada pelo nome. Se
essa realmente fosse a casa do italiano, sabiam quem eu era. Não fazia
muito sentido para meu cérebro exausto, ainda mais depois de ontem.
Depois dele nem mesmo tentar me contatar, Nickolay concordando fácil
demais com minha decisão.
Por dentro, a mansão era perfeita demais para poder ser chamada de
lar, e a ausência dos raios de sol a tornava ainda mais fria. Duas vozes
masculinas conversavam na direção que me tinha sido apontada, e tentei
não fazer muito barulho até chegar em frente à porta entreaberta.
Sentado num banco e com as tatuagens do peito expostas, Nickolay
não movia um músculo enquanto um homem mais velho o costurava perto
das últimas costelas.
— Por que esperou um dia todo pra tratar disso? — A voz era de
reprovação, e mesmo com a agulha passando pela pele, o italiano
permanecia imóvel.
— Estava ocupado. — A resposta veio numa voz mais indiferente do
que havia me acostumado a ouvir.
Onde ele tinha conseguido se machucar assim?
— Precisa limpar todos os dias. Antibiótico por sete. Quer um
analgésico mais forte?
— Desnecessário.
O homem que cuidava do corte grunhiu, as palavras ditas em italiano
não fazendo o menor sentido, mas soando reprovadoras o suficiente para
me dar um mínimo contexto.
— Sem álcool, DeLucca. E não exagere no ibuprofeno.
— Grazie, Santi.
O material foi guardado de volta em uma maleta, o médico acenando
com a cabeça assim que passou por mim. Nickolay ainda abotoava a camisa
quando se virou para onde eu estava, me surpreendendo ao dar o menor dos
sorrisos.
Eu não gostava de como meu coração batia quando ele me deixava vê-
lo assim. Entrei, seus olhos escuros descobrindo mais do que deveriam,
observando meus detalhes mais do que considerava confortável. A mão
tatuada já alcançava o whisky quando reuni forças para abrir a boca.
— Sem álcool, DeLucca — repeti as palavras que tinha ouvido, e o
que veio em italiano soou como uma reclamação, a garrafa posta de volta
no bar. Apontei para onde estavam os pontos antes de perguntar. — O que
aconteceu?
— Nada com que precise se preocupar. — A mão alcançou o maço que
ele guardava no bolso, Nickolay ignorando minha curiosidade e me
oferecendo nosso vício. — Não era como queria te ver, Alana.
— O sentimento é mútuo. — Neguei a nicotina pela primeira vez em
meses.
Nickolay desistiu de acender o dele com o filtro já nos lábios, o cigarro
voltando para o maço. Por um momento, me senti menos estúpida ao vê-lo
tão exausto quanto eu. As olheiras faziam eu me perguntar o quanto o
homem havia dormido noite passada, o suor que via em sua testa mostrando
que os pontos estavam mais doloridos do que o italiano deixava
transparecer.
Ele andou até minha frente receoso, a mão que queria me tocar
parando no ar, desistindo no último segundo.
— Por que voltou?
— Por que você não me procurou? — rebati, me forçando a encarar
seus olhos.
Havia certa surpresa neles, Nickolay suspirando como se eu fosse a
difícil de lidar. Talvez eu fosse mesmo, mas não precisava admitir aquilo,
especialmente para ele.
— Estava respeitando o que me pediu.
Era difícil me afastar dele, e fui com dificuldade até o banco que o
italiano antes ocupava, as gazes com sangue esquecidas sobre a mesa só
ajudando a aumentar meu desconforto.
— Emília acabou de perder o marido — ele disse quando voltei a olhá-
lo, e me senti ridícula ao odiar ouvir aquele nome. — Ela está confusa. O
melhor que pode fazer é ignorar esse comportamento.
— Você tava com ela? — perguntei o que havia se passado repetidas
vezes na minha cabeça. — Você tava com ela durante a semana?
A hesitação que vi me deu a resposta antes da palavra sair.
— Sim.
— Inacreditável, Nickolay! — Escutava a confirmação do que tinha
me convencido ser mentira durante todo o trajeto no carro, e rir era a única
coisa que me restava. — E eu caí nessa sua conversinha fiada de não me
mande embora, me espere voltar, e você fodendo essa mulher!
— Não desse jeito, Alana! — ele me impediu de continuar, me
mostrando uma sinceridade irritante. — Eu não estava fodendo Emília, eu
estava enterrando seu marido! Lorenzo passou mais tempo com essa mulher
do que eu! — A voz soava frustrada, ele coçando os olhos do jeito que
aprendi que fazia quando estressado.
Não deveria saber reconhecer suas particularidades em tão pouco
tempo.
— Eu passei mais tempo falando contigo do que com ela!
"Eu passei menos de um dia do lado dessa vadia!" E coloquei um dos
indicadores na boca, Thobias sempre voltando nas piores horas.
— Vocês estavam se beijando! — soltei a acusação, tentando afastar a
voz que fazia o mesmo na minha cabeça.
— Ela me beijou, e eu a afastei! Ela sabe de ti, Alana! — Era quase
engraçado como ele parecia tão perdido naquela conversa quanto eu estava
na vida. — Eu não sei, acho que pode ter ficado com ciúmes. Eu não sei o
que está acontecendo na cabeça dela, eu nem falo direito com Emília! Não
sobre assuntos pessoais!
— Como que ela pode estar com ciúmes? Ela era casada!
— Casamentos são diferentes aqui! — Aqui? — Alana, eu não tenho
nada com ela! Eu tive, há muitos anos. Emília foi...
— Sua namorada? — E eu odiei a possibilidade, minha mente
afirmando que, ao lado daquela mulher, eu era uma ninguém.
Não sabia se gostava ou ficava ainda mais nervosa com a risada
amarga que veio.
— Nunca chegou nem perto disso. — A confissão fez um bom
trabalho em prender minha atenção. Ainda assim, cruzei os braços,
esperando por mais. — Emília, já que parece tanto precisar saber, foi a
primeira mulher que eu fodi. E essa semana nós estávamos no mesmo hotel,
e ela foi até meu quarto. Não, me escute! — Ouvi quando ameacei abrir a
boca. — Eu estou te dando a verdade, Alana. Ela foi até meu quarto, e ela
viu quando me ligou por acidente.
— E ela acha que estamos juntos... — E doeu falar juntos, mas me
forcei a continuar. — Só porque eu te liguei?
Ele não me corrigir e aceitar o verbo me confortava demais.
— Seu contato está salvo como dolcezza, e mostra a foto que tiramos
domingo. Acho um pouco difícil imaginar outra coisa te vendo no meu colo
vestindo só a minha camisa, ainda mais para alguém que sabe o quanto isso
foge do meu habitual. — Ele fez um bom trabalho em me deixar sem
palavras. — Eu não faço isso, Alana. Eu não salvo contatos das minhas
fodas, eu não repito, eu não levo para jantar. O que estamos fazendo,
definitivamente, não é meu normal.
Minha quietude parecia ter dado coragem suficiente para Nickolay se
aproximar, as mãos grandes se atrevendo a tocar minhas bochechas,
inclinando meu rosto para o dele. Queria perguntar o que estávamos
fazendo, ao mesmo tempo que não queria nos assustar, nenhum dos dois
parecendo pronto para admitir o que havia ali.
— O que aconteceu no elevador foi um desrespeito contigo. Não vai se
repetir. — Ele tocou meu nariz com o dele. — Ela não é nada perto de ti,
bella.
Seus lábios me mostravam a verdade em todas as suas palavras ao
acharem os meus. O jeito que Nickolay me beijava era terno e doía, eu
querendo voltar para o desejo ao invés de sentir algo tão próximo de
carinho. Agradeci por não ter perguntado o que fazíamos, e agradeci por
Nickolay saber me dar a resposta sem palavras.
— Ela é linda — falei o óbvio, odiando escutar minha voz tão fraca.
— E mais velha. — E normal. — Emília é muito mais...
— No. — Ele realmente sabia como me calar. — Ela não é nada além
de uma amiga da Famiglia. — Fechei os olhos quando senti os lábios na
minha testa, finalmente me rendendo e deixando meus braços o rodearem.
— Diferente de ti, linda de batom vermelho, cabelo molhado, ou acabando
de acordar. É a coisa mais bela e normal na minha vida, dolcezza.
— Você ia me procurar? — Era incrível como ele me deixava lê-lo
bem quando sozinhos. — Você não ia.
— Eu disse que bastava me pedir, Alana. Mas estou contente por ter
voltado. — E os lábios estavam outra vez nos meus, o gosto dele
conseguindo ser melhor do que me lembrava. — Lorenzo estava certo.
Saber que voltaria para ti deixou uma semana difícil muito mais suportável.
Ele me deixou ver o desconforto quando minha mão passou sem
querer pelos pontos.
— Como você fez isso? — Dava para ver nos olhos o quanto ele não
queria me responder, Nickolay tentando desviar quando segurei seu rosto.
— Eu não quero mais verdades maquiadas.
— É a única verdade que posso te dar agora. — Saiu como uma
lamentação. — Só mais um tempo, dolcezza. Me deixa te ter assim só por
mais um tempo.
Suspirei, tentando digerir os últimos minutos. Nickolay ajudava com
seus lábios, ele fazendo aparecer em mim uma pontada de culpa ao me
beijar como se eu fosse mais necessária do que oxigênio.
Italiano filho da mãe, eram todos daquele país que conseguiam colocar
a alma em um gesto? Porque dava para sentir o quanto o homem queria que
eu ficasse, o quão mais importante eu parecia ser para ele, do que ele para
mim. Eu gostava da companhia segura, mas ainda não tinha descoberto se
ela era ou não substituível. Negar uma mulher como Emília provava que a
minha não era.
— Dividir uma cama comigo é pedir muito? — A pergunta, que era
tudo que eu mais queria desde domingo, veio com sua inabilidade de tirar
as mãos de mim.
— Quem disse que vou ficar? — provoquei.
— E se eu pedir por favor? — Os beijos que ele dava em meu pescoço
eram injustos demais. — Posso até implorar, que nem faz quando estou no
meio das suas pernas.
Filho da mãe.
— Se eu sou uma pirralha mimada, deveria me comportar mais como
uma — reclamei, tentando buscar alguma parte dentro de mim ainda brava.
Falhei, assim como minha voz, a ameaça saindo de forma ridícula.
— Pode se comportar como quiser, desde que volte. — Duvidava
daquelas palavras, mas decidi pelo silêncio, meus lábios ocupados demais
com os dele.
Claro que escolhi ficar, indo com ele para o quarto que até horas atrás,
achava ter visto pela última vez no sábado que mudou tudo. Nickolay me
dava uma camiseta que tinha o cheiro dele, eu vestindo-a antes de me deitar
ao seu lado, o italiano só de cueca sendo tão convidativo quanto sem nada.
O sorriso que havia em seus lábios me falava que ele tinha visto o
olhar que dei.
— Temo ser inofensivo hoje — avisou rindo, fechando os olhos e me
puxando para perto. — Mal consigo ficar de olhos abertos.
— Então eu vou embora — retruquei, e o senti apertar mais o abraço,
as mãos achando minha pele debaixo da camisa, um no sussurrado no meu
ouvido. — Dorme logo, antes que eu mude de ideia.
A risada dele era tão relaxante quanto seu toque.
— Ti voglio[53], dolcezza. — Aquilo eu sabia o que significava, ele
confirmando ainda mais o quanto me queria ali. — Fica.
Engraçado como alguém tão bom em ler pessoas precisava me pedir
para ficar. Havia poucas coisas que poderiam me afastar da calma que
sentia com ele, e me deixei fechar os olhos, minha mente em total silêncio.
Estava apaixonada pelo silêncio.
— Fico, italiano.
ㅤ
Descobri que dormir em seus braços me fazia sonhar com ele. Havia
sido assim ao acordar no último domingo e era assim hoje, eu abrindo os
olhos quando o senti se mexer, Nickolay beijando minha testa antes de se
levantar.
— Continue dormindo, dolcezza. — Decidi que gostava de acordar
assim, e que os lábios nos meus eram tão bons quanto o primeiro gole de
café. — Eu já volto.
Obedeci, ainda muito atordoada de sono para considerar levantar.
Deveria ter levantado. O sonho de antes trazia uma história muito mais
interessante do que o de agora, eu preferindo fantasiar com meu italiano
num banheiro de alguma balada do que encarar os olhos azuis de Thobias.
Costumava adorar azul. Aprendi a odiar a cor.
Quando acordei novamente, senti o cheiro de café fresco, assim como
o suor que escorria pela minha testa. Tinha uma caneca com o líquido ainda
quente ao meu lado, e podia escutar o chuveiro pela porta entreaberta.
Havia roupas no chão, eu entendendo que o italiano, como pensei quando o
olhei pela primeira vez, deveria sim ter uma rotina pesada de exercício.
Queria brigar com ele por não se dar uma folga, mesmo com mais de
cinco pontos num lugar tão fácil de se abrir. Odiava precisar de pontos, a
marca dos últimos ainda aparecendo demais quando me olhava no espelho.
Tomei um gole de café antes de largar a roupa que usava ao lado da dele,
entrando no banheiro da suíte.
Eu nunca ia me acostumar a olhar para aquele homem nu. Nickolay era
a definição de rasgado, os músculos reafirmando o quanto malhar era uma
constante em sua vida. Debaixo do chuveiro, com a água escorrendo pelas
costas definidas, ele era uma visão boa o suficiente para me fazer esquecer
todas as dúvidas do dia anterior.
O italiano sabia que eu estava atrás dele antes da minha mão tocá-lo,
virando-se e me puxando para perto do seu corpo molhado. Foi delicioso
sentir como eu o afetava, ele duro, pulsando contra minha pele depois de
apenas um beijo.
— Te quero no meu chuveiro todas as manhãs. — A voz era baixa e os
lábios quentes, Nickolay me fazendo suspirar ao contornar minha silhueta
com as mãos. — Estou cuidando direito de ti? — Levantei uma
sobrancelha. — 'Manter cafeína na minha corrente sanguínea', lembro de ter
me falado isso naquele sábado.
Sorri, o empurrando contra a parede de azulejos e para longe da água,
as pontas dos meus dedos contornando a santa que carregava no peito.
— Tá fazendo um bom trabalho. — Ele arfou ao sentir meu toque
descer mais, eu apenas provocando e parando com a mão próxima da gaze
que cobria os pontos. — Você também precisa cuidar direito disso aqui. —
Coloquei um dedo contra os lábios que se abriram. — Se não cuidar, Nico...
A mão que se fechou nos meus cabelos aproximou nossos rostos,
Nickolay pressionando-se contra meu abdômen, os dentes mordiscando a
almofada do meu indicador. Eu também o queria no meu chuveiro de
segunda a segunda, pensei, deixando meus dedos explorarem muito além de
sua virilha.
— Se não cuidar, o que? Vai me castigar? — ele perguntou, usando a
voz rouca que me fazia parar de raciocinar.
O gemido que ouvi quando agarrei seu pau acabou com o resto dos
meus neurônios. A mão grande apertou ao redor da minha, ele me
mostrando como gostava de ser tocado tornando o momento íntimo e
delicioso. Nickolay me soltou, e continuei os movimentos com a mesma
urgência que ele parecia precisar, as respirações curtas denunciando o
prazer que havia ali.
— Te quis a semana inteira, Alana. — As palavras vieram roucas, o
italiano se esforçando para dizê-las mostrando que, como ele, eu sabia fazer
um trabalho bem-feito.
— Diz o cara que só quis dormir de conchinha ontem de noite. —
Depois da frase, senti as tatuadas dele tentando me deixar tão sem voz
quanto, os dedos longos provocando ao abrir caminho, o toque suave
demais para quem tinha pressa.
— Preciso compensar esse deslize. — Mas mesmo com a leveza,
minhas pernas ficaram fracas demais, eu tendo que agarrar seus braços para
continuar de pé. — Não se cale, dolcezza — o pedido veio quando mordi o
lábio inferior, seus dedos sabendo exatamente onde precisavam me tocar
para escutar o que queria. — Te fazer gemer é a melhor forma de começar
minha manhã.
Aquele era, definitivamente, um bom dia capaz de espantar qualquer
pesadelo. Mas naquela manhã, necessitava que o homem aprendesse que eu
também poderia fazer os dele irem para longe.
— Deixa eu mudar a sua opinião, italiano. — Não falei mais nada
antes de me ajoelhar.
Tracei sua virilha com a língua, observando o V que apontava para a
pélvis como se fosse uma obra de arte. O filho da mãe era uma obra de arte
viva, os músculos definidos me fazendo apreciar cada linha que descobria.
Molhei os lábios e olhei para cima, meu coração outra vez parando de bater
ao absorver a intensidade com a qual ele me observava. Fechei as duas
mãos na base da sua ereção, minha língua subindo até chegar na ponta, o
chupando com a mesma intensidade que o homem mostrou gostar de ser
tocado.
Queria ouvir aquele som para sempre. Escutar o quanto Nickolay
gostava do meu toque me deixava queimando entre as coxas, tanto quanto o
olhar que ganhava dele ao se ver desaparecendo na minha boca. As mãos
voltaram para meus cabelos, me encorajando a ir mais fundo, o italiano
mostrando o quanto apreciava me ter de joelhos enquanto eu o engolia.
Sua atenção não me deixava, tornando o que dividíamos tão íntimo
quanto a primeira vez que o tive. Forcei meus olhos a ficarem abertos, os
escuros me penetrando, a boca sussurrando encorajamentos cada vez que o
sugava mais forte.
Ele ser o primeiro a desviar o olhar era a melhor vitória. Jogando a
cabeça para trás e puxando meus fios, por um momento, Nickolay perdeu
toda a delicadeza. Seus gemidos me deixavam ainda mais molhada, o
italiano investindo contra meus lábios com uma expressão de puro prazer,
eu relaxando para recebê-lo por inteiro. Já havia aprendido o quanto ele
gostava das minhas unhas passando pela sua pele, e podia sentir o gosto do
seu pré-gozo na minha língua cada vez que se forçava para fora.
Ele me colocou de pé antes do que eu planejava, e queria mais do que
tudo ver novamente aquele descontrole. Saber que tinha o poder de fazer
um homem como Nickolay se desfazer com tão pouco só aumentava minha
vontade dele.
Senti um arrepio percorrer meu corpo com o beijo no pescoço, sendo
minha vez de ser pressionada contra o azulejo do box.
— Quando eu gozar, não vai ser na sua boca — ele afirmou ao prender
minhas mãos, e agora era eu entre a parede e Nickolay. — Diferente de ti.
Descobri que o escutar falando era o suficiente para me fazer querer
implorar. Meu corpo tremia em antecipação ao sentir a ponta da língua
traçar todo o caminho até o meio das minhas coxas, ele ocupando a posição
em que antes eu estava, eu já pedindo por favor. Tampei a boca com a
palma da mão, abafando um gemido e tentando inutilmente manter qualquer
compostura ao ter a respiração quente tocando meu sexo. Ouvi uma risada
baixa quando não contive um choro ao sentir dois dedos me penetrando, e
não demorou até minhas pernas fraquejarem outra vez, precisando me
curvar sobre seu corpo para não ir direto ao chão.
A risada de Nico era rara, e linda demais de se ouvir, ele se divertindo
por me dobrar usando apenas uma das mãos.
Fui deitada no tapete sobre o azulejo frio, e a visão dele entre minhas
pernas estava se tornando rapidamente minha favorita. A língua macia abriu
caminho para dentro de mim, envolvendo cada ponto com uma suavidade
enlouquecedora, deixando meu sexo pulsando. O descontrole não existia
mais, Nickolay tratando tudo com uma calma que me desesperava, eu
implorando enquanto mexia os quadris contra ele, só mais uma vez, só mais
um toque, por favor, por favor...
Nunca conseguiria ser silenciosa com ele me chupando, cada som
parecendo um incentivo para o italiano melhorar algo que já era bom
demais. Gozei o deixando ouvir tudo que ele me fazia sentir, fechando os
olhos e aproveitando o quanto meu corpo se embriagava com seu toque.
— Isso foi rápido demais. — Senti as bochechas vermelhas, abrindo a
boca para responder qualquer coisa quando a barba curta roçou contra o
interior da minha coxa. O choro que saiu dos meus lábios o fez sorrir contra
minha pele, eu investindo sem pensar em direção aos dedos que outra vez
me invadiam. — Mais uma vez.
— O-o que? — Foi tudo que consegui falar antes deles se curvarem
dentro de mim. A palma da mão voltou para minha boca, as mãos dele indo
para meus quadris, uma me prendendo, a outra fazendo pressão contra
minha virilha.
Esse homem ia acabar comigo da melhor maneira.
— Eu disse mais uma vez, Alana — Nico repetiu, a respiração quente
contra a pele hipersensível me fazendo soluçar. Os olhos acharam os meus
antes dele continuar. — Goza mais uma vez na minha boca, e então eu te
fodo.
Desisti de tentar ser quieta quando ele voltou a me sugar, meu corpo se
transformando numa mistura de choros e tremores enquanto era devorado
por aquele homem. Seus dedos tocavam um ponto que deixava o silêncio
impossível, a língua investindo contra meu clitóris em movimentos
ritmados fazendo minhas mãos agarrarem seus cabelos. Nickolay parecia
amar minhas mãos nele, meu toque o fazendo parar de me torturar e
aumentar a velocidade.
O orgasmo me invadiu sem aviso, deixando todas as minhas
terminações sensíveis demais ao menor dos toques. Contraía forte ao redor
dos dedos enquanto seu nome se tornava a única coisa que meus lábios
sabiam chamar, o italiano sempre fazendo questão de me lembrar do dito
em nossa primeira noite sem usar palavras.
Quando ele subiu até minha boca, vi meu descontrole refletido em seu
rosto, Nickolay me levantando como se eu não pesasse nada. O homem
mostrava novamente o quanto gostava de me ter no colo ao sentar-se
comigo de costas para ele, a barba que cheirava a sexo roçando na minha
nuca e reascendendo o fogo que tanto lutamos para apagar.
Era inútil. A cada encontro nosso, tinha mais certeza de que queimaria
para sempre nas mãos tatuadas.
— Minha opinião continua a mesma. — Um arrepio percorreu meu
corpo ao ter o pescoço beijado. — Te ouvir chorar meu nome faz bem
demais para o meu ego. — Tinha que admitir que ouvi-lo gemer debaixo de
mim também fazia maravilhas para minha autoestima. — Vai gritar para
mim, dolcezza? Deixar a casa inteira ouvir quem está te fodendo? — E eu
senti o rosto queimar pela segunda vez, ao mesmo tempo que já tinha
aceitado ser impossível gozar quieta com ele. — Responda, Alana.
A voz de comando, combinada com os dedos que beliscavam meus
seios, me obrigava a obedecê-lo de um jeito delicioso.
— Vou! Eu vou!
E novamente me contorcia no seu colo, as mãos tatuadas parando na
minha cintura num aperto possessivo, minhas unhas arranhando de leve a
pele dele. Os sons que recebia em troca me deixavam inquieta, e eu
procurei a fricção que precisava ao encaixar sua ereção entre as coxas. O
italiano puxou a respiração antes de me incentivar, os braços fortes que me
seguravam me fazendo deslizar por toda sua extensão.
— Você falou mais uma, Nico. — Era ridículo já ter gozado duas
vezes e ainda precisar dele, e era difícil demais ficar quieta, a cabeça do seu
pau pressionada contra mim provocando, me tentando a fazê-la entrar. —
Você falou mais uma vez — cobrei, já não sabendo mais o que era
vergonha. — Só mais uma e então ia...
Claro que nos tentarmos tanto não era uma boa ideia, claro que a
vontade que tínhamos acabaria em mais do que uma simples provocação.
Estava tão lubrificada que bastou um movimento desajeitado para ele
me penetrar. Nickolay era grosso, a entrada brusca fazendo eu me contrair
ao seu redor, a pressão aumentando mais ao sentir os dedos grandes
apertarem minhas coxas.
Eu não entendi o que saiu de seus lábios, mas ‘puta que me pariu’
deveria ser uma tradução bem próxima, o italiano precisando de algumas
respirações fundas antes de voltar a falar.
— Deveríamos parar? — ele perguntou, os dentes cerrados, respirando
pesado ao encostar a testa no meu ombro. — Nós deveríamos parar?
Escutei mais um provável palavrão escapar quando me mexi, Nickolay
mostrando zero vontade de nos afastar, eu apenas o incentivando a me
copiar ao fazê-lo ir mais fundo.
— Deveríamos? — Parar era a última coisa que eu iria querer com ele
enterrado em mim.
— Eu estou limpo, Alana. Se é isso que está perguntando.
Parecia que eu ia dissolver quando o menor dos movimentos o fez
tocar o ponto que me deixava em suas mãos. De novo, queria aquilo de
novo, e buscava a sensação outra vez rebolando no seu colo.
— Cazzo, isso não está me fazendo querer parar, bella — ele advertiu,
usando a voz perigosa que só me colocava mais fogo, e eu decidi por nós
dois.
— Eu não quero parar! — deixei sair, suspirando ao enfim senti-lo por
inteiro.
A pressa tomava conta de nós dois, a urgência dele tão grande quanto a
minha, as mãos tatuadas me subindo e descendo sem esforço. Sim, aquele
era todo o descontrole que eu queria ver, as estocadas punitivas parecendo
querer me castigar por todas as provocações.
Mas se aquilo era uma punição, daria um jeito de me comportar mal
sempre para recebê-la todos os dias. As palavras soltas em italiano eram tão
boas quanto os gemidos que ele não fazia questão de calar, me tocar no
mesmo ritmo que Nickolay me descia sendo bom demais.
Soltei uma reclamação frustrada quando ele parou, confusa ao ser
posta de pé até Nico me virar para ele, eu voltando para seu colo e sua boca.
Tinha um gosto de whisky que não havia percebido antes, o cheiro de
cigarro me distraindo por um segundo.
— Te vez gozar é tão delicioso quanto sua voz falando meu nome. —
As palavras dele, como sempre, faziam um bom trabalho em me deixar
esquecer do resto ao meu redor.
Qualquer linha de raciocínio acabou com a mordida no meu seio, as
mãos novamente incentivando meu corpo a mover-se para conseguir o
alívio que precisávamos. O escutei arfar quando abandonei seus cabelos e
cravei as unhas nas suas costas, fechando os olhos ao perceber os tremores
que me invadiam.
Sexo com Nickolay era viciante, e a forma como cada orgasmo
conseguia ser melhor que o último me fazia querer passar um dia inteiro
sem roupa ao lado dele. Ainda estava perdida em meu prazer quando ele
gozou, me preenchendo e gemendo meu nome antes de se calar contra meus
lábios.
Eu não tinha dúvida: a casa inteira havia escutado aquilo.
Ambos estávamos ofegantes quando nossos olhos se acharam, e a
intensidade do sentimento que havia nos dele me tirou completamente o ar.
Era incrível o quão mais lindo o italiano ficava tendo uma expressão
vulnerável no rosto ao invés das linhas sérias, e pensei que poderia me
acostumar em reparar em todos os detalhes que ele me deixava ver quando
sem roupa. Até os detalhes conosco vestidos eram bons.
Sim, eu poderia me acostumar com Nico na minha vida. Ainda
pensava sobre isso quando ele tocou meu rosto de um jeito dolorosamente
familiar. A mão que cobria minha bochecha fazia um carinho que
queimava, e senti meu coração apertar com as próximas palavras.
Aquela cena parecia tão familiar.
— Dolcezza, vem comigo para o quarto. — E por mais que seus lábios
continuassem se mexendo, eu não conseguia focar no que saía de sua boca.
Na minha mente, a voz dele me dizia outra coisa.
"Dolcezza, vem comigo para casa."
Mas eu já estava na sua casa. E o banheiro que estava na minha cabeça
era muito, muito diferente do qual eu via. Era o banheiro do meu sonho. Só
que não era um sonho, toda a noite apagada da minha memória voltando tão
forte quanto um soco, comigo ainda em cima dele.
Nickolay prometeu nunca mentir, e talvez esconder a noite sobre a
qual eu nunca perguntei não se encaixasse em uma. Mas era uma omissão
que doía. E descobri-la agora, depois de tudo que fizemos, depois de tanto
tempo, machucava tanto quanto qualquer mentira.
ㅤ
Fazia quanto tempo que não sentia aquele peso no estômago? Era uma
sensação que desencadeava as piores lembranças, o frio misturado com a
dor me deixando completamente alerta. A última vez havia me tirado tanto,
a chance do feito poder estar se repetindo mostrando o quanto Alana
importava.
O quanto isso já poderia tê-la transformado num alvo.
Era sorte eu estar justo na frente do seu prédio, meu plano desde o fim
da tarde sendo o de repetir nosso jantar e conversar. Não parecia mais ser
algo possível de acontecer enquanto me apressava para a portaria. Teria
derrubado o portão caso o funcionário não o tivesse aberto, a desculpa de
que minha namorada estava desacordada e precisava de ajuda funcionando
bem quando misturada com o desespero que deixei ver.
Minha namorada. Nunca havia dito essas palavras, e falar só agora
causava um gosto amargo na boca. Corri os dois andares escada acima, a
mão na arma já destravada que sempre carregava comigo.
Alana estava de toalha no meio do corredor, e a bola na garganta só
amenizou quando a puxei para meus braços, não me importando com
qualquer reclamação que pudesse vir da parte dela.
Não veio nenhuma. Ela estava bem. Assustada, mas bem, e eu
finalmente conseguia respirar outra vez.
— Atrás de mim! — Não tinha ninguém do lado de fora, e aquela
mulher nunca conseguia obedecer a qualquer ordem que eu tentava dar. —
Atrás, Alana!
Saquei a pistola antes de pensar, decidindo que o melhor seria não a
deixar no corredor. Não achei resistência ao pressionar a porta de entrada
contra a parede. Não tinha ninguém na sala, e a última coisa que cogitei foi
o quanto a arma em minha mão poderia estar assustando quem se escondia
atrás de mim.
Levei Alana para o banheiro, me assegurando que o lugar estava vazio
antes de fechá-la ali.
— Tranca e se deita no box! — Só voltei a andar quando ouvi o
barulho da fechadura.
Mas não havia ninguém além de nós dois no apartamento. Não havia
ninguém na cozinha, no quarto, debaixo de nenhum móvel ou atrás de
qualquer porta. Não havia sinais de arrombamento, nada fora do lugar ou
que não fosse dela. Tudo parecia normal, do mesmo jeito que notei no fim
de semana que passei com ela entre as mesmas paredes.
Tranquei a entrada e agradeci por minha sorte ter resolvido se
manifestar hoje, me convencendo de que Alana apenas havia a esquecido
aberta. Ela estava bem, a pistola outra vez travada indo para meu casaco.
Bati duas vezes antes de falar.
— Está vazio.
Fechei os olhos, aliviado. Voltei a abri-los quando ouvi a porta à minha
frente fazer o mesmo, Alana com as órbitas grandes e vermelhas deixando
impossível eu não a trazer para mim. Ela retribuir meu abraço fazia meu
coração bater sem o peso de minutos atrás, a mulher conseguindo me tocar
provando que eu não tinha fodido com tudo da forma que achava ter feito.
— A porta estava trancada, eu tenho certeza que estava! — A escutei
soluçar contra meu peito enquanto acariciava seus cabelos. — Eu tranquei
Nico, tava trancada!
— Calma, dolcezza — arrisquei o apelido, ainda me perguntando o
que havia acabado de acontecer. Aquilo era parte do que ela tanto me
escondia? — Está tudo bem. Eu não vou deixar nada acontecer contigo.
Mai, Alana. — Talvez dissesse mais para acalmar meus sentimentos do que
para acalentar os dela.
Ela enxugou as lágrimas com mais força do que o necessário quando
nos separamos, e controlei a vontade de pará-la, desviando o olhar para o
lado quando a toalha foi para o chão. Manter os olhos longe dela era tão
difícil quanto descobrir as garrafas vazias de vinho e vodca sobre a pia da
cozinha. Lembrava de ver a de Absolut quase cheia no domingo que estive
ali, e por mais que fosse hipócrita, incomodava imaginar ter sido ela
sozinha a responsável por esvaziá-la num espaço tão curto de tempo.
O que a fazia precisar se anestesiar daquele jeito? Por que, cada vez
mais, parecíamos ter tantas semelhanças?
— Não vou te deixar ficar aqui. — Não era um pedido, e foi estranho
Alana concordar sem contestar. — Arrume uma mala com o que precisa. Te
levo para onde resolver ficar — estabeleci, levantando a toalha do chão e
cobrindo o corpo difícil de ser ignorado.
Ela realmente estava com medo, a pele ainda gelada, as mãos trêmulas.
Mas de que?
A vi desaparecer para dentro do quarto, a porta fechada impedindo
meus olhos de tentarem observar qualquer pedaço de pele. O pavor genuíno
que havia visto incomodava tanto quanto não saber se era ou não real
alguém que não a mulher ter aberto a porta da frente.
Alana nem mesmo pareceu incomodada ao ver a arma, ignorando
completamente o fato de eu ter uma enquanto mantinha-se grudada em
mim. Havia algo de errado. Era tão óbvio quanto o bem que a garota me
fazia, e eu precisava descobrir que merda estava acontecendo, mesmo que
ela se negasse a falar.
— Pegou tudo? — perguntei ao vê-la voltar com uma mala de mão,
vestindo a mesma roupa do dia em que me pagou um café. Alana fez que
sim com a cabeça, não se opondo quando tirei o peso das suas mãos. —
Qual o endereço?
A mulher gostava de me surpreender, e com ela, descobria cada vez
mais que adorava suas surpresas.
— O seu.
Tinha vinte e oito anos, e era a primeira vez que conhecia a família de
uma mulher com quem dividia a cama. Não que Alana apenas
compartilhasse meus lençóis, por mais que aquela tivesse sido minha parte
favorita dos últimos dias.
Era sábado, e eu já não queria mais tê-la fora da minha casa, por mais
que Lorenzo e meu cérebro gritassem diariamente sobre como deveria
deixar claro para a mulher no que se metia. Ela não podia ser tão cega a
ponto de não desconfiar, podia?
— Está nervosa — comentei ao estacionar, afastando da boca o dedo
que ela insistia em morder.
— E você tá calmo demais!
— Dolcezza, eu passo por situações piores numa base diária —
respondi, outra vez me perguntando quando Alana começaria a questionar
os pedaços de informações que soltava.
Eu queria que questionasse. Seria muito mais fácil renunciar à
normalidade falsa se fosse ela quem me obrigasse a tal.
— Se você fugir das perguntas da minha mãe como foge das minhas…
— Mas ela não andava me perguntando nada desde a sexta em que me
acordou com um beijo. — Acredite, não vai ser bonito.
— Eu vou responder o que puder, bella — a tranquilizei, alcançando o
maço de cigarros que dividíamos antes de tê-lo tirado das mãos.
— Isso aqui fica no carro, italiano.
Não objetei, trancando a Mercedes e achando suas costas nuas com a
palma da mão. Nicotina não era tão necessária com ela ao meu lado, Alana
sendo uma droga muito mais deliciosa e calmante. Já não era mais verão,
mas o calor de São Paulo a fazia continuar usando os vestidos leves que eu
adorava tirar, e o branco de agora combinaria muito bem com o piso de
nosso quarto.
Nosso quarto. Cazzo, precisava parar de adiar minha verdade.
— Se continuar me olhando como se eu fosse de comer — Alana
provocou, passando a mão pelos cabelos soltos. — Os homens da minha
família não vão ficar tão contentes em te ter na mesa.
— Sabe que nunca fiz isso na vida, não sabe? É meu primeiro almoço
em família. — A expressão que vi foi impagável, ela ainda processando a
informação que eu tinha acabado de soltar quando a porta foi aberta.
Não que eu precisasse aprender como me portar, por mais que a
experiência fosse inédita. Sabia tratar mulheres do jeito que pais
aprovavam, Giovanna tendo me pós-graduado em distanciamento e
paciência.
Então mantive minhas mãos longe de qualquer parte dela, a olhando
abraçar a mãe antes de me apresentar. Entreguei as flores que segurava, os
olhos escuros que me observavam parecendo considerar por alguns
segundos se eu era merecedor de sua confiança antes de suavizar.
Astrid tinha um abraço tão caloroso quanto o da filha, e eu sempre era
pego de surpresa com o costume de abraçar estranhos. Ainda havia alguma
desconfiança quando a mão aceitou nossas flores, fazendo eu me perguntar
se mesmo de camiseta branca e jeans escuro, eu tinha cara de poucos
amigos.
Talvez devesse ter feito a barba, como Lorenzo sugeriu mais cedo. Não
que pudesse cobrir minhas piores tatuagens, caveira e ódio sempre estando
aparentes demais.
Deveria ter pegado a jaqueta.
— Já era hora da pirralha aparecer com alguém! — escutei uma voz
masculina provocar, um homem quase da minha altura bagunçando os
cabelos ondulados da minha mulher, Alana tentando se livrar da mão. —
Quanto tempo desde o último, mesmo?
— Cala a boca! — Era bom vê-la agindo despreocupada, o medo que
havia achado naquela quinta nunca mais tendo retornado. — Nico, esse é
meu irmão do meio. Ai, para com isso! — ela se virou para mim,
esbravejando quando o irmão desarrumou mais uma vez os cabelos
castanhos. — É o problemático da família, como dá pra ver!
— É o único que passa perto de ser normal! — O sorriso que ele me
dava era simpático, mas o olhar era mais desconfiado que o da mãe. —
Rogério — se apresentou ao me estender a mão.
— Nickolay.
— Aperto forte, gosto disso. — O desconforto veio assim que os olhos
pararam nas tatuagens da mão esquerda. — E com o que você trabalha,
Nickolay?
Alana suspirou, as mãos na cintura.
— Já começou a entrevista, problema?
— Preciso conhecer quem eu vou sentar na mesa com meu filho, não
preciso?
— Eu te pedi pra ficar quietinho!
— Prefere eu ou papai?
— Prefiro o silêncio! — Rogério tinha coragem o suficiente para
colocar-se entre nós dois, Alana sendo muito mais ameaçadora do que
minhas tatuagens descobertas, o assassinando com os olhos.
Por mais que a quisesse distante do meu mundo, em momentos como
aquele, Alana parecia ter sido feita dentro da máfia.
— Por que você não vai dar um beijo no seu sobrinho? — O vi apontar
para o jardim dos fundos, onde uma criança com os mesmos cabelos
crespos do pai corria em volta de uma palmeira. — Ele vai sobreviver,
Nana.
— Me preocuparia mais com o contrário.
Sorri quando os olhos mel pararam nos meus, fazendo sinal para ela
seguir em frente. Só voltei a olhar para seu irmão quando a vi beijar o
menino na bochecha, Rogério me oferecendo uma cerveja.
Não era bom sentir o que sentia ao vê-la brincar com uma criança,
principalmente com ela ainda vivendo no meio das minhas inverdades.
— Estou dirigindo. — Dei como desculpa, aceitando um copo com
água. — E respondendo sua primeira pergunta, eu cuido dos negócios da
minha família. — Não era mentira.
— Cuida? — Tinha incômodo ali, eu talvez não sendo o primeiro a dar
aquela resposta. — Ou apenas curte a herança como o último cara que ela
trouxe aqui pra dentro? — Sabia.
— Cuido — respondi com segurança, tomando um gole do copo antes
de voltar meus olhos para os dele. — Tempo livre é algo raro, e todo o que
tenho ando usando com sua irmã.
Rogério pareceu considerar minhas palavras por alguns segundos antes
de largar o assunto. Mas eu não estava propenso a largar o que queria saber.
— Não parece gostar do último homem que esteve com Alana. — Pela
cara feita, desgostar não cobria metade do sentimento.
— Começa que ele não era homem, era moleque. O babaca só sabia
festar, e tenho certeza que ele tava levando a Nana pra umas paradas
erradas. Ninguém gostava dele. — Ele se privou de continuar, e me
perguntei se deveria insistir. — O cara era o inverso de você. Me fez
aprender que não devemos julgar o livro pela capa, porque olhando, ele
parecia ser o sonho de todos os pais. — Sim, eu deveria, pelo menos, ter
feito a barba. — Só que não era, então eu vou ignorar o que vejo aqui, e
acreditar que você também vai ser o inverso dele em relação à minha irmã.
