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Copyright © 2022 Annia Elle

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parte desta obra, por meio eletrônico ou físico, sem o consentimento da
autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera


coincidência.
Playlist
Notas da Autora
Dedicatória
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 01 | Alana
Capítulo 02 | Nickolay
Capítulo 03 | Alana
Capítulo 04 | Nickolay
Capítulo 05 | Nickolay
Capítulo 06 | Alana
Capítulo 07 | Nickolay
Capítulo 08 | Alana
Capítulo 09 | Alana
Capítulo 10 | Nickolay
Capítulo 11 | Nickolay
Capítulo 12 | Alana
Capítulo 13 | Alana
Capítulo 14 | Nickolay
Capítulo 15 | Alana
Capítulo 16 | Alana
Capítulo 17 | Nickolay
Capítulo 18 | Alana
Capítulo 19 | Alana
Capítulo 20 | Alana
Capítulo 21 | Alana
Capítulo 22 | Nickolay
Capítulo 23 | Nickolay
Capítulo 24 | Nickolay
Capítulo 25 | Alana
Capítulo 26 | Alana
Capítulo 27 | Alana
Capítulo 28 | Nickolay
Capítulo 29 | Alana
Capítulo 30 | Alana
Capítulo 31 | Alana
Capítulo 32 | Nickolay
Capítulo 33 | Alana
Capítulo 34 | Alana
Capítulo 35 | Alana
Capítulo 36 | Nickolay
Capítulo 37 | Alana
Capítulo 38 | Alana
Capítulo 39 | Nickolay
Capítulo 40 | Alana
Capítulo 41 | Nickolay
Capítulo 42 | Alana
Capítulo 43 | Nickolay
Capítulo 44 | Alana
Capítulo 45 | Alana
Capítulo 46 | Nickolay
Capítulo 47 | Alana
Capítulo 48 | Nickolay
Capítulo 49 | Alana
Capítulo 50 | Nickolay
Capítulo 51 | Alana
Agradecimentos

Se você gosta de ler ouvindo música, Peça tem uma playlist no Spotify
com 51 músicas. Cada uma foi escolhida para um capítulo, e estão na
ordem para serem ouvidas com eles.
Nickolay e Alana tem uma música feita especialmente para eles. A
música se chama Peça, e está na última posição da playlist.

Boa leitura!

Eu sempre quis escrever um livro. Enchi páginas desde pequena e tive


dezenas de rascunhos, mas só depois de passar meses em casa numa
quarentena eterna que tive coragem de dividir com mais gente o que, antes,
vivia só na minha cabeça.
Esse livro consumiu uns bons meses da minha vida. Em quase cinco de
escrita e dois de reescrita, me perguntei como uma decisão errada poderia
ser tão certa, aceitei falhas que nunca perdoaria, e compreendi que nem
sempre quem tem seu sangue vai te querer bem. Eu acordava com Nickolay
e dormia com Alana, trabalhava enquanto eles me contavam qual era sua
cor favorita e a comida que mais odiavam. Foram dias demais descobrindo
o que os fazia sorrir e entendendo todos os momentos que os deixaram em
pedaços. Foi uma primeira experiência maravilhosa, e que eu sou grata por
poder ter tido e não trocaria por nada.
Peça-Chave não é uma trilogia focada na máfia. Ela é — especialmente
essa primeira parte — o relato de duas pessoas em pedaços, que tentam se
curar se juntando. Ela é sobre vícios que te acalmam e destroem,
coincidências e dores crônicas, sobre como não podemos voltar atrás para
mudar o passado, mas sempre temos a possibilidade de fazer um futuro
mais doce.
Peça é um romance com gatilhos. É uma leitura que contém violência
moderada, abuso de substâncias, menção/tentativa de estupro,
relacionamento abusivo, e pensamentos suicidas. Leia no seu tempo, e
sempre leve em consideração sua saúde mental.
Os protagonistas, além de seus milhares de gatilhos, possuem alguns
vícios linguísticos. Qualquer erro nas falas faz parte da caracterização.
Também, palavras e frases em língua estrangeira têm a devida tradução
assim que aparecem pela primeira vez no texto.
Para todos que são mais visuais, meu Instagram (@anniaelle) está
cheio de informações adicionais, vídeos e imagens que usei de inspiração
ao criar essa história. Para todos que gostam de uma receita com café, o
casal desse livro me obrigou a colecionar algumas, que também estão por lá
e foram minhas companheiras de escrita. Sim, a autora é viciada em
cafeína, e não nega.
Sem mais enrolação, espero que gostem da história tanto quanto eu me
diverti a escrevendo. Obrigada por darem uma chance ao meu começo, e ao
começo dos meus dois quebradinhos.
Um beijo, e peguem os lenços,

Para todas as Alanas.


Vai passar.

Peça: (substantivo) parte de um todo que tem existência autônoma.


Itália, 1995.
Quem eu chamava de mãe não havia me ensinado as melhores coisas,
mas amar o mar compensava todas as ruins que aprendi com ela. Os sons, a
água salgada tocando a pele, o cheiro único que trazia de volta as memórias
mais felizes. Minha parte mais mórbida sempre imaginou que, um dia, tudo
acabaria ali.
Então por que parecia tão errado que meu fim fosse junto das ondas?
Não imaginava que seria meu último dia quando me levantei da cama.
Talvez sejam poucas as pessoas com menos de trinta anos que saibam estar
vivendo seus últimos minutos. Eu não sabia, e demorou para meu cérebro
entender que, deitada na areia da praia, desperdiçava meus últimos
segundos de vida.
A água batia nos meus cabelos e molhava o vestido vermelho,
escolhido para aquela quinta-feira. A cor era quente, mas mesmo a
vestindo, fazia frio. Não era para fazer tanto frio em setembro, mas meu
corpo não conseguia parar de tremer, apesar de estar debaixo do sol italiano.
Podia ser desespero. Desespero, por ainda conseguir escutar seu choro.
Usei o resto da força que havia em mim para me prender ao pequeno
embrulho que segurava nos braços, ainda não entendendo que estava
respirando pela última vez o cheiro que tinha aprendido a amar em tão
pouco tempo. Deveria ter amado mais, sorrido mais, ficado mais tempo ao
seu lado.
Que clichê ridículo.
Deveria mesmo era ter ficado quieta, e me contentado com a vida que
levava. Não ter considerado nem mesmo sair de casa. Deveria ter
permanecido deitada na cama macia, ao invés de tentar puxar o ar que não
vinha, estirada na areia dura.
Porque ali na areia, eu não conseguia respirar fundo, eu não conseguia
respirar. Meu peito queimava, e me perguntava se era o mar que estava
salgando minha boca, antes doce. Se tudo ficava escuro pela minha
insistência em encarar o sol. Por que eu não desviava os olhos do sol? Meu
bebê estava chorando e eu precisava me levantar, mas tudo que conseguia
fazer era escutá-la reclamar quieta.
Eu riria, se conseguisse me mexer. Bárbara me avisou tanto. Ela me
avisou tantas vezes sobre esse tipo de amor. Um maior do que tudo, um
pelo qual você daria sua vida de bom grado. Um amor perigoso demais para
ser consumido. Nunca o tive com Vince, e, presa ao meu casamento, não
acreditava que fosse achar alguém para amar assim em vida.
Bastou tê-la uma vez para o sentimento se tornar real. Tão, tão
possível.
Após me casar com um dos homens mais perigosos da Sicília, me
acostumei a acreditar que quase tudo era possível. As impossibilidades
ficavam tão minúsculas, que sempre que a palavra vinha à cabeça, eu
duvidava da chance de justo aquela ser a exceção ao que já considera regra.
E era tão impossível o que acontecia agora. Talvez por isso que morrer
olhando para Katerina doesse tanto.

O som do despertador estava diferente naquela manhã.


Por tudo que havia de mais sagrado, era pedir muito só mais cinco
minutos? Ainda de olhos fechados, tateei o chão até achar o celular, meu
dedo deslizando para o lado e me dando mais cinco minutos para morrer na
cama.
Não era meu alarme.
— Tá atrasada! — foi tudo que Mila disse antes de terminar a ligação,
alto o suficiente para fazer minha cabeça latejar, mesmo sem ter o telefone
na orelha.
Quis chorar quando vi o relógio marcando nove horas. Meu corpo
sentia bem os efeitos da vodca consumida noite passada, e a ânsia veio
assim que coloquei os pés no chão. Quase não corri a tempo para o
banheiro, a derrota tomando conta de mim enquanto eu esvaziava o nada
que tinha no estômago dentro da privada.
E começava mais um dia de ressaca. Ainda devia ter algum remédio na
gaveta da cômoda, torci, sentindo meus olhos lacrimejarem. Odiava
vomitar, mas odiava ainda mais as manhãs que me davam calma o
suficiente para pensar. Sorte a minha, aquela não era uma delas.
Debruçada na privada, desperdicei uns bons cinco minutos. Melhor do
que as muitas horas perdidas nos últimos anos, afirmei, me levantando e
achando o enxaguante bucal. Havia horas demais em cinco anos, os cinco
minutos perdidos sendo insignificantes quando comparados aos
desperdiçados com ele.
Respirei fundo, o espelho revelando a maquiagem derretida que
precisaria tirar com pressa no chuveiro. Já eram nove e dez, e se corresse,
daria tempo de pisar na faculdade em menos de meia hora. Não que eu
fizesse questão de correr, a água morna que caía no meu corpo cansado
trazendo o primeiro — e talvez único — momento de relaxamento da
manhã. Outros cinco minutos perdidos depois, escutei meu telefone tocando
mais uma vez, finalmente lembrando do motivo que me fazia escolher a
pressa.
Com a certeza de ainda ter condicionador nos cabelos, vesti o primeiro
jeans que encontrei limpo, e esqueci que usar regata branca nem sempre era
uma boa escolha sem um sutiã por baixo. Ignorando a necessidade de pegar
qualquer casaco, cobri os olhos com óculos escuros gigantes, coloquei
ibuprofeno na mochila e tranquei a porta do apartamento.
O mundo ainda rodava quando pisei na calçada, o sol de março
fazendo minha pele arder. Morava a duas quadras da estação Vila
Madalena, e minha mente exausta decidia que o transporte público era a
melhor opção. Queria ter pegado o carro, mas não estava em condições de
dirigir. Poderia ter chamado um Uber, só que também não tinha tempo
sobrando para arriscar ficar presa no trânsito de São Paulo.
Desisti de chegar a tempo na aula quando o metrô parou pela segunda
vez, a lerdeza da linha verde me fazendo querer, como sempre, gritar. O
celular no bolso vibrava com mais uma mensagem e eu já deveria estar
correndo escada acima, ao invés de me apertar no meio daquele monte de
gente na estação Sumaré.
Olhei para a tela do celular: menos de uma hora para começar a prova,
justo da matéria na qual mal havia aparecido desde o começo do semestre.
Sabia que não teria tempo de ler nada antes de pisar na sala de aula. Nem
mesmo carregava qualquer material comigo, eu muito empenhada em falhar
em tudo menos uma coisa desde o meio do ano passado. Passar em
Inteligência Competitiva não era aquela coisa.
O que você está fazendo com a sua vida, sua estúpida? Escutava com
clareza a voz da minha amiga de anos me repreendendo, e desejava saber se
ainda poderia chamá-la assim. A frase só se repetiu na minha cabeça
quando resolvi que o melhor a ser feito era alimentar um de meus vícios. Eu
fazia tudo tão certo até meses atrás: se fosse falhar, que ao menos falhasse
direito.
O dia queimava do lado de fora da Paulista, e o que eu mais queria era
meu protetor solar e uma dose de vodca. Álcool conseguia me fazer
esquecer por algumas horas tudo que meu cérebro sóbrio insistia em
lembrar, e o esquecimento era uma das minhas maiores necessidades para
continuar funcionando.
Não queria lembrar das outras, e decidi por um café gelado. Água era
para os fracos, e caminhando para a Starbucks mais próxima, me
perguntava o quão difícil poderia ser um teste de múltipla escolha. Entrei na
cafeteria, ignorando a talvez décima mensagem que apitava no Iphone,
agradecendo aos céus pelo ar-condicionado que deixava a vida outra vez
suportável.
Tinha vinte minutos para conseguir minha bebida, e para depois das
dez da manhã, a fila estava longa demais. Quis rir ao escutar a mulher à
minha frente grunhir com a demora. Se viver não estivesse doendo tanto, eu
mesma soltaria um barulho parecido, minha calma não sendo achada antes
do primeiro gole de café.
O atendente também não parecia portar a maior das paciências.
Forçando um sorriso no rosto, dava para sentir a vontade que ele tinha de
esganar a pessoa que estava segurando todas as outras.
— Se o senhor não tem como pagar, sinto muito. — O sarcasmo era
palpável, o garoto explicando para um homem muito mais alto como
funcionava comprar coisas, pelo que parecia não ser a primeira vez. — Eu
realmente não posso te vender um café sem receber. — Ele olhou nervoso
ao seu redor, provavelmente esperando que o cliente explodisse, ou que
alguém ajudasse essa pobre, apesar de muito bem-vestida, alma a comprar
sua bebida.
Céus, o que uma garota não fazia por sua dose matinal de cafeína.
— Um cold brew[1] venti com açúcar e leite, e seja lá o que ele precisar
pagar, por favor — pedi ao chegar na frente do caixa, e pela primeira vez na
vida, furei uma fila e fui agradecida por isso.
— Nome? — O sorriso agora era verdadeiro, e já abria a boca para
responder quando o estranho me cortou.
— Nickolay. — Era sério aquilo? Nem mesmo um obrigado?
Óbvio que uma pessoa tão agradável antes do meio-dia teria um nome
tão difícil quanto sua personalidade.
— O meu é Lana. — Será que contar até dez me faria ter menos
vontade de xingá-lo?
Sem a menor vontade de ter qualquer interação com a simpatia
personificada, me afastei para uma das mesas, jogando a mochila no banco
e pegando o analgésico no bolso menor.
A cartela estava vazia.
Tirei os óculos escuros, esfregando os olhos secos e me rendendo a
derrota. O reflexo no vidro me fazia querer gritar, a cabeça pulsando
morrer, e a sorte ausente me deixava à beira das lágrimas. Talvez o melhor a
ser feito fosse ir para o hospital e implorar por um atestado: com certeza o
azar me faria reprovar, caso resolvesse fazer aquela prova. E se eu não
passasse, independente da nota, minha mãe começaria a me infernizar com
as perguntas que eu tanto evitava.
Da melhor estudante da classe para a garota que preferia passar a noite
bêbada. Como havia chegado nesse ponto?
— Lana! — escutei o barista chamar.
Eu sabia como, mas preferi abandonar o plástico vazio sobre a mesa de
madeira e buscar minha bebida do que pensar no motivo. Tendo a primeira
coisa boa do dia nas mãos, agarrei minha mochila e voltei para o escaldante
calor paulistano.
Deus poderia ajudar os bêbados, mas isso se limitava ao período em
que havia álcool no sangue deles, sem dúvida. Minha felicidade durou até o
primeiro gole, eu já atravessando a rua quando o líquido amargo e quente
tocou minha boca.
Tinha certeza de que um cold brew passava longe de ser uma bebida
que pelava a língua, e jurava que tinha pedido com açúcar e leite. Mas
então, eu jurava tantas coisas esses dias: ontem mesmo, havia prometido
que pararia na primeira dose. Nem lembrava da terceira, só que pela falta de
memória, com certeza a quinta não havia sido a última.
Bem, melhor ruim de se beber do que descafeinado. Mais um gole, e
até considerei voltar para a loja e adoçar eu mesma, assinando minha
desistência de viver o resto da manhã com qualquer ponta de
responsabilidade. Café amargo era uma boa desculpa para não encarar o que
eu deveria fazer, não era? Para voltar para debaixo do lençol e passar mais
um dia dormindo, ao invés de ter mais um fracasso adicionado a minha
crescente coleção.
Decidindo que era sim, eu me virei, e dei de cara com a cartela que
havia esquecido na cafeteria.
— Tome. — Era a mesma voz de antes, a mão grande me empurrando
o lixo que eu havia deixado na mesa.
O pulso vestindo um relógio que gritava dinheiro me dava raiva pelos
reais gastos com seu dono. Não que o dinheiro fosse me fazer falta, eu
tendo mais que o suficiente para viver uma vida muito confortável,
financeiramente falando. O que testava minha paciência era o fato de eu
conhecer bem demais esse tipinho: rico, folgado, e sem um pingo de
educação. Era igual a quase todos os que acabavam na minha cama, e eu
sabia bem que eles só eram suportáveis de boca fechada.
Não era o que acontecia agora.
Naquela manhã, respirar fundo não funcionou para ficar quieta.
— É sério isso? Eu te pago a merda de um café, e você tem a cara de
pau de me seguir pra esfregar...
Mas não era o meu lixo, percebi só depois de começar a falar. Pelo
menos os óculos escondiam um pouco da minha vergonha, eu sentindo o
sangue tomar conta do meu rosto ao ver duas cápsulas intactas na cartela.
Toda a pele exposta mostrava o quanto queria não ter dito as últimas
palavras, e escutei uma risada rouca que o estranho nem tentou segurar.
Peguei o analgésico, querendo tanto abraçar a pobre rica alma que me
salvava, quanto cavar um buraco e morrer. A tatuagem de caveira que achei
na mão grande me fazia querer olhar para cima, mas a vergonha manteve
meus olhos parados nos traços grossos.
— Grazie[2] pelo café, Lana.
Quando reuni coragem o suficiente para descobrir se o rosto era tão
perigoso quanto a tinta aparentava ser, o homem já tinha se perdido na
multidão que tomava conta da avenida. E já eram dez e meia. Foda-se, eu ia
aparecer, ou Mila nunca mais me daria paz.
Corri escada acima, engolindo o remédio com o café sem açúcar e
afirmando mentalmente que sim, eu sabia o suficiente sobre Inteligência
Competitiva para tirar uma nota mediana. Ou poderia simplesmente chutar
tudo B. Aquela letra tinha sido uma boa escolha da última vez.
Djamila me esperava na porta da sala, os cabelos encaracolados
perfeitos contrastando com os meus molhados que gritavam por socorro.
Encarando meu estado enquanto sacudia a cabeça, ela apontava para o
celular na mão direita.
— Sete chamadas, Pipoquinha! — veio de Carlos, nós dois sabendo
que deixar a garota começar a falar era muito mais perigoso.
— Dá pra ver que a festa rendeu, Pipoca. — Não que isso fosse
impedi-la de abrir a boca, assim como minha cara de acabada não a faria ter
qualquer simpatia pelo meu desespero.
Pelo contrário: sempre que notava meu estado pós-festa, ela parecia
ficar ainda mais irritada. Djamila tinha sido minha melhor amiga por anos,
e era triste como agora, a última coisa que eu pensava em fazer era correr
para a garota quando precisava de ajuda. A observei cruzar os braços, me
dando um olhar de desdém antes de entrar na sala sem mais palavras.
— Ela tá precisando transar. — Sacudi a cabeça, a sinceridade
perigosa do loiro sempre me divertindo.
— Não deixa a Mila te ouvir falando isso, ou ela vai acabar querendo
te matar também.
Segui Carlos para dentro da sala de aula, lembrando de tirar uma
caneta da mochila antes de abandoná-la no chão. Já estava pronta para pedir
qualquer dica que me garantisse alguma pontuação quando tive minhas
preces atendidas, pela primeira vez em muito tempo. Olhar para a lousa e
ler ‘prova cancelada’ era quase melhor do que todo o álcool que andava
consumindo, por mais que houvesse situações mais importantes para gastar
minha sorte do que um simples teste.
— Ia saber antes, se tivesse visto o celular — Mila, sentada atrás de
mim, reclamou. — Mas seus contatinhos são as únicas chamadas que você
anda atendendo, né Pipoca? — Não tinha qualquer delicadeza em sua voz,
ela pronunciando com raiva o apelido que, anos atrás, havia me dado com
carinho.
Resolvi ignorar o comentário, e deixei o primeiro sorriso do dia sair.
Até o café amargo tinha um gosto doce depois da notícia, e enchi a boca
com ele, escutando alguém comentar que nossa professora não voltaria tão
cedo. Ou sequer voltaria, pela gravidade da situação, o que ativou
imediatamente meu lado curioso.
Emília Ferretti era uma das poucas docentes que eu conhecia que
poderia se dar ao luxo de não trabalhar. Ela vestia dinheiro, o segurança,
que sempre a acompanhava dentro e fora da faculdade, expondo ainda mais
que os dígitos em sua conta eram suficientes para uma vida muito cômoda.
Graças a papai, sabia que seu marido era advogado, conhecido por livrar
pessoas não tão boas de erros que, com certeza, haviam cometido. Eu me
perguntava se o dinheiro vinha da família da loira, ou era todo dos crimes
que o homem mais velho vivia para defender.
Independente do ocorrido, ali estava o motivo da minha salvação. Por
mais que não tivesse nada contra a professora, agradecia por seja lá qual
fosse o imprevisto que a tivesse feito tirar algumas semanas de folga.
— O jornal diz que foi um acidente, mas um passarinho me contou
outra coisa. Com o trabalho que o marido dela fazia, dá pra assumir o pior.
Defendendo criminosos, andando com um monte de gente mal caráter, um
dia alguém ia querer matar o cara. — Ele foi morto? Tive a decência de me
sentir um pouco mal ao escutar aquilo, não querendo ser salva à custa do
sofrimento dos outros.
Mesmo assim, me virei curiosa em direção à voz: Pedro sempre sabia
de tudo que acontecia naquela faculdade, uma das vantagens de ser um
enxerido nato. O garoto pareceu ficar sem graça ao notar que eu ouvia a
fofoca reservada para seu grupinho seleto, voltando a se endireitar na
cadeira e encerrando o assunto.
Ainda estava terminando meu café quando a sala inteira pareceu imitar
o colega, o barulho do meu celular vibrando sobre a carteira sendo
ensurdecedor sem ninguém falando. Ao menos eu não tinha escolhido o
momento para fazer qualquer comentário infeliz. Uma vez por dia querendo
cavar um buraco até a Austrália era o suficiente.
A mensagem mostrava o nome de Djamila, e resolvi que checar a foto
enviada era mais seguro do que descobrir o motivo do silêncio, anormal
para aquela turma.
Poderia ter ficado sem saber.
“Quando lavar os cabelos e usar regata branca, lembra de prender a
juba ou usar sutiã.”
A foto tirada enquanto corria até os dois estampava meu erro, e senti o
rosto vermelho pela segunda vez na manhã. Olhei para baixo, a única
alternativa sendo me debruçar sobre a carteira e rezar para que o tecido
secasse até o final da aula.
Com uma ressaca fenomenal, aparência de filme de terror de baixo
orçamento, e tendo me envergonhado mais do que gostaria em uma quinta-
feira, tomei a última péssima escolha da manhã. Afirmei o clichê dos
clichês, o que nunca deveria ser nem mesmo pensado, o imã de todo o azar:
esse dia não tinha como ficar pior.
Meu estômago gelou quando reconheci o relógio que se movia para
cima e para baixo. Gelou mais quando vi uma caligrafia perfeita escrevendo
o nome que tinha escutado na Starbucks. E conseguiu ficar mais frio que o
inverno russo quando olhei para quem eu havia pagado um café, minutos
atrás.
Os olhos escuros mostravam que o reconhecimento era mútuo, o
homem dando um meio sorriso ao arquear as sobrancelhas e me observar
dos pés à cabeça. A caneta que a mão tatuada segurava foi tampada e posta
sobre a mesa, ele virando o corpo para mim.
Eu não precisava ler o que estava escrito para saber o cargo da pessoa
que quase mandei para o inferno. Eu não queria, e amaldiçoei minha sorte,
sempre acompanhada de uma dose muito maior de azar.
Mas mesmo não querendo, meus olhos saíram dos dele e foram para o
que tinha sido escrito em tinta azul, o destino me provando mais uma vez o
quão maldita era aquela cor.
Nickolay DeLucca, professor substituto.

Eram as coisas mais simples que me faziam quebrar.


Puxei o ar, o cheiro de álcool e cigarro impregnando o ambiente
fechado. Talvez exagerasse ao usar a palavra quebrar. Conhecia bem demais
pessoas quebradas. Pessoas quebradas mal se levantavam da cama,
enquanto eu estava de pé desde antes das sete da manhã.
Apertei mais os dedos ao redor do copo de vidro, o whisky com gelo
me servindo de anestésico mental e físico. Era quase meia noite, e minha
mão direita ainda latejava pelos socos que não me renderam as informações
que buscava. Bebi mais um gole, o líquido amarelo tão ruim quanto meus
últimos dias. O Brasil era um eterno porre, eu querendo voltar para meu
país, comprar uma casa longe de tudo e todos e passar o resto da minha vida
de merda bebendo numa praia.
Era amargo saber que aquela nunca seria a minha realidade. Amava o
mar. Andava odiando pessoas.
Deveria ser mais forte, pensava ao virar o resto da bebida. Deveria me
espelhar mais em Matarazzo e sua sede de vingança, do que nos últimos
anos de meu pai. Definitivamente, não deveria estar colocando essa
quantidade de álcool para dentro, quando poderia conseguir coisas muito
mais eficazes para a dormência que desejava.
Mas Lorenzo me mataria se eu tocasse no que estava espalhado sobre a
mesa.
— Mais um. — Pararia na quarta dose, estabeleci. Só mais aquela, e eu
tinha certeza de que o copo voltava para minha mão bem menos cheio do
que deveria estar, cortesia do velho que me observava do outro lado do
camarote.
Já nos seus quase sessenta anos e fisicamente o oposto do que um dia
meu pai fora, Lorenzo Mantovanni era pior do que uma sombra. Ele era,
também, um dos homens mais inteligentes que conhecia, sua única burrice
sendo insistir tanto em casos perdidos como o meu.
Como esse velho ainda não havia se cansado de limpar minhas merdas
era um mistério. Eu nem era seu filho, só lhe causava problemas, e ali
estava ele, aturando as músicas que dizia odiar. Evitava pensar que
Mantovanni sabia o quão difícil tinha sido o dia de hoje, e era por tal
motivo que estava ali. Queria que a mágoa que me consumia não existisse,
queria não pensar com tanta amargura em meu pai, e ter espaço para aceitar
quem mostrava tanto querer o cargo. Hoje havia completado dezesseis anos
desde a última vez que vi Armando, e meu cérebro insistia em perguntar se
o homem teria orgulho do que se tornara seu filho caçula.
Voltei a atenção para a pista, decidindo que terminar a noite em
alguma cama era minha melhor opção. Corri os olhos pelos corpos que
dançavam, procurando a mulher usando o vestido mais fácil de tirar. A
última coisa que gostaria hoje era mais uma dificuldade, e a loira que me
observava de canto de olho parecia ser o menor problema que poderia
arranjar.
Sim, eu gostava de sexo. Quem não gosta? Foder de manhã fazia
milagres pelo meu humor, ainda mais quando o dia me prometia inferno,
como haviam sido todas as horas da última semana. Relaxar desse jeito à
noite espantava meus fantasmas melhor do que qualquer remédio para
dormir.
Tratava bem todas que paravam embaixo de mim, mas deixava claro
que nunca passaria de uma transa ao negar contato fora do quarto. Nunca
poderia passar disso, e eu sempre fazia um bom trabalho em afastá-las
sendo um completo babaca depois de gozar.
Então meu cérebro escolhia a loira, a mulher retribuindo meu interesse
de imediato com um sorriso longe de santo. Era irritante como meu coração
insistia em não se interessar pelo fácil.
Ela estava prestes a pagar sua comanda quando a notei, e me peguei
sorrindo enquanto estudava seus detalhes. O vestido branco colado marcava
bem os seios pequenos, e o batom vermelho me fazia imaginar seus lábios
em outro lugar que não o mastigado canudo de plástico. Os olhos
encontraram os meus e voltaram para o caixa, e a aparente falta de interesse
da sua parte foi o que bastou para minha decisão.
— A traga aqui — pedi a Matteo, apontando para onde a garota estava
sem sair do sofá.
Arregacei as mangas da camisa enquanto a observava decidir entre
pagar sua comanda ou vir até mim. Meu sorriso aumentou quando a
segunda opção foi a escolhida, o segurança da Famiglia[3] a guiando até a
entrada do camarote, eu ignorando o olhar curioso de Lorenzo.
Não era como se aquela fosse ser a primeira garota que acabava no
meu colo com ele presente, pensei, finalmente a olhando de perto. O canudo
tinha sido substituído por água, o plástico sendo manchado de vermelho.
Odiava vermelho, mas estava adorando ver a cor nos lábios que chupavam a
garrafa.
Os olhos cor de mel pareciam se divertir ao pararem em mim, eu só
agora notando que a observava sem falar nada por mais segundos do que o
necessário. Ela tirou a garrafa da boca e me deu um sorriso debochado, e eu
me perguntei por que nunca escolhia o fácil.
— Buonasera[4], dolcezza[5] — comecei, o apelido que lhe dei sem
pensar combinando com o rosto que, apesar da expressão de desdém, tinha
sua doçura. — Já vai?
Era divertido vê-las reagindo depois que eu as abordava. As mãos
brincavam com os cabelos, os quadris mexiam, e demorava menos de um
minuto para ter o troféu da noite sentado em cima de mim. A língua italiana
fazia milagres em São Paulo, assim como o dinheiro que não me importava
em gastar para deixá-las mais dóceis. Com a vida que eu levava, dinheiro
não era um problema.
Com a vida que eu levava, também era inteligente lembrar que sempre
existia uma exceção.
— Que merda de cantada foi essa? — E eu tinha acabado de encontrar
a minha.
A garota, sem dúvida, era brava. Deveria ser italiana, por mais que não
desse para ver uma curva no corpo, magro demais para o meu gosto. Eu
gostava de curvas, e a aparente recusa me fez amaldiçoar ainda mais ter
escolhido o oposto de minhas preferências.
— Se é que isso foi uma. Por que eu sempre acabo com esse tipo? —
Ela cruzando os braços e me olhando com desinteresse reforçava o quanto
deveria escutar mais meu cérebro, ao invés de deixar minha vontade tomar
decisões.
Esfreguei os olhos, querendo responder que o que disse era uma frase
que funcionava mais do que eu mesmo acreditava, mas sabendo que não me
daria o trabalho de discutir. Era meia noite e meia de uma quarta, e precisar
estar de pé antes das sete me fazia voltar os olhos para minha primeira
escolha.
A loira já não estava mais lá.
Cazzo[6]. Por que havia aceitado repor Ferretti? Ter uma vida normal
deixou de ser um sonho fazia muito tempo, eu não tendo mais qualquer
motivo para fingir o que não era. Ocupar meus poucos momentos de
descanso como professor soava idiota, e me levantava do sofá azul-escuro
arrependido por todas as péssimas escolhas tomadas nos últimos anos.
— Sinto muito por ter desperdiçado seu tempo. — Deixei meu
péssimo humor tomar conta, decidindo que dormir seria a melhor escolha
da noite.
Franzi o cenho quando escutei o som que não esperava: ela estava
rindo?
— E os homens têm a coragem de dizer que nós mulheres somos
dramáticas. — A garota sacudiu a cabeça antes de voltar a me olhar. —
Você não vai desperdiçar meu tempo, italiano.
As palavras seguraram minha atenção do mesmo jeito que a mão
pequena se fechou na gola da minha camisa. De canto de olho, notei Matteo
dar um passo à frente, o segurança pronto para remover a pessoa que
achava poder fazer algo contra mim, e era minha vez de rir.
Bem menor do que eu, a cabeça mal alcançando meus ombros, essa
garota minúscula não conseguiria muito mais que um tapa. Por mais que
detestasse quando elas tentavam me tocar com um, estava curioso para ver
até onde a morena iria, eu ainda querendo saber o que tinha me atraído nela.
Não esperava ser puxado para seus lábios, sua língua me fazendo
sentir o gosto de vodca e framboesa. Receber uma carícia por cima do jeans
mostrou que minha escolha não tinha sido tão errada, e ignorei a mão nem
um pouco gentil que se fechou nos meus cabelos. Ela não era delicada, e eu
a queria ainda mais ao perceber isso. As que só buscavam sexo eram muito
mais fáceis de lidar depois.
Fechei os olhos, as unhas arranhando minha virilha me desafiando a
fodê-la ali mesmo. Por um segundo, considerei a ideia de levá-la para o sofá
mais distante. As pessoas não se importavam com o que acontecia num
clube noturno, e todo o whisky que havia colocado para dentro afirmava
que ninguém se atreveria a nos incomodar. O hotel que tinha em mente
estava longe demais, os dez minutos que levaríamos para chegar na suíte
parecendo eternos com ela mordiscando meu queixo.
A agarrando pelas nádegas, pressionava meu corpo contra o dela,
deixando óbvio o quanto a desejava muito menos vestida. Sim, eu queria
muito jogá-la no sofá e precisava nos tirar dali, seu toque combinado com o
cheiro doce acabando com toda a minha coerência.
— Vamos para...
— O banheiro serve — mandou, a mão desaparecendo dentro da
minha calça assim que a ordem foi dada, eu pronto para fazer qualquer
coisa que me fosse pedido. — O que você tá esperando pra me levar? —
Ninguém além de Matarazzo tinha tal poder, e querer obedecê-la só me
deixava mais duro.
Olhei para a saída, considerando quantos minutos demoraríamos até
meu carro, apenas para ter o rosto virado de volta para o dela, os olhos cor
de mel se estreitando. Sentindo seus dentes no meu lábio inferior, decidi
que quem tinha nos braços era mais impaciente que eu, e o banheiro teria
que bastar.
Abençoado seja o arquiteto que lançou a ideia de espaços individuais
para aquele clube noturno.
Do mesmo jeito que havia sido puxado para seus lábios, fui arrastado
para dentro das quatro paredes. O lugar era grande o suficiente para o que
faríamos, o espelho sendo a adição perfeita. Os azulejos nas costas eram a
única parte fria, a garota abrindo o botão do meu jeans antes da mão agarrar
meu pau com vontade, e era minha vez de morder os lábios que me eram
oferecidos. A filha da mãe tinha um gosto delicioso, e abaixando a parte de
cima do vestido, desejei saber se ela inteira seria doce.
Deveria ser inteira tão doce quanto o que eu provava, os seios
pequenos cabendo perfeitamente na minha boca. A pele era como seda, a
mão que me tirava o fôlego aumentando a velocidade quando meus dentes
mordiscaram um dos bicos enrijecidos. Aquela voz macia era como música,
a garota se desfazendo e pedindo mais comigo torturando a pele sensível.
Afastei suas pernas com um dos joelhos, a ouvindo arfar quando passei
os dedos em cima da calcinha encharcada. Ela se esfregando contra eles me
hipnotizava, a forma que um simples roçar a fazia reagir bem demais me
fazendo queimar.
— Tão pronta para eu te foder, dolcezza — sussurrei contra seu
pescoço, abrindo meu zíper e achando a camisinha no bolso de trás.
Não esperava ser interrompido, o pacote indo parar na pia. Por um
instante, considerei a possibilidade: fazia quanto tempo que eu não metia
sem o maldito plástico? Ela abaixou minha cueca, e dei um meio sorriso ao
achar surpresa nos olhos mel, eu subindo com pressa o vestido colado,
pronto para debruçá-la na pia.
O não foi explicado quando a vi se ajoelhar, os lábios vermelhos se
fechando na ponta do meu pau e me tirando a capacidade de raciocínio.
Expirei forte, seu calor impedindo o silêncio. A língua que passava ao redor
da cabeça testava meu controle, a boca quente que me envolvia sugando
com uma suavidade desesperadora.
Pude sentir o gemido vibrar por toda minha extensão, as pernas
fraquejando me fazendo espalmar as mãos na porta para me manter de pé.
Ela chupava bem demais, molhando e manchando a pele com o batom ao
alcançar a base. Precisei me forçar a ficar parado quando os olhos
delineados acharam os meus, a garota me engolindo com vontade sendo
uma visão de tirar o fôlego.
— Eu vou gozar assim, bella[7] — avisei rouco, mal achando alguma
voz.
As unhas cravaram nas minhas nádegas, a boca sugando mais forte, e o
que ganhava agora era, sem dúvida, a melhor chupada de toda a vida. A
ouvi arfar quando agarrei seus cabelos, parar o boquete sendo a pior tortura
da semana. Nos debrucei na pia, grunhindo ao afastar sua calcinha e
comprovar o quanto aquela boceta estava molhada.
Ela agarrando a torneira e empinando a bunda era uma visão e tanto.
Pressionei a cabeça na sua entrada, a garota se esfregando tornando
impossível eu ser gentil: precisava me enterrar nela como necessitava de
oxigênio, e só ouvi incentivos quando o fiz. O jeito que a sentia contrair ao
redor do meu pau levava embora toda a minha delicadeza, o barulho de pele
contra pele competindo com nossos gemidos.
Nos puxei para cima, e nosso reflexo não me deixava ir devagar. A voz
chorosa mandando eu ir mais rápido também não ajudava, o conjunto
despertando um novo descontrole em mim. Não, não dava para ser gentil, a
tensão que queria descarregar desde o começo da noite fazendo eu fodê-la
como um animal.
Se não parasse, iria acabar quebrando a garota ou o cazzo da pia.
Amaldiçoei a pressa que nos negou um quarto e respirei fundo, recebendo
um olhar irritado ao sair de dentro dela.
— Tá com dó, italiano? — A pergunta era uma mistura de frustração
com impaciência nunca vista nas mulheres que paravam na minha cama, e
fiquei tentado a mandar todo o resto da minha pouca cautela para o inferno
e testar a resistência dela e daquele material.
Ignorei a provocação e fechei a tampa do vaso antes de me sentar, a
garota não reclamando mais quando a trouxe para o meu colo. Tinha um
novo brilho em seus olhos, ela me dando um sorriso safado ao mais uma
vez me puxar pelos cabelos.
— Quer dizer que você gosta de ser mandado? — sussurrou antes de
lamber o lóbulo da minha orelha, a respiração tão perto fazendo meus pelos
arrepiarem. A outra mão deslizava com uma paciência irritante pelo meu
abdômen, eu precisando da atenção muito mais embaixo. — Que gosta
quando tiram o seu controle? Por isso me quer por cima?
O sorriso só aumentou ao ver as reações que arrancava de mim. Filha
da mãe provocadora, e era minha vez de me esfregar contra seus dedos para
ganhar qualquer alívio, meu corpo implorando pelo seu toque.
— Quer que eu mande em você? — A voz era tão deliciosa quanto a
mão que se fechava ao meu redor, o batom manchando meu queixo.
— Por que não para de falar e descobre?
Aprendi ali que gostava das suas respostas. A mordida que ganhei no
pescoço deixaria uma marca, mas ela poderia deixar quantas quisesse me
cavalgando daquele jeito. Lábios ofegantes acharam os meus, a garota
provando que beijava tão bem quanto rebolava.
Dava para ouvir o barulho de sexo, mesmo com a música alta do lado
de fora, mesmo com nossas bocas tentando abafá-los. Precisava parar e
pegar a merda da camisinha, mas o jeito que ela se enterrava em mim
tornava aquilo impossível. Nem tinha notado a camisa aberta, as unhas
curtas arranhando minhas tatuagens deixando linhas vermelhas, ela me
fazendo adorar aquela cor depois de tanto tempo de ódio.
Não fodia beijando, mas não queria tirar os lábios dos dela. O gosto
era melhor que whisky, e o cheiro trazia mais conforto que nicotina. Os
olhos mel acharam os meus quando segurei seu rosto, e ainda não entendia
o que estava fazendo eu ter a melhor transa da vida no banheiro de um
clube noturno.
Ah, que boceta gostosa, e nem sabia o nome dessa mulher — mulher,
porque garotas não fodem desse jeito. Ela jogou a cabeça para trás quando a
puxei pelos quadris, precisando me sentir por inteiro dentro dela como
estive em sua boca. O choro rouco veio junto com os espasmos que
apertavam ainda mais meu pau, as mãos trêmulas cravando outra vez as
unhas na minha pele, a pequena dor me fazendo esquecer do que não
usávamos e gozar com ela. Não me importei em ser silencioso, deixando
qualquer um que passasse pelo corredor sabendo o que acontecia do lado de
dentro.
Quando voltei a raciocinar, minha boca procurou sem pensar o doce da
vermelha. Mal conseguia me mexer, efeito colateral de uma boa foda, e
talvez fosse aquilo que me fizesse não querer deixá-la ir. Ainda ofegante,
meus dedos exploraram os lábios borrados, seu queixo, minha mão
ridiculamente grande contra o rosto delicado. A pele que tocava também era
como seda, e eu queria descobrir se a que permanecia coberta tinha a
mesma textura.
— Dolcezza, vem comigo para casa — pedi, tão certo de que receberia
um sim. — Minha cama é bem mais divertida que um banheiro.
Foda-se a aula que precisaria dar amanhã, aquela sendo a única
responsabilidade da qual poderia fugir sem que houvesse consequências.
Passar o dia com a morena na cama me traria muito mais normalidade do
que lecionar para uma classe que não deveria saber calar a boca. O jeito que
ela me olhava me dava todo o normal que eu queria, sem nem precisar
pedir.
Sorri, mordendo a almofada do dedo indicador posto contra meus
lábios. Tinha algo naqueles olhos que fazia sorrir ser fácil demais. Era por
eles pararem tão suaves num rosto que vivia coberto de sangue?
Não deveria querer descobrir o motivo, especialmente quando o desejo
de ficar não era recíproco. A mulher se levantou segundos depois de
processar o que ouviu, endireitou o vestido e abriu a porta, saindo sem
qualquer palavra. Meu sorriso foi embora com ela, a pele melada me
lembrando da merda que tinha acabado de fazer, a camisinha fechada só me
confirmando o quanto havia sido irresponsável.
E mal usamos o espelho.
Grunhi, passando as mãos pelos cabelos antes de levantar e fechar o
jeans e a camisa. Eu cheirava a sexo e seu perfume, e por um instante,
considerei ir atrás da garota. Fui impedido ao encontrar Lorenzo assim que
saí do banheiro, o homem grisalho me olhando pela primeira vez em muito
tempo sem reprovação, mas surpreso.
Ele deixou os olhos claros examinarem mais de perto meu rosto antes
de começar a falar.
— Bem, melhor sexo do que...
— Hoje não, Mantovanni — o impedi de terminar, ignorando a
atenção que ganhava de duas loiras ao passar pelo corredor estreito.
— A ragazza[8] saiu correndo. — Respirei fundo pela terceira vez em
muito pouco tempo, bufando ao não conseguir a calma que queria depois de
contar até dez. A última coisa que desejava era conversar sobre minha vida
sexual com o homem que tentava ser meu pai. — Nickolay...
— Não é como se eu tivesse feito algo que ela não quisesse. — O
contrário era mais verdadeiro, ela negando meu convite sem nem se dar ao
trabalho de me responder.
Quando tinha sido a última vez que havia sido rejeitado?
Matteo veio para nosso lado assim que paramos perto de um dos
caixas. Coloquei as mãos nos bolsos, não sentindo mais qualquer traço de
bom humor ao não achar o rosto que meus olhos insistiam em procurar.
— A garota queria sexo, eu só queria sexo, e como disse — continuei,
passando reto pela fila de pessoas que esperavam para pagar. — Melhor
sexo, do que seja lá o que estiver insinuando.
Descemos sem mais palavras, eu sem vontade de discutir tópicos que
minha mente, ainda dopada pelo cheiro de framboesa, considerava trivial.
Estava exausto, e quase não tomei o banho que sabia precisar, não me
importando em secar os cabelos e molhando o travesseiro ao me deitar na
cama.
Mas por melhor que tivesse sido o sexo, o sono demorou para vir, a
morena que só tinha um apelido me deixando acordado demais. Eu fodia,
mas ao menos sabia o nome, e no mínimo, a mulher em cima de mim sabia
o de quem tinha que gritar. E eu usava a merda de uma camisinha, ao invés
de deixar o pacote fechado. Aquele padrão não poderia se tornar meu novo
normal, e o pensamento de ter transformado minha melhor válvula de
escape num vício descontrolado mantinha meus olhos abertos.
Após dormir três horas, estava imprestável. O roxo no pescoço era
uma lembrança constante da mulher que meu cérebro insistia em lembrar, e
eu optei por não me barbear e passar dez minutos a mais na cama,
arrependido das escolhas erradas e pouco tempo de sono.
Engoli um expresso duplo antes mesmo de tomar água, sabendo que
precisaria de muito mais cafeína ao sair da Mercedes. Passei na cafeteria
mais perto da faculdade, descobrindo tarde demais ter esquecido a carteira
no carro.
Até nisso a maldita havia me afetado, eu raramente me separando do
que carregava dentro do item de couro preto. Não fazia ideia de como
passaria por um professor justo hoje, nunca tendo dado uma aula em toda a
vida, assim como não conseguia esquecer do gosto doce que aquela boca
tinha.
Aquela boca, que se oferecia para me pagar um café, enquanto
mantinha os olhos no atendente. Que me revelava seu nome, para depois
chegar muito perto de me mandar à merda. Aquela boca, que pertencia a
mulher que me fez gozar forte o suficiente para perder a visão, e agora
falava comigo como se eu fosse um completo estranho.
Ela me tratava como se noite passada não tivesse existido, e minha
parte racional gritava que tudo que deveria fazer era esquecer a madrugada
de ontem. Eu ignorava aquela parte e só queria tocar os lábios, não mais
vermelhos, mas igualmente convidativos, outra vez.
— Grazie pelo café. — A filha da mãe era linda até sem maquiagem.
— Lana.

Com um ar intimidador e culpado por fazer meu cérebro parar de


funcionar, o homem que levantava as mangas da camisa branca e expunha
inúmeras tatuagens não era, exatamente, o modelo padrão de professor.
Sem o terno, dava para ver o quanto a criatura deveria malhar dia sim e
outro também, coisa muito mais frequente de se notar em um playboyzinho
desocupado ou um CEO pregador de mindfulness[9] e produtividade. Os
olhos pareciam mais velhos do que ele aparentava ser, e menos de uma hora
atrás, eu quase o mandei enfiar o Advil no cu.
Minha boca andava de parabéns.
— Sou o novo professor de Inteligência Competitiva — Nickolay
confirmou o que tinha escrito, a voz grossa, o sotaque europeu carregado.
— A professora Ferretti precisou se ausentar por motivos pessoais. Vou
substituí-la até o final do semestre.
O observei cruzar os braços, explicando algo referente ao
cancelamento da prova, mas minha mente já exausta acabou de derreter
quando decidiu se perder nas tatuagens. Eu poderia olhar para elas o dia
inteiro, meu cérebro feliz em se ocupar decifrando cada uma das marcas de
tinta que reconhecia nas mãos e antebraços do gringo.
Era irritante como minha atenção não conseguia sair dele, e não
precisava me virar para saber que uma grande parte da turma estava no
mesmo barco que eu. Senti o coração acelerar quando o vi puxar uma
cadeira, escolhendo sentar-se ao meu lado, numa distância muito mais
próxima da determinada confortável pela sociedade.
Nickolay tinha um cheiro cítrico que parecia familiar, e me perguntei
se seu gosto poderia ser tão bom quanto o perfume. O chupão vermelho no
pescoço dizia que alguém tinha feito tal descoberta noite passada, ele
parecendo mostrar com orgulho a marca de uma boa noite de sexo.
Mas por melhor que pudesse ser o gosto, sentia de longe o cheiro de
perigo. Um homem desses, com uma voz dessas, conseguia te dobrar e
arrancar muito mais do que sua roupa, e eu estava bem sossegada de passar
por um problema tão grande outra vez. Já colecionava problemas demais
para querer arranjar mais um, as noites de encontros casuais bem mais
produtivas do que qualquer coisa fixa.
Só que olhar para ele era mais viciante do que as drogas que andava
provando, os braços cruzados enchendo ainda mais as mangas da camisa.
Eu deveria ter transado ontem à noite, ao invés de ter bebido até apagar. Eu
deveria ter acabado na cama de alguém, ao invés de aparecer nessa aula
para estudar a morte estampada no antebraço direito do professor. Era
macabro, e ao mesmo tempo, uma das tatuagens mais lindas que já vira, a
foice descendo até o pulso, asas sem cor saindo de debaixo do manto
escuro.
E foi absorvendo cada detalhe do desenho que passei os próximos
quarenta e cinco minutos. Sem fazer uma anotação no quadro, o professor
discorreu sobre a matéria usando de uma confiança invejável. Não bastava
ser gostoso — nunca bastava — o filho da mãe mostrava que inteligência
fazia parte do pacote.
Doeu lembrar que esses eram os piores, mas a dor deixou os minutos
finais suportáveis. Era bom recordar do meu último ano para tirar da cabeça
pensamentos sobre o homem que, mais vezes que o necessário, deixou os
olhos em mim.
Só podia ser culpa da regata branca, e senti meu rosto queimar, justo
no segundo que as írises escuras me acharam. Eu odiava minha vida.
— Continuamos na próxima semana. — E eu nunca mais me sentaria
na primeira fileira.
O observei descruzar os braços e apoiar um dos cotovelos na minha
carteira, e me perguntei se era eu a implicante, ou os italianos simplesmente
não entendiam o conceito de espaço pessoal. Ele permanecia sentado ao
meu lado, e não conseguiria me levantar sem tocá-lo por acidente, quanto
mais não expor o que estava tanto tentando esconder. Meus cabelos tinham
secado, mas o tecido úmido ainda mostrava mais detalhes do que me sentia
confortável em revelar para meu professor.
Suspirei quando mais um minuto se passou com ele imóvel. Era
arriscar, ou passar o resto da vida sentada, já que o homem não parecia ter
planos de sair dali. Mandando para o inferno qualquer modéstia que ainda
restava, agarrei a mochila largada no chão e me levantei da cadeira. E daí
que vestia uma regata branca molhada? Não era como se tivesse vergonha
do que aparecia. Meu cada vez menor lado positivo dizia que eu até poderia
conseguir uns bons pontos mostrando o que ele talvez estivesse esperando
ver.
Estava pronta para voar dali quando, pela segunda vez, a mesma mão
que levava o relógio e a tatuagem de caveira colocava algo na frente dos
meus olhos.
Aquilo era uma nota de cem?
— Pelos seus serviços — Nickolay explicou quando o olhei como se
ele fosse louco, não sabendo se seria melhor empurrar a mão para longe, ou
cruzar os braços sobre os seios que o professor parecia confortável demais
em olhar.
Meus serviços?
Talvez devesse ter escolhido a segunda opção, assim como deveria ter
ficado quieta e sumido dali. Eu já tinha sido grossa o suficiente por um dia
com quem seria o responsável por corrigir minhas provas. Continuar nas
graças dele seria o mais esperto a ser feito.
— Me traz um café da próxima vez, é absurdo me pagar tudo isso pelo
que comprei pra você — disse, porque nunca sabia a hora de calar a minha
boca.
— Agora está me chamando para sair, Alana? — Por que aquele tipo
de homem sempre vinha com uma voz tão sexy? E como ele sabia meu
nome? — É Alana, vero[10]? Não existe Lana aqui. — E ele apontou para a
lista em seu colo.
Meus pés estavam quase voltando a funcionar quando Nickolay se
levantou, expondo nossa enorme diferença de altura. Meu rosto batia no seu
peito, e eu esperei a pontada tão conhecida sempre que pequenos detalhes
como aquele me traziam as piores memórias.
Quanto maior a altura, maior a queda. A queda da pessoa menor, no
meu caso. Uma queda que havia machucado demais para eu não me
incomodar com os dedos que roçavam na pele exposta do meu ombro.
Ah, só me faltava essa.
— Seta[11]. — Ainda dava para sentir o cheiro de café nele, e eu ouvia
meu coração bater mais forte do que deveria. Puxei uma respiração curta
antes de desviar da caveira para seus olhos, e as batidas dobraram de
velocidade. — Non capisco cosa ho fatto di sbagliato[12]. — Havia algo
assustadoramente familiar nas órbitas escuras, algo tão conhecido que fez
eu me encolher quando a mão chegou nos meus cabelos.
Minha reação não passou despercebida, o homem recuando como se eu
lhe queimasse. O caminho traçado pelos dedos ásperos ardia, e meu cérebro
tentava achar alguma tradução para as últimas palavras, non capisco[13] a
única coisa que meu italiano menos que básico entendia.
E como se tivesse transferido minha vontade de sumir dali para quem
estava na minha frente, Nickolay apressava-se para a saída sem mais
palavras, me deixando tão confusa quanto ele poderia ter dito estar.
Pareceu uma eternidade até minhas pernas resolverem funcionar outra
vez. Agradeci minha sorte limitada por ter aquela matéria apenas às
quintas-feiras, meu cérebro traíra ainda pensando sobre querer muito mais
do que só uma hora com o novo professor.
Porque, sendo bem sincera, dava para perder mais que um dia todo ali.
Cérebro masoquista. Sessenta minutos já era tortura o suficiente para
uma semana, ainda mais se todas as interações terminassem com qualquer
coisa em italiano e suas mãos tatuadas em mim. Arrumei os cabelos na
frente da regata, escondendo toda a transparência e empurrando os desenhos
para longe dos pensamentos.
— Fome? — Carlos perguntou quando o encontrei no corredor.
— Acho que se comer qualquer coisa sólida, eu vou morrer — optei
pela sinceridade, assumindo o que minha cara com certeza contava: estava
com uma das maiores ressacas da vida.
Mas mesmo morrendo, meu estômago resolveu escolher justo agora
para querer ser ouvido.
— Smoothie? — Não tive como negar, o ronco denunciando as tantas
horas que eu não colocava nada de nutritivo boca adentro. — Vamos pegar
um de abacaxi com água de coco, é minha arma secreta pra manhãs como
essa sua.
— Cadê a Mila? — Arrumei a mochila nas costas, o sol que voltava a
bater no rosto ao pisarmos na avenida Paulista me fazendo cobrir os olhos.
Abençoados sejam os óculos escuros, pensei, tirando o acessório do bolso
menor.
— Já tá pegando uma mesa lá na praça de alimentação do shopping. —
Perfeito: iríamos almoçar no inferno, o lugar barulhento demais para uma
cabeça pulsante.
No entanto, se fosse para ficar com aqueles dois, conseguiria me
manter acordada por mais algumas horas. Mesmo já prevendo que ganharia
um bom sermão de quem, antes de tudo acontecer, só usava palavras gentis
comigo, dava para enfrentar aquele tormento.
Talvez eu estivesse merecendo a rispidez, só que não admitiria em voz
alta nem por decreto. Tinha a certeza de que deveria dar uma folga para
meu fígado, do mesmo jeito que sabia que a preocupação que vinha de
meus amigos era muito maior que a braveza demonstrada por Djamila. Eles
não sabiam, afinal, o quanto me manter normal era difícil. Ficar sóbria doía
física e mentalmente, pensar machucando muito mais do que o álcool que
andava me destruindo.
— Ela tá muito puta? — Precisava me preparar para o que iria passar
meu almoço escutando.
Naquela quinta, foi a primeira vez que o último integrante do nosso
trio optou por ficar quieto.
— Seu silêncio nunca é coisa boa, Carlinhos.
Assim que o olhei, soube que a bronca viria muito antes de chegar no
shopping.
— Pipoca, cê sabe que a gente gosta de você, não sabe? — Nada bom
começava assim.
"Você sabe que eu te amo, não sabe?"
— Eu te amo como se fosse seu irmão. A gente só fala o que fala pro
seu bem, Lana.
"Eu faço isso pro seu bem!"
Eu queria vomitar.
— E eu sei que, lá no fundo, você sabe que o que tá fazendo não é
saudável. Não desse jeito, não todo santo dia chegando com essa cara de
morte — ele apontou o que eu já sabia. — A Mila tá preocupada contigo, e
eu tenho que te falar que também tô ficando. É bom farrear, inclusive
adoro! — E me rasgou mais um pouco por dentro ver preocupação genuína
nos olhos claros. — Só que o jeito que cê tá farreando...
— É só uma ressaca. — Só uma ressaca, e tinha uma bola na minha
garganta.
— Não Lana, não é só uma ressaca. Assim como não é só uma festa,
nem é só uma balinha que você tomou...
— Carlos, eu só tomei vodca! — falei, alto o suficiente para atrair a
atenção da avenida inteira para nós.
Naquela manhã, minha explosão não funcionou para o assunto acabar.
— Ontem! E sábado, quando eu tava com o Leo e você ligou louca às
quatro da manhã? — Eu tinha ligado para ele no sábado? — Era só vodca?
— Era sábado! — E aquela minha desculpa soava como uma piada.
— Quem tava contigo?
Respirei fundo, fechando a cara: eu não fazia ideia de quem estava
comigo sábado. Não que isso tenha deixado a noite menos divertida. Ao
menos, era o mais próximo de diversão que conseguia chegar, beber até
esquecer que precisava pensar funcionando como mágica para colocar um
sorriso nos meus lábios.
Sentia falta de sorrir sem precisar estar bêbada.
— Quem acordou na sua cama? Você conhecia? Sabia o nome, pelo
menos?
— Inacreditável! — Minha voz continuava alta, eu não dando a
mínima para toda a atenção que ganhava dos que passavam por nós. —
Você tá tentando me envergonhar por fazer sexo casual? Amigo, quem é
você pra isso? — perguntei, franzindo a testa e esperando várias respostas,
menos a que veio.
— Eu sou o cara que já deu pra geral, mas se a bala é nova eu chupo
com pacote pra não pegar clamídia!
Bem no meio do peito, tirando a casca da ferida e jogando álcool. Ele
sabia a merda que tinha falado antes de terminar a última sílaba.
— Lana, eu não quis...
— Preferia ter escutado isso da Mila do que de você — respondi com a
mesma aspereza que encontrava em Djamila, tirando o celular do bolso,
pronta para chamar um Uber.
Sem bateria. Considerei parar um táxi, até ver o trânsito que estava na
avenida, e o quanto Carlos poderia continuar me enchendo durante o tempo
que levaria para conseguir um. Pior dia para precisar pegar o metrô de
volta, ao invés de dirigir para casa.
— E eu preferia não estar te falando isso, mas você tá precisando
ouvir! — o loiro retrucou, e era quase engraçado como ele continuou
andando, provavelmente achando que o smoothie ainda estava de pé. —
Lana, para com isso, volta aqui!
Nem fodendo, pensei enquanto descia apressada as escadas da estação
Trianon. Sermões eram aturáveis, agora me lembrar de qualquer coisa
referente aos meus anos perdidos era pedir para morrer. Agradeci o trem
vazio e me encostei em uma das janelas, mantendo o rosto coberto pelos
óculos escuros mesmo com o sol longe.
Não era como se a clamídia tivesse vindo de uma das festas. A dor de
garganta e o xixi que parecia sair com molho de pimenta vieram meses
antes delas sequer começarem. Meses. Como pude ser tão burra?
Bem, eu não era mais burra agora. Não era óbvio para ninguém que
parava na minha cama que eu tomava pílula. Lógico que os caras que
acabavam no meu apartamento usavam proteção, claro que eu não daria
para um estranho sem camisinha. Saí da estação com aquele pensamento,
andando mal-humorada em direção ao prédio e amaldiçoando como minha
sorte nunca vinha de graça.
Eu me livrava de uma prova, apenas para ser jogada de volta na
realidade da qual buscava tanto escapar. Era ridícula a superproteção que
vinha dos dois agora, eu tendo precisado dela muito antes. Andei com
passos rápidos até o elevador, e já estava irritada o suficiente para não
chorar quando entrei no apartamento. Pegando o primeiro copo de água do
dia, abri a porta da geladeira enquanto forçava as preocupações de todos
para bem longe.
Vodca, Coca-Cola, e sobras do chinês que, com sorte, eram de sábado
passado. Abri a caixa de papel, decidindo que o yakissoba vegetariano era
bom o bastante para ser meu almoço, eu querendo colocar qualquer coisa no
estômago antes de voltar para o lugar do qual nem deveria ter saído.
Mas algo não parecia certo. Minhas ressacas geralmente acabavam na
metade do dia, e já eram quase duas da tarde. Eu não deveria estar tão
enjoada, assim como meu corpo não era para estar tão sensível. Havia
bebido tanto assim?
A primeira dose tinha sido antes das dez, lembrei ao abandonar a
comida fria ao lado da TV. Encontrei as mesmas garotas que sempre
caçavam comigo os melhores camarotes, e decidimos ir para o novo clube
que havia aberto na Consolação. Entramos, pegamos uma bebida, e, por
mais que forçasse meu cérebro, as memórias paravam ali. Precisava parar
de beber daquele jeito, pensei ao plugar o celular no carregador.
Deveria ter alguma coisa na galeria de fotos, eu bêbada sempre
querendo bancar a fotógrafa. Esvaziei mais um copo de água, o eletrônico
com bateria o suficiente para ser ligado me mostrando o último registro que
havia da noite passada: meus lábios deixando uma marca de batom
vermelho numa garrafa de Absolut.
As notificações avisavam que tinha postado a mesma imagem no
Instagram depois de meses sem qualquer atualização, e me perguntava o
porquê da vontade de compartilhar aquilo. Minha mãe iria me destruir com
mais perguntas no almoço de domingo, tinha certeza, ela sendo uma das
pessoas que haviam comentado na foto com um par de olhos.
Me joguei na cama, segurando o celular em cima do meu rosto
enquanto tentava descobrir mais alguma coisa sobre a noite passada. Quatro
ligações para Djamila, ela tendo atendido a última, feita depois das onze.
Explicado o motivo da minha amiga estar puta, eu provavelmente a
acordando com voz de bêbada justo na noite em que havia prometido
sossegar a bunda no sofá.
Foda-se, não iria me martirizar pelo que já estava feito. Djamila iria
me olhar torto por mais uma semana, mamãe o faria com dó como da última
vez, mas no final, eu viveria. Tinha me mantido viva até agora, afinal.
Olhares não tinham o poder de me matar.
Abandonei o celular, indo pegar mais um copo de água e considerando
fazer um macarrão instantâneo. A comida gelada não tinha a melhor das
aparências, e a última coisa que meu corpo precisava era ingerir algo
estragado. Eu já fazia o maior dos estragos com toda a bebida que
consumia, e estava me convencendo que o que sentia era um princípio de
resfriado. Achei um antigripal na caixa de remédios que guardava no
banheiro, engolindo-o com a água da pia.
Aquilo deveria servir para eu me sentir pelo menos um pouco melhor.
Evitei o espelho, decidindo que uma casa mais arrumada também poderia
colaborar para meu bem-estar, e abaixei para pegar as roupas que havia
abandonado no chão do banheiro no começo da manhã.
E meu estômago gelou pela segunda vez no dia.
Pense, Alana. Uma dose de vodca, então entramos no clube. Tinha
uma foto minha tirada antes das onze, sem memórias daquilo. Ligações para
quem ainda me atrevia a chamar de melhor amiga, que eu só sabia ter feito
pelo registro de chamadas recentes. Eu acordei sozinha, e a porta estava
trancada, a chave do lado de dentro.
Não tinha transado com ninguém, eu lembraria se tivesse transado com
alguém. Por mais que estivesse abraçando uma garrafa de puro álcool na
foto, teria no mínimo usado uma camisinha. Depois de Thobias, era
automático usar a merda de uma camisinha, por mais bêbada que estivesse.
Eu não podia estar ficando tão descuidada.
Mas a marca vermelha que só agora via no seio me falava diferente.
Enfim fazia sentido a sensibilidade que sentia pelo corpo, a leve ardência no
meio das pernas me falando que o sexo havia passado longe de ser delicado.
E o que eu conseguia ver já seco na minha calcinha só confirmava que,
além de eu ter sido uma idiota noite passada, alguém havia sido tão babaca
quanto.

Por mais que soubesse que meu foco deveria ser outro, as cenas da
última noite se repetiam como um filme irritante na minha cabeça. Os
lábios vermelhos me engolindo, as mãos pequenas agarrando meus cabelos,
ela tremendo, rebolando no meu colo.
Cazzo, meu corpo respondia apenas com a lembrança daquele toque, e
dirigi desconfortáveis cinquenta e cinco minutos até meu endereço
brasileiro. Justo eu, que havia jurado nunca repetir o erro de querer alguém
mais de uma vez, me deixava desejar o corpo pequeno e os olhos cor de
mel, como se Alana fosse minha nova droga.
Parei o carro, entrando na mansão fria que chamava de casa e seguindo
para a mesa de jantar em silêncio. Engolindo a carne com legumes e um
macarrão mole demais, admiti que sentia falta de Barbara e seus almoços, a
comida daquele país conseguindo me deixar com saudades da Itália.
Fui para o escritório, e ao me sentar na cadeira e tirar o laptop da bolsa
de couro, tive meu raciocínio outra vez consumido por ela. O ocorrido
daquela manhã voltava, Alana fingindo que me via pela primeira vez,
mesmo esfregando na minha cara a marca que deixei no seu seio.
Era enervante. A regata molhada parecia estar ali apenas para me
provocar, e por um momento, considerei a garota ter sido paga por algum
dos meus ditos amigos. Poderia ter dedo de Lorenzo ali, o velho insistindo
que acabaria me apaixonando por uma das tantas fodas usadas para
esquecer a vida que vivia fora da cama.
A opção fazia sentido. A mulher que conheci na noite passada teria, no
mínimo, me mandado para o inferno pela nota de cem que esfreguei na sua
cara, e não ignorado eu insinuando que ela era uma puttana[14]. Alana estava
sóbria demais para não se lembrar do feito, eu com certeza mais alcoolizado
do que quem me arrastou numa linha reta perfeita até o banheiro.
Mas chegou sexta-feira, e Mantovanni jurava não ter nem mesmo
falado com ela. A garota, sem dúvida, não esperava que a foda da noite
fosse virar seu professor, e o esquecimento era um jeito discreto de me falar
que nada mais aconteceria entre nós.
Não poder tê-la só me fazia querer ainda mais os lábios vermelhos.
Típico, eu perseguindo o impossível desde meu sexto aniversário.
Deveria me preocupar com Emília Ferretti, e não ficar obcecado pela
coincidência que havia sido encontrar quem fugira de mim numa cidade do
tamanho de São Paulo. Forçava-me a lembrar que ela era minha aluna, e por
mais que minha vida não fosse certa, gostaria de, ao menos ali, me manter
correto.
Gostaria ao menos de saber se estava limpa, repeti mais uma vez em
pensamento. A última vez que tinha esquecido da camisinha mal tinha
dezessete, e Alana não se mostrava colaborativa em conversar sobre a noite
de quarta. Eu me convencia ser essa a razão de estar mandando seu nome
para Souza, pedindo para o investigador levantar sua ficha. Bufei, sabendo
que não deveria ordenar prioridade para aquilo como havia feito.
Empurrei para longe a memória de sua língua passando ao meu redor,
voltando minha atenção para a caixa de entrada, encontrando mais e-mails
novos do que gostaria. Passaria o fim de semana revisando materiais e
corrigindo trabalhos, e tal coisa não me animava. Por que havia mesmo
aceitado o emprego de professor?
Ah, o fingimento de uma vida normal que Vincenzo Matarazzo tanto
encorajava ultimamente. Respirei fundo, encostando as costas na cadeira,
tentando não pensar que quem eu chamava de chefe andava incentivando as
coisas mais absurdas. Precisava achar o homem que havia sido corajoso o
suficiente para vender drogas em um dos nossos clubes, ao invés de brincar
de ser normal. Deveria me concentrar em descobrir mais informações sobre
o motivo que nos fazia travar uma guerra com os espanhóis, e não deixar
meus pensamentos voltarem outra e outra vez para framboesas. Framboesas
eram difíceis de se achar naquele país, e aquela era a nona desculpa que
inventava para me deixar pensar nela.
O resto da sexta foi tão produtivo quanto toda a quinta-feira, o fim de
semana seguindo o mesmo caminho. Era ridículo ver os assuntos pendentes
se acumulando enquanto tentava distrair a mente do que me consumia, eu
não querendo estar, mas me forçando a ir para um dos clubes que cuidava.
A danceteria se chamava Inferno, e eu estava no próprio ao reconhecer
o corpo magro que dançava junto de outras três garotas. Mesmo usando um
vestido preto e de cabelos presos, era impossível não identificar os lábios
finos, os olhos únicos insistindo em se manterem no rapaz que eu queria
expulsar do planeta.
Permanecer onde estava foi mais difícil do que forçar interesse na loira
que tocava meu braço, a música estourando nas caixas de som não me
deixando escutar a conversa unilateral que ela insistia em manter. O garoto
que gostaria de dar um fim não deveria ser muito mais alto do que Alana, e
meu cérebro repetir esse nome todas as horas dos meus dias era um grande
tormento. Preferia tê-la mantido como uma desconhecida, ainda mais
quando precisei fechar os olhos e imaginá-la para não me afastar dos lábios
no meu pescoço.
— O que foi? — Meus músculos tencionaram, a respiração quente
contra minha pele causando desconforto.
— Não gosto quando deixam marcas — respondi sem paciência, só
voltando a relaxar ao me afastar da boca insistente, passando os dedos pelos
cabelos ao ver uma mão que não era a minha soltando os castanhos dela.
— Então a última que passou por aqui não deve ter agradado — a voz
fina comentou, provavelmente achando o vergão deixado por Alana, e até
mesmo quem deveria me fazer esquecer conseguia me lembrar do meu
problema.
Forçando os olhos para longe de quem eu queria em cima de mim,
amaldiçoei o que ainda tinha no colo, por mais que fosse apenas sua
companhia que estivesse me impedindo de começar uma briga. Lorenzo
nunca pararia com os sermões caso eu não mantivesse meu bom
comportamento, e isso incluía tiros desnecessários.
Só quando o vi beijar a boca que considerava minha foi que levantei.
Precisava sair dali, e perguntei para quem eu nem mesmo sabia o nome se
gostaria de terminar a noite em outro lugar. O sorriso que recebi foi um sim,
e a língua passando pelos lábios deveria ter me feito querê-la, ao invés de
me fazer odiar a cor do batom que via. Barbara chamaria aquilo de bruxaria,
eu ansiando por conselhos da governanta italiana, ao invés dos que viriam
de Mantovanni.
Agradeci a pressa da mulher, as mãos hábeis nos livrando das roupas, a
loira me empurrando para a cama antes de parar no meio das minhas
pernas. As unhas esmaltadas arranhavam de leve minhas coxas, eu
fechando os olhos pela primeira vez ao receber um boquete. Eram as írises
cor de mel que imaginava me olhando de baixo, os lábios vermelhos ainda
muito vivos em minha memória.
E ali estava, novamente, meu problema. Precisava transar, precisava
foder até tirar da cabeça qualquer lembrança da pele macia e do cheiro de
framboesa, e até isso, Alana impedia. Não havia mais uma válvula de
escape que funcionasse, café e nicotina sendo muito fracos, a única que
desejava querendo distância. Era esperto da parte dela se manter longe, eu
sabendo que me apegar a uma só seria mais uma péssima escolha, por mais
que fosse a única vontade da minha parte irracional.
Queria sua boca me chupando, e forcei meus olhos a encararem quem
o fazia. Achei a camisinha no bolso traseiro da calça, tentando inutilmente
deixar meu interesse no momento de agora. Quem abria as pernas para mim
passava longe de ter um corpo normal, então por que cazzo eu precisava
focar em outra para continuar duro?
A mulher que eu beijava deixava um gosto amargo na boca, tão
diferente do doce que buscava sentir novamente. Fugi dos lábios grossos,
suas mãos me puxando de um jeito errado apenas por não ser o dela. Foi
necessário desviar dos olhos verdes e lembrar de todos os detalhes que
queria esquecer para conseguir acabar com a transa mais mecânica da
minha vida.
De olhos fechados, era possível ter o aroma de framboesa, os lábios da
cor da fruta me engolindo, as unhas curtas arranhando minhas tatuagens.
Alana nunca nem ao menos o falara, mas tê-la gemendo meu nome em
pensamento bastou, e mordi o lábio para não deixar o dela sair quando
gozei.
Deixei claro o quanto queria companhia trancando a porta do banheiro
do hotel, lembrando mais uma vez do que havíamos feito na quarta ao jogar
a camisinha usada no lixo. Já debaixo do chuveiro, amaldiçoava não ter
insistido em usar uma com ela, um filho na vida que levava sendo a última
coisa que precisava acontecer.
Ao menos ela sabia onde me encontrar, viesse um positivo.
Eu não deveria querer um positivo.
Merda.
Nunca conseguiria tirá-la de mim, vendo-a uma vez a cada sete dias.
Até mais, se a garota continuasse insistindo em frequentar os mesmos
lugares que eu. Sacudi a cabeça, deixando a água correr nas minhas costas,
meus músculos ainda tensos me provando o quanto sexo sem ela seria inútil
para relaxar.
Alana era fogo puro, e mesmo embaixo da água gelada, ainda sentia
seu calor me queimando. Eu queria chamá-la de minha, por mais não
recíproca que fosse a vontade. Provavelmente era aquele o motivo do meu
desejo anormal, eu não acostumado a ouvir negativas femininas. Seu não
iria me deixar louco, e sabia que não podia me dar ao luxo da loucura
novamente.
Estava acostumado a resolver situações muito mais complexas, e ainda
assim, não fazia ideia de como lidar com aquela. Repetia outra e outra vez
que era a dificuldade que me deixava queimando apenas com seu
pensamento, a negação, Alana não querendo minhas mãos em sua pele. A
pele era tão macia quanto sua boca, e eu lembrava da sua suavidade
enquanto gemia seu nome no banheiro.
Isso era ridículo. Tinha uma modelo me esperando na cama, e eu
escolhi bater uma punheta debaixo do chuveiro, pensando numa mulher
completamente fora do meu padrão. Era difícil admitir, e impossível adiar
mais a única conclusão coerente que minha mente me dava: eu estava
fodido.

Não tive o azar de encontrá-la antes de quinta-feira. Ao menos


conseguia concentração o suficiente ao aceitar que buscaria o difícil de ter,
os planos que fazia para me aproximar dela parecendo bem plausíveis em
minha mente.
Alana apareceu somente nos minutos finais. Os fios castanhos estavam
presos, o rosto sem maquiagem expondo olheiras fundas, eu pensando em
qual festa ela tinha se acabado na noite anterior. O jeans surrado parecia
grande demais, os seios mal enchendo a camiseta preta, e a garota testava
meu temperamento ao sair antes da aula acabar. Ela não daria chance
alguma para uma conversa, me mostrando, mais uma vez, o quanto queria
qualquer interação comigo.
Terminei apressado o que falava, me sentindo como o adolescente que
nunca fui ao pensar em correr atrás dela. Consegui um pouco do meu
controle de volta ao permanecer na sala até todos os alunos a deixarem,
forçando interesse nas mensagens que havia recebido durante a última hora.
“Achei que viesse me visitar, Nico.”
Pincei a base do nariz, os últimos dias me fazendo esquecer
completamente de quem estava no hospital. Substituía Emília Ferretti, mas
nem havia me dado o trabalho de passar em seu quarto.
Provavelmente por temer não sair dele tão cedo, pelo menos antes da
noite da bruxaria. Ao voltar sozinho para casa após a última madrugada
passada no clube, sabia que visitar minha colega de anos era mais seguro do
que gastar uma hora dando aula para a única pessoa que eu queria foder.
"Dimitri quer um encontro hoje. Esteja pronto às sete.”
Deveria ter corrido atrás dela, ao invés de tentar ser produtivo. O que
os russos queriam agora, que Lorenzo sentia tanta necessidade de me
incluir? Já não bastava os favores da última vez? Eram eles que me deviam,
agora.
Esteja pronto às sete, e eu detestava receber ordens. Resolvi adiar por
mais alguns minutos minha volta para casa, não tendo vontade de resolver
nenhuma das pendências que me esperavam após o almoço. O parque que
havia próximo era distração o suficiente, e eu poderia fumar um cigarro em
paz enquanto fingia que meu celular não vibrava no bolso da calça.
Definitivamente não queria atender o número que via na tela, assim
como a última coisa que esperava era encontrar Alana sentada em um dos
bancos, segurando entre as coxas um copo de plástico. Na mão, ela acendia
a mesma marca que eu fumava, o Zippo dourado próximo da cor de seus
olhos. Contive um sorriso, querendo acreditar na sorte por um minuto, por
mais que os últimos anos só tenham me provado meu azar crônico.
— Pare de chegar atrasada nas minhas aulas — a repreendi, me
sentando ao seu lado.
— Pare de dar aulas antes do meio-dia — Alana respondeu num tom
desinteressado, sua mania de evitar meus olhos sendo enervante.
Desviei-os para frente ao ver os lábios se fecharem ao redor do cigarro,
coçando a barba enquanto tentava manter qualquer compostura.
— Não sabia que fumava.
— Te incomoda?
Qualquer coisa que me fizesse ver similaridades entre nós conseguia
incomodar tanto quanto ela me afastando.
— Sim.
— Que bom. — Vi um sorriso se formar depois dela exalar fumaça,
Alana determinada a não suavizar o jeito que nos tratava ao usar um tom
sarcástico.
Deveria pedir um dos cigarros, tentar manter uma conversa agradável,
levá-la logo para minha cama. Talvez fosse isso o necessário para quebrar
seja lá que maldição tivesse caído sobre mim: meu nome saindo de seus
lábios, pelo menos uma vez.
— O que quer para parar? — perguntei sério, aquela sendo minha
tentativa de começar um assunto.
Escutei-a soltar uma risada seca antes de abrir a boca.
— Você é inacreditável da pior maneira, sabia? — E eu queria
responder que, com certeza, não era aquela sua opinião na noite em que me
deixou uma marca no pescoço.
Ou talvez fosse, eu mais uma vez lembrando do que esquecemos no
banheiro do clube noturno.
— Tudo é comprável, Alana.
— Esse cigarro não é, professor. — Ela riu, usando o título que eu não
merecia, apagando o filtro amarelo na lixeira ao lado.
— Não deveria fumar.
— Eu já sou bem grandinha pra decidir sozinha onde ponho a boca. —
Respirei fundo e cocei a barba, lembrando bem demais das decisões
tomadas pelos lábios vermelhos.
Acender mais um foi, com certeza, pura provocação.
— Seus lábios deveriam estar ao redor de outras coisas.
Eu era realmente inacreditável quando irritado, mas o jeito que a
garota insistia em fingir esquecer do nosso erro, combinado com sua língua
afiada, despertava o pior do meu temperamento.
— Ah é? Como o que? — Alana não ajudava, o primeiro olhar que me
dava desde a última quinta sendo um desafiador. — Seu pau?
E por um segundo, fui surpreendido com sua resposta, a falta de filtros
combinada com o tom provocador fazendo a minha sair automática.
— Acho uma ótima ideia, senhorita Martins. — Realmente achava, eu
querendo repetir o que ela pretendia não lembrar. — Quem sabe uma boa
sborrata[15] nessa boca atrevida é o segredo para te deixar mais dócil.
Jurava que ela não entenderia. Talvez tenha sido a entonação que usei,
talvez houvesse uma palavra similar em português que eu desconhecesse.
Agradeci mentalmente por estar gelado o café arremessado na minha
cara. Quem tinha sido a última pessoa a jogar alguma coisa em mim?
Travei a mandíbula e cerrei os punhos, me lembrando que era uma
mulher com quem eu lidava enquanto sentia a camisa molhada, o rosto
gotejando. Uma mulher, tão desobediente quanto Giovanna fora, uma
garota, que continuava me encarando com o mesmo olhar insolente, me
desafiando a reagir.
Sabia o quanto poderia parecer ameaçador quando irritado, e ainda
assim, Alana permanecia imóvel, os braços cruzados, o cigarro nos lábios.
Ela me deixava à ponto de explodir, e então me domava ao mostrar que não
aceitaria minhas babaquices. Realizar que Alana não levaria meus desaforos
quieta me deixava com vontade de descobrir o que mais a garota não
aceitava, e o que receberia de braços abertos.
Apertei os olhos e admiti pela primeira vez que não, uma noite não
chegaria perto de ser o suficiente para mim. Eu estava viciado no cheiro de
nicotina e framboesa, Alana acendendo um fogo que havia sido apagado
fazia tempo demais.
E não fazia ideia do que usar, além dela, para extinguir aquele maldito
incêndio.
Era a segunda vez que eu recuava primeiro.

Eu não lembrava mais da vida fora da Famiglia.


Ao menos, era o que me forçava diariamente. Viver pelas regras
impostas desde meu décimo-oitavo aniversário — reforçadas após meu
vigésimo-quarto — era natural, e toda a minha lealdade pertencia ao
homem que falava do outro lado da tela.
A primeira vez que vi Vincenzo Matarazzo, estava enterrando meu pai.
Ainda era novo, Armando tendo me mantido de fora dessa parte da sua
vida, por mais que eu soubesse bem quais eram seus trabalhos. A segunda
vez, enterrava meu irmão, a raiva por ele ter seguido os passos de nosso
progenitor impedindo minhas lágrimas. A terceira me fez perceber que suas
visitas nunca acompanhavam coisas boas.
Don Matarazzo sabia daquilo, e talvez por isso, vê-lo fosse tão raro.
No entanto, desde o dia da perda da filha e neto, sua presença era mais
frequente do que considerava confortável. Passar a maior parte dos meus
dias ao seu lado enquanto na Itália tinha sido, sem dúvida, responsável por
minha mudança e apelido, e eu me perguntava se quem busquei orgulhar no
passado aprovaria o homem moldado pelo seu antigo chefe.
— Está distraído, Nico — ele criticou, franzindo a testa. — Não é hora
para distrações.
— Desculpe, Don. — O vi revirar os olhos, o gesto fazendo eu
recordar de quem andava me tirando a concentração.
— Espero que o caso dos Ferretti se resolva até o fim do mês. Faça
sumir quem fez isso com Francesco, não gosto de quando as coisas saem do
nosso controle. — Matarazzo continuou, bebendo da sua xícara de café do
mesmo jeito que eu virava um copo com whisky.
— Considere feito, Don. — E os olhos novamente mostraram
aborrecimento com o título que eu insistia em usar.
Ele deveria aceitar que meu único pai estava já havia anos debaixo da
terra, aquele sendo o único tópico que ousava ir contra com quem poderia
me colocar junto com o resto da minha família.
— Como é ser um professor, figlio[16]? — Minha pausa, longa demais,
não passou despercebida, deixando óbvio como a palavra me deixava
desconfortável. — É o mais perto que me restou de um, Nickolay.
— Isso é temporário, Don — afirmei, a pilha de trabalhos a minha
direita sendo uma lembrança da noite longa que teria. Ignorei a expressão
incomodada e continuei. — E dar aulas é — Muito satisfatório e pior do
que imaginava. — Interessante.
Ensinar conseguia ser bom, desde que não pensasse nos motivos que
haviam me feito estudar para tal em primeiro lugar. A faculdade fora uma
válvula de escape para o que andava sendo a vida na casa que dividia com
Giovanna, Matarazzo me deixando completamente fora de seus negócios
enquanto a filha mais velha era viva.
Se me esforçasse, conseguia voltar para os momentos de paz em frente
ao mar, um livro e uma criança aninhada em meus braços, o cheiro da
maresia. Nicolas era tão pequeno. Estava prestes a aplicar todos os anos
gastos na faculdade quando aconteceu, e então, nunca mais pensei em
executar nada além da justiça que Vincenzo buscava.
— Me mantenha informado sobre Emília. Vá visitá-la no hospital, ela
está reclamando que esquecemos dela.
Olhei para o monte de papéis após finalizar a ligação, o primeiro nome
trazendo a mesma frustração do nosso último encontro. Corrigir trabalhos
não era minha prioridade, do mesmo jeito que Alana Martins não deveria
ser.
Mas ali estava eu, priorizando ambos e me deixando imaginar, pela
primeira vez desde a maldita tarde na praia, uma vida onde isso seria meu
aceitável.
O nome de Mantovanni apareceu no celular minutos depois, e sabia
que não teria como negar a videochamada. O rosto na tela denunciava a
necessidade de dormir, as olheiras tão proeminentes quanto as minhas no
homem que era o conselheiro daquela máfia.
— Viajo por cinco dias e recebo uma ligação de Matarazzo querendo
falar sobre você. Eu posso perguntar o que está acontecendo? — Lorenzo
questionou comigo ainda segurando um dos testes.
— Não.
— O que está acontecendo? — Respirei fundo, considerando esconder
aquela parte da minha vida do homem que sabia de todos os meus detalhes.
— Essa Alana — Que sabia antes mesmo de eu abrir a boca para falar
aquele nome, e eu já me questionava o quão óbvio tinha sido ao pedir sua
ficha para Souza. — O que ela é para você?
Adiantaria responder que era apenas minha aluna?
— Uma foda. — Ele sacudiu a cabeça, como sempre fazia ao discordar
das minhas escolhas.
— Espero que não use esse palavreado com suas mulheres.
— As minhas mulheres gostam de qualquer palavreado, desde que
minha boca faça um bom serviço. Por que ligou?
— Matarazzo está preocupado. Acha que está te sobrecarregando com
o caso de Francesco, que deveria ter pedido para outro resolver, ao invés de
usar seu braço direito. — Conseguia ouvir a frase que viria antes dele abrir
a boca. — Disse ser pessoal demais.
— Eu não sou próximo de Emília — enfatizei, tentando evitar a
continuação que, conhecendo o homem, viria.
— Mas é do tipo de caso, Nickolay. Francesco era toda a família de
Emília aqui no Brasil.
— Ma che cazzo[17], Lorenzo! Para que eu sirvo, se não para isso? —
continuei, frustrado, abandonando o celular na mesa e voltando a encher o
copo com whisky. — Eu não dou a mínima para o tipo de caso, ou para
quem vou ter que visitar!
— É quem você vai ver que vem te distraindo, ou a ragazza que Souza
está investigando? — Deveria tê-lo deixado continuar acreditando na
primeira opção, deveria ter mantido minha expressão neutra, deveria parar
de pensar nessa bruxa. — O que quer descobrir dela? Alana parece ser uma
garota qualquer. Esse tanto eu já descobri. — Esfreguei os olhos, o rumo
que a conversa tomava me trazendo arrependimento por não ter silenciado a
chamada e ido dormir.
— Nós fodemos sem camisinha — justifiquei para nós dois, ignorando
a cara feita pela minha escolha das palavras e querendo me forçar a
acreditar nelas.
— Ah, é a garota que saiu correndo. Pedir uma ficha é diferente de
pedir os exames — o ouvi cutucar enquanto engolia o líquido âmbar, o
gosto do whisky afastando o de framboesa. — Seu pai ficaria feliz se
arranjasse uma esposa. Uma boa esposa, Nickolay.
Um tiro no peito doeria menos.
— E eu nunca mais teria paz.
— Não te vejo tendo muita esses dias, Nico. — Foi a última coisa que
ouvi antes de finalizar a ligação.
Soube mais uma vez que estava amaldiçoado na quinta que veio. Ao
vê-la com olheiras tão grandes quanto as que um dia carreguei, queria saber
se o motivo era mais uma noite de festa, ou se Alana poderia ter problemas
tão grandes quanto os meus.
Com certeza o destino de homens não estava em sua lista de afazeres,
eu invejando as preocupações simples de uma vida normal. Não deveria
querer tirar sua normalidade do jeito que meus sonhos desejavam, não
deveria buscar a minha nela.
Meu autocontrole me fazia deixar todo o descoberto sobre a garota na
gaveta, Souza reafirmando o que Lorenzo havia dito: não havia nada ali
com o que precisasse me preocupar. Os dois nunca estiveram tão errados,
eu tendo provado de todos os perigos daquela boca. Para mim, Alana inteira
gritava perigo, e eu me perguntava como lábios tão doces poderiam ter
tantos espinhos.
Ela era a única pessoa na sala quando entrei, ocupando uma das
últimas cadeiras ao lado da parede. Sua insistência em manter-se distante
incomodava mais do que gostaria de admitir, eu não acostumado com
mulheres recusando minha companhia.
Ainda de óculos escuros, Alana mexia no celular quando parei na sua
frente. Demorou para os olhos subirem, e quando pararam em mim, não
havia traço de bom humor.
Havia fogo.
Seu olhar me lembrava a Giovanna que conheci quando novo, e por
um momento, questionei se era isso que havia me prendido a ela. Alana era
tão determinada e teimosa quanto um dia fora minha melhor amiga, e
observá-la raivosa quando me atrevi a remover seus óculos lembrava da
época em que Giovanna ainda queimava por dentro.
— Chegar cedo te deixa com uma cara péssima — disse, colocando o
acessório sobre a mesa, junto com um copo cheio do café gelado que ela
parecia adorar.
Em menos de um mês, descobri que gostava de ver surpresa naquele
rosto. Também descobri minha aparente inabilidade em manter uma
conversa agradável com ela.
— Pare de dormir nas minhas aulas, senhorita Martins.
O copo de plástico permaneceu intocado, os olhos cor de mel
mostrando todo o incômodo da dona.
— Sabe onde você pode enfiar esse café? — Alana perguntou,
levantando-se da cadeira e me encarando, agindo como se tivesse forças
para me derrubar.
E talvez tivesse. Ela se fazia parecer tão forte. Eu estava tão farto da
falta de memória que insistia em manter.
— Onde?
Dei um passo para frente, e a maldita não se mexeu. Nunca iria me
acostumar com o jeito que me provocava, incitando meu péssimo
temperamento a tornar nossa convivência um eterno inferno.
Justo eu, que me orgulhava em ter desenvolvido um controle invejável,
por mais que estivesse explodindo por dentro. Era conhecido pelo pior dos
apelidos no meu meio, mas sabia pensar antes de reagir, os anos matando ao
lado de Matarazzo servindo para exercitar minha calma.
Com Alana, meu cérebro desligava e as palavras simplesmente saíam.
Deveria me virar e ir embora. Deveria pedir demissão, dizer para
Vincenzo que não fazia mais questão de qualquer emprego senão o único no
qual me sentia útil. Eu não tinha mais a quem orgulhar, afinal.
Mas naquela quinta, eu dei mais um passo.
— Fale onde, Alana.
Era prazeroso vê-la desconcertada pela primeira vez. Nossa
proximidade me deixava sentir o cheiro fresco dos cabelos ainda úmidos,
minha mão surpreendendo os dois e indo até ele.
Alana não recuar foi o que me deu coragem, e era ridículo alguém
além de eu mesmo conseguir me proporcionar aquilo.
— Dolcezza, por que prefere esquecer? — Sem pensar, soltei o apelido
pelo qual a chamava em minhas fantasias. Framboesa e nicotina, a
combinação que era a minha nova favorita, fazia o menor dos sorrisos sair.
Alana ao meu lado também era uma das minhas novas preferências.
Infelizmente, tê-la dócil nunca durava.
— Esquecer do que? Que sempre que eu te vejo, você se comporta
como um babaca? — Ela afastou minha mão com um tapa. — Que na sua
lista de objetivos está infernizar a vida de Alana Martins? — Agarrou os
óculos, colocou a mochila nas costas. — Eu te comprei a merda de um café!
— Apontou o dedo para mim. — Sem nem te conhecer! — E então,
empurrou meu peito. O cutucar do dedo fino incomodava, mas não mais do
que sua maldita negação. — E desde o primeiro dia, você torna a minha
vida ainda mais difícil!
Só que, ao invés de sentir a raiva que sempre seguia quando alguém se
atrevia a me tocar daquela forma, o que veio foi culpa ao ver as lágrimas
que seus olhos seguravam.
— Eu não quero esquecer, professor DeLucca, pelo contrário — A voz
saía quebrada, eu desejando ter me mantido longe. — Quem esquece
alguma coisa aqui é o senhor! Eu lembro bem demais que você é o meu
professor, por mais que isso seja totalmente unilateral, desde o primeiro dia!
O que quer de mim?
Alana não me deu tempo para responder. Daquela vez, foi ela quem
saiu.

Alana Martins, 23 anos. Nascida em 06 de novembro, 1995. Mãe:


Astrid Martins, antes Rocha. Pai: Esteban Martins. A mais nova de dois
irmãos, estado civil solteira, endereço atual, modelo e placa do veículo.
Viagens, colégios e cursos, pessoas com quem era frequentemente vista.
Engraçado como meu primeiro pensamento foi que a mulher me
mataria se visse as informações que eu tinha em mãos. Tudo que lia
traduzia o que meu cérebro se negava a entender: Alana Martins era normal.
Mais rica do que a maioria das pessoas naquele país, visto o carro que tinha,
o apartamento no qual vivia, e todo o dinheiro — aparentemente limpo —
de seus pais. Normal.
Nunca teve passagem pela polícia, mas as visitas que tinha feito a
alguns hospitais era algo curioso. Eu me perguntava se o motivo era por ela
ser um desastre ambulante, ou se havia algo que deveria observar com mais
cuidado. Não tinha um relacionamento fixo, mas a cama parecia tão
ocupada quanto a minha. Realizar que meu sangue fervia com a informação
me fez entender mais a gravidade do meu problema.
"Eu te comprei a merda de um café sem nem te conhecer!" Ela insistia
na mentira, e por um segundo, considerei aquela ser a sua verdade.
Impossível. Sentindo os músculos das costas tencionarem, tentei
lembrar melhor dos olhos que haviam estado tão próximos dos meus
naquela noite. Travei a mandíbula, me sentindo um completo idiota por não
ter considerado aquela possibilidade. Estava escuro, mas eles pareciam tão
normais quanto a dona deveria ser para mim.
Os exames me diziam que ela estava limpa, o último teste feito havia
dois meses. A doutora Marcela especificava em sua ficha que a garota
usava anticoncepcionais, o que me deixava quase livre de outras
preocupações. Não tinha como não me perguntar se Alana os tomava
direito.
As descobertas me faziam querer deixar por isso mesmo, e sabia que o
mais inteligente da minha parte seria esquecê-la. Fingir que nossa noite
nunca existiu, me enganar que seus lábios não eram os únicos que eu
precisava em mim. Era irritante Lorenzo sempre ter razão, e perguntar se
ele estava satisfeito com minha nova e não-saudável obsessão seria a
primeira coisa que faria quando o encontrasse.
Já estava de pé, todas as pendências de sexta resolvidas, quando notei
o par de fotografias no chão. Era ela, beijando uma garrafa de vodca, a
mesma roupa de quando a conheci, e não consegui evitar um sorriso. Figlia
di puttana[18], por que tão linda?
Decidi que guardaria a pequena recordação na carteira, e a separava da
segunda foto quando reconheci sua companhia na imagem abaixo. O jeito
que a mão tatuada do homem a segurava pela cintura me fazia querer
encerrar sua existência na Terra, e reafirmava o quanto queria Alana só para
mim.
Alana conhecê-lo também implicava outra coisa: o que eu acreditava
ser impossível tinha muito mais probabilidade de ser a realidade.