Era tudo que eu queria.
— Acredite. Alana é minha prioridade — afirmei sério, outra vez
escolhendo-a ao invés de todos os juramentos feitos. — Estou cuidando
bem dela, Rogério.
Ele me devolveu um olhar que tinha a mesma seriedade.
— Pai, pai! — Quem interrompia a conversa era o menino, correndo
até onde estávamos com um brinquedo nas mãos. — Olha o que a tia Nana
deu!
As feições do homem suavizaram no mesmo instante, Alana correndo
não muito atrás com um sorriso que me obrigava a copiá-la, agarrando meu
braço para se fazer parar. Aquela felicidade tão simples, será que as pessoas
que a tinham sabiam o quão sortudas eram?
— Eles se empolgam tão fácil! — ela me contava enquanto o sobrinho
mostrava o foguete colorido, comprado em uma de nossas paradas.
— Leandro, agradeceu o presente? — Os olhos grandes pararam nos
meus, a criança me vendo pela primeira vez.
A única parte boa de Alana ter parado com qualquer pergunta era o
fato de não precisar mais contar sobre minha antiga família. Por mais
diferente que seu sobrinho fosse de Nicolas, a dor que ainda aparecia ao
lembrar dos olhos verdes e cabelos loiros me fazia mais fraco do que
poderia me dar ao luxo de ser.
A mão pequena agarrando minha calça conseguiu me afligir mais do
que a primeira vez que puxei o gatilho, e olhei nervoso para Alana antes de
desviar a atenção para baixo.
— Obrigado tio! — O menino disse tão rápido quanto voltou a correr,
e o braço quente da minha mulher não largou mais o meu até nos sentarmos
para o almoço.
E outra vez ali estava ela, sabendo que havia coisas que eu preferia
esconder e aceitando sem perguntar. Alana passava muito longe de ser
burra, e me deixei aproveitar aquela rara tarde de felicidade, sem culpa por
todas as minhas omissões.
Eu iria seguir o conselho de Lorenzo e falar tudo.
Só não o faria agora.
Só que por mais que ela fosse meu lar, era difícil não lembrar das
palavras de Emília ao observá-la de longe, junto do pai. O homem a olhava
como um dia eu fiz com Nicolas, amor e cuidado evidentes em cada gesto.
Alana era a única que queria, e eu, tudo que gostaria de evitar ter perto
de um filho. Era irritante como nunca conseguia passar um dia inteiro me
enganando, e sentado no sofá da sala colorida com fotos e desenhos
infantis, desejava saber qual seria o limite de quem eu já chamava de
minha. O que ela aceitaria, e o que a faria correr de mim?
— Ela é a menininha do papai. — Veio de Astrid, a mulher mais velha
dividindo o sofá da sala comigo.
— Mas a mãe é mais protetora, — Meus olhos foram da piscina para a
mulher mais velha. — Estou errado?
— Você lê bem as pessoas, Nickolay. — Ela sorriu, sacudindo a
cabeça. — Eu também tenho esse dom. Anos de trabalho como psicóloga te
fazem aprender muito. — Alana tinha esquecido de mencionar o detalhe, e
me senti um iniciante por ignorar por completo as informações que tinha
em sua ficha, esquecida em uma gaveta do quarto. — Onde conheceu
minha filha?
— Numa festa. — Não adiantaria mentir sobre aquilo, minha agora
namorada tendo deixado muito evidente sua mentira na mesa.
Alana precisava aprender a mentir melhor.
— Estou cuidando dela, Astrid. Sua filha está segura comigo.
— E é só isso que vai me falar, não é mesmo? — Não precisei
responder que sim. — Você esconde coisas, Nickolay. Alana esconde
também.
Era quase engraçado descobrir que a intenção nunca havia sido me
interrogar.
— Eu sei que ela anda tendo problemas. Também sei que não deveria
estar conversando disso com você.
— Deveria. — Não me importei em suavizar a voz, ignorando por
completo quem era a pessoa com quem falava. — Que problemas?
Houve surpresa, a mulher parecendo travar um debate interno,
tentando chegar a uma conclusão sobre a intensidade que via em mim antes
de continuar.
— Eu não sei — respondeu com certa culpa, eu tomando nota mental
de rever a ficha que Souza havia levantado. — Já deu pra notar que Lana
não é minha filha, não deu?
— Não vejo como ela poderia ser mais parecida contigo — disse,
achando toda a sinceridade de Alana em sua mãe de criação. — Mas sim,
eu notei a diferença.
Não tinha como não notar. Rogério era uma mistura perfeita dos traços
latinos de Esteban, herdando seus olhos verdes e a pele negra da mãe. Alana
era quase pálida, suas linhas sendo muito mais parecidas com as minhas
italianas do que com as de seus pais.
— Alana estava procurando a mãe biológica. Ela não achou...
— Conheço pessoas que podem ajudar — a interrompi, mas logo
descobri que não era por aquele motivo que as coisas andavam cinzas.
— O problema não é esse, o problema é que minha filha desistiu. — A
confissão veio com um suspiro, a atenção de nós dois voltando para a
piscina. — De um ano pra cá, ela mudou. Parou de procurar os pais
biológicos, parou de nos procurar, simplesmente parou. Como se tivesse
acontecido algo que não pudesse falar. — Ela deu uma risada amarga. —
Eu tenho certeza de que algo aconteceu. Só não consegui descobrir
exatamente o que foi.
Definitivamente ligaria para Souza assim que ficasse sozinho, a mãe
me confirmando o assunto que deveria investigar.
— Thobias não era bom pra ela. — Era a primeira vez que escutava o
nome do ex-namorado que já odiava. — Alana é difícil quando contrariada.
Ela é teimosa, e quanto mais íamos contra o relacionamento, mais ela
parecia se afundar naquele rapaz. Então nós aceitávamos, e eu rezava todos
os dias pra ela conseguir abrir os olhos e colocar um ponto final no que
fazia. Dizia que não iria forçar nenhuma decisão que Alana não estivesse
pronta pra tomar, até o dia que...
Ela parar agora era não-negociável.
— Fale. — Nem mesmo me importei em esconder a impaciência, a
necessidade que tinha em saber que merda havia acontecido sendo muito
maior do que qualquer educação que gostaria de manter.
Não sabia o que Astrid tinha achado em mim, mas os olhos escuros
viram algo que me fez digno da sua confiança, e a mulher continuou.
— Há quase um ano, Alana sumiu por um mês inteiro. Ela não me
atendeu por uma semana, e quando finalmente pegou o telefone, a primeira
palavra já me fez entender que havia acontecido alguma coisa. — Ela
enrugou a testa, os olhos indo para a filha. — Alguma coisa feia. A mãe
sempre sabe, e eu sabia que minha filha tinha passado por algo que não
queria me contar. — E ali estava, uma sensação tão ruim quanto no dia que
mandei Alana sair do apartamento. — Eu só a vi de novo depois de trinta e
sete dias. Se você observar de perto, ainda consegue ver a marca dos
pontos, aqui. — E Astrid apontou para a própria testa, na linha entre a pele
e os cabelos.
Era difícil me sentir enjoado, mas tudo que havia acabado de aprender
fazia meu estômago revirar da pior maneira. Para nós dois, era óbvio
demais o que Alana passou semanas escondendo. Eu caçaria no inferno
aquele moleque, a certeza de que Thobias tinha relação com a mudança que
Astrid me contava tão forte quanto os socos que queria usar para acabar
com aquela vida.
Era difícil reconhecer que me sentia feliz com as próximas palavras.
— Não te conheço o suficiente, mas preciso confessar que fico
aliviada por Alana ter encontrado alguém como você, Nickolay. —
Novamente, a sinceridade que achava em minha dolcezza. — Do seu lado,
consigo ver outra vez um olhar sereno, ouvir a mesma risada de antes.
Minha parte egoísta diz que posso fechar os olhos para os negócios de
família que você diz cuidar, desde que a mantenha segura e feliz.
E como a filha, Astrid me surpreendia. Alana realmente não poderia
ser mais parecida com a mãe.
Decidi por não tocar no nome que havia descoberto durante o café da
tarde, escolhendo um assunto que aparentava ser muito mais tranquilo.
— Por que não disse que foi minha aluna?
Só aparentava, descobri segundos depois de trazê-lo para a conversa.
— Porque meu pai ia querer te matar. — Alana revirou os olhos
quando viu que eu não havia entendido. — Nico, não é óbvio?
— Não?
— Você é muito mais estranho do que eu pensava — ela respondeu,
mas o sorriso nunca deixou seus lábios. — Nickolay, você mesmo acabou
de dizer! Você era meu professor quando me chamou pra sair!
— Não é como se fosse menor de idade, Alana — retruquei, ainda não
enxergando o problema enquanto parava no sinal vermelho. Ela sacudiu a
cabeça, me dando um sorriso debochado. — Eu perguntei se precisava me
demitir! — defendi, ainda lembrando bem da negativa que veio dela.
— Ai, Nickolay. — Tinha um pouco de frustração naquela risada. —
Deixa eu fingir que você tá se fazendo de idiota, porque eu sei que de burro,
não tem nada aí. — E mais uma vez, era ela a única corajosa o suficiente ao
meu redor para usar tais palavras. — Vamos começar com o fato de que
todo mundo que te olha se sente intimidado por você. Adiciona que você
me assediou por semanas...
Talvez devesse ter escolhido Thobias para ser o assunto, já que ambos
estavam deixando meu bom humor inexistente.
— Eu te assediei? — E a culpa veio, eu não sabendo o quanto nosso
começo havia sido ruim para ela.
— Não sei se é exatamente confortável pra todo mundo um professor
te chamando pra sair, pagando um café com notas de cem ou falando que
uma gozada na boca da aluna faria ela mais dócil. — Cocei a barba, ela me
fazendo nervoso já um hábito, eu sempre falando demais ao lado dela.
— Deveria ter me demitido, vero?
— Ou não ter retribuído tão bem minhas tentativas de tirar sua roupa
— ela respondeu, deixando a mão subir pela minha coxa.
— Fora de cogitação. — A segurei, encarando meus olhos favoritos.
— Eu não sabia que tinha te deixado tão desconfortável. Me enfrentava
como se eu não fosse um ninguém, dolcezza!
— Um ninguém? Como se isso fosse possível! — E a risada dela,
quando saía assim verdadeira, conseguia fazer meu coração esquecer como
funcionar por um segundo.
— Cazzo, não estava nos meus planos gostar de ti como gosto, Alana!
— confessei em voz alta pela primeira vez, fazendo o sorriso dela
desaparecer, a surpresa óbvia em todo seu rosto.
Só notei o farol outra vez aberto pela buzina insistente que vinha do
carro de trás.
— Precisa de muito mais do que um professor babaca pra me deixar
mal. — A resposta veio mais séria do que a de segundos atrás, sua mão
ainda em mim. — E como eu já disse, você não me intimida nem um
pouquinho, italiano. Quem faz isso sou eu, esqueceu?
Houve silêncio até a próxima curva, eu parando o carro na frente do
portão da casa que andava dividindo com ela. Envolvi a mão pequena com
a minha, a levando até meus lábios, procurando seus olhos.
— Me desculpa. — Fui tão verdadeiro quanto consegui, a palavra tão
pouco usada por mim soando estranha. — E grazie, por ficar.
Ela desviou os olhos antes de responder.
— Às vezes, você é tão sincero que me assusta.
— Como eu posso me redimir? O que quer? — perguntei, não mais
resistindo e a puxando para um beijo, nós dois ignorantes ao portão aberto.
— São poucas as coisas que eu não posso te dar.
E ali estava o mesmo sorriso da manhã de sexta, Alana deixando uma
das mãos explorar meu corpo enquanto eu estacionava na frente da entrada.
— Quero saber o que você tanto falou com a minha mãe depois do
almoço. — Veio assim que tirei a chave da ignição.
— Dolcezza…
O que Thobias fez contigo? Mas perguntar aquilo era assinar minha
própria confissão, acabando com a farsa que ainda queria manter com ela.
— Quer ajuda para achar sua mãe biológica? — Imaginava que seus
olhos se encheriam de lágrimas.
Ela fungou antes de me responder.
— Sim.
ㅤ
Conseguia esquecer das palavras de mais cedo com ela nos meus
braços. Ali, dividindo uma quarta ensolarada no meio da piscina, não me
importava com a falta de perguntas de Alana. Nos grudávamos na promessa
de normalidade, aproveitando um ao outro na mesma tarde que pessoas
normais passavam enfurnadas dentro de um escritório.
Ao invés de preso a um cubículo, estava preso a ela, suas pernas ao
meu redor enquanto Alana terminava de me contar sobre sua manhã, e o
estágio que pensava em tentar conseguir. Os beijos que me dava eram bons
demais, sua boca sabendo melhor do que qualquer outra de tudo que eu
gostava, e já imaginava com quem deveria falar para que o emprego fosse
dela.
Ela sorria de olhos fechados contra o sol, e Astrid estava certa: ainda
era possível ver a marca dos pontos, bem no fim de sua testa. Também já
sabia tudo sobre Thobias Albuquerque, e o moleque tinha sorte de estar fora
do Brasil e eu não poder ir pessoalmente atrás dele.
Ao menos não ainda.
— Poderia passar mais dias assim — admiti, empurrando para longe a
memória do playboy mimado que ela um dia teve o desprazer de namorar.
Pensar nele tendo minha mulher nos braços me fazia querer pegar o
próximo voo e caçá-lo em Portugal, o país pequeno demais para o moleque
se esconder de mim.
— Eu também. — Gemi quando senti a mão dentro da minha sunga, a
pressionando contra a borda da piscina enquanto mordia seu pescoço. Alana
não parecia conhecer a palavra descanso, sempre me fazendo descobrir um
lugar novo para tirar sua roupa.
Ou naquele caso, nem mesmo tirar.
— Se não parar — sussurrava, me esfregando contra a palma da sua
mão, mal lembrando que não estávamos a sós na mansão naquela tarde. —
Não garanto chegar até o quarto.
Ela testava meu autocontrole ao passar as unhas pelas minhas costas,
me deixando ofegante com todos os estímulos. Até a risada dela conseguia
me fazer ficar mais duro, e eu nem mesmo precisava me livrar de nenhuma
peça para começar o que queria.
— Você tá tão mudado! 'Não garanto chegar até o quarto', tá se
tornando um romântico! — Sorri contra a pele do seu pescoço antes de
mordê-la mais uma vez, Alana gemendo no meu ouvido me fazendo
considerar desamarrar a parte de baixo do seu biquíni cinza. — O italiano
que eu conheci não era tão doce.
— Ah, não? O que ele falaria? — perguntei, brincando com as tiras,
tão próximo de mandar qualquer pudor para o inferno e me enterrar nela no
meio da piscina. — O que ele falaria, Alana?
Ela sempre ficava muda quando via que tinha provocado demais, a voz
sumindo e o coração acelerando em antecipação.
— Nico...
— Se não parar de me provocar — comecei, sorrindo ao sentir as mãos
agarrando meus cabelos, os seios pequenos enrijecendo contra meus dedos.
— Todos vão ouvir quando eu te debruçar na borda e te...
— Chefe? — Grunhi ao escutar a voz de Matteo, o segurança na porta
anunciando visitas que não esperava para aquela tarde. — Souza está
esperando na entrada.
— Por que Mantovanni não atende? — reclamei, minha mulher
provando ser o que eu sempre a chamava em pensamento ao não me dar
trégua nem no meio de uma conversa.
— Ele está com Matarazzo na linha. — Às vezes, eu odiava Lorenzo.
Bufei, me livrando de Alana a contragosto, tentando pensar no que
poderia ser importante o suficiente para me colocar longe dela.
A única coisa que me tranquilizava era a impossibilidade de ser
Vincenzo, por mais que aquela fosse a escolha mais segura para a mulher
que queria me deixar ir tanto quanto eu queria sair da piscina. Não confiava
em tê-la perto de nenhum dos homens com quem trabalhava, e me
inquietava ter Alana sozinha com mais pessoas na casa.
A voz de Mantovanni gritava na minha cabeça, e eu me forçava a
acreditar que aquilo não era intuição, mas paranoia.
— Se enrole numa toalha e fique aqui — mandei, Alana franzindo a
testa e já se preparando para responder. — Fique, dolcezza. Pega a toalha.
Pareceu sorte ela resolver por obedecer ao que eu pedia, apenas me
dando um bico em protesto.
— Vai sair desse jeito? — Escutei já fora da piscina, Alana rindo ao
ver a sunga não escondendo o que estávamos prestes a fazer.
— Essa piscina deveria ser mais gelada.
Vesti a bermuda abandonada sobre a espreguiçadeira e fui para dentro
da casa, Matteo já de pé ao lado de dois homens que não me eram
estranhos.
Os contratados não faziam parte da Famiglia, o que me deixava ainda
mais ansioso ao ter Alana nos fundos da mansão. Os brasileiros com os
quais trabalhava não eram conhecidos pela gentileza ou pela noção, o
respeito mais do que ausente quando se tratava de mulheres. Souza estava
entre eles, e já imaginava qual assunto seria tratado.
— Não estava esperando ninguém — reclamei, cruzando os braços e
estreitando os olhos.
— Desculpe interromper, senhor DeLucca. — Quem respondeu foi o
mais velho, minha atenção focando nele. Já sabia o que viria, o único
objetivo dos homens à minha frente sendo o de encontrar o que eu buscava
desde que me associei a Matarazzo. — Nós temos informações sobre a
mulher que procura.
A conversa seria demorada, e eu precisava acabar com aquilo o mais
rápido possível. Ah, minha inexistente sorte.
— Comece — mandei, notando Matteo voltar para a entrada da
mansão, o homem mais baixo encostando-se contra a escada que dava para
o andar superior. — E seja rápido. Estou ocupado.
— A senhora Barbosa estava na Itália no dia em que a filha morreu. —
Respirei fundo, me contendo para não reclamar que já sabia daquele detalhe
sobre o dia da morte de Catarina. — Achamos uma pessoa que a viu
segurando um bebê na tarde do assassinato.
— E como isso me ajuda? Barbosa está morta — apontei, não
escondendo minha impaciência. — Está morta, e qualquer um pode falar
sem provas. Onde estão? — O olhar confuso não me ajudava a manter a
calma. — As provas! Eu contratei imbecis?
— Senhor DeLucca, se posso interromper. — Era Souza, ele não
podia, e eu sabia que o assunto demoraria mais do que alguns minutos. —
Talvez seja melhor nos sentarmos para continuar a conversa.
— Por que não falou com Mantovanni? — Voltei a olhar para a
piscina, por um momento aliviado ao vê-la seguindo uma ordem à risca pela
primeira vez, Alana enrolada na toalha.
— Porque o senhor pediu para nunca ser deixado de fora. — Bufei: era
verdade, as férias das minhas responsabilidades que andava me dando com
quem dividia um quarto me tornando um puttano esquecido.
— Ok, vamos para o escritório — mais lamentei do que disse,
arrumando para trás os cabelos úmidos e alcançando a camiseta que Alana
havia me feito largar no corrimão.
Talvez ter aqueles homens ali, no fim, fosse muito melhor do que
encarar quem eu chamava de chefe.
— Quem é a pessoa? Temos a localização?
— Sim. Ela trabalhava numa empresa ilegal de adoções — Souza disse
quando começamos a caminhar para a porta à esquerda, eu virando a
maçaneta e me virando para onde estavam os outros dois. — Com tudo que
achamos, existe motivo para acreditar que a criança foi adotada aqui no
Brasil.
Parei de escutá-lo assim que contei apenas um, o moreno que estava
antes na escada tendo desaparecido. Queria desacreditar que qualquer um
seria idiota o suficiente para tornar justo o que eu não queria verdade, mas o
grito agudo que veio do lado de fora provava o contrário. O barulho de
alguém caindo na água veio quando saí pela porta de correr, e alcançar a
arma escondida embaixo da mesa da área externa foi puro instinto.
Destravá-la e apontá-la para a cabeça da pessoa que tentava sair da piscina,
também.
Eu estava tão próximo de puxar o gatilho.
— O que fez para minha mulher gritar? — Tão, tão próximo, o cano
em poucos segundos alcançando a testa molhada.
O homem estava tendo um problema tão grande para falar quanto eu
estava para controlar meu temperamento.
— E-eu não sabia que era sua mulher! Eu juro!
Aquelas seriam suas últimas respirações, eu tinha certeza.
— Ele te tocou? — perguntei sério, meus olhos não deixando os
verdes arregalados do homem que estava para matar. Ela só precisava
responder que sim. — Alana, ele te tocou? — Seria apenas um stronzo[54] a
menos no mundo.
Ela fungou antes de responder, meu dedo apertando mais o gatilho ao
ouvir o som.
— Não aconteceu nada Nickolay, pelo amor de Deus, abaixa a arma!
O alívio nos olhos verdes foi automático, por mais que eu não
acreditasse nas palavras ditas. O cano continuava pressionado na testa
pálida, mas eu já estava prestes a travar a pistola. O teria feito, não tivesse
olhado para onde Alana estava.
A ver sem a parte de cima do biquíni, o tecido junto da toalha
flutuando na água cristalina, seus braços mal cobriam os seios, me fez não
ter mais dúvidas do que deveria ser feito. O medo voltou para o homem
assim que ele entendeu o que aconteceria.
— Nico, no! — Foi a voz de Lorenzo que me impediu de atirar, ele
jogando uma toalha seca para Alana antes de ir para meu lado. — Ele não
sabia, eles se conhecem! Eu já te falei para deixar isso claro, Nickolay!
Foi a mão dele, o único que se atrevia a chegar perto de mim em
momentos como aquele, que afastou o cano da testa marcada. Praticamente
jogou o homem para longe de mim antes de chamar Matteo, o segurança
aparecendo em segundos.
Recuei, tentando recuperar alguma calma, guardando a arma travada
no cós da bermuda. Nunca deveria ter saído de perto dela, e só quando me
virei para Alana que entendi o tamanho da merda que tinha acontecido.
Porque os olhos assustados nunca haviam me visto reagir daquela forma,
por mais natural que tivesse sido fazer aquilo na frente dela.
E porque reagir daquela forma queria dizer somente uma coisa: a
mulher que presenciava a cena sabia de tudo, e era de confiança.
Praticamente da Famiglia. Olhava para os três homens que desapareciam
para dentro da casa, e me perguntava se precisaria matá-los para evitar que
aquilo chegasse em quem não devia. Eu os mataria para protegê-la sem
pensar, se ao menos o sumiço deles não fosse gerar tantas perguntas.
Cazzo. O gosto amargo tomava conta da minha boca, e me virei com
pesar para a mulher que amarrava a parte de cima do biquíni. As mãos
tremiam, o nervosismo a impedindo de dar um nó nas tiras, ajudá-la sendo
automático.
Ela recuar do meu toque queimou mais que uma bala no peito, as
palavras de Lorenzo voltando para minha cabeça. Como Alana conhecia um
homem que nos ajudava a esconder corpos?
E a ficha dentro do armário voltava para minha mente, a mulher e sua
lista tão longa quanto a que eu tinha de pessoas que haviam aquecido sua
cama me fazendo ver vermelho.
— Quem era? — O único jeito dela conhecê-lo era aquele, e eu
reconsiderei deixar o homem sair ileso. Eu tinha ótimas desculpas para
eliminá-lo. — Por que ele te tocou assim?
— É sério que você tá me perguntando isso? — Alana recuou da
minha mão como se fosse fogo. — Não, Nickolay! Por que você tem armas
escondidas pela casa?
— Alana...
— Você mata pessoas? — ela questionou, por mais que já tivesse uma
boa resposta após presenciar minha reação. — Eu te vi quase puxando o
gatilho, Nico!
Sim, ela tinha visto, e eu deveria tê-lo feito. Esfreguei os olhos,
respirando fundo antes de soltar a pergunta.
— O quão errado seria matar o traficante que tentou te estuprar
naquela sexta?
A escutar puxar o ar me vez voltar a encará-la, e ali estava o
sentimento que ela tanto lutava para esconder. Os olhos mel mostravam
medo, e não ter certeza da origem do sentimento me angustiava além do
meu confortável.
— Sempre existe outro jeito.
Alana escapar novamente do meu toque e se enrolar na toalha me fez
lembrar da conversa tida no começo daquela manhã. Novamente me
enganei dizendo que ainda tinha tempo, que ainda podia contar tudo e
deixá-la escolher entre ficar e partir, por mais que eu não a quisesse
distante.
— Eu não quero mais fingir, Nico. — E ali estava o fim da nossa farsa.
— O que você faz?
O barulho do celular vibrando sobre a mesa de vidro prendeu nossa
atenção, eu alcançando o aparelho parecendo encurtar ainda mais a
paciência dela. Claro que a tela me mostraria justamente o número que eu
não queria ver agora, e minha mente montava os últimos acontecimentos
como um quebra cabeça.
— Preciso atender essa ligação.
Ainda haveria chance de eu me livrar do que estava acontecendo,
tivesse Alana deixado o aparelho na minha mão. Já deveria ter aprendido o
quão arisca ela ficava quando assustada, o quanto não se sentir no controle
despertava seu pior temperamento.
Alana era tão como eu.
— Não, você vai me responder! — Ela também era uma das únicas
que me desafiava, se atrevendo a me contrariar mesmo depois de me ver
quase matar um homem. — Me fala logo que merda você faz! Eu quero
ouvir!
— Alana, me dê meu telefone. — Tentei, numa voz calma.
Deveria tê-lo arrancado de suas mãos.
— Ele está ocupado — Alana atendeu de forma áspera. E então,
desligou na cara de Matarazzo.
E fazendo aquilo, sabia que a mulher tinha acabado de desligar todas
as chances que eu tinha de poder deixá-la fora da minha vida. Porque só
havia duas possibilidades, e eliminá-la era algo completamente fora de
questão.
O amor não nascia numa prisão, e por mais que eu me sentisse
emocionalmente burro quando o assunto era relacionamentos, tinha noção
de que ambas as partes precisavam do sentimento para um dar certo. Saber
que eu tinha acabado com qualquer chance nossa doía tanto quanto a
lembrança de todos os dias ruins ao lado da minha antiga esposa.
— Está louca? Pare de se comportar assim! — E o telefone voltou a
tocar, Alana recuando quando tentei alcançá-lo.
— Eu preciso de alguma coisa, Nickolay! Essa normalidade que você
insiste em buscar comigo...
— O telefone, Alana! — Ela insistia em afastá-lo das minhas mãos,
mostrando toda a coragem que tinha ao me enfrentar.
— Isso não tá mais funcionando pra mim! — Eu não deveria
incentivar essa coragem.
— Me dá o telefone, agora!
Eu, também, não deveria me surpreender com ela jogando o aparelho
no fundo da piscina, mas já havia concluído que essa mulher teria tal poder
sobre mim até o final dos meus dias. A última vez que havia lidado com
tanta desobediência tinha sido com Giovanna.
— Vai buscar.
Mas era diferente. Enquanto eu literalmente obedecia a seu último
comando, recuperando o aparelho e agradecendo por ter escolhido um
modelo à prova d'água, escutava uma porta bater. Giovanna me enfrentando
era fria como a água da qual saía.
Alana sempre queimava.
E desejava mais do que tudo que continuasse queimando. Justo eu, um
ateu, pedia a qualquer Deus para deixar o fogo vivo, mesmo depois de todas
as informações que precisaria oferecer à mulher que ouvia ir embora da
mansão. Rezava para que o fogo continuasse apenas nos momentos que
precisava dele, e não em todos, assim que descobrisse haver apenas uma
opção a ser seguida.
— Isso não vai se repetir — prometi ao atender o telefone, não
conseguindo pensar em nenhuma desculpa para a voz feminina que o tinha
destratado minutos atrás.
— Posso saber por que ignorou seis ligações, figlio? — Matarazzo
perguntava numa voz séria, e eu já sabia que estava fodido.
— Porque jogaram meu celular na piscina. — Não ter uma desculpa
para a demora fazia minhas mãos suarem frio, eu já querendo meu calor
ambulante de volta.
— Os homens que expulsou da tua casa, ou a tua puttana? — Ele riu,
mas para mim não havia graça no som, quanto mais na forma que o Don
insistia em se referir a única mulher que eu queria. — Bem, eu tenho que,
no mínimo, respeitar a coragem que existe nela. Sempre gostou das difíceis,
Nico.
A bronca de Lorenzo veio assim que finalizei a ligação, o homem me
esperando encostado na porta de vidro.
— Eu te avisei, Nickolay. — Ele sacudiu a cabeça em desaprovação.
— Olha bem a mulher que tem! Por que nunca me escuta?
Engoli, mas a bola na minha garganta não dissolvia. Odiava ter aquela
reação relacionada a quem só queria associar a minha paz, e me sentia um
imbecil por ter, mais uma vez, decidido ignorar as palavras do homem que
eu sabia querer só ajudar.
Ainda lembrava de todas as vezes que havia desprezado seus
conselhos, eu novamente me fodendo por fazê-lo. Quem eu ainda me
negava a chamar de pai reconheceu meu cansaço e todas as memórias que
vieram, e o sermão se limitou a cara irritada, ele me ordenando para dentro.
A tarde foi muito mais longa do que gostaria, a tarefa de focar nas
novas descobertas ao invés de Alana beirando o impossível. Descobri que
sim, as informações de mais cedo checavam, e a agora mulher que
procurávamos estava, em teoria, viva. Mas não havia muito além disso, e
não haveria antes de ter qualquer conversa com a ex-funcionária.
Cazzo. O quão difícil poderia ser achar uma mulher de vinte e quatro
anos naquele país? Talvez eu até conseguisse antes do fim da minha vida,
sendo otimista ao pensar que passaria dos quarenta.
Foi com o mesmo otimismo que bati na porta de Alana naquela noite.
Não foi ela quem respondeu.
— Sim? — A garota que me recebia tinha uma cara de poucos amigos
que se igualava à minha.
— Onde ela está?
— A Lana não quer falar com você.
Bufei, copiando sua mania irritante de revirar os olhos. Ela realmente
conseguia se portar como uma pirralha mimada, por mais que nunca mais
fosse usar tais palavras.
Quis dizer aquilo em voz alta quando reparei no que ambos havíamos
esquecido de fazer.
— Incredibile[55]! Voltou para o apartamento, mas ainda não trocou as
fechaduras! — Pincei o nariz: Alana iria me deixar louco. — Só são as
duas?
— Te interessa? — E tinha amigas que pareciam querer ajudar na
causa. — Acredite, nós sabemos nos defender.
Não precisei me esforçar para escancarar a porta e entrar, quem eu
tanto queria ver permanecendo com os olhos grudados na televisão
enquanto esparramada no sofá. A amiga me olhava com uma irritação que
competia com a da minha mulher, dando a entender ser tão difícil de lidar
quanto.
— Estou vendo como consegue. — Mas não iria insistir. — Diga para
Alana me ligar se precisar de qualquer coisa — falei, alto o suficiente para
quem vestia uma camiseta que não era minha, depois de tantas noites
deixando o cheiro na minha cama, ouvir. — Boa noite, senhorita Amaral.
Fechei a porta atrás de mim, mas só andei após ouvi-la sendo trancada.
Filha da mãe.
“Vá para um hotel. Reservo um quarto para as duas.”
Sabia qual seria a resposta antes de clicar em enviar.
“Não.”
Mas ainda assim, continuei.
“Te mando o endereço em 1 minuto.”
“NÃO VOU, NICKOLAY.”
Suspirei, aceitando que passar a noite no carro seria mais fácil do que
lidar com Alana.
“Por que é tão teimosa?”
Fechei a porta, trancando a Mercedes e ligando o ar-condicionado. Ela
não tinha respondido.
“Quando vai trocar o cazzo da fechadura?”
Tirei o laptop do fundo falso que havia no banco do motorista, me
perguntando o quanto conseguiria ficar de olhos abertos antes de desistir. O
dia havia me drenado, a vontade de dormir abraçado a ela me deixando com
o mesmo humor que tinha antes de conhecê-la.
O celular não vibrou mais.
E assim, conviver com Alana, antes assustadoramente fácil, começou a
deixar de ser.
ㅤ
Não insisti em mais nada a não ser escutá-lo gemer meu nome durante
o resto da manhã. O italiano não se opôs as minhas tentativas de fazê-lo
esquecer de qualquer coisa desagradável, e por toda a tarde, o distraí com
todas as histórias que poderia lhe contar. Era bom saber que eu tinha o
mesmo poder que Nico em fazer os problemas desaparecerem, os olhos
escuros outra vez livres de aflição ao observarem meu corpo, coberto por
uma camiseta branca e a parte de baixo do biquíni.
Vestir as roupas dele havia se tornado um hábito que Nickolay
adorava, e eu não resisti quando fui puxada para seu colo. As risadas
deixavam a noite leve, e a mão que tinha uma caveira tatuada era inofensiva
ao me alimentar chocolate na beira da piscina do hotel, minha boca
lambendo seus dedos sendo muito mais perigosa.
Era a vez dele de me fazer perguntas difíceis.
— Por que eu? — Mas estranhamente, minha resposta para aquilo veio
de forma natural.
— Porque eu não tenho pesadelos com você me abraçando. Porque, do
seu lado, eu consigo respirar. — A sinceridade pegou nós dois de surpresa.
— Também deve ser pelo corpo — brinquei, minha mão traçando os
músculos definidos do peito nu, ele conseguindo ficar mais do que
desejável vestindo só uma sunga.
— Isso é o suficiente para ti, Alana?
— O corpo? — perguntei, mesmo sabendo que Nickolay não se referia
a isso.
— Respirar.
— É. — admiti no mesmo segundo. Eu já prendia a respiração havia
tempo demais. — É o suficiente, Nico.
A próxima pergunta só veio após meu nome sair gemido dos lábios
dele pela última vez naquele sábado, nós dois não ligando para o quanto
estávamos suados, o italiano ainda ofegante achando meus lábios.
— O que mais precisa saber sobre mim, dolcezza? — Veio com ele me
puxando para seu peito, e eu sorri contra sua pele.
— Acho que quis perguntar o que seria um empecilho para mim,
certo? — Levantei a cabeça, Nickolay parecendo curioso esperando minha
resposta. — Eu ainda não sei se teria algum, se você continuar me tratando
bem.
E ali estava a confusão que eu deveria, mas não esperava, ver.
— Por que eu trataria diferente?
Às vezes, esquecia do que tinha me falado tantas e tantas vezes quando
fui morar sozinha. O que eu tive por cinco anos não foi saudável. Não era o
normal, e eu não deveria nunca repetir aquilo, não poderia nem considerar
me juntar com alguém que passasse perto do que havia sido Thobias.
Eu gostava de não achar semelhanças entre os dois homens, meu
presente não tendo comparação com meu passado, apesar de todas as
minhas desconfianças. Mesmo com as respostas vagas e trabalhos
duvidosos, Nickolay era melhor do que Thobias algum dia seria.
— Porque as coisas mudam — admiti, já querendo mais que tudo que
nada mudasse. Poderia viver sem a sinceridade que pedia, não precisava de
nenhuma resposta. Queria que nosso fim de semana durasse para sempre.
— Começos deixam de ser começos, e a suavidade vai embora.
A voz que encheu o quarto era séria, Nickolay entendendo bem demais
o que quis dizer, os olhos expressando toda a verdade que havia nas
próximas palavras.
— Sempre vou ter essa suavidade contigo, Alana.
Ele sempre sabia o que falar, e por um momento, a perfeição
exagerada fez algo gritar dentro de mim. Nada nunca bom demais durou na
minha vida. Contos de fadas não existiam no mundo real, e me dava um
medo irracional pensar no que poderia dar errado entre nós dois.
Quanto custaria ter minha normalidade de volta?
— Isso não quer dizer que não vão ter brigas — ele continuou com um
sorriso brincalhão. — Com a cabeça dura que tem...
— Que eu tenho??
Decidi que sim, sua risada era meu segundo som favorito, o primeiro
sendo feito quando meus lábios tocaram seu pescoço.
— Começo, meio ou fim, dolcezza, — Ele me puxava para cima dele
outra vez, e em poucos segundos, descobri estar errada sobre aquela ser a
última vez que meu nome seria dito pela voz rouca naquele sábado. —
Todas as nossas partes vão ser suaves contigo do meu lado.
Queria mais que tudo acreditar naquilo.
Tinha vinte e quatro anos quando disparei o primeiro tiro para matar.
Eu ainda lembrava do barulho da bala atravessando o crânio, o cheiro de
sangue que sempre enchia minhas narinas naqueles momentos.
Eliminar pessoas não fazia mais parte do meu dia a dia, mas era um
trabalho que nunca me incomodei em realizar. Todos homens, todos
culpados, todos com tanto, senão mais, sangue nas mãos quanto eu.
Traidores da Famiglia, empecilhos para nossos negócios, fiéis aos rivais
com quem por muitos anos travávamos uma guerra.
Eu não me importava, nem fazia questão de questionar as ordens, e
Matarazzo mostrava adorar o quanto conseguia me moldar em quem um dia
fora seu assassino particular. Como meu pai, cada vez que puxava o gatilho,
colocava mais tinta no corpo, uma forma de não esquecer o que fazia — de
exibir que deveriam me temer. Já planejava a próxima tatuagem desde o
começo da quarta, a única distração para minha mente sendo o toque de
Alana.
Não havia algo que me distraísse antes dela, eu não sendo capaz de me
envergonhar da minha falta de compaixão depois de ter perdido Nicolas.
Era engraçado como a morte dele fora tão mais doída que a de sua mãe, eu
me sentindo muito próximo das lágrimas ao vê-lo deitado na areia.
Talvez fosse por já ter perdido Giovanna muito antes, a garota
morrendo por dentro no dia em que Alice partiu. Nicolas era toda a luz que
havia deixado minha amiga, e o tendo nos meus braços, me questionava
como Armando conseguiu simplesmente desistir de nós após a morte da
nossa mãe. O menino era minha vida inteira, e pouco me importava a
criança não ter meu sangue: era meu filho, muito mais meu do que de
Giovanna.
Demorou mais do que deveria achar o responsável por tirar o pouco de
luz que me restava. Eu já tinha uma nova centelha quando recebi a notícia
no dia anterior, Alana diminuindo minha dor na noite passada, mesmo tão
ignorante aos meus machucados. Era por causa dela e do carinho que
ganhava que eu estava disposto a dar uma morte mais rápida que a
planejada por anos para o assassino de Nicolas?
A mulher beijou todas as minhas feridas, as deixando prestes a
cicatrizar depois de tanto tempo. Mas ainda doía, Nicolas sendo minha dor
crônica, minha inabilidade de protegê-lo me fazendo paralisar sempre que a
lembrança vinha.
Com as mãos já manchadas de sangue, sabia que puxar o gatilho não
seria minha cura. Ainda assim, o fiz.
Escutei alguém puxar a respiração e soube quem era antes de me virar.
Meu coração batia tanto quanto o do corpo que caía aos meus pés quando
achei os olhos mel. E ali estava: medo. O mesmo medo que via antes no
homem, que agora, sem vida, manchava o piso de vermelho.
O próximo minuto pareceu uma eternidade. Travei a pistola, a
colocando sobre a mesa e me forçando a olhar para longe de Alana e de
volta para a única pessoa que deveria ter minha lealdade. Amaldiçoava meu
azar, assim como rezava para a mulher continuar quieta enquanto encarava
quem ainda se considerava meu sogro. Vincenzo tinha um sorriso satisfeito
no rosto, mas denunciava a curiosidade pelos olhos.
— Nickolay, quem é? — ele perguntava em italiano. Só havia uma
resposta que poderia ser dada, e eu sabia.
Não precisei olhar para Lorenzo para ter conhecimento de sua
reprovação antes mesmo de eu abrir a boca, a voz do homem que tinha sido
mais pai do que meu verdadeiro ecoando em minha cabeça.