“Esquecer do que? Que sempre que eu te vejo, você se comporta como


um babaca?”
Eu era um babaca. Eu era o maior dos babacas. Não tinha dúvidas
daquilo desde meu décimo oitavo aniversário, a descoberta de hoje apenas
reafirmando a certeza que eu vivia ignorando.
Saía de mais um jantar de negócios, onde tudo menos o importante
fora tratado, e me perguntava se aquele era o normal no Brasil. Era sempre
assim, os e-mails e ligações sendo muito mais efetivos para me dar
respostas do que dividir vinho e comida italiana. Ao menos a macarronada
era boa.
Mas mesmo com uma comida que me lembrava de casa, era um gosto
ruim que tinha na boca. Acendi um cigarro, Matteo aparecendo com o
carro, Lorenzo já no banco de passageiro. Entrei ainda tragando, a presença
do velho me lembrando do que gostaria de esquecer.
— Achou o que procurava? — Bati a porta, jogando o cigarro no meio
fio, não mais tentando mascarar minha irritação. — O jantar não correu
bem?
— Desde quando esses jantares podem correr mal? — respondi,
querendo manter minha nicotina e amaldiçoando a cidade que nos obrigava
a andar de vidros fechados para evitar problemas.
— Então por que parece querer assassinar alguém? — Porque eu
queria.
— Aqui. — Tirei a foto amassada do bolso, que mostrava o rosto que
andava procurando. A que tinha apenas Alana, por mais que não me
sentisse mais no direito de fazer tal, já estava guardada na minha carteira.
Lorenzo reconheceu o homem que estava com Alana tão rápido quanto
eu o fizera mais cedo. Ela parecia tão normal, mas agora, eu tinha certeza
de que não estava. Vê-la com o traficante que procurávamos me convenceu
do que antes de hoje nem havia considerado.
— Se Alana estava com ele, provavelmente estava drogada — admiti
em voz alta, sentindo um peso no estômago. — Eu conheci uma mulher que
sabia o que estava fazendo. Essa mesma mulher afirma que me viu pela
primeira vez quando me pagou um café. — Baguncei os cabelos, tentando
engolir a bola que se formava na garganta. — Ela não se lembra. O que isso
me torna?
— Nickolay...
— Naquela quarta, o cérebro dela estava dopado! — o cortei, não
sabendo ainda o que me deixava mais irritado. — É isso que esse figlio de
puttana[19] anda fazendo, testando essa merda com as mulheres na minha
região, e seria ela...
Era desesperador como a possibilidade me tirava o ar, tanto por aquilo
estar acontecendo bem debaixo do meu nariz, quanto por quem teria sido a
vítima.
Especialmente por quem teria sido a vítima, e doía pensar que ela pode
muito bem ter sido isso comigo, eu tendo aceitado ir para o banheiro com
alguém que nem deveria lembrar de ter transado.
— Nico, tem droga em São Paulo inteira! — Lorenzo falava sem muita
paciência, como se soubesse dos planos que ganhavam vida na minha
mente. — Nós vendemos droga!
— Não essa! — E eu iria matar o moleque, tão cedo o encontrasse. —
Eu não vendo droga de estupro! — Os olhos azuis, tão cansados quanto os
meus, sabiam que o melhor era não discutir. — Eu quero a cabeça desse
traficante.
Não que ele não fosse tentar aconselhar. Lorenzo nunca soube aceitar
quieto a minha opinião.
— Seja racional, Nickolay! Não deixe seu temperamento te colocar em
batalhas que não pode ganhar...
— Que eu não posso ganhar? — falei num tom de deboche, mandando
à merda qualquer cautela e abrindo a janela, me acalmando ao tragar do
filtro laranja. — Mas eu posso ganhar. Eu posso ganhar essa batalha em
segundos!
— E então, perdemos a paz com metade de São Paulo!
— Não me importa! E eu duvido que Matarazzo dê um cazzo de
importância quando souber o que está acontecendo! — Forcei meu cérebro
a manter a calma, a nicotina de nada adiantando. Era irritante pensar que tê-
la perto poderia funcionar, eu não me sentindo mais no direito de considerar
aquilo. — Alana não se lembra do que fizemos. Para ela, eu sou só mais um
babaca que a trata mal. — Estreitei os olhos quando o vi segurar o riso pelo
retrovisor. — Esse figlio di puttana me tirou a única coisa boa que eu quis
em anos, Mantovanni! E eu te vejo rindo disso?
Ele sacudiu a cabeça, virando-se para mim antes de continuar.
— Nico, Nico, colpo di fulmine[20]? — Odiei o sorriso que havia ali, o
homem que era o que tinha mais próximo de uma figura paterna mostrando
que me conhecia como um pai ao falar o que eu me recusava a admitir. —
Foi isso, não foi? E você está negando até agora.
Sacudi a cabeça, engolindo uma risada amarga. Como se eu tivesse o
direito de me apaixonar, fazendo o que fazia. A época de fantasiar com
amor havia passado, eu renunciando ao sentimento desde o dia em que
recebi a primeira tatuagem no corpo.
— Isso é uma coisa boa, Nickolay. Se apaixonar faz você...
— Humano. E humanos morrem. — Matteo já parava o carro na ruela
que sempre o deixávamos para entrar no clube, e a última coisa que
precisava era de uma noite perto de álcool e entorpecentes. — Ela vai me
odiar quando descobrir o que aconteceu. Alana já me acha um babaca —
confessei, e seria engraçado, não fosse a situação, estar perto de pedir
conselhos amorosos para o Consigliere[21].
Fazê-la me odiar era o melhor presente que poderia dar para a garota.
Quando me casei com Giovanna, sabia que paixão seria um luxo. Os
casamentos funcionavam de forma diferente dentro da Famiglia, e criar
laços com alguém sempre transformava a pessoa em um alvo. Nunca
casaria com a máfia alguém com quem eu quisesse fazer o mesmo.
— Então não conte agora — escutei quando o carro foi desligado,
Lorenzo abrindo sua porta antes de continuar. — Ache o tempo certo para
falar sobre isso.
Era tão errado considerar seus conselhos.
Andávamos em direção à porta dos fundos quando eu escutei o
barulho. Parei na entrada, quase seguindo para dentro antes de me atentar
novamente a batida.
Não costumava ligar para os sons que não me afetavam, São Paulo
sendo uma cidade barulhenta demais para poder dar importância a todos os
que ouvia. Prestava atenção nos que poderiam me causar problemas, mas
nos dois anos vividos ali, tinha adquirido a habilidade de deletar os ruídos
não importantes.
Tinha um carro além do nosso, justo na parte onde não havia luz
nenhuma. Mas mesmo no escuro, dava para reconhecer o pedido de ajuda,
uma mão batendo no vidro da janela.
Teria abaixado os olhos e não me metido, caso não fosse óbvio o que
acontecia ali. Em menos de dez passos, eu descobri que conhecia bem
demais a mão pequena, os dedos machucados e o esmalte lascado me
fazendo ter a certeza de que, naquela sexta, conseguiria mais uma tatuagem.

Demorou quase um mês para eu pisar no consultório da doutora


Marcela. Minha ginecologista, que também havia se tornado a melhor
amiga de minha mãe, me deu um sermão merecido, e disse para esperar
mais algumas semanas antes de repetir os exames.
Graças a Deus pelo sigilo profissional, pensei, ainda lembrando do
último almoço de domingo. Eu terminava de comer mais uma fatia de bolo
de fubá enquanto, de canto de olho, observava Marcela tomar café com a
amiga, como se não soubesse de todas as minhas irresponsabilidades desde
sexta passada.
Sabia que mamãe ficaria decepcionada com meu comportamento, logo
ela que tanto pregava a importância de ser consciente antes — e
principalmente depois — de tirar a roupa. Bem, eu nem mesmo sabia se
havia tirado alguma coisa, mas aquilo não serviria como desculpa para dona
Astrid.
O quão grande poderia ser meu azar, afinal? Pegar alguma coisa, sendo
que mal tinha acabado de curar a última? Estava tomando religiosamente a
pílula para precisar me preocupar com a outra possibilidade, mas tinha que
admitir que o teste negativo na pia do banheiro me deixava mais tranquila.
Por mais impossível que fosse, uma criança não precisava entrar justo
na vida que eu levava. Era injusto eu deixar qualquer um entrar, e com esse
pensamento, esperava a sexta passar deitada na cama, um copo de vodca e
suco de framboesa apoiado nas costelas.
“Quer jantar?”
A mensagem de Djamila apareceu enquanto me perdia no feed do
Instagram. Clicar sem querer fez eu amaldiçoar meu dedo desajeitado e os
tiques azuis que ainda não tinha desabilitado. Sabia que se eu resolvesse
ignorar, seria pior na segunda.
“Onde?”
Nunca esqueceria do dia em que a conheci. A menina, bem maior que
eu mesmo tendo a mesma idade, viu o garoto que me importunava e me
ajudou sem hesitar. Homens podiam ser todos iguais, mas Mila se mostrou
diferente desde o primeiro minuto, resolvendo a briga sem violência,
mesmo em seus apenas seis anos.
Ela era boa em socar com palavras. Boa demais. Talvez por isso que a
estivesse deixando longe, eu querendo manter minha sanidade não
escutando tudo que ela poderia começar a falar, caso tivesse a chance.
Doía admitir que Djamila e eu não estávamos no melhor momento da
nossa amizade. Sentia falta de conseguir falar tudo que meus pensamentos
gritavam para minha melhor amiga, mas a barreira construída entre nós
tornava conversas mais profundas inexistentes. Eu não podia trazer à
superfície os assuntos que ela precisava saber para meu comportamento
poder fazer sentido, então aceitava quieta o jeito que a garota me tratava.
“Me libera na portaria, tô subindo com yakissoba.”
Levantei a cabeça e suspirei, me forçando para fora do colchão. Olhei
para o estado do apartamento, as latas vazias de energético e resto de pizza
denunciando toda a minha ausente vontade de organização nos últimos dias.
Eu não estava deprimida. Não, eu realmente não estava. Pessoas
deprimidas não iam para festas. Elas ficavam em casa, deitadas na cama, e a
única coisa que me fazia querer estar no colchão agora era a ressaca da
noite passada.
“Ok.”
Pessoas deprimidas não se importavam em jogar os restos de comida
fora e limpar a mesa enquanto sua melhor amiga pegava o elevador para
subir. Ah, deveria contratar uma faxineira, ao invés de limpar tudo sozinha
uma vez por mês. Deveria comer coisas mais saudáveis, e não virar o copo
que ainda segurava antes de colocá-lo com a pilha de louças sujas. Deveria
tantas coisas, mas escolhi fazer justo o que seria mais sábio evitar.
Então eu abri a porta, assim que a campainha tocou.
— Amiga, cê tá com a pior cara que eu já vi. — Mila soltou quando
me viu, invocando aquele poder só dela de fazer eu me arrepender das
minhas escolhas.
— Boa noite pra você também, Mi. — Recuei para deixá-la entrar e
fechei a porta, querendo mesmo era tê-la mantido do lado de fora.
— Trouxe seu favorito, vegetariano e com um monte de cogumelo. —
Ela colocou a caixa de comida chinesa sobre a mesa, eu só agora lembrando
da embalagem vazia de camisinha no chão.
Claro que minha amiga também viu. Claro que ela me deixou saber
daquilo em total silêncio, apenas levantando uma sobrancelha. Claro que a
conversa durante a janta foi superficial, como andava nossa amizade, antes
tão forte.
Óbvio que Djamila só estava se preparando para falar o que realmente
tinha vindo dizer.
— Lana, você tá transando com o professor novo?
Engasguei com um pedaço de couve-flor, tossindo até ter lágrimas nos
olhos.
— O que?? — E já querendo matá-la quando consegui achar minha
voz. — Com o DeLucca? — A mesma sobrancelha levantada de antes
voltou, o fato de eu saber seu sobrenome parecendo ser o suficiente para a
confirmação daquele absurdo.
— Você tá, não tá?
— É claro que não! — De onde ela tinha tirado aquela ideia?
— Alana, ele não tira os olhos de você na aula! Não sou só eu, é a sala
inteira achando isso! — O olhar era sério, minha fome que já era pequena
se tornando inexistente.
— E é minha culpa ele não conseguir parar de me olhar?
Ela pareceu tentar escolher as palavras antes de continuar, coisa rara de
se ver.
— Eu vi vocês dois ontem de manhã. O cara tava quase te beijando,
mesmo com a porta aberta! Por que você não quer contar? Eu sei que tem
alguma coisa aí!
— Não tem nada aí, Djamila! — respondi com todo o meu bom
humor, que havia acabado já na segunda-feira.
Tinha sim alguma coisa aí: ela jogando um verde para checar se eu já
tinha tacado o foda-se e começado a transar com todo o corpo docente de
Publicidade e Propaganda.
Não que considerar alguma coisa com o professor novo fosse
impossível, o gringo parecendo estar querendo justamente eu sem roupa ao
me negar paz. Se o italiano conseguisse ficar de boca fechada, daria até para
relevar o fato dele ser um babaca.
Mas eu não transava mais com homens que me provavam ser babacas.
Meu amigo de gaveta era muito melhor que um cara que provavelmente não
fazia ideia do que nós mulheres tínhamos no meio das pernas.
— Escuta, eu tô só perguntando! Juro que não vou te julgar nem
nada...
— Me julgar é a única coisa que você faz, e já tem meses! — falei sem
paciência, tentando manter o mínimo de educação ao alcançar o maço de
cigarros.
— Mentira! — ela retrucou enquanto me via acender um. — Cara,
você precisa superar o Thobias! — Traguei, fechando os olhos, usando todo
o resto de meu pouco controle para não jogar o isqueiro na cara dela. — E
larga essa merda, isso vai te matar mais rápido do que todo o álcool que cê
anda jantando!
Eu não iria jogar meu isqueiro nela. Eu também não iria chorar.
— E você diz que não tá me julgando?
Os tragos não adiantavam para melhorar meu humor. O que adiantava
esses dias? Não eram as noites em casa que me permitiam esquecer a merda
do ano passado.
— Perdi a fome. — Incrível como o cigarro travava menos a minha
boca do que a memória. — Escuta, as meninas tão vindo pra um esquenta
aqui em casa — menti, hoje sendo o dia que tinha prometido dormir cedo.
— Não acho que seja muito sua praia, então...
Não precisei falar outra palavra para ela se levantar.
— Já entendi. — O sorriso que Djamila me dava era tão debochado
quanto o tom que usou ao continuar. — Você tá me trocando de novo,
igualzinho quando cê tava com ele.
Pelo menos ela saiu sem eu ter que pedir, a primeira lágrima
escorrendo só depois da porta bater.

Djamila me obrigou a transformar pizza e Netflix em vodca e música


eletrônica, e a odiei um pouco mais enquanto fechava os olhos e dançava na
pista. O clube que escolhi era o mesmo da noite que havia apagado da
memória, eu com uma pequena esperança de encontrar minhas
companheiras de festa que, desde aquela quarta-feira, pareciam viver por
aqui. Queria chorar, mas colocava um sorriso nos lábios pintados de
vermelho e me embriagava com mais um gole do que tinha na mão.
O que Mila deveria estar pensando de mim? Mais uma garota rica que
se decepcionou pela primeira vez na vida, e agora não conseguia parar de
farrear? Todos deveriam pensar a mesma coisa.
Tinha bem mais de duas verdades ali. Que eu tinha me decepcionado e
que eu não conseguia parar de farrear eram as que ela sabia. Mas ninguém
fazia ideia do quanto Thobias havia me machucado, ou do peso que era
acordar do mesmo pesadelo dia após dia. As batidas nunca paravam, e eu
não encontrava paz nem mesmo quando tudo que restava era o silêncio.
O silêncio nunca durava.
Não havia achado nenhuma das meninas, então a mão que me segurou
pela cintura, apesar de desconhecida, era bem-vinda. As tatuagens eram
bem diferentes das que via todas as quintas, os desenhos parecendo infantis
perto da caveira e das palavras fortes que existiam nas do italiano.
— Deixa eu te pagar uma bebida, gata. — Ele se aproximou do meu
ouvido para falar, as roupas cheirando a perfume forte e maconha. — Tá
sempre por aqui, hein? — Inclinei a cabeça para o lado, achando um par de
olhos castanhos e fios descoloridos. Não fazia ideia de quem era, mas o
homem me conhecia. Era com ele que tinha feito a merda na noite que tive
apagada? — Curti sua boca naquela quarta.
Hum, ao que tudo indicava, deveria ser esse mesmo. Meu gosto
realmente andava se resumindo em escolhê-los apenas baseados no
tamanho, o rosto que eu via longe de ser atraente. Era muito mais seguro tê-
los perto da minha altura, e o homem parado na minha frente não deveria
chegar nem nos um e setenta.
— Quando tem música boa, eu apareço — respondi, ignorando o
último comentário. Um copo cheio de algo que cheirava a vodca com
energético foi posto na minha mão, o vazio sendo jogado no lixo, o cara nos
levando para a parte de fora.
Preferia ter achado as meninas, mas aquela distração teria que servir.
— O que gosta de ouvir? — Manter o sorriso falso foi quase
impossível. Precisei me esforçar para não revirar os olhos, minha paciência
para conversa fiada inexistente.
— O que estiver tocando. — Dei um gole, fingindo escutar seja lá o
que estivesse saindo dos lábios do homem que acendia um baseado.
Ele continuava falando, e eu fiz que sim com a cabeça algumas vezes,
meu olhar perdido na vista que o terraço nos dava da cidade. São Paulo
conseguia ser bonita durante a noite, as luzes coloridas do centro
transformando a metrópole feita de concreto numa paisagem muito mais
suave.
— Quer um trago?
"E larga essa merda, isso vai te matar mais rápido do que todo o
álcool que você anda jantando!"
— Hoje passo — neguei, tirando um cigarro da bolsa transversal que
carregava comigo.
— Para com isso, essa erva é da boa! — Imaginava que fosse, mas as
palavras de Djamila fizeram eu querer me agarrar na minha nicotina por
pura birra. — Melhor que esse seu cigarro aí.
— Vou ter que discordar. — Forcei mais um sorriso, tentando manter a
educação e a paciência, já tão, tão escassas no fim daquela semana.
O homem deu os ombros, murmurando algo sobre como era eu quem
estava perdendo antes de voltar a falar sobre algo que meu cérebro
ignorava. Ele discorria empolgado enquanto eu deixava sua mão brincar
com uma mecha dos meus cabelos, e lembrar de quem me fez querer sair
correndo com o gesto foi automático demais depois das palavras de
Djamila.
"Você tá transando com o professor novo?"
Depois da pergunta, eu tive a certeza de que ela imaginava com
quantas pessoas andava me esfregando. Se não sabia, o pacote vazio no
chão havia feito um bom trabalho em me dedurar.
Não, eu não estava transando com o professor novo, mas o faria sem
pensar duas vezes se sexo com ele ajudasse a aliviar meus machucados.
Sentir qualquer coisa que não fosse dor era tão melhor, e por alguns
momentos, me entregar para alguém que não faria parte da minha vida
funcionava como mágica. Talvez por isso não considerasse o italiano, ele
sendo uma presença mais frequente do que estaria disposta a aturar depois
de uma transa casual.
Tomei mais um gole do que segurava, irritada por minha mente insistir
em voltar para o gringo. Sacudi a cabeça, me forçando a dar atenção para o
que tinha ao meu lado.
— E isso aqui? Pelo que eu me lembro, cê curte essas paradas. — A
pergunta veio com minha companhia me mostrando uma pílula em formato
de coração. Eu sabia o que era o comprimido e tentei alcançá-lo, o homem
o tirando de vista assim que um dos seguranças passou. — Essa aqui já tá
prometida, mas tem mais no meu carro. Me dá dois minutos — ele pediu,
achando minha boca antes de se perder no meio da festa.
Por que não? Não era como se eu não tivesse comprado algo ilegal
antes, as drogas que andava botando para dentro funcionando tão bem
quanto toda a bebida que consumia.
Mais alguns minutos, e descia as escadas com a mão dele outra vez na
minha cintura, a braveza com Mila sendo muito mais forte do que a voz que
me gritava para voltar. Revirei os olhos, odiando ter minha melhor amiga
em meus pensamentos, ela, até agora, tentando ser o bom senso que dizia
me faltar.
“O que você está fazendo com a sua vida?”
Mas, desde o ano passado, Djamila só sabia me julgar. Não era como
se eu não conhecesse o cara, por mais que não lembrasse do seu nome. Nós
já havíamos transado antes — tinha quase certeza — e eu continuava viva,
então acompanhá-lo até seu carro era, no mínimo, seguro. Também não via
problema em trocar uns beijos antes de pegar o que desci para buscar, por
mais que minha boca não estivesse encaixando direito na dele. O homem
não beijava bem, e só notei o quanto a rua estava escura ao sentir meu
banco ser deitado, ele ativando a trava de segurança das portas.
Meu peito apertou no mesmo segundo, minhas mãos suando frio.
— Você é uma delícia, sabia? — Eu odiava ser trancada.
— A-achei que... — Odiava, e aquela era a pior hora para minha voz
tremer. — Achei que fosse me mostrar o seu estoque. — A pior hora para
descobrir que eu não era forte o suficiente para tirá-lo de cima de mim.
Eu inteira fiquei gelada quando senti o beijo no pescoço, o toque dos
lábios molhados provocando o tipo de arrepio que não fazia questão de
sentir. Mas o homem não ia para longe, por mais que minhas mãos o
empurrassem.
— Acho que você prefere ver outra coisa.
Tentei afastá-lo outra vez ao sentir uma mordida no ombro, o vestido
tomara-que-caia que eu usava me deixando exposta demais. Eu não usaria
mais vestidos assim, eu não ignoraria mais a voz de Djamila na minha
cabeça, e eu não conseguia respirar. Eu não conseguia respirar, e ele estava
com uma das mãos na minha coxa, os dedos subindo até minha calcinha, ao
mesmo tempo em que bile subia e queimava a minha garganta. Era óbvio
que eu não queria o que estava prestes a acontecer, e o homem escolher
ignorar meus punhos batendo contra seu peito o fazia parecer muito maior
do que eu.
“O que você está fazendo com a sua vida, estúpida?”
— Não. — Era tão ridículo como minha voz não passava de um
sussurro, por mais que me esforçasse para gritar. — Não!
— Acha que a bala vai ser de graça, donzela?
— Eu tenho dinheiro! — E tentei me livrar outra vez de seu peso,
fugindo da boca que tentava beijar a minha. — Eu tenho!
— Talvez eu queira outro tipo de pagamento. — Aquilo era um
pesadelo, e eu tentei gritar de novo antes dele cobrir minha boca, a mão me
apertando sem qualquer gentileza. — Você tava rebolando no meu pau que
nem uma putinha lá em cima, não vem dar de difícil agora!
Aquilo era um pesadelo, e eu ia acordar na minha cama. Era um
pesadelo, e as batidas que escutaria não seriam as da minha mão contra a
janela quando voltasse a abrir os olhos. Mas eu os abri, e os fios
descoloridos continuavam ali, o cheiro de carro molhado, maconha e seu
hálito de canela tornando quase impossível não vomitar.
Realmente era um pesadelo, e eu havia me colocado nele. Outra vez. E
outra vez, sairia com marcas permanentes. Era para tentar diminuir as
grandes que eu carregava, que me esforçava tanto para colecionar aquelas
pequenas?
Sentia meu corpo mole, toda minha força indo embora junto com a
esperança de conseguir parar aquilo. Vinte e três anos, Alana, e você ainda
não aprendeu a não aceitar bebida de quem não conhece. Mas eu o
conhecia, e ainda assim, acabei tomando seja lá que droga que ele misturou
no meu álcool.
O homem não foi gentil ao abaixar minha mão, e só ficou mais irritado
quando usei o resto da minha força para morder os lábios que insistiam em
ficar nos meus. O gosto metálico surgiu na boca depois do tapa — ou foi
um soco? — meu rosto pulsando, eu pensando em quantas camadas de
maquiagem precisaria usar para cobrir o hematoma que, com certeza,
carregaria por alguns dias.
Fechar os olhos era melhor, por mais que isso fosse me fazer dormir.
Pelo menos eu não lembraria, e me perguntei se era isso que esse homem
tinha feito naquela quarta. Parar de tentar espancar a janela do carro faria
minha mão doer menos no dia seguinte.
— Que merda é essa?
— Figlio di puttana!
Só entendi que estava livre quando escutei o grito, e então veio o
barulho de algo batendo contra o carro, forte o suficiente para sacudi-lo.
Tinha vidro em cima de mim, mas me cortar com os cacos era melhor do
que qualquer toque dele. Minhas mãos ainda tremiam quando voltei a cobrir
os seios com o vestido, uma das lascas pinicando meu dedo.
— Quem te deixou tocá-la, hein? — Eu conhecia aquele sotaque.
Sorrir me fez sentir mais o machucado que havia no meu rosto, e eu nunca
fiquei tão feliz em escutar aquela voz. — Alana, ele...
Os olhos escuros que encontraram os meus não refletiam minha
felicidade. O italiano nunca terminou a frase, os socos que o ouvia dar no
homem prensado contra o carro com certeza fazendo mais estrago do que o
que eu tinha recebido.
— Para, DeLucca! Agora! — alguém esbravejava, o carro continuando
a chacoalhar, eu tentando tirar os cacos das minhas coxas. — Se controle!
Você vai matá-lo! — Mas as advertências eram completamente ignoradas
pelo meu professor.
— A morte vai ser um favor para esse verme! — Tive coragem o
suficiente para levantar a cabeça, e achei o vidro traseiro trincado, sujo de
sangue. Os cabelos loiros eram vermelhos agora, e eu tinha certeza de que o
homem só continuava de pé por estar sendo segurado contra o veículo.
— Nico, já chega! — Vi um homem mais velho parar o punho tatuado,
o cara que eu nunca saberia o nome caindo no chão antes de ser arrastado
para longe por um terceiro desconhecido.
Havia sangue em seu rosto quando Nickolay voltou para minha frente.
Meu cérebro tinha certeza de que ele não tinha a intenção de me ferir —
bem, ele tinha acabado de me salvar — mas o resto do meu corpo
discordou, recuando ao vê-lo tentar uma aproximação.
— Eu não vou te machucar, bella. — Eu conseguia acreditar naquilo,
só que as mãos, cobertas de sangue, faziam meu coração explodir no peito.
E como se tivesse lido meu pensamento, ele esfregou-as na calça, o
preto do tecido absorvendo a cor que me agoniava. Nickolay voltou a olhar
para o roxo que eu queria esconder, e me perguntei se poderia, enfim,
fechar meus olhos ao seu lado. Era seguro apagar perto de alguém que
quase acabou com uma vida?
Mas a cada segundo que passava, ficava mais óbvio que não
conseguiria chegar muito longe com o cansaço que tomava conta.
— Alana, precisa sair desse carro, ok? — Sabia que precisava, e ao
mesmo tempo, não tinha força o suficiente para me manter de pé sozinha.
Tentei outra vez, e me senti ridícula ao falhar, mais um caco de vidro
raspando na palma da minha mão. — Segura em mim.
Não tinha uma alternativa que me livrasse de tocá-lo, e eu segurei nos
antebraços que me eram estendidos. A tontura veio assim que fiz força para
levantar, e por mais que me agarrar em seu pescoço tensionasse todos os
meus músculos, ainda era uma opção melhor do que ir para o chão.
O esforço que fazia para manter os olhos abertos era exaustivo, então
por maior que fosse meu desconforto, agradeci quando fui pega no colo.
Senti o cheiro de couro e cigarro ao ser posta em um banco diferente do de
antes, o italiano me encarando com uma preocupação que eu não merecia.
Eu havia me posto naquela situação. Não deveria achar tanto tormento em
seu rosto.
— O que tomou?
Dei os ombros: um drink dado por um estranho que me conhecia, mas
eu realmente não sabia o que havia dentro do copo. Admitir tal coisa em
pensamento já fazia com que me sentisse idiota o suficiente, falar em voz
alta seria vergonhoso demais. Virei o rosto, tentando desviar dos escuros
aflitos, e achei um rastro de sangue no chão, os homens de antes tendo
desaparecido.
— Olhos em mim. — Ele me fez voltar a encará-lo, o toque cuidadoso
no lado bom do meu queixo me deixando perto de chorar. — Não olhe mais
para lá. — A voz era autoritária, e antes que me desse conta, concordei,
fazendo que sim com a cabeça.
— Preciso ir pra casa. — Mal tive forças para pronunciar as palavras,
elas saindo enroladas, como se estivesse bêbada. Apertei as pálpebras com
as pontas dos dedos, percebendo que não conseguiria me manter acordada
por tempo suficiente para chegar no meu prédio.
Era a vez dele de fazer que sim com a cabeça, mas o italiano nem sabia
meu endereço. Ele não sabia, e tirou uma lasca de vidro que estava para
perfurar o dorso da minha mão esquerda antes de segurá-la. A forma
delicada que usava para me tratar fazia meu coração bater um pouco mais
devagar.
— Pode dormir, Alana. Confia em mim. — Nickolay me pedia o
impossível, eu não sabendo mais o que era depositar minha confiança em
uma pessoa.
Só que, naquele momento, não havia outra opção. Seus olhos foram a
última coisa que vi antes de fechar os meus, e me deixei acreditar nas
próximas palavras, desejando que elas fossem o suficiente para espantar os
sonhos ruins que eu sabia que viriam.
— Nada vai te acontecer comigo do seu lado, dolcezza.
Talvez ele e todas as suas tatuagens fossem o bastante para espantar
qualquer mal. E me deixando acreditar naquilo, parei de lutar contra a
inconsciência.

Dirigi de volta para a mansão em silêncio, o único barulho sendo a


respiração pesada da mulher desmaiada no banco de passageiro. Por mais
que o feito de minutos antes tivesse ido contra o combinado com Lorenzo,
duvidava que o chefe da Famiglia fosse se opor aquela morte. Sabia bem o
quanto ele repugnava o crime que evitei acontecer, e me sentia livre de
qualquer preocupação quando vi o moleque bater a cabeça no chão e fechar
os olhos para sempre.
Não deveria. Deveria me atentar ao fato de que quem dormia ao meu
lado fora o motivo da primeira morte que minhas mãos causaram no Brasil.
Teria terminado com aquela vida, fosse outra mulher que batesse no vidro?
Dizia que sim, minha mão direita latejando, eu não querendo acreditar que
Alana tivesse tal poder sobre mim.
O quão errado era afirmar que mataria qualquer um que a tocasse
contra sua vontade?
Ela nem mesmo abriu os olhos quando voltei a pegá-la no colo, o
corpo completamente entregue denunciando o quanto estava dopada.
Precisava cuidar dos meus cortes, e me forcei a olhar para longe do
hematoma em seu rosto.
Cazzo, deveria pelo menos tirar o vermelho, a cor pintando seus lábios
como se fosse batom. Com um pano molhado e antisséptico, limpei o corte
no inferior, o cheiro de sangue misturado com o dela me dando enjoo. Justo
eu, que vivi tantos anos cobertos pelo aroma metálico. Ridículo.
Querer passar a noite ao seu lado incomodava tanto quanto tê-la
achado naquela situação, e me forcei para fora do quarto.
A última vez que acabei com a mão num estado tão lamentável, tinha
dois anos a menos. Virei a noite com gelo e whisky, deixando Alana dormir
na minha cama enquanto checava os últimos e-mails recebidos e a pilha de
trabalhos que ainda precisava de correção. Alana não tinha entregado o
dela, e ser produtivo com a mulher dormindo no andar de cima era
impossível.
Acordei com a certeza de que o sofá que havia no escritório era o pior
lugar para se dormir em toda a casa. Também foi com Lorenzo dando um
tapa na minha cabeça que abri os olhos, os azuis mostrando todo seu bom
humor inexistente enquanto me chamava pelo apelido que escutei diversas
vezes na Itália. Responder que Matarazzo me valorizava o suficiente para
não dar um fim no moleque inconsequente que eu sabia muitas vezes ser
rendeu outro tapa, e o velho tinha muita sorte em viver no meu lado bom
nos últimos tempos.
Rendi-me aos exercícios matinais, tentando tirar quem ainda ocupava
meus lençóis da cabeça. Ela ainda estava na mesma posição quando entrei
com a desculpa de pegar roupas limpas, e larguei uma toalha do seu lado,
deixando aberta a porta do banheiro da suíte antes de sair do quarto.
Vestindo uma calça de moletom, ainda de corpo quente pela corrida, tentava
me convencer que a dor no pescoço tinha sido causada pelo móvel duro e
não por qualquer tensão vinda das descobertas feitas noite passada.
Estralei o pescoço e preparei a cafeteira italiana, a enchendo com água
e pó de café antes de colocá-la sobre o fogo. Meu corpo já gritava por
cafeína e Giovanna não saía de minha cabeça, as memórias mais dolorosas
do que me recordava. Lembrar dela era inevitável, e me perguntei por que
havia tantas coincidências na minha vida. Pensar nos olhos verdes me fez
incluir uma dose de whisky na xícara, eu engolindo o conteúdo amargo em
um só gole antes de me virar para a porta da cozinha.
Alana era linda até acabando de acordar, e amaldiçoei os sentidos
aguçados de Lorenzo, enxergando coisas que eu fingia não existirem.
Mesmo com os cabelos preso num emaranhado bagunçado e os olhos ainda
borrados de maquiagem, sua presença era o suficiente para minha mente
desfocar de todo o resto. Não tinha mais qualquer rastro de sangue em seu
rosto, eu apenas notando os fios molhados quando ela se aproximou,
passando a mão pequena na bancada de mármore.
— Buon giorno[22]. — O olhar que me dava era um tão cansado quanto
eu me sentia, e me forcei a desviar os olhos das coxas descobertas, jogando
a cabeça para cima.
Meu pescoço reclamou no mesmo segundo. Deveria tomar um
analgésico. Deveria ter lhe deixado roupas limpas, e pensar nela usando
algo meu também me fazia querer sorrir.
Cazzo.
— Café?
Ela aceitou em silêncio, pegando a caneca que deixei no balcão e
servindo-se do líquido preto. O açúcar, que eu havia retirado da cabine por
causa dela, foi posto em exagero, e não evitei uma careta ao lembrar da
quinta-feira que acabei por acidente com sua bebida.
— Como está se sentindo?
Pareceu uma eternidade até vir a resposta, os olhos cor de mel me
observando, eu fingindo não reparar. Checaria se estava bem e a mandaria
embora. E nunca mais chegaria perto dela em nenhuma das aulas. Talvez
me demitiria, eu poderia me demitir. Ela estaria muito mais protegida sendo
cuidada de longe.
Que inferno, por que diabos queria cuidar dessa mulher? A vida já
havia me ensinado que tudo que cuidava nunca florescia e acabava debaixo
da terra.
— Mal. — A voz saiu baixa, porém mais forte do que esperava após
os acontecimentos da noite passada. — Mas vou sobreviver.
Giovanna nunca recuperou a força da voz. Mas com Alana, eu havia
chegado a tempo.
Eu me permiti observá-la do mesmo jeito que ela fazia comigo. Os
olhos ainda tinham certo receio, mas a curiosidade conseguia vencer, e ela
encostava-se ao meu lado, já parecendo muito mais confortável do que
quando entrou. Os lábios que bebericavam da caneca tinham um corte que
não deveria existir, no braço direito a marca dos dedos que a seguraram
contra sua vontade. O queixo estava menos roxo do que imaginei que
ficaria, e me deixava mais conformado em não ter torturado o traficante de
merda antes de lhe dar a paz eterna que não merecia.
Não, eu não me arrependia de ter matado aquele homem.
— Ele não vai mais te incomodar — afirmei, alcançando o maço atrás
de mim. — Cigarro?
Sim, eu gostava de ver surpresa naquele rosto.
— Você fuma. — Alana arqueou as sobrancelhas, os olhos indo da
marca do cigarro para os meus. — Há uma semana, você me pediu pra
parar.
— Eu não te pedi nada, perguntei seu preço.
— Por quê?
Porque te ver com os lábios ao redor de qualquer coisa era pura
tortura, quis responder.
— Porque não quero dividir meus vícios contigo.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos outra vez bebendo
das tatuagens que via no meu peito.
— Vai me pedir pra largar o café também?
— Mai[23]. Todos nós temos limites, Alana. — O sorriso que recebi me
deixou desconcertado, meus olhos desviando para qualquer lugar que não
ela.
Cazzo, e Lorenzo estava irritantemente correto. Eu não precisaria nem
mesmo me casar para nunca mais ter paz.
— Quer um cigarro ou não? — Empurrei o maço e isqueiro após
acender um, a vendo se afundar em um dos meus vícios. — Por que entrou
no carro de um traficante?
— Preferia que eu entrasse no seu?
Preferia que fosse mais dócil, mas me esforcei para controlar o
temperamento naquele sábado.
— Sim.
— Pra me fazer te chupar?
Alana viver na defensiva era outra semelhança irritante. Cocei a barba,
novamente repassando os acontecimentos do banheiro na minha cabeça.
— Eu nunca te faria me chupar — afirmei para nós dois, lembrando da
mão afastando a camisinha antes da boca vermelha me engolir.
Não, eu não precisava fazê-la me chupar: nem ao menos tinha sugerido
antes dela decidir me mostrar como o fazia bem. Mas a lembrança era uma
que seria bom evitar agora.
— Essa é a sua resposta? — Alana exalou a fumaça antes de continuar,
tornando nossa distância ainda menor do que a recomendada para aquela
manhã. — Nenhuma continuação sobre eu não te chupar ainda? Ou talvez
sobre como eu vou querer te chupar? Sem piadinhas sobre esporrar na
minha boca?
Ah, esporrar. A palavra era realmente parecida com o que havia dito
em italiano no parque, e respirei fundo, apertando as mãos na borda da
bancada ao tê-la tão perto. De onde ela tirava essa coragem depois do
passado na noite anterior?
— Não acho que seja um dia para piadas.
Senti sua respiração no meu peito, a brasa do cigarro quase tocando
meu braço, Alana, como sempre, me esquentando.
— Por quê? Acha que vou quebrar se você continuar sendo você?
Tinha certeza.
Mas não havia uma resposta que quisesse dar em voz alta. Era estranho
a vontade de tocar nos cabelos bagunçados, em beijar sua testa ao invés de
seus lábios. A deixaria ficar nos meus braços o dia todo se isso a fizesse se
sentir melhor, se apenas tal coisa pudesse curar todas as feridas.
A vida não funcionava assim.
— Eu não quebro tão fácil.
Permaneci quieto, diferente dela. Alana tinha uma inabilidade crônica
de parar quieta.
A sensação das mãos vagando pelas minhas tatuagens era melhor do
que poderia esperar. A pele era quente, o toque leve uma eterna provocação.
Fechei os olhos ao sentir a ponta dos dedos na cicatriz que havia entre duas
costelas, coberta com parte da santa que minha mãe dizia ser nossa
protetora.
— É linda. — Meu coração não estava mais acostumado a bater
naquela velocidade.
— Santa Catarina. Ela é... — Sibilei quando Alana foi da cruz que
havia abaixo do umbigo para o elástico da calça, minhas mãos prendendo as
dela. — Uma santa italiana. O que está fazendo, senhorita Martins?
— Voltamos para o meu sobrenome, Nickolay?
Ouvi-la dizer meu nome pela primeira vez foi melhor do que poderia
imaginar. Falá-lo foi a distração perfeita, ela livrando suas mãos, os dedos
traçando os desenhos na minha virilha, como se me desafiasse a manter o
controle. Ela não deveria reagir assim após noite passada, e eu sentia certa
culpa por me deixar ficar dolorosamente duro com seu toque.
— Alana, pare. — Quase não achei minha voz para pedir, a calça que
eu usava deixando óbvio o quanto minha ordem era mentira. — Pare de me
provocar.
Ouvi-la soltar uma risada fez com que minhas mãos não quisessem
mais nem tentar segurar as dela.
— Eu não estou provocando.
Senti seus dentes me morderem antes dos lábios dela tocarem os meus,
Alana reafirmando que gostava de me puxar pelos cabelos. Nossos cigarros
juntaram-se no chão do mesmo jeito que encontrei sua língua, e por um
momento, me deixei queimar.
A coloquei sentada no balcão frio, permitindo-a explorar o que
quisesse enquanto descobria que nela, até o gosto de nicotina era bom. Sua
mão imitou o que havia feito no clube e meu corpo ignorava qualquer
ordem racional de parar, respondendo com mais vontade do que deveria.
Manter os dedos em sua cintura era mais difícil do que parar de fumar, e eu
desisti de tentar quando a senti arranhar minhas costas.
Provando desse problema pela segunda vez, descobri que impedir a
mulher de fazer o que quisesse comigo era difícil demais na prática.
Lembrar que ela não tinha memória da nossa primeira noite me fez
considerar pará-la de tentar abaixar minha calça. Ela gemer na minha boca
me fez mandar tudo para o inferno, eu achando o zíper do seu vestido. Foi
só quando dei um passo à frente que percebi o quão próximos estávamos de
cometer o mesmo erro, a dor aguda com a brasa do cigarro queimando meu
pé responsável por me fazer recuar.
A imagem dela sentada no balcão de pernas abertas me perseguiria
todas as próximas manhãs e noites, assim como o gosto do seu sangue na
minha língua, o lábio outra vez aberto.
— Não. — A palavra destruiu toda a coragem que havia naquele olhar.
As pernas fecharam e os braços cruzaram ao redor do peito, Alana se
transformando da mulher que me queria para uma garota que se afastava
com vergonha.
Ela desceu do balcão, preferindo observar o piso da cozinha.
— Então por que me deixou começar? — Tinha veneno naquela voz, e
lembrei tarde demais das marcas em seu braço, minha mão contribuindo
para recordá-la do machucado.
— Não é assim que se supera as coisas — afirmei, a soltando e
recolhendo os cigarros amassados, os jogando no lixo. — Sesso[24] é a pior
válvula de escape.
Claro que não gostei de escutar as próximas palavras, meu cérebro
automaticamente reconsiderando a última decisão.
— Bem, sexo é a melhor válvula que tenho.
E a vi sumir pelas escadas, descendo em poucos minutos com os saltos
de volta nos pés, as mãos revirando a bolsa. Não consegui mais ficar longe
ao ver a frustração no rosto, Alana olhando com raiva para o celular
provavelmente descarregado.
— Quer que eu te leve para sua casa?
Novamente encontrei raiva, ela parecendo considerar o silêncio antes
de abrir a boca.
— Eu quero que você me trate como antes. Não é noite passada que
vai me fazer quebrar. — Os olhos mel me encaravam implorando, ela
parecendo demais com Giovanna. — Eu quero que você finja que nunca me
achou naquele carro, e faça piadas escrotas sobre a merda do seu pau, ao
invés de ser um idiota que faz eu me sentir uma fraca inútil!
Ao menos aquele pedido eu conseguiria realizar. Os olhos verdes que
reconhecia nos dela fazia ser bem mais fácil me tornar um completo babaca.
Giovanna buscou a normalidade por tanto tempo, uma normalidade que
nunca pude lhe dar. Poderia oferecê-la para a mulher ao meu lado.
— Se eu fosse um idiota, já estaria te comendo — me forcei a dizer, ao
invés de puxá-la para meus braços. — E amanhã, se lembraria com
vergonha e nojo de mais uma transa mecânica que teve para sentir qualquer
coisa que não a sua dor. É isso que quer, Alana? Foder para esquecer, e
depois ter que olhar todas as semanas para minha cara?
E ali estava, outra semelhança nossa.
Não esperei para ver o resultado das minhas palavras, abrindo a porta
da frente e achando Matteo encostado na Mercedes.
— Leve a senhorita Martins para casa. Se ela negar, chame um Uber e
siga o carro até vê-la sair dele.
— Sim, chefe.
Ser um babaca nos servia bem, pelo menos por agora. Com alguma
sorte, ser um babaca mandaria Alana embora da minha vida para sempre,
do mesmo jeito que ela me mandava à merda antes de bater a porta ao sair.

A primeira coisa que fiz ao entrar no apartamento foi carregar o


celular. Minha cabeça doía, e pela primeira vez em semanas escolhi água
para acompanhar o gelo, ignorando a vodca que me dava bom dia no
congelador. O frio caiu bem no lábio aberto, ainda mais dolorido depois de
passar pelos do italiano.
Ah, mas que merda que eu tinha feito?
Inacreditável sua habilidade de foder com tudo, Alana. Como eu ia
olhar na cara dele agora? Melhor, como eu iria conseguir não o olhar
durante a tortuosa uma hora de aula, depois de descobrir o quão bem o
professor sabia beijar? Deveria saber fazer até muito mais com aquela boca.
Nunca mais apareceria em Inteligência Competitiva, assim como
nunca mais entraria no carro de nenhum desconhecido.
Nickolay DeLucca havia sido o primeiro homem a me afastar, por
mais que a calça deixasse óbvio o quanto queria prosseguir com o que eu
tentava começar. Assim como era óbvio que ele não era apenas um
professor.
A casa enorme no meio de Moema gritava dinheiro, e não era
compatível com o salário de um docente, muito menos um da idade que ele
aparentava ter. Só o motorista, que mais parecia um segurança disfarçado,
deveria ganhar o que o italiano supostamente tiraria de salário na faculdade.
Ele também socava como alguém que havia feito isso muito mais do que
duas ou três vezes em toda a vida.
Só que por mais que meu cérebro soubesse o que realmente significava
a frase 'ele não vai mais te incomodar', a segurança que senti me fez ignorar
o que deveria gritar perigo. Eu queria muito nunca mais ser incomodada. Eu
buscava paz já fazia tanto tempo, e conseguia encontrar o sentimento na
santa tatuada em seu peito, por mais que ela chorasse sangue.
Procurei algo para comer, me sentindo idiota por manter uma despensa
cheia de álcool. O café tomado ao acordar tinha um gosto delicioso, tão
bom quanto olhá-lo vestindo apenas uma calça de moletom. Tão amargo
quanto as mãos que me afastaram, ou quanto ele me ler tão bem e afirmar
que sexo era uma péssima fuga. Nickolay nem mesmo sabia do que estava
fugindo.
Babaca.
Ao menos ainda podia esfregar na cara de Djamila que não tinha
transado com o professor novo. Que a escolha não tinha sido minha, eu
poderia omitir.
“Me liga.”
Foi a primeira mensagem que apareceu depois da tela acender. Li as
mais de dez mandadas por Carlos — zero de Djamila —, e não tive
coragem de ignorar, por mais que desejasse passar o resto do dia sozinha.
“Pode ser por aqui?”
Respondi, sem vontade alguma de socializar. Precisaria de camadas e
camadas de base para esconder o roxo que ficaria por alguns dias no meu
queixo, e a melhor alternativa era a de me trancar em casa durante todo o
fim de semana.
Voltei para a cama desfeita, o relógio marcando quase meio-dia me
lembrando que precisava pedir comida. Soltei os cabelos ainda úmidos, os
fios cheirando a limão. O xampu que achei em seu chuveiro tinha o mesmo
aroma que já havia sentido nele, e eu queria me chutar por ter reparado no
cheiro do italiano nas vezes que o tive perto.
Achava engraçado como, para mim, era mais íntimo entrar no banheiro
da sua suíte do que tentar tirar sua calça. Eu não relacionava sexo com
intimidade, pelo contrário: poderia transar com alguém sem saber qual era
sua cor favorita. Talvez a de Nickolay fosse amarelo, a única viva colorindo
as toalhas no banheiro branco demais. Ele também era muito mais
organizado do que eu, e a gaveta que abri em busca de uma escova me
mostrava que suas palavras de antes eram verdadeiras. Sexo poderia não ser
a melhor válvula de escape, mas a quantidade de camisinhas que vi me
falaram que aquela também deveria ser a dele.
Sim, usar seu banheiro foi muito mais íntimo do que provar dos lábios
grossos.
“O que a Mila aprontou ontem?”
Sabia que a real pergunta que meu amigo queria fazer era o que eu
tinha aprontado, e já imaginava tudo que minha atual inimiga tinha
desabafado com ele.
“Nada de diferente do de sempre.”
Abri o aplicativo de delivery, minha falta de criatividade me fazendo
escolher outra vez comida chinesa. O yakissoba sem Djamila teria um gosto
muito melhor, os rolinhos primavera muito mais apetitosos quando não
acompanhados de um sermão.
“Que é?”
Confirmei a ordem antes de responder.
“Ser uma vadia que fala antes de pensar.”
Digitava pensando o quanto eu queria que as palavras chegassem nela.
Se não tivesse recebido qualquer visita ontem à noite, meu braço não doeria
e as aulas de quinta-feira continuariam beirando o suportável.
Mas não, ela tinha que aparecer e tirar de mim uma das primeiras
noites na qual estava me sentindo confortável sozinha. Virei para o lado, me
afastando da janela e deixando a cabeça afundar no travesseiro. Era fácil
demais colocar a culpa nos outros, assim como era para Djamila colocá-la
toda em mim.
“Quer companhia?”
Sim.
“Não precisa.”
Eu acabaria afastando os dois da minha vida se continuasse me
comportando daquela maneira.
Só que companhia muitas vezes implicava em conversas que eu
gostaria de não ter, e que estavam cada vez mais difíceis de se evitar. Então
deixei meu não ser minha última resposta e tomei mais um banho, querendo
tirar o perfume de Nickolay do corpo. Eu não deveria ter o cheiro de
ninguém a não ser o meu, deveria me bastar, e não considerar me tornar
dependente de alguém para ter uma defesa.
O hematoma no rosto parecia caçoar da minha habilidade de ficar viva,
e eu ignorei-o, vestindo camiseta e legging, indo buscar meu pedido na
portaria. Sentei na frente da televisão e comi metade da comida direto da
caixa enquanto me distraia com filmes de comédia. Detestava comédias,
mas as situações forçadas e a ausência de romance faziam um bom trabalho
em desligar meu cérebro.
Foi quando abri a porta de correr, meu vício chamando por um cigarro,
que confirmei o quanto meu timing era péssimo. Morava no segundo andar,
a sacada na parte da frente do edifício sendo baixa o suficiente para Carlos
me ver nela.
Sim, eu teria ignorado o interfone, tivesse conseguido sumir antes dos
olhos verdes pararem em mim. Não tinha muita escolha a não ser atendê-lo,
terminando meu cigarro no segundo que o interfone tocou.
Transformando nossa dupla em trio assim que entramos na faculdade,
Carlinhos tinha sido uma benção para nossas cabeças duras. Brigas entre
Djamila e eu não eram frequentes, mas quando aconteciam, poderiam durar
meses, nós duas fingindo estar tudo bem enquanto trocávamos farpas
diárias.
Sendo a personificação do deboísmo, Carlos sempre ajudava a
apaziguar as discussões. Eu invejava a eterna paciência do garoto, e em
quase quatro anos de amizade, podia contar nos dedos as vezes que o tinha
visto reagir mal a qualquer coisa.
Agora era uma delas.
Minha mente realmente não andava funcionando muito bem. Demorou
alguns segundos de silêncio, ele abrindo e fechando a boca, para eu
perceber o que havia esquecido de cobrir, minha mão indo automaticamente
para o hematoma que uma boa base teria escondido.
— Lana, o que aconteceu com você? — E a preocupação que via no
meu amigo lembrou demais a que achei nos olhos escuros noite passada.
Bem, não tinha como voltar no tempo, e eu precisaria lidar tanto com
Carlos vendo o que não devia quanto com Nickolay me olhando de uma
forma não apropriada para seu cargo.
— Promete que não vai abrir a boca pra Djamila. — Impus minha
condição, dando espaço para meu amigo entrar. Só quando ele pisou no
apartamento que ouvi novamente sua voz.
— Alana, olha bem o seu rosto...
— Promete, Carlos — insisti, levantando o dedo indicador. — Ou eu
não te falo nada.
Talvez tenha sido minha expressão firme, e não toda a dó que o garoto
pode ter sentido ao me olhar naquele estado, que o fez se calar e me ouvir.
Nem estava tão feio assim — Nickolay com certeza não reclamou do que
via quando me colocou em cima do balcão — e me convencendo que não
havia pena nos olhos verdes, contei sobre a noite de ontem.
Claro que omiti a parte de ter entrado no carro de um traficante. Óbvio
que me limitei em dois ou três socos, ao invés de revelar que o homem
responsável pelo estado da minha cara deveria estar num muito pior.
Ou numa vala.
— Você nunca mais vai sozinha pra esses lugares — Os olhos não
saíam dos meus lábios inchados. — É a sua vez de prometer, Lana.
— Talvez esteja na hora de sossegar um pouco — menti para nós dois,
tomando um gole da água que segurava. — Acha que a Mila vai parar de
encher meu saco se eu parar de sair?
— Acho que se você não parar de sair todos os dias, quem vai começar
a encher seu saco sou eu.
Suspirei, me aconchegando mais nas almofadas do sofá e forçando um
meio sorriso, quando na verdade queria era dar um grito. Carlos nem
mesmo sabia o que realmente tinha acontecido e me pressionava para
mudar. Se descobrisse a verdade, com certeza arranjaria um jeito de me
trancafiar para sempre dentro do apartamento, minha opinião sendo a
minoria entre nós três.
— Por que veio visitar? — Resolvi me distrair fingindo estar
interessada, mas o olhar sem jeito que recebi realmente acabou despertando
de verdade minha curiosidade.
— Porque eu me preocupo com você, talvez? — Sabia que era por
outro motivo, e deixei claro meu conhecimento arqueando as sobrancelhas e
esperando a resposta verdadeira. — Porque eu ainda me sinto mal por
aquele dia antes do almoço, e ia te chamar pra ser nossa vela hoje à noite.
— Ia? — Carlos escolheu as palavras antes de abrir outra vez a boca.
— É uma festa, Lana. — E eu fiz a minha melhor cara de pidona. —
Tem certeza de que quer ir pra uma, hoje? — Afirmei com a cabeça sem
pensar duas vezes, e tive a certeza de que meu amigo viu pelo menos uma
ponta do meu desespero.
Ficar sozinha em casa era a pior coisa, e eu tinha acabado de deixar
aquilo bem claro para alguém que não sabia da história inteira. Bem, eu já
estava fodida mesmo. Não iria afirmar mais que era impossível de piorar,
mas estava bem conformada com o julgamento que haveria por parte dele,
internamente. Não tinha como escapar de um, não sem contar o que eu
precisava esquecer.
— Tem uma base boa o suficiente pra esconder isso, Pipoca?
Infelizmente, eu tinha.

— Carlos disse que tem um professor novo que não sai do seu pé —
escutei de Leonardo, nós três parados perto de uma das paredes. —
Verdade? — O moreno me olhou curioso, e eu imaginava o que Carlos
havia contado para o namorado antes daquela tarde.
Se Carlos saísse mais, eu viveria colada nele. Os dois garotos que
dividiam aquela festa comigo eram as companhias perfeitas, eu estando
presa numa conversa que espantava meu nervosismo desde que pedimos um
Uber. Ali não eram feitas perguntas desconfortáveis, e eu conseguia manter
minha calma e até me divertir com uma água na mão.
— Você disse, é? — Virei para meu amigo, antes de voltar a atenção
para seu namorado. — É verdade — confessei com um meio sorriso,
fazendo Leo levantar as sobrancelhas antes de me dar um igual.
— Quer aprender alguma coisa em italiano pra falar pra ele? — Sim, a
companhia dos dois era a distração que eu precisava.
— O que você tem pra me ensinar? — perguntei, verdadeiramente
interessada em ter algo para pronunciar na língua de quem me mostrou
saber fazer maravilhas com a sua.
Leonardo estava para abrir a boca quando o namorado o fez primeiro,
cutucando meu braço.
— Então Pipoca, eu acredito no que você disse sobre não ter transado
com o objeto de desejo de toda a turma — Carlos começou, e vi a atenção
dos dois ir para um homem que me entregava um copo.
Peguei a bebida, largando a garrafa d’água vazia na lixeira, e meus
olhos seguiram o bartender até ele retornar para trás da bancada de vidro.
Encostado nela, de braços cruzados e me olhando sem um traço de
felicidade, estava o tópico da nossa conversa.
— Mas mata minha curiosidade. Me explica por que ele tá aqui te
pagando um drink.

Meu coração acelerou assim que o reconheci. Tinha uma mistura de


desconforto com curiosidade no peito ao achar o responsável por manter o
resto da minha sanidade a poucos metros de onde eu estava. Eu não deveria
ficar feliz com sua presença.
Vê-lo usando uma calça que pouco escondia qualquer modéstia tinha
sido um ótimo bom dia. Olhar para ele pela primeira vez com a combinação
jeans e camiseta branca o tornava o melhor convite da noite, os braços
musculosos que enchiam as mangas me lembrando da segurança que havia
sentido ao passar por ali.
Era detestável associá-lo a qualquer coisa boa. Detestável como, de
algum jeito, Nickolay sabia qual era minha bebida favorita, eu provando
vodca com suco de framboesa assim que dei o primeiro gole no copo que
segurava. Completamente irritante como, por mais que devesse, não
conseguiria ignorá-lo e me manter longe das mãos tatuadas.
— Eu já volto? — mais perguntei do que disse, encolhendo os ombros
e dando os primeiros passos em direção ao italiano.
Não escutei nenhum impedimento e andei até Nickolay, invejando sua
sorte, ela o fazendo acertar o drink que eu mais gostava de beber. Não me
importaria em dividir um pouco do meu azar com ele — entre outras coisas,
agora que o via de perto. Quem sabe, se me esfregasse nele só mais um
pouquinho, conseguiria pegar um pouco da sorte para mim.
Incrível como alguns homens simplesmente emanavam uma confiança
inabalável. Nickolay era um deles: o jeito que estufava o peito, a expressão
de quem era dono do lugar, os olhos perigosos e ao mesmo tempo
convidativos. Todas as mulheres que passavam por ali pareciam concordar
com o último, eu não sendo a única a observá-lo. Mas eu era a única que me
aproximava, e a única com quem ele dividia sua atenção.
Parei ao seu lado, o canudo ainda na boca, e tentei mais uma vez
descobrir o que me transmitia tanta segurança naquele conjunto que deveria
me afastar. Era o fato dele ter me salvado de mais um trauma? Mesmo
depois do italiano ser inconveniente por semanas, meu cérebro ainda o
identificava como um maldito porto seguro.
E isso era tão bom, e incomodava tanto. Eu queria ser meu próprio
porto, e não conseguir isso me fazia sangrar ainda mais por dentro.
— Costuma beber tudo que te oferecem, ou essa é sua forma de dizer
que confia em mim? — ele perguntou quando cheguei ao seu lado,
desviando os olhos de mim e encarando a pista de dança.
— Deveria confiar? — Os braços descruzaram, Nickolay alcançando o
que parecia ser whisky.
— Depois de beber, pergunta? — Deu para notar a irritação em seu
rosto, a mandíbula ficando ainda mais marcada enquanto a mão esquerda
chacoalhava cubos de gelo no copo de plástico. — Por que é sempre tão
descuidada, Alana Martins?
— Por que você é sempre tão agradável, Nickolay DeLucca? —
repliquei num tom irônico, me encostando no bar perto o suficiente para
meu braço roçar no dele.
O toque não passou despercebido, sua atenção voltando para mim. O
fogo que ele me deixou ver em seus olhos disse que eu não era a única que
queimava, e mesmo com seus lábios retos, os meus deram o menor dos
sorrisos ao escutar as próximas palavras.
— Sua companhia desperta meu melhor, dolcezza. — E por um
segundo, a frase soou verdadeira demais, ele não parecendo devolver minha
ironia.
A atenção foi novamente para a pista, os lábios grossos na boca do
copo, acabando com o resto do líquido que havia ali em um gole. Eu não
deveria fantasiar com meu professor. Não deveria voltar para nossa manhã e
me deixar imaginar o que poderia ter acontecido se ele tivesse resolvido
continuar. A tatuagem da santa era mais bonita vista sem nenhum tecido por
cima, e queria perguntar a origem de cada uma das mais de dez que já havia
contado em seu corpo. Tentando evitar me perder nelas mais uma vez, tirei
o copo vazio da sua mão e me virei para o atendente, pedindo mais uma
dose ao mostrar minha comanda.
Encontrar surpresa na próxima frase foi divertido.
— Está me pagando uma bebida?
— Você me pagou uma, nada mais justo. — Virei o rosto para ele com
um sorriso, um arrepio percorrendo minha espinha ao sentir a intensidade
de Nickolay.
E outra vez, uma intimidade muito maior do que beijos e sexo. O jeito
que ele me olhava tirava toda a minha roupa, a calça e o blazer que me
cobriam quase por inteiro parecendo não existir com seus escuros em mim.
Meu cérebro parou, voltando a funcionar somente quando seu foco foi para
o homem que segurava um whisky.
— Devo passar, chefe?
Ele fez que sim com a cabeça, e a comanda voltou para minhas mãos,
o copo cheio para a dele.
— Eu detesto isso — confessei, o imitando e olhando para a pista,
terminando com a bebida que ainda segurava. — Esse jeito que sempre
perguntam pra vocês o que deve ser feito.
O silêncio que recebi me fez achar Nickolay junto de uma expressão
curiosa, ele só voltando a falar depois de me examinar calado por segundos
demais.
— Não gosta de ser cuidada?
— Isso não é ser cuidada — expliquei. — Isso é o bartender me
tirando o poder de escolher te pagar um drink — continuei, abandonando o
copo vazio na bancada. — Cuidar é me acompanhar até a porta de casa, me
dar um casaco se estiver frio. Manter cafeína na minha corrente sanguínea.
— Ele parecia estar se divertindo com a minha resposta, e notei que aquela
era nossa primeira conversa que beirava o agradável. — Esse último item é
bem importante.
Eu não deveria querer sorrir ao olhar para DeLucca.
— Vou tomar nota disso. — Ele virou a dose de whisky em um gole.
— Alana, não parece... — Houve hesitação, e pela segunda vez, o vi ter
cuidado ao escolher as palavras. — Parece melhor. Está bem?
Havia uma preocupação que me fazia querer manter-me a quilômetros
de distância dele. Eu não merecia ou queria aquela preocupação, e ainda
assim, todos pareciam me encher dela diariamente. Não respondi, fugindo
de seus olhos e achando a mão que me salvara noite passada. Ver o estado
dos nós dos dedos e não sentir nenhuma culpa era impossível.
— Dói?
— Quer beijar para tirar a dor? — A pergunta veio com um sorriso que
combinava com partes de nossa manhã, Nickolay mais uma vez entendendo
o quanto eu queria o habitual. — Tenho outras sugestões se não quiser usar
a boca. — Ele se abaixou para sussurrar no meu ouvido, a voz rouca me
deixando muito mais embriagada do que a pouca vodca consumida.
Inacreditável, e pela primeira vez em muito tempo, nem estava sendo
da pior forma.
— Vejo que voltamos ao normal — observei, o filho da mãe me
deixando aliviada por não me tratar como vidro fino. Eu não quebrava,
afirmava outra e outra vez enquanto amaldiçoava nossa diferença de altura,
mesmo comigo de salto alto. Não dava para sussurrar o que eu queria em
seu ouvido, seus lábios mais longe do que gostaria. — E é beijar pra sarar.
— Beijar para sarar — ele repetiu, voltando a apoiar a mão no balcão
sujo de álcool. — Acho que isso nunca aconteceu comigo. Gostaria de ser a
primeira?
— As mães italianas não beijam os machucados dos filhos?
Soube que tinha escolhido mal as palavras quando os olhos perderam
um pouco do brilho, os lábios formando uma linha reta antes de soltarem as
próximas palavras.
— Só as que estão vivas.
Algo dentro de mim não gostava de ver nada triste nele, e corri os
dedos pelo dorso de sua mão antes de conseguir me parar.
Foi a primeira vez que o vi com uma expressão relaxada, e eu queria
ter ouvido o gemido que vi sair de sua boca. Como se estivesse desfrutando
o toque que recebia, os olhos escuros se fecharam e o menor dos sorrisos
voltou para os lábios grossos.
Aproveitando o raro momento em que não era observada por ele, me
deixei estudar seu rosto. Nickolay tinha traços fortes, e a barba por fazer
combinada com a mandíbula marcada o tornava magnético para os olhos.
Mas só agora percebia os cílios longos e a cicatriz na ponta do queixo. Só
assim perto conseguia ver que havia um único fio branco no meio dos
cabelos pretos, e precisei me segurar para não deixar minha mão senti-los
outra vez.
Veio uma pontada de culpa ao vê-lo franzir a testa quando meus dedos
passaram pelo hematoma mais feio que havia ali, e no próximo instante
levava a mão para um beijo. Ele tencionou no segundo que toquei o
machucado, os olhos escuros abrindo e me observando, como se
precisassem desvendar meu próximo passo.
— Isso... — Mas Nickolay não recuou, e precisei ler seus lábios para
entender o que me dizia. — É bom. Já estou me sentindo melhor, dolcezza.
— O coração acelerou mais uma vez quando sua mão livre envolveu meu
rosto, ele me dando a proximidade que eu queria encostando a testa na
minha antes de continuar. — O que eu tenho que fazer para conseguir te
mandar embora? Ser um babaca não está funcionando.
— Pare de me pagar bebidas e seja mais babaca. — Deu para ver o
conflito em seu rosto quando rocei meus lábios nos dele, e ali estava eu,
piorando mais nossa situação. — Você também pode beijar pra sarar, se
quiser.
Não esperava que fosse ter uma resposta tão boa, Nickolay mais uma
vez me fazendo entender o quanto gostava da combinação de álcool e
nicotina. Tinha um quase descontrole na forma como ele beijava, me
segurando forte como se eu fosse desaparecer caso soltasse, provando da
minha boca como se precisasse suprir um vício.
Dava para sentir o quanto ele não queria se afastar, o quanto parecia
difícil tirar os lábios dos meus. Ainda assim, foi ele quem teve força o
suficiente para fazê-lo.
— Vá embora — pediu, ainda segurando meus braços, e tudo que eu
via era o quanto ele queria que eu ficasse. — Corra de mim, Alana. Não
sabe com o que está se metendo.
Eu queria ficar.
— Você fez eu me sentir segura pela primeira vez em muito tempo. —
Queria ficar por muito mais do que uma noite, minha mente traidora
gritava, indo contra tudo que havia prometido depois de Thobias.
Engraçado como Nickolay não parecia feliz depois das minhas últimas
palavras.
— Mesmo tirando a vida de um homem? — Ele enfim tocou no
assunto que meu cérebro tinha resolvido ignorar, e desejei saber se aquela
era a verdade. — Ainda se sentiria segura se eu o tivesse matado na sua
frente? — Nickolay perguntava, não deixando espaço para interrupções. —
Já viu alguém morrer, Alana?
O cheiro de limão era o mesmo que achei em seu chuveiro, a
respiração dele batendo em meus lábios antes das mãos me deixarem.
Se eu já tinha visto alguém morrer?
— Os minutos finais não são bonitos. — Ele ainda olhava para mim ao
falar, me fazendo ter a certeza de que o homem conhecia a morte tão de
perto quanto eu conhecia.
Não, eles realmente não eram. Mas as palavras ficaram só na minha
cabeça.
— Volte para seus amigos, Alana.
Ele se virou e foi embora antes que eu tivesse a chance de responder,
meu corpo protestando ao perdê-lo de vista. Carlos chegou antes que eu
pudesse recuperar a capacidade de raciocinar, vestindo o olhar de alguém
que não me daria paz até saber o que tinha acabado de presenciar.
Eu queria saber tanto quanto meu amigo, e expliquei minha parte da
confusão usando todos os detalhes que podia revelar enquanto implorava
para ele manter o contado de Djamila, pelo menos por enquanto.
Por mais que a festa estivesse divertida, procurava pelo italiano entre
um assunto e outro, minha mente não esquecendo das suas palavras. Mas
ele passou o resto da madrugada fora da minha visão, por mais que eu
tivesse a sensação de ter seus olhos em mim.
O Uber parou na frente do meu prédio às três e meia da manhã, o carro
com Leonardo e Carlos dentro apenas seguindo quando eu passei pelos
portões da portaria. Escutei-os partir, e segundos depois, uma Mercedes
preta estacionou no mesmo lugar, a janela descendo.
Ver Nickolay me fazia querer correr até ele, por mais dura que fosse
sua expressão.
— Quer entrar? — perguntei, alto o suficiente para que ele pudesse
escutar.
Seu olhar foi para o volante, ele parecendo considerar a minha
proposta.
— Quero. — A resposta veio muito mais baixa, e eu me perguntei se
tinha o ouvido corretamente quando o vidro voltou a subir, Nickolay indo
embora sem mais palavras.
A sinceridade que ganhei, junto com a negação que veio, também foi
muito mais íntima que nossa manhã na cozinha.

Emília Ferretti já fazia parte da Famiglia antes de ter feito parte da


minha vida. Com marido e descendência italiana, ela era uma das únicas
mulheres em nosso meio. Apenas dois anos mais velha do que eu, a
professora que substituía todas as quintas era uma das pessoas mais
persistentes que conhecia.
Naquela manhã de domingo, vê-la quebrada era um lembrete irritante
do que eu insistia em não fazer ao incentivar qualquer aproximação com
Alana. O acidente de carro havia lhe tirado o marido, e dava para ver a
culpa nos olhos azuis, por mais que não tivesse sido ela a responsável pela
batida.
Acidentes aconteciam demais em nosso meio.
Dividimos um café, Lorenzo e eu ouvindo os detalhes de sua última
semana com Francesco. Pensar que algum dia poderia estar no lugar de
Emília me tirava a vontade de respirar perto da única que ocupava minha
cabeça. A voz dela me chamando para subir me atormentava tanto quanto
minha resposta positiva.
Só deixei a aflição transparecer quando pisei fora da cobertura,
acendendo o primeiro cigarro do dia. Até nicotina me lembrava da maldita,
a mulher me fazendo ainda mais bem ao controlar indiretamente meu vício,
eu passando os dias evitando tocar no maço numa tentativa de esquecê-la.
Cigarros nunca duraram tanto.
— Acha que o culpado é o mesmo homem que procuramos? —
Lorenzo perguntou ao entrarmos no carro, Matteo dando a partida assim
que bati a porta.
— No[25]. Emília não tem relação com Matarazzo.
— Ela tem relação com você. — Ele fez questão de lembrar do detalhe
que eu sempre me fazia esquecer.
— Não o suficiente para machucar. — E novamente, os lábios
vermelhos apareceram quando fechei os olhos. — Além do mais, não acho
que tenha alguém focando em mim. Eu nunca fui o alvo, só estava entre as
partes que eram — afirmei, querendo mais do que nunca acreditar naquela
verdade.
Doeria demais saber que minha única paz havia me sido tirada por
algo que fiz. De certa forma, incomodava até doer saber que Alana, de
algum jeito, me devolvia uma centelha daquele sentimento, por mais que
aquela mulher e paz fossem opostos.
— E ainda assim, eu te vejo com medo.
— Ela também teria, se fosse esperta.
— Acho que sua ragazza é mais esperta do que você dá crédito. —
Não escapou dos meus olhos os sorrisos debochados que os dois homens
trocaram no banco da frente. — Além de ser mais corajosa do que muitos
dos homens que conheço. — A frase me chamou a atenção. — Nico, eu
conto nos dedos de uma mão as pessoas que te enfrentaram desde que
entrou nessa vida. Pelo que me diz, Alana é uma delas.
— E eu deveria ficar feliz com isso?
— Armando ficaria. — Lorenzo adorava tocar no nome do meu pai
esses dias. — Ele falaria o mesmo que eu.
— Armando falaria que ela não é italiana — apontei o óbvio, a frase
soando hipócrita pela nacionalidade da minha mãe. Ainda conseguia escutar
a voz grossa, o homem repetindo bêbado outra e outra vez que as russas
eram o pior dos problemas.
— Ela tem a personalidade de uma. — Era impossível contestar
aquilo. — E conhecendo meu amigo, isso bastaria. Não se prive tanto da
felicidade, ou vai acabar amargo como Matarazzo. Sabe que a Famiglia a
protegeria com unhas e dentes.
— Do mesmo jeito que protegeram Giovanna? — Também era
impossível esquecer dos olhos verdes.
— Ela não é Giovanna, Nickolay.
Não respondi, a verdade nas palavras me fazendo ficar quieto. Não,
Alana passava longe de ser Giovanna: havia desejo ali. Desejo que a
tornava muito mais do que minha amiga algum dia havia sido. E por mais
que a culpa em substituir os olhos sem brilho pelos vivos me consumisse,
não conseguia forças para afastá-los de mim.

Decidi parar de nos torturar após passar uma hora evitando olhá-la
enquanto discorria sobre exigências de mercado. O desinteresse com a aula
naquela quinta era palpável, minha voz tendo colocado pelo menos metade
da sala em estado catatônico. Terminei a última frase com alívio, voltando
para a cadeira atrás da mesa que havia usado de encosto.
Os olhos de Alana não eram os únicos em mim. O amigo, sua
companhia no último sábado, me encarava com uma curiosidade não muito
gentil, até eu lhe devolver um olhar pior. Sentir minha expressão suavizar
ao achar meu rosto favorito gritava problema.
— Senhorita Martins, se puder ficar alguns minutos. — Ainda assim,
ignorei todos os protestos em minha mente ao fazer o pedido.
Alana esperou a sala ficar vazia antes de se levantar.
— Senhorita Martins? — ela perguntou com deboche ao parar na
minha frente, o vestido de verão a fazendo aparentar muito mais seus vinte
e três anos do que as roupas que usava durante suas noites. — Voltamos
para o sobrenome, professor DeLucca?
Os hematomas da última sexta já não eram mais vistos no braço, mas o
rosto com mais maquiagem do que me acostumei a olhar era uma
lembrança do que estava sendo escondido.
— Seria apropriado te chamar de dolcezza na frente de toda a turma?
— retruquei ao me levantar, expondo nossa diferença de altura.
— Eu ainda estou tentando descobrir se é apropriado você ter um
apelido pra mim.
Não era, mas em vinte e oito anos de vida, era a primeira vez que não
queria abrir mão de algo, o nome carinhoso e o cheiro de framboesa não
tendo preço. Alana, ao invés de recuar, se aproximou mais ao sentir meus
dedos passarem pela pele do seu ombro. Ela me fez ter outra vez noção do
seu perigo ao me fazer perder as palavras com apenas um toque, me
oferecendo seus lábios enquanto acariciava a mesma mão que beijou na
noite de sábado.
— Descubra tomando um café comigo.
Tinha felicidade, uma coisa tão rara nos meus últimos anos, naqueles
olhos.
— Eu gosto de café.
— Eu gosto quando eles não acabam na minha cara.
A risada que ela me deu foi sua primeira verdadeira.
— Isso só depende de você.
— Costuma sempre chamar suas alunas pra atividades
extracurriculares, Nickolay? — A pergunta veio quando me sentei com
nossas bebidas, o croissant de chocolate posto em sua frente fazendo-a ver
que eu havia prestado mais atenção do que Alana esperava. — Eu não pedi
um doce.
— Pediu com seus olhos — respondi, tomando o primeiro gole do
expresso duplo. — E não, essa é a primeira vez que chamo uma aluna para
sair. Assim como esse é meu primeiro emprego como professor.
— Mentira! — E me perguntei sobre qual dos fatos ela se referia. — É
sério? Você é bom demais falando pra essa ser sua primeira vez.
Sorrir com ela era natural demais.
— Eu não vou mentir para ti. — Falar, também.
Observei-a dar a primeira mordida no pão, satisfeito ao ver a expressão
em seu rosto mudar de uma descrente para uma prazerosa. Era o melhor
croissant de toda São Paulo, e eu pensava em como conseguiria manter a
promessa que acabara de fazer.
— Como você veio parar em São Paulo, Nickolay DeLucca? — Já
considerava quebrá-la em menos de um minuto.
— Há dois anos, eu... — Eu quase encontrei minha morte. Com
certeza, aquele não era um bom começo. — Precisei me mudar para o
Brasil para resolver alguns assuntos de família.
— Você tem família aqui? — Sacudi a cabeça, o pão doce apetitoso
demais naquela boca.
— No. Apenas negócios.
— E você dá aulas — ela disse, eu não conseguindo mais desviar dos
lábios sujos de chocolate. — Por prazer, certo? Você não parece precisar de
um salário. — Fiz que sim, pela primeira vez feliz com o emprego que
Matarazzo me sugeriu assumir.
— Ensinar é um dos meus três prazeres.
— Quais são os outros dois? — Claro que ela perguntaria.
— Temo pela minha segurança se revelar todos — respondi, deixando
a mão tocar na que ela descansava sobre a mesa, entrelaçando meus dedos
nos de unhas roídas. Ela deixar era como uma vitória que não deveria
querer. — Além de ensinar, eu gosto de beber. Às vezes café, às vezes
whisky.
— Vinho também? — Tinha curiosidade nos olhos mel. — Eu não sou
a maior fã de whisky.
— Vinho também, dolcezza. — Vê-la sorrir estava rapidamente se
tornando o quarto. Olhar para aqueles lábios assim era tão fácil quanto
querer me perder em sua boca.
Ela tomou um gole do café com leite antes de resolver seguir com o
que estava considerando falar. Se fosse continuar com aquele absurdo,
deveria me acostumar que Alana era tão fácil quanto a vida que tinha
escolhido.
— Posso estar errada, mas você não tem cara de um herdeiro que cuida
dos negócios da família, Nickolay. — Alana não poderia estar mais
equivocada: eu tinha o rosto e corpo de alguém que resolvia os assuntos da
Famiglia. Mas ela não precisava saber, não agora. — Você não parece um
homem qualquer, não bate como um homem qualquer. Você não é um, estou
certa?
— Também está longe de ser uma qualquer. — Ela pareceu surpresa.
— Estou errado em afirmar que passa longe da normalidade, Alana?
Foi ali sentado que notei pela primeira vez. Matarazzo se orgulhava em
dizer que seu filho tinha o dom de descobrir mentiras, mas as inverdades
estavam nos pequenos detalhes. Alana não precisou abrir a boca para me
dar todos os que precisava, a mordida no lábio inferior denunciando-a. Ela
sempre o fazia quando nervosa, mas havia um desconforto novo em seu
rosto doce.
Havia dor nos seus olhos, e eu quis enchê-la com toda a normalidade
que era capaz de oferecer. Foi embora tão rápido quanto apareceu, mas
estava lá. Algo que ela queria compartilhar tanto quanto eu gostaria de
discorrer sobre meus piores trabalhos, ou os últimos anos vividos na Itália.
— Não me olhe assim. — Ela franziu o cenho, incomodada. — É
intimidante.
— Digo o mesmo. — E outra vez a risada, Alana passando a mão
pelos cabelos longos, do jeito que esperei que tivesse feito na nossa
primeira noite. Não me privei de sorrir, contente ao ver seu corpo flertando
comigo. — Muito intimidante, dolcezza.
— Eu não intimido! — A frase não estava mais longe da verdade.
— O normal me intimida, Alana. E eu vejo o normal em ti: uma altura
mediana, um nome simples, café com açúcar. — Ela era a normalidade que
eu busquei por grande parte de minha vida. Tê-la nas mãos justo agora não
poderia ser mais intimidante.
— Italiano... — Era o apelido que ela tinha resolvido me dar desde
nossa primeira vez. — Se esse é seu jeito de me fazer sentir especial, a
gente tem que melhorar essa sua habilidade aí. — Ela usar nós me fazia
desejar ainda mais a realidade que já havia tomado conta da minha
imaginação.
— Eu não quero te fazer especial, Alana. Nunca precisei te fazer,
simplesmente é. — Minha confissão surpreendeu a nós dois, e agarrei com
mais força a mão pequena antes que ela tentasse se afastar. — O que vejo
em ti é normal. Fala comigo como se eu fosse um qualquer. Me enfrenta
sem medo, joga café na minha cara. Todos podem te reconhecer como uma
mulher comum, mas é extraordinária para mim. É tão irritante te ver desse
jeito.
E os olhos outra vez desviavam dos meus, Alana se interessando mais
pelo último pedaço do croissant. A simples sensação de pele contra pele me
deixava inquieto, minha boca pedindo para sentir o gosto de qualquer parte
dela.
— Por que, Alana? — perguntei, levando sua palma até meus lábios.
Por um segundo fechei os olhos, seu cheiro misturado com o de chocolate
deixando-a quase impossível de resistir. — Me ajude a descobrir o que eu
vejo, porque não consigo entender. Isso vai parar se conseguir o que quero?
Era engraçado me ver nela. Tinha a certeza de que meu rosto carregava
a mesma surpresa que reconhecia nos traços delicados, assim como sabia
que a próxima pergunta só era feita pela necessidade de escutar o que eu já
tinha deixado claro em outras palavras.
— O que você quer?
Respirei fundo, me esquecendo de todos os motivos que tinha para
inventar mentiras e mandá-la embora. Pela primeira vez em muito tempo,
eu estava sendo egoísta. Alana me encarava sabendo da resposta que viria,
eu sabendo que se a falasse, estaria assinando minha desistência em mandá-
la embora.
E ali estava eu, outra vez me contando mentiras. Mandá-la embora
nunca foi uma opção.
— Você.

Percebi a palma da mão que segurava suando, e era incômodo ter a


minha reagindo da mesma forma. Era desagradável o descontrole que
aparecia em mim ao seu redor, e ao mesmo tempo, maravilhoso como uma
mulher tão simples fazia eu me sentir vivo depois de tanto tempo.
Sacudi a cabeça. Não, Alana não era simples.
— Eu te quero. — Tentei disfarçar o nervosismo beijando a pele
branca, a necessidade de ouvir qualquer resposta deixando minha boca seca.
— Nunca quis tanto alguém.
Minha sorte se manifestou outra vez na resposta que veio.
— Você é meu professor. — A mão se afastou, Alana ocupando-a com
a bebida fria.
— Isso vai te afastar da minha cama? — Ela encarou as unhas curtas e
meu deu silêncio.
A estudei antes de voltar a falar. A mulher se distanciando do meu
toque com os ombros encolhidos me dava uma resposta. Seus olhos me
davam o oposto.
— É fácil de resolver. Eu me demito. — A frase chamou sua atenção, e
eu assinei minha derrota novamente, adorando e detestando como ela
entrava mais e mais na minha vida.
Lorenzo ficaria orgulhoso, ele tendo se comportado demais como um
pai nas últimas semanas, enfatizando o quanto uma donna[26] facilitava o dia
a dia de pessoas como eu. Minha opinião não poderia ser mais diferente da
dele, meu cérebro não sabendo como se comportar com a mulher sentada à
minha frente.
Como aquilo poderia ser considerado fácil? A rixa que tentava resolver
havia começado por causa de uma. Ter alguém para voltar após um dia de
inferno estava longe de resolver meus problemas, eu já imaginando todos os
novos que colecionaria por causa dela.
Mas eu finalmente entendia, depois de anos me perguntando, como
alguém poderia querer derramar tanto sangue por paixão. Mal a conhecia,
mas a última sexta me fez entender que começaria uma guerra inteira por
Alana. O pensamento me assustava tanto quanto o que havia acabado de
afirmar sentir.
Paixão era um sentimento tão perigoso quanto o amor que já tive.
— Você pode se demitir? — A curiosidade que havia ali era divertida.
Ah, dolcezza. Se você soubesse um quarto do que posso fazer, faria o que
não consigo e correria de mim. — Não digo pelo dinheiro, eu sei que você
não precisa do salário — ela nos lembrou, revirando os olhos.
Alana gostava quando eu ria, seu rosto inteiro sempre acompanhando o
som, a boca se curvando num sorriso.
— Emília é uma amiga da família — comecei com uma verdade,
fazendo o interesse que via aumentar. — Eu estou cobrindo seu lugar como
uma gentileza. E como acabou de afirmar, não preciso do dinheiro.
Era surpreendente como minhas palavras soavam verdadeiras. Bem, eu
não estava mentindo, apenas mascarando um pouco da verdade que deveria
lhe dar.
— Ah. — E ali estava Alana, sendo monossilábica, quando o que mais
precisava era uma frase completa.
As mãos pequenas voltaram a repousar sobre a mesa, eu me inclinando
para ela ao envolvê-las com as minhas.
— Eu preciso me demitir?
Ela engoliu antes de abrir a boca, olhando para onde nos tocávamos
antes da atenção voltar para mim.
— Não. — Irritantes, a mulher e a respiração que não sabia que
prendia, a vontade de levá-la para almoçar antes de jogá-la na minha cama.
Deveria evitar lembrar dos sons roucos que a queria fazer soltar,
deveria lhe dar minha verdade antes de me dar para ela por inteiro. Porque
era o que eu parecia estar fazendo, deixando todo o controle nas mãos que
segurava.
— O que eu preciso fazer?
O celular escolheu aquele momento para tocar, o número no visor me
dizendo que meus minutos de paz haviam acabado.
— Cazzo. — Terminei o resto do café num gole, tirando duas notas de
cem da carteira. — Eu tenho que ir.
Deixá-la era a última coisa que queria.
— O café tá pago...
— É para o táxi — a interrompi, deixando um dos meus dedos enfim
limpar o chocolate que havia no canto dos seus lábios, sabendo que se o
fizesse com os meus, apenas me atrasaria mais.
Ela não pareceu feliz com o dinheiro posto na sua mão, pronta para me
dar uma resposta muito menos monossilábica que suas últimas.
— Eu não sei seu endereço. — E ali estava, a primeira mentira. — E
mesmo se soubesse, não posso te levar agora. — Tentei amenizar minha
culpa com uma meia verdade. — Não discuta. Só hoje — pedi, sentindo
minha sorte mais uma vez desaparecer quando mais precisava. — Pode
brigar o quanto quiser quando nos vermos outra vez, dolcezza.
Sair de perto dela foi a coisa mais difícil que fiz no dia.

Catarina Matarazzo, antes Barbosa, havia sido a segunda esposa do


Don da Famiglia na qual havia me casado. Tendo encontrado seu fim muito
antes do tempo, a morte da mulher era um mistério que Vincenzo dedicava
a vida para desvendar. Ela o fazia odiar o mar, e não entendia como minhas
memórias não me faziam seguir o mesmo rumo.
Não sabia como ainda amava a água salgada, do mesmo jeito que não
fazia ideia de como me mantinha acordado mesmo depois de quase
quarenta horas sem dormir. Miguel Barbosa, quem um dia Matarazzo
chamou de cunhado, fora tão impossível de achar durante os últimos anos,
que encontrá-lo justo no Brasil precisava ser considerado sorte.
Sua mais nova irmã ter se casado com um italiano era considerado a
maior das desonras, ainda mais quando noiva de um dos aliados da família
espanhola. Os Barbosa comandavam um dos maiores cartéis da Espanha, e
Matarazzo sabia bem o tamanho da briga que compraria ao colocar um anel
na mão da mulher. Ele ter aceitado a luta feliz só esfregava mais na minha
cara o quanto paixões chamavam a morte no nosso meio.
Encostei na cadeira, o cheiro de couro se misturando com o cigarro
aceso e whisky que usava para anestesiar os pensamentos. A luz forte do
cômodo que fazia de escritório incomodava, mas era necessária para me
manter de olhos abertos enquanto esperava o outro lado atender a chamada.
— O que tem para me contar às — a parte mais velha não escondeu
um bocejo, mas os olhos cansados me davam sua total atenção. — Quatro
da manhã de um sábado, Nickolay? — Vincenzo perguntou, mesmo
sabendo qual seria o assunto.
Só havia um motivo para eu acordá-lo naquela hora.
— Localizamos Barbosa.
— Pelo que vejo, a conversa foi produtiva. — Ele claramente se
referia ao sangue que eu ainda carregava no rosto.
— Foi — disse, esfregando o rosto, já sentindo os efeitos das horas
acordado. — E não foi. — Não que estivesse ansioso para dormir, eu
querendo fugir de todos os pesadelos que viriam me atormentar assim que
fechasse os olhos.
— Como achar o homem que procuramos há mais de dez anos pode ter
terminado de forma não produtiva?
Alianças eram muito benéficas, e graças a uma que formei no Brasil,
tive o paradeiro do homem com quem Matarazzo havia começado uma
guerra. A morte de Catarina ainda era uma incógnita, e a raiva de ter a
paixão arrancada de si o havia feito agir antes de pensar. Eu teria feito o
mesmo, com certeza teria feito o mesmo, e era isso que eu repetia, desde às
cinco da manhã, para manter a calma.
— Foi uma ordem de Barbosa que matou Giovanna e... — A bola na
garganta sempre voltava ao lembrar do menino que tinha cuidado como um
filho. Ainda conseguia sentir o líquido quente se espalhando pela minha
camisa branca, só a lembrança tornando respirar insuportavelmente
doloroso. — Nicolas.
Não estava sozinho na dor.
— Continue.
— Mas ele passou os anos achando que a guerra era pelo carregamento
que nos roubou. Disse que Catarina foi morta por alguém de dentro da
Famiglia. Barbosa não tem relação com a morte da irmã, Don. Eu tenho
certeza.
E ali estava, a reação que esperava desde o momento que arranquei a
informação do espanhol.
Choque era uma coisa engraçada, e uma emoção mais presente do que
o considerado saudável na vida que levava. Lágrimas eram comuns, o
branco tomando conta da pele do rosto, os lábios ficando pálidos e secos. O
suor, o frio, as risadas antes da total perda de reação.
Vincenzo Matarazzo era diferente: ele destruía coisas. O homem, que
era o retrato do autocontrole, o perdia por completo ao receber notícias que
tinham o poder de fazê-lo sentir tamanho desconforto. Não fazia questão de
desvendar no que ele atirava, mas seis tiros foram disparados antes do
homem voltar para frente da tela.
— Se ele não tem relação, Nickolay... — O rosto tinha um sorriso
amargo, e eu sabia que ele estava prestes a dizer o que nos corroía por
dentro. — Quer dizer que fui eu quem matei Giovanna. Que eu comecei
uma guerra com o irmão de Catarina, que matou sua esposa e meu neto.
— Se tomar essa culpa, eu me torno tão culpado quanto ao ajudá-lo —
admiti, as palavras cortando como facadas.
Houve silêncio, o som de mais whisky enchendo meu copo tão
ensurdecedor quanto o mar que escutava do outro lado da linha. Amava o
mar, mas se as coisas continuassem assim, aprenderia a detestá-lo.
— Bom trabalho, figlio.

Semanas que me recordavam o fim da minha família nunca eram


consideradas boas. Havia passado mais de quatro anos, mas ainda via o mar
vermelho como se tivesse sido ontem. As descobertas recentes não
ajudavam meu humor, e apagavam qualquer luz que havia no túnel que
andava percorrendo nos últimos meses.
A promessa de tê-la perto na quinta era o que havia me dado forças
para chegar até aquela manhã, e ao me levantar, decidi ignorar o assunto por
hoje.
Mas a ausência de Alana me fez discorrer incomodado sobre a matéria
que teria adorado ensinar, tivesse uma vida normal. Não a ver durante toda
a aula me deixou mais tenso do que gostaria de admitir, e pela quarta vez,
considerei usar o número que tinha registrado em meus contatos.
Deveria ter pedido seu telefone. Minha inexperiência com
relacionamentos me deixava sem saber o que fazer e querendo fazer tudo, e
pela primeira vez em anos eu não fazia ideia de que cazzo estava fazendo.
Até minha coerência andava patética.
Foi o garoto loiro com quem a deixei naquele sábado que me impediu
de completar a ligação, o celular sendo virado para baixo ao notá-lo se
aproximando. E algo me dizia que não era para fazer qualquer pergunta
relacionada ao que estava disposto a explicar que ele parava na minha
frente.
— Professor DeLucca.
— Senhor Lins. — Deixei clara minha vontade em responder ao
demorar para lhe dar atenção, o telefone indo para o bolso junto com a
carteira e chaves do carro depois de sair da cadeira. — Posso ajudá-lo?
Carlos Lins, mesmo sendo mais novo do que eu, aparentava ter toda a
calma que passei a vida buscando. Os olhos verdes que me encaravam
mostravam mais desconfiança e menos paciência dos que os reservados
para sua amiga.
Decidi que respeitava a coragem do garoto assim que ele abriu a boca.
— Eu sei que é nosso professor, e eu sei que homens como você me
quebram com dois socos — ele começou, enrugando a testa. — Mas eu não
dou a mínima pra esses detalhes. Alana é uma das melhores pessoas que eu
conheço, por pior que seja a fase que ela está passando. — Então, todo o
descuido que via era uma fase? — Ela é boa, no melhor sentido da palavra.
Isso que você tá vendo, essa garota festeira que se deixa passar a mão...
— Eu não passei a mão nela! — Mas nossa primeira noite mais uma
vez voltou para minha memória.
Ele me ignorar fez eu me perguntar se era ela quem dava tanta
coragem para as pessoas.
— Bebendo e se drogando em festas, fumando que nem uma
desgraçada, se esfregando em todo cara gato que vê pela frente, isso é
minha amiga gritando por socorro! Alana não é só isso, professor.
Nosso café, a dor que reconheci nos olhos mel, voltou à minha
memória. Então Alana, como eu, escolhia esconder algo.
— Eu sei que não.
— Sabe mesmo? Ou você só vai deixar ela repetir o que tá fazendo na
sua cama? Porque pelo que eu vi no sábado, as coisas estão caminhando pra
isso.
Respirei fundo, tentando não parecer incomodado ao pensar que sim,
eu já a havia deixado repetir suas ações num lugar bem menos confortável.
— Eu quero machucá-la tanto quanto te vejo querer fazê-lo — afirmei,
achando que aquela fosse ser minha frase mais sincera.
Ele considerou o que eu disse por alguns segundos antes de finalmente
relaxar, abaixando os ombros enquanto o olhar tomava uma frente mais
curiosa do que defensiva.
— Por que Alana?
Sorrir pegou nós dois desprevenidos, por mais que já devesse ter me
acostumado em querer fazê-lo sempre que pensava nela.
Perguntava diariamente o porquê de ser justo Alana. Havia olhado com
desejo para mais mulheres que lembrava, e sabia bem o que era querer uma.
Tinha me enganado em ser só isso até vê-la batendo na janela. Até beijá-la
na minha cozinha. Até levá-la para tomar um café e nem tocar meus lábios
nos cheios de chocolate.
Lorenzo adorava discutir sobre relacionamentos, por mais que sua vida
fosse tão solitária quanto a minha. Paixão era o assunto que habitava noites
de charutos e whisky, ele sempre discorrendo sobre como bastava apenas
um detalhe. Um único detalhe, algo que prendesse suficiente a atenção e
afogasse nosso cérebro em dopamina.
Mas eu não conseguia achar o que era, por mais que me esforçasse.
Porque, para mim, eram todos. Era a boca vermelha. Os olhos grandes, que
sempre pareciam em chamas. A inabilidade de ficar quieta, o jeito que me
intimidava, suas mãos nos meus cabelos.
— Alana comprou um café e me beijou. — Cada maldito detalhe
importava. — E agora, tudo que bebo tem esse gosto irritante dela.
Eu precisava de Alana.
Eu estava, por falta de palavra melhor, fodido.

Tinha alguém batendo na porta do meu quarto, e eu estava louca.