"Nenhum amor nasce numa prisão."
— Minha noiva — respondi na minha língua mãe, assinando um
casamento que seria obrigado a acontecer, independente da resposta de
Alana.
Independente da vontade do meu chefe, eu sabendo que a única
maneira de a salvar era amarrá-la a mim. E era o que eu faria, mesmo que
fosse contra a vontade de quem ainda permanecia paralisada na entrada.
— Não lembro de Emília ser morena. — Matarazzo andava me
olhando mais incomodado do que eu deveria considerar seguro nos últimos
tempos.
— Ela não é.
Repetia que precisava manter os olhos nos castanho-claros de quem
deveria obedecer, por mais que quisesse correr até quem eu reconhecia estar
em choque. Ela estava em choque, estava em choque e não reagiria, eu me
convencia outra e outra vez.
— Preciso de um minuto, Don Matarazzo.
— Motivo?
— Minha mulher nunca viu um corpo — justifiquei, disposto a usar
qualquer sorte que me tivesse restado para conseguir um maldito minuto a
sós com ela.
— Então está na hora de aprender, não acha? O que uma mulher fraca
pode te trazer de vantagem? — Não ir até Alana antes da aprovação dele foi
uma das coisas mais difíceis que já tive que fazer. — Emília traria muito
mais.
— Ferreti traria mais vantagens casando-se na Itália, e eu posso provar
— afirmei confiante, não fazendo ideia de que vantagens inventaria se ele
perguntasse quais. — Eu não sou ninguém para trazer qualquer benefício
para a Famiglia. Por mais que me veja como um filho, não sou influente,
apenas temido por fazer o que faço.
— E existe influência melhor do que o medo? — Já pensava em quem
precisaria eliminar para tirar Alana com vida daquela sala quando Vincenzo
me deu sua decisão. — Um minuto.
E por mais ateu que fosse, grazie a Dio[68].
Não respirei aliviado, mas respirei, a alcançando em cinco passos
largos. Soltei a mão pequena que ainda estava presa na maçaneta e fechei a
porta atrás de nós, os olhos grandes me observando desacreditados, a boca
aberta tentando pronunciar palavras que não vinham. Minha mão sujava a
pele branca com o sangue que nunca deveria estar nela, e a visão fazia meu
estômago revirar.
E eu sabia que não podia consolá-la. O que eu mais queria era
envolver o corpo trêmulo num abraço, e a última coisa que deveria fazer era
aquilo. Alana continuando assustada era uma opção muito melhor do que
ela tendo coragem para qualquer reação.
— Tem sangue...
— Me olha — ordenei sério, minha mão segurando seu queixo e
mantendo seus olhos nos meus. — Precisa me obedecer sem discutir, Alana.
— Era tão errado falar com ela usando a voz que guardava para meus
subordinados. — Vamos voltar para a sala, e quero seus olhos em mim o
tempo inteiro, ouviu? Olha para mim e não fala nada, sorria e não responda.
Só olhe para Matarazzo se ele falar contigo. — Dio santo, ela nem mesmo
sabia quem era Vincenzo, e meu cérebro me atormentava com todos os
cenários que poderiam transformar a situação num caos.
— Nickolay...
— Alana, quieta. — Um minuto era pouco demais. — Por tudo que é
mais sagrado, fica quieta.
Soltei seu queixo, uma mão a prendendo pela cintura antes da outra
abrir novamente a porta, e Alana estava cheia de sangue.
Pelo menos um minuto parecia ser o suficiente para cobrirem o corpo,
a única evidência do feito vista do local onde paramos sendo a enorme
mancha no tapete branco.
— É um prazer finalmente te conhecer, Alana. — Foi a primeira coisa
dita ao voltarmos para o escritório, e eu sabia que era mentira. — Esperava
um rosto muito menos dócil, visto a personalidade que ouvi dizer que tem.
Os olhos mel estavam em mim, mas ela não estava ali. Tentava
imaginar o que seria preciso para fazê-la voltar: um grito, um puxão, um
tiro? Meu corpo denunciava o nervosismo para todos da sala, as palmas das
mãos suadas, o coração praticamente explodindo, eu parecendo um puttano
novato, e não o ceifador sem sentimentos que tinha me acostumado a ser.
Tendia ao pessimismo, mas quais as chances de tudo acabar bem?
Ao menos o italiano era a língua usada, uma desculpa para Alana nem
ao menos inclinar a cabeça em direção a voz.
— Don Matarazzo disse que está encantado em conhecê-la — traduzi,
meus olhos indo dos do Don para os dela.
— Não fala italiano? — Fiz que não com a cabeça, amaldiçoando a
vida ao senti-la tremer mais. — Hum.
A puxei para perto com a mão que mantinha em sua cintura, Alana
parecendo sair de seu transe e finalmente me olhar e reconhecer. Ela
mordeu o lábio inferior, a mão direita apertando minha camisa por trás, a
língua provando o sangue que havia deixado em seu rosto.
— É mais fácil deixá-las de fora desse jeito.
— Concordo. — A afirmação não podia passar mais longe da verdade.
Eu não queria Vincenzo andando para perto de minha mulher, e não
podia fazer nada para impedi-lo de tal. Alana parecia perceber o sangue só
agora, ela limpando com seu antebraço onde minha mão a havia segurado.
A forma que eu a vi trancar todas as emoções que sentia e colocar uma
expressão calma no rosto me assustou mais do que Matarazzo. Alana era
para estar surtando, e novamente, minha negatividade me fazia considerar
aquilo como o começo de um. Ela tirou os olhos dos meus e os levou até
quem nem deveria considerar olhar, e eu queria acreditar que a mulher que
chamava de minha era mais forte do que esperava que fosse.
— Nickolay é como se fosse meu figlio. — Vincenzo escolheu usar
português, seu sotaque muito mais carregado. — Eu não esperava chegar no
Brasil e encontrá-lo noivo. — O jeito que ele a encarava com desdém me
incomodou além do que deveria.
Ele não deveria olhar assim para minha mulher. Ele não deveria sequer
olhá-la.
— Bem, não de ti. Isso é uma paixão do momento, ou tem algo a mais
que eu deveria saber? — A pergunta foi para mim, ele levantando uma
sobrancelha. — Vou ser avô outra vez, Nico? É por isso que só agora
descobri essa troca de noivas? Engravidou a ragazza e Emília não quer criar
um bastardo?
Ouvir tais palavras doeu muito mais do que poderia imaginar, minha
voz me traindo e saindo rouca ao lhe dar uma negativa.
— No. — Voltei para os olhos mel que estavam novamente em mim,
minha noiva me encarando com uma surpresa que sabia passar longe do
agradável. — Apenas achei desrespeitoso avisar por outro meio que não
pessoalmente. Só esperava poder fazer isso em uma situação mais
apropriada — menti, querendo mais do que tudo pedir perdão por estar
prendendo-a daquela forma.
Ela entendia o que estava acontecendo?
— Alana é especial, Don.
A risada atípica fez um arrepio percorrer minha espinha.
— Sim, eu já entendi essa parte. Afinal, não são todas as donne[69] que
afogam o teu celular e continuam do teu lado! Para uma mulher com um
temperamento desses, me surpreende ela não ser italiana.
Ele se aproximar me fez abraçá-la ainda mais forte, o que não passou
despercebido. Eu estava fodendo mais e mais com tudo a cada segundo.
— E onde está o anel?
Passei a mão pelos cabelos, deixando uma sombra de risada escapar.
Cazzo. Eu nem mesmo tinha a minha arma comigo.
— Está mentindo para mim, figlio? — Como se ter uma arma agora
fosse adiantar. — O que é de Nickolay, Alana? Donna ou puttana? Porque
se for puttana, o costume é dividir.
Não, uma arma na minha mão agora só teria nos matado. Porque eu já
teria atirado assim que o ouvi outra vez chamar minha mulher de puta.
Então eu repetia que nada iria acontecer. Vincenzo era instável, mas não era
como se eu tivesse feito algo para trair sua confiança. Alana ficaria quieta,
e...
— Mulher dele. — Se minhas mãos suavam antes, agora elas
escorriam, Alana como sempre tornando o outono paulistano mais quente
que o normal. — Nickolay não está mentindo.
Ela sabia para quem estava respondendo? Quantos santos eu conhecia
para pedir qualquer serenidade para a mulher que abria a boca?
Adiantaria um ateu pedir alguma coisa?
— Sou exigente com anéis — ela continuou, a voz firme. — Nico sabe
disso. Vamos escolher um essa semana, não vamos? — terminou me
olhando, e novamente, a observei precisando forçar uma expressão neutra,
por mais assustado que estivesse com o comportamento que ganhava dela.
Alana havia acabado de me ver matar um homem, minha mão sujava
sua cintura de sangue, e a mulher nem mesmo hesitava ao despejar as
palavras. Ela poderia ter aberto a boca para falar qualquer coisa, ela poderia
estar gritando e fazendo da minha vida um inferno maior, e escolheu
defender quem estava acabando com suas escolhas.
Claro, ela poderia muito bem ter deduzido que era isso ou a morte. A
mulher era, com certeza, mais esperta do que havia lhe dado crédito, e tudo
que eu queria era voltar no tempo e lhe contar tudo.
— Nós vamos, dolcezza. — Sabia bem que voltar no tempo era
impossível.
— Ah. — As palavras pareceram ser suficientes para Matarazzo, e
respirar se tornava bem mais fácil. — É, o que houve fugiu um pouco dos
planos de todos. Alana, não ache que isso é o dia a dia que escolhestes para
ti. — Ele mostrou os dentes amarelados em um sorriso. — Nossas mulheres
quase nunca precisam ver nossa bagunça, então não se assuste. Deveria, no
entanto, aprender a bater nas portas: não bater pode te matar.
— Vou ter uma conversa com Matteo — me apressei, antes que Alana
resolvesse responder por nós. Não deveria testar tanto meu azar.
— Se é que vai adiantar. — Veio com uma risada. — Quando elas
querem entrar, elas entram.
Mas a boca vermelha dava a entender que permaneceria fechada até o
final da nossa conversa, a mão nas minhas costas cravando as unhas curtas
de um jeito nada gentil.
— Estou aprendendo.
Alana poderia fazer o que quisesse comigo mais tarde, desde que
continuasse a se comportar na frente de quem era capaz de eliminá-la com
uma palavra.
— Já deveria estar gravado na tua testa depois de minha figlia[70] — ele
fez questão de me lembrar, meu cérebro voltando a gritar que aquilo tinha
sido fácil demais. — Preciso cuidar de outros negócios. Os homens vão
ajudar com a limpeza, mas acho que um novo tapete seria a melhor saída.
E novamente os olhos dela grudavam em mim, os meus não tendo
mais coragem de encará-la e indo para as manchas vermelhas. Lorenzo
tinha toda a coragem que me faltava, e quieto, me dava todas as palavras
que tantas vezes repetiu nos últimos dias.
— Um prazer conhecer uma donna tão bella. — Vincenzo estendeu a
mão, a mulher ao meu lado me surpreendendo mais uma vez ao colocar a
sua sobre a dele e aceitar o beijo no dorso.
E ela nem tremia. Talvez fosse eu quem entrasse em choque depois
disso.
— Nickolay, um minuto? — Matarazzo não esperou uma resposta
antes de rumar para a porta da frente.
— Vá para o quarto — sussurrei em seu ouvido ao me inclinar, Alana
mais uma vez me deixando sem palavras ao não emitir nenhum som antes
de obedecer e subir.
Ela também sequer olhou para trás, o que me fazia ter a certeza de que
passaria o resto do meu tempo livre em uma conversa longe do confortável.
Quem acabara de rotular de minha noiva havia medido as palavras pela
primeira vez na vida, mas eu tinha minhas dúvidas quanto a capacidade de
seguir seu exemplo ao parar na frente do meu chefe.
— Sente-se vingado?
— Não — fui sincero. — Nada vai trazer Nicolas de volta. — Nada o
traria de volta, e pagar sangue com sangue havia apenas me tirado mais
durante a tarde.
— Nem Giovanna — o homem mais velho cutucou, o desprazer
presente na voz. — Por mais que pareça estar esquecendo da minha filha.
Esquecendo tão bem, que nem mesmo respeita as ordens do seu único
superior. Também vai esquecer dos juramentos que fez, Nickolay?
O quanto deveria me preocupar com suas palavras? O quanto deveria
ficar quieto?
— Amava Catarina, não amava, Don? — Alana andava me
influenciando mais do que o considerado seguro.
— Aonde quer chegar com isso? — Mas apesar do incômodo que me
deixou ver, os olhos se mostraram cansados ao continuar. — Esse tipo de
amor não vale a pena no nosso meio. Ele te destrói, e te faz matar tudo ao
redor.
— Por isso que me deu uma vida normal por um mês, Vincenzo? —
Deixei as palavras saírem, ressentido de ter passado semanas quase normais
ao lado de Alana, para agora ter minha normalidade tomada. — Para me
fazer sentir que não vale a pena?
— Eu não vou tirar Alana de ti. — Ele entender meu medo só me fazia
ter certeza de que a ideia ao menos passou por sua cabeça. — Com todos os
inimigos que fez durante os últimos anos, alguém vai fazer isso por mim. —
E não estar errado incomodava. — O próprio signor Ferreti vai considerar,
ao saber que negou a filha pela segunda vez. Na primeira vez, eu te defendi.
Por que o faria, agora?
Queria responder que nem ao menos havia aprovado qualquer coisa
para aquela família considerar Emília como minha noiva — em nenhuma
das vezes. Os Ferreti o terem feito com o Don falando por mim só mostrava
o quanto o velho tinha poder sobre minha vida.
Fugir nunca foi uma ideia tão apreciada.
— Claro, eu sempre posso escolher aprovar esse noivado. — As
palavras conseguiram me prender, Vincenzo sorrindo com um
contentamento que eu odiava. — Gostaria da minha aprovação? Melhor,
gostaria de um passe branco para fora? — Senti minha garganta fechar. Era
assim óbvio? — É uma opção, Nickolay.
Entrei na Famiglia quando me casei com Giovanna. Durante todo meu
tempo com Nicolas, sabia que a única forma de o manter protegido na Itália
era continuar nela. Nos anos depois dele, estar ao lado de Matarazzo era a
única coisa que me mantinha existindo. Eu não via uma vida longa para
mim — menos ainda para Alana — se continuasse a lutar as malditas
guerras do chefe. E quem eu chamava de minha me fazia querer ter muitos
anos pela frente.
— E desde quando alguém sai com vida da Famiglia, Don?
As risadas secas nunca me incomodaram, até começarem a ser
direcionadas para mim.
— Eu vi como olha para Alana, Nickolay. — As palavras eram pura
zombaria, e eu me orgulhava por continuar calmo por fora. — Está
apaixonado, e eu sei o que é estar apaixonado. Por mais que possa ser difícil
de acreditar, sei o que é amar uma mulher a ponto de doer. Então, eu te
deixo ir com ela, figlio. Com uma condição.
Sabia que não seria assim fácil. Nunca nada era fácil no cazzo da
minha vida. Minha liberdade teria o maior dos custos.
— Já passaram anos demais, e eu ainda não tenho minha figlia de
volta. A encontre, e eu te deixo sair. A encontre, e mate quem a tirou de
mim. Faça isso, e eu te dou tua liberdade.
Mas com minha liberdade, viria a de Alana. E pela de Alana, eu estaria
disposto a fazer tudo para pagar.
ㅤ
Parecia que tinha engolido cimento. Era um peso que não ia embora,
por mais que já fizesse horas desde o café da manhã.
Apesar do peso, meu cérebro me obrigando a vê-lo atirar outra e outra
vez fazia eu me sentir tão vazia quanto minha barriga. Eu nem tinha
almoçado. Eu não conseguia colocar nada na boca, a não ser meus dedos.
Pelo menos, tinha parado de vomitar.
O relógio já marcava cinco da tarde, anunciando que haviam se
passado pelo menos duas horas desde o início de mais um pesadelo. Não
tinha forças para me levantar, e continuava deitada na cama que dividíamos
havia semanas.
Mas só eu estava na cama. Nickolay não tinha voltado para o quarto, e
eu queria procurá-lo, gritar com ele, e sumir dali. No andar de baixo, pude
sair da minha cabeça quando senti o cheiro dele ao ser puxada para perto, o
cítrico amadeirado que amava misturado com cigarro fazendo meu corpo
parar de tremer, apenas para deixar meu coração a ponto de explodir ao
cheirar metal.
O corpo estava coberto, mas dava para ver o sangue. No tapete, em
mim, nas mãos dele.
Ele matava pessoas.
Ele matava pessoas.
Ele matava pessoas.
Porra.
Era óbvio que Nickolay matava pessoas.
Eu sabia, e repetia a informação sem parar, para ver se entrava na
minha cabeça e amenizava o que tinha visto. Ele matava pessoas, e era por
isso que eu quis mantê-lo perto: pela segurança que viria comigo sendo
dele. Porque ele matava pessoas, e ele mataria qualquer um que tentasse
tocar em mim, e eu era boa em me enganar que era apenas isso.
Mas ver Nickolay tirando uma vida foi um de meus piores momentos.
Vê-lo apertar o gatilho fazia memórias que eu não queria rever voltarem. O
fazia parecido demais com quem eu não queria recordar.
Tinha alguém batendo na porta, e meu coração, daquela vez, ia
explodir.
— Sou eu, Alana. — Era difícil escutar a voz dele e não ter o conforto
de sempre me invadindo, as batidas continuando. — Vou abrir a porta, ok?
Escutei um clique, a maçaneta virando em seguida, mas continuei
deitada, o lençol cobrindo meu corpo. Claro que ele conseguiria abrir a
porta, e me senti idiota por tê-la trancado, me sentindo ainda pior ao
perceber que queria mantê-lo do lado de fora. Puxei a respiração ao sentir
sua mão tirar uma mecha de cabelos que insistia em cobrir meus olhos, ele
me copiando ao achá-los inchados e vermelhos.
Aquela mão matava pessoas, a caveira não sendo mais tão inofensiva.
E novamente me contava que, lá no fundo, eu sabia disso, e o mantive perto
porque queria isso. Então por que era tão difícil aceitar? Por que estava se
mostrando impossível aguentar o toque que eu passava o dia ansiando,
depois de assisti-lo acabar com uma vida?
Era por não ser a vida que eu queria que terminasse?
Monstro. Eu não deveria querer o fim de nenhuma vida.
Era irônico como o motivo de eu abrir sem pensar aquela porta se
tornava irrelevante. Emília se tornava tão irrelevante quanto meu sim para o
pedido que nunca veio, eu me tornando noiva sem sequer abrir a boca.
— Dolcezza, me diga o que preciso fazer para consertar isso. — Não
passou de um sussurro.
Tinha cândida e o cheiro metálico que me embrulhava o estômago na
mão tatuada, e eu não podia começar a chorar outra vez.
Saí da cama, me afastando de quem queria me confortar e indo para a
janela. Já estava escurecendo e as luzes do térreo mostravam um carro preto
que não costumava ficar ali.
— Você atirou numa pessoa — escapou enquanto eu observava o
homem que havia conhecido naquela tarde voltar a entrar, acompanhado por
quem havia sido um segundo pai para Nico. Lorenzo parecia tão cansado
quanto o italiano que, ainda na cama, mostrava não ter palavras para
começar a conversa. — Na minha frente. Você matou alguém na minha
frente. Você matou alguém, e tinha tanto sangue...
Nickolay esfregou os olhos e respirou fundo, mas manteve-se longe.
— Alana, não ter suspeitado de nada durante todo esse tempo é
simplesmente impossível!
Era quase engraçado como justo aquele homem, o retrato do
autocontrole, pudesse perdê-lo por completo ao meu lado. Engraçado, mas
naquele dia, fazia meu corpo gelar. Eu não queria ver o descontrole dele
agora. Não assim.
Não depois de ver quem não sobreviveu a ele.
— Não tem como nenhuma desconfiança ter se passado pela sua
cabeça, escutei de ti tantas vezes que já imaginava o que eu fazia! — A voz
saía alta, o italiano não fazendo questão de esconder a frustração, eu
querendo atravessar a parede e sair correndo dali. — Eu não te falo sobre
meu trabalho, lido com pessoas que claramente não são executivos! Eu
carrego uma arma!
Claro que nossos temperamentos sempre se chocariam nos piores
momentos, especialmente quando me sentia acuada.
— É diferente imaginar, e então ver você matando alguém! — Minha
voz saiu muito mais alta, e agradecia por minhas mãos estarem vazias.
Tinha certeza de que teria arremessado nele qualquer coisa que estivesse
segurando, o medo se juntando com a raiva de perder a segurança que
sentia ao seu lado. — É diferente pensar e escutar o barulho, o...
O som grotesco da bala afundando-se numa cabeça. O sangue que
espirrou em seu rosto depois do tiro. Ele, travando a arma e espalhando
mais o vermelho com a mão. Meu Deus, eu ia vomitar.
Vê-lo tentando se acalmar e não devolver o grito só me mostrava o
quanto Nickolay queria diminuir o abismo que se formava entre nós.
— Eu sei! — Era uma lamentação, ele finalmente se levantando e
dando alguns passos para perto de mim. — Eu sei que é, eu sei. Eu não
queria... — Tentei não sentir tanta culpa quando o passo que dei para trás o
fez parar. — Não queria que visse nada disso, dolcezza. Sei que entre ver e
saber existe uma diferença enorme. Nunca foi minha intenção te fazer
presenciar... — Era difícil para nós dois falar assassinato. — Isso. Te fazer
descobrir desse jeito.
Não tinha como continuar olhando para o rosto que tanto gostava sem
querer confortá-lo. Ao mesmo tempo, não conseguia juntar forças para me
aproximar e continuar sã. Nickolay nunca me machucaria. Ele havia me
contado em todos os beijos e carícias, em todas as vezes em que deixou
meu temperamento ganhar.
— Por quê? — Ainda assim, eu cruzava os braços em frente ao peito e
me encostava no vidro da janela. — Por que você faz o que faz? — Já tinha
sido enganada assim antes. Meu cérebro burro já acreditou em alguém que,
de bom, tinha apenas a aparência.
Era difícil como ainda havia sangue em nós dois, mas o que eu fazia
questão de registrar era a exaustão que via nos olhos escuros. Nunca o vi
tão cansado, e era desesperador o quanto meu coração se preocupava com
aquilo. Desesperador como meu cérebro me fazia ficar parada, lhe negando
qualquer conforto. Nickolay era um assassino, era da máfia, e estava
enraizado demais em mim para eu poder arrancá-lo sem morrer.
Literalmente.
Ele era apenas para ser alguém que me mantivesse segura. Eu era tão
estúpida.
O observei voltar para a cama, sentando-se o mais longe possível de
mim, como se soubesse que eu precisava daquela distância. Eu necessitava,
por mais que a falta de um toque estivesse machucando nós dois.
— Quando eu tinha seis anos, mataram minha mãe. — Ele começou
com um fato que eu parcialmente sabia. — Foi numa quinta-feira. Todas as
quintas, íamos ao mercado e voltávamos para casa pela praia. Eu lembro de
tomates caindo do saco de papel, lembro de ter achado que era por causa
disso que o mar estava vermelho. Lembro de flashes.
Ah, Nickolay. Por que meu coração sofria tanto pelas suas feridas?
— O nosso cérebro apaga coisas. — As lágrimas que ele não deixava
sair acabavam sendo derrubadas por mim, eu não fazendo ideia que
Nickolay havia presenciado a morte de quem ele me mostrou amar tanto. —
Apaga para continuarmos vivos. Então eu lembro do sangue, do barulho do
mar. Do cheiro dela misturado com o sal, eu chorando como um bebê.
Os olhos escuros saíram de mim, indo se perder na parede creme.
— Meu pai mudou depois de perdê-la. Dizem que amor de pai é
diferente, que homens não se expressam tão bem, e eu lembro que repetia
isso para tentar entender. Meu irmão mais velho praticamente nos criou,
enquanto meu pai passou o resto da vida atrás de vingança. Mal o vi durante
os anos que seguiram a morte da esposa, e não tenho exatamente boas
recordações das vezes que o encontrei em casa.
Descruzei os braços, as mãos já querendo ir até ele, meu coração mole
demais vencendo qualquer parte racional do meu cérebro.
— Eu não entendia o que se vingar poderia trazer de bom, ou como
alguém poderia pensar apenas nisso. Meu pai já era da máfia, e meu irmão
entrou assim que tinha idade suficiente para ser aceito. Quando soube, só
consegui sentir raiva. Os dois morreram com meses de diferença, e a morte
me fez conhecer a filha do Don. — Tinha um sorriso irônico nos lábios
tristes. — Eu falava que nunca me associaria a quem me tirou tanto, e
então…
Seus olhos continuaram na parede quando me sentei ao seu lado.
— Giovanna era filha de Don Matarazzo. Entrei para a Famiglia no
dia que me casei com ela. — As próximas palavras pareciam lhe causar
uma dor física ao serem pronunciadas. — E sabia que teria entrado quando
Nicolas morreu nos meus braços. Hoje meu filho faria onze anos. Já faz
mais de quatro que achei os dois na praia, mas só a memória da tarde…
Nicolas era tão pequeno...
A voz falhou, assim como minha capacidade de manter minhas mãos
longe dele. Deu para sentir o quanto meu abraço conseguia relaxá-lo, os
músculos tensos ficando mais leves com meu toque, o rosto procurando o
cheiro que dizia amar em meu pescoço.
— Meu trabalho hoje não é matar pessoas, Alana. — Ele me olhava
com arrependimento, e eu queria mais do que tudo que aquilo fosse o
suficiente. Sabia bem a frase que viria, me lembrando da promessa feita de
não mentir. — Mas eu mato pessoas, e elas tem tanto sangue nas mãos
quanto eu. — A palma que colocava sobre seu peito sentia o coração mais
rápido que o normal, e eu sabia que os lábios dele queriam buscar os meus
ao invés de se contentar com minha testa. — Ao menos é o que me conto
todas as noites para poder dormir.
Ele mataria Thobias por mim? Ele mataria a pessoa que havia me
deixado presa dentro de um quarto por uma semana inteira? O homem que
me tirava noites de sono, que havia me colocado em uma prisão, por mais
livre que eu fosse para todos que enxergavam de fora?
Sabia que sim sem precisar perguntar.
Assim como era óbvio que Nickolay me libertaria, apenas para eu ser
outra vez contida.
— Qual era a pergunta que você ia me fazer? — questionei, lembrando
de nosso primeiro jantar. — O que você precisava saber antes de me contar
tudo isso?
Finalmente entendi a frase que ficou por dias na minha cabeça: preciso
do seu sim. Era difícil ver o arrependimento aumentar ainda mais em seus
olhos, eu fazendo uma pergunta para a qual já havia uma resposta.
— Eu disse que casamentos na minha família eram diferentes — ele
começou, a mão que arrumava alguns fios atrás da minha orelha mais
instável do que estava acostumada. — São negócios, são internos. Quando
trazemos alguém de fora, não podemos apenas contar. Precisa haver um
compromisso. Na posição que estou, já faço mais do que poderia te
escolhendo. Cazzo. — O lábio inferior sofreu uma mordida que quase o
rasgou, o italiano olhando para cima antes de voltar a me encarar. — Eu ia
te pedir em casamento. Não era para saber nada antes de estar casada
comigo, Alana.
E eu queria beijá-lo, ao mesmo tempo que queria sair correndo dali. Eu
não tinha mais aquelas duas escolhas.
— E eu preciso dizer sim? — rebati, considerando o quão melhores as
coisas poderiam ter corrido caso a pergunta tivesse sido feita antes da
última tarde. Caso eu ainda vivesse na ilusão de poder dizer não a ele.
Não duvidava que teria dito sim, assim como tinha a certeza de que
reagiria muito melhor ao que agora sabia caso não tivesse visto Nickolay
atirar. Emília novamente me tirava as chances de ter paz, e ponderei o
quanto ela tinha conhecimento sobre aquela tarde para ter me feito ir
correndo até o italiano.
E pela primeira vez desde que abri a porta, lembrei do que me fez
voltar antes da hora. Ela achou que estava me mandando para a morte?
Achou que Nickolay fosse escolhê-la?
— Ok, pergunta desnecessária. Afinal, eu já sou sua noiva, e você nem
mesmo me pediu. — Ele havia pedido Emília, ou o acordo não passou de
um simples negócio?
Meus braços voltaram a se cruzar, mas os dele se negavam a fazer o
mesmo, o abraço me confortando e me fazendo querer chorar. Amava e
odiava as mãos que faziam cafuné, os lábios que beijavam minha testa, seu
cheiro.
— Te defender aquele dia, te ter dentro da minha casa, o que viu hoje...
— Me tirou o direito de dizer não. — Aproveitei por mais um segundo
aquele carinho antes de me separar. — Você me avisou que era egoísta. Não
basta mais eu pedir pra ir embora, basta? Não basta mais eu pedir pra ir
embora e jurar nunca abrir a boca.
— Alana...
— Você vai me matar se eu disser não?
Era como se eu tivesse lhe perguntado o maior dos pecados.
— Dio santo, Alana, mai! Como me pergunta uma coisa dessas? —
Nickolay me olhava assustado, e eu me afastar da mão que tentou tocar meu
rosto foi mais um tapa. — Eu nunca vou levantar a mão para ti, dolcezza...
— Mas alguém vai, não vai? Se eu negar. — A hesitação me deu o sim
que esperava ouvir. — Nickolay, não adianta falar que não vai deixar
ninguém me tocar. Não acho que possa fazer algo pra impedir se me
quiserem morta, estou errada? — E mais uma vez, tive minha resposta com
o silêncio.
Irônico, eu sendo salva, apenas para ter outra vez a vida em perigo. Eu
presenciando o fim de alguém, e a morte novamente me tirando a liberdade.
— Quem você matou? — perguntei, muito mais para me distrair do
que querendo uma resposta.
Não esperava a que veio.
— O homem que assassinou meu filho. — Ele abaixou a cabeça, as
mãos apertando o edredom embaixo de nós.
Como aquele dia terminava de um jeito tão errado? Porque era muito
errado nossas mãos apertarem o tecido por outro motivo que não a paixão
que sempre dividíamos naquela cama. Era muito errado eu não ter força o
suficiente para confortar quem se tornou tanto em tão pouco tempo, justo no
dia que ele parecia precisar tanto de mim.
Eu também precisava de alguém, e hoje, esse alguém não poderia ser
ele.
— Você não sente nada quando puxa o gatilho?
Que resposta eu esperava?
— Sinto.
O que ele poderia dizer para me fazer esquecer de tudo? Para resetar
todos os meus sentimentos para o começo de nossa manhã?
— Mas hoje, só senti raiva. E a única coisa que me arrependo é de ter
feito isso na sua frente. — A sinceridade dele não tinha o efeito que eu
precisava. — Disse que não mentiria para ti.
Me deixei olhá-lo por um minuto antes de dar uma resposta, tentando
entender tudo que estava sentindo. O que doía mais? Nickolay ser capaz de
fazer o que eu precisava, ou ele me arrancar a liberdade que eu nem mesmo
havia conseguido? Não tinha sido apenas eu que Thobias ameaçou antes de
partir. Era só eu que sofreria com a nova prisão.
Respirei fundo, minha mão enfim achando a dele.
— Ok — falei, e nem eu nem Nickolay parecíamos acreditar na
resposta.
— Ok?
— Eu entendo as suas escolhas, Nico. Eu consigo entender o que te fez
entrar nessa vida. Consigo entender o que... — Engoli, tentando diminuir a
bola que se formava na garganta antes de continuar. — O que te fez puxar o
gatilho hoje. — Dava para ouvir o alívio em sua próxima respiração. —
Obrigada por ser sincero...
Os lábios grossos estavam nos meus antes que pudesse completar a
frase, Nickolay outra vez me mostrando o quanto eu era essencial para sua
calma. Como um homem como ele conseguia tirar qualquer conforto justo
de uma pessoa tão quebrada quanto eu?
Era estranho o quanto, por alguns segundos, me senti em paz beijando
um assassino. Ele me colocou no seu colo, me calando da melhor maneira,
a língua contra a minha sendo a melhor carícia, os braços me trancando em
um abraço.
Me trancando com ele.
O que sentia por Nickolay me faria escolhê-lo todas as vezes. Mas não
ter a liberdade para tomar aquela decisão me matava por dentro. Pela
primeira vez, as batidas estavam presentes mesmo com ele no quarto.
— O que foi? — A pergunta veio quando meus lábios não
conseguiram mais responder.
— Eu entendo, mas... — E eu deixava mais uma vez escapar todas as
lágrimas que o orgulho dele secava. — Mas hoje não, Nickolay. Hoje eu
não posso.
— Alana...
— Eu disse que entendo, não que estou em paz com tudo que
aconteceu! — E saía de cima dele, de perto da pessoa que até horas atrás, só
me trazia coisas boas. — Você me tirou uma escolha! Outra vez me tiraram
uma escolha! — E como antes, meus gritos pareciam piores que tapas. —
Eu gosto de você, mas não poder escolher dói!
Era como se nós dois tivéssemos uma ferida aberta no peito.
Machucava não conseguir curar a dele, assim como estava me matando
sangrar tanto outra vez. Em vinte e três anos tive dois relacionamentos, e os
dois insistiam em me forçar a ficar confortável demais com a morte.
— Quero ficar sozinha. — Não daria para manter a sanidade e sua
companhia, um dos dois precisando ir embora naquela noite. — Sozinha,
Nickolay. — Insisti quando ele hesitou em se levantar. — Me deixa
escolher pelo menos uma coisa, por favor.
Sim, doía vê-lo de pé, doía saber que ele precisava tanto de alguém, e
ao mesmo tempo ter a certeza de que não podia ser eu aquela pessoa. Doía
ser tão quebrada, doía quebrar mais. Justo eu, que achava ser impossível
fazer mais cacos do resto que tinha me sobrado de coração.
Filho da mãe, que tinha me curado só para me fazer de novo doente.
Maldito, por me fazer gostar tanto dele à ponto de poder ser machucada.
Mordi o lábio para não deixar o soluço sair, escondendo o rosto no
travesseiro ao escutar a maçaneta girando.
— Quando se perde alguém que é sua vida, fica esse buraco. É um
difícil de preencher. — A voz dele nunca soou tão fraca, o adjetivo não
combinando com quem falava. — Eu nunca quis te colocar numa prisão,
Alana. Mas ao seu lado, esse buraco fica tão, tão menor.
Entendia sobre buracos e perdas, mais do que gostaria. Assim como
me reconhecia nas próximas palavras, eu também não tendo a capacidade
de mandá-lo embora, ou querendo ouvir o que acabaria com nosso conto de
fadas.
— Foi impossível afastar alguém que só me fez bem. Desculpe meu
egoísmo, dolcezza.
E ele saiu, as quatro paredes ao meu redor sendo as companheiras do
choro que varreu a noite.
ㅤ
Detestava as noites nas quais sonhava com ele, meu cérebro pedindo
paz, meu corpo cansado e suado me obrigando a tomar um banho antes das
seis da manhã. Eu estava sozinha na cama, e os pesadelos não foram gentis
sem minha morte me protegendo. A tarde passada não era nada perto do
que meu cérebro conseguia me recordar nos mínimos e piores detalhes.
Ainda assim, lembrar do dia anterior fez a dor se multiplicar por dez,
eu não me preocupando em secar os cabelos e escolhendo meu jeans mais
surrado. Ao menos lembrei de colocar um sutiã, por mais que a camiseta
preta não ficasse transparente como a branca usada meses atrás.
Preferia que a dor de cabeça fosse por causa de uma ressaca.
Desci com a esperança de estar sozinha na mansão, mas fui
surpreendida com um enorme café da manhã, Nickolay dividindo a mesa
enorme da sala de jantar com Lorenzo e o mesmo homem do dia anterior.
Quem eu lembrava se chamar Vincenzo Matarazzo se sentava na ponta, e
abria a boca antes que eu tivesse a chance de dar qualquer desculpa para me
retirar.
— Que bom que decidiu se juntar a nós, bella. — O português era
claro, mas muito mais carregado no sotaque do que o de Nickolay, e eu não
tinha como escapar.
Que merda.
— Eu dormi demais — respondi, escolhendo a cadeira em frente ao
meu dito noivo para me sentar.
— Nico disse a mesma coisa. — O homem coçou o queixo, ele não
tendo nenhuma barba sendo o oposto do italiano que me encarava. Os olhos
de Nickolay pediam por qualquer atenção, e por isso, mantive-a inteira no
seu chefe. — Por mais que o tenha achado dormindo no escritório.
Matarazzo não fez o mesmo, os olhos colando nos escuros.
— Figlio, não é inteligente deixar tua donna dormir sozinha. Fiz isso
demais, e olha bem o que me rendeu. — Lembrar que o homem que falava
era viúvo aumentava ainda mais meu incômodo.
Enchi meu copo de suco de laranja, me contendo no último segundo
para não revirar os olhos. Deveria, no mínimo, estar sentindo pavor da
pessoa que poderia ser a nova responsável pelo fim da minha vida.
Só conseguia sentir raiva de todos os homens presentes. Eu estava
assim desapegada de viver? Havia desistido depois de ontem?
— Por um acaso estão tendo problemas por causa do sangue?
— Precisava terminar de revisar alguns negócios, Don. — A resposta
de Nickolay seguiu tão logo a pergunta veio, ele mostrando o quanto queria
que eu abrisse a boca.
— Não precisas falar negócios na frente da tua noiva. — Os olhos dele
estavam outra vez em mim, os meus muito mais interessados no pão de
queijo fresco que era trazido para a mesa. — Estamos todos em família
aqui, não estamos?
— Claro. — A voz soava muito mais séria do que tinha me
acostumado a escutar sair dele. — Desculpe.
Não consegui esconder minha irritação, e era quase engraçado como
não havia mais nenhum senso de autopreservação em mim. Meu Deus, eu
precisava de ajuda, eu precisava de muito mais ajuda que as oito sessões
mensais de terapia. Mal cumpria as duas semanais, e soltei uma risada ao
lembrar das vezes que não fui.
Todos os olhos pararam em mim.
O quanto poderia ferrar nós dois se eu começasse a gritar como na
noite passada? Não passou despercebido o jeito que o italiano na minha
frente agarrou seu copo vazio, a outra mão pairando sobre a faca da
manteiga.
Sabia que aquilo era uma arma nas mãos Nickolay, assim como meu
coração acreditava cegamente que eu seria defendida, e não atacada. Mas
meu cérebro, ainda envolto no pesadelo de mais cedo, gritava o contrário.
Nico nunca faria o que Thobias fez, eu repetia na minha cabeça, mas
acreditava com ressalvas nas minhas afirmações. Eu também acreditei que
Thobias nunca seria capaz de me machucar, e ele o fez das piores maneiras.
— Está acontecendo alguma coisa? — Matarazzo perguntou, meus
olhos indo da faca para seus sérios.
E repeti em pensamento: Nico nunca me machucaria. Nem mesmo
chegaria perto do feito por Emília, e lembrar do arranhão que achei no
contorno da minha mandíbula transformou qualquer sombra de medo em
fogo.
— Não. — Novamente a resposta vinha antes que eu pudesse falar
qualquer coisa.
Era óbvio que ele não queria que eu abrisse a boca. Era óbvio que não
era bom eu queimar justo agora.
— Perguntei para tua noiva, Nickolay.
Assim como deveria ser óbvio para o italiano que não o obedeceria
naquele dia.
Eu não era cruel como a loira que, depois de ontem, tinha se tornado
uma inimiga, mas minha raiva me impedia de sorrir e ser dócil. Deu para
notar o medo nos olhos de Nickolay, assim como foi perceptível o receio se
transformando em alívio, e então entendimento, com minha próxima frase.
— Você jantou com Emília na quarta-feira — soltei o que sabia, sem
esconder minha irritação, revelando a responsável pela nossa situação
delicada.
— Dolcezza...
— Por que não me falou? — Era melhor voltar a pensar em como
havia doído descobrir o que me fez sair correndo ontem, do que focar no
que me atormentava nos últimos meses. — Você jantou com ela, chegou em
casa e se deitou do meu lado!