Sabia que precisava voltar com as sessões de terapia, assim como tinha
certeza de que meu apartamento estava vazio quando entrei nele na última
quarta. Mas do que adiantava terapia comigo não podendo contar a
verdade?
Mudar a fechadura talvez ajudasse, me enganei, enchendo um copo
com gelo e vodca.
Estresse pós-traumático era uma coisa engraçada, e ao mesmo tempo,
não tinha graça nenhuma. Pelo menos era com isso que o Google me
diagnosticava depois de longas noites de pesquisa: você pode estar sofrendo
de TEPT[27]. Queria mais do que tudo dirigir até a casa de meus pais, só que
a última coisa que conseguiria ter era força o suficiente para mover a cama
que havia arrastado até a frente da porta.
Não tinha ninguém além de mim ali dentro, mas acordei tremendo na
quinta de manhã, e fingi estar de ressaca ao ignorar a ligação e responder a
mensagem de Carlos. O que iria falar? Estou no meio de uma crise de
ansiedade, por favor me ajuda? Claro.
Que não.
Então eu acendi um cigarro, pedi comida chinesa e maratonei um
seriado na Netflix que me fazia não pensar. Havia jurado parar com as
festas, e por mais que meu amigo imaginasse o contrário, estava cumprindo
minha promessa desde o último sábado que dividimos uma.
Se soubesse o quanto as festas me ajudavam, ele sairia sempre
comigo? Se tivesse ideia do quanto deixar minha mente livre fazia mal, se
sentiria culpado por me fazer parar de sair?
Eu deveria arranjar um novo emprego, sabendo que não conseguiria
meu antigo estágio de volta depois de simplesmente abandoná-lo. Deveria
parar de me sustentar apenas com a mesada generosa que recebia só por
existir. Não que qualquer salário que ganhasse como estagiária fosse ser o
suficiente para pagar um aluguel ou metade das despesas que tinha, mas dar
algum propósito para a faculdade que cursava poderia servir para substituir
as noitadas.
Sempre me sentia ridícula quando pensava naquilo, e Mila tinha razão
em estar puta e andar querendo minha cabeça. Depois do dia passado em
casa e das dezenas de mensagens ignoradas, ela não olhou na minha cara
durante toda a sexta, se apressando para o estágio que adorava sem nem um
tchau.
Djamila era uma das pessoas mais difíceis que eu conhecia. Ela
também era uma das que eu mais admirava. Desde pequena lutava pelo que
queria, e o jeito que nunca desistia fazia eu me inspirar nela e querer
continuar. Ela tinha sido o motivo que me fez não desistir. Naquele sábado,
tantos meses atrás, as batidas me atormentavam e eu admirava a lâmina
sobre a pia. O interfone tocou segundos antes de eu tomar o que seria minha
última decisão impensada. Mila subindo com vinho e bolo exatos dois dias
depois de eu me mudar para onde vivia agora me salvou.
Ela nem fazia ideia disso. Provavelmente, nunca faria.
Prendi meus cabelos com o elástico gasto, terminando o smoothie que
me serviu de almoço e me livrando do copo vazio antes de alcançar um
cigarro. Não havia muitos parques pela cidade, e o em frente a faculdade
teria que bastar, eu tentando usar o verde para distrair minha mente.
Encontrar Nickolay ali era uma surpresa mais que agradável, meu
cérebro me recompensando pela visão e colocando as paranoias de lado
enquanto se perdia nas tatuagens da mão que segurava o cigarro. Ele vestia
jeans e camisa, uma jaqueta de couro desnecessária ao seu lado, e eu me
perguntava como o homem não derretia embaixo daquele sol com a cor
preta, por mais que as mangas estivessem arregaçadas.
Não tinha lembrado dele desde segunda, quase orgulhosa de ter
conseguido afastar o homem de pensamentos que não queria mais ter por
nenhum. Problema, eles eram problema, e Nickolay parecia ser um muito
maior do que o que havia enfrentado e continuava encarando todos os dias.
Mas havia algo que me confortava ali. Algo que falava que o problema
era eu, e ele poderia muito ser a solução que buscava. Queria tanto acreditar
em soluções.
E ao olhá-lo tragando, o rosto mais melancólico e humano do que me
lembrava, eu me deixei crer.
— Oi, italiano — chamei sua atenção ao ocupar o lugar ao seu lado no
banco de madeira, e vi que eu não era a única a ser surpreendida com a
companhia. — Sentiu minha falta?
O sorriso que apareceu ali era genuíno, a cara cansada me contando
que o homem precisava tanto quanto eu de distrações.
— Ciao[28], dolcezza. — A mão livre me ofereceu maço e isqueiro,
abandonando-os no meio de nós dois antes que eu tentasse alcançar.
— Quem morreu? — Acendi um e perguntei, e a tristeza que vi em
seus olhos me fez querer voltar no tempo. Eu e minha boca grande. — É a
pior cara que já vi. — Minha boca grande, e minha habilidade de tentar
explicar e só piorar o que falava.
— Não é meu melhor dia, confesso.
E ali surgia, outra vez, o sentimento de segurança que tomava conta do
meu coração quando estava ao seu lado. Mesmo cansado, ele ainda
aparentava ser o homem mais intimidante que conhecia, assim como o
único que fazia meu cérebro sossegar.
Era por ele ter me salvado de mais uma desgraça? Era por eu ter
esperança de ser salva?
Tirei da bolsa as notas que carregava comigo desde nosso café,
recebendo algo próximo de uma careta ao colocá-las em sua frente. O filho
da mãe conseguia ser sexy até não tentando.
— Está me ofendendo.
— Conheço muita gente que gostaria desse tipo de ofensa.
Mas Nickolay se negou a pegá-las de volta, a mão longe demais da
minha. Ainda lembrava da nossa última conversa — como poderia
esquecer? — ele praticamente confessando querer o mesmo que eu antes de
sumir sem nem pegar meu telefone.
A parte pessimista do meu cérebro assumia que aquilo era ele
resolvendo se afastar. Eu não parecia, afinal, um partido atraente em
nenhum dos quesitos, ainda mais para alguém com a beleza que ele
esbanjava. Nickolay poderia arranjar muito melhor, alguém com curvas e
sem traumas, que não vivesse de vodca e macarrão instantâneo.
— Você é tão esquisito, Nico — deixei sair com a fumaça, meus olhos
se perdendo nas folhas de um limoeiro.
O silêncio foi longo demais, e tentei entender o que havia falado de
errado agora. Talvez meu erro tenha sido cometido durante nosso café,
insistindo em lembrá-lo do fato que eu era sua aluna.
Sinceramente, eu estava pouco ligando para o fato dele ser meu
professor. Nem Carlos parecia mais se incomodar com tal detalhe, o
desconforto vindo mais pelo jeito como eu estava curtindo a vida adoidada
do que pelo fato de eu saber o quão bem-dotado era o italiano que me fazia
companhia. Ele nem me incomodou com o primeiro na noite de quinta,
mesmo comigo escolhendo justo aquele dia da semana para não dar as
caras.
Senti o coração acelerar antes da mão roçar na minha, meu corpo já
não mais lembrando que poderia ansiar tanto por um toque. Era tão ridículo,
eram duas mãos dadas, coisa que se faz na pré-escola, e não com mais de
vinte anos.
Nunca mais queria soltá-lo, os dedos longos e calejados entrelaçando
nos meus como no dia do café.
— Minha mãe nunca me chamava de Nico. — Seus olhos ficaram
muito mais brilhantes do que o normal, e eu retribuí o aperto que sentia na
tentativa de passar algum conforto.
"Só as que estão vivas."
Aquela era uma dor que eu parcialmente entendia.
— Dizia que o certo era Kolya. Brigava por meu pai insistir em Nico.
— Ele fungou, dando um longo trago no cigarro, os olhos perdidos no sol.
— Faz mais de vinte anos que ela morreu. Eu tinha seis. E ainda lembro…
A frase nunca foi terminada.
Foi só quando ele se virou para mim que notei o hematoma no seu
queixo, escondido pela barba maior que o normal. Meus dedos foram para o
machucado antes que pudesse me parar, meu cérebro ainda agradecendo o
descanso que lhe tinha sido negado nos últimos dias.
— Vai perguntar o que é isso? — Era tão bom poder focar nele.
— Todos nós precisamos de um dia sem perguntas difíceis, não acha?
O beijo que dei onde antes estavam meus dedos foi suave, a barba
comprida fazendo cócegas. Descobri que poderia passar a tarde inteira
repetindo o gesto ao ser recompensada com a mesma expressão prazerosa
de quando o toquei no clube.
Eu não gostava de surpresas, mas estava aprendendo a apreciar quando
era ele quem me surpreendia. Bastou um mínimo inclinar do seu rosto para
os lábios grossos capturarem os meus. A língua que tocava a minha falava
que nicotina não era seu único vício, o frasco de metal sobre a jaqueta
devendo conter o álcool que provava.
Acabou tão rápido quanto começou, mas o braço indo parar ao redor
de meus ombros me manteve perto. Eu me aconcheguei contra seu peito
enquanto me perguntava onde estava o homem grosseiro que havia me
provocado por semanas, e agora me tentava com o cheiro cítrico que era
insanamente bom e irritantemente familiar.
Por que beijá-lo me dava calma? Eu deveria só querer arrancar as
roupas dele, era sexo que deveria fazer meu cérebro se calar. Ele ficar
quieto com Nickolay vestido estava errado. Nickolay me querer ali gritava
erro.
Estava tudo errado, mas então, minha vida andava sendo uma sucessão
de falhas. Ao menos aquela era uma agradável.
— Minha mãe era boa. — O italiano olhava para frente, como se
tentasse esconder de mim a emoção que a voz denunciava. — A casa
sempre cheirava a biscotti[29] e bolognese[30]. Borscht[31] e draniki[32], porque ela
nunca nos deixava esquecer da origem russa. — Ele me surpreendeu com o
pedacinho de informação, Nickolay não parecendo ter nada de fora da
Itália. — Cioccolato[33].
Dividir partes de sua infância também era muito mais íntimo do que
tudo que meu corpo queria fazer com ele, cada vez que eu sentia suas mãos
em mim. Dava para ouvir seu coração como música, nossos cigarros
esquecidos tendo queimado por inteiro. A voz rouca combinava com as
batidas, e as palavras, quando vinham em uma língua tão bonita quanto o
homem que as falava, compunham uma letra triste.
Sem me mexer e mais calma do que estive desde nosso último
encontro, eu o deixei contar sobre como a casa era alegre. Tinha uma
saudade doída que eu queria acalentar, o italiano, ao falar com uma paixão
que era até então desconhecida, se enraizando ainda mais em mim.
Fechei os olhos ao sentir o beijo na testa e me deixei respirar fundo, os
lábios passando pelos meus como se o gesto fosse dividido havia anos e não
dias.
— Mamma[34] tinha a mesma teimosia que vejo em ti. — Veio com uma
risada, e eu estava hipnotizada pelo jeito que Nickolay contava histórias. —
Seu nome era Katerina. Ela tinha esse fogo, essa vontade di vivere[35]. — Ele
colocou a mão esquerda na frente dos nossos olhos, mostrando o anel que
usava no dedo menor. — Essa é uma das únicas coisas que guardo dela —
disse, e me senti ridícula ao querer agarrar-me a ele quando o braço que me
segurava se afastou.
A foto antiga, que substituía o anel, era a de uma mulher com dois
meninos, o mar de fundo molhando quatro dos pés.
— Questa è lei[36]. — Ela era tão linda quanto o homem que lhe
apontava, e segurava próxima do peito seu caçula, dando um beijo estalado
na bochecha da criança.
— É você? — perguntei, apontando ao ver os mesmos olhos de agora
no menino mais novo. — Sua cara de safado dedura. Esse é seu irmão mais
velho?
— Si[37]. Victor.
— Vive na Itália?
E o coração ficou rápido, os lábios novamente achando minha testa, a
voz outra vez pesada.
— Si. — A barba roçou no meu rosto, ele descansando o queixo na
minha cabeça e me puxando contra si. — Junto da minha mãe e do meu pai.
Não sabia o que responder em palavras, mas era incrível como
conseguia lhe dar algum conforto com um abraço.
— Já faz tanto tempo. Mas existem feridas que…
— Nem o tempo consegue fechar — completei ao ouvi sua voz falhar.
Eu sabia tão bem que feridas assim eram reais.
Pareceu uma eternidade até nos separarmos, e ainda assim, era menos
tempo do que precisava ao lado dele. Poderia passar o resto do dia, virar a
noite ali, cada palavra me levando para mais longe de tudo que
incomodava. Passamos boa parte da tarde conversando sobre amenidades, e
fazia anos que não me sentia tão normal, Nico me dando tudo que nunca
tive ao lado de alguém.
— Está ficando escuro. — Ele disse a primeira frase que odiei em todo
o dia. — Talvez seja melhor sairmos daqui.
— Vai me dar dinheiro pro táxi, italiano? — perguntei, fingindo que
não doía me separar do seu peito.
Tentei outra vez descobrir o que havia ali quando Nickolay me olhou.
Qual o motivo de eu querer que suas mãos continuassem na minha cintura?
— Não. — Por que eu estava aprendendo a gostar de ver aquele
sorriso? — Eu vou te levar.

Dirigimos num silêncio confortável, ele mostrando que o bom gosto


não parava nas roupas ao ligar o som da Mercedes. De rock a cantores
italianos que não conhecia, mas já gostava, o peguei cantarolando duas ou
três vezes, Nickolay parecendo muito mais acessível ao envergonhar-se e
parar sempre que eu percebia.
Ele tinha uma voz linda, e eu precisava descer daquele carro e sair
correndo da sua vida.
— Grazie por me ouvir, dolcezza — escutei quando estacionamos ao
lado do meu prédio, a viagem curta demais para o tempo que ainda queria
dividir com ele. — Pela companhia, mesmo depois de eu ter sido tantas
vezes um idiota contigo.
Deveria sair correndo, e sabia que nunca conseguiria fazer aquilo. Não
depois de gastar com ele uma das sextas-feiras mais tranquilas dos últimos
anos.
— Eu também gostei de passar meu tempo com você — disse a
verdade, observando curiosa uma das mãos tatuadas soltar meus cabelos.
Nickolay passava os dedos pelos fios bagunçados, e meu coração parecia
que ia explodir. — Nunca achei que fosse te dizer isso, olha só que... — Já
estava escuro, mas havia luz o suficiente para toda a coragem de abrir a
porta ir embora ao achar seus olhos. — P-progresso…
No pouco que passei com Nickolay, tinha percebido a forma que ele
mantinha sempre a máscara de homem sério e perigoso. A expressão dura e
as tatuagens fortes deixavam avisado para todos o quanto era esperto
manter a distância.
— Deveria te afastar, Alana. — Eu não o via assim. — Por que me faz
tão egoísta?
O jeito que Nickolay me puxava para perto combinava com a forma
carinhosa que ele me permitia ver, as mãos mostrando uma inabilidade em
ficarem longe dos meus cabelos. As minhas também procuraram os fios
escuros, o italiano nunca se importando com o estado lamentável que eu os
deixava.
E pela terceira vez no dia eu o beijava, o gosto mentolado do Halls
ainda na boca. Mexíamos os lábios devagar, mas por mais lentos que
fossem os toques, dava para ouvir nossa urgência. O gemido rouco quando
minha língua achou a sua, a respiração pesada ao sentir minhas unhas
passando pelas tatuagens. Ele iria me deixar louca, e não parecia estar nem
tentando.
— Eu quero você, Nico. Com bem menos roupa. — Não consegui
evitar um riso ao ver a expressão sofrida depois de ouvir minhas palavras,
os olhos se fechando enquanto a cabeça voltava para o apoio do banco.
O arrependimento de ter aberto a boca veio quando suas mãos foram
de mim para a direção, agarrando o volante como se precisassem ficar ali.
— Nickolay, eu disse que eu quero transar com você, não casar! —
brinquei, mas não tinha nenhum traço de diversão no rosto que via.
— Cazzo Alana, vai mesmo me fazer admitir isso? — Os olhares que
ganhava dele eram sempre intensos demais. — Eu não quero só sesso
contigo — meu italiano continuou, e filho da mãe, como havia tanta
sinceridade naquele homem? — Por um tempo, me convenci que era isso.
Que eu te queria por causa da dificuldade, desse jeito que me enfrenta. — E
ele deu um meio sorriso que eu não deveria querer só para mim, antes de
traduzir o que eu também sentia com perfeição. — Só que mesmo vestido,
estar do seu lado é agradável. Então não pode ser só sesso. Não é só sesso
que eu quero.
As palavras tinham ido embora outra vez, e eu só conseguia encará-lo
surpresa, Nickolay coçando a barba antes de continuar.
— Eu quero — Os dedos afundaram mais no couro. — Te ouvir
gemendo porque gostou de um croissant, chamando meu nome porque quer
minha atenção. Quero te fazer gozar antes do café da manhã, e depois ler as
notícias contigo no meu colo. Eu te olho, e não sei mais o que é querer
metades.
Também me deixei ler bem, o italiano sem dúvida notando a surpresa
estampada no meu rosto. Ainda assim, Nickolay me observava paciente,
esperando uma resposta que eu não conseguia dar, e eu respirei fundo,
tentando buscar palavras para tudo que eu não estava preparada para ouvir.
— Mas posso trabalhar com o que estiver disposta a oferecer. — O
homem era realmente bom em ler pessoas, a qualidade no momento sendo
uma vantagem. — Te quero inteira, mas por enquanto, aceito as metades
que quiser me dar, dolcezza.
E percebendo minha incapacidade de falar, ele nos tirou aquela
necessidade ao voltar a achar meus lábios, o beijo tão urgente quanto as
mãos que me puxavam para seu colo.
— Diga não, e eu paro — ele afirmava, os lábios molhando meu
pescoço, me fazendo aprender o quanto gostava de tê-lo embaixo de mim.
— Diga não, e eu vou embora, Alana.
Nickolay partindo era a última coisa que eu queria, e eu o deixei ciente
disso ao desafivelar o cinto que ele usava. O corpo que descobria era duro,
a única parte macia achando a pele fina do meu colo e me provocando o
melhor dos arrepios. Ele se aproveitava de eu estar usando um vestido e
fazia as mãos grandes desaparecerem debaixo da saia, devolvendo a
provocação ao subir e descer os dedos pelo interior das minhas coxas.
Era uma vitória conseguir me livrar do seu cinto, o zíper praticamente
abrindo sozinho depois do botão ser desfeito. Ele sugou com força meu
pescoço quando toquei a ponta da sua ereção, o dedão espalhando pela
cabeça todo o pré-gozo que havia ali nos fazendo arfar. Saber que o corpo
tatuado reagia assim por mim tinha o mesmo efeito entorpecente dos dedos
que passavam por cima da minha calcinha.
Sua calma me deixava em chamas, e as mãos que nunca chegavam
aonde eu precisava ser tocada fizeram a minha se fechar ao redor dele.
Nickolay arfou antes de colar os lábios nos meus, ele gemendo na minha
boca sendo uma das coisas mais eróticas que já experimentei.
Se o barulho dele derretendo-se na minha mão tinha me deixado
molhada, ser acariciada enquanto seus olhos escuros me observavam fazia
meu sexo pulsar, todo meu corpo sensível demais, gritando para ser tocado.
Mordi o canto do lábio ao senti-lo afastar a calcinha, dois dedos longos me
penetrando e me tirando a capacidade de qualquer pensamento coerente.
— Ah, Nico! — E os lábios grossos voltaram para os meus, abafando
meu grito.
— Sshhh, estamos no meio da rua — escutei quando ele se afastou,
minhas mãos agarrando as mangas de sua camisa, eu me sentindo aérea e
precisando de apoio. — Ainda são seis e meia. Não pode gritar, Alana — a
voz rouca me lembrou do horário, meu coração acelerando quando notei
uma pessoa passando por nós do lado de fora. Mal lembrava que estávamos
em um carro. — Não dá para ver o que fazemos, mas não arriscar é melhor.
Era impossível fazer meu coração bater mais devagar, impossível não
virar uma bagunça com o italiano pressionando os dedos mais fundo, os
anéis gelados que ele sempre usava contrastando com nossa pele quente.
— Por que a gente não sobe? — As palavras quase não saíram, os
dedos alcançando um ponto que me obrigaram a tapar a boca.
— Porque vai demorar demais, e eu preciso te ver gozar agora. — E eu
soltei uma risada nervosa: Nickolay não fazia ideia de como estava próxima
disso.
Ou fazia, se negando a tocar onde eu mais precisava dos seus dedos.
Ele me estudava com um meio sorriso que obrigava meu coração a dobrar a
velocidade das batidas, a mão livre enrolando nos meus cabelos, puxando
meu rosto para perto do dele.
— Acha que consegue gozar quietinha? Se a rua inteira te ouvir,
vamos ter um problema. — Fiz que sim com a cabeça, não confiando na
minha voz, antecipando o que estava por vir. — Quieta, Alana — ele me
lembrou mais uma vez. — Quieta, ou eu paro.
Cravei os dentes na palma da mão quando o dedão começou
movimentos circulares, o italiano usando de uma calma desesperadora ao
me estimular. Senti um terceiro dedo deslizar com facilidade, e teria
vergonha do estado da minha calcinha se não estivesse tão perdida no
prazer que ganhava.
Ele aumentou a pressão contra meu sexo, os movimentos mais rápidos
me deixando muito perto de cair. Fechei os olhos, encostando a testa em seu
ombro, o cheiro cítrico dele me invadindo como os dedos faziam outra e
outra vez. A mão que beliscou meu seio por cima do vestido foi meu fim,
eu tremendo sem nenhum pudor no seu colo, mordendo o lábio inferior para
abafar o que o italiano me fazia sentir.
Gozar quieta com Nickolay era difícil demais.
Os dedos me deixaram, o meio das minhas pernas quente e pulsando,
minha calcinha molhada. Meus olhos estavam pesados quando voltei a
encará-lo, Nickolay fechando os seus e gemendo ao chupar o indicador,
segundos antes enterrado em mim. O jeito que me provava era carnal, e ao
mesmo tempo íntimo demais, eu tendo os dois pela primeira vez. Não havia
tirado uma peça de roupa, mas poderia estar completamente coberta, e ainda
me sentiria nua pela forma que aquele homem decifrava meus detalhes.
— Isso não vai passar, vai? — Parecia lhe doer afirmar, Nickolay se
deixando ficar tão despido quanto eu sempre parecia estar com ele. — Não
importa quantas vezes gozar no meu colo, vou querer repetir. — A mão que
estampava a caveira pegou a minha, nossos dedos se fechando ao redor do
seu pau. — Não é só sesso, mas cazzo, Alana, eu te quero tanto. — Foi um
sussurro, e era a vez dele de morder o lábio com meu toque. — O que fez
comigo?
As mãos tatuadas me puxaram pelas coxas, me encaixando sobre ele e
fazendo as minhas agarrarem seus cabelos. A boca voltou para a minha, o
beijo abafando os sons que queria fazer ao sentir o pouco tecido que nos
separava. Agarrava com força tudo que meus dedos conseguiam achar, meu
corpo precisando dele inteiro, o jeito que o italiano me puxava pelos quadris
imitando bem demais o que eu queria fazer sem nenhuma roupa. Com
certeza dávamos um show para a vizinhança, e eu não poderia me importar
menos.
O toque do celular me impediu de repetir o convite de minutos atrás,
Nickolay grunhindo ao olhar para a tela do aparelho.
— Ah, che palle[38]! — A reclamação veio em italiano, os olhos
mostrando desejo e culpa. Entendi que atender não era negociável quando
ele me colocou de volta no banco de passageiro. — Vou tentar ser rápido.
— O rosto voltou a ter a aspereza que eu via quando seus olhos não
estavam em mim, Nickolay fechando a calça com um suspiro sofrido antes
de pegar o telefone.
Foi só quando atendeu que entendi o porquê de ele ter me colocado
longe, a voz de um homem mais velho enchendo o carro. Nickolay ainda
arrumava os cabelos para trás enquanto respondia a videochamada, e
descobria que ele falando em sua língua mãe era tão delicioso quanto ouvi-
lo gemer.
A boca demorou demais para voltar para a minha, e quando veio,
estava sem a urgência de antes, me contando que eu não voltaria para cima
dele naquela noite.
— Hoje vou ter que me contentar com seus lábios nos meus, bella —
ele confirmou quando nos separamos, a respiração perto da minha orelha
antes de continuar. — Por mais que os queira em outro lugar. — A voz
rouca insinuando o que eu queria fazer não combinava com as mãos
comportadas que acariciavam meus cabelos. — Tem planos para amanhã?
Meu orgulho quis responder que sim, a vontade que ainda sentia de tê-
lo no meu quarto ou em qualquer lugar que desse deixando existir
desconfortável. Meu instinto de autopreservação desejou o mesmo, o
coração apertando ao reconhecer que eu queria sim um encontro com
Nickolay DeLucca.
Consegui segurar a língua no último segundo.
— Por quê?
— Porque eu vou te levar para conhecer o melhor restaurante italiano
da cidade — ele estabeleceu mais do que disse, e meu humor suavizou
quando o italiano me deu o que eu buscava sem precisar pedir. — E preciso
saber que horas passo para te buscar.
— Jantar?
— Si, dolcezza. — Nickolay roubou um último beijo, acabando com
qualquer hesitação de minha parte. — Um jantar, comigo.
— E depois?
— O que quiser — ele respondeu, seu rosto sincero demais para eu
não acreditar.
Sorri com a promessa, pensando em todas as maneiras que poderia
cobrá-la.
— Posso trabalhar com isso.

Eu não estava nervosa.


Ao menos era o que repetia ao checar o vestido pela décima vez. A
peça preta me fazia parecer alguns anos mais velha, os cabelos soltos e salto
alto me dando a confiança que precisava para sair da frente do espelho. E eu
não estava nervosa, assim como não me importava com a unha curta e sem
esmalte, ou o que Nickolay pensaria ao me ver muito mais arrumada do que
o normal.
Estava tentando demais, e não queria tentar nada por mais ninguém.
Mas o relógio marcando sete horas e a mensagem mais pontual do que
esperava me fizeram ver que o tempo para mudar de roupa não existia mais.
Não estava nervosa, e me convencia disso outra e outra vez ao sair
pelo portão de metal, achando-o encostado na Mercedes.
Nickolay era gostoso de se olhar, em todos os sentidos. A camisa preta
fazia um bom trabalho em esconder as tatuagens do peito, apenas as das
mãos e antebraços livres para serem minhas distrações. Ainda estava me
acostumando a olhar para a caveira que cobria o dorso da esquerda, assim
como tentava não pensar o que o levou a tatuar a palavra hate[39] nos dedos.
Ele me notou assim que pisei na calçada, descruzando os braços e
abrindo a porta do carro, e eu não estava acostumada com aquele tipo de
comportamento.
— Che bella[40]. — A boca foi para minha mão ao invés de achar meus
lábios, a porta se fechando antes que pudesse responder que o que eu via
também não era nada mau.
Eu não estava nervosa, mas não tinha a coragem que precisava para
cobrar o beijo que queria. Não merecia ser chamada de corajosa por Carlos
quando mal conseguia manter meus olhos em Nickolay. Beirava o
desconfortável os castanhos escuros observarem meu rosto em silêncio, e
em pensamento, tentava descobrir se ele me afastaria caso tentasse tocar
seus lábios.
O italiano me lia bem demais.
— Alana — ele começou, deixando os olhos me estudarem mais uma
vez antes de continuar. — Se eu te beijar agora, não vou conseguir jantar
nada.
E só consegui lembrar do que havíamos feito ontem nesse mesmo
carro.
— Nada que não seja eu? — Saiu antes que me segurasse, e ao ouvir
sua risada rouca, tinha a certeza irritante de que estava com as bochechas
vermelhas.
— Dolcezza, como que acabou justo na minha vida? — E ele deu a
partida.

O restaurante era pequeno e familiar, escondido no centro do bairro de


influência italiana. A frente simples poderia fazer o lugar passar batido
entre tantos outros, mas a fila de espera revelava que a clientela aprovava e
recomendava o local. Só o cheiro, tão bom quanto ver Nickolay fechando
os olhos ao mastigar o aperitivo, já me dava água na boca.
— Essa é a coisa mais normal que fiz esse mês — ele contou,
alcançando a taça de vinho tinto, eu acompanhando.
— Posso dizer o mesmo.
— Gosta de cannoli[41]? — Minha expressão não deixou dúvidas do
sim. — Vai comer um tão bom quanto os que conseguia na Sicília.
Peguei mais um crostini[42], observando as mesas cheias, muitas delas
com conversas na língua que eu quase não entendia. A mão que descansava
na minha cintura era tão boa quanto a textura crocante do pão, nós dois
aproveitando estarmos em um dos únicos lugares com o sofá oval. Era
estranho me sentir confortável dividindo uma coisa tão simples com
alguém, mais estranho ainda querer aquilo. Meu cérebro traidor, que já
tinha se rendido a todo o charme do italiano, até mesmo perguntava-se se
haveria uma próxima vez.
Nickolay era mais perigoso do que mostrava ser, e eu deveria
questioná-lo até ter certeza de como ele havia resolvido meu problema
naquela sexta.
— Como você aprendeu português? — Mas não queria. Questionaria
qualquer outra coisa que imaginasse estar em sua zona de conforto, sabendo
muito bem o quão difícil era desviar de respostas que não podiam ser dadas.
— De todas as perguntas que poderia me fazer, é essa que escolhe? —
Ele riu, o som rouco se tornando rapidamente parte da minha lista de
favoritos. — Lorenzo me ensinou quando eu era moleque. O homem
cresceu aqui no Brasil, foi para a Itália quando tinha minha idade. Era o
melhor amigo do meu pai — explicou, o nome sendo novo entre nossas
conversas. — Ele foi meu guardião legal. Ajudou a cuidar de mim e do meu
irmão depois que mamãe faleceu. Meu pai mudou depois daquela tarde, se
tornou outra pessoa até morrer. E meu irmão foi meses depois dele. Victor,
ele...
Para nós dois foi difícil engolir o vinho, e descobri que queria deixá-lo
desconfortável tanto quanto o queria longe de mim. Entender como já era
natural confortá-lo gritava problema, mas minha mão pousava em sua coxa,
mesmo sabendo que eu deveria bloquear qualquer sentimento.
— Não precisa falar.
Deveria, mas a cada encontro nosso, bloqueá-lo se tornava mais difícil.
Quem eu tinha na minha vida antes de Nickolay havia tirado um pedaço de
mim, um pedaço que eu buscava desesperadamente de volta. A
possibilidade do italiano poder me dar o que estava faltando fazia eu querer
me agarrar nele como se fosse meu colete salva-vidas.
— Eu quero falar, dolcezza. — Mas dava para ver que ele queria
discorrer sobre aquilo tanto quanto eu gostaria de falar sobre meu ex-noivo.
— Quero te contar sobre minha vida. Eu só preciso de...
O celular sobre a mesa nos interrompeu pelo segundo dia seguido, a
mão de Nickolay deixando minha cintura ao mesmo tempo em que nossos
pratos chegavam.
— De mais tempo. Ma che cazzo, eu nunca vou ter paz essa semana!
— bufou, agarrando o aparelho. Ele estava de pé antes que eu pudesse
responder, a mão livre segurando quem nos servia. — Enzo, faça
companhia para minha donna.
E assim fui deixada com o garçom, o homem bem mais próximo da
minha idade, mas com traços tão italianos quanto minha companhia que
sumia por um corredor. Enzo encolheu os ombros, parecendo tão
confortável quanto eu estava.
— Nickolay vem muito aqui? — Ao menos ainda sabia como jogar
conversa fora com estranhos, por mais cansativo que pudesse ser.
— O senhor DeLucca é um dos clientes mais fiéis — ele respondeu,
um sorriso brincalhão nos lábios me fazendo duvidar das próximas
palavras. — É a primeira vez que traz uma companhia feminina. — E
aquela poderia ser a milésima vez que o garçom falava tais palavras para
uma de suas acompanhantes.
Retribuí o sorriso, voltando a atenção para o local onde Nickolay havia
desaparecido.
— Ligações podem ser demoradas, ragazza. Acho que o senhor
DeLucca não se importaria se começasse sem ele. — E para meu conforto,
Enzo resolveu não seguir a ordem dada e saiu para atender outras mesas.
Descobri que as palavras eram verdadeiras quando Nickolay voltou
vinte minutos depois, a cara de culpa sendo sua primeira realmente
engraçada. Guardei meu celular quando ele fez o mesmo com o dele, os
lábios que acharam os meus me falando que um cigarro havia passado por
ali.
— A comida esfriou — reclamei, me afastando e dando a primeira
garfada na lasanha morna, mas ainda maravilhosa. Acreditava mais do que
nunca que aquele era o melhor restaurante italiano de São Paulo, assim
como era verdade que ele escondia alguma coisa.
— Grazie por ficar. — Nickolay me imitou, fazendo uma careta ao
provar a macarronada não mais quente. — É trabalho. — Mastigava
enquanto o via tentar escolher as palavras certas. — Precisava atender, e
vou precisar atender mais vezes do que imagina. — Ele respirou fundo,
encostando-se no sofá antes de perguntar. — Por que aceitou sair comigo,
Alana?
Vê-lo parecer inseguro comigo também era engraçado.
— Eu já falei, você faz eu me sentir segura. — E porque, depois do
final da noite de ontem, estava desesperadamente agarrada à possibilidade
de tê-lo na minha cama, mas resolvi manter aquilo só para mim. — E eu
não posso dizer isso pra muita gente.
— Por que não? — Revirei os olhos, Nickolay escolhendo justo aquele
momento para não me ler.
— O que você faz? — Talvez o italiano entendesse o quanto queria
falar sobre aquilo se eu tocasse no que ele parecia não querer discutir. —
Não sei se posso te dar dois dias livres da minha curiosidade, ainda mais se
continuar me enchendo de perguntas. Eu te esperei quieta, não esperei?
Ele considerou por um momento minhas palavras antes de continuar
com uma dúvida muito mais difícil.
— Justo. Confia em mim? — Talvez nunca mais conseguisse confiar
totalmente em outra pessoa, mas também não era algo que me sentia pronta
para admitir em voz alta.
— Estamos caminhando pra isso — menti, não fazendo ideia para
onde andávamos.
— Se sente segura comigo, mas não confia em mim?
— São duas coisas diferentes. — Minha mania de revirar os olhos
sempre o fazia estreitar os dele, e era irritante como reparava nos detalhes
que o desagradavam do mesmo modo que sabia o que colocava o sorriso de
volta no seu rosto. — Eu confio que você pode me manter segura — admiti,
o tocando no braço, e ali estava o sorriso que me fazia copiá-lo. — É o que
eu tenho pra agora. É o suficiente pra você?
— Si. — A lasanha tinha um gosto ainda melhor quando ele me
tocava. — Pode confiar sua segurança a mim, dolcezza. É mais do que
posso pedir.
Comemos num silêncio estranhamente confortável, justo para mim,
que evitava a quietude fazia meses. Foi só quando dei a primeira mordida
no cannoli que o sotaque voltou a prender minha atenção.
— Te olhar basta para eu querer te dar tudo. — Nickolay limpou o
canto da minha boca com o dedão, estudando meus olhos com uma
concentração invejável. Havia tanta sinceridade ali, e eu tentava descobrir o
quanto o queria sendo assim verdadeiro.
— E por que você não dá?
— Porque preciso do seu sim. — Ele colocou um dedo contra meus
lábios antes que pudesse abri-los. — Não agora. Não hoje. — E me puxou
para seus braços, nós dois finalmente aproveitando o sofá. — Deixa eu
aproveitar só um pouco mais.
— Aproveitar o que?
O italiano me aconchegou em seu peito, e senti seu queixo descansar
na minha cabeça antes de ouvir a resposta.
— Ser normal.

Dirigimos de volta para meu prédio imitando a tarde anterior, ele


cantarolando novas músicas de sua playlist eclética, a mão direita sempre se
fazendo livre e parando na minha coxa. Não dava para negar o quanto
Nickolay era charmoso, assim como era impossível não desconfiar de seja
lá qual fosse seu outro trabalho.
Do mesmo jeito que ele queria aproveitar a normalidade, ser normal
era algo que eu buscava desesperadamente. E o italiano estava me dando
aquilo, o único pedido feito sendo a reciprocidade. Me sentia tão bem ao
seu lado que podia fechar um pouco os olhos.
Como ontem, a viagem foi curta demais, o carro parando antes de eu
me sentir preparada para deixá-lo. Como ontem, as mãos foram para meus
cabelos, ele puxando meu rosto para perto antes de calar todas as
reclamações que estavam para serem ditas.
Ele sorriu contra minha boca quando gemi contra sua língua, seu toque
tão bom quanto a sobremesa. Era desesperador perceber que beijar
Nickolay DeLucca arruinava todos os outros beijos que ganhei na vida.
Beija-lo era ser adorada numa velocidade tortuosamente devagar, e depois
de ser venerada, era impossível voltar a ser mundana.
Derretia em suas mãos pela talvez décima vez na noite, ele fazendo
questão de afastar qualquer pressa enquanto me fazia suspirar. Os lábios
passavam pelos meus como uma carícia, o gosto de vinho e creme de
baunilha me tentando a aumentar a velocidade.
— Buonasera, bella — escutei quando ele se afastou, e a última coisa
que queria era me despedir.
— Você não vai nem tentar subir? — Pela segunda vez na noite eu não
controlava minhas palavras, me sentindo muito mais normal do que havia
em meses ao continuar, dando uma risada sarcástica. — Quem é você, e o
que fez com meu italiano babaca?
As mãos estavam longe, mas havia um novo interesse nos olhos
escuros. O sorriso era pequeno, Nickolay apoiando-se outra vez na direção
ao invés de em mim.
— Você disse que eu poderia pedir o que quisesse, Nico.
Quando tinha se tornado tão fácil falar com ele?
— Quer que eu suba, dolcezza? — ele perguntou o óbvio, me
observando de canto de olho.
As taças de vinho que consumi durante a janta me deixavam bem mais
relaxada ao redor dele, o jeito que era observada me fazendo rir mais
despreocupada do que havia acostumado a estar.
— Sabe, eu gosto disso. — Fui sincera, recebendo sua curiosidade. —
Dolcezza — repeti, imitando o jeito que ele pronunciava o apelido.
No segundo seguinte as mãos voltavam para mim, a forma que elas
agora me puxavam pela cintura bem menos comportada. Ele mordiscou
meu lábio inferior antes de ir para meu pescoço, os dedos apertando mais
quando gemi seu nome.
— De novo — pediu rouco, decidindo que a pele fina do meu ombro
descoberto era igualmente boa de se morder. — Fale de novo.
— O que? Que gosto disso? — Mal consegui pronunciar, a língua dele
contra a minha imitando o que gostaria de sentir em um lugar muito
diferente. Ele não se importou quando baguncei os cabelos impecáveis, tão
macios contra os meus dedos quanto sua voz.
— Qualquer coisa em italiano. — Quase ri, me perguntando como meu
sotaque ridículo tinha conseguido fazer aquele homem reagir tão bem.
— Uno espresso doppio per favore[43], non capisco, cazzo. — Entre
beijos e suspiros, citava a única frase e palavras soltas das quais conseguia
me lembrar. — E esse provavelmente é todo meu vocabulário nessa língua.
Tinha um sorriso muito mais safado do que antes em seu rosto.
— Podemos melhorar isso. Repete comigo. — Digno do italiano que
eu havia chamado inúmeras vezes de babaca. — Mi stai facendo venire
voglia di scopare[44] — ele sussurrou no meu ouvido.
— Mi stai facendo venire — E eu repeti, a voz um sussurro como a
dele, eu aproveitando as sensações que a respiração no meu pescoço
proporcionava. — Voglia di scopare, Nickolay.
Eu não fazia ideia do que havia acabado de dizer, mas passaria o resto
da noite repetindo se isso o fizesse não parar. Novamente deixava toda a
vizinhança ver como ficar em cima do italiano era melhor do que o banco
de passageiro, Nico dividindo a mesma opinião.
As mãos me puxaram para perto, ele não fazendo questão de esconder
o quanto gostava da posição ao pressionar-se contra minha calcinha do jeito
que fez na noite anterior. Mais uma vez seus lábios eram a única parte
macia que me tocava, mais uma vez eu queria tirar sua calça e descobrir se
sexo com aquele homem era tão bom quanto ele estava fazendo parecer.
Porque suas mãos eram boas demais, e seus lábios estavam me deixando
muito próxima de implorar.
Nickolay mordiscava meu queixo enquanto eu agarrava seus cabelos, e
queria ouvi-lo gemer daquele jeito a noite inteira.
— Que sacanagem que eu disse? — perguntei ofegante, dividida entre
continuar provocando-o ou arriscar abrir sua calça.
Ele levou as duas mãos para cima, segurando o apoio de cabeça do seu
banco como se estivesse se rendendo, uma expressão sofrida no rosto.
— A melhor que já ouvi. — A resposta veio no mesmo tom, o italiano
naquela posição sendo bom demais de se olhar. — Dio santo[45], como
acabou no meu colo outra vez?
— Culpa sua! — retruquei, desafivelando seu cinto e fazendo minha
melhor cara de inocente. Ele sibilou quando deixei os dedos entrarem como
fiz ontem, as mãos apertando o couro como se precisassem ficar ali. — Não
gosta de me ter por cima?
— Dolcezza, por que torna tudo tão difícil? — Ele gostava, e os dentes
voltaram para os meus lábios. — Eu estava tentando fazer isso do jeito
certo.
Pensar que Nickolay precisava ocupar a boca com outra coisa me fez
ver o quanto nossa pouca convivência tinha conseguido me afetar.
— E o jeito certo é qual?
— Te fazer me conhecer melhor, antes de te foder em todos os cantos
possíveis. — Foi impossível não gargalhar com a resposta, tão compatível
com o homem que havia conhecido em nosso início.
— Você é tão grosso! — Dei um tapa brincalhão em seu peito,
fingindo estar ofendida. — E convencido! Quem disse que eu vou querer
repetir, italiano?
Mal pronunciei a última palavra e suas mãos soltaram o banco,
subindo pelas minhas coxas, desaparecendo por baixo do meu vestido como
na noite passada. Elas pararam no contorno da calcinha que havia escolhido
pensando nele, devolvendo minha provocação de antes na mesma moeda ao
ameaçar afastar o tecido, parando no último segundo.
Desaprender a respirar nunca foi tão bom.
— Eu estou te dando todas as chances de me mandar embora. —
Como se aquilo fosse possível depois do que ele tinha acabado de fazer,
meu corpo apenas gritando mais pelo dele. — Vai chegar uma hora que não
vou poder mais ir, Alana. Me mande embora.
Segurei as mangas de sua camisa quando senti a terceira tentativa de
me tirar dali, o homem embaixo de mim pronto para protestar quando o
silenciei, um dos meus dedos contra seus lábios.
— Eu amo verde pastel, mas não visto nada dessa cor. Odeio camarão,
só que nunca ninguém acredita, então eu digo que sou alérgica. Prefiro
passar frio do que morrer de calor, não entendo nada de esportes e nem faço
questão de aprender, meu prato favorito é lasanha então ponto pra você essa
noite. E se suas mãos tentarem me afastar mais uma vez, Nickolay... —
Respirei fundo, vendo o final de qualquer dúvida ir embora dos olhos
escuros. — Eu vou gritar.