De canto de olho, via os outros dois italianos me encarando surpresos,
Vincenzo parecendo se divertir com a situação enquanto Nickolay tentava
me calar chamando meu nome. Eu queria arremessar o pão de queijo na
cara dele, e não o fazer mostrava muita maturidade da minha parte, ou pelo
menos era o que eu me dizia.
— E ontem, ela veio me contar o que você faz! — Eu não iria
arremessar comida no meu noivo, e não iria me calar. — Porque ela achou
que eu não sabia! — Eu tinha me calado demais na vida. — E quando eu
falei pra essa vadia...
— Alana!
— Que eu sabia, porque é óbvio que eu sabia! — Não fiz questão de
controlar o volume da voz, a frase saindo quase gritada fazendo Nickolay
enrugar a testa. — Afinal, como eu estaria com você...
— Alana, basta! — Ele igualou o tom, batendo os punhos na mesa ao
se levantar.
Eu copiá-lo calou a todos.
— É esse tipo de mulher que eu vou precisar aturar pra ficar com
você? — Nunca vi o italiano me olhar daquele jeito, e se não tivesse
transformado todo meu nervosismo em raiva, teria gargalhado. Ele
realmente estava com medo do que eu poderia falar. — Porque eu prefiro
nunca mais dividir uma cama contigo, do que ver essa filha da puta te
tocando!
O som que minha cadeira fez quando voltei a me sentar foi
ensurdecedor. Nickolay ainda me olhava em choque quando Vincenzo
limpou a garganta, o chefe sendo o único que parecia se divertir naquele
cômodo. Achei seus olhos castanho-claros antes dele começar a falar.
— Alana, não sinta ciúmes de quem não significa nada. — A voz não
tinha sinal de irritação, o tom quase paternal me desconcertando. —
Nickolay era novo quando deixou claro para Emília a importância que ela
tinha em sua vida. E reafirmou agora, escolhendo ficar justo contigo.
A minha também saía muito mais suave ao responder.
— Mesmo assim, ele se encontra com ela — bufei. Algumas vezes eu
realmente merecia o título de pirralha mimada. — E eu não gosto, por mais
que estejam tratando de negócios. — Arrastei a última palavra, enfim
revirando os olhos.
— Gostaria que eu resolvesse isso para ti, ragazza? — A pergunta me
pegou desprevenida.
Estava prestes a responder que sim, eu queria muito que ele desse um
jeito na loira, quando me lembrei com que tipo de homens estava lidando.
Resolver aquilo não soava mais tão bem, e Gabriela voltou para meus
pensamentos, fazendo o pão de queijo perder qualquer gosto bom.
Thobias tinha resolvido aquilo, e eu não queria mais resolver nada.
— Estou atrasada. — Voltei a ficar de pé, minha voz uma sombra do
que era segundos antes. — Com licença.
Saí apressada da sala de jantar, e tudo que eu queria era sair correndo
daquela casa. O plano era pegar o mínimo no andar de cima e sumir, e já
estava no primeiro degrau quando uma mão segurou meu braço.
— Alana, espera! — Não passava de um sussurro, mas a voz era
áspera. Sacudir o braço foi inútil, os dedos apertando mais minha pele, pela
primeira vez, por algo que não era prazer. — O que foi isso? O que pensa...
— Nickolay parou a frase no meio ao enfim notar a marca de unha que eu
carregava na pele. — O que é esse arranhão?
Mas nem mesmo sua preocupação conseguia me suavizar.
— O que acha? Sua ex-noiva não reage bem a verdade! — Tentei
soltar meu braço pela segunda vez, querendo estapeá-lo ao mesmo tempo
que o queria me confortando.
— Emília não era minha noiva! — E novamente, me recordava de
Thobias, Nickolay escolhendo se defender ao invés de fazê-lo comigo.
"Gabriela nunca foi meu caso, sua estúpida! Você pediu por isso
ficando do lado dessa louca!"
Precisava sair de perto dele. Puxei meu braço tão forte que
desequilibrei nós dois, o italiano nos ajudando a continuar de pé. Mesmo
evitando seus olhos, Nickolay viu o que eu tentava esconder.
— Dolcezza, o que foi? — Medo.
Ele só não sabia que o medo não era dele.
— Não se sente mais segura comigo?
Doía não conseguir responder sim. Desde ontem, tudo doía mais do
que eu me sentia confortável em aguentar.
— Quero voltar pro meu apartamento. Ainda posso escolher isso?
Ele não me impediu mais de subir.
Não fui para a faculdade, escolhendo abrir uma das malas sobre a
cama e arremessar as roupas dentro dela. Nickolay entendeu bem o quanto
eu queria companhia e nem subiu as escadas, e não me importei em fechar a
porta.
Lorenzo não compartilhava do conhecimento do homem mais novo.
— Posso entrar, Alana?
— Posso dizer não? — reclamei sem parar o que fazia, tirando com
raiva do meio das minhas roupas a camiseta grande que não me pertencia,
por mais que tivesse meu cheiro.
— Sempre temos essa escolha.
Tive que segurar o riso, minha falta de escolha uma prova ainda viva
do contrário. Talvez devesse ter dito não, ao invés de deixar o italiano
confortável a ponto de começar a falar.
— Acho que nunca conversamos direito.
Não era o melhor dia para começarmos, queria responder. Com
certeza, dele viria a bronca que Nickolay não teve coragem de me dar, e eu
não me sentia merecedora de tomar.
— Eu cuidei do Nico quando ele ainda era um moleque. O pai dele era
meu amigo mais próximo, praticamente o irmão que nunca tive — Lorenzo
contou, encostado no batente da porta. — Nickolay é como se fosse meu
filho, por mais que o moleque seja resistente ao título.
— E? — perguntei, quando a continuação demorou para vir.
— E é difícil para um pai ver o filho sofrer.
Ah, pronto. Como se eu estivesse muito feliz na posição que me
encontrava. Por que ninguém parecia achar a minha situação difícil?
— Não estou insinuando que sua posição é fácil — ele disse quando
me virei para encará-lo, ignorando minha expressão nada amigável.
— Eu não ia falar isso. — Franzi a testa, desejando saber se todos
tinham o mesmo dom de Nickolay, ou eu que era muito fácil de ser lida.
— Tem certeza? — Lorenzo sorriu, sacudindo a cabeça. — Ele está
apaixonado por você. É a primeira vez que meu moleque se apaixona. Nico
teve seus casinhos, mas quando veio Giovanna… Ele se fechou para
qualquer coisa boa depois dos dois.
E mais uma vez, Giovanna. Ao menos ela era uma boa distração. Não
teria mais nenhuma depois de colocar os pés para fora dali.
— Por que Nickolay se casou com ela? — Saiu antes que pudesse me
conter, minha curiosidade sobre o porquê de ele ter feito tal sacrifício ainda
presente.
— Porque era a coisa certa a se fazer.
— Não era! — contrariei, minha voz outra vez saindo irritada. Não era
certo se casar sem amor, e era o que todos da família de Nickolay deveriam
acabar fazendo.
O tom calmo que o homem mais velho usava servia bem demais para
me acalmar.
— Eu sei que não era certo, Alana. Especialmente para Nico, eu não
queria que ele se casasse assim. Seu pai e eu tentamos tanto mantê-lo longe
disso — confessou com as mãos nos bolsos. — Mas se não fosse ele, seria
outro. E o menino sabia que outro poderia não ser tão compreensivo com a
situação da amiga. Ele aceitou o sacrifício pela ragazza.
Lembrei de Alice, e de como meu italiano contou que algo em
Giovanna quebrou após a morte dela. Mortes tinham aquele poder com os
vivos.
— Ter um pai que gostasse dele era o certo para Nicolas, por mais que
o casamento não fosse o certo para Nickolay, muito menos para Giovanna.
Sabe como foi o primeiro casamento do seu noivo?
Dei um sorriso sem graça e fiz que sim, lembrando do pouco que
Nickolay tinha mencionado sobre o assunto.
— A menina se tornou difícil depois de saber que se casariam. Depois
de ter o bebê. Ela culpava o marido e o filho por tudo, sempre arranjando
um motivo para brigar. Nico tinha pouco mais de dezoito, um bebê que não
parava de chorar nos braços, uma esposa que o detestava. Eu olhava para
ele odiando aquela situação, e meu coração apertava pelo meu menino. —
Lorenzo lamentou, e me perguntei se ele imaginava que eu seria um
segundo inferno na vida do seu protegido.
— Ele deveria ter se separado. — Minha afirmação me rendeu um riso
debochado.
— O moleque é bem persistente. — Lorenzo andou até mim. — E não
era como se ele pudesse abandonar a filha do Don, Alana. Nickolay sabia
da responsabilidade que assumia ao se oferecer como marido. Casamentos
nessa Famiglia são até a morte.
Até a morte, e a informação tinha o poder de arrepiar minha alma.
Mas mesmo com medo, a voz calma e as palavras do moreno
deixavam meu coração um pouco mais mole, o carinho que havia pelo filho
de criação voltando um pouco para mim. Eu conseguia suavizar sabendo
que não era a única que havia sido moldada por maus bocados.
— No dia em que Nico perdeu a família, ele e Giovanna tinham
brigado, e o menino saiu sem se despedir. A última coisa que disse para sua
amiga era que a detestava. — Ah, Nico. — E ele se culpa por isso até hoje.
— E agora, você vai tentar me convencer a ficar. — Mas a história já
havia feito aquele trabalho.
— Você sabe quem é Vincenzo Matarazzo, não sabe? — Fiz que sim, a
pergunta me confirmando que eu deveria temer aquele nome. — Você viu
Nickolay matar uma pessoa. Os dois estão claramente sem se falar,
Nickolay está nervoso, e você não para de gritar. Don Matarazzo não é
conhecido por tolerar gritos, Alana.
— Era pra eu aceitar? — Lorenzo ignorou minha pergunta.
— E agora você está indo para sua casa. O que isso parece?
— Que eu estou brigando com o meu noivo. Deixei isso bem claro no
café.
Ele deu uma risada seca, balançando a cabeça.
— Você está com medo e fugindo, e deixando Don Matarazzo ver toda
a mentira contada pelos dois. Ele simpatizou com você, estar viva é prova
disso. Mas só simpatia não te ajuda por muito tempo, ainda mais com
alguém que muda de humor numa velocidade maior que a sua.
Estreitei os olhos.
— Vai ser muito mais fácil pra vocês se eu voltar pro meu
apartamento. — Ao menos, ninguém mais teria que lidar com minhas
mudanças de humor.
— Realmente acha isso? — E eu estava prestes a responder que sim,
era óbvio que sim, quando as próximas palavras me tiraram qualquer poder
de decidir pelo que eu queria. — Você ainda não sabe onde se meteu,
ragazza. Nickolay noivando contigo foi contra uma ordem direta do Don.
Ninguém desobedece Matarazzo sem sofrer as consequências, Alana. Ele só
está procurando um motivo.
— Já chega. — A voz que interrompeu era a que antes só me trazia
conforto, a mão no ombro de Lorenzo o fazendo deixar o quarto antes da
próxima frase. — Termine de arrumar suas coisas, Matteo está esperando
para te levar.
Não me mexi, abandonando toda a vontade de continuar socando
roupas dentro da mala minúscula.
Os olhos que mostravam tanto cuidado comigo não haviam tido
qualquer compaixão na tarde passada. O quanto precisaria para eu esquecer
aquilo? O que aconteceria se eu fosse embora?
Quando pararia de doer tanto?
— Isso vai te causar problemas?
Meu fim poderia ser igual ao de Gabriela. Até pior.
— Não importa — Nickolay rebateu, ele mesmo retirando um dos
meus vestidos do armário antes de eu pará-lo.
Era angustiante ele me olhar esperançoso ao sentir minhas mãos em
seu antebraço, meus dedos ao redor da morte.
— É, eu realmente não deveria me importar — disse antes de me
afastar, começando a retornar as peças de roupa para os cabides. — Mas eu
não consigo. Eu fico.
Só que ficar não era confortável. Longe disso, era me trancar num
inferno, eu longe de qualquer paz durante toda a sexta.
Passar na frente do escritório que tinha a porta fechada era necessário
para praticamente tudo, então deixei o dia terminar comigo na cama, a mala
abandonada ao lado do armário, as roupas empilhadas nas prateleiras de um
jeito que passava longe do organizado. Nickolay gostava de arrumação, e
ter o poder não lhe dar aquilo seria a melhor vingança do dia.
Ele entrava era mais de onze, olhando para a bandeja ao meu lado, a
comida praticamente intocada. Adorava tudo que Olga preparava, e ao
mesmo tempo, nada descia, mesmo com o buraco que havia no meu
estômago.
Ao menos o italiano entendia que me cobrar algum apetite era inútil,
Nickolay desabotoando a camisa que usava antes de tentar uma primeira
frase.
— Preciso dormir aqui hoje. — Virei as costas para ele.
Dava para ouvir o italiano se trocando assim como dava para escutar a
quilômetros meu coração batendo, a velocidade aumentando quando senti o
colchão afundar. Nunca quis tanto que alguém não me tocasse. Eu iria
perder o resto da minha sanidade se ele resolvesse me abraçar.
— Até quando vai me dar silêncio, Alana? Sabe que temos que
conversar.
Fechei os olhos sem responder.
Não estava com o melhor dos humores naquele sábado, e fingir estar
tudo bem justo na frente de alguém que me lia até melhor do que Nickolay
era uma tarefa exaustiva.
Dividia um balde de pipoca com minha mãe, ela sem dúvida se
controlando para não perguntar o que estava acontecendo, a comédia
romântica escolhida desinteressante para mim. O filme parecia fazer pouco
caso da minha vida, eu querendo mais que tudo ter os problemas da mulher
atrás da tela. Deveria ser bom chorar por não ter alguém ao seu lado. Do
jeito que as coisas andavam, eu nunca saberia a sensação disso.
— Gostou do filme, Nana? — A pergunta veio quando a pipoca de
chocolate acabou, eu tão perdida nos meus pensamentos que nem percebi os
créditos rolando.
— Foi legal. — Tentei não forçar muito o sorriso, lambendo um dedo
cheio de açúcar.
— Fiquei sabendo que tem novidades pra me contar. Algo relacionado
a malas?
Ótimo, tudo que eu gostaria de não discutir naquele sábado.
— Mila tá muito bocuda — reclamei, já pensando em como mudaria
de assunto.
Escondi meu desconforto tarde demais, minha mãe sabendo do
sentimento, mas ainda assim escolhendo continuar. Eu realmente deveria ter
batido na merda da porta.
— Você tá feliz com ele? — Era sempre difícil mentir para dona
Astrid, e eu demorar para abrir a boca a fez continuar. — Ele te trata bem,
não trata?
Ok, aquela era uma pergunta que eu conseguia responder.
— Nico trata. — Bem melhor do que o último, completei
mentalmente.
Ela ia abrir a boca para perguntar mais sobre Nickolay, eu sabia, e já
previa como meu único momento de conforto do fim de semana acabaria
em caos. Talvez por isso que as próximas palavras saíram, minhas defesas
precisando ser ativadas sem me importar o quanto poderia deixá-la
desconfortável.
— O que você sabe sobre a minha mãe? — Saiu rápido, e muito menos
delicado do que eu queria que tivesse saído. — Quer dizer...
— Está tudo bem, filha. — Tinha um sorriso nos lábios grossos, apesar
do desconforto.
— Você é minha mãe, ela é só a mulher que me gerou — corrigi,
cutucando uma pele solta no dedo indicador. — Eu só tô curiosa.
— Eu sei, meu amor. Esperava essa pergunta desde que te tive nos
braços pela primeira vez, Nana. Até estava achando estranha sua falta de
curiosidade — ela respondeu, tirando um bombom da caixa ao lado do sofá.
Mamãe sempre escondia chocolates pela casa, e eu me perguntei se ela
desconfiava do detetive que havia contratado um ano atrás para tentar achar
a mulher que me deu. Se ela fazia ideia do de agora, que por ordens de
Nicolay, procurava por alguma informação.
— Mas eu não sei nada sobre essa mulher. A única coisa que tenho é o
contato da agência de adoção. — A resposta veio com um olhar arrependido
e um Sonho de Valsa.
— Ficaria chateada se eu tentasse procurar por ela? — Desembrulhei o
bombom. Eu já sabia que o contato que minha mãe dizia ter era falso, os
dois detetives me afirmando a mesma coisa.
Astrid era tão boa em omitir informações quanto Nickolay, mas como
mentirosa, era tão profissional quanto eu.
— Claro que não ficaria, Nana. — Os olhos castanho-escuros me
falaram o contrário. Será que a mulher tinha medo do que eu poderia achar?
— É um direito seu saber sobre os seus pais.
— Você e papai são meus pais — afirmei, sentindo uma pontada de
culpa por ter trazido o assunto à tona. — As pessoas que me deram não
significam nada pra mim. — Coloquei todo o chocolate na boca e a abracei,
encostando a cabeça em seu ombro como fazia quando era uma menininha.
Deu para ouvir o contentamento, ela me puxando para perto, eu me
perguntando quanto tempo fazia que não me deixava abraçá-la daquele
jeito. Por mais que a história da minha adoção fosse estranha, não forçaria a
única que considerava minha mãe a falar sobre o assunto. Não hoje. Talvez
nunca.
E meu respeito foi retribuído. Talvez por querer me aproveitar dócil, o
nome de Nickolay não mais deixou seus lábios durante nosso tempo juntas.
Foquei em nós duas durante o resto da tarde, e aproveitamos filmes,
chocolates e pizza.
O italiano não foi mencionado nem mesmo quando Matteo chegou
para me buscar, por mais que tivesse sido visível a surpresa nas feições da
mulher mais velha. Com certeza ela queria falar alguma coisa, e eu fiquei
mais do que agradecida por apenas ganhar um abraço depois dela me falar
para ficar com Deus.
Entrei no carro pensando que, voltando para a mansão, o contrário era
mais verdadeiro.
O quarto estava vazio quando entrei, eu lembrando com certo desgosto
sobre o jantar que Nickolay atenderia sem mim. O frio me obrigava a
agarrar um cobertor e descer para procurar uma bebida quente, e o
conhaque com chocolate e leite na mão era melhor que vodca pura.
Não esperava que houvesse alguém além de mim e dos empregados na
casa quando pisei no jardim dos fundos, e me surpreendi ao achar o homem
sentado numa das espreguiçadeiras em frente a piscina iluminada. Lorenzo
terminava um charuto quando me aproximei, e ainda enrolada no cobertor
cinza, me sentei ao seu lado.
— Achei que participasse de todos os jantares — iniciei uma tentativa
de conversa, o álcool me esquentando mais do que o cobertor.
— Negociar é trabalho de Nickolay. — Foi a resposta que veio, os
olhos azuis curiosos ao pararem em mim. — E o moleque é bom nisso,
precisa ver. — Ele percebeu tarde demais o que tinha dito, eu querendo ver
aquilo e sendo sempre barrada.
— E o que Nickolay negocia? — perguntei, querendo que alguém me
desse respostas mais concretas sobre o meio no qual seria obrigada a
permanecer. — Ele é mais que um assassino, eu sei disso. Então o que mais
ele tem nas mãos? Nickolay comanda o tráfico aqui no Brasil, lava
dinheiro, ele faz o quê? A única coisa que seu moleque sabe falar ao meu
redor é a palavra negócios, e que eu não sou digna de fazer parte deles, por
mais que esteja amarrada nisso!
Novamente deixava meu temperamento ganhar, minha voz tão alta
quanto a que usei no carro durante a manhã.
— Você está brava com Nico — escutei Lorenzo afirmar com certo
estranhamento. Era óbvio que eu estava brava, eu estava presa! E estava
prestes a retrucar aquilo quando ele continuou. — Isso é curioso.
— Era pra eu estar feliz?
— Era para você estar com medo. — Ah. — Depois de tudo que
aconteceu, era o mais lógico. Todos temem o moleque, Alana, às vezes
antes mesmo dele abrir a boca. Nico até já está acostumado com o
sentimento.
— Precisa de muito para eu ter medo, Lorenzo — confessei,
percebendo que não, eu não estava com medo do meu noivo.
Sorri. Aquilo era um progresso, me deixei acreditar. Era melhor estar
brava com ele do que a outra opção. Eu poderia consertar braveza.
— Estou vendo. — Ele deu uma risada, tão parecida com a que meu
italiano dava ao descobrir pequenas coisas sobre mim. — Se ainda precisa
de alguma clarificação, Nickolay é o braço direito do chefe dessa Famiglia.
Isso quer dizer que ele é a segunda pessoa no comando. — Levantei as
sobrancelhas, um pouco surpresa e ao mesmo tempo esperando a resposta.
Era óbvio desde o dia da piscina a importância que Nickolay tinha. — A
Famiglia controla algumas empresas no Brasil, muitas na Europa. Tem
laços políticos, possui alguns clubes. E vende drogas.
— E o último é o mais lucrativo, certo? — E lembrei do traficante que
Nickolay esmurrou até quase matar.
Até matar, me corrigi, eu finalmente conseguindo coragem para
admitir aquilo.
Lorenzo encolheu os ombros.
— Nickolay detesta o último, mas ao menos nossas drogas são limpas.
Você já provou.
— A vez que eu apaguei? — A noite que foi por semanas apagada da
minha memória voltou para minha mente. Eu estava em um dos clubes que
meu noivo disse ser dele, pelo que me recordava.
Fazia ainda mais sentido Nickolay sentir-se tão culpado no dia
seguinte.
— Disse que nossas drogas são limpas, Alana. Foi um mês antes.
Tinha sido um dia ruim, e Nickolay estava bêbado como um gambá.
Quando te viu, não conseguiu mais tirar os olhos de você. Ele passou a
noite inteira te olhando. — Me dava raiva como, até não querendo, o
italiano me surpreendia. — Ele não lembra, eu nunca contei. Não
imaginava que te encontraria outra vez, muito menos que fosse acontecer
algo entre vocês.
— E minha história de amor fica cada vez mais linda. — disse com
ironia, largando o copo vazio no chão e apertando mais o cobertor ao meu
redor.
Foi a primeira vez que Lorenzo me olhou com reprovação.
— Por mais que o menino tenha ficado obcecado depois da segunda
noite de vocês, ele tentou te afastar por semanas. Eu o conheço, Alana, sei o
quão quebrado Nico é. Como foi difícil admitir que não queria você como
ele quis todas as que vieram antes. Como o matava descobrir o quanto era
bom te deixar entrar na vida dele.
Desviei a atenção para a água parada da piscina.
— Ele também me faz bem. — De canto de olho, vi que minha
confissão me rendeu um mínimo sorriso.
— Nickolay é mais rude do que gostaria que fosse, às vezes mais
temperamental do que as mulheres gostam. Discutimos no dia que ele
contou o que te respondeu no parque.
— Quando ele disse que uma gozada na minha boca ia me deixar mais
quieta? — Lembrar da ocasião foi divertido, eu tendo desejado na época
que meu café estivesse quente ao despejá-lo na cara dele. — Acho que fiz
um bom trabalho respondendo.
— Eu também. — E ele apontou para o queixo, me contando o motivo
do roxo que havia visto em Nickolay numa sexta não muito distante. —
Não me orgulho de como respondi, mas espero que ele tenha melhorado.
Falar com Lorenzo era confortável, e muito mais simples do que com
seu filho postiço. Suspirei, me deitando na espreguiçadeira, meus olhos
achando a lua.
— O que eu preciso tanto aprender? — Lá no fundo, eu sabia.
Mas talvez ouvir de alguém tão calmo tornasse a realidade mais fácil
de ser aceita.
— Você quer aprender, Alana? É bom começarmos por aí.
— Acho que não tenho muita escolha se quiser continuar viva, tô
errada? — E mais um riso.
— Aprende rápido. — Eu mesmo soltei um, tão amargo quanto
divertido. — Nico me falou sobre o café da manhã com o Don.
Fiz uma careta.
— Não pode ter sido tão ruim! Ele disse que eu era divertida!
— Sim, divertida. — Lorenzo enfatizou a palavra. — Matarazzo se
diverte com um tipo bem específico de mulher. — Ele outra vez me olhava
com curiosidade antes de continuar. — Alana, provavelmente não sabe, mas
nessa Famiglia, as mulheres costumam se casar ainda virgens. Você tanto
disse não ser uma, quanto deixou claro que não foi Nickolay o seu primeiro.
— E eu me senti ficando da cor de um tomate, o calor tomando conta das
minhas bochechas e me fazendo voltar a atenção para a água gelada.
— Você tá de brincadeira, não tá? — De repente, o cobertor parecia
quente demais.
— Parece que estou brincando? — Ele cruzou os braços, e eu, mesmo
vermelha, bufei. — Não faça essa cara, pare de revirar os olhos. Não, eu
estou falando. — Lorenzo se apressou ao me ver abrir a boca, e me
perguntei se isso era um teste onde a resposta certa era obedecer e ficar
quieta. — Eu sei o quanto isso é antiquado e machista, mas é o mundo no
qual se enfiou. Precisa controlar melhor essa personalidade, e se comportar
como uma de nossas mulheres do lado de Nickolay. Ele precisa desse
respeito na posição que tem, Alana. E o Don precisa ver isso.
Esperei alguns segundos antes de responder.
— Preciso obedecer Nickolay de boca fechada, então. Tô aprendendo
direitinho?
Ele deu uma risada verdadeira.
— As mulheres da máfia não obedecem, Alana. Mas elas sabem não
tirar o poder do marido na frente de pessoas perigosas. — E ali estava outra
vez aquela denominação. — Nickolay vai te deixar falar o que quiser no
quarto, eu já ouvi as discussões de vocês para saber disso. Ele vai concordar
contigo, e pedir desculpas.
— Também não era pra gritar alto o suficiente pra você poder me
ouvir? — Não tinha mais muita aprovação no olhar que ganhei. —
Nickolay não é meu marido. Não ainda, pelo menos.
— É melhor começar a agir como se fosse. — O homem disse sério,
meus olhos voltando para ele ao vê-lo se levantar. — Te tratar como esposa
é o que ele sempre fez contigo, ainda mais quando tentaram substituir você
com Emília. Ele nunca nem considerou o noivado, Alana. Se é que tem
dúvidas quanto a isso.
Confiava mais do que deveria naquelas palavras.
— E conhecendo meu moleque, cabeça-dura do jeito que é, ele nunca
vai aceitar nenhuma outra no seu lugar.
Não houve mais nenhuma palavra antes de Lorenzo se retirar.
Não esperava acordar com ela nos braços, do mesmo modo que meus
olhos nunca acharam os de Emília durante todo o jantar.
A mulher que um dia considerei uma amiga ter se feito ignorante a
situação que criara tornou cada minuto da noite uma eternidade. Minha
intuição gritava que Ferreti nunca me daria paz, principalmente depois de
ser rejeitada pela segunda vez, o que me fazia querer colocar em prática o
plano que a levaria para longe de mim e minha única noiva.
Vincenzo, que partiria na manhã de sábado, resolveu estender a
permanência no Brasil por mais tempo que julgava necessário, e sua
decisão também me trazia desconforto. Algo mudara em seus olhos quando
me encarava, eu procurando uma confiança que não conseguia mais achar
completa desde que desobedeci a sua última ordem.
Desobedecer era algo que tinha feito poucas vezes naquela vida, mas
minha indisciplina para certas coisas nunca fora um problema para
Matarazzo. Nada era, eu tendo me transformado em quem ele havia perdido
e fazendo com certo prazer todos os trabalhos realizados por meu pai. O
jeito que eu era tratado agora, combinado com a forma que ouvia o nome de
minha mulher sair de seus lábios, deixava claro o quanto sua paciência
comigo estava por um fio.
E o Don da Famiglia perdendo a paciência nunca era agradável de se
ver.
Então eu entrei no quarto, e me deixei respirar framboesa antes de
trocar de roupa. Quando me deitei, foi sobre o edredom, a distância que
Alana mantinha durante o dia me fazendo incerto sobre sua necessidade de
proximidade a noite. Fingi que dormia quando a coberta foi posta sobre nós
dois, e passou perto do impossível continuar imóvel com os lábios doces
passando pelos meus.
Achava que ela acordaria antes e faria questão de nos lembrar da
distância. Alana acordando depois e me dando ainda mais proximidade
reacendeu a esperança do normal ter voltado, a mulher dando um sorriso
antes de se afundar mais no meu peito. Apertar mais os braços ao seu redor
foi automático, e a próxima coisa que via era olhos cor de mel colados nos
meus.
— Buon giorno, bella. — Me atrevi a chegar perto de sua bochecha.
— Dormiu bem?
Ela não me afastar era uma vitória, e me deixei aproveitar a
proximidade. Alana me contando em silêncio que meu toque ainda matava
seus pesadelos era tão reconfortante quanto sua respiração no meu pescoço,
os lábios acariciando minha pele sendo a faísca que bastava para começar
um incêndio. Minhas mãos achavam seu rosto numa carícia, as dela
retribuindo de forma muito mais sexual, me lembrando que quem
provocava também usava sexo como válvula de escape.
O quanto deveria ceder à mão que se perdia dentro da calça?
Precisávamos conversar, por mais que andasse difícil fazer tal, Alana se
mostrando tão disposta a falar quanto eu estava de pôr suas mãos longe de
mim. Ouvi-la gemer quando as minhas desceram foi minha resposta, eu
sabendo que continuaria com o que ela precisasse. Eu, acostumado demais a
ter seu toque em todos os momentos, também precisava, a falta me fazendo
entrar em abstinência dela.
E a falta me dava urgência, a pele do seu pescoço sendo pouco demais
para me saciar. Segurei-a pelos pulsos, a prendendo contra o colchão tão
como em nossa primeira noite numa cama, minha mão livre levantando a
camiseta branca. Era impossível provar da pele rosa sem mordiscar seu
seio, o arrepio percorrendo seu corpo sentido pelo meu.
O coração dela batia rápido demais, mas o jeito que tremia embaixo de
mim denunciava que não era pelo mesmo motivo que o meu explodia. A
forma que apertava os olhos e a expressão aflita tornou afastar-se
automático, as mãos pequenas cobrindo o rosto assim que saí de cima dela.
Não achei que fosse sentir mais qualquer pontada no peito depois de
ter meu filho morrendo em meus braços. Alana vivia provando erradas
minhas suposições, e o medo que reconhecia nela fazia algo dentro de mim
apertar. Ela respirava rápido, e vê-la sofrendo também tornava automático
me aproximar.
— Alana, o que foi? — Preferia um tapa do que vê-la ter aquela reação
comigo, a mulher praticamente pulando da cama assim que meus dedos
roçaram no seu ombro.
— Preciso de um banho. — A porta do banheiro se fechou sem mais
palavras.
A única possibilidade que se repetia na minha cabeça era a de que
minhas mãos tinham sangue demais para aquele tipo de conforto. Quanto
tempo demoraria para ela se esquecer o suficiente da maldita tarde? Quanto
tempo levaria até eu relembrá-la?
Porque com certeza ainda a recordaria da morte que existia em mim, o
assassino de Nicolas conseguindo me tirar mais uma paz ao deixar este
mundo.
— Pode me ensinar a atirar? — veio assim que ela voltou para o
quarto, Alana não se importando em cobrir o corpo enquanto escolhia uma
roupa.
— O que? — Talvez a visão dela nua tivesse me feito ouvir errado.
Alana mostrou que não ao virar-se, vestindo uma calcinha pequena
demais antes de me encarar. Os fios compridos ainda gotejavam, e ela se
comportava como se nossa última interação não tivesse existido, o medo
antes visto em seu rosto sendo substituído por algo que reconhecia como
divertimento.
— Eu quero aprender a atirar.
— Não foi bem isso que quis dizer quando falei sobre aprender a se
portar, Alana — esclareci, desviando os olhos do corpo que se aproximava.
Essa mulher iria me deixar louco, mas era impossível reclamar de uma
loucura que tinha um sabor tão bom. Limpei a garganta quando os dedos
passaram pela minha barba, suas pernas afastando as minhas antes de se
acomodar entre elas.
— Do que você estava falando, então? — A pergunta veio ao sentar-se
no meu colo, Alana sorrindo de um jeito que me fazia querer jogá-la na
cama, as palavras indo embora quando senti seus lábios no meu pescoço. —
Me fala do que.
Filha da mãe, ela sabia que me tinha nas mãos quando fazia isso.
Filha da mãe, ela sabia, e não fosse eu me fodendo, teria orgulho do
jeito que minha mulher manipulava alguém após descobrir seu ponto fraco.
— Nickolay — escutei meu nome antes de ser puxado pelos cabelos,
minha fraqueza me oferecendo lábios vitoriosos ao me ouvir gemer. —
Você pode ou não me ensinar a atirar?
— O que quiser. — Eram tão verdadeiras aquelas palavras, e ela nem
precisava me chantagear para tê-las.
— Eu quero aprender a atirar. E eu quero uma arma. — Merda.
— Ok — cedi, me perguntando que diabos Alana queria com uma
arma. Ela roçando-se em mim fez eu prometer ainda mais o que não deveria
colocar em suas mãos. — Te dou uma, dolcezza. Te ensino a atirar.
Os lábios tão perto dos meus era um teste? Era ela me tentando a
tomar o que eu queria à força? Minha boca salivava com o menor dos seus
toques, e apertei as mãos no edredom para não a puxar para mim e para
tudo que a vontade que tinha gritava para ser feito.
Alana não parecia querer as mãos de um assassino na sua pele, mas
não se importava em colocar as próprias em um, e o comportamento não
fazia o menor sentido. Os olhos mel me encararam curiosos, antes da dona
decidir por descer, eu puxando a respiração ao voltar para um mínimo de
sanidade.
— Pode me ensinar hoje? — Ela cobria os seios com uma camiseta
quando perguntou, eu ainda largado na cama virando a cabeça para a porta
que Alana abria.
Fiz que sim, e a mulher saiu sem mais nenhuma palavra, a frieza
atípica demais para quem sempre andava pegando fogo. Deveria ter dado
um jeito de mandar Emília embora após nossa primeira briga, eu odiando a
responsável pela minha vida atual recordar meu passado da pior forma.
Tive mais paz do que gostaria de volta, Nickolay longe demais durante
toda a semana. O italiano se ocupava com os negócios sobre os quais ainda
não discorria, ficando menos na nossa cama e mais fora de casa desde o
último domingo.
Eram cinco e meia de sexta, e já não tinha mais ninguém no
travesseiro ao lado quando abri os olhos. O achei abotoando a camisa, me
perguntando se essa vida corrida seria o verdadeiro normal com o qual
precisaria me acostumar.
— Continue dormindo, dolcezza. Ainda é cedo. — Mas me levantei,
mesmo com os olhos semifechados de sono.
— Sinto falta de você sem roupa, Nico. — O vi sorrir sem jeito, ele
falhando em dar o nó na gravata quando minhas mãos tocaram seu peito.
Por um momento, achei que qualquer que fosse o compromisso, seria
mandado para o inferno. Os lábios grossos acharam meu pescoço, e o som
que deixei escapar o fez reagir como eu quis a semana toda. O gemido que
ouvi quando o toquei sobre a calça me fez querer rasgar aquela peça de
roupa, meu italiano vestido demais para o que eu precisava.
— Hoje de noite, bella. — Poderia gritar.
Minha frustração era óbvia, e eu não conseguia entender como o
homem conseguia afastar minha mão e me colocar de volta na cama,
quando não ficaria na mesma. O sorriso nervoso voltou, Nickolay não
ligando de eu ter acabado de acordar e me beijando de uma forma que só
piorava a vontade que tinha dele.
— Agora. — Fiz um bico, conseguindo com que ele desse a risada que
era só minha antes de se afastar e reclamar algo em sua língua mãe. —
Português, Nico.
— Hoje de noite, dolcezza. — Ele já estava na porta quando falou. —
Volte para casa hoje de noite.
ㅤ
Ainda estava com sono quando desci para o café da manhã, Lorenzo
sendo o único presente em frente à mesa grande demais.
— Nico foi tratar de negócios? — Saiu mais natural do que eu
esperava, minha mão alcançando o bule de café que tinha certeza ter sido
feito só para mim. Aqueles homens eram viciados em expressos, Nickolay
tomando o seu passado apenas quando o dividia comigo.
— Saiu com Matteo. — Foi o que ganhei. — É só o que posso te dar
sobre esse assunto, Alana.
— Já disse pra me chamar de Lana — cutuquei, mordendo um pão de
queijo.
— Nico não te chama assim.
— Porque eu gosto quando ele fala meu nome inteiro — saiu natural, a
lembrança da forma como Alana saía de seus lábios me fazendo sorrir e
ficar vermelha.
Era um calor bom. Ultimamente, o italiano andava me fazendo sorrir
até longe, algo incomum para a vida que levei nos últimos anos.
Passei a faca na manteiga, vendo o celular sobre a mesa vibrar com
mensagens de Carlinhos. Era sexta, e nossos almoços haviam se
transformado em semanais desde o mês passado, eu confirmando mais um
antes de notar os olhos de Lorenzo em meu ombro.
Odiava quando alguém estudava aquele ponto, e o cobri por instinto
com os cabelos antes presos, o homem mostrando arrependimento nos olhos
cristalinos. A cor me deixava desconfortável, mas daqueles azuis eu
conseguia gostar.
— Desculpe, Lana. Não era minha intenção ficar encarando. — Dei
um sorriso que não alcançou meus lábios, ciente que dava para perceber
meu desconforto. Ainda assim, ele resolveu tocar no assunto. — Sua
cicatriz é peculiar.
Eram pontos, quis responder, ainda lembrando dos cacos de vidro. Mas
notei que o homem olhava para o ombro contrário, a lembrança daquela
maldita noite muito bem escondida de seus olhos pela regata.
— Era uma marca de nascença. — Eu poderia falar sobre a que ele se
referia sem doer muito. — Estava crescendo de um jeito estranho. Minha
mãe disse que o médico recomendou tirar quando eu era bebê — expliquei
o que Astrid havia me contado pelo menos umas três vezes. — A pele
cresceu um pouco diferente. Ficou bem grande, mas eu não me importo.
Realmente não me importava, afirmei em pensamento enquanto
mastigava o pão. A marca era uma das coisas que preferia não ter, a pele
mais grossa que havia na cicatriz sendo melhor do que uma vida me
perguntando se a mulher que me gerou tinha o mesmo sinal no ombro.
Não dei mais importância ao olhar curioso de Lorenzo e mudei de
assunto, deixando claro que preferia discutir sobre qualquer outra coisa.
Mas era irritante como, ultimamente, me incomodava recordar de
qualquer coisa relacionada à minha mãe biológica. Eu amava minha
família, e sinceramente, não poderia ter parado em uma melhor. Só que
havia sempre uma voz que perguntava como poderia ter sido minha vida
caso não tivesse sido entregue aos meus pais adotivos.
Haveria outro fantasma que não Thobias? Ou eu teria uma vida muito
mais simples, muito menos dolorida?
Só quando estacionei ao lado do restaurante que me veio à cabeça o
que eu não queria considerar. Uma existência mais pacata teria
provavelmente me tirado o homem responsável pela minha outra vez
achada paz.
Por mais que não imaginasse mais uma vida sem acordar e estudar
suas tatuagens, uma existência calma tornava a letalidade do italiano
desnecessária.
Trocaria Nickolay por uma vida sem fantasmas?
Dormir brigada com ele só piorava o mês que estava para chegar.
Tentei impedir o sorriso que queria vir quando senti os braços tatuados
apertarem ao meu redor, os lábios nos meus cabelos sussurrando bom dia.
Ele andava me derretendo mais fácil do que deveria deixar, e culpava o
maldito mês pelas emoções exacerbadas.
— Não faz eu ir embora contigo brava, dolcezza — Nickolay me pediu
numa voz ainda sonolenta, me lembrando bem demais da conversa tida com
Lorenzo no dia em que ameacei partir.