Sempre me orgulhei do meu autocontrole. Gratificação diferida,


justificava. Quanto mais conseguisse adiar aquilo, maior seria a
recompensa. Quanto mais adiasse aquilo, maiores as chances dela se cansar
do que fazíamos e se livrar de mim. Alana longe era o certo, e tudo o que eu
não queria.
Vê-la saindo pelo portão no começo da noite me fez considerar pedir
comida e comer na cama, e eu mantive minhas mãos longe da sua cintura
até nós dois estarmos sentados no carro. Recompensas eram melhores
quando adiadas, e por isso, adiei tocar minha língua na dela durante todo o
jantar. Durante todos os nossos minutos dirigindo a Mercedes, eu ignorando
os olhos mel me observando como se a dona quisesse me devorar.
Era mútuo, mas considerei manter-me distante para sempre após
receber a ligação de Emília, uma interrupção desagradável antes mesmo dos
nossos pratos tocarem a mesa. Orgulhava-me de ter arranjado forças quando
estava outra vez com Alana no meu colo, pedindo para ser mandado embora
antes dela decidir por nós dois que ficaríamos.
Eu não deveria deixar, mas minha capacidade de escolher pelo não era
igual a da mulher que me puxava pelo braço. Concordar em sair do carro
com ela só me mostrava o quanto Alana despertava meu egoísmo: daria
tudo para alguém que não sabia o que estava pedindo.
Segurei aberta a porta da frente do edifício, deixando apenas meus
olhos nos cabelos castanhos. Usei a câmera de segurança do elevador como
desculpa para mantê-la vestida enquanto suas mãos outra vez brincavam
com meu zíper. Andava logo atrás de Alana, com passos mais calmos do
que imaginava que teria, parando em frente ao apartamento de número vinte
e cinco ainda sem tocá-la.
Tinha certeza de que a chave caindo era proposital, respirando fundo e
escondendo o rosto nas mãos quando a vi se abaixar para pegá-las. Aquele
vestido a apertava nos lugares certos, e observá-la com ele naquela posição
acabava com qualquer linha de raciocínio que eu ainda tinha. Ela estava
sorrindo, consciente do quanto conseguia me provocar, vendo o quanto eu
precisava manter as mãos ocupadas para não começar a arrancar sua roupa
no corredor.
Gratificação diferida, repeti em pensamento mais uma vez enquanto
ouvia o som da chave encaixando na fechadura. A virei para mim assim que
a porta foi trancada, e depois de dias querendo repetir as ações do sábado
que a tive na cozinha, o conceito de gratificação diferida nunca foi tão
verdadeiro.
Tê-la tão perto me dava a adrenalina que nunca achei em alguém, e o
sentimento era tanto divino quanto perigoso. Estava viciado em Alana, e a
urgência com a qual ela procurou meus lábios acabou com o resto do meu
pouco controle. Pressionava-nos contra a porta, minhas mãos indo para
baixo do seu vestido e redescobrindo o quão macia era a pele das suas
coxas. O som que saía dela comigo achando seu pescoço era minha droga
personalizada, meu cérebro sendo consumido mais a cada gemido. Ao
mesmo tempo que precisava beijá-la, nunca mais a queria quieta, e escolhi
ouvir seus choros enquanto levantava o vestido preto.
Escutei uma risada quando a peguei no colo sem aviso, as pernas ao
meu redor, a língua contornando a linha da minha mandíbula. Mãos
pequenas abriam apressadas os botões da camisa que eu ainda usava, e
raciocinar com ela tão perto era uma tarefa que beirava o impossível.
— Onde é sua cama? — Mal reconheci minha voz, perguntando pelo
quarto que nem mesmo sabia se chegaríamos, o sofá parecendo bom o
suficiente.
— Você realmente quer fazer isso direito! — Senti seu sorriso contra
meu pescoço, Alana mostrando mais uma vez que a pressa fazia parte da
sua vida. — Eu já teria começado lá embaixo, Nickolay.
Também tinha pressa sempre que a ouvia falar meu nome, e não
esperei resposta antes de seguir para onde achava ser seu quarto.
— Nós começamos lá embaixo. — Adorava sua boca no meu pescoço,
outra vez não me importando em carregar as marcas que ela gostava de
deixar. — Ou já esqueceu dos meus dedos? — Usei uma das mãos para
abrir o zíper que havia em suas costas, e a livrei do vestido antes de nos
jogar no colchão. — Não lembra do jeito que os apertou enquanto gozava?
Talvez precise me esforçar mais hoje.
Alana corada me deixava a beira do descontrole, eu amando vermelho
naquela mulher. Ela usava uma calcinha da mesma cor, e precisei me afastar
para apreciar aquela visão. Vê-la vestindo renda e salto alto era melhor do
que lembrar de nós na bancada da cozinha, e o meio sorriso que eu ganhava
me fazia querer lamber cada centímetro da sua pele.
— Vai ficar só olhando, italiano? — Alana provocava demais, as
pontas dos dedos percorrendo as tatuagens que eu carregava no peito me
tentando a fodê-la sem mais preliminares. — Eu posso gemer, ou vai me
fazer gozar quietinha de novo? — ela perguntou, os lábios perto do meu
ouvido.
Essa provocadora me deixaria louco.
— Alana, se gozar quietinha, vamos ter um problema. — Usei uma
das mãos para segurar as dela, ela pronta para protestar quando dei um meio
sorriso e continuei. — Porque hoje, eu só vou parar depois de te ouvir gritar
meu nome.
Os olhos me mostraram uma surpresa deliciosa de ver, a dona levando
alguns segundos para processar o que escutou antes de volta a cutucar.
— E quem disse que eu vou gritar, convencido? — Tive que rir: a
mulher não sabia quando parar de incentivar meu descontrole.
— Eu disse. — Pressionei meu pau contra a renda, dando um meio
sorriso ao escutar o coração disparado embaixo de mim. — Eu vou provar
cada pedaço do seu corpo, bella. Te deixar queimando como eu queimo.
Vou fazer isso até te escutar implorar — sussurrei, mordendo seu pescoço.
— E depois que eu escutar seu por favor, a única coisa que vai conseguir
sair da sua boca é o nome de quem está te chupando. De quem está te
fodendo. De quem está te fazendo ter a melhor foda da sua vida.
Eu gostava de vê-la sem palavras do mesmo jeito que amava tê-la se
desfazendo com meu toque.
Prendi os pulsos finos sobre sua cabeça, sendo a vez da mulher arfar
quando minha boca sugou a pele sensível do seu seio. As costas arquearam,
Alana enchendo o quarto com um choro rouco que deixava minha calça
ainda mais apertada.
— Tão sensível — falei, antes de colocar um dos bicos entre os dentes,
o outro enrijecendo ainda mais contra meus dedos. — Como imaginava —
confessei ao voltar para sua boca.
— Não vou conseguir gritar nada com você vestido. — Não eram mais
palavras que saíam dela depois da minha mão ir para dentro da calcinha. —
Ah! — A vi tentar parar os sons mordendo os lábios, os pulsos se
contorcendo contra minha mão do mesmo jeito que sua boceta fazia contra
meus dedos.
— Tem certeza? — Escutar meu nome saindo daqueles lábios
ofegantes se tornava rapidamente uma das minhas canções favoritas.
Descobria onde ela gostava de ser tocada a cada gemido, os olhos
fechados e os lábios entreabertos me obrigando a abrir a calça. Meus dedos
deslizavam por ela, Alana tão molhada quanto na nossa primeira vez, e me
obriguei a esquecer da memória do mesmo jeito que me impedi de revelar a
verdade até agora. Eu era um puttano mentiroso, e adicionava mais aquela
mentira na lista de coisas que pediria perdão antes de dormir.
Joguei sua calcinha junto do resto de suas roupas, os saltos seguindo,
Alana nua sobre o lençol claro sendo uma visão que precisava ser apreciada
por muito mais do que os cinco segundos que consegui fazê-lo. Ela me
copiava, os olhos em mim enquanto eu me livrava do que vestia, a língua
molhando os lábios quando a última peça foi para o chão. Só lembrar
daquela boca ao meu redor me fazia ficar ainda mais duro.
Tocar pele contra pele ao ir para cima dela era perigoso demais, e o
jeito como seu corpo se encaixava no meu tornava impossível ficar quieto.
Ela me puxava para um beijo e enrolava as pernas na minha cintura, e quase
começamos aquilo sem nada quando senti sua entrada molhar a cabeça do
meu pau. Beirava o impossível não me enterrar nela.
Cazzo de mulher apressada.
— Provocador! — Tive que rir ao escutá-la reclamar quando nos
afastei, levantando e pegando a camisinha no bolso da calça antes de voltar
para seu seio. — Para de me provocar, italiano! — A ordem saía mais como
uma súplica, ela se contorcendo ao sentir minha língua descer até sua
virilha.
— O que eu vou fazer não tem esse nome — sussurrei contra sua coxa,
a olhando uma última vez antes de me perder entre suas pernas.
Não iria repetir o erro cometido na primeira noite, assim como nada
me impediria de prová-la por inteiro. Alana outra vez me fazia sentir o
quanto gostava de agarrar meus cabelos enquanto eu descobria seu gosto.
Contra minha língua ela inteira era doce, e assim que comecei, percebi que
poderia passar um dia inteiro a devorando.
Senti-la contrair-se ao redor dos meus dedos era prazer e tortura, meu
corpo implorando por atenção a cada som que a fazia soltar. Achei o ponto
que a deixava próxima de gritar, aumentando a velocidade ao vê-la
ofegante, as mãos puxando minha cabeça para mais perto antes de
congelarem, os dedos dos pés se curvando nas minhas costas. Saber o
quanto ela estava próxima de gozar na minha boca me deixava à beira do
descontrole, e nem considerei todas as ameaças de antes: quem estava
próximo de implorar era eu, e Alana nem havia começado.
— Ah Nico, não para! — Como se fosse possível, meu coração
batendo tão forte quanto o dela. — Por favor, por favor...
O jeito que a voz chorou meu nome me fez entender mais uma vez o
quanto estava fodido, os dedos entrelaçando nos meus cabelos me fazendo
chupá-la mais forte. Eu a queria mais do que qualquer coisa, a mulher
estando na frente de todas as responsabilidades e juramentos que existiam
na minha vida. Era a primeira vez em anos que não mantinha o celular
perto, e duvidava que atenderia qualquer ligação enquanto a tivesse nos
braços.
— Como sabe fazer isso tão bem? — Quase perguntei o mesmo,
lembrando a tempo que ela não fazia ideia de que sua boca já tinha me
mostrado seus dons.
— É seu corpo que me diz bem demais do que gosta. — E corri a
língua pelo interior de uma das coxas brancas, ela provando meu ponto ao
se mover em direção a minha boca. — Te ouvir pedir foi delicioso, mas
implora sem palavras, dolcezza.
— Isso é tão injusto! — escutei ao voltar para sua boca, as próximas
palavras sendo a melhor das mentiras. — Eu não te afeto desse jeito.
— Tem certeza? — E os olhos mel fecharam, as mãos pequenas
agarrando o lençol quando a fiz sentir o quanto suas palavras eram
inverdades.
Alcancei a camisinha e voltei para cima dela, vendo com orgulho o
sorriso que havia posto nos lábios que já estava acostumado a beijar.
— Diga que quer isso do mesmo jeito que eu preciso — era eu quem
pedia, jogando a embalagem vazia no chão. Arfei quando ela me puxou
para baixo, prendendo mais uma vez as pernas na minha cintura. — Diga
que me quer, Alana. Eu preciso ouvir.
Ela ainda podia dizer não, e eu conseguiria ir embora da sua vida com
apenas seu gosto. Alana, como eu, era apaixonada por dificuldades.
— Eu não sei mais o que é não querer você, Nickolay.
Abafei um gemido contra seus lábios, descobrindo que estar dentro
dela era muito melhor do que me lembrava. A boca macia me trazia a
mesma urgência da primeira noite, e precisei esconder o rosto em seu
pescoço para reunir o resto de minha pouca concentração. Alana era quente
e apertada, e eu nunca mais queria saber o que era não tê-la.
— Cazzo, eu também não — sussurrei contra sua pele quando comecei
a me mexer, ela outra vez me enlouquecendo ao se deixar ouvir de um jeito
tão cru. Eu não sabia mais o que era acordar sem desejá-la, e qualquer
disposição em aprender havia acabado.
Poderia morrer ali. Sentir suas unhas marcando minhas costas era o
tipo de tortura que gostava, delicioso o jeito que ela alternava entre se
render aos beijos e suspirar meu nome. Precisava ouvi-la gozar mais uma
vez antes de segui-la, e era desesperador mal ter começado e já estar tão
perto de acabar.
Mas por mais que estivesse próximo, ir devagar era impossível.
Agarrava a cabeceira da cama enquanto me afundava nela, sentindo que os
lábios no meu pescoço deixariam marcas. Ela me marcando só me excitava
mais.
A mão pequena empurrou meu peito, e de repente Alana estava por
cima e tomava as rédeas como em minhas memórias. Do mesmo jeito que
eu nunca havia fodido beijando antes dela, era a primeira vez que me
deixava ser visto vulnerável, num momento tão íntimo. Era a primeira vez
que sexo era tão íntimo, Alana me angustiando mais ao me fazer entender
que enchia minha vida de primeiras vezes.
A subia e descia pelos quadris enquanto minha donna bebia todos os
detalhes que eu a deixava ver. Busquei mais uma vez seus lábios, as mãos
escolhendo segurar meu rosto ao invés de puxar meus cabelos, como no fim
de nossa primeira noite.
Foi delicioso ouvi-la gemer meu nome ao conseguir seu alívio, Alana
tremendo no meu colo pela terceira vez na vida instantes antes de me fazer
atingir o mesmo prazer. Fui tão silencioso quanto tinha sido naquela quarta,
ela me fazendo gozar forte o suficiente para perder a visão, eu apenas
sabendo sussurrar incoerências contra seus lábios.
Nunca mais queria soltá-la. Respirava pesado, o cheiro de sexo e
framboesa me invadindo enquanto a aconchegava em meus braços.
Merda.
Aquilo não era foder. Aquilo era novo, viciante, e desesperador. E eu a
desejava novamente assim que senti seus lábios no meu queixo, os dentes
mordiscando minha pele me fazendo sorrir. Queria que abrisse a boca para
me provocar, falasse qualquer besteira, me mandasse sair.
— Passa a noite aqui, italiano — ela pediu, tão ignorante à minha
inabilidade de ir embora. — Fica.
Eu não tinha outra coisa para responder.
— Fico, dolcezza.
Passava das três quando me levantei, meu corpo pedindo por água.
Saía do quarto no segundo que o celular vibrava no chão da sala, duas
ligações perdidas e uma videochamada de quem eu não queria, mas
precisava, responder.
— Si, Don Matarazzo? — atendi depois de encostar a porta, rumando
para a cozinha americana. Enchia um copo quando veio a primeira
observação.
— Não está em casa, figlio. — Bloqueei qualquer traço de
nervosismo, afirmando que desde que ele não visse quem dormia na cama,
eu não precisava temer. — Quem é a donna que te ocupou nas últimas
horas?
Esvaziei metade do copo antes de responder.
— Nenhuma importante. Peguei no sono sem querer — menti,
agradecendo por Alana não entender italiano. A última coisa que precisava
era ela abrindo a porta e ouvindo minhas calúnias. — Tive uma semana
cheia, como sabe.
— Não pode ter sido tão cansativa, se teve forças para procurar uma
nova cama. Lorenzo está tentando te achar desde o começo da noite. —
Sabia ser mentira aquela parte, Mantovanni parecendo feliz demais ao
descobrir com quem passaria o fim do meu sábado. — Ignora o celular
desde que horas?
As últimas coisas que eu esperava eram, geralmente, as que eu
ganhava. Encostada no batente da porta do quarto, Alana vestia minha
camisa, os olhos ainda semicerrados. Vê-la com algo meu me fez perder
completamente as palavras, eu me tornando quieto quando deveria dar uma
resposta.
— Nico? — ela chamou antes que pudesse pará-la, e meu nome na voz
de uma mulher não passou despercebido por Vincenzo.
— Tua companhia acordou?
Dividir a única coisa que me trouxe paz nos últimos dias era algo que
eu não estava disposto a fazer, ainda mais com o homem que ainda me
considerava seu genro. Voltei os olhos para a tela, rezando para que Alana
continuasse onde estava.
— Não me ignore outra vez, Nickolay. — Vincenzo enrugou a testa,
mostrando desaprovação com meu comportamento pela primeira vez em
muito tempo. — Não recebi esse tratamento insolente nem quando
Giovanna era viva, me nego a aceitá-lo contigo estando com uma puttana.
— Travei a mandíbula para silenciar a resposta que eu queria dar, sentindo
culpa ao levantar a mão de forma grosseira, tentando fazer a mulher que se
aproximava parar de andar.
Querer matar o chefe da Famiglia por ele ter ofendido a mulher que já
me atrevia a chamar de minha era perigoso demais.
— Desculpe, Don. — Forcei os olhos a permanecerem na tela, por
mais que a necessidade de checar a expressão no rosto de Alana gritasse.
— Esteja aqui até amanhã.
E ele desligou. A ordem de chegar na Itália em tão pouco tempo
parecia pura birra, e eu não precisava abrir nenhuma das mensagens não
lidas para saber do que se tratava.
Abandonei o celular na bancada de mármore, não demorando mais
para ir até ela. Era irritante saber que deveria atendê-lo para evitar maiores
problemas, do mesmo jeito que incomodava o olhar desconfiado que
ganhava.
— É tarde, dolcezza. — Mas a desconfiança pareceu derreter quando
nos encostei contra a parede, tocando meus lábios nos dela. — O que está
fazendo acordada?
Os cabelos desarrumados e a cara de sono a deixavam adorável,
contrastando com o jeito que passava as unhas curtas sobre as tatuagens que
eu exibia no peito. O sorriso que deu ao ver o quão pouco precisava para
meu corpo reagir me fez esquecer das poucas horas que tinha para arrumar
tudo e sair do país.
— O que você está? — ela ignorou minha pergunta, os dedos
chegando no elástico da cueca.
— Trabalhando. — Alana sempre revirava os olhos quando lhe dava
meias verdades, suas mãos resolvendo parar com as provocações. — Teve
um pesadelo?
E por um momento, achei que viria um sim, os olhos mais uma vez
escondendo tarde demais que havia algo muito além do que eu sabia. Essa
mulher conseguia ser tão boa quanto eu em desconversar, capturando meus
lábios com os dela antes de responder.
— Acordei numa cama vazia. — E as provocações voltaram, a mão
agora passando do elástico, eu nunca conseguindo ficar quieto quando
sentia suas mordidas em meu pescoço. — Você me falou que ia ficar.
Tinha um olhar de vitória quando nos separamos, o desejo que ela
acendia novamente me fazendo esquecer de todos os outros assuntos. Alana
ainda iria me matar, mas a morte de agora eu aceitava de braços abertos.
Não resisti quando a camisa que ela usava foi para o chão, minha
cueca seguindo o mesmo trajeto, Alana me fazendo ver mais uma vez o
quanto era uma montanha inteira no caminho que eu precisava seguir.
— Eu estou aqui. — disse, a carregando de volta para o quarto.
E outra vez o que fazíamos passava longe de ser só sexo, outra vez eu
me deixava dizer seu nome como uma oração enquanto descobria como
seus lábios eram problema.
Mas por mais que Alana gritasse problema, era um do qual eu não
pretendia mais me livrar.

Foi a primeira noite que não tive pesadelos em meses.


Antes de abrir os olhos, sabia que ele havia ficado, o corpo quente
atrás do meu me fazendo suar no verão que não acabava. Não ligava, e
Nickolay parecia se importar tanto quanto eu, os braços fortes me puxando
para mais perto assim que me mexi.
— Não quero acordar — ele reclamou, a voz rouca no meu ouvido me
provocando arrepios. Poderia acordar desse jeito todos os dias. — Só mais
cinco minutos contigo nua, dolcezza — pediu, roçando-se em mim de um
jeito que quase me convenceu a ficar. — Não quero minhas
responsabilidades. — Tive que rir: eu também não queria as minhas.
— São onze e meia, italiano — avisei ao achar o celular, me forçando
para fora da cama antes dele conseguir me prender.
— De um domingo!
Quando voltei com duas xícaras de café, ele ainda estava deitado e
muito menos vestido do que eu. Encostada na porta, decidi que aquela visão
merecia ser apreciada, o primeiro gole sendo tomado depois do meu cérebro
chegar a única conclusão possível.
— Nico, nunca mais ponha roupas.
A risada dele era um som único, assim como era única a segurança que
sentia quando estava ao seu lado. Vê-lo nu durante o dia revelava o quanto
seu corpo era tatuado, a tinta quando observada contra o sol linda e ao
mesmo tempo ameaçadora. Aquelas não eram tatuagens normais, Nickolay
não era um homem normal, e ainda assim, tê-lo ao meu lado fazia eu me
sentir normal outra vez. Queria cancelar a tarde combinada com Carlos e
me prender naquele sentimento, mas se fizesse isso, estaria muito bem
assinando o atestado de fim de amizade com Djamila.
Então me contentei em dividir um almoço e um banho, as roupas
cobrindo outra vez a maioria dos desenhos enquanto Nickolay dirigia. Ele
conseguia ser delicioso até trocando de marcha, meu cérebro outra vez
entrando em curto-circuito ao observar de perto o homem que o fazia
derreter sem nem mesmo tentar.
Os momentos que dividia com o homem fora da cama se provaram tão
bons quanto os com ele sem roupa, a oferta de me levar ao invés de me
deixar dirigir até a casa da minha amiga sendo mais do que deveria aceitar.
Aceitei sem pensar, ele me presenteando outra vez com sua voz durante o
trajeto, eu ganhando a paz que buscava com a mão tatuada na minha coxa.
O nervosismo tinha ido embora, dando lugar a um conforto tão perigoso
quanto o italiano que estacionava.
Queria tanto continuar calma.
— Eu tô livre hoje de noite — comecei, deixando sair a primeira
desculpa que pensava para me manter com ele. — A gente pode repetir a
noite passada, se você quiser.
Nickolay abrir a boca e respirar fundo disse tudo, e eu me arrependi no
mesmo instante de ter soado tão desesperada. Não era como se eu
precisasse dele, e minha ansiedade talvez tivesse acabado com toda a
vontade que ele tinha de repetir. Ele já tinha, afinal, me comido.
— Pela sua cara, isso é um não. — Óbvio que era um não, e óbvio que
eu esconderia toda a decepção que sentia com sua negativa.
— Alana...
Forcei um sorriso, levando a mão em direção à maçaneta.
— Nickolay, eu sei que não existem promessas ou qualquer coisa. Foi
só uma noite, e foi só uma sugestão. — Estúpida, completei mentalmente.
— Tá tudo bem.
Mas não estava tudo bem, e eu abri a porta, pronta para sair e me
despedir o mais longe possível dos lábios macios. Foi difícil aceitar a
felicidade que senti quando sua mão segurou meu braço, ele me silenciando
com o beijo que eu tinha tentado negar.
— Vou viajar no fim da noite, e devo voltar quinta de manhã. Não
Alana, me escute. — Nickolay continuou sério ao me ver ameaçar abrir a
boca. — Quando disse que não queria só sesso, fui sincero. Eu não vou
embora se não for mandado embora. Seja sincera comigo também.
— Eu não quero te mandar embora. — Tinha um sorriso genuíno ali.
— Então não mande. — E outra vez, me senti derreter ao ser puxada
contra seu peito, a mão grande apoiada contra meu rosto, sua boca fazendo
um ótimo trabalho em calar minha insegurança.
Havia pessoas que tiravam seu ar quando beijavam: Nickolay
conseguia tanto me fazer ofegar quanto devolver minha capacidade de
respirar. Seus lábios capturaram os meus de um jeito que me permitia
esquecer todos os problemas e apenas aproveitar o momento. Por mais que
me aterrorizasse o carinho que já tinha por ele no peito, era viciante sentir
algo bom outra vez.
O italiano era viciante, e foi difícil lembrar que precisava sair do carro.
— Aproveite sua tarde, dolcezza.
Djamila estava encostada no portão quando me virei. O carro de
Nickolay já tinha desaparecido, mas os olhos da minha amiga me contavam
que ela tinha saído muito antes do que deveria.
— Não tá transando com ele, mas ele te traz até a minha casa? — A
pergunta veio antes de eu dar o primeiro passo, os braços cruzados e a testa
franzida me fazendo desistir de contar mais uma mentira para ela.
— Eu tô transando com ele. Tá feliz? — Mila levantou uma
sobrancelha, claramente surpresa com minha sinceridade.
— Você tá?
— Sim. — Até eu estava surpresa, a afirmação saindo fácil dos meus
lábios
— Namorando?
— Menos.
— Ficando?
E eu ri. De nervoso.
— Mais? — Pelo menos ela parecia estar se divertindo com minha
inabilidade de definir o que Nickolay era.
— Quanto tempo faz?
— Que eu tô transando, ou beijando?
— Beijando, se é que isso veio primeiro. — Estreitei meus olhos, e ela
revirou os dela.
— Já faz um tempo. — Eu estava, afinal, o beijando fazia mais tempo
do que o que tínhamos feito na noite anterior, e repetido durante uma parte
da manhã.
Descruzando os braços, Mila me convidou para dentro antes de trancar
o portão e seguir para a porta de entrada. O jardim simples ainda estava
florido, o cheiro me fazendo lembrar de todas as tardes de brincadeira que
dividimos entre as árvores.
Ela só voltou a falar ao parar na frente da porta.
— Eu achei que você não fosse aparecer. — Tinha uma pontada de
tristeza na sua expressão, e eu fiquei feliz por não ter desistido no último
minuto. — Achei que fosse acontecer tudo de novo, que nem… — ela se
calou no último segundo, e eu suspirei, porque era o que me restava fazer.
— Eu não estou com ciúmes nem nada, Lana. Só doeu te perder da primeira
vez.
Também doía no peito ver minha amiga me olhar daquele jeito, mas só
doeria mais se eu decidisse me abrir com ela. Queria tanto que as coisas
voltassem a ser fáceis entre nós. Queria que tudo fosse fácil como foi noite
passada.
— Não vai ser como antes, Mila — afirmei, me referindo ao meu
relacionamento de anos passados. — Nico é diferente. — Ela deu um meio
sorriso.
— Nico com certeza é bem diferente do traste. Começa que ele tem um
emprego, ao invés de ser um filhinho de papai que trancou a faculdade de
medicina e saiu pra viajar pelo mundo. — Eu também não tinha um
emprego já fazia alguns meses, mas resolvi que o melhor era deixá-la
desabafar.
Ela girou a maçaneta, apontando para dentro com a mão, só voltando
com suas perguntas quando a porta fechou.
— Você ia me falar?
— Sinceramente? — Desviei meu interesse para a planta que enfeitava
a entrada antes de responder. — Se você não tivesse perguntado, não.
— Acha que vai voltar a me falar as coisas um dia, sem eu precisar te
encher de perguntas?
Era o que eu mais gostaria de fazer. Um bolo da nossa confeitaria
favorita e um vinho barato, rir sobre a vida até terminar a garrafa, dormir
assistindo um filme no sofá e acordar de ressaca, mas feliz. Ultimamente só
sabia o que era acordar de ressaca, Nickolay me fazendo querê-lo ainda
mais por me fazer despertar sóbria e sorrindo.
— Sim — menti e entrei, sabendo que depois daquela noite, não tinha
como eu voltar a falar as coisas nem para ela, nem para ninguém.

“Já sinto falta do seu gosto.”


Estávamos no começo de um filme quando recebi a mensagem, o
celular vibrando na mesa de canto chamando a atenção dos outros dois com
quem dividia a sala.
Carlos jogou uma almofada na minha cabeça, ameaçando jogar outra
quando alcancei o aparelho.
— Deixa ela responder, Carlinhos! Pelo menos apareceu hoje. — Veio
de Mila, numa voz muito menos rígida que nosso novo normal.
“Direto até nas mensagens, e queria poder dizer o mesmo, italiano.”
Digitei, pensando se a resposta de Djamila era o começo de uma trégua
entre nós.
“Mas depois de todas as piadas feitas, você se negou a diversão."
A próxima mensagem veio mais rápido do que esperava.
“Me diverti mais do que imagina.”
Sorri, colocando o celular de volta na mesa e pensando o quanto seria
bom assistir um filme que claramente não era uma comédia romântica.
— Escolhido especialmente pra você, Pips! — Carlos anunciou, me
jogando uma pipoca. Eu ia matar esse filho da mãe até o fim da tarde, e
retornei a almofada para a cabeça dele de uma maneira tão gentil quanto a
ganhei. — Terror é muito melhor do que os personagens românticos e
irreais que nunca vamos ter na nossa cama. Certo?
Dei uma risada, revirando os olhos e me forçando a não pensar que o
que tinha parado na minha cama era digno de um romance clichê. Tinha a
beleza, a voz, o mistério, e a forma única de socorrer a mocinha que não
conseguia se salvar por si só.
Muito melhor do que o terror que assistia. Muito mais confortável do
que ver o que, depois das dez, me atormentaria numa casa vazia e quase
sem álcool.
Na televisão, a loira batia na porta de vidro outra e outra vez, o barulho
me lembrando da noite de sexta que me fez ver Nickolay com outros olhos.
O grito que seguiu era real demais, e outra vez o som zumbia em meus
ouvidos, meu coração acelerando, o gosto metálico tomando conta da boca.
Era só um filme. Era só um maldito filme.
— Tira esse dedo da boca, Alana! — Aquele grito era sim real, e
Carlos estava do meu lado, a bacia de pipoca abandonada na mesa de
centro. Os olhos verdes não tinham mais o divertimento de antes, meu
amigo me encarando assustado, tirando minha mão de perto dos dentes que
a destruíam. — Lana, você arrancou o maior pedaço de pele!
Só consegui olhá-lo sem graça, as palavras fugindo da minha mente.
Foi Djamila quem mudou de assunto e de filme, e eu nunca a amei tanto.
— Comédias românticas são muito melhores — a morena falou, mas
consegui notar a preocupação antes dela revirar os olhos e alcançar o
controle. — E é isso que vamos ver! Você deveria ter dó das amigas que
moram sozinhas, Carlinhos.
— E a pipoca deveria ter é dó desse dedo! Quantas vezes vou ter que
repetir que cê ainda vai acabar com uma infecção, torturando eles desse
jeito? — Minha vez de revirar os olhos, eu escondendo a mão enquanto
voltava a atenção para o novo filme.
Não que tivesse conseguido prestar muita atenção, os sons daquela
noite insistindo em ficar e contrastando com as risadas que ouvia. Passei o
resto da história perdida entre pipoca e pensamentos, ignorando o celular e
continuando a encarar a tela enquanto os créditos rolavam.
Djamila e eu costumávamos ser tão próximas, que muitas vezes
sabíamos o que estava acontecendo antes de uma de nós abrir a boca. Como
na vez que soube antes da minha amiga me falar que seus pais estavam se
separando, ou quando Mila apareceu com bolo e vinho antes mesmo de ter
ideia de que eu tinha terminado com Thobias.
Djamila sabia que tinha algo de errado comigo, e ela me contou aquilo
me dando um band-aid.
— Não parece bem, amiga. — Eu sabia que ela não falava do meu
dedo.
— Obrigada.
Ela me puxar para um abraço foi uma das duas coisas boas do meu dia.
— Quando estiver pronta, Lana. — E tive que segurar as lágrimas, o
peso que tinha no peito pela distância que estava se formando entre nós um
pouco mais leve.
Mas observando os dois discutirem sobre o que pedir para comer, me
perguntei até onde a paciência de Djamila iria. Porque se não podia nem
começar a falar sobre o que havia acontecido na terapia, não tinha como
contar justo para minha melhor amiga algo que a tornasse tão cúmplice
quanto eu.

Meu dedo indicador latejava quando Carlos parou o carro na frente do


edifício.
A tarde correu melhor do que esperava, mas o nervosismo que sempre
vinha com a noite me fazia querer acender o primeiro cigarro do domingo.
Engraçado como Nickolay e eu éramos fumantes, e nem pensamos em
dividir um durante nossa manhã.
— Nem foi tão difícil hoje, foi? — Queria rir quando ouvi a frase: ele
não fazia ideia da dificuldade que tinha sido ver os dois, ou de quão
fatigante seria passar o resto da noite sozinha com meus demônios.
Precisava voltar para terapia, ou acabaria voltando para as festas que
ele tanto queria que eu não mais fosse. Suspirei, tendo o irritante
pensamento de que eu também não queria retornar nem para elas e nem
para outras bocas após a noite passada.
Mas meu italiano passaria noites demais distante, e não era como se,
depois de hoje, ele fosse viver todas as madrugadas na minha cama.
— Eu transei com Nickolay. — Demorou um segundo para Carlos
lembrar de quem eu falava, e me senti quase culpada pela facilidade que
tive em contar isso para ele, quando para Djamila eu tinha considerado
esconder. — E eu já falei pra Mila, antes que me pergunte.
— Foi bom? — Bom não cobria metade do que tê-lo sem nada havia
sido. — Eu queria filmar essa sua cara, Pipoca.
— Você tava certo quando falou sobre os italianos e tudo que eles
sabem fazer — admiti, pensando em estender o convite para uma noite de
conversas. Seria bom ter companhia, alguém ao meu lado para conversar
sobre besteiras e me fazer manter a garrafa de álcool fechada.
Mas Carlos recebeu uma ligação antes que pudesse convidá-lo, e eu
voltei a pegar meu celular depois de horas ignorando o aparelho.
“Não me importaria em ter minha diversão agora.”
A mensagem tinha sido enviada poucos segundos depois da minha. Já
passava das sete, e fiquei um pouco arrependida por ter ignorado o telefone
por tanto tempo.
“Seu gosto doce ainda está na minha boca.”
Recebi com o contato dele ainda aberto, me sentindo idiota por sorrir
ao vê-lo online. Nickolay continuou.
“Voglio le tue labbra su di me, bella[46].”
Com certeza era sacanagem, e eu estava prestes a jogar o escrito no
tradutor quando meu amigo voltou a se fazer presente.
— Tô vendo que alguém aqui deu um belo de um chá no italiano.
— Carlos! — Senti meu rosto vermelho, por mais que aquela vergonha
não tivesse existido noite passada, ou hoje pela manhã.
— Sabe o que responder pra isso?
— Eu nem sei o que é isso!
Tinha um sorriso que gritava safadeza nos lábios do meu amigo.
— Escreve assim: voglio la tua testa tra le gambe[47].
— Preciso traduzir isso antes de mandar?
— Traduzir faz perder metade da graça. — Sacudi a cabeça e digitei,
mostrando para ele o trabalho antes de enviar. — Depois você me fala se
surtiu um bom efeito.
— Eu te amo e tenho medo de você, Carlinhos.

Entrar em casa e não abrir uma vodca me obrigou a acender um


cigarro. Olhei para a cama desarrumada, querendo que o italiano com quem
a baguncei estivesse nela.
Era a última pessoa pronta para começar um novo relacionamento, e
ali estava eu, desejando a companhia além do que eu deveria. Fui para a
sacada, exalando fumaça ao observar a vista noturna proporcionada pelo
segundo andar.
Não conhecia o carro que estacionava, mas sabia bem quem era o
homem que saía dele. O celular vibrou na minha mão, e me senti ridícula
com o sorriso que veio ao ler o nome na tela.
— Me deixa subir. — A voz era séria, e Nickolay não esperou uma
resposta antes de desligar, meu interfone tocando menos de um minuto
depois.
Ah Carlos, que merda você me fez escrever? Sabia que deveria ter
olhado no Google antes de mandar seja lá o que tivesse me sido ditado pelo
meu amigo sem um pingo de vergonha na cara.
Apaguei o cigarro e fui para o banheiro, checando o quão apresentável
eu estava após uma tarde mentalmente cansativa. Tinha sangue no band-aid,
mas antes que tivesse tempo de trocá-lo, escutei a batida na porta.
Respirei fundo. Era Nickolay. Eu sabia que era Nickolay, e mentia que
meu coração tinha acelerado daquele jeito por ter entendido ser o italiano.
Vê-lo de terno era sempre intimidante e delicioso, e meu cérebro
pareceu esquecer como se pronunciava qualquer palavra enquanto o
checava de cima a baixo. Ok, aquilo era sim uma boa distração, e me deixei
ficar feliz por ele estar na minha frente bem antes do que eu havia me
preparado para esperar.
— Eu só tenho dez minutos. — Ele não esperou permissão para entrar,
mostrando outra vez nossa diferença de força ao me pegar no colo, batendo
a porta atrás de nós. — É pouco para tudo que quero, mas, como se diz
mesmo? Trabalhamos com o que temos?
Parei no sofá, sua língua provando outra vez a minha, a mão se
livrando da minha calcinha com a mesma facilidade que havia me
carregado. Eu imaginava que a mensagem não tinha sido das mais
comportadas, mas a reação que havia causado era engraçada.
Engraçada, e exatamente o que eu precisava para relaxar a minha
mente.
— Eu preciso aprender italiano — confessei contra seus lábios, ele
parando o beijo assim que processou minhas palavras.
A cara de desconfiado era mais sexy do que perigosa, e outra vez me
perguntei como ele conseguia ser tão lindo. Que diabos esse homem estava
fazendo justo comigo?
— Quem escreveu?
— Eu escrevi, Carlos ditou — expliquei, arrancando um gemido ao
mordiscar seu pescoço.
— Por que ele te ditou isso?
Era ciúme que eu via ali? Ele definitivamente não precisava nutrir esse
sentimento pelo meu amigo, caso fosse isso que estivesse acontecendo.
Nico não precisava sentir ciúmes de ninguém.
— Porque ele me trouxe, e olhou sem querer seja lá o que você me
mandou em italiano. — Mas não podia negar que meu lado possessivo até
que gostou. Eu teria um pouco de ciúme, estivesse no lugar de Nickolay. —
E o namorado dele fala a língua, e ele achou inteligente eu saber uma frase
ou outra. O que você escreveu?
— Irrelevante depois da sua mensagem, Alana. — A resposta veio
numa voz rouca, ele mordendo meu lábio inferior, os olhos não saindo dos
meus.
Seus olhos me deixavam nua demais, e aquele detalhe era a única coisa
que me incomodava nele. Nickolay tinha esse dom irritante de ler as
pessoas, e cada vez que tentava aquilo comigo, eu temia que estivesse mais
perto de descobrir meus problemas.
Não queria que me lesse, muito menos desejava revelar qualquer coisa
que o fizesse me olhar de forma diferente.
— O que eu disse, Nico?
Mas a mão entre minhas pernas me fez mandar meus medos para o
inferno, e o sorriso que ele me dava fazia eu lembrar das melhores partes da
noite passada.
— Deixa eu te ensinar. — Suspirei ao sentir os lábios outra vez no meu
pescoço, Nickolay levantando meu vestido e ajoelhando-se no chão. — É
um dos meus três prazeres, dolcezza. Apri le gambe[48].
Abrir as pernas foi automático ao sentir seus lábios no meu joelho.
— Boa aluna.
E ele me puxou para a beirada do sofá, minhas pernas apoiadas em
seus ombros enquanto sua língua me impedia de ficar quieta. Eu ia matar o
Carlos, assim como pediria mais algumas frases que surtisse aquele efeito.
Nickolay sabia mais do que o considerado seguro sobre a anatomia
feminina, a boca macia que cobria meu sexo me tirando toda a vergonha.
Escutava minha voz gemer seu nome, implorando por mais, como ele disse
que eu faria — e me fez fazer — noite passada. Seu toque deixava meu
corpo inteiro sensível, as mãos tatuadas achando meus seios por debaixo do
vestido enquanto os lábios grossos me chupavam.
Não tinha passado nem três minutos e já agarrava as bordas do
estofado até meus dedos ficarem sem cor. O italiano me fez gozar apenas
com sua boca, eu focando em sua língua e esquecendo de todos os meus
medos.
Ainda não tinha recuperado o fôlego quando ele voltou para cima de
mim, sussurrando algo na língua que eu estava aprendendo a adorar antes
de me tirar mais o ar. Dava para sentir o quanto ele me queria, tanto pelo
jeito que beijava quanto pela forma que me pressionava contra sua ereção.
Quando nos separamos, tinha um triunfo masculino que brilhava em
seus olhos escuros, eu incapaz de desviar a atenção dele. Nickolay era sim
letal, o toque que conseguia dissolver meus problemas sendo viciante.
— Diga de novo que não vai me mandar embora — ele pediu, usando
a voz rouca que me fazia ter vontade de obedecer a todos os seus comandos.
— Eu não quero mais ir.
— Eu não vou. — Eu não ia.
Eu deveria. Mas ao invés de lembrar de tudo que poderia me fazer
querer que ele partisse, voltei para seus lábios, minhas mãos prontas para
abrir o cinto quando as dele me impediram.
— Meu tempo só dá para ti. — E lembrei da conversa que tivemos
mais cedo: ele estava indo viajar. — Não era nem para eu estar aqui. Estão
me esperando no carro. — E ainda assim, arranjou tempo para passar aqui.
Aquilo sim me dava confiança.
— Você disse que era egoísta, mas não tô vendo isso. — Retribuí o
sorriso que ganhei, me contentando com seu cheiro e sua boca. — Pra onde
você vai?
— Para longe.
Nickolay se levantou mais cedo do que eu gostaria, eu o
acompanhando até a porta ainda com as pernas trêmulas.
— Não mude de ideia até eu voltar, Alana. — O pedido soou muito
mais como uma ordem, seus beijos perigosos demais.
— Eu não vou.
Só fechei a porta ao vê-lo sumir pelo elevador.
E acendi mais um cigarro, começando a escutar as batidas que não
existiam. Procurei no telefone o contato da terapeuta que tinha não me
ajudado fazia alguns meses, colocando num alarme um lembrete para ligar
no dia seguinte.
Chequei o olho mágico para me certificar que estava imaginando
coisas, respirando aliviada ao me deparar com um corredor vazio, as batidas
apenas na minha cabeça. Fui para a cama, decidindo que havia comido o
suficiente na casa de Mila para me considerar alimentada pelo resto do dia,
trocando o vestido por uma camiseta gasta.
Mas os pesadelos voltaram mais fortes sem os braços tatuados, e a voz
de Thobias misturada com os barulhos que viviam na minha imaginação
não me deixavam dormir. A conversa que tivemos no restaurante passou
pela minha mente outra e outra vez enquanto escondia a cabeça no
travesseiro, puxando o lençol sobre meu corpo.
Nickolay queria aproveitar ser normal, e eu queria minha normalidade
de volta. E com tudo que havia visto até agora, algo me dizia que eu só
conseguiria totalmente a minha quando o italiano renunciasse à dele e
deixasse claro o que fazia. Eu queria a segurança que sabia haver ali da pior
— e única — maneira que adiantaria. Eu queria que a pessoa que batia na
minha porta fosse embora, para sempre.
Não, Nico não era egoísta. Mas meu desespero estava me ensinando a
ser.

O italiano só deu qualquer sinal de vida na terça.


“Sonhei contigo.”
Estava entrando no elevador para a consulta das quatro e meia quando
as mensagens começaram.
“Conta mais.”
O consultório estava vazio a não ser pela recepcionista, e ela pegou
meus dados antes da próxima notificação vir.
“Não é apropriado para o horário de trabalho.”
Sorri. Então eu não era a única que estava pensando no último sábado
antes de fechar os olhos.
Lembrei da foto tirada ontem à noite que nunca tive coragem de
mandar, as palavras dele me dando força suficiente para decidir pelo sim.
“Eu não tô trabalhando.”
— Alana? A doutora Paula está pronta para receber você.
Olhei para o celular mais uma vez antes de me colocar de pé.
“Eu estou, dolcezza.”
Bem, boa sorte, seja lá qual for seu trabalho.
Enviei a foto antes de entrar.

— Estou feliz que tenha decidido voltar, Alana. — Paula cruzou as


pernas, e eu me sentei no sofá.
De óculos finos e com um rosto aconchegante de se olhar, a
psicoterapeuta emanava a calma que eu almejava. Seria confortável falar
com ela.
— Eu preciso de remédios pra dormir.
Se eu pudesse falar.
— Vamos conversar para descobrir isso, certo? — Argh. — O que te
fez decidir voltar?
O fato de ter alguém no meu apartamento era minha melhor resposta.
Mas a parte que eu podia lhe dar, sem a história completa, acabaria me
rendendo um diagnóstico de esquizofrenia. E eu não via ou ouvia coisas que
não existiam: elas existiram bem demais, só não estavam mais ali,
existindo.
— Eu não consigo dormir. — Sabia qual pergunta viria se eu não
continuasse. — Porque ando nervosa. — Por estar revivendo o que havia
acontecido num passado não muito distante. — Com a faculdade. — E com
a possibilidade de estar sendo seguida.
Eu não estava sendo seguida, repeti pela trigésima vez no dia.
Realmente parecia uma perturbada nos meus pensamentos.
— Aconteceu algo que possa ter feito seu nervosismo voltar?
Precisei me forçar a não cruzar os braços, escolhendo encostar a
cabeça no sofá.
— Acho que estou num... — Pensei numa palavra, mas não tinha
nenhuma que definia bem o que nem eu sabia estar fazendo. —
Relacionamento.
Mas aquele não era o motivo do meu nervosismo. Ao contrário.
— Ah.
Suspirei, forçando um sorriso para não gritar. Aqueles 'ahs' tinham sido
responsáveis por me fazerem desistir da primeira vez, e eu não iria revirar
meus olhos. Eu só queria a droga de um remédio.
— O que esse relacionamento te traz?
— Segurança. — Aquilo eu poderia, por mais que não quisesse,
admitir em voz alta.
— Por quê?
Porque Nickolay me salvou de um estupro. Porque o homem
conseguiria me defender de tudo. Porque ele gritava perigo, e eu precisava
de alguém ameaçador o suficiente ao meu lado.
Não seria a melhor coisa para se responder.
— Nickolay é... — Era difícil achar palavras que poderiam ser usadas.
— Forte. Em vários sentidos.
— E ele ser forte te traz segurança ao invés de te preocupar?
Claro, e eu odiava terapia.
— Tem algo que te deixa com medo, Alana? Para você buscar
segurança em outra pessoa?
Era assim óbvio?
— Só gosto de me sentir segura.
— Lembro que quando você me procurou pela primeira vez, tinha
acabado de terminar um relacionamento. Faz mais ou menos meio ano,
estou certa?
Fiz que sim com a cabeça, não querendo admitir que sabia da
contagem exata. Oito meses e vinte e quatro dias.
— O que acha de falarmos um pouco sobre seu ex-namorado? Seu
nome era Thobias, não era? — Precisei me forçar a deixar a expressão
neutra, amaldiçoando minha grande boca e minha opção de manter a
terapeuta de seis meses atrás, ao invés de ter buscado uma nova. — Thobias
era violento com você? Ele fez alguma coisa que te faça buscar segurança
em alguém forte?
Argh. Mil vezes argh.
— Eu não vim aqui falar sobre ele — retruquei irritada, o nome de
quem eu tive ao meu lado por tantos anos não conseguindo ser pronunciado.
— Ele não me batia, se é isso que você está insinuando.
— Quer dizer que Thobias nunca foi agressivo com você?
Respirei fundo.
E não consegui negar.
— Existem várias formas de violência, Alana.
Sim, aquilo eu sabia bem.

Frustração era uma boa definição para meu estado quando passei pela
porta. Depois de uma hora de pura enrolação, não consegui remédio
nenhum, mas sim uma orientação de 2 sessões semanais por um mês para
então negociar qualquer medicação. Terapeuta filha da mãe, e eu acabaria
comprando uma receita.
O telefone tocou enquanto fazia minha própria cura para um sono sem
sonhos, o nome na tela fazendo meu coração se confortar mais do que o
primeiro gole de vodca.
— Mi stai facendo morire[49], Alana. — A voz de Nickolay era uma
lamentação linda, o barulho de ondas estourando do outro lado da linha.
— Português, Nico. — O lembrei, dando risada, ainda me
surpreendendo como era assustadoramente fácil fazer isso com ele.
— Madonna mia[50], vai me matar se me enviar outra foto parecida!
Quinta feira está distante demais — ele reclamou, sua voz contrastando
com outra usando a língua que eu não entendia. — Uma foto não é o
suficiente. Seu corpo está muito longe da minha cama.
— Tá na hora de voltar pra eu apagar esse seu fogo, italiano —
brinquei, guardando o que havia comprado além de álcool para encher os
armários da cozinha. Um dia de terapia, e já estava enchendo a despensa.
Talvez devesse me orgulhar disso.
Com certeza me orgulhava da foto mandada.
— Eu não quero que apague meu fogo — foi a resposta que veio, a
voz rouca me causando um arrepio. — Quero que queime comigo. —
Italiano filho da mãe, pensei ao desejá-lo muito mais perto do que
estávamos agora. — Preciso de ti, Alana. De preferência, vestindo apenas o
que me mandou.
Muito filho da mãe. Respirei fundo, fechando os olhos e tentando tirar
da cabeça a imagem dele no meu chuveiro.
— Falar isso não está me ajudando. — Ele riu.
Chuveiro que eu precisaria usar, Nickolay fazendo meu verão durar
para sempre.
— Não vou conseguir parar de olhar para sua foto. — E eu, no caso,
gostaria de uma dele. — Não deveria, mas te quero aqui.
— Nickolay...
— Só te ouvir falando meu nome basta para me tirar o sono. — Se
fotos como aquela me rendessem ligações como essa, mandaria uma todos
os dias. — È così bello sentirti gemere il mio nome[51], poderia passar a vida
ouvindo isso. O que está fazendo comigo, Alana?
Conseguia imaginá-lo passando a mão pelos cabelos, o meio sorriso
que eu aprendi a desejar em seus lábios.
— Eu acho que estou começando a te entender. — disse, antes de
escutar o nome dele ser chamado por uma voz masculina. — Tem alguém
com você?
— Lorenzo. — Ouvi um suspiro. — Melhor eu ir. Sonhe comigo,
dolcezza. — Eu queria. — Buonasera.
Só até quinta-feira. Eu conseguia ignorar as batidas até quinta.
E eu ignorei, com a ajuda de uma garrafa inteira de Absolut. Nem
mesmo me atrasei durante a semana, uma coisa rara de se ver, e muito bem
apreciada por Mila.
Esperava achá-lo antes do começo da sua aula, mas não havia sinal de
Nickolay na faculdade. Considerei ir até a sala dos professores, desistindo
no último minuto. Não estava tão desesperada, me enganei, esperando o
elevador para voltar ao andar no qual deveria estar.
Já fazia um tempo que não me sentia uma trouxa — mais de oito
meses. Quando as portas do elevador se abriram, me mostrando uma mulher
conhecida agarrada no italiano que me pediu para esperá-lo, eu me senti a
maior trouxa do planeta.
Ela tocava seu peito e beijava a boca que era minha, e eu não estava
disposta a querer algo que tivesse que dividir. Aquela paz precisava ser só
minha.
Nickolay era meu. Ou ao menos, era o que o homem tinha me feito
acreditar.
Mas pessoas não eram coisas para tomarmos posse, e eu nunca deveria
ter dado qualquer poder para o italiano que esmigalhava o resto que tinha de
coração. Fingir que estava tudo bem enquanto me virava e ia embora dali
foi impossível, a dor de vê-lo com outra nos braços continuando no meu
peito ao descer correndo as escadas.
Eu era tão idiota.