Saber o quanto a ausência de uma resposta minha poderia tornar a vida
de Nickolay difícil fez eu me virar sem dificuldade, a boca dele a primeira
coisa que toquei na manhã de segunda. Do mesmo jeito que ele tinha tanto
cuidado com minhas particularidades, tomei nota mental de nunca mais me
despedir sem um sorriso. Eu conseguia, mesmo chateada, lhe dar aquilo.
— Não tô brava com você, italiano. Mas vamos conversar disso
quando voltar — fui sincera, ele passando os lábios nos meus de um jeito
preguiçoso. — Precisa me deixar entrar nessa parte, Nico. Se eu vou viver
nesse meio, eu preciso disso, e você sabe.
— Alana… — O calei com um dedo.
— Agora não. Quanto tempo tenho até precisar te deixar ir? — O
arrepio que ele me fazia sentir ao traçar meu colo com a ponta dos dedos
me tirava toda a coerência, sua língua seguindo, fazendo tudo que havia
prometido na noite anterior.
— Tempo suficiente.
Mas a hora que passei com ele debaixo do edredom não parecia ser
suficiente, muito menos os minutos que passamos tomando banho. Não
teria ninguém além de mim na cama assim que anoitecesse, e o vendo
desaparecer dentro de um táxi, sabia que não estava pronta para ter meus
sonhos transformados em pesadelos.
Incomodei Carlinhos na segunda e na terça, me perguntando se, para
Matteo, era suficiente saber onde eu estava, ou se Nickolay o fazia passar a
noite no estacionamento. Quarta-feira foi a vez de Djamila, e desejava não
ter devolvido as chaves do apartamento para poder chamá-los para pernoitar
quinta e sexta.
Tinha as entregue de volta para papai e tirado o resto das minhas
roupas na última semana, e não queria abusar da boa vontade da mãe de
Mila ficando lá durante mais uma noite. Peguei no sono no mesmo sofá
onde havíamos dividido vinho e beijos no domingo, sendo acordada por
uma mão que não era a dele.
— Nickolay quer você dormindo no quarto, Lana. — Era Lorenzo, e
ele riu quando revirei os olhos, eu fazendo tanto aquilo ultimamente que a
mania estava se tornando minha marca registrada.
— Por que não foi com ele? — Senti o pescoço mais tenso do que
gostaria ao colocar os pés no chão.
Lorenzo me acompanhou escada acima.
— Estou fazendo outros trabalhos.
— Achei que seu trabalho fosse aconselhar. — E arranquei outra
risada do homem mais velho. — Se é que é isso que um conselheiro faz. —
Ele levantou uma sobrancelha. — Escutei te chamarem de Consigliere.
Nickolay acha que sou burra, e você deve achar também, mas sei usar o
Google pra traduzir as coisas. — Traduzir, e conseguir algumas
informações que eu imaginava serem parte verdadeiras sobre grupos
mafiosos na Itália, já que eu era mantida no escuro.
— Eu não te acho burra, ragazza. — A confissão ao chegarmos na
porta do quarto me surpreendeu. — Longe disso, e acredito que seu noivo
tenha a mesma opinião. E é por isso que ele te mantém de fora.
Aham, claro.
— Achei que tinha dito que se eu aprendesse a me comportar, Nico me
daria mais crédito — cobrei, me sentindo muito distante de qualquer
confiança referente aos negócios ilegais que os homens comandavam.
— Deixa ele ficar confortável, Lana. — A mão apertou meu ombro de
um jeito amigável, Lorenzo me dando um sorriso leve antes de continuar.
— Nosso meio não é seguro, você já sabe disso. Nico só quer seu bem, mas
o moleque nem sempre sabe te falar essas coisas.
— Ele sabe — admiti antes de me dar conta. Nickolay sabia expressar
os sentimentos muito melhor do que eu. Eu não sabia, então enrolava o
homem mais velho na frente do quarto, me aproveitando de todos os
segundos possíveis de paz antes de fechar a porta. — Você realmente cuida
dele como um pai cuidaria.
— Nickolay é como se fosse um filho para mim, por mais que meu
amigo tenha sido o único pai que o moleque aceitou na vida. — A resposta
veio num tom triste. — Por isso que voltei para o Brasil quando o fiz vir
para cá. Eu prometi ao meu amigo que sempre teria um olho nele. Boa
noite, ragazza.
Forcei um sorriso enquanto murmurava um boa noite, ele se
dissolvendo ao fechar a porta.
Nickolay passou toda a quinta sem dar notícias, e minha vontade de ir
para faculdade na sexta se comparava com a que eu tinha de ficar sem
cigarros o tendo longe. Menos de quatro horas de sono, e as que passei de
olhos fechados me trouxeram o olhar sem vida de Gabriela.
Queria saber qual mágica que tinha os braços tatuados, meu coração só
acalmando ao ver a mensagem recebida assim que me sentei na sala de
aula. Ao menos não teria mais aulas com Emília, por mais que ainda
pudesse cruzar com a víbora pelos corredores.
“Quero passar o domingo contigo.”
Italiano tonto, me fazendo sorrir no meio da aula.
“Só se for sem roupa.”
A resposta veio muito mais rápido do que esperava e de um jeito que
eu não estava esperando, o som do chuveiro alto demais fazendo todos se
virarem para mim. Filho da mãe, e Carlos me lançou um olhar de quem
sabia muito bem que tipo de vídeo eu tinha recebido enquanto me apressava
para fora da sala.
Claro que não tive paz durante nosso almoço, e mesmo com todo o
barulho da praça de alimentação lotada do shopping Paulista, ainda ouvia
Nickolay. Ele no banho me perguntando se era assim que o queria tinha sido
muito melhor do que uma foto, eu pensando em fazer igual assim que
chegasse na mansão.
Tinha me tornado um clichê, não conseguindo chamar o lugar de casa
sem ter ele nela.
— Aérea hoje, hein Pipoca? — Carlos provocava, o mesmo sorriso de
mais cedo. — Recebeu algum problema grande demais?
— Você viu o vídeo??
Os dois caíram na risada, meu rosto vermelho como se fosse eu quem
tivesse se filmado num banho bem exibicionista.
— Se não sabíamos o tamanho do seu problema, Pips. — Ele não
controlava a risada, Djamila acompanhando o amigo ao se divertirem com a
minha cara. — Agora a gente sabe que cê tá bem servida!
— Vocês são insuportáveis — reclamei, enfatizando cada sílaba antes
de terminar meu hambúrguer.
— E você nos ama mesmo assim.
Foi só na tarde de sábado, passada com Djamila, que toquei no
segundo assunto que mais andava me deixando acordada.
— Andei pensando na minha mãe — saiu automático quando nos
sentamos, o sol aquecendo nós duas no primeiro dia realmente frio daquele
ano. — Na minha mãe biológica — especifiquei, por mais que aquilo não
precisasse de clarificação.
Respirei fundo, provando a primeira colherada do meu sorvete de
pistache favorito. A sobremesa derretia na língua enquanto pensava o
quanto agosto poderia ser menos pior tivessem meus pais nunca me
abandonado.
E novamente me senti a pior filha do mundo, sabendo que foram
minhas escolhas que tinham me levado até ali. A mulher que era minha
única mãe me avisou outra e outra vez que havia algo de errado com o
homem que eu chamava de namorado, e o mês de agosto era o do desgosto
justamente por eu ir contra isso.
— Eu sei que não deveria. Que o melhor é nem pensar nisso...
— Lana, você tem todo direito de pensar nela — Djamila me
confortou, alcançando minha mão sobre a mesa. Ela sabia o quanto eu
ficava culpada sempre que quem me gerou invadia minha mente, o quanto
doía querer achar a pessoa que me deu como se eu fosse uma mercadoria.
— Tia Tridi falaria a mesma coisa que eu, e você sabe.
Suspirei, fazendo uma careta ao tentar conter as lágrimas que queriam
vir. Tão irritante o quanto ficava emotiva naquele maldito mês, assim como
era angustiante lembrar que mamãe estava escondendo alguma coisa de
mim.
— O gringo tá te ajudando a procurar, não tá? — Fiz que sim, mais
uma colherada de sorvete na boca. — E?
— E nada — lamentei, finalmente assumindo como era difícil a falta
de informação. — É como se meus pais não quisessem ser encontrados.
Como se quisessem mesmo ter se livrado de mim. — Dei uma risada seca:
eles se livraram de mim, e com sucesso.
— Não pensa assim, Pipoca — Mila tentava me animar. — Você não
sabe o que aconteceu! Nenhuma mãe quer se livrar do filho.
Mentira, a voz que sempre me atormentava caçoava.
— Então por que não consigo achar nada? Mesmo se minha mãe
estivesse me escondendo algo, já era pra eu ter achado alguma coisa! —
choraminguei, minha única certeza sendo a de que Astrid encobria o fato da
minha adoção não ter sido exatamente legal.
Mas mesmo que ocultasse mais coisas, as pessoas que trabalhavam
para Nickolay eram boas. Os profissionais eram minha última esperança, e
era triste como a cada dia, eles a faziam diminuir mais e mais trazendo
mãos vazias.
— Eu só queria saber por que ela fez o que fez. — Novamente meus
olhos marejavam, outra vez eu fungava por uma pessoa que nem deveria
lembrar da minha existência. — Ver como ela é. Saber de onde eu vim, ou
quem era meu pai, se eu gosto tanto de lasanha porque foi a comida que ela
mais comeu quando estava grávida. — Meu sorriso era amargo. — É tão
idiota, eu sei.
E a mão que segurava a minha a apertou mais forte, os olhos da minha
melhor amiga tentando me passar o mesmo conforto que Nickolay me dava
com tanta facilidade.
— Não é não, Lana. Eu também ia querer saber, e não achar nada me
deixaria chateada igual. — E do mesmo jeito que Djamila conseguia socar
com as palavras, ela também sabia fazer o melhor dos carinhos. — E você
pode falar comigo sobre isso, sempre que precisar.
— Sou sortuda por ter você, brigona. — Eu era mesmo, e não consegui
mais segurar uma lágrima, Djamila sacudindo a cabeça e desviando os
olhos para cima.
— Nós duas vamos acabar fungando se continuar, Pipoca! — Ela
gostava de chorar na frente de pessoas tanto quanto eu, nós duas rindo antes
da atenção voltar para a sobremesa. — Tá emotiva esses dias, hein? Isso
tudo é saudade do gringo?
— Quietinha, boba. — Revirei os olhos. Passar tempo com ela fazia
bem para minha alma.
— Talvez o contrário seja mais verdadeiro, né? — ela provocou. —
Afinal, menos de dois meses e a pessoa me enfia um anel desses no seu
dedo. Ou você tá grávida e resolveu não contar justo pra mim?
E eu quase ri. Mas a possibilidade passava longe de ter graça.
— É claro que não! — A possibilidade era, afinal, absurda.
Não que estivéssemos dependendo de algo além do meu
anticoncepcional para evitar qualquer imprevisto, mas quais as chances?
— Alana?
— Eu não tô! — Eu não estava.
No entanto, parando para pensar, eu também não estava menstruada, e
pelos meus cálculos, deveria ter ficado antes de começar a próxima cartela.
E a próxima cartela era também para ter começado ontem, e precisava
admitir que estava sendo um tanto displicente ao tomar as pílulas.
Mas eu não estava grávida. Eu saberia, se estivesse grávida.
— É impossível — afirmava mais para mim do que para Djamila.
— Com todo o sexo que você diz que anda tendo?
E meu corpo, que não sabia o que era tensão desde que Nickolay fez a
mágica de evaporá-la com seus beijos, reaprendeu o sentimento no mesmo
segundo.
— Ainda dá pra ver a boca do italiano no seu pescoço, e eu aposto que
ele não parou no beijo. — A provocação era para ter sido engraçada, só que
enquanto eu sorria, não via graça nenhuma.
Porque eu não podia estar grávida. Eu não podia estar grávida.
— Negativo.
Alana respirando fundo e fechando os olhos deveria ter feito eu imitá-
la.
No entanto, qualquer reação que demonstrasse alívio apenas sugava a
felicidade que a dúvida havia colocado em mim. Era mais egoísta do que
deveria me permitir ser por querer um filho com a mulher que amava,
sabendo bem dos perigos que já a colocava sem um. Como poderia garantir
que a criança não tivesse o mesmo destino de Nicolas, quando até o de
Alana me tirava o sono?
Ainda assim, doía. Desde aquela tarde no mar, sabia que permitir
qualquer sentimento bom trazia a possibilidade da dor aparecer. Eu permiti
a entrada da mulher, e desse jeito, a dor era outra vez uma constante em
minha vida, por maior que também fosse a alegria que Alana trouxesse.
— Isso é bom, esse resultado é bom. — Ela estava de mãos juntas e
olhos fechados, como se estivesse agradecendo uma divindade que parecia
apenas me amaldiçoar. — Um filho é a última coisa que eu preciso trazer
pra vida que levo. — A frase deveria sair de mim, e não dela.
A frase também não deveria machucar tanto, minha habilidade de lidar
com a dor sem escapes tendo acabado ao perder Nicolas.
Aceitando me casar com Giovanna, sabia que assinava o fim de uma
vida normal. Preso num contrato sem amor, criando o único menino que
poderia chamar de filho enquanto com ela, aquela não era nem de longe a
vida que havia me deixado sonhar quando moleque. Após a morte de quem
foi minha esposa, a última coisa que desejava era tentar outra vez. Nunca
me preparei para Alana, nunca imaginei que iria querer com ela meus
sonhos de criança.
Não existiam sonhos no meu mundo, uma família minha sendo tudo
que imaginava antes de entrar na máfia, e tudo que não deveria querer
estando dentro dela. Alana parecer aliviada por não iniciarmos uma deveria
ser bom, mas era como um banho de álcool numa ferida aberta. E por mais
que fosse injusto, e contra tudo que havia prometido a ela minutos atrás,
não consegui sorrir com isso.
Suspirei, desejando saber se meu amor seria para sempre unilateral.
— Falei merda, não falei? — A mulher notou o incômodo, eu
ultimamente deixando-a me ler bem demais. — Nico, eu não disse isso por
mal! É difícil explicar, e eu não tô...
— Não está errada, Alana. — Forcei os lábios para cima, mas pelo
espelho, via o quanto não havia mais traço da felicidade que prometi existir,
independente do resultado. — Uma criança, na vida que levo, é loucura.
Faz parte dessa vida agora, não desejar uma é apenas o correto. — Balancei
a cabeça, me livrando de seus braços. — Não deveria nem considerar isso,
quanto mais ficar feliz em te colocar em uma prisão ainda maior. — Ela
abriu a boca para responder, eu a impedindo de falar. — Vamos ser mais
cuidadosos.
— Nickolay...
— Só estou cansado. — Respirei fundo, não a encarando enquanto
lavava o rosto com água fria. — Preciso de um banho e algumas horas de
sono, ok? — Aceitei os braços que envolviam minha cintura, mas não me
virei antes de pedir. — Está tudo bem. Volte a dormir, dolcezza. Só me dê
alguns minutos.
Ela fechou a porta ao sair, e xinguei baixo, sabendo que meus sonhos
haviam terminado com qualquer alegria que poderia haver naquele
domingo. Estava odiando ser tão transparente na frente de Alana, do mesmo
jeito que detestava o dia de hoje, meu aniversário sendo uma data
amaldiçoada. O negativo deveria ser meu maior presente, e não um tapa.
Agosto, como sempre, era amargo demais.
Foi uma noite sem sonhos, e desejei saber se era efeito do analgésico
forte que Nickolay me fez engolir. Dormi com seu calor contra meu corpo,
e quando abri os olhos, minha mão ardia e minha cabeça latejava. A
lembrança do dia que gostaria de esquecer sempre vinha forte em manhãs
como aquela.
Mas não era a dor que fazia meu coração acelerar.
— Nico? — Era a ausência dos braços ao meu redor. Eles sempre
estavam ali, mesmo comigo o afastando, mesmo com o italiano magoado, e
senti o ar me deixar.
Teria a história de ontem sido a gota que traria o fim, a separação que
ele me fez ver ser possível durante a semana toda? Respirei fundo, já
sentindo as lágrimas surgindo quando a maçaneta virou, Nickolay
apressando-se para dentro ao me ver acordada.
— Ainda é cedo, dolcezza. — O italiano falava aquilo demais
ultimamente, mas não me importava com nenhuma palavra quando ele
voltava comigo para baixo dos lençóis.
— Fica. — Ele apenas me abraçou mais forte.
Acordei outra vez com o cheiro de café e Nickolay encostado na
cabeceira, segurando o mesmo livro de noites atrás com uma mão enquanto
seu outro braço me mantinha perto.
— Buon giorno, bella. — Ele abandonou a leitura no edredom e me
puxou para seu peito, os lábios achando minha bochecha. — Está com dor?
Fiz que sim, e um comprimido foi posto na mão livre de pontos.
— Ibuprofeno. — Um copo com água foi para meus lábios assim que
coloquei a pílula na boca, Nickolay me tratando com uma delicadeza
desesperadora.
Engoli o remédio querendo gritar, encostando os pés no chão ao me
sentar na cama.
— Se sente enjoada? — Por que ele queria saber sobre enjoos? —
Tonta, dor no pescoço? — Ah.
— Pra que tanta pergunta? Já não contei que sobrevivi a coisa pior? —
Era injusto responder daquele jeito grosseiro, e me arrependi do meu
temperamento descontrolado, achando os olhos escuros. — Desculpa.
Mas Nickolay não estava bravo, nem surpreso, a expressão suave
como se eu tivesse lhe dado bom dia. Tinha dó ali. Eu sabia, e não consegui
encarar tanta pena, preferindo olhar para a caixa sobre a mesa de cabeceira
do que para ele.
— O que é isso? — A dó foi embora, os olhos ganhando uma nova luz
ao irem dos meus para a caixa.
— Disse que queria uma arma, vero? — Dei um mínimo sorriso, por
mais que fosse claro para ambos que o feito não atingia nada além dos meus
lábios. — Vamos treinar com ela amanhã.
Não reclamei ao tê-lo como sombra durante todo o dia, por mais que
por muitas vezes quisesse a solidão para chorar em paz. Era até bom não
poder derramar tantas lágrimas enquanto dividíamos um balde de pipoca e
sofá, na TV um filme que nenhum dos dois parecia olhar.
Preferia tirar sua roupa e esquecer dos meus problemas, mas me
contentei em tirar o controle das suas mãos quando os créditos rolaram, eu
escolhendo a próxima hora de entretenimento, as tatuagens de Nickolay
nunca me deixando. Eu gostava do toque nos meus cabelos tanto quanto
adorava o roçar dos dedos em lugares bem mais cobertos.
Não houve muitas palavras, a casa vazia tornando grande demais a
pizza tamanho família sobre a mesa de centro. Ele sabia ser portuguesa meu
sabor favorito, e fiz descer pelo menos um pedaço junto de uma latinha de
Coca Zero.
Domingo pareceu demorar uma eternidade para chegar, o italiano me
dizendo para vestir algo confortável, mas não mantendo os olhos em mim
enquanto me trocava. Tentava não me incomodar com o fogo ausente, assim
como levei uma eternidade para cobrir os seios, já sabendo bem das partes
minhas que Nickolay gostava de ver.
— Esse não é meu carro — notei confusa ao chegamos na garagem,
por um momento esquecendo que meu antigo não deveria estar em
condições de ser dirigido.
Nico pareceu arrependido por um momento, mas logo explicou.
— Agora é. — Quando viu que eu abriria a boca, se apressou em
continuar. — Esse carro é blindado, Alana. Aceite, ou eu não vou ter paz.
Revirei os olhos. Amava e odiava tamanho cuidado, assim como sabia
bem o que era ser privada de paz.
— Ok. — Mesmo incomodada, eu gostava de ser a responsável pelos
sorrisos em seus lábios.
O interior cheirava a novo, o couro falso impecável cobrindo os
bancos e volante. Nickolay me fez sentar no banco de motorista, e meu
coração acelerou depois de horas calmo quando ele se inclinou sobre mim.
Mas os lábios grossos não chegaram perto dos meus, me deixando
apenas com as memórias de tudo que já fizemos em lugares como aquele.
— Está sentindo? — A pergunta veio com ele levando minha mão
direita para trás do banco. — É um fundo falso, a arma fica aí. — Ele me
conduziu até eu achar o metal frio, meus dedos sendo encorajados a fechar
no cabo. — Não se preocupe, está travada. Sempre tem que ficar travada,
Alana. — Era instruída, o tom sério. — Lembra como destrava? — Fiz que
sim, trazendo a arma para nós com certo receio. — Não está carregada,
dolcezza. Pode manusear sem medo. Consegue sentir a diferença no peso?
— Acho que não. Precisava saber?
As palavras pareceram lhe causar um conflito interno.
— É sempre bom saber todo o possível. — Nickolay acabou decidindo
por falar, olhando da arma para mim. — Pequenos detalhes podem custar a
vida, Alana — ele dizia como alguém que tinha aprendido aquilo da pior
maneira.
A tristeza que passou pelos olhos escuros me fez decorar todos os
detalhes que o italiano se esforçava para me passar.
— Se algum dia a polícia parar esse carro e por qualquer motivo
estiver sozinha, a primeira coisa que vai fazer é me ligar. A primeira, Alana.
— Nickolay reforçava, a voz firme. — Se eu não atender, ligue para
Lorenzo, se ele não atender, Matteo. Se ninguém atender, vai ligar para
nosso advogado e ficar quieta até alguém chegar. Ok?
Havia sinceridade no sorriso que eu lhe dava agora. Minha segurança.
Ele poderia me olhar do jeito que quisesse, assim como eu poderia sorrir de
verdade pelo resto do dia ao seu lado.
— Ok.
Não tirar sua roupa era muito mais difícil do que Alana imaginava.
Acordar com o cheiro que amava já me deixava precisando dela, o corpo
pouco vestido sempre pressionado contra o meu não ajudando a apagar o
fogo que acendia.
Vivia num incêndio, mas não apagaria nada antes que quem tinha nos
braços estivesse pronta. Ela precisava pedir.
Ainda lembrava demais da noite que passei acordado com a mulher
chorando no banheiro. Os soluços que ouvi por horas por detrás da porta me
faziam temer tocá-la de algum jeito errado, eu tendo passado por situações
diferentes, mas tão semelhantes, com Giovanna. Conseguia sentir a tensão
em seus músculos quando eu me deixava beijá-la com a necessidade que
havia se acumulado, e sabia que Alana lutava contra memórias muito mais
dolorosas do que poderia algum dia imaginar.
O que ouvi na última noite de sexta era o maior dos absurdos, eu não
sabendo mais o que era acordar não a desejando. Viveria dentro dela, se
apenas isso pudesse curar a dor que via, se tal pudesse proporcionar a paz
que ainda buscava entregar para minha mulher.
Contar a Astrid o ocorrido havia sido mais fácil do que o esperado, a
mulher fazendo a caridade de passar a notícia para Djamila. A senhorita
Amaral definitivamente não me tinha na sua lista de favoritos, e ouvir da
mãe da sua melhor amiga ao invés de mim poderia torná-la muito mais
colaborativa em se calar sobre os pontos e acreditar em qualquer história
que Alana decidisse contar.
Claro que os detalhes revelados pela filha ficaram de fora, por mais
que a mais velha fosse quem tivesse plantado o começo da certeza de que
Thobias deveria ter um fim. Claro que Alana desconfiava que tinha
conversado sobre seus machucados, e aquilo havia sido dito de forma
discreta pela mãe antes de nos sentarmos em meu sexto almoço com aquela
família.
Ainda tinha a mão pintada por canetas coloridas, a caveira que
carregava ganhando um tom de deboche com as cores escolhidas. Com as
mangas arregaçadas e Alana nos meus braços, o silêncio pós-refeição
casava bem com o café que bebia.
Quase todos os integrantes da família muito maior do que a minha um
dia havia sido estavam do lado de fora, na sala apenas a mais nova, que
dormia no carrinho, e minha noiva de companhia. Mesmo coberta pelo
casaco, ainda me lembrava bem da imagem vista hoje pela manhã, Alana se
despindo de minha camiseta e mostrando o quanto tinha conseguido
emagrecer em pouco mais de uma semana.
A mulher não comer quase nada estava me deixando louco, e todo o
chocolate que queria empurrar para sua boca tinha um efeito muito parecido
nela.
— Você vai me engordar com tudo isso. — A mão empurrou brava o
quarto bombom que eu tentava fazê-la comer, ela o obrigando a ir para
minha boca quando a abri para reclamar.
Sacudi a cabeça, quase desistindo das calorias extras enquanto sentia o
doce derreter contra a língua.
— Eu te amo com qualquer peso, dolcezza — sussurrei contra seus
cabelos, tentando insistir uma última vez. — Coma um só, é seu favorito.
Precisa comer mais para curar seus pontos, bella.
— Não quero, Nico. — Ela fechou a cara e se afastou, preferindo o
apoio do braço do sofá.
Deveria ter ficado quieto, mas a convivência nos tornava parecidos nos
bons e maus aspectos.
— Está tão magra, Alana. — Ter ficado quieto evitaria o olhar doído
que ganhei antes da mulher se levantar.
— Você acabou de falar que me amaria com qualquer peso!
Revirei os olhos. A convivência realmente me dava suas manias.
— E eu amo! Mas eu consigo ver as suas costelas, é demais! Não está
saudável! — Olhei para o lado de fora, quase toda a família entretida com
as histórias de Leandro, Astrid me lançando um olhar preocupado. — O que
posso fazer para te dar algum apetite?
— Eu não quero comer! — As palavras eram gritadas, mas não altas o
suficiente para chamar a atenção de alguém além de Isabella.
Era engraçado como escutar o choro de uma criança me fazia reagir
antes de pensar. Pegar Isabella no colo foi automático, e só me dei conta do
que havia feito ao sentir as mãos pequenas agarrando minha camisa.
Nunca havia segurado nenhum além de Nicolas, e o bebê que tinha nos
braços trazia todas as boas e más memórias. Voltei para o sofá, o choro
acalmando, Alana retornando muito mais dócil para meu lado.
Do mesmo jeito que eu tinha conhecimento das pequenas coisas que a
afetavam, ela mostrou ter a mesma atenção aos detalhes comigo. Beijei o
pulso da mão que alcançava meu rosto antes de limpar a garganta,
embalando a pequena até os olhos fecharem, por mais que meu peito
queimasse.
Eles voltaram a abrir assim que tentei colocá-la de volta no carrinho.
— Lucas disse que ela não para aí depois que acorda. — E parecia ser
verdade, Isabella outra vez ameaçando começar um berreiro. — Quer que
eu a segure, Nico?
Os olhos mel encaravam os meus com uma preocupação que me fazia
sorrir, eu me orgulhando por um momento de nosso novo equilíbrio. O
temperamento de Alana, que antes a empurrava para longe de mim, agora
conseguia calma o suficiente para continuar ao meu lado. O meu tinha
controle o bastante para me manter calado, e afirmei que era bom ver um
crescimento em nós.
— Não precisa, amore mio.
Aquele amor que ela me dava sem falar uma palavra tornou todas as
memórias antigas muito mais suportáveis.
— É chorona como sua tia? — provoquei, Alana revirando os olhos e
a pequena balbuciando algo que poderia muito bem ser um sim. — Talvez
eu tenha algo que goste. Brilla brilla una stellina[77] — comecei a música
que por tantos anos não conseguiu sair dos meus lábios. Alana tornava
cantar assustadoramente fácil. — Su nel cielo piccolina[78].
Isabella parecia gostar tanto de italiano quanto a tia, e tinha a criança
dormindo em meus braços até a canção favorita de Nicolas acabar.
Mas as lágrimas que vi nos olhos de Alana me falavam que minha
noiva talvez não compartilhasse da mesma opinião naquele dia. A puxei
para perto com meu braço livre, a deixando escondê-las em meu peito.
Havia mais lágrimas do que gostaria ultimamente, minhas ideias para
acabar com elas cada vez mais escassas.
— Que foi, dolcezza? — Mas eu não tive uma resposta, e aceitei
quieto as duas que pegavam no sono encostadas em mim.
Alana foi calma o resto da tarde, e muito mais quieta que de costume.
Era óbvio que aceitava a segunda fatia do bolo de fubá mais para agradar a
mãe — e talvez a mim — do que por qualquer vontade de comer. Mas ao
menos comia mais do que o pouco ingerido durante a semana, e eu me
contentaria com todas as besteiras que a conseguisse fazer ingerir.
Ela colocou sua playlist favorita na volta para casa, eu cantarolando
algumas das músicas enquanto Alana me ouvia quieta. Cantar na frente dela
já não me causava desconforto, e mesmo se causasse, o sorriso que lhe
tirava me faria passar por cima do incômodo.
A tinha nos braços no fim da noite, nós dois já debaixo do edredom,
quando Alana quis qualquer conversa.
— Nickolay? — ela sussurrou, esperando por minha atenção antes de
continuar. — Me desculpa.
— Por que, dolcezza?
— Por aquela manhã.
Era óbvio a qual manhã ela se referia, e sentia que se alguém deveria
pedir desculpas, era eu. Era meu temperamento que a fizera cruzar com
quem já deveria estar morto, e não conseguia me perdoar por ter tido a
chance de buscá-la e desperdiçado mandando-a ir sozinha.
— Não precisa pedir desculpa, bella.
— Precisa sim! — Com certeza era meu arrependimento que me
deixava controlar meu gênio forte.
Mas Alana se virava com pesar no instante seguinte, seus olhos
achando os meus ao mesmo tempo em que as mãos pequenas seguravam
meu rosto.
— Eu não quis dizer que você não era bom, Nico. Dá pra ver o quanto
você era um bom pai, o quanto Nicolas teve sorte de ter você. — Agradeci
por haver pouca luz, limpando a garganta enquanto forçava um sorriso.
Nicolas estava morto. Que bom pai deixa o filho morrer? As palavras,
por mais que Alana não tivesse qualquer intenção, doíam como ferro em
brasa. Eu não era bom.
Algo parecia provocar uma dor muito semelhante nela, a voz falhando
assim que voltou a falar.
— Você nunca me deixou explicar. Tudo que eu disse foi pra mim.
O choro que estava por vir só me fez querer adiantar a passagem para
o inferno do moleque que tinha as horas contadas, por mais que, pela
primeira vez, a culpa não pudesse ser posta nele.
— Eu vi o jeito que você olhou pra Bella. Você quer isso outra vez,
não quer? — Engoli, tentando suavizar a maldita bola que se formava na
garganta sempre que pensava em tal assunto. — Um filho.
— Alana...
— Eu não sei se posso. — Suspirei.
Eu já sabia daquilo. O medo de haver algo tinha sido claro, as mãos
trêmulas ao segurarem o resultado, o olhar apreensivo durante os minutos
de espera. Era óbvio, e me senti mal por desejar novamente uma família
durante nossa tarde, tendo conhecimento do quão importante era o desejo
vir das duas partes.
— Dolcezza, ainda é tão cedo para pensarmos nisso...
— Não, você não entende! — A vi sacudir a cabeça, as mãos fugindo
de mim conforme Alana se sentava. — Eu quero, Nickolay. Eu sempre quis
ser mãe, eu quero ser mãe. Mas eu não sei se eu posso. Se é fisicamente
possível pra mim. — Descobrir que estive errado nos últimos segundos doía
mais do que pensar em Nicolas, a voz terminando o resto da confissão num
sussurro. — Talvez ele tenha me tirado até isso.
Os olhos mel encararam o teto, e eu sabia que acabar com a vida
daquele desgraçado não seria o suficiente para as lágrimas secarem. Mas se
diminuíssem, seria apenas mais um que me faria puxar o gatilho sem dó.
Não sabia o quanto não estava pronto para ouvir sua resposta até a ter.
— Eu fui mãe. Quando aceitei morar com ele, eu estava grávida. —
Ela quase não conseguiu pronunciar, e minha mão achou a sua ainda
machucada. Sabia que Alana estava cerrando o punho, sabia que acabaria
abrindo os pontos mais uma vez, e sabia que mataria Thobias. — Quando
acordei naquela manhã, tudo doía tanto, tinha tanto sangue.
Apenas ela conseguia continuar falando. Alana era tão mais corajosa
do que se dava crédito.
— Eu demorei pra entender que tinha perdido mais do que a minha
paz. Eu sei que deveria ter entendido depois de ver o sangue, mas acho que
passei tantos dias em choque que não consegui fazer a ligação. Ou eu não
quis, porque era a última coisa boa que me restava. Um dia, eu comecei a
ter essas dores, era uma cólica insuportável, e quando fui pro hospital… —
Vi a risada amarga que nunca combinava com ela. — Eu nem lembro
direito. Fui ao mais longe de onde eu morava, num que não tinha chance de
alguém me reconhecer. Disseram que eu estava com uma infecção, falaram
algo de aderências. Me deram alguns antibióticos no final, e o médico
comentou algo sobre eu talvez não conseguir mais — Alana olhou para
longe antes de continuar. — Ter filhos. Que poderia ser mais difícil, depois
daquilo.
Era perturbador o medo que via em seu rosto quando puxei seus olhos
para os meus. De novo, era ela quem tinha coragem de falar primeiro.
— Como pode querer continuar comigo, depois de tudo isso? Eu só te
decepciono, Nico.
O que eu poderia fazer para tirar aquela dor?
— Alana, como pode dizer uma coisa dessas? — Encostei minha testa
na dela, limpando uma lágrima que escorria com o coração pesado. —
Dolcezza, nós dois sabemos tão bem que família não tem nada relacionado
com sangue. — Só pesava mais ao ver todas as que seguiram. — Nicolas
não tinha nada meu, e eu o amei tanto quanto eu te amo.
Beijei o topo da sua cabeça, a puxando para mais perto, tentando
inutilmente lhe passar algum conforto. Era o fim de mais um domingo, e
Alana se aninhava nos meus braços e chacoalhava com soluços. E outra
vez, achava nela mais semelhanças do que gostaria, nós dois dividindo
quase todas as dores crônicas que queria manter apenas em mim.
Talvez tenha sido a confiança ao me chamar para algo que ele sempre
mostrou ter tanta resistência. Nickolay falava outra e outra vez que eu
precisava aprender a me portar antes de entrar em seu meio, e queria
acreditar não ter sido apenas desespero o responsável pelo voto de
confiança.
O vestido que o espelho mostrava era novo e marcava minha cintura, o
tecido preto caindo até o fim das minhas pernas. Era uma das poucas roupas
que conseguia me fazer feliz pelos seios quase inexistentes, eu não
precisando me preocupar com sutiã enquanto exibia o decote em v longe de
discreto. Bem mais comportado que o do nosso primeiro jantar, mas
esperançosamente, bom o suficiente para o italiano querer me colocar em
cima dele depois de tempo demais longe do seu colo.
Ele realmente me faria implorar, pensei enquanto girava o anel na mão
direita, o visor do celular mostrando ser quase sete horas.
O olhar que Nickolay me deu quando cheguei no fim da escada era o
que procurei durante todas as últimas semanas. O italiano parecia sem
palavras enquanto absorvia os detalhes que havia me esforçado escolhendo,
e eu conseguia novamente ser a garota que o fazia falar sacanagens dentro
de um carro.
— Dolcezza, che bella[79]. — Adorei as primeiras palavras que saíram,
uma mão achando minha cintura, ele mostrando estar desconcertado ao
coçar a barba. O sorriso que ganhei em seguida passava longe do
comportado, a mão subindo para as minhas costas nuas e me puxando
contra ele.
— Gosta? — Ele virar o rosto e dar um riso nervoso era minha
resposta, seus dedos logo achando a fenda da saia, a ponta do nariz roçando
no meu pescoço causando o melhor dos arrepios.
— Dio santo, não consigo pensar contigo nesse vestido — Nickolay
confessou ao me encostar no corrimão. — Quando eu vou parar de te querer
tanto?
Vê-lo daquele jeito era mais delicioso que o melhor dos vinhos, eu
tinha certeza.
— Espero que nunca.
O beijo que ganhei era tudo que buscava desde que comecei a me
arrumar. Desde dias, semanas atrás, Nickolay mostrando o quanto eu
conseguia acabar com seu controle.
— Preciso de mais que seus lábios, Alana. — A reclamação veio numa
voz sofrida, os dentes torturando meu pescoço, a mão grande achando
minha coxa. Senti a mordida quando gemi seu nome, o italiano duro
pressionando-se contra mim e me fazendo querer mandar o jantar para o
inferno.
— Assim eu vou desarrumar seus cabelos. — Mas a preocupação de
nós dois era zero, meu coração perto de explodir ao sentir a língua correr
pelo decote.
— Desarrume o que quiser, eu não ligo.
E com isso, minhas mãos foram para os fios pretos, os lábios grossos
provando o que o vestido antes escondia. Nickolay sugava meu seio como
se fosse ele quem estivesse pronto para implorar, e eu teria o feito, se
estivesse apta a pronunciar palavras inteiras. Estávamos ofegantes quando
nossas bocas voltaram a se achar, eu agradecendo por ter deixado o batom
para depois enquanto o italiano acabava com o resto do meu fôlego.
— Fanculo, não quero mais ir — ele confessava ao deixar a mão subir
por baixo do vestido, e joguei a cabeça para trás quando os dedos
alcançaram minha calcinha.
O que eu mais queria era me livrar dela, mas meus olhos encontraram
tudo que eu menos queria ver. Lorenzo limpando a garganta no topo da
escada fez as mãos grandes cobrirem minha coxa e arrumarem o vestido
que estava prestes a ser tirado. Nickolay ainda olhava para o teto enquanto
arrumava os fios que eu tinha bagunçado, eu reparando haver muito mais
cor que o normal em suas bochechas.
— Sobremesa só depois do jantar, Nickolay. — A voz veio debochada,
o homem mais velho segurando uma risada ao passar por nós. — Já é bem
crescido para eu ter que lembrar você disso.
Vê-lo parecendo um menino pego no meio de uma de suas travessuras
foi uma das melhores coisas da noite, e ainda ria ao passar pela porta. Não
me importei com o beijo na bochecha que ganhei ao chegar do lado de fora,
tendo certeza de que o mais sábio a se fazer era me manter longe de seus
lábios até o fim do jantar, se quisesse ficar vestida.
— Limusine? — Levantei uma sobrancelha ao notar a mudança de
carro, Nickolay encolhendo os ombros e abrindo a porta. — Dá pra fazer
muita coisa numa limusine — provoquei antes de entrar, pensando em quão
seguro para ele seria ficar num ambiente fechado comigo.
Me sentei no banco de couro, forçando para o fundo da mente todas as
ideias que vinham ao tê-lo outra vez perto. O jantar deveria ser no mínimo
importante, e eu deveria no mínimo nos manter inteiros até o fim dele,
então minhas mãos foram repousar no meu colo, e não em qualquer das
partes do italiano.
— Alana, a noite de hoje, ela… — Era raro ver aquele homem não
saber o que falar. — É difícil colocar em palavras.
— É um ambiente machista e tóxico, onde você é o foda e eu sou seu
enfeite? — me atrevi a adivinhar, sabendo que não teriam palavras para
suavizar o que me aguardava.
— Nunca vai conseguir ser meu enfeite, Alana. — A voz saiu séria, os
olhos me encarando como se eu tivesse dito um absurdo. — Com a sua
personalidade, é mais provável que um dia o contrário aconteça.
Revirei os olhos. Como se isso fosse possível.
— Bem, tenho que confessar que você é muito bom de se olhar,
Nickolay. — Minhas mãos realmente eram inquietas, a direita apertando sua
coxa, eu quase mandando para o inferno a promessa de me manter
comportada ao ouvi-lo arfar.
Agora era ele quem limpava a garganta, e eu ri da tentativa de se salvar
de mim ao abrir a janela que dava acesso a Matteo. Nico gostava de me
ouvir rindo, os olhos dele me mostrando aquilo antes de eu me deixar
encostar em seu ombro.
— Alana — ele continuou, a voz demorando demais para achar o que
queria falar. Nickolay não sabendo se expressar era sim, engraçado. —
Ninguém vai te desrespeitar, mas duvido que todas as conversas serão
agradáveis.
— Uhum. — A testa franziu, os olhos escuros me encarando
desconfiados. — Você quer me pedir pra ficar quieta, não quer?
A expressão disse tudo.
— Só tente medir as palavras antes de começar a agredir os homens
com quem trabalho, dolcezza. — Ele parecia tão envergonhado de me pedir
aquilo quanto se mostrou ao ser pego por Lorenzo, minutos atrás.
— Eu quis vir, não quis, Nico? — respondi, lhe oferecendo meus
lábios. — Se quiser, pode começar a me calar agora.
Por mais que tivéssemos plateia, os beijos passavam longe da
suavidade, meu corpo inteiro sensível quando o carro estacionou em frente
ao restaurante escolhido.
O homem ao meu lado era realmente bonito demais para passar
despercebido. Por mais que seu braço estivesse ao meu redor e os olhos só
demorassem o necessário na loira que nos recebia, o jeito que seu rosto era
observado fazia meu ciúme aparecer. O filho da mãe riu ao perceber meu
descontentamento, sacudindo a cabeça antes de me puxar para mais perto.
— Eu só te enxergo, bella — ele sussurrou no meu ouvido, nós dois
entrando em um corredor. — Seria burrice minha tentar te achar em
qualquer outra.
Nickolay não sabia o efeito calmante de suas palavras.
— É mais de meia noite e dois assassinos estão andando floresta
adentro. — Escutamos a voz masculina ao pararmos na frente de uma porta
entreaberta. — O que está na frente diz: assustadora a floresta a essa hora
da noite, não acha? E o outro responde: nem me fale, eu ainda vou ter que
voltar sozinho!
Ele voltou os lábios para meu ouvido ao ver minha cara confusa.
— Porque um assassino vai ter que matar o outro. — Sacudi a cabeça,
mas não consegui deixar de dar um sorriso. — Gianlucca já teve melhores,
tenho que admitir.
Por um momento, tinha esquecido por completo de onde estava prestes
a entrar.
— Nervosa, dolcezza? — Fiz que não, o italiano ignorante a calma que
me passava.
— DeLucca nunca atrasa. — Levantei uma sobrancelha. — Meu
estoque de piadas já está acabando.
— Eu tô sendo uma má influência pra você! — Ele sorriu, beijando
minha testa.
— Mai. É a melhor que tenho.
— Eu tenho uma! O que a boceta e a máfia têm em comum? — E ali
estava. Revirei os olhos, lembrando da nossa conversa no carro.
— Ele vai falar que é muito mais divertido quando se está dentro, não
vai? — E foi o dito na resposta, Nickolay segurando o riso. — Você tá se
divertindo escutando isso!
— Estou vendo um sorriso nos seus lábios também, bella. — Ele
colocou a mão na maçaneta. — Pronta?
E eu fiz que sim.
Todos se calaram quando a porta se abriu, as cabeças se virando para
onde estávamos.
Por menores que fossem as mudanças, era perceptível demais para
mim o quanto o homem que estava comigo segundos atrás e o de agora
eram diferentes. A mão continuava na minha cintura, mas o que antes era
um carinho, agora era pura possessividade, Nickolay me marcando como
dele sem precisar falar uma palavra. O rosto não era mais suave, o sorriso
sendo substituído por uma expressão dura. Quando abriu a boca, a voz era a
mesma que me faria obedecer a tudo que me pedisse.
— Buonasera. Perdão pelo atraso. — Tinha algo de muito erótico em
exalar poder, eu pela primeira vez entendendo as atitudes de Emília para
tentar possuir o homem ao meu lado.
A mão forte que apertava minha cintura parecia em chamas, me
fazendo arder por dentro. Todos os olhos estavam nele, os meus, mal
conseguindo deixá-lo para observar o ambiente ao nosso redor. Havia muito
mais do que quatro cadeiras naquela noite, todos homens, tirando a
presença que eu sempre passaria de ter qualquer contato.
— O trânsito de São Paulo ainda vai me deixar louco — ele justificou,
muito mais por educação do que por precisar dar qualquer motivo pelos
minutos que o fiz perder.
— Pode se atrasar até o dobro se for para deixar nosso jantar mais
agradável! — veio de um senhor de cabelos grisalhos que se levantava,
todos os outros o copiando.
— Também não me incomodaria em chegar sempre mais tarde se
tivesse uma companhia tão bonita — falou o homem mais perto de nós, mas
os olhos ainda não estavam em mim.
Eu realmente poderia ser considerada seu enfeite, mas no momento,
não me importava. A autoridade que Nickolay mostrava me deixava
hipnotizada, ele se revelando o oposto do que me deixava ver em nosso dia
a dia. Saber que esse homem me permitia exercer qualquer domínio sobre
ele fazia meu coração acelerar, eu tanto querendo vê-lo se portar assim
quanto sem roupa alguma em nosso quarto.
— Senhores, Emília. — Sua mão me conduziu até a frente da mesa, e
não pude evitar um sorriso quando os olhos escuros pararam outra vez em
mim. — Essa é minha noiva, Alana Martins. — O orgulho que vi só me fez
sorrir mais.
— Adorável. — Veio do primeiro homem que me cumprimentou, o
beijo na mão me deixando completamente sem jeito.
Estava muito mais acostumada depois do quinto, e agradecia por
Emília estar bem longe. Talvez conseguisse chegar no meu lugar antes de
precisar ter alguma interação com ela.
— Don Matarazzo bem que mencionou que um casamento estava a
caminho!
Ou talvez Nickolay usasse de toda sua inteligência e nem considerasse
nos obrigar a ficar frente a frente.
— Não sabíamos que seria justo o seu, DeLucca.
Pensando bem, não faria mal algum Emília beijar minha mão.
— Dava pra desconfiar, ele anda muito mais relaxado esses dias!
Voltei a atenção para o rosto sério, e consegui ver um mínimo de
diversão ali. Então meu noivo estava gostando de me mostrar para sua
máfia? Quase revirei os olhos, Nickolay me deixando descobrir pequenas
coisas que o tornavam muito mais mundano.
— Tem donne que nos relaxam, tem donne que nos deixam pior que
malucos!
Ouvi uma risada vinda dele, muito mais séria do que estava
acostumada, enquanto sentia seus olhos outra vez vagarem pelo meu
decote.
— Minha mulher consegue os dois.
Dava para notar o quanto o italiano me queria, eu o enxergando bem
demais. Nickolay sempre me deixou ver o quanto apreciava meus esforços,
eu nunca esquecendo da nossa noite na praia. Já pensava em como poderia
me arrumar mais vezes para causar aquele efeito, e minha mente ainda
estava leve antes de parar na frente de um rosto muito mais familiar do que
esperava encontrar ali.
— Alana? — Eu conhecia aquele homem, o motivo do meu coração
acelerar passando longe do agradável.
Nickolay ainda respondia alguém quando a mão ignorou a minha que
tentava afastá-lo e tocou onde a de meu noivo antes estava.
— Não vai cumprimentar um velho amigo? — E eu paralisei, e
amaldiçoei a inabilidade de me mover estar se tornando uma constante em
minha vida.
Recordava bem do rosto coberto de pintas, e talvez ainda tivesse o
contato em meu celular. Não conseguia lembrar do nome, eu provavelmente
me referindo a pessoa como gato do clube x ou contatinho número mil, mas
ainda estava bem fresco na minha memória sua insistência para sair comigo
pela segunda vez. Ele estava bloqueado no aparelho, e naquele momento,
gostaria de poder fazer o mesmo na vida real.
Meu nervosismo durou até lembrar de quem estava ao meu lado. O
homem nunca conseguiu chegar perto o suficiente para o abraço que ele
queria dar, Nickolay se pondo no meio de nós dois.
— O que pensa que está fazendo? — A mão tatuada se fechava na
camisa, a caveira parecendo amedrontadora.
Mas não para mim, nunca para mim. E quem precisava ter medo não
tinha, provavelmente desconhecendo o quanto deveria temer o homem que
amassava sua roupa. Não conseguia ver os olhos de Nickolay, mas pelos
outros pares que observavam a cena, entendia que não era algo bom que
estava prestes a acontecer.
Era engraçado como a maioria dos homens não sabia a hora de calar a
boca. Engraçado como era tão fácil ser julgada por algo que as duas partes
aproveitaram.
— Cara, Alana é pública. — Puxei o ar, por um instante me
perguntando se ainda existia alguma coisa que poderia ser dita para mudar a
visão que Nico tinha de mim. O chão era mais interessante com meu rosto
queimando, e eu repetia que meu rímel não era a prova d’água. — Deveria
saber das noites que essa putinha passou com São Paulo inteira antes de...
Era surpreendente a mesa não ter quebrado com a força que o italiano
usou. O ódio que via nele superava o dia da piscina, os olhos refletindo toda
a raiva que Nickolay usou ao bater a cabeça do homem contra a madeira. A
mão da caveira pressionava a bochecha contra a toalha maculada de sangue,
e era possível ver um ponto vermelho sujando a testa enrugada.
— Repete. — A voz nunca soou tão letal quanto agora, e o soco dado
entortou o nariz. — Repete o que falou. — No lugar de quem parecia estar
perto de encontrar a morte, eu nunca mais abriria a boca.
Ninguém se mexia, a maioria tratando a cena que acontecia como algo
que fazia parte do normal. Era surpreendente a falta de reação, assim como
era a minha inabilidade de ter uma que pudesse suavizar o que se passava
na minha frente.
Lembrava do dito semanas atrás, e me perguntei se aquela seria a
terceira pessoa que eu veria morrer. Se a morte se tornaria mais uma
constante em minha vida.
Só notei que os dedos estavam quebrados quando escutei o grito,
Nickolay parecendo destampar a boca apenas para ouvir o som, apenas para
testar se haveria alguma coragem ou loucura o suficiente em quem ele
torturava.
— Depois da mão — a mudança de entonação era quase cômica, a
pergunta saindo como se o italiano estivesse lhe dando opções como
escolher entre chocolate e baunilha. — Quer perder a boca, ou as bolas?
Talvez queira que termine de arrancar seu nariz. — E ele ignorava por
completo a necessidade de uma resposta, fazendo os gritos pararem ao
enfiar o guardanapo de tecido dentro da boca cheia de sangue. — Eu estou
me sentindo generoso hoje, então até te deixo escolher.
Óbvio que não houve uma resposta além do medo genuíno nos olhos
do homem que me agrediu de forma tão gratuita.
— A boca, então. — E por um segundo, tive a certeza de que Nickolay
sacaria a pistola e puxaria o gatilho. Ele já segurava a arma na mão.
A voz que o parou vinha de um homem mais velho, parecido demais
com o que era pressionado contra a toalha branca.
— Senhor DeLucca, ele não quis isso!
— Ele não quis o que? — E a raiva estava de volta, Nickolay
mostrando odiar ser interrompido por alguém que não fosse eu.
— Faltar com respeito!
— Por isso que chamou minha mulher de puta? — A mão esquerda
pressionava mais o rosto contra a mesa, e dava para sentir o terror nos olhos
que apareciam entre os dedos. — Isso é um elogio aqui no Brasil e eu não
sei?
— Ele é um moleque!
A justificativa pareceu deixá-lo ainda mais irritado, a voz saindo quase
gritada.
— Idade não tem relação com respeito!
O silêncio da parte de todos os outros reinava, Nickolay parecendo
precisar respirar fundo para voltar a ter um mínimo de calma.
— Olha para a minha mulher. — Ele enfatizou a palavra minha,
virando o rosto do homem para mim antes de rosnar as próximas palavras.
— Se algum dia se atrever a olhar para minha mulher novamente, eu vou
saber. E vai desejar ter nascido cego.
No segundo seguinte o italiano se afastava, limpando as mãos em um
guardanapo de pano antes de voltar para o meu lado.
— Saiam. Sua família não é mais bem vinda aqui — ele clarificou, por
mais que não devesse precisar, e esperou os dois homens se retirarem antes
de voltar a falar. — Mais alguém gostaria de dizer algo sobre minha mulher
antes de começarmos?
Os olhos escuros ainda não tinham parado em mim, e por um
momento, temi tê-lo envergonhado demais. Sim, eu tinha passado por
algumas boas camas nos meses antes de Nickolay, mas pelas palavras de
Lorenzo e pela ficha que havia achado, imaginava que ele ao menos
considerasse aquilo.
Eu sabia que imaginar era bem diferente de ter confirmado em voz alta
o fato de sua mulher ter vivido com a cama quente, justo na frente da máfia
que, ainda no carro, confirmei não aceitar bem comportamentos que fugiam
do tradicional.
Talvez estivesse imaginando demais, me tranquilizava.
— Eu teria atirado nas bolas. — O comentário veio com uma risada.
Ou talvez Nickolay fosse tão temido que pudesse fazer o que bem
quisesse, livre de julgamentos.
— Pelo menos! — E o clima de antes do acidente voltou como se nada
tivesse acontecido.
— E Lorenzo nunca mais pararia com o discurso sobre como as coisas
são feitas no Brasil. — A voz de Nickolay voltou a normal que usava com
seus homens, mas os olhos que acharam os meus me deixaram ver a
suavidade de sempre.
Nunca foi tão bom respirar aliviada. Ele não estava decepcionado, ou
bravo, ou qualquer coisa além de preocupado. E descobrir aquilo me fazia
querer fazer tudo que não podia, ou ao menos sabia não ser próprio para
onde estávamos.
Então me contentei em tomar o guardanapo das suas mãos e limpar o
ponto sujo de sangue que Nickolay havia esquecido de esfregar. Não me
importei com o silêncio que se fez, os olhos dele sendo a única coisa que
meu cérebro conseguia processar enquanto eu limpava sua testa.
Era orgulho que eu via ali? Orgulho, depois de alguém ter anunciado
para todos na sala que eu era uma vadia? Realizar que sim me deixava perto
demais das lágrimas.
— Grazie, bella. — Era ele quem agora beijava minhas mãos, como se
eu o ter limpado fosse algo de outro mundo. Demorou um segundo, mas o
sentimento que vi no seu rosto era suficiente para fazer qualquer aflição ir
embora. — Desculpe a bagunça, Gian — Nico disse, puxando uma cadeira
para mim.
A vida acontecia ao meu redor, mas meus olhos não conseguiam sair
do italiano. Nickolay ocupava o lugar ao meu lado enquanto dois atendentes
substituíam a toalha e recolhiam os talheres caídos e louças quebradas, e a
única coisa que conseguia ver era ele.
— Emília, a competição aqui é pesada! — escutei, ainda hipnotizada
por quem eu me atrevia a chamar de meu, os olhos escuros indo em direção
a voz.
— Sua mulher é como uma italiana de verdade, DeLucca! — O sorriso
que ele se deixou dar era muito próximo dos que só eu via. — Nem piscou!
Ainda tinha orgulho demais em seus olhos quando eles voltaram para
mim, a mão grande achando a minha por baixo da toalha limpa.
— Ela é.
A única coisa que consegui enxergar durante todo o jantar foi
Nickolay.
Quando abri os olhos outra vez, o sol já entrava pela janela do quarto.
Alana estava sentada ao meu lado, o celular nas mãos. O relógio mostrando
onze e meia me dizia que ela tinha ignorado o dia de aula, eu querendo dar
uma bronca e me enrolar para sempre nela.
— Está com fome? — A mulher mal me deu tempo de responder antes
de emendar. — Você precisa comer alguma coisa, italiano. Não me venha
com desculpinhas, ouviu?
Tão, tão mandona.
— Claro, o que a senhora mandar. — O deboche fez os olhos mel
estreitarem, antes da dona sair da cama.
Ela pareceu feliz demais ao descer para pegar seja lá o que fosse me
obrigar a comer, eu só tendo força o suficiente para chegar até o banheiro.
Lavando o rosto, tentei tirar com pasta de dente o gosto de gripe na boca,
assim como percebi que as memórias do sonho tinham se esvaído por
completo.
Odiava sonhar com o dia que arruinou minha vida, na cabeça, apenas a
lembrança do barulho do mar indicando que a noite havia sido ruim. O
pesadelo parecia sempre vir me atormentar antes da vida me tirar mais, eu o
considerando um mau agouro que não conseguia eliminar.
Sacudi a cabeça, não querendo pensar no que poderia dar errado além
da gripe pega justo no dia em que teria uma janta com Dimitri. Lorenzo
teria que fazer a reunião sozinho, eu duvidando que manteria muita
distância da cama naquela sexta.
Respirei fundo — pela boca — e tentei ignorar a dor que ainda tomava
conta do corpo. As olheiras me davam a aparência de fraco, e era ridículo
como o frio me obrigava a vestir um roupão, apesar da casa aquecida.
Mas mesmo acabado, sorri ao voltar para o quarto, sobre a cama uma
bandeja com a combinação de comidas mais aleatória que já havia visto.
Alana me esperava ao lado de tudo aquilo, um pão de queijo já em sua mão,
parecendo orgulhosa do almoço preparado.
Ela me olhando apreensiva antes de eu colocar a primeira colher de
sopa na boca era engraçado. Eu não fazia ideia do que era aquilo, e
agradecia não conseguir sentir o gosto de quase nada quando coloquei o
líquido contra a língua.
— Está gostoso? — Poderia contar apenas aquela mentira para ela, e
fiz que sim com a cabeça. — Eu que fiz! É borsht!
Era um gesto tão pequeno, mas sem dúvida a coisa mais doce que
ganhei desde a morte da minha mãe. Aquele era o pior borsht que já comi
na vida, e ao mesmo tempo, a melhor sopa de beterraba que já haviam me
preparado.
Quando voltei a olhá-la, Alana me observava mais desconfiada do que
deveria, provando a sopa pela talvez primeira vez. Sacudi a cabeça quando
a vi fazer uma careta, as mãos pequenas levando a tigela para longe de
mim, ela me entregando o sanduíche que deveria ser de atum.
— Ai meu Deus, para de comer! — Ri, pensando que adoraria ensiná-
la as receitas que sabia. — Por que você deu mais de uma colherada nisso?
— Porque eu te amo, dolcezza. — Saiu muito mais natural do que eu
esperava, e decidi que poderia passar o dia repetindo meus sentimentos se
apenas ouvi-los tivesse o poder de fazê-la sorrir daquele jeito.
Ela era tão boa em me enganar com a normalidade que me fazia sentir.
Ela me fazia sentir tanto. Engoli o que tinha na boca, o sanduíche tendo
mais gosto do que esperava, e me deixei apreciar a cena ao meu redor por
um minuto.
— Casa comigo, Alana. — Aquela mulher sempre conseguia arrancar
tudo que deveria ficar guardado em mim. — Finge que sou um homem
normal te pedindo, que nós podemos ter uma vida normal. Que eu vou
guardar papéis, e não armas. Finge, só por agora, só por um minuto, e me
responde se...
Seus braços estavam ao meu redor, sua boca na minha, antes que
pudesse terminar a frase. Sempre derretia contra seus carinhos, Alana me
fazendo redescobrir como era bom poder ter um dia de fraqueza. Não a
queria doente, mas ao mesmo tempo sabia que nunca a afastaria. O poder de
fazer tal havia desaparecido fazia tempo.
— Eu caso, italiano. — As mãos no meu rosto prendiam meus olhos
nos dela, eu tocando o único anel que havia ali ao cobri-las com minhas
tatuadas. — Falei que te aceito, não falei? Eu me caso com todas as suas
faces, Nickolay. E eu digo sim porque quero dizer, não importa o que você
estiver guardando.
Eu nunca entendia como Alana acabava no meu colo, os lábios dela
sempre tirando a capacidade de me concentrar em algo que não fosse seu
gosto. A tarde passava comigo cochilando em seus braços, ela vendo um
filme qualquer no laptop enquanto passava os dedos pelos meus cabelos.
Sim, poderia me acostumar com uma vida assim, e me lembrei das
palavras de Matarazzo na quinta onde tudo começou a dar errado. Eu queria
aquilo, mas duvidava que fosse ganhar minha liberdade enquanto vivo. Já
estava fundo demais no buraco dele para sair ao me casar com sua filha, eu
agora mal vendo o céu quando longe de Alana.
— Nico? — ela chamou minha atenção, os créditos subindo, eu tendo
visto poucas partes da comédia que me deixou ouvir sua risada durante
última hora.
— Si, bella? — Odiava como minha voz soava fraca.
— Eu nunca perguntei direito o que você faz aqui no Brasil. — A
curiosidade fez eu me sentar, Alana se mostrando aberta a falar sobre meu
trabalho pela primeira vez desde nossa nova paz. Ela considerou por alguns
segundos antes de continuar. — Você pode me falar isso?
— Por mais que não queira, posso te falar tudo que quiser saber,
dolcezza. Basta perguntar. — Estudei seus olhos por um momento. — Quer
mesmo saber? — Ela sinalizar que sim com a cabeça me fez continuar. —
Vim achar a filha de Matarazzo. Esse é meu principal trabalho aqui.
— Ele tem outra filha?
— Si. É meia-irmã de Giovanna. — E o nome da minha amiga pela
primeira vez saiu muito menos amargo dos meus lábios. — A menina é
alguns anos mais nova. É a filha dele com sua última esposa, Catarina.
Catarina foi assassinada, mas não acharam a criança junto dela. Ninguém
sabe o que aconteceu.
Ela pareceu considerar antes de soltar a próxima pergunta.
— Isso tem relação com o tiro que você tomou no ombro? — A
pergunta veio natural, assim como minha resposta.
— Tem e não tem. O tiro veio de uma Famiglia espanhola, se é isso
que quer saber — expliquei, o desconforto rápido que vi não passando
despercebido, a mão dela que ainda curava procurando o machucado que já
era uma cicatriz. — Mas a morte de Catarina, tudo indica que não. A
mulher era para ter se casado com um dos capos da família dos Barbosa.
Ela não quis.
— Porque os casamentos funcionam diferente nas famílias, certo?
— O homem era violento — revelei o que sabia, a testa de Alana
franzindo. — Muitos casamentos por contrato têm essa característica, ou
pelo menos tinham, naquela época. O dela era um, e Catarina fugiu para a
Itália. Matarazzo se apaixonou pela mulher, e resolveu assumir a briga. Eles
se casaram, e em poucos meses tinha um bebê na história. Os espanhóis
descobriram, mas não pareceram se importar.
— Até o dia que mataram a mulher? — Ela logo se corrigiu. — Mas
você disse que não foram eles, certo?
— Eles não mataram Catarina, não. Mas mataram Giovanna e Nicolas.
— O carinho era tão suave, mas me confortava de um jeito que jamais
imaginaria poder acontecer. Alana e seu poder sobre meus sentimentos. —
A menina tem pouco mais que a sua idade. Eu tinha acabado de fazer seis
anos quando aconteceu, foi um pouco antes de mamãe. Mas na época que o
bebê sumiu, Vincenzo tinha certeza de que a máfia espanhola era culpada.
A rivalidade é sempre perigosa. — Apoiei o rosto contra a mão que
acariciava, a puxando para mim. — É o que matou toda a minha família.
O que escutei conseguiu fazer o resto do frio que sentia desaparecer.
— Eu não estou morta, Nico.
Alana estava no banho quando Lorenzo apareceu.
— Veio ver se eu já morri? — Estava doente, e muito mais bem-
humorado que o normal.
— Quanto drama, moleque. — O mais velho devolvia minha risada,
apoiando-se na cômoda ao lado da porta. — Vejo que a ragazza te mima
mais do que eu. — Ele apontou para os doces que haviam sobrado na mesa
de cabeceira.
— Fale logo o que quer e me deixe dormir, Mantovanni.
— Dormir, claro. — E o deboche continuava, eu não tendo qualquer
respeito dele quando doente. Os olhos claros perderem a diversão me fez
antecipar que eu preferia o deboche. — Sonhou com a praia outra vez,
Nico? — Tinha preocupação ali, ele me deixando ver o sentimento bem
demais.
— Como sabe?
— Está doente. Sempre sonha com o cazzo desse dia quando está mal,
Nickolay. — O homem respondeu, mais uma vez mostrando o quanto eu
deveria aceitá-lo como pai, ao invés de viver buscando a aprovação
estúpida de um morto.
Sacudi a cabeça. Não, aquilo estava errado: eu não buscava por mais
nenhuma aprovação. Não depois de ter a dela.
— E sempre acordo com apenas o barulho do mar. É ele quem te
manda perguntar essas coisas? — Eu era injusto, Lorenzo jogando certeiro
na minha cabeça a bola de meia que havia sobre a cômoda.
— Matarazzo nem sabe que você estava presente na tarde que
perdemos Katerina, moleque! — Ele soava verdadeiramente irritado, indo
para a frente da cama. — A febre queimou os últimos neurônios que
restaram aí dentro? — E eu queria jogar a meia de volta, mas a tosse que
veio me impediu de qualquer outra ação. — Falou dessa tarde para ele,
Nickolay?
— Como se o Don fosse ter interesse pela tarde que perdi minha mãe.
— E tossi mais, porque era uma das únicas coisas que conseguia fazer
naquele dia.
A porta do banheiro abriu, a mulher muito menor que nós dois nos
encarando desconfiada.
— Se veio tentar arrastar meu noivo pra qualquer jantarzinho de
negócios, vai ter que passar por cima de mim. — Alana cruzou os braços, a
firmeza que havia em seu rosto fazendo nós dois acreditar que passar por
ela seria uma tarefa longe de fácil.
Lorenzo testava demais a sorte ao rir dela, e a meia que eu quis jogar
foi arremessada pelas mãos pequenas, a pontaria dela muito melhor do que
em nosso começo.
Já estava quase dormindo quando Alana voltou a tocar no assunto de
mais cedo.
— Será que ela quer ser achada? A mulher que vocês procuram. — Ela
deixava minhas mãos geladas esquentarem na sua pele quente.
— Eu não sei. Não gostaria de ser, no lugar dela. — Fui sincero. —
Gostaria de uma vida cercada de seguranças? — perguntei, apenas depois
das palavras saírem realizando que essa vida já era dela.
Mas Alana me deixou ver que não se importava com o fato, apertando
mais os braços ao meu redor.
— Desde que um deles seja você.
— Mama, não!
— Segure forte, ok? Não deixa ela cair.
Mãe.
— Eu te amo, meu menino.
Ela parecia tão conformada com a morte.
— Não olha mais pra mim, olha pra ela. Olha pra Stella, Kolya.
Eu estava junto de Catarina. Mamãe estava junto.
— Brilha brilha, estrelinha.
Elas eram melhores amigas. A Santa Catarina. Minha mãe a chamava
de irmã de alma, e ela estava morta no chão de areia.
E eu olhava para Stella e não conseguia cantar. Eu não conseguia
falar, não conseguia parar de chorar. E os olhos grandes tinham tantas
lágrimas quanto os meus.
Papai sempre dizia que filho dele não chorava, e eu iria fazer as
lágrimas pararem. O barulho do tiro foi mais alto que o das ondas contra
as rochas, mais alto do que o choro agudo do bebê embaixo de mim.
Stella estava tão vermelha, e então azul, e eu não iria mais chorar.
— Está tudo bem. — E eu a embrulhei com o meu casaco, por mais
que ficasse com frio. — Não precisa ter medo, dolcezza. Eu te seguro.
Chorar não iria trazer nada de volta. Stella compartilhava da mesma
opinião.
— Nico? — A voz que me chamava era mais conhecida do que eu
gostaria de admitir. — Nickolay, solta! — Mãos tatuadas puxavam meus
braços com força suficiente para machucar. — Meu Deus. Mantovanni, vem
logo!
Mas eu não podia soltar Stella. Mamãe disse para não soltar.
— O que o moleque fez?
Por que queriam tirá-la de mim? Ela finalmente tinha parado, e eu
segurei mais forte quando tentaram abrir meus braços.
— Ah, Nickolay…
Quando abri os olhos, os de papai me encaravam, vermelhos e
assustados. Não tinha mais a quentura que eu sempre ganhava quando
estava mal.
— Victor está em casa?
Foi então que eu olhei para baixo, e finalmente entendi.
— Bata na cabeça, e torça para o moleque não lembrar disso.
Conseguimos dar um jeito no resto, Armando.
Até minutos atrás, Stella não parava de chorar, por mais que eu a
segurasse como mamãe havia mandado.
— Nico? Filho, olhe para frente.
E agora, eu só ouvia o barulho do mar.
Acordava com seus beijos e dormia com seus carinhos. Por mais que
um carro seguindo o meu tivesse se tornado uma constante na minha vida
— nas poucas vezes que agora dirigia sozinha — eu não me importava com
a segurança adicional que Nickolay fazia questão de me dar. O jeito que nos
entendíamos depois da noite do jantar beirava a perfeição.
Tudo que era perfeito sempre fazia uma voz dentro de mim gritar erro.
Sabia que havia algo de errado assim que coloquei meus olhos nele naquela
manhã, Nico ainda com uma aparência mais cansada do que havia me
acostumado a ver. Vê-lo tão fraco era um pouco assustador, ser a pessoa que
ele escolhia para ser vulnerável ao lado, quase absurdo.
Mas eu podia protegê-lo o suficiente de Lorenzo, em quem me atrevi a
jogar uma meia na noite passada. Queria salvá-lo dos pesadelos que notei
que ele também tinha, Nickolay já de olhos fechados sussurrando palavras
que eu não entendia, mas eram quebradas demais para virem de qualquer
coisa boa.
No primeiro minuto, me enganei ser isso. Ele estava acabado, e eu
conseguiria melhorar tudo com a péssima comida que o italiano tinha
gostado por milagre. Mas não existiam muitos milagres na minha vida, o
que me fazia reconsiderar o comportamento que via.
Era engraçado como, depois de um tempo juntos, aprendíamos a
identificar as pequenas coisas. Nickolay nunca deixava os olhos no teto
quando na cama comigo, assim como as mãos sempre estavam em mim, e
não descansando atrás da sua cabeça.
Estava se sentindo mal? Ainda tinha febre? As olheiras que ele
carregava faziam meu coração apertar.
— O que foi? — Ele nem mesmo tinha percebido que meus olhos
estavam abertos até eu abrir a boca, o pensamento longe demais.
Aquilo não podia ser bom.
— Só estou cansado, dolcezza.
Foram poucas as vezes que ele me deixou vê-lo fisicamente exausto, e
era quase engraçado o quanto Nickolay mostrava precisar de mim quando
assim. As mãos sempre me tocavam, ele manhoso me pedindo carinho com
seu corpo. Em menos de seis meses, eu sabia bem quando o italiano estava
cansado.
Aquilo não era apenas cansaço.
Levantei a cabeça do seu peito, deixando minha mão achar sua testa e
confirmar que a febre realmente havia baixado antes de afirmar.
— Você tá nervoso. — E os olhos, finalmente nos meus, me contaram
tudo.
Não era bom estar certa. Não era bom Nickolay me confirmando que
eu estava certa.
— Não fale isso perto de ninguém. — E um bloco de gelo pareceu se
materializar no meu estômago.
— Você tá? — A vez que o vi mais próximo de perder o controle havia
sido no dia em que eu quase perdi o meu, apenas de toalha no meio de um
corredor. — Nico, por quê?
Ainda não chegava perto do que eu via agora. As mãos dele eram
estáveis demais para tremerem tanto, e ter toda a minha estabilidade
chacoalhando provocava as piores sensações. O que poderia ter acontecido
de tão ruim enquanto eu dormia? Eu tinha fechado os olhos por menos de
seis horas!
— Está tudo bem, dolcezza. — Não estava, e ele se deixou ler muito
bem, a expressão não condizente com as palavras na voz calma. A testa
franzida, o olhar perdido, as mãos inquietas. Ele nunca estralava os dedos,
nunca rodava os tantos anéis que usava. — Mas vamos ter que partir. —
Nickolay até parecia doente, mas eu que parecia estar delirando ao escutar a
próxima frase. — Arrume tudo, se despeça de sua mãe...
— O que?
— Faça uma mala, só com o que precisar.
— Nico, o que tá acontecendo?
— Vamos ter novos passaportes, outro nome. — O italiano vomitava
as informações em cima de mim, tocando meu braço num carinho, pedindo
desculpas por algo que eu ainda não sabia. — Então não se dê o trabalho de
procurar o seu, nós...
E não saber o que deixava justo aquele homem com medo era
desesperador.
— Nickolay! — Minha voz era desesperada, mas o medo fazia o som
sair num sussurro. O segurei pelos braços, tentando fazê-lo parar de falar
para conseguir alguma coerência em suas ordens.
Ele retribuiu o gesto.
— Eu preciso que não discuta, Alana! — Não tinha como não revirar
os olhos.
— E eu preciso saber que merda que tá acontecendo!
Aquilo calá-lo ao invés de ativar seu mau temperamento fazia meu
estômago revirar. A voz saindo mais baixa que a minha demonstrava o que
eu temia: o homem mais intimidador que eu conhecia estava apavorado.
Não conseguia nem imaginar o que deveria ter tirado o sono dele justo
ontem, o italiano praticamente apagando de exaustão.
— Stella está morta. — A mão que tirava uma mecha de cabelos dos
meus olhos tremia tanto. As próximas frases só foram possíveis de ouvir
por ele estar sussurrando-as no meu ouvido, como se Nico estivesse com
medo de que alguém pudesse ouvi-las. — Ela está morta, e a culpa é minha.
E isso vai chegar em Matarazzo, vai chegar muito mais cedo do que pensa.
E...
— Como? — Stella? A mulher que procuravam?
— E eu não sei como ele vai reagir, o que ele vai fazer! — Mas ela
estava viva até ontem, e Nickolay nem mesmo tinha deixado meu lado para
poder ter feito alguma coisa! E as minhas mãos não podiam começar a
tremer também, repetia em pensamento outra e outra vez. — Eu não sei,
mas ele vai me matar, ele vai te matar! Alana...
— Não vai! — O sacudi mais, meus dedos cravando em sua pele, suas
emoções me afetando demais. O que tinha acontecido para ele ter essa
certeza? — Nós vamos dar um jeito Nickolay, nós vamos!
— Dolcezza, não entende...
— Ele não sabe, Nickolay! — falei as palavras séria, pela primeira vez
em muito tempo temendo verdadeiramente pela minha vida. — Seu chefe
não sabe de nada e não vai saber, porque você não vai contar! Não vai
contar!
Eu nem imaginava o que poderia ter lhe dado aquela certeza, mas vê-lo
daquele jeito me fazia entender que o melhor era não perguntar. Os olhos
escuros se fecharam quando minha mão achou seu rosto, o italiano se
apoiando na minha palma enquanto respirava fundo.
Era engraçado como justo eu tentava e conseguia passar paz para
aquele homem. Como justo eu, que sempre estive tão distante da calma, era
capaz de tranquilizar o coração em frente ao meu. Por mais que, bem lá no
fundo, me desesperasse ouvir dos meus lábios a próxima frase.
— Nós vamos fugir, Nico. Eu disse que fugiríamos juntos, não disse?
— Como ele, puxei uma respiração funda, envolvendo seu rosto
preocupado com as mãos, tomando seu lugar de tranquilizador e o puxando
para mim. — Disse que fugiria contigo, italiano.
Tinha um sorriso nos lábios grossos, mas passava longe de ser o que eu
gostava.
— Contigo? — ele notou, tentando deixar a situação mais leve.
— É a convivência. — Não tinha como deixar aquilo mais leve. —
Vamos fugir. Vamos fugir, Nickolay.
Só nos deixei sair do quarto depois das onze, sábado sendo a melhor
desculpa para nos mantermos trancados até um mínimo de calma voltar
para ele. Nickolay não quis falar e eu não quis fazer perguntas, nós dois
usando nossa válvula de escape para manter a sanidade naquela manhã.
Por mais que ele me aguentasse contra a parede do box, dava para ver
seu cansaço, seu nervosismo se misturando com o meu na mesa, por mais
que tentássemos parecer normais. Nico trocava olhares com Lorenzo
enquanto nos servia de café, os dois brincando de máfia ao invés de
conversarem sobre o que seria realmente feito no dia. Com certeza já estava
tudo acordado, e com certeza eu não perguntaria nada antes de estarmos
bem distantes dali.
Imaginava que Mantovanni tinha ao menos ideia do que estava prestes
a acontecer, mas qualquer palavra sobre isso só foi dita quando estávamos
literalmente fora da casa. Nico encostava-se na porta do carro, eu em seus
braços, e parecia uma manhã normal, não estivesse ele me contando sobre
seu plano ao invés de sussurrar o que faria comigo quando voltássemos para
o quarto.
Se tudo desse certo, nunca mais voltaríamos para aquela cama, e eu
rezava para meu coração continuar funcionando até o fim do dia.
— Precisa estar de volta antes das quatro para isso funcionar — ele
escondia o nervosismo ao deixar as mãos geladas entrarem debaixo da
minha camiseta. — A mala já está no carro, e assim que sair, busco nossos
novos passaportes. Vamos direto para a Cidade do Cabo.
— Nós vamos pra África? — Mas ele não me deixou interromper.
— E depois Tailândia.
— Mas...
— Precisamos sumir, dolcezza. — O italiano explicou, como se
sabendo o que se passava na minha cabeça. — Precisamos ir para algum
lugar que ninguém nos reconheça. Um lugar onde dê para desaparecer.
— Tailândia. — Era tão, tão longe. — É perfeito, Nico.
Os lábios acharam mais uma vez os meus, antes dos meus olhos
acharem os de Lorenzo. O homem mais velho dava a partida em seu carro,
e eu tive certeza de que ele era sim um dos responsáveis por nos ajudar a
virar fantasmas.
Mas havia algo além disso. Talvez fosse paranoia da minha cabeça,
assim como poderia ser a convivência com Nickolay me fazendo reparar
ainda mais nas coisas. A forma que os azuis pararam em mim me fazia
desconfiar que havia algo escondido, uma curiosidade que antes não existia
agora presente demais no rosto de Mantovanni.
— Volte logo, Alana. — Nickolay fechou a porta do carro, e eu virei a
chave assim que me senti pronta para dirigir pela provavelmente última vez
até o endereço tão familiar.
Família. Ele seria toda minha família agora, e eu não podia pensar
nisso.
Imaginava que o melhor a se fazer seria não levar nada que pudesse
comprometer alguma das pessoas que amava. Fotos estavam fora de
questão, eu já sabendo que precisaria me livrar do celular assim que saísse
da casa dos meus pais. Ainda no carro, quase chegando no portão da
residência que foi meu lar por tantos anos, fazia o doloroso exercício mental
de lembrar dos detalhes de todos que deixavam meu coração quente.
O jeito que meu pai sorria. Como os olhos da minha mãe brilhavam
quando a mulher gargalhava. A risada de Leandro, Isabella e seus
cachinhos, Rogério e Lucas e todas as irritantes semelhanças que sempre
quis para mim.
Nunca conseguiria falar uma última vez com Carlinhos, ou dar mais
um abraço em Mila. E talvez aquilo fosse bom, porque estava sendo
devastador abraçar a dona Astrid, sabendo que nossos carinhos estavam
contados.
— Oi, mãe. — Era tão difícil sorrir naquele sábado.
— Oi, meu amor.
Era difícil, mas ainda assim, o fiz ao entrar. Eu nos daria uma hora
antes de voltar para Nickolay, e uma hora era pouco demais para absorver
tudo que precisava guardar. Era uma da tarde e meu pai estava almoçando
com o grupo de amigos da antiga faculdade, ninguém na casa além da
mulher que me olhava triste.
Triste, como se ela soubesse, e eu desejei um espelho para ver o quão
óbvia estava sendo. Tinha vindo me despedir, por mais que não pudesse
realmente fazê-lo, por mais que devesse tratar aquele como um sábado
normal.
— Você vai embora — escutei assim que me sentei em um dos bancos
que havia na cozinha, a xícara de café aquecendo minhas mãos. — Não vai?
Como eu poderia contestar aquilo?
— Eu…
Melhor, adiantaria negar?
— Como você sabe disso, mãe?
Porque as mães sempre sabiam, eu pensei. Porque a minha era um
detector de mentiras ambulantes, e com certeza tinha conhecimento de
muito mais coisas que eu achava que escondia bem. Nico era tão parecido
com ela, e teria rido ao pensar que estava para me casar com uma versão de
quem me criou, caso houvesse algum humor no dia de hoje.