Não colocava os pés naquela praia fazia anos, a última vez sendo
quando me despedi da minha segunda família. Perder Giovanna e Nicolas
doeu tanto quanto perder meus pais, e anos atrás, ainda ajoelhado na areia,
jurava me esforçar para nunca mais sentir nenhuma dor parecida.
Consegui com maestria até Alana.
Bastou uma noite para esquecer a promessa que havia feito. Uma
segunda para ficar totalmente confortável ao lado da mulher que me fazia
sorrir com as coisas mais simples. Eu, que nunca mais queria qualquer
família, me deixava imaginar como poderia ser uma com ela.
E era lindo de se fantasiar, e mais perigoso do que tudo que precisava
enfrentar no dia a dia. Maldito seja o momento que escolhi tê-la, e bendito
seja o segundo que ela fez o mesmo.
Descobrir a foto que ela havia mandado foi a única coisa boa da terça,
as memórias e trabalhos feitos desde o final da segunda-feira se tornando
quase leves. Ela me atender amenizou a dor dos pontos que carregava no
abdômen, me fazendo esquecer por um momento o quão errado era querer
trazê-la para minha vida.
Porque era muito errado, e as tatuagens que eu carregava eram um
constante lembrete de como não deveria incluir alguém normal em nenhum
plano. Matarazzo não estava feliz, o rosto uma eterna carranca,
principalmente depois de eu chegar sangrando e atrasado na mesa de jantar.
Ele não parecia mais querer fazer vista grossa para minhas merdas, e
Mantovanni tinha razão em me mandar calar a boca e ouvi-lo quieto.
Claro que não o fiz, e disse ser absurdo sequer insinuar um casamento
entre quem ele insistia em chamar de filho e a mulher que ainda estava de
luto pelo marido. Sabia que Ferreti estava tão de luto quanto eu era filho do
velho, mas o mau humor de Vincenzo apenas aumentou com minha
negação, então o deixei continuar insinuando que era sua família. Era para
aumentá-la com Emília que ele tinha me chamado para a Itália, e descobrir
o plano me causava enjoo.
Lorenzo não foi nem um pouco gentil ao derramar álcool sobre meu
corte, nem ao passar a agulha e fio pela minha pele enquanto me censurava.
Reclamava de como eu testava demais minha sorte, nunca confiando nele
quando mandava eu ficar de boca fechada. Poderia me chamar de pirralho
inconsequente o quanto quisesse, mas não havia nada que pudesse fazer eu
querer me casar com alguém que não fosse Alana.
Processar o que tinha pensado foi como um banho de água fria. O
homem ainda dava seu sermão, terminando os últimos pontos, mas minha
atenção já não estava mais com ele. Se percebeu minha mão trêmula,
Mantovanni fez um bom trabalho a ignorando.
Ouvir a voz dela depois de um dia de inferno era um incentivo para
aguentar o resto das horas naquele país, e só pensei novamente o quanto
estava fodido quando finalizei a ligação.
— Como está Alana? — Lorenzo perguntou assim que desliguei o
telefone, o sorriso irritante de quem sabia demais nos lábios. — Precisa
parar de se martirizar desse jeito por algo que te faz bem.
Queria socá-lo, a vontade presente demais desde que desembarquei.
— Me diz isso depois de ouvir o que seu chefe compartilhou com toda
a mesa? — Não tinha coragem de continuar encarando os olhos que
mostravam cuidado demais, preferindo a água fria do mar italiano. — Alana
pode me fazer bem, mas acha que posso dar o mesmo para ela? Acha que é
bom essa garota criar raízes em mim, é bom eu criar raízes em alguém, com
Matarazzo querendo me casar para manter alianças?
Larguei o corpo sentado na areia, deixando a água salgada alcançar
meus pés.
— E o pior é que, depois de hoje, ele já desconfia. Acha que o homem
vai reagir como, quando me achar feliz com uma mulher nova, ao invés de
viver de luto pela filha morta? — confessei o que tomou conta da minha
mente durante toda a viagem de ida.
Vincenzo se enxergava demais em mim. Dois homens que haviam
perdido o que consideravam o amor da sua vida, cada um de seu jeito.
Durante os últimos quatro anos, tudo que ele encontrava quando olhava
para mim era escuridão.
Ele conseguiu ver luz quando respondi que Emília não me interessava
como mulher. Talvez tenha começado a enxergar ao reconhecer uma
cozinha que não era a da mansão, ao escutar a voz macia que chamava meu
apelido.
— Me tira o sono pensar em sequer falar o nome de Alana para ele,
por mais que não haja saída para isso. — Não haveria, se continuasse
deixando-a fazer parte do meu tempo livre.
A mão de Lorenzo apertando meu ombro era um conforto que não
merecia.
— Vincenzo não quer você lamentando Giovanna para sempre.
— Ele quer sim. Ele me quer de luto, não tem como negar isso com o
Don querendo me casar justo com Emília. — O mais velho fez o favor de,
pelo menos agora, escolher o silêncio. — Graças às últimas descobertas,
Matarazzo está puto, e parece estar se esforçando para me deixar com o
mesmo humor. Não me sinto nem perto de resolver o caso depois do que
descobrimos de Barbosa. Ele passou décadas achando que foram os
espanhóis os responsáveis pela morte de Catarina, e agora sabe que
vingança não tinha relação com o assassinato da esposa.
Respirei o cheiro de sal, a lua cheia iluminando a praia escura. Era tão
egoísta eu querer Alana ali para me confortar com seu perfume. Tão egoísta
querer alguém que viveria presa a mim e a toda a morte que eu trazia.
— Eu não sei quem matou Catarina, não sei onde a filha dela e de
Vincenzo está, sequer sei se continua viva! E só tenho um mundo inteiro
para procurar! — Passei a mão pelos cabelos antes de acender o último
cigarro do maço, e era irritante como a nicotina não fazia um bom serviço
nos últimos dias. — E quando descobrirmos que a garota não está no
Brasil? Ou que ela está morta? Me sinto um monstro maior do que já sou,
mas tem dias que torço para a última possibilidade, porque...
Eu não aguentava mais.
E Lorenzo via que eu estava no meu limite, os olhos claros tentando
me passar a tranquilidade que só tinha conseguido achar nos dela. Era por
isso que ele incentivava tanto o relacionamento que eu não deveria ter?
Achava que manter alguém em minha vida seria uma âncora para minha
sanidade?
Porque parecia estar acontecendo o contrário, eu acordando da minha
dormência desde a primeira noite dividida com ela. Era muito mais fácil
trabalhar para aquele velho estando dormente.
— Viajamos amanhã cedo. Tente descansar. — Mantovanni se
levantou, me deixando sozinho na praia.
Esperava passar o resto da noite assim, mas já havia aprendido que as
coisas nunca aconteciam exatamente como planejava. A batida na porta do
quarto veio depois da meia noite, e quase não abri os olhos ao lembrar do
voo que teria que pegar antes das dez.
Seja lá quem estivesse batendo, era insistente. E eu achando que minha
melhor escolha tinha sido escolher um hotel, lamentei ao me levantar da
cama.
— Oi, Nico.
— Emília? — Era a última pessoa que esperava estar do outro lado da
porta. — Achei que passaria o resto de seu tempo aqui com sua família. O
que está fazendo num hotel?
— Não aguentava mais os olhares de pena e peguei um quarto aqui. —
A mão fina parou no meu peito, as unhas vermelhas impecáveis me fazendo
desejar as curtas e imperfeitas de Alana. — Esperava não ter que usá-lo.
Minha expressão contou a resposta antes das palavras virem, a mão se
afastando, quem eu agora considerava apenas uma conhecida me dando um
sorriso amargo.
— Eu não posso, Emília.
Mesmo assim ela passou pela porta, a visão da mulher em uma
camisola que revelava mais do que estava disposto a olhar trazendo apenas
desconforto. Alana poderia conseguir se livrar de qualquer sentimento, mas
em mim, a maldita já estava mais funda do que achei que a deixaria chegar.
— Você nunca pode. Quem está salvando agora? — ela perguntou, nos
lembrando de todo o ocorrido de anos atrás. Não tinha felicidade no sorriso
que dei, meu cérebro respondendo que deixar a mulher que queria perto de
mim era o oposto de salvá-la. — É engraçado como nosso tempo nunca se
encontra, Nico. Achei que fossemos finalmente ter uma chance quando
recebi a ligação de Vincenzo. Não imaginava que sua resposta fosse
encurtar nossa estadia na Itália. Consigo te fazer mudar de ideia?
Ignorei o detalhe que ela escolheu me revelar, minha preocupação em
relação à negativa que havia dado para o chefe da Famiglia aumentando.
— Eu já estive no seu lugar. O que veio buscar aqui não é a solução,
acredite. — disse, lembrando ter falado algo muito similar semanas atrás
para quem eu queria que estivesse na minha frente.
— Você não amava Giovanna para poder estar no meu lugar — Emília
retrucou, ignorando minha vontade de ficar sozinho e sentando-se na minha
cama.
Era do conhecimento de todos que Ferreti também não tinha tais
sentimentos pelo marido, mas escolhi por não piorar a situação e manter o
pensamento para mim.
— Eu a amava do meu jeito.
E o celular vibrou, perto demais da mulher, a tela acendendo. Claro
que, com a sorte que tinha, Alana escolheria justo agora para se manifestar.
A foto que havia sido tirada durante o café da manhã de domingo
denunciava quem era o contato salvo como dolcezza, Emília reconhecendo
imediatamente o motivo de eu estar a negando.
— Alana Martins, Nico? — E eu era um idiota por associar alguém tão
importante justo comigo, um novato por colocá-la no meio dos meus
contatos. — É uma de minhas alunas. Uma de suas alunas. — Ela balançou
a cabeça, levantando-se da cama. — E mais uma vez, sou trocada por uma
garota mais nova.
— Não é o que está acontecendo aqui. — Porque para ser trocada, a
mulher precisava ter primeiro sido escolhida.
Sabia que responder aquilo era começar uma guerra desnecessária com
alguém que parecia ter poder demais, então me mantive em silêncio pela
segunda vez, segurando a porta aberta.
— Ela ainda não faz ideia do que você faz, estou certa? Sabe o que vai
acontecer com essa garota se ela continuar na sua vida, não sabe? — Ela
estava, e eu sabia.
Mas Emília insistiu em me lembrar.
— Se relacionar com você vai colocar toda a família dela em risco. Vai
colocar Alana em risco. Ela vai passar a viver com seguranças para cima e
para baixo, vai ver coisas que uma garota que desconhece a vida que
levamos não está preparada para aceitar. E ela não vai entender, não vai
aceitar, e vai odiar você, Nickolay. E vai ser tarde demais para mandá-la
embora com vida quando a menina souber. Ela vai ter que entrar, ou vai ter
que morrer. — A intenção que a mulher tinha em machucar fez eu sentir
menos culpa ao mandá-la embora. — Ficar com alguém do seu mundo seria
muito mais fácil. Eu sei, e você também sabe. Por que não nos dá uma
chance?
A raiva realmente me fazia falar demais.
— Porque ficar com qualquer outra não é uma opção.
Recuei da mão que tentou novamente me tocar, ignorando os olhos
claros que pediam por alguma afeição.
— Durma bem, Emília.

Estava atrasado quando entrei no elevador.


Depois de poucas horas dormidas, mal tive tempo de tomar banho
antes de precisar engolir café o suficiente para conseguir dar uma aula, nem
mesmo lembrando qual seria o tópico do dia. Naquela quinta, não era o
conforto de um emprego normal que me fazia enfrentar o trânsito de São
Paulo, mas a promessa de ver quem me fazia esquecer sobre minha
anormalidade com um simples olhar.
— Professora Ferretti?
A última pessoa que eu esperava encontrar ao pisar ali era quem eu
estava substituindo.
— Quanta formalidade, Nico. — Respirei fundo, me controlando para
não a corrigir, já incomodado pelo apelido que ela insistia em usar. —
Decidi que vou voltar a dar aulas. Conversei com o reitor antes da viagem
de volta, e ele concordou com meu retorno. Luto, você sabe, não combina
com a cor dos meus cabelos — ela disse, brincando com os fios loiros. —
Não parece bem-humorado com minha decisão.
— Poderia ter avisado. — falei numa voz desinteressada, colocando as
mãos nos bolsos. — Correr para chegar aqui depois de mais de dez horas de
viagem não me deixa exatamente feliz.
Não vi qualquer maldade nos olhos azuis, o que só me mostrava como
Emília conseguia disfarçar as emoções tão bem quanto eu.
— Posso melhorar isso.
Foi uma surpresa ter os lábios manchados pelo batom marrom quando
a porta do elevador se abriu, eu não sabendo que a mulher com quem dividi
momentos tão íntimos no passado havia se tornado tão cruel. Ela tinha
olhado para o lado antes de tomar aquela decisão, e ainda enxergava as
costas da única que me fazia estar ali ao me afastar.
— Ah, Emília. — Tirei do peito a palma que se apoiava contra ele, e
não esperei por qualquer reação da mulher mais velha antes de sair do
elevador. — Alana! Alana, espera!
Ela já corria escada abaixo quando segurei seu braço, e a última coisa
que me preocupava era a cena que provavelmente faríamos.
— Não é o que está pensando!
Alana tinha uma preocupação tão grande quanto a minha.
— Eu não estou pensando, Nickolay! Eu vi! — Havia o mesmo fogo
do nosso começo conturbado nos olhos mel, ela se livrando da minha mão
da mesma forma que eu tinha feito com Emília minutos atrás. — E não
adianta falar que não fez nada, porque tem batom suficiente na sua cara pra
você conseguir negar!
Limpei incomodado a sujeira que carregava no rosto, o marrom
evidente na manga da camisa branca. O ódio me deixava muito mais
coerente antes dela.
— Ela nunca passou de uma foda, e isso foi há anos!
Ter raiva ao lado de Alana parecia me fazer parar de raciocinar, e ela
outra vez mostrava o quanto sua personalidade combinava com a minha.
Segurar o braço dela mais uma vez foi o começo do erro.
— Quer saber? Não tem problema. Não tem problema, porque a gente
não é nada! — Ignorei o incômodo que senti quando a mão que me
empurrou parou bem em cima dos pontos, me lembrando que branco tinha
sido uma péssima escolha, e que teria que chamar Santi para refazer o
péssimo trabalho de Lorenzo. — Eu errei de novo, e você é só mais um cara
que sabe chupar bem!
Ela me afastou, e a queimação no corte não era nada comparada a que
as palavras dela provocavam. Alana definitivamente não era mais uma
mulher que sabia chupar bem, por mais que agora, eu desejasse muito que
não tivesse passado disso.
— É só isso mesmo que sou? — Não soltar o braço enquanto
respondia com o mesmo veneno foi o fim. — Ou está se comportando como
a pirralha mimada que parece ser?
Cazzo. Deu para ver pela sua expressão que eu havia escolhido as
piores palavras.
— Me deixa ir. — A voz dela nunca soou tão quebrada. Via lágrimas
que queriam cair, Alana recuando mais quando tentei limpar a que ela não
conseguiu segurar.
— Dolcezza...
— Não! — Saiu dela quando tentei pedir uma chance para explicar. —
Você disse que eu só precisava dizer não, Nickolay! Me deixa ir embora, eu
não quero mais ficar, eu não quero!
Doeu soltá-la, mas não foi dor que senti ao olhar escada acima e
encontrar Emília. A mulher, que até minutos antes considerava uma aliada,
era muito mais perigosa do que dei crédito. E tendo a certeza de que a
maldita tinha gravado todo o ocorrido, o celular ainda na mão, eu me forcei
a subir os degraus, ignorando quem me trazia tanta paz desaparecendo
escada abaixo.
— Como você vai conseguir amor com uma cópia da Giovanna, Nico?
— ela falava, como se suas palavras fossem importantes. — Você vai viver
em guerra. Isso não te cansa?
— Se o nome dela chegar em Matarazzo, Ferretti — a adverti,
sentindo prazer ao vê-la recuar quando seu olhar encontrou o meu. — Eu
conto para seu pai o que fez. Dou a minha versão dos fatos, a que implorou
para eu não expor. E te prendo com sua família na Itália, para sempre.
No entanto, a ameaça, por mais que tivesse surtido o efeito desejado,
não fazia o tempo voltar. Havia conseguido o que minha parte racional
gritava para eu fazer e meu coração se negava.
Mas não conseguia enxergar vitória alguma em Alana partindo.

Deitada no tapete ao lado da minha cama, me perdia no feed do


Instagram para conseguir manter a manhã que me incomodava longe da
memória. Deveria ter saído com Carlos, a cerveja postada no boteco da Vila
Madalena parecendo muito mais tentadora e gelada do que o chão do meu
quarto.
Mas meu amigo via bem demais quando meu humor não condizia com
meu sorriso, e eu não estava aberta para perguntas naquela quinta. Fora que
todos na faculdade já deveriam saber sobre a aluna que havia gritado na
escadaria que o professor só sabia chupar bem. Ótima escolha de palavras,
Alana. Deveria ter me mantido inteira fechada, por mais que a dor de agora
fosse um tapa que me ajudava bem a esquecer qualquer batida.
Os sonhos não eram gentis, minha mente me levando repetidas vezes
para a cena vista no elevador. Ela estava tocando o que era meu, e eu queria
dividi-lo tanto quanto tinha o direito de chamá-lo de propriedade. A mão no
rosto marcado de sol, as unhas vermelhas na barba por fazer, os lábios
capturando os que haviam me pedido demais dias atrás.
E então, os olhos azuis se transformavam em verdes, Emília se
tornando muito mais jovem, o rosto muito mais doce. Tinha uma mão sem
tatuagens segurando forte demais seu pescoço, e dava para ver o sangue
pingando enquanto a cabeça batia contra a parede.
Sabia que estava suada antes de abrir os olhos, sentindo os fios
grudados no rosto, o calor do tecido úmido da camiseta que usava. Meu
corpo não conseguia responder diferente quando tinha aqueles sonhos, meu
cérebro voltando a querer o braço tatuado e a promessa de nunca ir embora
para acalmar.
Não havia nenhuma mensagem de Nickolay quando acordei na sexta.
Precisei me forçar a levantar, o travesseiro e edredom arrumados no chão
desconfortáveis, mas muito melhores que a cama. Ainda tinha ele demais na
minha cama, e o colchão vazio parecia zombar da minha cara enquanto eu
fumava um cigarro.
Preferia estar de ressaca a ter os olhos inchados de chorar, assim como
gostaria de conseguir reagir de forma normal a coisas que não fugiam muito
da normalidade.
Queria que ele não tivesse me chamado de pirralha mimada.
Odiava como meu cérebro não conseguia ficar quieto um minuto.
Djamila não falou nada sobre meu estado lamentável e monossilábico,
muito menos perguntou o motivo da minha ausência na única aula que
gostaria de ter assistido ontem. Carlos resolveu ir pelo mesmo caminho, os
dois escolhendo assuntos mais felizes do que nosso normal, eu não
conseguindo engajar numa conversa duradoura. Nós três ignoramos os
cochichos e olhares curiosos durante toda a sexta.
Quando cheguei na consulta que havia remarcado para a tarde,
imaginava que seria recebida por um rosto menos sereno que o mostrado
pela doutora Paula ao olhar para mim.
— É, eu estou um lixo, eu sei. — falei antes de qualquer comentário
que pudesse vir, não exatamente me orgulhando da calça de moletom e
cabelos presos num coque que mais parecia um ninho de passarinho.
Minhas olheiras deveriam estar enormes e meus olhos inchados, mas eu já
tinha passado do ponto de me importar em esconder tais defeitos.
— Ia dizer que estou feliz em te ver aqui. — A doutora apontou para o
sofá, ela tomando seu lugar na poltrona de sempre. — Biscotti?
A última coisa que queria era algo italiano.
— Eu passo.
— Quer começar contando o motivo do choro?
Terapia não precisava ir tão direto ao ponto. Adiantaria responder sim
e não?
— Nickolay.
— Seu novo namorado? — ela observou, e me deixei soltar uma risada
amarga.
— Não acho que estamos namorando. — E me sentia burra demais por
ter interpretado que algo próximo a isso acontecia, quando ele me pediu
para não mudar de ideia sobre deixá-lo ficar. — Ou estamos, e seu normal é
beijar outras mulheres do mesmo jeito que ele me beija.
Havia uma mentira ali, meu cérebro não querendo registrar que o beijo
visto passava longe do que os nossos deveriam parecer. Ainda assim, havia
acontecido.
— Eu o vi beijando uma mulher ontem de manhã. Ele quis explicar, e
eu fui embora. E agora eu tô aqui, fazendo terapia por — Mais um babaca.
— Causa de homem.
— Você está aqui por causa dele? — Suspirei.
Queria tanto responder que sim. Que o motivo do meu desespero era
tentar e não conseguir entender o italiano que bagunçava mais meus
pensamentos.
Fiz que não com a cabeça, me perguntando que diabos estava fazendo
ali justo hoje.
— Por que você foi embora? — Porque ele estava beijando outra
mulher, quis responder e revirar quinhentas vezes os olhos.
Mas não era bem esse o motivo que me fez sair correndo.
— Porque ele me chamou de pirralha mimada.
— E isso te machucou?
Ele provavelmente nem fazia ideia do quanto.
— Sim.
— Já usaram essas palavras com você antes?
Respirei fundo, o quadro na parede branca mais interessante que os
olhos atrás dos óculos.
— Sim.
"Não aconteceu nada, Alana!"
— Quem?
Ela iria me deixar ainda mais louca. Thobias fazia esse serviço
diariamente, e nem no Brasil ele estava.
"Para de se comportar como uma pirralha mimada! Para de chorar!"
— Não é por isso que estou aqui.
E eu sabia exatamente que pergunta viria.
— Por que você está aqui?
"Você presta tanto quanto essa vadia."
— Porque dói! — explodi antes de pensar, vendo o quanto terapia
tinha sido a segunda pior decisão tomada nos últimos dias. — Dói pra
caralho, e eu não sei o que fazer pra melhorar! E eu juro que se você me
perguntar o que dói, eu vou perder o resto da pouca calma que ainda tenho!
Odiei quando as lágrimas voltaram, só conseguindo agradecer por
estar sem maquiagem.
— Quer um conselho?
Paula me fazia ter vontade de gritar.
— Não é pra isso que eu tô vindo? — retruquei com raiva, esfregando
os olhos, minha voz saindo bem mais baixa do que antes.
— Você não parece estar fazendo um bom trabalho em ouvir o que as
pessoas têm a dizer. — Ela claramente se referia a Djamila, mais
mencionada que qualquer outra coisa na sessão passada, quando ainda achei
que conseguiria manter meus relacionamentos amorosos fora da terapia. —
Sei que muitas vezes é difícil, mas nesse caso, ouvir e conversar pode ser
melhor do que ignorar e seguir em frente.
— Então, eu preciso ouvir ele explicar por que me traiu? — perguntei,
limpando com força o rosto molhado.
Por mais que não fossemos nada, me dar esperanças para depois
esfregar na minha cara uma mulher que era tudo que eu nunca seria era trair
toda a confiança que botei nele. E aquilo só me lembrava o quanto não
deveria dar minha confiança para mais ninguém.
— Você sente que tem mais dificuldade do que o normal para lidar
com traições? — Que tipo de pergunta era aquela?
Queria arremessar a caixa de lenços na cabeça dela, e queria procurar
outra terapeuta.

Horas depois de sair da terapia, estando entre acabar com meia garrafa
de vodca ou fumar o último cigarro, escolhi justo o que afirmei que não
faria. Abandonando o resto de macarrão instantâneo que havia preparado na
bancada da cozinha, joguei uma água no rosto, peguei o celular e a chave
do carro e tranquei a porta.
Eu era boa com endereços, aquilo me fazendo escolher dirigir até onde
não sabia o nome da rua, mas lembrava do percurso, ao invés de mandar
uma mensagem. Esperar uma resposta iria me deixar ansiosa demais, e ter
uma chamada não atendida me faria desistir de tentar de novo.
Parei na frente da mansão que jurava ser a mesma que vi naquele
sábado de manhã, por mais que a noite não exatamente ajudasse a
diferenciá-la das outras. Só pensei na merda que eu estava fazendo quando
abaixei a janela, meus olhos travando no interfone, eu me sentindo estúpida
por dirigir até onde nem mesmo sabia se Nickolay estava. Por tudo que
sabia, ele poderia estar com a mulher que o peguei beijando, e lembrar
daquilo também fazia um bom trabalho em me tirar o ar.
Estava a segundos de desistir quando o portão abriu. Eu não lembrava
de como a mansão era grande, e me surpreendi com o tamanho ao dirigir
entrada adentro. Já era quase meia-noite, mas havia mais do que um carro
na garagem aberta. O mesmo homem que tinha me levado para casa
naquela manhã de sábado — que eu tinha certeza ser um segurança, e não
apenas motorista — foi para minha frente assim que desci do veículo.
— Signorina[52]?
— Deixa ela entrar, Matteo. — Foi um senhor de cabelos grisalhos que
disse ao abrir a porta da frente, segurando-a para eu passar. Franzi a testa,
por um momento me perguntando se havia escolhido a casa certa, ou essa
seria mais uma decisão errada tomada na vida. — Primeira à esquerda,
Alana.
Tentei não parecer tão impressionada ao ser chamada pelo nome. Se
essa realmente fosse a casa do italiano, sabiam quem eu era. Não fazia
muito sentido para meu cérebro exausto, ainda mais depois de ontem.
Depois dele nem mesmo tentar me contatar, Nickolay concordando fácil
demais com minha decisão.
Por dentro, a mansão era perfeita demais para poder ser chamada de
lar, e a ausência dos raios de sol a tornava ainda mais fria. Duas vozes
masculinas conversavam na direção que me tinha sido apontada, e tentei
não fazer muito barulho até chegar em frente à porta entreaberta.
Sentado num banco e com as tatuagens do peito expostas, Nickolay
não movia um músculo enquanto um homem mais velho o costurava perto
das últimas costelas.
— Por que esperou um dia todo pra tratar disso? — A voz era de
reprovação, e mesmo com a agulha passando pela pele, o italiano
permanecia imóvel.
— Estava ocupado. — A resposta veio numa voz mais indiferente do
que havia me acostumado a ouvir.
Onde ele tinha conseguido se machucar assim?
— Precisa limpar todos os dias. Antibiótico por sete. Quer um
analgésico mais forte?
— Desnecessário.
O homem que cuidava do corte grunhiu, as palavras ditas em italiano
não fazendo o menor sentido, mas soando reprovadoras o suficiente para
me dar um mínimo contexto.
— Sem álcool, DeLucca. E não exagere no ibuprofeno.
— Grazie, Santi.
O material foi guardado de volta em uma maleta, o médico acenando
com a cabeça assim que passou por mim. Nickolay ainda abotoava a camisa
quando se virou para onde eu estava, me surpreendendo ao dar o menor dos
sorrisos.
Eu não gostava de como meu coração batia quando ele me deixava vê-
lo assim. Entrei, seus olhos escuros descobrindo mais do que deveriam,
observando meus detalhes mais do que considerava confortável. A mão
tatuada já alcançava o whisky quando reuni forças para abrir a boca.
— Sem álcool, DeLucca — repeti as palavras que tinha ouvido, e o
que veio em italiano soou como uma reclamação, a garrafa posta de volta
no bar. Apontei para onde estavam os pontos antes de perguntar. — O que
aconteceu?
— Nada com que precise se preocupar. — A mão alcançou o maço que
ele guardava no bolso, Nickolay ignorando minha curiosidade e me
oferecendo nosso vício. — Não era como queria te ver, Alana.
— O sentimento é mútuo. — Neguei a nicotina pela primeira vez em
meses.
Nickolay desistiu de acender o dele com o filtro já nos lábios, o cigarro
voltando para o maço. Por um momento, me senti menos estúpida ao vê-lo
tão exausto quanto eu. As olheiras faziam eu me perguntar o quanto o
homem havia dormido noite passada, o suor que via em sua testa mostrando
que os pontos estavam mais doloridos do que o italiano deixava
transparecer.
Ele andou até minha frente receoso, a mão que queria me tocar
parando no ar, desistindo no último segundo.
— Por que voltou?
— Por que você não me procurou? — rebati, me forçando a encarar
seus olhos.
Havia certa surpresa neles, Nickolay suspirando como se eu fosse a
difícil de lidar. Talvez eu fosse mesmo, mas não precisava admitir aquilo,
especialmente para ele.
— Estava respeitando o que me pediu.
Era difícil me afastar dele, e fui com dificuldade até o banco que o
italiano antes ocupava, as gazes com sangue esquecidas sobre a mesa só
ajudando a aumentar meu desconforto.
— Emília acabou de perder o marido — ele disse quando voltei a olhá-
lo, e me senti ridícula ao odiar ouvir aquele nome. — Ela está confusa. O
melhor que pode fazer é ignorar esse comportamento.
— Você tava com ela? — perguntei o que havia se passado repetidas
vezes na minha cabeça. — Você tava com ela durante a semana?
A hesitação que vi me deu a resposta antes da palavra sair.
— Sim.
— Inacreditável, Nickolay! — Escutava a confirmação do que tinha
me convencido ser mentira durante todo o trajeto no carro, e rir era a única
coisa que me restava. — E eu caí nessa sua conversinha fiada de não me
mande embora, me espere voltar, e você fodendo essa mulher!
— Não desse jeito, Alana! — ele me impediu de continuar, me
mostrando uma sinceridade irritante. — Eu não estava fodendo Emília, eu
estava enterrando seu marido! Lorenzo passou mais tempo com essa mulher
do que eu! — A voz soava frustrada, ele coçando os olhos do jeito que
aprendi que fazia quando estressado.
Não deveria saber reconhecer suas particularidades em tão pouco
tempo.
— Eu passei mais tempo falando contigo do que com ela!
"Eu passei menos de um dia do lado dessa vadia!" E coloquei um dos
indicadores na boca, Thobias sempre voltando nas piores horas.
— Vocês estavam se beijando! — soltei a acusação, tentando afastar a
voz que fazia o mesmo na minha cabeça.
— Ela me beijou, e eu a afastei! Ela sabe de ti, Alana! — Era quase
engraçado como ele parecia tão perdido naquela conversa quanto eu estava
na vida. — Eu não sei, acho que pode ter ficado com ciúmes. Eu não sei o
que está acontecendo na cabeça dela, eu nem falo direito com Emília! Não
sobre assuntos pessoais!
— Como que ela pode estar com ciúmes? Ela era casada!
— Casamentos são diferentes aqui! — Aqui? — Alana, eu não tenho
nada com ela! Eu tive, há muitos anos. Emília foi...
— Sua namorada? — E eu odiei a possibilidade, minha mente
afirmando que, ao lado daquela mulher, eu era uma ninguém.
Não sabia se gostava ou ficava ainda mais nervosa com a risada
amarga que veio.
— Nunca chegou nem perto disso. — A confissão fez um bom
trabalho em prender minha atenção. Ainda assim, cruzei os braços,
esperando por mais. — Emília, já que parece tanto precisar saber, foi a
primeira mulher que eu fodi. E essa semana nós estávamos no mesmo hotel,
e ela foi até meu quarto. Não, me escute! — Ouvi quando ameacei abrir a
boca. — Eu estou te dando a verdade, Alana. Ela foi até meu quarto, e ela
viu quando me ligou por acidente.
— E ela acha que estamos juntos... — E doeu falar juntos, mas me
forcei a continuar. — Só porque eu te liguei?
Ele não me corrigir e aceitar o verbo me confortava demais.
— Seu contato está salvo como dolcezza, e mostra a foto que tiramos
domingo. Acho um pouco difícil imaginar outra coisa te vendo no meu colo
vestindo só a minha camisa, ainda mais para alguém que sabe o quanto isso
foge do meu habitual. — Ele fez um bom trabalho em me deixar sem
palavras. — Eu não faço isso, Alana. Eu não salvo contatos das minhas
fodas, eu não repito, eu não levo para jantar. O que estamos fazendo,
definitivamente, não é meu normal.
Minha quietude parecia ter dado coragem suficiente para Nickolay se
aproximar, as mãos grandes se atrevendo a tocar minhas bochechas,
inclinando meu rosto para o dele. Queria perguntar o que estávamos
fazendo, ao mesmo tempo que não queria nos assustar, nenhum dos dois
parecendo pronto para admitir o que havia ali.
— O que aconteceu no elevador foi um desrespeito contigo. Não vai se
repetir. — Ele tocou meu nariz com o dele. — Ela não é nada perto de ti,
bella.
Seus lábios me mostravam a verdade em todas as suas palavras ao
acharem os meus. O jeito que Nickolay me beijava era terno e doía, eu
querendo voltar para o desejo ao invés de sentir algo tão próximo de
carinho. Agradeci por não ter perguntado o que fazíamos, e agradeci por
Nickolay saber me dar a resposta sem palavras.
— Ela é linda — falei o óbvio, odiando escutar minha voz tão fraca.
— E mais velha. — E normal. — Emília é muito mais...
— No. — Ele realmente sabia como me calar. — Ela não é nada além
de uma amiga da Famiglia. — Fechei os olhos quando senti os lábios na
minha testa, finalmente me rendendo e deixando meus braços o rodearem.
— Diferente de ti, linda de batom vermelho, cabelo molhado, ou acabando
de acordar. É a coisa mais bela e normal na minha vida, dolcezza.
— Você ia me procurar? — Era incrível como ele me deixava lê-lo
bem quando sozinhos. — Você não ia.
— Eu disse que bastava me pedir, Alana. Mas estou contente por ter
voltado. — E os lábios estavam outra vez nos meus, o gosto dele
conseguindo ser melhor do que me lembrava. — Lorenzo estava certo.
Saber que voltaria para ti deixou uma semana difícil muito mais suportável.
Ele me deixou ver o desconforto quando minha mão passou sem
querer pelos pontos.
— Como você fez isso? — Dava para ver nos olhos o quanto ele não
queria me responder, Nickolay tentando desviar quando segurei seu rosto.
— Eu não quero mais verdades maquiadas.
— É a única verdade que posso te dar agora. — Saiu como uma
lamentação. — Só mais um tempo, dolcezza. Me deixa te ter assim só por
mais um tempo.
Suspirei, tentando digerir os últimos minutos. Nickolay ajudava com
seus lábios, ele fazendo aparecer em mim uma pontada de culpa ao me
beijar como se eu fosse mais necessária do que oxigênio.
Italiano filho da mãe, eram todos daquele país que conseguiam colocar
a alma em um gesto? Porque dava para sentir o quanto o homem queria que
eu ficasse, o quão mais importante eu parecia ser para ele, do que ele para
mim. Eu gostava da companhia segura, mas ainda não tinha descoberto se
ela era ou não substituível. Negar uma mulher como Emília provava que a
minha não era.
— Dividir uma cama comigo é pedir muito? — A pergunta, que era
tudo que eu mais queria desde domingo, veio com sua inabilidade de tirar
as mãos de mim.
— Quem disse que vou ficar? — provoquei.
— E se eu pedir por favor? — Os beijos que ele dava em meu pescoço
eram injustos demais. — Posso até implorar, que nem faz quando estou no
meio das suas pernas.
Filho da mãe.
— Se eu sou uma pirralha mimada, deveria me comportar mais como
uma — reclamei, tentando buscar alguma parte dentro de mim ainda brava.
Falhei, assim como minha voz, a ameaça saindo de forma ridícula.
— Pode se comportar como quiser, desde que volte. — Duvidava
daquelas palavras, mas decidi pelo silêncio, meus lábios ocupados demais
com os dele.
Claro que escolhi ficar, indo com ele para o quarto que até horas atrás,
achava ter visto pela última vez no sábado que mudou tudo. Nickolay me
dava uma camiseta que tinha o cheiro dele, eu vestindo-a antes de me deitar
ao seu lado, o italiano só de cueca sendo tão convidativo quanto sem nada.
O sorriso que havia em seus lábios me falava que ele tinha visto o
olhar que dei.
— Temo ser inofensivo hoje — avisou rindo, fechando os olhos e me
puxando para perto. — Mal consigo ficar de olhos abertos.
— Então eu vou embora — retruquei, e o senti apertar mais o abraço,
as mãos achando minha pele debaixo da camisa, um no sussurrado no meu
ouvido. — Dorme logo, antes que eu mude de ideia.
A risada dele era tão relaxante quanto seu toque.
— Ti voglio[53], dolcezza. — Aquilo eu sabia o que significava, ele
confirmando ainda mais o quanto me queria ali. — Fica.
Engraçado como alguém tão bom em ler pessoas precisava me pedir
para ficar. Havia poucas coisas que poderiam me afastar da calma que
sentia com ele, e me deixei fechar os olhos, minha mente em total silêncio.
Estava apaixonada pelo silêncio.
— Fico, italiano.

Descobri que dormir em seus braços me fazia sonhar com ele. Havia
sido assim ao acordar no último domingo e era assim hoje, eu abrindo os
olhos quando o senti se mexer, Nickolay beijando minha testa antes de se
levantar.
— Continue dormindo, dolcezza. — Decidi que gostava de acordar
assim, e que os lábios nos meus eram tão bons quanto o primeiro gole de
café. — Eu já volto.
Obedeci, ainda muito atordoada de sono para considerar levantar.
Deveria ter levantado. O sonho de antes trazia uma história muito mais
interessante do que o de agora, eu preferindo fantasiar com meu italiano
num banheiro de alguma balada do que encarar os olhos azuis de Thobias.
Costumava adorar azul. Aprendi a odiar a cor.
Quando acordei novamente, senti o cheiro de café fresco, assim como
o suor que escorria pela minha testa. Tinha uma caneca com o líquido ainda
quente ao meu lado, e podia escutar o chuveiro pela porta entreaberta.
Havia roupas no chão, eu entendendo que o italiano, como pensei quando o
olhei pela primeira vez, deveria sim ter uma rotina pesada de exercício.
Queria brigar com ele por não se dar uma folga, mesmo com mais de
cinco pontos num lugar tão fácil de se abrir. Odiava precisar de pontos, a
marca dos últimos ainda aparecendo demais quando me olhava no espelho.
Tomei um gole de café antes de largar a roupa que usava ao lado da dele,
entrando no banheiro da suíte.
Eu nunca ia me acostumar a olhar para aquele homem nu. Nickolay era
a definição de rasgado, os músculos reafirmando o quanto malhar era uma
constante em sua vida. Debaixo do chuveiro, com a água escorrendo pelas
costas definidas, ele era uma visão boa o suficiente para me fazer esquecer
todas as dúvidas do dia anterior.
O italiano sabia que eu estava atrás dele antes da minha mão tocá-lo,
virando-se e me puxando para perto do seu corpo molhado. Foi delicioso
sentir como eu o afetava, ele duro, pulsando contra minha pele depois de
apenas um beijo.
— Te quero no meu chuveiro todas as manhãs. — A voz era baixa e os
lábios quentes, Nickolay me fazendo suspirar ao contornar minha silhueta
com as mãos. — Estou cuidando direito de ti? — Levantei uma
sobrancelha. — 'Manter cafeína na minha corrente sanguínea', lembro de ter
me falado isso naquele sábado.
Sorri, o empurrando contra a parede de azulejos e para longe da água,
as pontas dos meus dedos contornando a santa que carregava no peito.
— Tá fazendo um bom trabalho. — Ele arfou ao sentir meu toque
descer mais, eu apenas provocando e parando com a mão próxima da gaze
que cobria os pontos. — Você também precisa cuidar direito disso aqui. —
Coloquei um dedo contra os lábios que se abriram. — Se não cuidar, Nico...
A mão que se fechou nos meus cabelos aproximou nossos rostos,
Nickolay pressionando-se contra meu abdômen, os dentes mordiscando a
almofada do meu indicador. Eu também o queria no meu chuveiro de
segunda a segunda, pensei, deixando meus dedos explorarem muito além de
sua virilha.
— Se não cuidar, o que? Vai me castigar? — ele perguntou, usando a
voz rouca que me fazia parar de raciocinar.
O gemido que ouvi quando agarrei seu pau acabou com o resto dos
meus neurônios. A mão grande apertou ao redor da minha, ele me
mostrando como gostava de ser tocado tornando o momento íntimo e
delicioso. Nickolay me soltou, e continuei os movimentos com a mesma
urgência que ele parecia precisar, as respirações curtas denunciando o
prazer que havia ali.
— Te quis a semana inteira, Alana. — As palavras vieram roucas, o
italiano se esforçando para dizê-las mostrando que, como ele, eu sabia fazer
um trabalho bem-feito.
— Diz o cara que só quis dormir de conchinha ontem de noite. —
Depois da frase, senti as tatuadas dele tentando me deixar tão sem voz
quanto, os dedos longos provocando ao abrir caminho, o toque suave
demais para quem tinha pressa.
— Preciso compensar esse deslize. — Mas mesmo com a leveza,
minhas pernas ficaram fracas demais, eu tendo que agarrar seus braços para
continuar de pé. — Não se cale, dolcezza — o pedido veio quando mordi o
lábio inferior, seus dedos sabendo exatamente onde precisavam me tocar
para escutar o que queria. — Te fazer gemer é a melhor forma de começar
minha manhã.
Aquele era, definitivamente, um bom dia capaz de espantar qualquer
pesadelo. Mas naquela manhã, necessitava que o homem aprendesse que eu
também poderia fazer os dele irem para longe.
— Deixa eu mudar a sua opinião, italiano. — Não falei mais nada
antes de me ajoelhar.
Tracei sua virilha com a língua, observando o V que apontava para a
pélvis como se fosse uma obra de arte. O filho da mãe era uma obra de arte
viva, os músculos definidos me fazendo apreciar cada linha que descobria.
Molhei os lábios e olhei para cima, meu coração outra vez parando de bater
ao absorver a intensidade com a qual ele me observava. Fechei as duas
mãos na base da sua ereção, minha língua subindo até chegar na ponta, o
chupando com a mesma intensidade que o homem mostrou gostar de ser
tocado.
Queria ouvir aquele som para sempre. Escutar o quanto Nickolay
gostava do meu toque me deixava queimando entre as coxas, tanto quanto o
olhar que ganhava dele ao se ver desaparecendo na minha boca. As mãos
voltaram para meus cabelos, me encorajando a ir mais fundo, o italiano
mostrando o quanto apreciava me ter de joelhos enquanto eu o engolia.
Sua atenção não me deixava, tornando o que dividíamos tão íntimo
quanto a primeira vez que o tive. Forcei meus olhos a ficarem abertos, os
escuros me penetrando, a boca sussurrando encorajamentos cada vez que o
sugava mais forte.
Ele ser o primeiro a desviar o olhar era a melhor vitória. Jogando a
cabeça para trás e puxando meus fios, por um momento, Nickolay perdeu
toda a delicadeza. Seus gemidos me deixavam ainda mais molhada, o
italiano investindo contra meus lábios com uma expressão de puro prazer,
eu relaxando para recebê-lo por inteiro. Já havia aprendido o quanto ele
gostava das minhas unhas passando pela sua pele, e podia sentir o gosto do
seu pré-gozo na minha língua cada vez que se forçava para fora.
Ele me colocou de pé antes do que eu planejava, e queria mais do que
tudo ver novamente aquele descontrole. Saber que tinha o poder de fazer
um homem como Nickolay se desfazer com tão pouco só aumentava minha
vontade dele.
Senti um arrepio percorrer meu corpo com o beijo no pescoço, sendo
minha vez de ser pressionada contra o azulejo do box.
— Quando eu gozar, não vai ser na sua boca — ele afirmou ao prender
minhas mãos, e agora era eu entre a parede e Nickolay. — Diferente de ti.
Descobri que o escutar falando era o suficiente para me fazer querer
implorar. Meu corpo tremia em antecipação ao sentir a ponta da língua
traçar todo o caminho até o meio das minhas coxas, ele ocupando a posição
em que antes eu estava, eu já pedindo por favor. Tampei a boca com a
palma da mão, abafando um gemido e tentando inutilmente manter qualquer
compostura ao ter a respiração quente tocando meu sexo. Ouvi uma risada
baixa quando não contive um choro ao sentir dois dedos me penetrando, e
não demorou até minhas pernas fraquejarem outra vez, precisando me
curvar sobre seu corpo para não ir direto ao chão.
A risada de Nico era rara, e linda demais de se ouvir, ele se divertindo
por me dobrar usando apenas uma das mãos.
Fui deitada no tapete sobre o azulejo frio, e a visão dele entre minhas
pernas estava se tornando rapidamente minha favorita. A língua macia abriu
caminho para dentro de mim, envolvendo cada ponto com uma suavidade
enlouquecedora, deixando meu sexo pulsando. O descontrole não existia
mais, Nickolay tratando tudo com uma calma que me desesperava, eu
implorando enquanto mexia os quadris contra ele, só mais uma vez, só mais
um toque, por favor, por favor...
Nunca conseguiria ser silenciosa com ele me chupando, cada som
parecendo um incentivo para o italiano melhorar algo que já era bom
demais. Gozei o deixando ouvir tudo que ele me fazia sentir, fechando os
olhos e aproveitando o quanto meu corpo se embriagava com seu toque.
— Isso foi rápido demais. — Senti as bochechas vermelhas, abrindo a
boca para responder qualquer coisa quando a barba curta roçou contra o
interior da minha coxa. O choro que saiu dos meus lábios o fez sorrir contra
minha pele, eu investindo sem pensar em direção aos dedos que outra vez
me invadiam. — Mais uma vez.
— O-o que? — Foi tudo que consegui falar antes deles se curvarem
dentro de mim. A palma da mão voltou para minha boca, as mãos dele indo
para meus quadris, uma me prendendo, a outra fazendo pressão contra
minha virilha.
Esse homem ia acabar comigo da melhor maneira.
— Eu disse mais uma vez, Alana — Nico repetiu, a respiração quente
contra a pele hipersensível me fazendo soluçar. Os olhos acharam os meus
antes dele continuar. — Goza mais uma vez na minha boca, e então eu te
fodo.
Desisti de tentar ser quieta quando ele voltou a me sugar, meu corpo se
transformando numa mistura de choros e tremores enquanto era devorado
por aquele homem. Seus dedos tocavam um ponto que deixava o silêncio
impossível, a língua investindo contra meu clitóris em movimentos
ritmados fazendo minhas mãos agarrarem seus cabelos. Nickolay parecia
amar minhas mãos nele, meu toque o fazendo parar de me torturar e
aumentar a velocidade.
O orgasmo me invadiu sem aviso, deixando todas as minhas
terminações sensíveis demais ao menor dos toques. Contraía forte ao redor
dos dedos enquanto seu nome se tornava a única coisa que meus lábios
sabiam chamar, o italiano sempre fazendo questão de me lembrar do dito
em nossa primeira noite sem usar palavras.
Quando ele subiu até minha boca, vi meu descontrole refletido em seu
rosto, Nickolay me levantando como se eu não pesasse nada. O homem
mostrava novamente o quanto gostava de me ter no colo ao sentar-se
comigo de costas para ele, a barba que cheirava a sexo roçando na minha
nuca e reascendendo o fogo que tanto lutamos para apagar.
Era inútil. A cada encontro nosso, tinha mais certeza de que queimaria
para sempre nas mãos tatuadas.
— Minha opinião continua a mesma. — Um arrepio percorreu meu
corpo ao ter o pescoço beijado. — Te ouvir chorar meu nome faz bem
demais para o meu ego. — Tinha que admitir que ouvi-lo gemer debaixo de
mim também fazia maravilhas para minha autoestima. — Vai gritar para
mim, dolcezza? Deixar a casa inteira ouvir quem está te fodendo? — E eu
senti o rosto queimar pela segunda vez, ao mesmo tempo que já tinha
aceitado ser impossível gozar quieta com ele. — Responda, Alana.
A voz de comando, combinada com os dedos que beliscavam meus
seios, me obrigava a obedecê-lo de um jeito delicioso.
— Vou! Eu vou!
E novamente me contorcia no seu colo, as mãos tatuadas parando na
minha cintura num aperto possessivo, minhas unhas arranhando de leve a
pele dele. Os sons que recebia em troca me deixavam inquieta, e eu
procurei a fricção que precisava ao encaixar sua ereção entre as coxas. O
italiano puxou a respiração antes de me incentivar, os braços fortes que me
seguravam me fazendo deslizar por toda sua extensão.
— Você falou mais uma, Nico. — Era ridículo já ter gozado duas
vezes e ainda precisar dele, e era difícil demais ficar quieta, a cabeça do seu
pau pressionada contra mim provocando, me tentando a fazê-la entrar. —
Você falou mais uma vez — cobrei, já não sabendo mais o que era
vergonha. — Só mais uma e então ia...
Claro que nos tentarmos tanto não era uma boa ideia, claro que a
vontade que tínhamos acabaria em mais do que uma simples provocação.
Estava tão lubrificada que bastou um movimento desajeitado para ele
me penetrar. Nickolay era grosso, a entrada brusca fazendo eu me contrair
ao seu redor, a pressão aumentando mais ao sentir os dedos grandes
apertarem minhas coxas.
Eu não entendi o que saiu de seus lábios, mas ‘puta que me pariu’
deveria ser uma tradução bem próxima, o italiano precisando de algumas
respirações fundas antes de voltar a falar.
— Deveríamos parar? — ele perguntou, os dentes cerrados, respirando
pesado ao encostar a testa no meu ombro. — Nós deveríamos parar?
Escutei mais um provável palavrão escapar quando me mexi, Nickolay
mostrando zero vontade de nos afastar, eu apenas o incentivando a me
copiar ao fazê-lo ir mais fundo.
— Deveríamos? — Parar era a última coisa que eu iria querer com ele
enterrado em mim.
— Eu estou limpo, Alana. Se é isso que está perguntando.
Parecia que eu ia dissolver quando o menor dos movimentos o fez
tocar o ponto que me deixava em suas mãos. De novo, queria aquilo de
novo, e buscava a sensação outra vez rebolando no seu colo.
— Cazzo, isso não está me fazendo querer parar, bella — ele advertiu,
usando a voz perigosa que só me colocava mais fogo, e eu decidi por nós
dois.
— Eu não quero parar! — deixei sair, suspirando ao enfim senti-lo por
inteiro.
A pressa tomava conta de nós dois, a urgência dele tão grande quanto a
minha, as mãos tatuadas me subindo e descendo sem esforço. Sim, aquele
era todo o descontrole que eu queria ver, as estocadas punitivas parecendo
querer me castigar por todas as provocações.
Mas se aquilo era uma punição, daria um jeito de me comportar mal
sempre para recebê-la todos os dias. As palavras soltas em italiano eram tão
boas quanto os gemidos que ele não fazia questão de calar, me tocar no
mesmo ritmo que Nickolay me descia sendo bom demais.
Soltei uma reclamação frustrada quando ele parou, confusa ao ser
posta de pé até Nico me virar para ele, eu voltando para seu colo e sua boca.
Tinha um gosto de whisky que não havia percebido antes, o cheiro de
cigarro me distraindo por um segundo.
— Te vez gozar é tão delicioso quanto sua voz falando meu nome. —
As palavras dele, como sempre, faziam um bom trabalho em me deixar
esquecer do resto ao meu redor.
Qualquer linha de raciocínio acabou com a mordida no meu seio, as
mãos novamente incentivando meu corpo a mover-se para conseguir o
alívio que precisávamos. O escutei arfar quando abandonei seus cabelos e
cravei as unhas nas suas costas, fechando os olhos ao perceber os tremores
que me invadiam.
Sexo com Nickolay era viciante, e a forma como cada orgasmo
conseguia ser melhor que o último me fazia querer passar um dia inteiro
sem roupa ao lado dele. Ainda estava perdida em meu prazer quando ele
gozou, me preenchendo e gemendo meu nome antes de se calar contra meus
lábios.
Eu não tinha dúvida: a casa inteira havia escutado aquilo.
Ambos estávamos ofegantes quando nossos olhos se acharam, e a
intensidade do sentimento que havia nos dele me tirou completamente o ar.
Era incrível o quão mais lindo o italiano ficava tendo uma expressão
vulnerável no rosto ao invés das linhas sérias, e pensei que poderia me
acostumar em reparar em todos os detalhes que ele me deixava ver quando
sem roupa. Até os detalhes conosco vestidos eram bons.
Sim, eu poderia me acostumar com Nico na minha vida. Ainda
pensava sobre isso quando ele tocou meu rosto de um jeito dolorosamente
familiar. A mão que cobria minha bochecha fazia um carinho que
queimava, e senti meu coração apertar com as próximas palavras.
Aquela cena parecia tão familiar.
— Dolcezza, vem comigo para o quarto. — E por mais que seus lábios
continuassem se mexendo, eu não conseguia focar no que saía de sua boca.
Na minha mente, a voz dele me dizia outra coisa.
"Dolcezza, vem comigo para casa."
Mas eu já estava na sua casa. E o banheiro que estava na minha cabeça
era muito, muito diferente do qual eu via. Era o banheiro do meu sonho. Só
que não era um sonho, toda a noite apagada da minha memória voltando tão
forte quanto um soco, comigo ainda em cima dele.
Nickolay prometeu nunca mentir, e talvez esconder a noite sobre a
qual eu nunca perguntei não se encaixasse em uma. Mas era uma omissão
que doía. E descobri-la agora, depois de tudo que fizemos, depois de tanto
tempo, machucava tanto quanto qualquer mentira.