O cheiro de café e bolo de fubá, eu queria me lembrar disso, e dos seus
olhos cheios de carinho.
Era engraçado como nada do planejado por mim andava funcionando.
— Nickolay veio atrás de você, não veio? — ela perguntou, os olhos
cheios de lágrimas. — Ele veio te buscar, eu sei. Eu sempre soube que
alguém viria.
O que?
ㅤ
Eu havia pedido apenas uma coisa. Sabia que Alana ainda me deixaria
louco, assim como tinha certeza de que não devia tê-la deixado ir.
O plano era simples, e ao mesmo tempo, tão fácil de falhar. Tão
irritantemente improvisado, e eu não improvisava nada antes dela. Lorenzo
nos encontraria com os novos passaportes, o carro que explodiria no meio
da estrada estando pronto para queimar. Já comprara as passagens, o
dinheiro pronto para ser atrelado aos novos nomes que teríamos, e torcia
para quem agora era oficialmente minha mulher não surtar em nenhum dos
passos. Estaríamos tão vivos quanto Catarina para Matarazzo, e ele poderia
continuar com essa guerra estúpida sozinho.
Mas ela não poderia se atrasar, assim como quem eu via pela janela
passar pela porta não era para estar no Brasil. O velho não era para entrar na
mansão antes de partirmos, seguranças demais atrás dele.
São Paulo não deveria ter tanto trânsito.
Alana deveria atender a merda do telefone.
Eu não deveria estar me sentindo tão mal, tão irritantemente fraco,
justo hoje.
Cazzo.
Conseguia mentir tão bem para aquele homem quanto conseguia me
manter distante da minha mulher. Ainda no quarto, pensava em como faria
para sair dali sem perguntas. Ele não sabia de nada, lutava com meus
pensamentos repetidas vezes. Matarazzo não tinha como saber de coisa
alguma, eu não tinha falado a totalidade do que sabia para ninguém que não
fosse Lorenzo.
E Lorenzo era tão culpado quanto eu.
Disquei o número de Alana pela terceira vez. Ela não atendeu.
Cazzo, Alana. Te pedi uma coisa. Por que essa garota insistia em me
deixar tão próximo da loucura?
Olhei para a porta quando essa foi aberta sem qualquer batida, por um
segundo esperando ver a única pessoa que tinha permissão para fazer isso.
Não era minha mulher.
— Matteo? — O homem me olhava arrependido, a próxima pergunta
saindo por puro instinto. — O que está acontecendo?
Queria rir, mas a esperança que ainda havia em mim de sair vivo da
situação foi mais forte. Eu sabia o que estava acontecendo assim que não
achei Alana, assim como entendia ter uma só alternativa para explicar o que
estava prestes a começar.
Nunca foi confortável ser um pessimista depois que a abracei na minha
vida. Me forcei a manter os olhos na entrada, por mais derrotado que
estivesse. Meu cérebro cansado não achava nenhuma saída para o que
aconteceria, e só agora entendia o quão errado era ter meu segurança
naquele quarto.
Dez anos mais velho do que eu, me lembrava de Matteo desde garoto,
ele sendo o homem de maior confiança de Mantovanni. O homem que
passou a ser minha sombra desde que Lorenzo nos mudou para o Brasil
também foi dono da minha confiança, e eu era um tolo por tê-la dado a
alguém que não Alana. Era um idiota por tê-la confiado a ele, minha mulher
estando sozinha no dia que necessitava de alguém a acompanhando.
Era a segunda vez que isso acontecia, e meu cérebro entendendo o que
ocorria testava demais meu controle. Poderiam me matar, eu não me
importava. Poderiam acabar com a minha vida, desde que mantivessem a
dela segura.
— Senta, figlio. — Mas eu sabia que não era esse o plano. Eu sabia
que ela não estava segura, e me senti ainda mais iniciante ao juntar todos os
pedaços.
O chefe da Famiglia entrava no cômodo atrás de Matteo e um homem
tão grande quanto ele, o último me empurrando uma cadeira, quem eu
achava ser leal confirmando que eu não portava nenhuma arma de fogo.
Havia muito mais homens do lado de fora do quarto, e a bola na minha
garganta nunca esteve tão grande, as palavras quase não saindo.
— Por quê? — Doía largar o corpo na cadeira de madeira.
Respirei fundo, pensando que era a segunda vez em pouco tempo que
Vincenzo me encurralava sem eu estar com minha arma. Era difícil demais
reagir sem poder depender de uma hoje, e tentava imaginar um cenário
onde eu não me fodesse ao tentar. Conseguiria quebrar a cadeira,
conseguiria agarrar um dos homens como escudo?
Eu o mataria, se isso fosse necessário para salvar Alana. Eu tiraria
forças do inferno para acabar com todas as vidas ao meu redor, assim como
eliminaria cada um dos homens que me esperava atrás da porta.
Ou ao menos, morreria tentando. Morreria, se isso a fizesse continuar
viva, e era desesperador como aquela era minha escolha mais plausível.
— A ragazza não precisa de guarda costas todos os dias. — Porque era
óbvio que o homem que me encarava estava atrás de sangue, e eu esperava
ter o suficiente para saciá-lo. — Mas acho que tu, si. Ao menos hoje,
poderia utilizar toda a ajuda possível para continuar vivo.
Sentado na cadeira, tendo o corpo ainda fraco pela doença, meus olhos
nunca saíram dos castanho-claros de Matarazzo. Me perguntei se ele estava
blefando. Se aquela não era a pior das coincidências. Uma última tentativa
de me fazer largar meus planos com a mulher que passava longe de uma
esposa da máfia.
Porque não tinha como ele saber da noite passada. Não tinha como, a
não ser que tivesse plantado uma escuta no quarto de Lorenzo. Mas eu não
estaria mais vivo se ele tivesse conhecimento sobre nossa conversa, assim
como Mantovanni estaria numa cadeira ao meu lado — ou num caixão.
Fazia algumas horas desde que o homem mandara qualquer sinal.
Bastou constatar aquilo para meu coração disparar, eu forçando minhas
mãos, que lutavam para ficar inquietas, a agarrarem as bordas de madeira.
O áudio que encheu o cômodo não era de ontem, mas de hoje de
manhã. Minha voz ecoando pelo quarto soava desesperada, só agora
notando o quão mais calma Alana me respondia na gravação. Não tinha
como não mostrar o medo que senti, o sentimento tomando conta de mim.
Onde estava minha mulher?
— No fim das contas, aceitar tua insubordinação quanto a Emília foi a
melhor decisão que tomei.
Queria cortar com uma navalha o sorriso que via nos lábios finos. O
gesto mostrava dentes amarelados, e pensava que era a primeira vez que
considerava matar uma mulher, a que Matarazzo se referia conseguindo
tirar um pedaço de mim pela segunda vez na vida.
— Foi ela quem me sugeriu manter vigia em ti e Alana, ela quem disse
para plantar o microfone no teu quarto. — Sim, tinha certeza de que a
mataria, caso apenas eu saísse dali com vida. Talvez devesse, mesmo
salvando Alana, eu já tendo fechado os olhos para deslizes demais por parte
da italiana. — Uma mulher ferida é teu pior inimigo, Nickolay. E sabe o
quanto feriu Emília no passado. Ou o quanto cavoucou a ferida, a trocando
por uma puttana.
Agarrei as bordas com mais força, meu sangue fervendo ao ouvi-lo
insistir na maldita palavra.
— Eu vou te dar uma chance. — A calma com a qual as palavras eram
pronunciadas provocava o mais desconfortável dos arrepios. — Fale o que
sabe, e talvez eu poupe a ragazza quando ela chegar.
Os olhos permaneciam em mim, e eu morreria tentando tirar quem
amava de minha bagunça.
— Alana não sabe de nada. — Como intimidaria alguém com a voz
soando tão fraca? — A deixe de fora de seja lá o que for isso!
Eu não esperava o soco, a tosse me fazendo cuspir o sangue que se
acumulou na boca. Matteo desviou quando o olhei ao levantar a cabeça,
mostrando o quanto estava sozinho ali.
— Resposta errada. — Se tivesse a chance, iria arrancar unha por unha
de quem não tinha mais um pingo do meu respeito. — Como Stella estar
morta é culpa tua, figlio? Como sabe que ela está morta?
E novamente, nossas vozes enchiam o quarto, a manhã com minha
mulher mais fresca em minha memória do que gostaria. Deveria ter ficado
quieto. Deveria tê-la acordado e saído, a feito colar em mim, não a ter
deixado se despedir. Sentia que já lhe tirava tanto, e que ao menos aquela
bondade conseguiria fazer.
E agora, a bondade poderia custar a vida dela, também. Já estava
desistindo da minha.
— Tua voz, correto? — O mais velho perguntou, se aproximando de
mim, um único pensamento dominando minha mente.
Eu poderia matá-lo. Eu poderia matá-lo, e virar o primeiro no
comando.
— Tua voz, e a voz de Alana.
Não havia ninguém além de mim para assumir aquele cazzo. Não
haveria motivo para os homens presentes não me obedecer. Ou para, ao
menos Matteo, não me ajudar a eliminar o resto. Eu só precisava derrubar
todos da mansão, e talvez, tivesse forças para tal.
— Don Matarazzo, eu...
O segundo soco veio acompanhado de uma coronhada, o couro
cabeludo rasgando me fazendo entender as chances mínimas que tinha de
revidar. O sangue que escorria por cima do meu olho direito me fazia
enxergar tons de vermelho que deixavam Vincenzo com uma aparência
ainda mais repugnante, o gosto metálico na boca me fazendo amaldiçoar
pela talvez última vez minha sorte.
— Te dei uma chance de falar, e escolheu desperdiçá-la testando
minha paciência. Sabe mais do que ninguém que ela é curta quando mexem
com o que é meu.
Olhei para baixo, meu coração quase explodindo.
— Sabe a dor que é perder a mulher que ama? — Ele ia explodir. —
Claro que não sabe. Não amava Giovanna dessa maneira, e todos sabiam.
A vida não podia ser tão injusta. A minha sorte não podia ser tão
inexistente.
— Alana está chegando, não está? Pelo nervosismo que vejo em seu
rosto, ela não deve estar longe de aparecer.
O que eu poderia fazer para impedi-lo do que já sabia ser seu plano?
Porque era dolorosa demais a regra tão seguida dentro daquela Famiglia.
— Vincenzo, por favor. — Era injusto demais me fazer pagar na
mesma moeda, sendo que não era apenas eu que pagaria. Ela não tinha
culpa de nada, os únicos responsáveis por tudo sendo eu e meu egoísmo em
querer tê-la. — Alana é minha vida.
E eu não deveria ter confirmado isso.
— Catarina também era. E Stella era o resto dela.
Deveria ter mandado Emília para Itália. Deveria ter mandado Alana
embora. Deveria ter deixado Stella fora da água. Era quase cômico meus
arrependimentos começarem aos seis anos de idade, eu ainda criança
assinando minha sentença de morte.
Se eu desse um jeito de morrer agora, ele a deixaria viva? Porque eu
poderia não conseguir matá-lo, mas talvez pudesse obter o contrário.
Porcodio, o que o faria me matar?
Quase não acreditei quando o pedido de um ateu foi atendido.
— Posso te dar uma opção. — Senti o cano de uma pistola ser
pressionado contra minha nuca. Era a primeira vez que experimentava
aquilo, e saber que o metal frio tinha o poder de salvar me fazia querer
sorrir. — Disse que minha filha está morta por tua causa. Eu te prometi
liberdade se achasse minha Stella, e matasse quem a tirou de mim. Dou para
Alana essa liberdade, Nickolay. — O cano continuava pressionado contra
mim, um revólver sendo posto sobre minhas coxas. — Sabe o que tem que
fazer.
Eu tinha coragem para aquilo. Eu tinha coragem, por mais que minhas
mãos tremessem e meu coração estivesse prestes a explodir. Aproveitei
aquelas últimas batidas, o ritmo tão parecido com o que tinha quando Alana
estava perto.
Meu coração havia permanecido quieto por tanto tempo.
— Me dê sua palavra — pedi, já pronto para selar o acordo. — Me dê
sua palavra, Vincenzo.
— Eu não a toco, figlio. Se morrer, eu não a toco.
Tê-la como último pensamento era conforto o suficiente, e eu peguei a
arma. Era engraçado agora lembrar de todas as vezes que pensei que Alana
seria minha morte. Fechando os olhos, conseguia sorrir ao vê-la no meio
das rosas do jardim. E junto dela, pressionei o cano contra minha cabeça,
destravei a pistola e puxei o gatilho.
— Não achou que fosse se livrar de tudo sem nem mesmo me contar o
que aconteceu com minha figlia, achou?
A pistola estava vazia.
— O amor te deixou assim inocente, Nickolay? — Como não percebi
antes? Como não notei o peso de uma arma sem balas?
— Don Matarazzo, por favor...
E ali estava eu, pronto para implorar — porque era tudo que me
restava, eu não tendo nem a sombra de um plano B — quando meu coração
parou pela segunda vez.
— Alana não está chegando — ele afirmou, numa certeza assustadora.
— Não, a essa hora, ela deve estar para te ligar.
— O que?
— Ou melhor, nos ligar. Entenda, figlio, não tenho nada contra a
ragazza. Alana é até divertida, e no bom sentido da palavra. E se ela não
tivesse entrado na sua vida, com certeza terminaria o dia viva. Com certeza,
o moleque que disse ser seu ex-noivo continuaria na Europa. Ele estava na
Europa, até eu trazê-lo de volta. Já conversávamos na noite que me
confirmou o nome dele.
Eu iria matá-lo, e os dois homens que estavam atrás de mim quase não
foram suficientes para me prenderem sentado. Para o inferno as balas que
parariam em mim, elas não seriam suficientes antes de eu arrancar a cabeça
de quem um dia considerei dividir da mesma dor que eu sentia. O homem
na minha frente estava morto fazia tempo demais para poder sentir, e eu só
desejava levá-lo para o chão e terminar o serviço.
Alana estava bem, mentia outra e outra vez. Alana estava bem, e o
velho estava tanto blefando quanto com os minutos contados.
— Não foi difícil achar Albuquerque, mas escondê-lo de ti foi quase
impossível. Tenho que admitir que fiz um bom trabalho te ensinando quase
tudo que sei — ele revelava, o prazer visível no rosto cheio de linhas, eu
entendendo do pior jeito o motivo de não conseguir a localização de um
homem normal. — Esse stronzo também é uma das pessoas mais irritantes
com quem precisei lidar na vida. Se eu não tivesse foco, já teria enfiado
uma bala no meio da cabeça oca do garoto.
E meu peito ficou tão pesado quanto no dia em que achei Nicolas mal
respirando na areia, o gosto de sangue tomando novamente minha boca
enquanto me esforçava para achar uma solução para aquilo.
Meu cérebro não conseguia achar uma, e era cruel demais o que viria.
— Mas eu tenho foco, bastante foco. Tanto, que eles já devem estar
juntos. — Cruel demais, e Matarazzo, se esperto, deveria me matar. —
Prometi liberdade ao moleque, desde que cumprisse algumas condições.
Porque se por alguma chance eu saísse vivo dali, a guerra que ele
travaria seria comigo. E eu me certificaria de fazer valer meu apelido.
— Odeia homens como ele — o lembrei, o Don tendo me enganado
bem demais ao fingir se compadecer com a situação de Alana, tantas noites
atrás.
— Odeio os homens que estupraram minha filha. — A clarificação
veio com uma risada seca. — Pouco me importa o resto.
Estava de olhos fechados quando o telefone tocou, e eu conseguia
sentir o suor nas minhas palmas. O coração torturando o peito. Alana era
forte. Alana conseguiria se defender. Tinha uma arma no cazzo do banco, e
eu não havia dado descanso a mulher nas últimas semanas quanto a saber
atirar.
Ela conseguiria atirar, se a cena que se repetia na minha mente fosse a
que acontecia. Ela conseguiria, e eu nunca estive tão próximo das lágrimas
desde o dia que prometi não mais chorar.
Não esperava o nome de quem já dava como morto ser pronunciado, a
esperança que me invadia não sendo boa. Não poderia ter nada bom em
mim, se eu quisesse sair dali. E precisava sair, morrer não sendo mais uma
opção.
— Espero que seja importante, Lorenzo. — Matarazzo dizia, o
telefone contra a orelha, a testa franzindo e os olhos estreitando. O homem
que havia sido meu pai durante todos esses anos realmente me considerava
um filho para eu poder ter qualquer fé?
Talvez sim, e talvez o barulho que ouvisse do lado de fora tivesse dedo
dele. E talvez, apenas talvez — poderia trabalhar com a baixíssima
probabilidade — a ideia que crescia na minha mente não fosse tão absurda.
Talvez eu não estivesse tão fraco, e talvez a lâmina que guardava escondida
no tornozelo pudesse fazer o estrago que meus punhos não pareciam
conseguir no momento.
O quanto estaria testando minha sorte em me aproveitar da distração
do Don? Ainda me restava alguma?
Novamente me perguntava se adiantaria rezar. Mal não poderia fazer.
— Como? — Padre Nostro chi sei in celi[81], e o que Matarazzo ouvia
parecia suficientemente importante para o alvoroço que acontecia na parte
de baixo da casa ser ignorado. — Que absurdo é esse? — Sia santificato il
tuo nome[82], e eu fingi tossi mais sangue, abaixando o tronco como se
estivesse engasgando. — Que merda está acontecendo para me dizer isso
agora? — Venga il tuo regno e sia fatta la tua volontà[83], e o homem que
abaixou a arma para me levantar pelos cabelos respirou pela última vez.
A adrenalina fazia um serviço bom demais, mesmo nos meus piores
dias. Lembrar que já estive num estado muito mais deplorável e continuei
de pé me dava forças para usar o corpo que nos tingia de vermelho como
escudo, os olhos dos dois ainda vivos arregalando enquanto sangue
esguichava do pescoço rasgado.
O homem ainda se debatia contra meu aperto quando alcancei sua
arma. Os três tiros em Matteo o acertaram no meio do peito e o fizeram
atravessar a janela, e eu sabia que não demoraria para alguém derrubar a
porta. Haviam passado o que, cinco segundos? Mais cinco e eu teria o
sangue do velho nas mãos, e então, poderiam derrubar o que quisessem.
Mas não, eu não podia matá-lo. Não ainda, e a mão enrugada nunca
conseguiu sacar a pistola prateada, Matarazzo caindo junto com o celular.
Ainda não havia nem mesmo uma sombra de tentativa de colocar a porta
trancada abaixo, eu tirando o morto de cima do Don antes de substituí-lo, e
para o inferno: eu arrancaria aqueles lábios.
— Onde ela está? — Via com prazer os olhos aumentando, minha
morte cortando sua respiração, minha navalha arrancando uma das unhas.
Aquilo era uma das poucas coisas que conseguia me afligir por dentro, mas
arrancaria todas as dez com prazer. — Onde ela está, seu pezzo di merda?
— Não vieram palavras, o grito enchendo a sala, e a lâmina fez o primeiro
corte na pele ao redor do beiço, eu me sentindo muito mais perto de meu
passado ao observar com prazer o sangue que surgia. — Onde está minha
mulher?
Minha resposta foi o celular tocando sobre a cama, eu apenas agora
escutando a voz que ainda gritava através do que estava no chão. Lorenzo
mandava que eu parasse, e eu nunca estive tão longe de obedecer a qualquer
ordem.
— Vai precisar respirar para me levar até Alana, e é por isso que ainda
não corto o resto.
Terminaria quando a tivesse nos braços. Sairia da merda daquela
mansão arrastando Matarazzo pelo pescoço porque ele sabia, ele precisava
saber em que direção eu teria que ir para achar minha única família.
Revirei os olhos ao vê-lo sufocando com o sangue que escorria boca
adentro, o lábio inferior metade pendurado, o rosto vermelho. Deveria ter
focado em outra parte, e ao invés de sentir nojo, me senti estúpido por ter
escolhido ferir o que poderia impossibilitá-lo de falar.
— O telefone… — Mal consegui entender, a mão apontando para o
objeto me fazendo decifrá-lo.
O levantei pela camisa, nos levando até o edredom, meu coração
parando pela terceira vez ao ver Dolcezza na tela. A mão que estendi para
atender tremia, a outra substituindo a navalha com a pistola, pronta para
disparar contra a cabeça de quem um dia chamei de chefe. Sabia que era o
que ainda aconteceria hoje caso saísse vivo de tudo, deixar Matarazzo vivo
sendo não negociável para minha paz.
Nossa paz.
— Alana?
Não veio nenhuma palavra, mas um barulho conhecido demais, o som
se repetindo uma, duas, três vezes. E então, o telefone ficou mudo, a ligação
sendo finalizada.
A chamada que tentei completar caiu na caixa postal.
Descobri ali que não lembrava da sensação de perder tudo. Achava que
havia lembrado quando me sentei na cadeira, minutos atrás: era muito pior.
Era como se a linha que me mantivesse na terra fosse arrancada, eu não
conseguindo funcionar sem ela.
— Vincenzo? — Mal notei o homem que entrava no quarto, meu
cérebro ainda processando o que era tão difícil de acreditar. — Nico, solta!
Solta a arma, não puxa o gatilho!
Tinha uma mão que forçava a minha para longe, olhos azuis que me
encaravam desacreditados. Eu também estava desacreditado: desacreditado
no azar crônico que tinha. Desacreditado que estive tão perto de conseguir.
Tão perto, me enganava. Minha risada era tão amarga quanto um mundo
sem ela, eu não crendo que os disparos tinham vindo dela, mas feitos contra
a mulher.
Ela não teria desligado o celular, se estivesse viva. Teria ligado de
volta, e o telefone não tocava.
Não queria mais continuar naquele mundo depois de uma vida de má
sorte. Ao mesmo tempo, não tinha mais forças para fazer qualquer coisa a
não ser despencar na cadeira. Os gritos dos mais velhos ainda enchiam o
quarto, e eu não dava a mínima. Soltei uma respiração pesada, deixando
meus olhos fecharem. Queria que fosse a última vez.
Eu estava exausto.
— Eu te disse que o moleque estava delirando! Olha bem para ele! —
Exausto, e poderia acabar com tudo usando o que Lorenzo não teve forças
para me tirar. — Como considerou matar alguém com tanto valor? A
loucura finalmente te consumiu?
E eu ri, mais uma vez: estava tão longe de ter qualquer valor. Eu
apenas causava prejuízo, subtraindo tudo que tocava. Lorenzo falava algo
sobre a ragazza ter seus olhos, e eu só pensava que os olhos mel que eu
tanto amava não poderiam jamais ter qualquer semelhança com os que eram
do próprio diabo. Alana era toda a vida que Vincenzo não tinha.
Alana estava morta.
Era a segunda vez que me encontrava na mesma situação. Com
Nicolas, passei por isso com ele morrendo nos meus braços, a mão pequena
tatuando o lado direito do meu peito com sangue.
Com Alana, só ouvi os tiros.
— Nickolay? — Era difícil me obrigar a abrir os olhos. Eu nem tentei,
e respirei fundo quando tive a pistola tomada, o cano frio saindo do couro
cabeludo.
Matarazzo havia se sentido assim impotente quando perdeu Catarina?
Deveria passar dias o cortando. Deveria fazê-lo implorar pela morte, apenas
para negá-la. Sem ela, nem mesmo pensava mais em matá-lo, toda minha
vontade tendo desaparecido com a última perda.
— Me deixa em paz, Mantovanni. — A voz que saía era tão fraca
quanto meu desejo de continuar.
O barulho do tiro parecia ecoar na minha cabeça, se repetindo em
pensamento, caçoando da minha incompetência.
— O que eu sempre te digo, Nico? — Para eu calar a boca e obedecê-
lo, quis responder, o homem vezes demais tendo repetido tais palavras e
finalizado me chamando de moleque inconsequente.
Talvez até naquilo fossemos semelhantes, e Alana me fazia sorrir,
mesmo já tendo deixado o mundo. Ela realmente me faria sorrir para
sempre, assim como seria meu eterno tormento.
Ela me faria sorrir para sempre, e os tiros não estavam apenas na
minha cabeça.
— Para confiar em ti — deixei sair, meus olhos finalmente abrindo.
Matarazzo não estava mais no quarto, o cômodo banhado de sangue.
Matteo entrava pela porta — como um morto entrava pela porta? E os tiros
soavam reais demais.
— Confia em mim, filho. Eu vou te tirar daqui.
Sim, os tiros eram reais, e a arma voltava para minha mão, Lorenzo me
puxando de pé. O andar inteiro e o hall de entrada estavam pintados de
vermelho, e se me dissessem que eu estava no inferno, acreditaria. Pela
porta de entrada aberta eu reconhecia quem por anos chamei de chefe sendo
posto num carro, os homens que restavam atirando contra três blindados
vermelhos que eram a marca registrada de um conhecido.
Era a primeira vez que me surpreendia ao ver alguém atirar, o homem
que praticamente me criou disparando contra três e acertando, Matteo, que
jurava ter feito deixar esse mundo, eliminando mais dois. E não fazia
sentido, porque aqueles homens eram italianos. Eram nossos. Matteo estava
matando nossos soldados.
Eu estava sonhando? Talvez os socos tivessem sido fortes demais.
Talvez eu tivesse disparado, e ido direto para o inferno. E agora, seria
obrigado a enfrentar todos os que havia mandado para as chamas. Nunca
mais veria quem fazia meu coração apertar, mas não a ver aqui seria
consolo suficiente.
Ela estaria com Nicolas, e eu disparei em quem vi apontar o cano para
Mantovanni. Fiz mais dois irem para o chão, e me perguntei se as almas que
fazia cair precisariam ser tatuadas. Tendo acabado com o pente da arma que
segurava, alcancei uma pistola jogada junto de um rosto conhecido, e já era
a décima morte que coletava em apenas um dia, o único em que tive tantas
sendo o que quase me tirou a vida, anos atrás.
Mas eu não tinha mais uma vida para ser tirada, e os únicos que quis
orgulhar quando tinha nunca veriam meu caos. Saber daquilo fazia puxar o
gatilho ser uma tarefa fácil demais.
— Ele está em choque — escutei de Lorenzo, mas eu não estava em
choque.
Eu estava no inferno. Eu deixaria, finalmente, as chamas me
consumirem.
E todos queimariam comigo.
ㅤ
— Você não vai gritar. — A voz era de deboche, a vida parecendo uma
piada eterna com justo aquele homem aparecendo hoje. — Eu sei que não
vai. — Ao menos tinha conseguido abrir a boca, por mais que os cachos
loiros me paralisassem. A reação era melhor que nada. — Mas se quiser
tentar a sorte, vá em frente. — Thobias apontou com a cabeça para os dois
policiais que entravam na viatura, e eu fiquei parada.
Por que era tão difícil funcionar na presença dele?
— Foram eles que me deixaram entrar, Laninha. Então, mesmo se
fizer qualquer gracinha... — Ele deu a partida, o tom que usava sendo um
que fazia a conversa até parecer amigável. — Eu duvido que a viatura vá
nos parar quando eu enfiar a sua cara na janela. E você não quer isso, quer?
Sujar o vidro do seu carro novo de sangue? Você nem gosta de sangue, eu
lembro bem que não gosta.
A mão que parava na minha coxa enchia minha boca com um sabor
amargo, os dedos que se esfregavam contra a calça jeans gritando erro. Era
errado ele me tocar. Era tão errado eu não conseguir reagir.
Sentado no banco de motorista, Thobias dirigia como se os últimos
meses não tivessem acontecido, e meu coração dava indícios de que ia
falhar. Meu ex-noivo tratava o evento como corriqueiro, agia como se não
houvesse qualquer opção para mim senão a de obedecê-lo, e eu sentia as
batidas fortes demais no peito.
Minha boca estava cheia de saliva, e eu queria vomitar.
— Fiquei sabendo que você resolveu bancar a putinha de um italiano
enquanto eu tava fora. — Respirei fundo, forçando os olhos para longe dele
e obrigando meu cérebro a funcionar.
Pense, Alana. Tinha uma arma a centímetros da minha esquerda. Eu
poderia simplesmente atirar, fingir que me aproximava para um beijo e
atirar. Minha mão chegava até o gatilho, e a pistola nem precisaria sair do
banco, a bala com certeza tendo a capacidade de atravessar toda a estrutura.
Nico havia me garantido aquilo, eu sabia o que fazer, e só pensar no nome
dele me dava a clareza necessária. Nico me mandaria atirar.
Eu atiraria, e nós bateríamos a mais de noventa por hora na marginal.
E poderíamos não levar só a nossa vida. E eu me tornaria uma maldita
assassina, como já era o homem que eu queria matar.
— Gata, como você faz uma coisa dessas comigo? — Nickolay era um
assassino.
Mas meu assassino não atirava em crianças, como as que eu via no
carro da frente.
— Eu te fiz uma pergunta, vadia. — O som perdeu qualquer diversão,
a mão apertando para machucar. Thobias percebia o quanto me afetava, e eu
amaldiçoava o quanto meu corpo tremia perto dele.
— Você terminou comigo, Thobias. — Amaldiçoava o jeito que minha
voz hesitava, quase não saindo para dar a explicação.
— Eu só fui passar um tempo longe! — Uma mão esmurrou o volante,
a outra deixando hematomas na pele que beliscava. Doía, e eu puxei a
respiração, mordendo o lábio inferior para não soltar nenhum barulho. — E
você resolveu abrir as pernas pra São Paulo inteira, pelo que eu fiquei
sabendo!
Ele não me ouviria chorar. Ele não ouviria um som, e eu cobri a boca
para não deixar o soluço sair, o carro virando em uma saída a direita. Me
orgulhava por esconder as lágrimas, e me envergonhava pelas mãos
instáveis que errariam qualquer tiro que me atrevesse a dar.
— Gabriel me falou da vez que cê deu pra ele. — Gabriel? — Ele tava
todo marcado, cortesia do seu gringo.
E eu lembrei do jantar. Havia sido fazia mais de uma semana, e me
deixei fechar os olhos por um segundo, a imagem de Nickolay me
defendendo consumindo um pouco do meu medo. Como uma vida que
estava dando tão certo se tornou tão errada?
Estava tudo bem quando eu acordei, e então não estava mais, e as
lágrimas molhavam todo o meu rosto.
— Para de chorar! — ele gritou, como gritava na noite em que tudo
mudou. Como sempre gritou, e eu demorei tanto para ver.
— Eu não falei pra ninguém, Thobias! — gritei de volta por instinto,
os olhos cristalinos por um segundo espantados com a minha reação. — Eu
não falei, eu fiquei quieta...
— Não foi o que eu escutei do chefe do seu noivo! — O que?
Mas foi o celular vibrando no meu colo que me fez abrir os olhos, eu
sabendo quem era antes de ver o nome na tela. O sorriso que Nico me dava
fazia o de Thobias ser menos assustador, e por um momento, achei que
fosse conseguir atender.
Tive a certeza de que algo lesionou quando ele virou minha mão,
minha voz ecoando pelo carro. Thobias só torceu mais ao notar o anel que
eu vestia na direita, e eu só conseguia agradecer por ser canhota. E ele ria e
ria, Nickolay insistindo pela segunda vez.
— Quem é vivo sempre aparece, mesmo que seja por ligação.
Deveríamos atender juntos? — E pela terceira. — Talvez retornar a ligação
enquanto a gente fode?
A ameaça envolvia meu corpo num frio absurdo, o calor me deixando,
por mais que pensasse em toda sua fonte. Foi quem ele chamava de Don
quem planejou esse inferno, eu tinha certeza. Foi Matarazzo, e isso só
confirmava mais minhas suspeitas de minutos atrás: o italiano queria me
matar.
Assim como eu também sabia que o homem que dirigia o carro não
iria parar depois de tirar minha roupa.
— Thobias, por favor...
Ele iria me matar, e eu estava prestes a achar o fundo falso e
descarregar a arma nas suas costas quando dedos firmes se fecharam no
meu rabo de cavalo, a mão forçando minha testa contra a janela, uma, duas
vezes.
Ele iria me matar, mas o pensamento não foi suficiente para me manter
acordada.
Eu odiava o mar.
Sempre pensei que o desgosto tivesse relação com a mulher que me
carregou na barriga, alguma parte do meu passado responsável pelo
incômodo com a água salgada. Cheguei para minha mãe de criação com
meses, mas existem traumas que são tão grandes que te marcam mesmo
antes do seu primeiro ano no mundo.
Quando não sonhava com Gabriela, eu sonhava que corria para o mar.
Eu me via fugindo de alguém, olhando para trás, molhando os pés na água
fria. Realmente não gostava do sal que grudava na pele, da maresia, do som
das ondas batendo nas rochas.
Nunca tinha ninguém na praia. Nunca tinha ninguém na areia além de
mim.
Mas hoje, Nico estava me esperando na beira do mar.
Sorri, me afundando em seu peito, a dor que sentia na cabeça indo
embora com seu toque. Por que ele estava ali? Por que eu estava ali?
— Tô atrasada, eu sei — disse, e notei o gosto de sangue na boca.
Eu tinha batido a cabeça. Thobias tinha batido a minha cabeça, e em
algum momento, o impacto me fez morder o interior da bochecha.
— Dolcezza, precisa acordar.
— Eu não quero! — reclamei, sentindo as lágrimas voltarem. — Eu tô
com tanto medo... — Não passou de um sussurro, mas Nico me escutou.
— Não fique. Eu estou contigo, amore mio.
Mas ele não estava, eu sabia que não estava. Só que ouvi-lo era o
suficiente para fazer o calor voltar. Eu já sentia o fogo de sempre
consumindo todos os meus poros, acordando todo o meu corpo. Poderia
fingir que acordava ao lado dele.
— Lembra do que te disse? Se algum dia precisar atirar, finja que sou
eu puxando o gatilho. Eu faço por ti, Alana. — A mão tatuada levantou meu
queixo, e seus olhos gentis conseguiram me passar a calma que eu
precisava. — Abra os olhos e me deixe atirar.
Os olhos que achei quando abri os meus não passavam perto dos que
desejava ver.
Thobias sorriu, eu ainda atordoada notando com demora que
estávamos no banco traseiro. Via pelas janelas que tinha verde demais ao
nosso redor, o barulho da cidade sendo substituído por um silêncio
aterrorizante.
Ele iria me matar, eu tinha certeza disso.
— Finalmente acordou. — Não tinha por que ele me levar para o meio
do nada e não o fazer, e eu não podia deixar meu cérebro se render ao
desespero.
Eu não morreria. Não hoje. Eu precisava chegar até Nico, e para isso,
eu precisava ficar viva.
— Gabriela foi um acidente, Alana. Um acidente, em todos os sentidos
da palavra. — Tentei abrir a boca, apenas para ter seu dedo pressionado
contra os lábios. — Você nunca cometeu um acidente?
Assassinato nunca seria considerado acidente. Bater a cabeça dela até
sair sangue não foi um acidente. Segurá-la pelo pescoço até a vida da
mulher que carregava seu filho ir embora não passava perto de algo que
pudesse ser considerado um acidente. Ele tirou não uma, mas três vidas,
naquela noite.
— A senhorita perfeitinha nunca deve ter cometido deslize algum na
vida, estou certo?
E ele pagaria por elas com a dele. Eu precisava distraí-lo. Eu iria atirar,
mas precisava de sua surpresa para o plano dar certo.
— Thobias, vamos conversar...
— Nós vamos conversar. — Eu iria atirar, mas tremia com a mão que
abria o botão da minha calça, e repetia outra e outra vez que eu. Não. Podia.
Congelar. Agora. — Tava esperando você acordar pra isso, gata.
Olhei ao meu redor, minha cabeça bem ao lado da parte de trás do
banco do motorista. Dava para alcançar, a arma não estava longe. Forcei
meus olhos de volta para os azuis, me lembrando quantos segundos
demoraria para pegá-la, destravar e apontar.
Nickolay estava ali. Ele estava em tudo, e era o italiano que me
manteria viva. Fizemos aquilo juntos, seu corpo naquela tarde cobrindo o
meu como o de Thobias cobria agora. Então eu me enganaria que era ele, e
pararia de tremer.
— Eu não lembro de ter terminado com você, noiva. — Meu coração
apertava demais com a mão que ia para baixo da minha camiseta, e
precisava me forçar a respirar, eu precisando de oxigênio mais do que
nunca. — Isso quer dizer que você passou o ano me traindo, sua vagabunda.
— O aperto que recebi no seio era somente para machucar, e era difícil
demais fingir que era Nico para buscar estabilidade.
Eu morreria se não conseguisse fingir. Morreria se não acertasse o tiro
de primeira.
Eu morreria se não fizesse nada, e Thobias abria seu zíper com a mão
que antes me marcava, segurando meu celular com a outra.
— O mesmo padrão pra desbloqueio, a mesma senha, ai Laninha! —
A risada dele me dava enjoo. — Você não aprende. Vamos ligar pro
italiano, dolcezza? Que merda de apelido é esse? — O nome que amava
dito por sua voz fazia o enjoo aumentar, assim como o jeito que ele se
deitava mais sobre mim. — Esse seu comportamento é patético.
Eu daria dez segundos para meu corpo obedecer. Dez segundos.
Lembrava que tinha lido algo sobre como precisávamos respirar e dar um
tempo para nossos músculos se acostumarem com um comando.
Então eu contaria dez segundos, e ao final, apenas tremeria para
continuar enganando quem eu encarava. Era difícil, mas eu conseguia: já
tinha conseguido mais do que achava possível, o que estava prestes a fazer
não era nada. Era difícil ter seus dentes mordendo forte meu ombro, difícil
suas mãos puxando meus cabelos até arrancar os fios, e eu repetia como um
mantra que precisava aguentar só mais alguns segundos.
Os dez passaram, e eu agora me fazia tremer, e me faria parar assim
que tocasse no cabo da arma. Ele precisava estar distraído, e eu aguentei
quieta os dentes que cortavam meus lábios, as mãos que deixavam
constelações de roxos por onde passavam. Eu aguentei até a atenção dele
voltar para o celular, os dedos achando o contato que procuravam.
Ele discava o número da pessoa que me dava tranquilidade só de
lembrar, os olhos muito mais atentos na tela do que em mim. Continue
olhando para a tela, rezava. Olhe para a tela, não para baixo.
— O que você acha que o gringo vai pensar depois de te ouvir gritando
meu nome? — Era minha única chance, e ele ainda não me olhar me fazia
querer sorrir. Saber que Nickolay o mataria se eu não conseguisse me trazia
conforto, eu ponderando se tinha sido estragada por estar tirando prazer da
morte. — Está tocando — escutei, exatamente quando meus dedos tocaram
o metal frio.
E eu destravei a pistola, e parei de tremer.
Thobias ainda segurava o celular quando disparei o primeiro tiro.
Engraçado que, mesmo com o silenciador, eu conseguia escutar o barulho
da bala atingindo seu peito. Era um som rápido, o metal perfurando a pele
tendo um tom muito diferente do que ouvi quando acertei as latinhas de
alumínio.
A surpresa nos olhos azuis era divertida de se ver, e talvez eu tivesse
gargalhado, não fosse aquela a primeira pessoa que matava na vida. Sabia
que um de nós precisava morrer, e então, disparei o segundo. E o terceiro. E
o corpo caiu sobre mim, e eu continuei atirando, mesmo quando as balas
acabaram. Ele cuspia vermelho e sangrava na minha roupa, e eu agradecia
por estar usando uma blusa preta, a cor de luto combinando demais com o
dia amaldiçoado.
Só tive coragem de me mexer quando era apenas o meu coração que
sentia batendo.
Ainda estava muito mais claro do que gostaria e, mesmo no meio do
matagal, se enxergava bem demais o sangue manchando as janelas do carro.
Manchando toda minha pele descoberta, entrando debaixo das minhas
unhas. Thobias era pesado, mais pesado ainda agora que largava todos os
quilos sobre mim. Não conseguia soltar a arma, mas conseguia achar força
o suficiente para tirá-lo de cima do meu peito e voltar para o banco da
frente.
Era o choque que me fazia dar risada enquanto limpava o sangue das
minhas bochechas? Porque tinha um corpo no banco de trás do meu carro, e
eu precisava sair do meio daquele monte de mato, e nem mesmo tinha mais
meu celular. Me senti burra por ter acertado meu único meio de
comunicação com uma das balas, assim como me achava uma idiota por
nem mesmo considerar procurar pelo do homem que chegou perto demais
de me matar.
O carro cheirava a metal e patchouli, e eu acendi um cigarro que não
queria fumar para continuar sã. Usei mais lenços umedecidos do que o
necessário para tirar qualquer vestígio de um assassinato do rosto, o terceiro
corte que ganhara na testa durante a minha não tão longa vida já tendo fazia
algum tempo parado de sangrar. Quantos minutos fiquei de olhos fechados?
Meu Deus, eram cinco da tarde. Eram cinco da tarde, eu estava
atrasada, e Thobias estava morto no banco de trás. Ele estava morto, e o
sangue escorria pelo chão do carro. Quando o sangue parava de escorrer
depois que você morria? Era estranho querer dar um Google naquilo?
Com certeza era, e eu ainda escutava algo gotejando. Eu escutava, e o
vermelho debaixo das minhas unhas não ia embora, por mais lenços que eu
usasse. Eu ia vomitar. Ia vomitar o nada que havia no estômago, e o fiz
assim que abri a porta, a pistola descarregada continuando presa na minha
mão. Talvez eu nunca mais conseguisse soltá-la, assim como os olhos azuis
sem vida ficariam para sempre gravados na minha memória.
Limpava o canto da boca quando escutei um galho quebrar, e me virar
e mirar foi automático, por mais que não houvesse nenhuma bala sobrando.
Que se foda, conseguiria enganar quem fosse. O corpo que apodrecia no
carro era prova: seria capaz de fazer o que precisasse para sair dali e
reencontrar meu único conforto.
— Ela vai dar tanto trabalho quanto o italiano, quer apostar? — o
sotaque era carregado, mas não igual ao que eu tinha me acostumado a
ouvir.
Quem visse de fora a cena com certeza riria da minha audácia em
continuar apontando a arma, os dois que me encaravam quase tão grandes
quanto Nickolay — todos os homens daquele meio estúpido eram sempre
gigantescos?
Porque os que eu via, definitivamente, estavam envolvidos nas
mesmas coisas ilegais que o meu estava. E tinha certeza de que eu estava
em choque, meu cérebro tentando me fazer ficar quieta e voltar a ter
qualquer medo, eu só querendo rir. O sorriso que aparecia nos meus lábios
deveria me dar a aparência da loucura, e por um momento, achei que a
loucura fosse me servir de algo.
— Olha bem o tamanho dela. — Eu deveria sentir medo. Era normal
sentir medo, então por que o sentimento não vinha? — É só amordaçar e
colocar no carro. No porta-malas, se chutar demais.
— Fica longe! — E eu puxei o gatilho.
Entendi que eles sabiam que a arma estava descarregada, nenhum
tentando se proteger milésimos antes do clique. O maior fechou a cara, o
mais careca — os cabelos tão escuros quanto os de Nico — esticando o
braço e o impedindo de avançar.
— Yan, DeLucca vai te caçar no inferno se você arrastar a mulher dele
como pensa em fazer.
A resposta do outro homem veio numa língua complicada demais, e
aquilo era russo, sem dúvida. Aquilo era russo, e eu precisava chegar até
Nickolay. E tinha um corpo no banco de trás do meu carro.
— Alana, certo? Primeiro, já deu para perceber que sua arma está
descarregada, então se puder fazer o favor de abaixar... — E eu arremessei-
a nele, minha mira de agora provando ser tão ridícula quanto minha
escolha. — Bom o suficiente. Segundo, preciso que entre no carro. Não no
seu, no nosso — ele frisou ao me ver abrir a boca.
A última coisa que eu queria era entrar no carro de um estranho, e eu
olhei para o que Nickolay havia me dado. As janelas estavam espirradas de
vermelho por dentro, e aquele sim era um bom motivo para policiais me
pararem.
E para quem eu ligaria? Nem mesmo tinha um celular, pensava,
enquanto fingia ser uma possibilidade não obedecer ao que era — ainda —
pedido pelo homem mais baixo. Eu nem tinha um celular, mas tinha um
corpo no banco de trás. Eu matei alguém.
Merda, eu matei alguém.
— Foi Nico quem mandou vocês? — Eu matei alguém, e a única
coisa que queria era os braços dele ao meu redor. Eu matei alguém, e estava
a ponto de quebrar.
Eu quebraria inteira se confirmasse em palavras o que sentia, e tentei
ver no rosto cheio de cicatrizes alguma distração.
— Se eu te falar a verdade, devochka[84], você entra sem espernear
muito? — Fiz que sim, ignorando a palavra que não entendia e focando na
falha aparente que havia na sobrancelha direita. — Estamos pagando um
dos favores do seu italiano. Mantovanni nos mandou, e nosso chefe está
com seu noivo. — Dei um passo para trás. — Eu não gosto de bagunça: se
quisesse te matar, o teria feito de longe. Olhe para seu anel. — O que? —
Olhe a lateral. — E ele se aproximou, mostrando o que usava no dedo
anelar. — Igual, está vendo? Nickolay é família, o que faz de você família.
Nós não vamos machucar família.
Era realmente igual, e a joia me contava que a mãe do meu noivo
também teve pelo menos um pé na máfia antes de conhecer seu pai. Como a
mulher russa acabou com um italiano? A história dela havia sido parecida
com a de quem eu achava ser minha mãe? Catarina era minha mãe? Eu
adorava como meu cérebro sempre dava um jeito de achar coisas para se
distrair.
— Agora, se não começar a ser colaborativa, vamos ter que te arrastar.
Já estamos bem atrasados.
— Tem um corpo no meu carro. — Foi minha resposta, como se não
fosse óbvio que havia alguém morto ali.
— Yan vai cuidar disso, certo Yan? — O maior apenas levantou os
ombros. — Vamos, devochka. — E eu quase fui, até me lembrar do que não
poderia esquecer de jeito nenhum.
A hesitação fez o homem tentar cumprir a ameaça de me colocar no
carro contra minha vontade.
— Eu vou, eu vou, só preciso das minhas coisas! — justifiquei ao me
aproximar da porta escancarada, forçando meus olhos a ficarem longe dos
opacos.
Azul claro com vermelho era uma combinação estranha, e uma voz
dentro de mim gritava monstro, ao mesmo tempo em que admitia ser sua
combinação favorita. A mistura das duas cores era minha libertação.
Agarrei a mochila, me deixando confessar pelo menos uma coisa: com
ele morto, eu não tinha mais medo.
— Pronto. — Era tão estranho sorrir para um morto. Tão estranho
quanto não me arrepender da vida tirada. — Pra onde vamos?
ㅤ
O rosto dele estava tão machucado. Havia cores demais ali, e com um
lenço úmido e pouca luz, eu limpava o vermelho seco que, em sua maior
parte, não tinha saído do italiano.
Vê-lo de joelhos e coberto de sangue fez meu coração parar, as batidas
já tendo cessado demais em um só dia. Dava para notar os olhos mal
entendendo o que acontecia ao seu redor, ele forçando-se a ficar acordado.
Nickolay nunca se pareceu tanto com a morte, enfim fazendo jus ao apelido
que carregava tatuado no abdômen, e eu nem conseguia começar a imaginar
o que havia acontecido durante sua tarde.
O quarto estava escuro, mesmo com o relógio mostrando já ser oito da
manhã, e ainda estava tendo problemas em acreditar que, de todos os
lugares, tínhamos parado em Cancún. As cortinas pesadas faziam um bom
trabalho em bloquear a praia, visível do chalé privativo onde estávamos
hospedados, e Dimitri não havia me explicado nada antes de nos largar ali
com um novo celular, dizendo que o italiano saberia o que fazer quando
acordasse.
Com certeza, o homem que seguia apagado ao meu lado saberia o que
fazer, e tudo que eu queria era que ele abrisse os olhos para eu discutir
sobre como não aguentava mais me sentir inútil. Para perguntar tudo que
necessitava saber sobre nossa vida futura. Para conversarmos sobre
qualquer coisa que tirasse a última tarde do meu coração.
Não sabia como ainda estava sã, mas sentia que o resto da minha
sanidade me deixava cada vez que eu o reconhecia em algum reflexo. Do
mesmo jeito que Nico precisava de um banho, meu corpo gritava pelo
relaxamento que viria com a água morna, mas não foi um banho que
busquei ao entrar no banheiro. Sacudi a cabeça e respirei fundo: ele estava
morto, morto, morto, e tentei evitar o espelho e deletar o barulho de tiros
perfurando a pele enquanto abaixava para pegar mais lenços.
Quando me levantei, ele continuava ali. Dava para ver com clareza
demais os olhos opacos, o líquido que escorria, manchando seus lábios, sua
roupa. Inspirei pelo nariz e expirei pela boca, tentando focar na minha
imagem, no sangue coagulado enchendo meus fios de nós, na testa com
várias tonalidades de roxo. Tinha hematomas debaixo da camiseta, eu sabia.
Também sabia que tinha matado quem eu via ao meu lado.
Thobias estava morto, mas meu cérebro insistia em vê-lo. Até quando
ele me olharia de volta?
— Dolcezza?
E os braços tatuados ao meu redor afastaram tudo que era ruim, o
fantasma indo embora e eu vendo apenas nós. Por mais que nossa aparência
lembrasse alguma cena que se veria no Dia das Bruxas, não tinha como
evitar um sorriso. Minha Morte estava viva. Nós estávamos vivos.
— Achei que não fosse acordar nunca mais, italiano — foi o que saiu
quando me virei, minhas mãos indo para seu rosto, eu desejando que
pudesse curar todos os cortes que via com um simples toque.
Nickolay fechando os olhos contra minha palma e respirando aliviado
me deixava entender que ao menos os invisíveis eu era capaz de amenizar.
Ter aquele poder sobre alguém que era a morte personificada era assustador
e completamente inebriante, sentir seu gosto misturado com sangue me
trazendo de volta à vida. Ele tinha um cheiro que sempre acalmava meu
coração, o primeiro em muito tempo que me trazia toda a paz de volta.
Respirar ao lado de Nico era tão bom, mas a felicidade parecia estar só
em mim. Os lábios machucados não sorriam de volta ao deixarem os meus,
os olhos escuros sérios demais para um momento que deveria ter um
mínimo de alegria.
— Achei que nunca mais fosse te ver. — Foi a confissão que veio, a
primeira frase sóbria que ouvia dele apertando meu peito. — Achei que
tinha morrido. Matarazzo te queria fora da máfia. Fora de mim.
— Eu sei. — A culpa que via não deveria estar ali.
— Saber que estava com Thobias e não poder fazer nada foi meu pior
inferno. Eu escutei os tiros, Alana. Escutei, e quase morri contigo. Eu quis
morrer contigo.
— Mas eu tô viva, Nico. — Poderia sorrir por nós dois, por mais que
por dentro, estivesse em lágrimas. — Fui eu que disparei. Eu atirei, como
você me ensinou. — O confortava, desabotoando a camisa que um dia foi
branca, aliviada em não achar nada além de marcas de sangue.
Ele sacudiu a cabeça, olhando aborrecido para o chão, a camisa indo
para o piso frio. O sangue não era dele, me forçava a lembrar, e lavaria
embora toda a dor que meus olhos favoritos mostravam ter.
Era a primeira vez que eu via tão de perto o nome contornando a santa,
nosso tempo sem roupa desde aquela última tatuagem sendo escasso
demais. Alana, escrito na minha letra favorita, tirava minhas palavras, e eu
a descobrindo parecia tirar as dele também. Não havia motivo para todo o
receio que ganhava e, outra vez, sorri por nós dois, eu levantando os braços
e o deixando tirar a camiseta preta, Nickolay achando meus lábios antes de
me sentar na pia.
O italiano não teve o mesmo alívio que eu, enrugando a testa ao ver as
marcas debaixo do que eu vestia.
— Thobias não fez nada. — Tinha orgulho em conseguir pronunciar o
nome que não me mantinha mais prisioneira, e minha resposta veio em
forma de beijos.
Os lábios grossos foram para todos os machucados, eu como sempre
acabando nos braços do italiano, ele nos levando para dentro do box. Ainda
vestíamos calças quando a mão tatuada abriu o registro, a água morna
encharcando nós dois.
As mãos que lavavam meus cabelos eram tão cuidadosas quanto as que
eu usava para limpar seu rosto, a água vermelha descendo pelo ralo. Me
esforçava para deixar o dia de ontem ir junto com o sangue do mesmo jeito
que me esforçava para abaixar meu jeans molhado.
Sorri ao vê-lo me olhar desconfiado, praticamente me perguntando o
quão seguro seria ter os dois sem roupa entre quatro paredes. Queria citar
todas as vezes que as roupas nem mesmo foram embora, mas me contentei
em deixá-lo nu. Não importava o que ele vestia, nunca era seguro ficar ao
seu lado, e ao mesmo tempo, Nickolay era toda minha segurança.
— Eu não cumpri minha promessa. — Ele voltou a usar palavras
quando minhas mãos foram para seus cabelos, o xampu fazendo uma
espuma avermelhada, eu tomando cuidado com os pontos, ainda tão frescos.
— De te proteger.
— Você fez melhor que isso. — Recebi um olhar confuso. — Me
transformou na minha própria proteção. — O italiano deixou a bochecha
encostar na palma de minha mão, sua testa na minha, mostrando o quanto
precisava me ter perto. — Está tudo bem, Nico.
— Não é você quem deveria estar me tranquilizando — ele disse, seu
jeito de falar já tão mais parecido com o meu.
— É sim. — E o meu também se espelhava no dele. — Se precisar,
vou fazer isso por ti. — Ele se encolheu quando minha mão parou no corte
sem pontos que havia no supercílio, eu sabendo ser a única pessoa para
quem Nickolay mostrava abertamente suas fraquezas. — Dói?
O homem fez que sim, os olhos voltando para os meus.
— Vai passar. Tudo isso vai passar.
Era tão engraçado como eu conseguia fazer nós dois acreditarmos nas
minhas palavras. Mais engraçado ainda eu ter a certeza de que sim,
independente do que viesse a acontecer, tudo passaria se eu o tivesse do
meu lado.
O jeito que seus beijos foram dos meus lábios para meu pescoço me
fizeram suspirar, eu o incentivando a continuar ao passar as unhas pelas
suas costas.
Ele parou ao ver a marca de dentes que eu carregava em um dos seios.
Queria dizer que não era motivo para parar, que eu o queria independente
das marcas, que eu queria exibir as boas que o amor dele sempre deixava no
meu pescoço.
Foi nosso segundo banho comportado, Nico se mostrando grato em
apenas me ter nos braços.
— Lembra do que aconteceu? Lembra de antes do avião? — perguntei,
meus dedos explorando suas tatuagens, eu recebendo um sim. — Sabe o
que vai acontecer agora?
— Desconfio. — E os olhos foram para onde a ponta do meu indicador
traçava, eu outra vez apreciando a tatuagem de perto. — Estamos no
México, não estamos?
— Cancún. — Ele fez que sim com a cabeça antes de mordiscar
nervoso o lábio inferior. Minhas mãos o pararam a tempo de impedi-lo de
abrir o corte que tinha ali, os olhos escuros indo receosos para os meus. —
Eu não vou brigar contigo, Nickolay — afirmei, passando os dedos pelos
fios molhados que caíam em sua testa. — Chega de brigar, não acha? Não
tem motivo.
— Tem tantos motivos, dolcezza. — Outra vez, a tristeza atrás dos
olhos aflitos. — Eu te tirei da sua família. Da sua vida! Te arrastei para o
meu inferno, e uma vida contigo brigando não vai ser punição o suficiente
para mim. Acha que não me odeio pelo que te fiz? Acha que estou feliz em
te ter assim?
— E você acha que eu estaria feliz na vida que eu tinha antes de te
encontrar? Antes de você me ensinar que eu era o bastante? Antes de me
fazer ver que eu conseguia ser o bastante pra me defender? — Eu passaria a
vida sorrindo por nós dois se fosse preciso. — Eu acordava na pior das
prisões, dia após dia! Viver numa prisão não é viver, Nico.
— Então como pode dizer que está vivendo agora, Alana? — Porque
na prisão dele, eu passaria meus dias de bom grado, quis responder, mas
sabia o quanto o homem se doeria ao ouvir aquilo.
Eu também, lá no fundo, me doía com a palavra prisão.
— Para, italiano. Para de se torturar com isso, e me dá logo o sorriso
que é só meu. Se quer me dever alguma coisa, me deva isso. — Por mais
triste que fosse o que ele deixou sair, tê-lo conseguido já me aliviava um
pouco.
E ele voltou a morder o lábio, suspirando quando meu indicador parou
sua tortura, o homem parecendo precisar reunir forças antes de começar
seja lá o que fosse falar agora.
— Eu te amo, Alana. Eu te amo, e nunca vou deixar de te ter no peito.
— Nickolay tinha uma expressão sofrida, como se as próximas palavras lhe
doessem fisicamente. — Mas não quero continuar sendo egoísta. — Franzi
o cenho.
— Do que você tá falando, Nico?
— Disso. — Seus dedos acharam o anel que eu usava na mão direita.
— Eu quero que saiba que isso não precisa mais acontecer.
Como?
— Pelo menos essa liberdade eu consigo te dar. Está livre, Alana. —
Eu realmente não estava entendendo. — Livre de mim. Por mais que
estejamos fugindo juntos, por mais que deva ter meu sobrenome no seu
passaporte, é livre para fazer suas escolhas. Comigo, ou sozinha.
— Você quer o seu anel de volta? — perguntei, porque por um
momento, era a única coisa que fazia sentido.
— Nunca. — Ele sacudiu a cabeça, a voz saindo rouca. — É seu, para
sempre. Eu já te disse…
— Então eu não tô entendendo.
Parecia doloroso ele ter que me explicar. Os olhos carregavam uma
expressão angustiada antes da boca abrir para tentar me explicar que cazzo
— tinha aprendido a amar aquela palavra — estava acontecendo.
— Você pode me pedir para ir, dolcezza. — E eu finalmente revirei os
olhos. Talvez, daquela vez, eu tivesse mesmo batido a cabeça forte demais.
— Ir pra onde? — Aquela conversa era absurda. Talvez ele tivesse
batido a cabeça forte demais.
Nickolay me olhava com um sorriso muito mais triste do que deveria
haver em seus lábios, e eu tive que rir quando suas palavras, enfim, fizeram
sentido.
Ele não queria mais ser egoísta.
— Ir embora? — Aquela conversa realmente era absurda. Eu fiquei tão
magoada por estar presa a ele, mas nunca considerei tê-lo longe da minha
vida. Tinha lhe dito aquilo na noite em que ganhei o anel que olhava.
Por que Nickolay insistia em me dizer absurdos?
— Então, se eu pedir pra você ir embora…
Ele estava realmente considerando aquilo?
— Eu vou. Eu vou embora e te protejo de longe. Eu não vou te deixar
passar por nenhum perigo sozinha, mas nunca mais quero te impor minha
presença, Alana. Pode escolher ficar, mas também pode escolher ir. Pode
escolher, com segurança.
Não tive chance de dizer nada antes dos lábios acharem os meus, o
italiano me dando o que eu tanto quis, mas querendo aproveitar um último
momento antes das palavras que poderiam mudar tudo. Nico tinha gosto da
melhor das liberdades, e eu sorri contra a boca que devorava a minha.
Ai, que homem tonto. Tão, tão tonto, por pensar que pudesse haver
qualquer outra resposta.
A primeira vez que eu disse aquelas três palavras, tinha me convencido
de que era amor o que havia no meu peito. A angústia de perder, o
desespero de acordar e não ter Thobias ao meu lado. Todas as vezes que
precisava me certificar, diariamente, se o que ele sentia não havia mudado.
A necessidade, a dependência crua que tinha dele. Eu o amava, e o amor
que não deveria doer, doía.
Na noite em que fui morar sozinha, prometi que o amor nunca mais
iria doer assim. Que eu nunca mais me daria para alguém que me
mantivesse numa prisão. Que só teria o meu amor inteiro quem me deixasse
ser livre. As mãos tatuadas me colocavam mais uma vez sentada sobre a
pia, e os lábios nos meus me davam toda a liberdade que eu sempre quis.
Toda a liberdade que eu tanto desejei todas as vezes que lhe disse sim.
Toda a liberdade que nunca achei que fosse ter a chance de possuir com ele.
Nickolay dizendo me amar e me deixando livre só fazia o que sentia pelo
italiano aumentar mais. Ao seu lado, meu coração se permitia bater rápido,
mas no meu peito, só havia calma. Minha língua acariciava a dele, e eu
nunca tive tanta certeza sobre meus sentimentos.
Eu não dependia dele para viver, como achei que fosse o normal ao
amar alguém. Mas uma vida sem ele era algo que, se dependesse de mim,
não gostaria de conhecer.
Os lábios desciam para o meu pescoço quando seu nome saiu da minha
boca.
— Nico?
— Si, dolcezza?
Por mais que o último dia me desse tantos motivos para ficar triste,
parar de sorrir era impossível.
— Eu amo você.
Foi a primeira vez que notei que havia mais cor do que até agora me
deixei ver naqueles olhos. Nickolay puxou a respiração, as mãos
paralisando na curva da minha cintura, e os olhos escuros, que iam
desacreditados para os meus, tinham um esverdeado lindo quando
brilhavam.
— Eu amo você, Nickolay.
E Nico finalmente me imitou, virando a cabeça ao levantar os lábios da
forma que fazia meu coração pular uma batida. Eu nunca vi um sorriso tão
verdadeiro nele, assim como nunca tive tanta certeza sobre a promessa que
carregava na mão direita.
— Fica, italiano.
Queria vê-lo sorrir assim para sempre.
— Até meu último dia.
ㅤ
Era a primeira vez que o via dormir antes de mim. Sentados nas
poltronas, já havia horas entre as nuvens de um céu escuro, Nickolay
segurava uma das minhas mãos de olhos fechados. A expressão que tinha
em seu rosto ao descansar era mais suave do que a mostrada antes de
entrarmos no avião, mas as olheiras ainda fundas denunciavam o cansaço
dos últimos dias.
As férias forçadas passaram longe de servir como um bom descanso,
nossas dores presentes demais para serem esquecidas, por mais que
tentássemos exorcizá-las. Os lábios grossos, piores que os meus, ainda
curavam, e algumas tonalidades de roxo e verde continuavam a pintar seu
olho esquerdo e parte da testa.
Por costume, busquei no bolso um celular que não existia mais,
tentando afastar os pensamentos que davam a pior das saudades enquanto
me distraía com um dos filmes disponíveis. Não consegui, e passei alguns
minutos recitando os dois telefones que necessitava nunca esquecer, por
mais que não pudesse discar nenhum deles. Ter os números de Djamila e
minha mãe era o mais próximo do conforto que conseguia chegar, a
comodidade da primeira classe não ajudando quanto a isso.
Preferia estar na econômica, mas voltando para elas. Preferia nunca ter
pisado em um avião, e passar a vida esperando pelos almoços de domingo.
Preferia não chorar, e voltei a focar nele.
Nico sempre conseguia acalmar meu coração. Observei os cílios
longos do italiano por mais um minuto antes de retirar o diário gasto de
dentro da mochila amarela. Com uma mão ainda segurando a caveira,
tentava equilibrar aberto o pequeno caderno com minha esquerda. Nickolay
não a largaria, do mesmo jeito que eu não conseguiria qualquer descanso
antes de pousarmos, e decidi deixar meus olhos devorarem as páginas
escritas pela mulher que Vincenzo achava ser minha mãe.
O diário da mulher que me carregou permaneceria guardado, eu
querendo lê-lo por inteiro em um ambiente muito mais particular que uma
cabine de avião. Me perguntei se a agonia que eu sentia agora era parecida
com a que meu marido — ainda era tão estranho chamá-lo assim — teve ao
me esconder nossa primeira noite. Durante todos os dias que não contou
sobre sua agora antiga máfia. Era horrível, e ao mesmo tempo que quis lhe
contar tudo todos os dias, sabia que precisava digerir as palavras sozinha,
para então digeri-las com ele.
Foi enquanto o homem dormia, dopado de tranquilizantes na primeira
parte de nossa viagem, que passeei pelas páginas do diário da minha
verdadeira mãe. Ela se chamava Carina, era tão brasileira quanto eu, e
estava apaixonada por um homem que parecia demais com Nickolay. O
mesmo homem que minha mãe de criação disse um dia ter se apaixonado,
minha mãe biológica afirmou amar já nas primeiras páginas. Ela escrevia
Armando e cortava o R que havia no nome, e eu desejava saber se era assim
clichê quando pensava no meu italiano.
Ler sobre aquele amor me fez feliz e triste, e guardei o caderno quando
cheguei na parte em que a tristeza se tornou maior, aquele sábado já tendo
lágrimas demais para eu derramar mais algumas.
Me mexi e Nico continuou dormindo, a respiração pesada denunciando
que o sono era profundo o suficiente para eu arriscar a leitura. Queria achar
o que havia de errado ali, o que Lorenzo achou pesado demais para dividir
com seu protegido, mas compartilhou comigo da pior forma. Ainda
lembrava das palavras antes dele nos deixar embarcar para fora do Brasil, o
homem mais velho sabendo que eu estava com os diários: leia sozinha, e
depois com ele.
Era arriscado, mas precisava descobrir o que havia ali antes do avião
pousar, antes dos meus olhos favoritos abrirem outra vez.
Então eu li sobre a espanhola. Catarina era nascida em Madrid, e
diferente da letra redonda e infantil da minha mãe — Carina — a da esposa
de Matarazzo era fina e elegante. A história contada começava como um
conto de amizade, duas imigrantes compondo uma história linda e triste. Já
me perguntava se teria algum sossego após a última frase, ou se lê-lo por
inteiro só me faria ter mais vontade de correr pelas páginas do próximo.
Descobri muito antes do meio que sossego era uma palavra que não
parecia mais fazer parte de minha vida.
"Não sou a única que busca segurança nos homens italianos. Vince
saiu para um dos tantos jantares de negócios com Armando, e me deixou
com sua esposa Katerina e seus dois filhos."
Armando. Era o mesmo nome do homem que havia me dado para
minha mãe. O homem que me chamava de filha. O homem que Carina
amava. Era coincidência demais haver dois Armandos.
Puxei o ar, tentando acalmar meu coração. Do jeito que andava minha
sorte, apenas o som dele batendo mais rápido conseguiria acordar o homem
que descansava ao meu lado.
"Katerina Orlov está na Itália há quatro anos, e me contou sobre
quem era antes seu marido. Armando é muito mais gentil, mas não existe
amor entre os dois, por mais que dividam uma cama."
Eu tinha lido errado, e meus olhos voltaram para o começo do
parágrafo uma, duas, três vezes. Orlov era o sobrenome que estava no nosso
passaporte. O sobrenome que Nico disse, pelo que entendi da conversa com
o líder russo, vir de sua falecida mãe.
Sem dúvida, tinha entendido errado. Meu inglês era péssimo, e eu já
me perguntava como me viraria num país no qual eu não dominava a
língua.
Eu não queria ouvir a voz de Nickolay agora, por mais que ela só
estivesse na minha cabeça.
"Mamma tinha a mesma teimosia que vejo em ti. Seu nome era
Katerina."
Katerina. Katerina Orlov tinha sido a mulher de Armando. E eu olhei
para o italiano, pedindo a todos os santos para os olhos escuros continuarem
fechados.
Porque minha mãe também era uma mulher de Armando, e eu queria
gritar. Porque Armando era meu pai, eu tinha certeza, e eu estava surtando
por dentro.
Não havia semelhança alguma entre nós. Não havia. Eu era,
fisicamente, o oposto do homem que dormia encostado em mim. Por mais
que compartilhassem apenas um pai, meios-irmãos precisam, no mínimo,
ter alguma semelhança física.
Certo?
Precisei me forçar a parar de tremer e continuar, mordendo forte o
lábio inferior, como se tentasse tirar qualquer calma do gosto metálico que
provava no corte aberto.
"As coisas na Rússia não eram tão bonitas, por mais que a neve seja
linda. Nunca gostei de neve mesmo. Kata também não gostava de como o
sangue dela sujava todo aquele branco, e disse que preferiu fugir com seus
meninos ao ver o gelo com o vermelho deles. Kolya ainda tinha meses
quando pisou na Itália pela primeira vez."
Kolya.
"Minha mãe nunca me chamava de Nico. Dizia que o certo era
Kolya."
E eu respirei outra vez. Nickolay não era filho de Armando. Eu
poderia entender isso dessa passagem, não podia?
Era tão frustrante só poder perguntar aquilo para mim mesma, eu não
sendo religiosa, mas dando graças a Deus por não ter dividido os cadernos
com o italiano. Nickolay teria surtado, do mesmo jeito que eu quase me
entreguei à loucura ao descobrir estar transando com o homem que, por
alguns segundos, achei ter meu sangue.
Nico não tinha, ele não tinha. Mas ele não ter significava que não fui
só eu a enganada por anos quanto às origens. Lembrei do detalhe que havia
nas laterais do anel que eu agora usava na mão esquerda, o homem que me
tirou do meio do matagal falando sobre como aquela era a marca da
organização russa para qual trabalhava. Era estranho pensar que,
geneticamente, eu era mais italiana que Nickolay, meu marido tendo a alma
de um, mas o sangue inteiro vindo da Rússia.
Era inevitável me perguntar se quem Nickolay chamou de Pakhan
sabia da verdade sobre meu marido. Portando o mesmo primeiro nome,
Nikolay Demidov, além de ser rotulado como uma das pessoas mais
perigosas do planeta, tinha os olhos e cabelos iguais aos do homem que
dormia contra mim. Combinando a semelhança com todas as vezes que
Nickolay comentou sobre a liberdade ter vindo de forma fácil, não fazia
sentido e tinha todo o sentido do mundo o que meu cérebro insistia em ser a
verdade.
Mas não pensaria sobre como Nickolay poderia ter conhecido seu
verdadeiro pai sem saber. Não agora, não antes de digerir a história que eu
ainda estava juntando os pedaços. Alcancei a carta, guardada dentro da
última página do caderno vermelho, notando que a letra de Nico era
parecida demais com quem ele passou a vida acreditando ser seu sangue.
Eu compreendia uma palavra ou outra do que lia escrito em italiano,
meu desespero me fazendo bufar e querer acesso à internet para abrir um
tradutor. Já xingava Lorenzo quando virei a folha, respirando aliviada ao
achar a nova letra reescrevendo a carta em português.
"Minha filha,
Não confie em ninguém. Confiar demais foi o que matou sua mãe.
Confiar demais te levou embora, antes mesmo de eu poder te ter nos
braços.
Barbara me disse que vê meus olhos nos seus. Os mantenha abertos
sempre. Nessa vida, aprendi da pior forma que nada é o que parece, e todos
escondem segredos.
Astrid, depois de sua mãe, é a mulher em quem mais confio, e vou
deixar com ela a escolha de revelar ou não a verdade para ti. Não se
magoe se vier tarde. Por mim, a verdade não viria nunca.
Meu maior desejo é que tenha uma vida normal, e farei de tudo para
que sua normalidade seja possível.
Eu te amo, meu único sangue.
Armando."
A tradução parecia ter acabado, mas Lorenzo, não.
"Armando era bom, Anna. Ele só tomou algumas escolhas erradas.
Cuide do meu menino. Nickolay se apaixonou por ti desde a primeira
vez que viu seus olhos. Talvez porque tenha procurado durante toda a
infância, num olhar tão parecido, a aprovação que você dá de graça.
Carina colocava a culpa na cor, e queria que os da filha fossem iguais
aos do pai. Pelo menos um dos desejos da sua mãe se realizou. Em ti, eu
vejo os olhos do meu melhor amigo. Foi o que me fez desconfiar, desde a
primeira noite que te vi, que a mulher que eu procurava havia me
encontrado.
Desculpe a cicatriz que fiz em seu ombro. Você ainda era um bebê, e
me senti a pior das pessoas quando te ouvi chorar. Não havia pinta alguma
ali, mas sabia que tal marca poderia nos ser útil.
Como com Astrid, a escolha de revelar a verdade também é sua. Ache
a hora correta de falar. Nico é mais quebrado do que deixa transparecer.
Ainda vamos nos encontrar. Enquanto isso, fiquem bem."
Olhei para Nickolay. Ele ainda dormia pesado, a cabeça quase
escorregando do meu ombro. Guardei a carta junto ao diário, os dois sendo
postos de volta na mochila com cuidado para os olhos escuros continuarem
fechados.
Katerina havia fugido para a Itália com os filhos.
Filhos.
E eu era a filha de quem Nickolay chamou por uma pequena parte de
sua vida de pai.
Cazzo. E eu definitivamente tinha mais um xingamento em meu
vocabulário.
Respirei fundo, o movimento fazendo com que Nickolay se enroscasse
ainda mais em mim. Era engraçado o quanto o italiano, tão maior que eu,
parecia manhoso quando cansado. Ao mesmo tempo, as descobertas que
havia acabado de fazer não tinham graça nenhuma.
E eram descobertas que meu marido nem considerava, ele até hoje
ressentido pela falta de afeto de quem achava ser seu sangue. Eram
informações que eu não fazia ideia de como, ou quando, deveria contar.
Mas não pensaria no que fazer agora. Não, decidi que deixaria meu
cérebro descansar de todos os assuntos relacionados a minha antiga vida por
mais alguns dias. Eu desligaria, compartimentalizar sendo minha melhor
qualidade agora, e manteria os diários enterrados no fundo da mochila, até
juntar calma o suficiente para pensar no que fazer com as informações que
me consumiam.
Porque nos próximos dias, eu precisava me acostumar que o nome do
meu marido era Kolya, e que nosso sobrenome era Orlov. Ele poderia
continuar me chamando de dolcezza, e eu, de italiano — poderia mesmo
continuar o chamando assim? — mas Nico e Alana ficariam dentro do
nosso quarto. Eu tinha vinte e cinco anos, me chamava Anna, e estava
voltando para minha nova casa.
Aprenderia a amar o frio, assim como precisaria aprender a controlar
minha ansiedade.
— Fica — escutei-o sussurrar, e me perguntei se Nickolay estava
sonhando comigo.
Me aconcheguei mais nele, pensando pela primeira vez em como
usávamos aquele verbo desde que desistimos de manter nossa distância. Eu
pedindo isso após tê-lo na minha cama, ele deixando a palavra sair de seus
lábios na primeira noite que dormimos vestidos. Cada vez que eu pedia para
ele ficar, Nickolay se abrigava mais em mim. E todas as vezes que
respondia que ficaria, o italiano tomava ainda mais posse do meu coração.
Se algum dia eu te amo se tornasse pouco, passaria as horas pedindo
para que ficasse.
Por mais que minha vida estivesse muito longe do que havia planejado
aos dezessete, eu sorri, respirando seu cheiro cítrico.
Eu amava aquele cheiro.
— Fico, italiano.
E sabia que, com ele, eu ficaria para sempre.
ㅤ
[1]
Cold brew é um café de extração a frio
[2]
Obrigado
[3]
Família
[4]
Boa noite
[5]
Doçura
[6]
Caralho
[7]
Bela
[8]
Garota
[9]
Mindfulness é a prática de estar presente no momento da maneira mais consciente possível.
[10]
Verdade
[11]
Seda
[12]
Não entendo o que fiz de errado
[13]
Não entendo
[14]
Puta
[15]
Gozada/Esporrada
[16]
Filho
[17]
Mas que caralho
[18]
Filha da puta
[19]
Filho da puta
[20]
Amor à primeira vista
[21]
Conselheiro
[22]
Bom dia
[23]
Nunca
[24]
Sexo
[25]
Não
[26]
Mulher
[27]
Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um tipo de transtorno de ansiedade que uma pessoa que
vivenciou um evento traumático pode desenvolver.
[28]
Olá
[29]
Um biscoito de origem italiana
[30]
Bolonhesa
[31]
Uma sopa azeda de beterraba
[32]
Um tipo de panqueca/bolinho feito de batata
[33]
Chocolate
[34]
Mamãe
[35]
De viver
[36]
Essa é ela
[37]
Sim
[38]
Que saco/que droga
[39]
Ódio, em inglês
[40]
Que bela
[41]
Sobremesa italiana de massa doce frita, em formato de tubo e com recheio de creme à base de
ricota ou mascarpone.
[42]
Pequenas fatias de pão, geralmente torradas e servidas com opções de cobertura.
[43]
Um expresso duplo por favor
[44]
Você está me deixando com vontade de foder
[45]
Santo Deus
[46]
Quero seus lábios ao meu redor, bela
[47]
Quero sua cabeça no meio das minhas pernas
[48]
Abra as pernas
[49]
Está me matando
[50]
Expressão usada na Itália para expressar surpresa/perplexidade/espanto, similar à quando usamos
“nossa Senhora”
[51]
É lindo te ouvir gemer meu nome
[52]
Senhorita
[53]
Gosto de você
[54]
Cretino
[55]
Inacreditável
[56]
Sorvete
[57]
O que foi, bela?
[58]
Está molhada
[59]
Muito bem
[60]
Foda-se
[61]
Eu vou gozar
[62]
Gosto tanto de ti, meu coração
[63]
Tu que é belíssima
[64]
Me fode
[65]
Gosto quando me olha assim
[66]
Gosto de sentir suas mãos em mim
[67]
É a mulher do DeLucca
[68]
Graças a Deus
[69]
Mulheres
[70]
Filha
[71]
Pedaço de merda
[72]
Lasanha
[73]
Vinho
[74]
Eu quero que se foda(m)
[75]
Literalmente, Deus porco. É um xingamento usado em momentos de raiva/frustração.
[76]
Meu amor
[77]
Brilha, brilha, estrelinha
[78]
Lá no céu, pequenininha
[79]
Que bela
[80]
Como está molhada
[81]
Pai nosso que estais nos céus
[82]
Santificado seja o vosso nome
[83]
Venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade
[84]
Garota
[85]
Chefe
[86]
Tudo por ela
Table of Contents
Playlist
Notas da Autora
Dedicatória
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 01 | Alana
Capítulo 02 | Nickolay
Capítulo 03 | Alana
Capítulo 04 | Nickolay
Capítulo 05 | Nickolay
Capítulo 06 | Alana
Capítulo 07 | Nickolay
Capítulo 08 | Alana
Capítulo 09 | Alana
Capítulo 10 | Nickolay
Capítulo 11 | Nickolay
Capítulo 12 | Alana
Capítulo 13 | Alana
Capítulo 14 | Nickolay
Capítulo 15 | Alana
Capítulo 16 | Alana
Capítulo 17 | Nickolay
Capítulo 18 | Alana
Capítulo 19 | Alana
Capítulo 20 | Alana
Capítulo 21 | Alana
Capítulo 22 | Nickolay
Capítulo 23 | Nickolay
Capítulo 24 | Nickolay
Capítulo 25 | Alana
Capítulo 26 | Alana
Capítulo 27 | Alana
Capítulo 28 | Nickolay
Capítulo 29 | Alana
Capítulo 30 | Alana
Capítulo 31 | Alana
Capítulo 32 | Nickolay
Capítulo 33 | Alana
Capítulo 34 | Alana
Capítulo 35 | Alana
Capítulo 36 | Nickolay
Capítulo 37 | Alana
Capítulo 38 | Alana
Capítulo 39 | Nickolay
Capítulo 40 | Alana
Capítulo 41 | Nickolay
Capítulo 42 | Alana
Capítulo 43 | Nickolay
Capítulo 44 | Alana
Capítulo 45 | Alana
Capítulo 46 | Nickolay
Capítulo 47 | Alana
Capítulo 48 | Nickolay
Capítulo 49 | Alana
Capítulo 50 | Nickolay
Capítulo 51 | Alana
Agradecimentos