"Essa bala é da boa." Uma das garotas falava, segurando um


comprimido em forma de coração. "A última vez que tomei, eu tive o
melhor orgasmo da vida. Você precisa experimentar, é sério."
Hum, por que não?
Andava muito com aquela frase na cabeça nos últimos tempos.
"Confia, Lan!"
Era quase meia noite, e Mila tinha acabado de desligar o telefone na
minha cara. Então, por que não? Tinha a vodca para fazer a pílula rosa
descer.
"Lan, não vira a garrafa sua louca!"
E eu ri, e terminei com o resto de álcool que havia ali. Não era como
se tivesse bebido a garrafa inteira sozinha.
"Sério que você não vai com ele?" Lembrava de ter escutado ao dizer
não para o loiro que me puxava para um canto.
"O cara tá sendo um babaca!"
"Vai desperdiçar o que tomou indo pra casa?"
"Nem vai conseguir dormir!"
"Prefiro um encontro com meu amigo robô."
Eu já estava na fila para pagar quando um segurança tocou o meu
ombro.
"Senhorita? Meu chefe gostaria de te oferecer uma água."
Eu não queria uma água, e revirei os olhos, considerando ignorar o
convite. Mas, por que não?
Era melhor tentar uma última vez antes de voltar a ficar sozinha.
"Só uma água?"
Virei a cabeça para onde era apontado, um homem que parecia ter
saído de um catálogo de modelos esparramado no sofá do camarote.

Era Nickolay o homem sentado no sofá.


— Alana?
Era Nickolay. Era ele. Era com Nickolay que eu...
Por um momento, me senti tão bêbada quanto deveria ter estado
naquela noite, tudo rodando enquanto os dedos tocavam meu rosto com
mais carinho do que conseguia aguentar.
Não.
Não, não, não, não, não!
— O que foi, dolcezza? — Senti os olhos encherem d'água, mordendo
o interior das bochechas para manter as lágrimas longe. — Te machuquei?
Queria responder que sim, que ele tinha feito justo o que disse que não
faria, mas nada saía da minha boca. Lembrar de tudo — porque aquilo era
sim a memória da noite que eu apaguei, minha mente não tendo metade
dessa criatividade — doía tanto quanto ir para longe dos seus braços.
Levantei dele tremendo, agarrando uma das toalhas, respirando fundo
e limpando o que escorria pelas minhas coxas.
— Alana! — O escutei chamando quando bati a porta do banheiro, e
eu só precisava das minhas roupas, perdidas pelo quarto do qual queria sair
correndo. — Cazzo Alana, o que houve?
Minha voz só voltou quando ele voltou para minha frente.
— Você oferecia uma água pra todas? — Nickolay não precisou falar
nada, a expressão denunciando o quanto ele sabia estar fodido.
Afastei com raiva a mão que tentou me tocar, cobrindo os seios com
minha camiseta.
— Como você nunca pensou em me falar que eu te arrastei pro meio
de um banheiro antes de te pagar um café? — perguntei com raiva, usando
o mesmo tom de nosso começo conturbado. — Puta que pariu, Nickolay!
— Porque eu achei que queria esquecer daquela noite, Alana!
Podia arremessar a caneca ainda meio cheia de café na cabeça dele, e
usei uma grande parte do meu autocontrole para escolher vestir a calça. Eu
queria um banho, eu queria que ele não me tocasse, e eu queria minha paz
de volta.
— Eu não lembrava! — Queria nunca ter lembrado. Peguei as chaves
do carro, e onde estava a merda do meu celular? — Eu não lembrava que
era com você que eu tinha transado! Eu nem lembrava que tinha transado
quando acordei! — confessei, recordando de como deduzi que tinha feito
merda só na tarde seguinte.
Ele ficou pálido, os olhos escapando dos meus e indo parar no teto.
— Agora eu sei.
— Agora? — Eu não iria chorar, repetia outra e outra vez enquanto
procurava o resto das minhas coisas pelo quarto. — Só agora, Nickolay? A
gente não usou nada! Nada! Já faz dois meses, tem noção disso? Dois
meses!
— Eu disse que estou limpo!
Poderia bater nele. Como o homem não havia considerado a outra
possibilidade?
— E você está supondo que eu tomo pílula desde dois meses atrás
porque a gente acabou de repetir a mesma merda?
Como que uma manhã que estava entre as melhores do ano conseguiu
se transformar na pior em segundos? E finalmente, minha bolsa!
— Bem, eu não fui o único que quis repetir a mesma merda! — Será
que ele não via o quanto eu não queria suas mãos em mim agora? Ou o
quanto deveria manter a boca fechada? — Dolcezza...
— Para de me chamar assim! — Como odiava chorar na frente de
alguém!
Existia sim alguma força maior me olhando lá de cima, eu me
convenci, quando me sentei na cama e Nickolay permaneceu longe. Limpei
com raiva as lágrimas que insistiram em cair, me sentindo ridícula tanto por
elas quanto pela situação pela qual estava passando.
Minha vida era uma piada.
Ok, eu conseguia dirigir. Eu conseguia dirigir, e eu conseguia sair dali,
mesmo com o olhar desolado do italiano. Desolada deveria estar eu, puta o
suficiente para abrir mão da minha segurança, sair por aquela porta e nunca
mais voltar. Porque, por mais que houvesse paz com ele, não estava lidando
bem com a omissão de justo aquela informação.
Nickolay não teve coragem — justo ele, que eu jurava não ter medo de
nada — de se aproximar quando me levantei.
— Não me segue — avisei, levantando o indicador, minha mão já na
maçaneta.
Mas a próxima pergunta me fez não a virar.
— Está indo embora? — Merda.
Como um rosto podia mostrar tanto arrependimento? Melhor, por que
eu me importava com isso? Meus dedos apertaram ao redor do metal
quando ele começou a andar em minha direção, mas não tinha força o
suficiente para abrir a porta.
— Eu não vou te tocar, Alana. — A voz era rouca, a expressão mais
sofrida do que no dia em que me contou sobre sua mãe. — Eu não vou te
seguir. Só me diga se está indo embora.
— Não é óbvio que eu tô indo embora?
Mas não era exatamente aquilo que ele estava me perguntando.
Mil vezes merda, e eu preferia sumir dali agora do que continuar
vendo todo o arrependimento genuíno que Nickolay me mostrava. Queria
esquecer tudo, voltar para seus braços e falar para começarmos outra vez.
"Eu disse que bastava me pedir."
O quanto estava disposta a aguentar para me sentir protegida? O
quanto valia a pena a proteção que ele poderia me proporcionar? Eu não
queria mais um relacionamento de mentiras e omissões. Eu não queria viver
mais um inferno.
— Eu não estou indo embora. — No entanto, me perguntei se ficaria
caso minha vida fosse normal. — Mas eu estou indo pra minha casa,
Nickolay — continuei, pisando fora do quarto, desviando dos olhos dos
angustiados para conseguir sair dali. — Eu preciso pensar um pouco. Longe
de você.
Ele não me seguiu quando desci, e antes de fechar a porta da frente,
notei o mesmo homem de ontem à noite me observando do topo da escada.
Também vi que o motorista era sim um segurança, eu dando de cara com a
arma que ele não fez questão de esconder naquela manhã.
Entrei no carro ainda querendo chorar, ligando o rádio enquanto
pensava que Nickolay era tão normal quanto a vida que eu levava.

Abandonei o celular assim que a comida chegou, resolvendo que a


mensagem que havia recebido do número dele permaneceria não lida.
Comia a lasanha odiando minha comida favorita ser italiana, e ainda eram
duas da tarde de um sábado.
Por Deus, aquele fim de semana nunca iria acabar.
Ok, eu poderia esquecer meu celular e dar uma volta. Talvez se
dirigisse o suficiente, eu chegasse em casa e fosse segunda-feira. E meu
cérebro pararia de pensar nele, e voltaria a focar nas aulas. A esperança era,
afinal, a última que morria.
Ao menos não precisaria mais vê-lo nas aulas de quinta, pensei
enquanto parava na frente da minha confeitaria favorita. Bolo de chocolate
curava uma boa parte de todos os problemas do mundo, e bolo de chocolate
seria minha janta. O vinho que peguei no mercado seria o melhor jeito de
fazer tudo descer.
E ainda eram quatro e meia, o relógio do micro-ondas dizia. Seis e
cinquenta depois de assistir um filme que jurava ter durado um dia inteiro.
Sete e dez quando resolvi olhar o celular, e o fim de semana, oficialmente,
seria eterno.
Precisava ocupar a cabeça para não abrir a nova mensagem que via ter
recebido dele. Os italianos não entendiam o conceito de tempo do mesmo
jeito que o tempo se negava a passar quando você precisava.
Li as de Djamila.
“Quer jantar?”
Sexta-feira, cinco e meia da tarde.
“Pelo menos me responde, eu tô preocupada com você.”
Sexta-feira, dez da noite.
“Alana, cacete.”
Hoje, praticamente no minuto que saí correndo da mansão.
“Eu tô te ligando desde ontem, ou eu te odeio, ou vou ter que
mandar a polícia atrás de você.”
E eu chequei o histórico de chamadas. Como não senti o celular vibrar
com as quase dez ligações perdidas?
Ah, eu tinha esquecido ele em casa.
“Eu estou, oficialmente, preocupada.”
Eu também estava.
Precisava abrir aquele vinho para fazer sumir a bola que se formava na
garganta, mas pela primeira vez em muito tempo, optei por ignorar o álcool
e responder a mensagem.
“Podemos conversar?”
Uma nova dela apareceu em segundos.
“Agora você quer. Depois de me ignorar o dia todo, sua desgraça.”
Eu também não demorei em digitar a próxima.
“Comprei bolo de chocolate e vinho.”
Ela respondendo que chegava em vinte minutos foi responsável por me
fazer sorrir, meu coração acalmando com a possibilidade de uma conversa
amistosa. Quando Mila subiu, eu ainda usava a mesma roupa do começo da
manhã. O que dizia que eu usava a mesma roupa de sexta. O que a fez ter
certeza de que sim, tinha alguma coisa errada.
— Amiga, por que você tá sempre parecendo a morte quando me
recebe?
Mas ela tinha vindo, e era mais do que eu poderia pedir, visto o jeito
que as coisas entre nós estavam delicadas. E ela sabia que tinha algo errado.
E eu abri a boca para dar uma resposta para aquilo, e comecei a chorar que
nem um bebê.
— Ai pipoca, que que houve? — Tentava responder que não era nada e
ao mesmo tempo era tudo, mas a cada respirada, só vinham mais lágrimas e
menos ar. Eu não merecia o abraço que ela me dava, mas aceitei mesmo
assim. — É o cara, não é? O motivo de eu vir comer bolo às oito da noite?
Não, e claro. Só que não poderia responder nada além de claro que é,
então fiz que sim com a cabeça e limpei com raiva as lágrimas pela segunda
vez no dia.
No sofá, contei a história que poderia ser dividida. Contei como ele
estava apenas sendo um babaca comigo até a sexta que bancou meu herói.
A forma como me afastou na manhã que eu quis me livrar de nossas roupas.
Ele voltando para minha casa no último domingo, as mensagens, ligações, a
história dele com a Emília no elevador.
Nickolay esquecendo de me lembrar que nossa primeira vez foi numa
quarta, e não num sábado. As drogas que eu andava usando. Todos os caras
que tinham acabado na minha cama para eu esquecer a pessoa que havia me
arrancado sangue e coração.
A parte do sangue ficou de fora.
— Alana do céu. — Djamila falava, cobrindo a boca com uma mão. —
Mas que merda, isso de farrear adoidada é só porque aquele traste do
Thobias te traiu? — Precisar rir e ter que manter a cara séria era difícil, eu
querendo que tudo fosse culpa de uma simples traição.
Em parte, era. Tinha sido a gota, para mim e para ele.
Mas não era tão simples como Mila imaginava. Não, minha história
passava longe do simples.
— Cara, eu vou matar esses dois. — Ela espumava de raiva, e eu só
queria poder estar igual. — O loiro é um puta babaca que não conseguiu
manter o pau dentro das calças e te passou uma DST. E eu nem tenho
palavras pra começar a destruir o gringo.
Djamila com certeza tinha, e muitas. Ela falaria o quanto a vibe bad
boy que vinha dele era responsável pela atração que eu sentia, afirmaria que
esse tipo de homem pensa com o cérebro de baixo, e que, caso eu ainda não
tivesse enxergado, Nickolay gritava problema.
Minha amiga escolheu fazer uma pergunta muito mais direta, me
lembrando daquele traço irritante da sua personalidade.
— Naquela quarta, você queria transar com ele?
Abandonei a taça de vinho já vazia na mesa de centro e me esparramei
no sofá. Óbvio que eu queria transar com ele, e ela teria a mesma vontade
se o visse como pude vê-lo hoje de manhã.
Mas me forcei a voltar para a noite de quarta. Voltei para o segurança
que segui, para como havia achado o italiano atraente antes dele abrir a
boca. Até mesmo depois, eu chegando à conclusão de que o homem
tentando me cantar na sua língua era muito melhor do que o loiro que tinha
me sugerido chupá-lo no carro.
O mesmo loiro que estava prestes a me forçar a transar com ele antes
de Nickolay arrebentar o vidro do Corsa. Não imaginava o italiano em
nenhum momento me obrigando a nada daquele tipo, eu lembrando que o
filho da mãe me tratava com carinho desde a nossa primeira vez.
— Eu queria.
— Mas você não lembrava! — ela revidou, me olhando séria. — E ele
resolveu não te contar, e isso deixa as coisas parecendo...
— Eu sei o que deixa parecendo, mas acredita em mim — engoli,
pedindo forças a qualquer santo para conseguir contar tudo que podia para
ela. — Não foi. Eu levei o gringo pro banheiro, montei nele na privada,
consegui o que queria e vazei. — Respirei fundo, tentando fazer as
próximas palavras saírem firmes. — Porque era o que eu estava fazendo
com todos.
Falhei, Djamila colocando um braço ao redor dos meus ombros e me
puxando para ela.
— Ele pareceu tão arrependido quando eu descobri. — Ainda
conseguia vê-lo tentando se aproximar de mim na nossa manhã. — Isso
ajuda?
— Não faz dele menos babaca por ter escolhido esconder isso.
— Eu também não fui a mais correta hoje de manhã. — Trouxe para a
conversa o detalhe que estava escolhendo ignorar. — Eu nem cheguei a
refazer meus exames e disse que, por mim, tava tudo bem transar sem
camisinha.
O olhar de reprovação de Djamila era tortura o suficiente.
— O que você vê nele, hein? Eu sei, o cara é gato de fritar o cérebro,
mas precisa ser mais que isso. Dá pra conseguir melhor, tão melhor, ainda
mais você, Lana!
Não dava.
— Ele é diferente. Eu sei, não faz nenhum sentido. — Para ela, pelo
menos, não fazia. — Eu não sei explicar. — Eu não podia explicar.
Enchi a taça com o cabernet, tomando mais um gole
consideravelmente grande. Sabia que continuaria sendo e me sentindo
protegida ao lado dele, mesmo com sua omissão. Sabia também o quanto
seria difícil achar qualquer outro que me desse a mesma sensação, ou que se
importasse o suficiente comigo para querer me manter segura.
— Tem que fazer sentido, Lana. Não fica com ele só pra não ficar
sozinha, amiga. — Era e não era por aquele motivo, mas me limitei em
concordar, fazendo que sim com a cabeça. — Você é boa demais pra só um
pouco.
Eu não era boa, e tive que morder o lábio para não deixar a frase
escapar.
Já estávamos na metade do bolo de chocolate quando meu celular
vibrou pela última vez na noite. A mensagem era de Nickolay, e eu,
novamente, escolhi não a abrir.
Não passou despercebido por Djamila o contato que eu resolvi ignorar.
— Podemos sumir esse fim de semana. Esquecer dos homens, desligar
o telefone e sair, nós duas e a nossa cachaça favorita. O que acha?
Um fim de semana com minha melhor amiga. Quando tinha sido a
última vez que nos demos isso? Bem antes da maldita noite que mudou
tudo, pelo que conseguia lembrar.
— Como nos velhos tempos? — Precisava agradecer por ainda tê-la na
minha vida.
— Como nos velhos tempos.

— Está dormindo bem?


Respirei fundo, tentando evitar um bocejo e afundando no sofá.
— Não. — Porque eu precisava da merda do remédio que a terapeuta
insistia em regular.
Não dormia bem desde que Djamila voltou para sua casa no domingo,
o sábado não tendo exatamente me ajudado a esquecer os lábios italianos.
Já era terça, e eu queria os braços tatuados ao meu redor para uma boa noite
de sono, ao invés de considerar comprar uma receita de Diazepam.
— Gostaria de falar sobre isso?
Sim! Eu não dormia bem havia meses, porque passava noite após noite
escutando alguém tentando entrar no meu apartamento. Tudo piorou depois
de eu quase ser estuprada e bater na janela de um carro do mesmo jeito que
batiam na minha porta. Ah, e o cara que tava me comendo? Já tinha me
comido antes, e só esqueceu de mencionar isso.
Deveria responder as mensagens de Nickolay, eu ignorando-as apenas
servindo para me machucar mais.
— Não. — Ir na terapia era uma piada comigo não podendo não falar
sobre o que doía.
Eu só queria dormir em paz.

Talvez eu o quisesse atrás de mim depois de todas as descobertas de


sábado. Talvez eu quisesse fazê-lo sofrer, do mesmo jeito que meu coração
sentia desconforto cada vez que se lembrava da omissão. Nickolay
escolhendo não mandar mais nenhum sinal de vida incomodou tanto quanto
ver Emília na sala de aula.
A loira era uma ótima professora, mas depois de semanas com o
sotaque que eu queria ouvir e postergava, sua aula era chata e impossível de
acompanhar. Também não conseguia parar de lembrar do que havia visto no
elevador, o ciúme que surgia invadindo meu peito da pior forma.
E tinha o fato de que eu estava sem dormir direito fazia quatro noites.
Com certeza, tudo isso colaborou para a minha curta, tão curta
paciência desaparecer ao ouvir a voz, feminina demais, chamar meu nome.
— Alana, poderia ficar um minuto? — Sim, era infantil, mas deixei
clara minha vontade de continuar ali ao revirar os olhos. — Precisamos
falar sobre a última prova.
O sorriso que ela vestia era tão falso quanto as unhas grandes que
batiam contra a mesa.
Ainda assim, a insegurança que havia em mim me obrigou a olhar para
as minhas curtas e roídas, eu outra vez me perguntando o que o italiano via
quando me olhava.
— O que está acontecendo? Eu não consigo te passar com essas notas.
— A preocupação falsa que ela fingia ter me enjoava. — Você era uma das
minhas melhores alunas até ano passado.
— E você era minha professora favorita, até resolver colocar as mãos
no que é meu — saiu antes que pudesse segurar, minhas palavras
surpreendendo a nós duas.
— Senhorita Martins, gostaria que focasse no assunto que precisamos
discutir. — Eu gostei quando a vi bufar, não sabendo que poderia causar
aquele efeito numa mulher tão contida como Emília aparentava ser. — O
que aconteceu entre o professor DeLucca e eu...
Só tocar no sobrenome dele já me incomodava.
— Me fala, você o beijou na minha frente de propósito? — vomitei a
pergunta que me incomodava desde a última quinta, o olhar que recebi me
dando a certeza de que a resposta era sim.
E como sempre acontecia depois da primeira palavra, não consegui
mais parar.
— Era um teste pra ver se eu ia embora? Pra ver se eu me importava
em dividir o italiano? Porque a resposta é não, eu não gosto de dividir! Não
tem mais ninguém querendo te foder, ou você é assim desesperada pra ficar
com ele que tudo bem ser segunda opção?
Talvez ciúmes fosse algo que pudesse trabalhar na sessão de terapia de
hoje, e eu tinha a certeza de que essa mulher iria me reprovar.
— Eu sou sua professora, senhorita Martins!
— Foi isso, não foi? Desespero. Fazemos coisas absurdas quando
estamos desesperados. — Cruzei os braços, e minha raiva era tanta que nem
mesmo ligava o quão mais alta e intimidadora era a mulher na minha frente.
— Quem sabe eu te deixo ficar com ele no final, se você é assim
desesperada pra se contentar com restos — menti, tendo ali a certeza de que
não queria abrir mão da companhia italiana, quanto menos dividi-la com
outra mulher.
Nickolay era meu, e afirmei isso repetidas vezes na minha cabeça, por
mais ausente que ele tenha sido durante toda a semana.
Quando a vi rir e tive vontade de socá-la decidi que sim, eu poderia
usar a terapia para melhorar meu ciúme.
— Meu Deus... — Ela pelo menos teve a decência de colocar uma mão
na frente da boca. — Você é a Giovanna, e nos piores aspectos! Por que
Nickolay sempre faz isso?
Eu não queria ouvir o nome dele sendo dito por aquela voz, assim
como me irritava ser comparada com seja lá quem fosse Giovanna. Escondi
o incômodo tarde demais, a loira notando que havia conseguido me afetar
com as últimas palavras.
— Achei que quisesse falar sobre minhas notas.
Emília pareceu hesitante, antes de resolver por me entregar as folhas
que estavam sobre sua mesa.
— Aqui. — Eram instruções para um trabalho escrito. — Termine até
o fim do semestre, não quero reprovações na minha turma.
Dava para sentir o veneno na voz, os olhos azuis me encarando com
desdém, o salto alto batendo no piso de madeira enquanto a loira se
aproximava da porta.
— Por mais que você não esteja exatamente merecendo segundas
chances, senhorita Martins.

Ciúme era tão devastador quanto a ansiedade que tomava conta do


meu peito cada vez que entrava no apartamento vazio.
Estava vazio. Thobias estava na Europa, e meu apartamento estava
vazio.
Fechei a porta e coloquei as chaves sobre a mesa de jantar. Tirava a
roupa quando o celular vibrou com a primeira mensagem dele em cinco
dias.
“Quanto tempo ainda preciso te dar?”
Ah, então agora ele resolvia aparecer! Depois de me dar silêncio de
domingo até quinta. E daí que eu havia pedido para pensar? Nickolay
poderia continuar lembrando de mim enquanto eu refletia.
Nem considerei responder, deixando o celular na pia do banheiro
enquanto lavava a maquiagem da cara. O italiano conseguia vir me procurar
no pior dia da semana.
“Diga o que preciso fazer para consertar isso.”
Adorava o quão prático o homem conseguia ser, eu também querendo
uma solução simples para o que havia se transformado em um grande
problema. Ele ter omitido nossa noite já não incomodava mais tanto, mas
quem era Giovanna?
Escovava os dentes quando decidi que não daria para evitar uma
resposta.
“Você pode ir pro inferno.”
Muito, muito maduro de sua parte, Alana, eu sentindo que me pós
graduava em imaturidade desde o começo daquela quinta-feira.
O telefone tocou segundos depois de eu enviar as palavras, e não
consegui deixar cair na caixa postal. Era irritante ficar feliz pelas
mensagens, irritante sorrir ao ver Italiano na tela do meu celular. Dava raiva
realizar que não, eu não queria mais ficar longe, e me desesperava querer
correr para os braços tatuados.
— Eu já estou nele. — A voz disse, muito mais rouca do que me
recordava, fazendo meu coração esquentar.
Mas não queria um coração quente, assim como não queria conversar
com mais ninguém naquela noite. Cuspi a pasta de dente que tinha na boca,
pensando em como deveria ter ignorado a chamada e focado no meu banho.
— Olha Nickolay, eu tô cansada — falei, me enrolando numa toalha.
— A última coisa que eu preciso é discutir com você.
— Eu quero conversar, não discutir! — Justo no dia que eu só pensava
na segunda opção. A vida era uma piada de mal gosto, e a terapia andava
sendo tão boa quanto chuchu.
— É complicado demais isso que a gente tá fazendo! É demais pra
mim, é claramente demais pra você!
— Alana, não é verdade...
— Eu não quero mais mentiras, Nickolay! Eu não quero ver você
beijando outras mulheres, ou acordar e descobrir alguma outra coisa que
esqueceu de me contar!
Precisava de um cigarro.
— Uma chance, Alana. Só escuta o que tenho para dizer! — Mas
depois de hoje, eu mal conseguia paciência para deixá-lo falar.
— Pra que, se você nunca me fala a verdade toda?
Não depois de precisar interagir com a mulher que ele já fodeu, não
depois de ser chamada de Giovanna por ela. Quem era essa Giovanna para
o italiano?
— Eu não posso, dolcezza!
Ainda não sabendo se gostaria de descobrir, pisei fora do banheiro para
buscar minha nicotina, praticamente impossível de continuar a discussão
sem ela.
— Para de usar esse apelido! Quantas que você já chamou dessa merda
na vida?
E eu paralisei.
— Só usei contigo, cazzo!
A porta da frente estava entreaberta.
Será que dava para ouvir meu coração batendo do outro lado da linha?
Porque era a única coisa que eu escutava, ele parecendo que ia estourar nos
meus ouvidos. Precisava achar forças para reagir, sair dali, gritar, qualquer
coisa que não fosse ficar parada encarando o corredor que via pela fresta.
— Só contigo! Alana, se nunca mais quiser me ver depois disso, eu...
— Tem alguém aqui. — Não passou de um sussurro.
— O que? — A voz dele mudou de forma brusca, indo de uma
lamentação para uma completamente séria.
Eu já havia escutado aquele tom antes, quando o ouvia chamar do que
achava ser filho da puta o cara que não queria me deixar sair do carro. Se eu
já não tivesse certeza daquele lado de Nickolay, a voz letal de agora me
faria pelo menos desconfiar.
— Saia.
Obedeceria a qualquer comando dado naquele tom.
— Saia do apartamento. — Conseguia escutar o bater da porta de um
carro, Nickolay falando algo sobre o portão. — Alana, saia! Agora!
E eu saí.

Fazia quanto tempo que não sentia aquele peso no estômago? Era uma
sensação que desencadeava as piores lembranças, o frio misturado com a
dor me deixando completamente alerta. A última vez havia me tirado tanto,
a chance do feito poder estar se repetindo mostrando o quanto Alana
importava.
O quanto isso já poderia tê-la transformado num alvo.
Era sorte eu estar justo na frente do seu prédio, meu plano desde o fim
da tarde sendo o de repetir nosso jantar e conversar. Não parecia mais ser
algo possível de acontecer enquanto me apressava para a portaria. Teria
derrubado o portão caso o funcionário não o tivesse aberto, a desculpa de
que minha namorada estava desacordada e precisava de ajuda funcionando
bem quando misturada com o desespero que deixei ver.
Minha namorada. Nunca havia dito essas palavras, e falar só agora
causava um gosto amargo na boca. Corri os dois andares escada acima, a
mão na arma já destravada que sempre carregava comigo.
Alana estava de toalha no meio do corredor, e a bola na garganta só
amenizou quando a puxei para meus braços, não me importando com
qualquer reclamação que pudesse vir da parte dela.
Não veio nenhuma. Ela estava bem. Assustada, mas bem, e eu
finalmente conseguia respirar outra vez.
— Atrás de mim! — Não tinha ninguém do lado de fora, e aquela
mulher nunca conseguia obedecer a qualquer ordem que eu tentava dar. —
Atrás, Alana!
Saquei a pistola antes de pensar, decidindo que o melhor seria não a
deixar no corredor. Não achei resistência ao pressionar a porta de entrada
contra a parede. Não tinha ninguém na sala, e a última coisa que cogitei foi
o quanto a arma em minha mão poderia estar assustando quem se escondia
atrás de mim.
Levei Alana para o banheiro, me assegurando que o lugar estava vazio
antes de fechá-la ali.
— Tranca e se deita no box! — Só voltei a andar quando ouvi o
barulho da fechadura.
Mas não havia ninguém além de nós dois no apartamento. Não havia
ninguém na cozinha, no quarto, debaixo de nenhum móvel ou atrás de
qualquer porta. Não havia sinais de arrombamento, nada fora do lugar ou
que não fosse dela. Tudo parecia normal, do mesmo jeito que notei no fim
de semana que passei com ela entre as mesmas paredes.
Tranquei a entrada e agradeci por minha sorte ter resolvido se
manifestar hoje, me convencendo de que Alana apenas havia a esquecido
aberta. Ela estava bem, a pistola outra vez travada indo para meu casaco.
Bati duas vezes antes de falar.
— Está vazio.
Fechei os olhos, aliviado. Voltei a abri-los quando ouvi a porta à minha
frente fazer o mesmo, Alana com as órbitas grandes e vermelhas deixando
impossível eu não a trazer para mim. Ela retribuir meu abraço fazia meu
coração bater sem o peso de minutos atrás, a mulher conseguindo me tocar
provando que eu não tinha fodido com tudo da forma que achava ter feito.
— A porta estava trancada, eu tenho certeza que estava! — A escutei
soluçar contra meu peito enquanto acariciava seus cabelos. — Eu tranquei
Nico, tava trancada!
— Calma, dolcezza — arrisquei o apelido, ainda me perguntando o
que havia acabado de acontecer. Aquilo era parte do que ela tanto me
escondia? — Está tudo bem. Eu não vou deixar nada acontecer contigo.
Mai, Alana. — Talvez dissesse mais para acalmar meus sentimentos do que
para acalentar os dela.
Ela enxugou as lágrimas com mais força do que o necessário quando
nos separamos, e controlei a vontade de pará-la, desviando o olhar para o
lado quando a toalha foi para o chão. Manter os olhos longe dela era tão
difícil quanto descobrir as garrafas vazias de vinho e vodca sobre a pia da
cozinha. Lembrava de ver a de Absolut quase cheia no domingo que estive
ali, e por mais que fosse hipócrita, incomodava imaginar ter sido ela
sozinha a responsável por esvaziá-la num espaço tão curto de tempo.
O que a fazia precisar se anestesiar daquele jeito? Por que, cada vez
mais, parecíamos ter tantas semelhanças?
— Não vou te deixar ficar aqui. — Não era um pedido, e foi estranho
Alana concordar sem contestar. — Arrume uma mala com o que precisa. Te
levo para onde resolver ficar — estabeleci, levantando a toalha do chão e
cobrindo o corpo difícil de ser ignorado.
Ela realmente estava com medo, a pele ainda gelada, as mãos trêmulas.
Mas de que?
A vi desaparecer para dentro do quarto, a porta fechada impedindo
meus olhos de tentarem observar qualquer pedaço de pele. O pavor genuíno
que havia visto incomodava tanto quanto não saber se era ou não real
alguém que não a mulher ter aberto a porta da frente.
Alana nem mesmo pareceu incomodada ao ver a arma, ignorando
completamente o fato de eu ter uma enquanto mantinha-se grudada em
mim. Havia algo de errado. Era tão óbvio quanto o bem que a garota me
fazia, e eu precisava descobrir que merda estava acontecendo, mesmo que
ela se negasse a falar.
— Pegou tudo? — perguntei ao vê-la voltar com uma mala de mão,
vestindo a mesma roupa do dia em que me pagou um café. Alana fez que
sim com a cabeça, não se opondo quando tirei o peso das suas mãos. —
Qual o endereço?
A mulher gostava de me surpreender, e com ela, descobria cada vez
mais que adorava suas surpresas.
— O seu.

O percurso até a mansão foi feito em silêncio, ambos perdidos nos


próprios pensamentos em meio ao trânsito noturno da cidade.
Eu não lidava bem com omissão de informações, e detestava saber que
a mulher ao meu lado me obrigaria a aguentar tal numa frequência maior do
que considerava confortável. Queria perguntar o que escondia, e já pensava
em contactar Souza para investigar melhor que merda havia acontecido para
eu ver tanto medo. Ela já tinha deixado claro que não falaria tão cedo,
parecendo estar aproveitando momentos normais comigo do mesmo jeito
que eu tinha me viciado em ser comum com ela.
Por esse lado, Alana escolhendo se manter quieta me aliviava. Mas não
dividiríamos nenhuma normalidade hoje, lamentei, colocando a alça da
mala no ombro e fechando a porta do carro, ela me seguindo para dentro da
mansão.
Escutei seu estômago roncar assim que chegamos no primeiro degrau,
e não deu para evitar um meio sorriso ao vê-la sem graça ao ser pega com
fome.
— Vou pedir algo para jantarmos — avisei, subindo as escadas
enquanto, por mensagem, escolhia o prato que a mulher havia contado ser
seu favorito. Ela estava pronta para responder quando continuei. — Não
vou te forçar a comer comigo, mas gostaria que comesse, Alana.
Ela resolver não discutir, pelo menos quanto a isso, era uma benção. Já
imaginava bons minutos de gritos sobre tópicos muito mais
desconfortáveis, e ainda me perguntava por que cazzo aguentava essa
mulher me dando algo tão próximo do inferno que vivi por anos com um
sorriso.
— Ok.
Era irritante não ter uma resposta, mas já estava conformado em passar
o resto da vida buscando o motivo de eu ter me apaixonado justo por ela.
Realmente deveria ser um masoquista viciado em dificuldades.
Só quando entramos no meu quarto que voltei a ouvir sua voz.
— Eu disse pra Emília que ela podia ficar com você. — Levantei as
sobrancelhas, me surpreendendo por ela querer dividir a informação.
Não que fosse novidade para mim. Já sabia daquilo, Ferretti tendo a
coragem de me ligar para contar sobre a discussão de forma bem eloquente
enquanto se atrevia a perguntar que merda eu estava fazendo. Lorenzo
palpitou que a mulher estava apenas confusa, mas só conseguia enxergar
confusão em quem se sentava na minha cama.
A mulher mais velha sabia bem o que fazia, cada movimento sempre
muito bem calculado antes de executado. Ela havia me provado aquilo no
dia do elevador, qualquer confiança nela tendo morrido por completo.
— Eu também saí no sábado e...
— Beijou um moleque, eu sei. — Alana me olhou surpresa, tentando
esconder o desconforto que seguiu. Eu não fiz questão de mascarar o
desprazer que a informação me causava, minha voz tão amigável quando a
expressão que deveria ter no rosto. — Escolheu um dos meus clubes, como
na noite que te paguei uma bebida. — Como na noite que nos conhecemos,
mas quis continuar adiando aquele assunto.
Ela sem palavras era algo raro.
— Eu estava lá, eu vi. — Os olhos mel mostraram arrependimento. —
A sua amiga — continuei, lembrando de como a garota que sempre estava
com Alana pelos corredores havia me achado encostado no bar, meus dedos
perto demais da mesma arma que descansava agora no meu casaco. —
Disse para eu te dar espaço. Que seria bom te deixar pensar.
Alana levou um dedo para a boca, o chão parecendo muito mais
interessante do que eu de se observar.
— Dei o espaço que consegui.
Ela ainda não me olhava quando me sentei ao seu lado, eu precisando
de todo meu controle para não a tocar.
— Por que beijou outra pessoa? — perguntei, mantendo as mãos no
edredom ao invés de em seus cabelos.
Lembrar do quão próximo cheguei de matar um inocente transformava
a mulher sentada na minha cama na pessoa mais perigosa que conhecia. A
boca que cobria a dela tocava-a do jeito que considerava apenas meu
direito, e tendo Alana novamente no meu quarto, queria possuir cada parte
sua até esquecer dos detalhes que me torturavam.
Porque eu ainda sentia a necessidade de eliminar aquele moleque,
aprendendo com Alana o quanto o ciúme poderia ser desesperador. A
paixão que ela despertava em mim era a coisa mais fatal que já havia
encontrado na vida.
— Por que você não me falou que a gente tinha transado? — A voz
saía muito mais baixa do que os gritos que achei que viriam, eu ainda
lembrando bem demais de nosso último sábado.
Talvez por isso que tenha hesitado, procurando as melhores palavras
que com certeza não existiam, pensando se elas a fariam ir embora
novamente.
— Eu estou limpo, e pelo que sei, posso dizer o mesmo de ti —
revelei, sabendo que a informação só traria mais perguntas. — Também sei
que não existem motivos para outra preocupação. Não está grávida, está?
A expressão de Alana foi de confusa para irritada, e era ridículo como
lidar com o meu dia a dia parecia ser mais fácil do que com ela. O olhar
sério que ganhei conseguia ser mais ameaçador do que muitos dos homens
com quem lidava. Madonna mia, ela iria me matar.
— Eu fui atrás da sua ginecologista. — Resolvi revelar antes que a
suposição saísse da sua boca, ainda não sabendo se estava melhorando ou
piorando nossa situação. — Tenho meus meios, antes que pergunte. — A vi
revirar os olhos quando me apressei, não a deixando começar a falar. —
Achei que quisesse esquecer o que fizemos no banheiro quando descobriu
que me teria como professor, Alana. Eu não sabia que não lembrava de nada
quando te vi na minha aula!
A risada sarcástica não era a melhor das reações.
— É, pelo menos agora eu entendo que a nota de cem era você me
chamando de puta barata! — Grunhi, ela escolhendo agora para ter a
melhor das memórias. Alana se levantou antes de continuar, cruzando os
braços ao encostar-se na parede à minha frente. — Teve tantos momentos
pra me falar, Nickolay! Quantas outras que não se lembram da noite com
você?
A pergunta era pior que um tapa, Alana me ensinando que sim, ela era
boa em bater sem precisar levantar a mão.
— Eu nunca levei uma mulher dopada para minha cama! — respondi
antes de pensar, e recebi igual dela.
— Por que um banheiro bastava, né? — Se Lorenzo estivesse
escutando a discussão, esperava que se sentisse péssimo pelo conselho dado
que eu havia seguido. Maldita hora que resolvi esperar para contar aquilo, e
escolhi culpar minha demora por todos os nossos problemas. — Você se
sentiu mal?
— Sim, eu me senti mal, Alana. — Fui sincero, não sabendo mais o
que falar sobre o assunto. Ela parecia estar em situação igual, os olhos outra
vez no chão. — Já acabou?
Quando a vi abrir a boca, achei que sairia um não dos lábios finos.
Em segundos, descobri que preferia o não.
— Quem é Giovanna?
Se Alana resolvesse dar mais uma chance para nós, precisaria me
acostumar que, com ela, nunca teria conversas fáceis. Sentir um soco no
estômago pela segunda vez no mesmo dia não me deixava confortável, e
nem mesmo precisava perguntar de quem a mulher tinha escutado aquele
nome.
O que Emília estava tentando fazer? Por que todas as mulheres na
minha vida insistiam em tentar me deixar louco?
— Quem é Giovanna, Nickolay? — ela repetiu o que gostaria de, e não
seria possível, ignorar.
Olhei para o teto, respirando fundo enquanto tentava achar as palavras
certas para contar a história de quem foi minha melhor amiga. Fazia quanto
tempo que não precisava responder perguntas sobre ela?
— Giovanna foi minha esposa.
Aprendi que nem sempre gostava de ver surpresa em Alana.
— E eu te lembro ela? — Também descobri estar muito próximo de
odiar verdadeiramente Ferreti, qualquer dó que sentia pela sua perda
evaporando ao precisar discutir algo que preferia manter enterrado.
— Sempre as melhores perguntas, Alana. — Ri, mas o som passava
longe de ser um de diversão. — Si, te olhar me faz lembrar de Giovanna. Eu
consigo vê-la em ti. —Decidi pela sinceridade, por mais que minhas últimas
palavras não parecessem ajudar a situação.
— Então você tá comigo porque eu te lembro a sua ex?
Massageei as têmporas, me perguntando por que não havia
simplesmente respondido o que Giovanna realmente tinha sido. Omitir a
parte da esposa teria tornado a discussão muito mais fácil, para ela, e para
mim.
— Giovanna não é minha ex!
— Você se casou com ela!
— Porque ela precisava de alguém!
Lorenzo também ouvia aquilo? Porque não fiz questão em manter
minha voz baixa, a diminuindo apenas ao vê-la recuar quando me levantei.
— Eu nunca a amei como mulher, Alana! — Voltei para o lugar que
antes ocupava, o medo que vi nela me corroendo tanto quanto as
lembranças que voltavam para a superfície. — Te disse que casamentos
eram diferentes na minha família.
Cinco anos, três meses e dezessete dias, e ainda doía como se fosse
ontem, aquela maldita ferida que nunca sarava sendo novamente aberta.
— Quando eu tinha doze anos, meu pai morreu. — Não tinha como
começar de um jeito diferente. — Conheci Giovanna no dia do seu enterro.
Eu ainda era moleque, mas já não conseguia mais chorar, e ela enfiou um
chocolate na minha boca e me disse que lágrimas poderiam me fazer bem.
Tinha metade do meu tamanho, dois anos a menos, e vê-la tentando me
fazer comer era a primeira coisa que me fazia querer sorrir desde o começo
do mês. — Fechei os olhos, odiando a forma que meu corpo se portava
quando falava dela, limpando as mãos suadas na calça. — Ela era
engraçada, irritante e teimosa.
Ao menos era como me forçava a lembrar dela, a garota loira que foi
um anjo ao me fazer parar de arranjar tantas brigas fora de casa, com olhos
carinhosos que lembravam os de mamãe.
— Giovanna também era sozinha — contei aquela nossa semelhança,
uma diferença que gostava de ter com Alana. — O pai vivia ausente, a mãe
havia morrido no parto. Por um breve tempo, teve uma madrasta e uma
meia irmã, mas elas também não duraram. Nada parecia durar naquela
família, e ela vivia reclamando daquilo.
O colchão afundou, mas não tive coragem de olhar para quem voltava
para meu lado, Alana me ouvindo quieta pela segunda vez em nossos
poucos encontros.
— A solidão nos tornou próximos. Ela me atormentava, e eu a amava
como uma irmã. Acho que procurava nela um pedaço da família que não
tinha mais.
Parei de falar quando a mão pequena tocou meu ombro. Consegui me
conter no último segundo para não puxar a mulher para mim, eu não me
sentindo no direito de ser consolado ao contar sobre o que tinha começado
como um paraíso antes de se tornar meu inferno particular.
— Giovanna sempre tentava ver o melhor em tudo, e era impossível
não gostar dela. Ao menos era o que Alice me falava, outra e outra vez —
sorri, lembrando de como as amigas que eram como unha e carne haviam
descoberto juntas o que eu andava descobrindo com Alana. — As duas
garotas estavam apaixonadas, era lindo de se ver. Era tão, tão perigoso,
Giovanna indo contra todas as regras de seu pai. Elas saíram escondidas
uma noite. Só as duas, um encontro. As duas eram tão novas.
Fechando os olhos, tentei engolir a bola que se formava na minha
garganta sempre que lembrava do dia que mudou minha vida.
— Só Giovanna voltou. — E foi na minha porta que ela bateu, coberta
de sangue e arranhões, sem falar uma palavra por dias. Sem Alice. — E
então, ela teve Nicolas.
Escutei a mulher ao meu lado puxar uma respiração, Alana entendendo
o que havia acontecido antes de eu colocar em palavras mais diretas.
— O pai dela não queria que o estupro se tornasse público, Giovanna
não conseguiu terminar a gravidez. Escolhi me casar com ela porque era a
única coisa que poderia fazer para ajudar. No meio em que vivemos, uma
mulher ter uma criança fora de um casamento é tão vergonhoso quanto um
relacionamento que foge das normas.
E eu tentei salvá-la, e minha melhor amiga me odiou até o dia da sua
morte. Virei minha cabeça para Alana, e me surpreendi com a suavidade
que havia voltado para seu rosto, a expressão fazendo jus ao apelido que lhe
dei em nossa primeira noite.
— Eu senti gosto de vodca na sua boca, mas as palavras que me disse
soaram tão claras quanto a linha reta que traçamos quando nos puxou. Não
sei o que está pensando sobre aquela noite, mas nunca teria entrado num
banheiro contigo se soubesse que estava drogada — confessei, colocando
uma mecha dos cabelos longos atrás de sua orelha. — Mas eu entrei, e
agora, isso é só mais uma coisa que eu...
Me arrependia. Não conseguia arrumar.
O celular vibrando me calou, levando as minhas tatuagens para longe
dela.
— A comida chegou. — Me afastei a contragosto, ao mesmo tempo
que sabia que a solidão seria minha melhor escolha. — Vou pedir para
trazerem seu prato — avisei, abrindo a porta.
Desci as escadas em silêncio, mas com a mente gritando, eu estando
pela primeira vez feliz em poder ir para longe de quem passei a semana
querendo ao meu lado.

Comi sozinho, tentando planejar a próxima semana enquanto


mastigava uma lasanha que era tão boa quanto papel. Pelo menos não
precisava mais me preocupar com nenhuma aula, Ferreti me tirando da
farsa que fui como professor. Já passava das dez, e ver que havia tentado
fazer muito e concluído nada me incomodava do mesmo jeito que os olhos
verdes não me davam paz.
Nicolas tinha os mesmos olhos da mãe, e machucava demais lembrar
do quanto havia vida neles. Doera além do suportável ver toda aquela vida
ir embora, muito mais do que perder Giovanna. Considerava levantar e me
afundar no whisky que ainda sobrava na garrafa de Jameson antes de achá-
la na porta.
Alana parada na entrada do escritório, vestindo uma camiseta grande
que reconhecia minha, era uma surpresa que distraía a dor.
— Esqueci de pegar uma roupa de dormir — a escutei se justificar sem
graça, me mostrando que a camiseta mal cobria a bunda ao se virar para
fechar a porta de madeira.
A mulher andou com passos silenciosos até meu lado, e me perguntei
se aparecer com minhas roupas era alguma forma de pedir uma trégua.
Demorou alguns segundos para os lábios abrirem, as palavras saindo
tímidas. Tão atípico, vindo dela.
— Eu quis ir até você — ela sussurrou, preferindo olhar para a pele
que cutucava no dedo do que para mim. — Eu lembro que aceitei a água e
te puxei pro banheiro. Lembro da mordida no seu pescoço, do jeito que
agarrei seus cabelos, como você não conseguia parar de me beijar.
Gastei todo meu controle para permanecer quieto, mesmo vendo os
olhos mel brilhantes com as lágrimas que queriam cair.
— Era só uma transa casual, mas foi tão bom! E então, você pediu pra
eu ir pra sua casa, e usou o apelido estúpido que eu aprendi a adorar, e
quando te olhei… — Escutei sua voz falhar, Alana fechando os olhos e
desistindo de manter o rosto seco. — Tinha tanto sentimento, Nico. Tinha
tanto onde não era pra ter nada que machucou!
Do mesmo jeito que eu odiava ter que manter as mãos longe dela, ela
odiava chorar tendo público, e demonstrava isso abertamente ao limpar
irritada as lágrimas que escorriam.
— E meu cérebro anda esquecendo de qualquer coisa que doa esses
tempos. Então, se ele não conseguiu te esquecer, é porque o bem que você
me faz é muito maior que a dor que causa.
A mão dela tocando a minha foi todo o incentivo que precisava para
puxá-la para o meu colo, sentindo seu coração contra o meu enquanto me
afundava na minha framboesa.
— Quando eu beijei aquele cara no sábado, eu tentei sentir algo — ela
falava com o rosto escondido no meu peito, a mão que eu passava em sua
bochecha a sentindo quente. — E não consegui, e a única coisa que vinha
na minha cabeça era o quanto queria a sua boca estúpida. Me odiei tanto por
isso!
Alana nunca me mostrou tanta sinceridade, e eu queria poder afirmar
que não lhe causaria dor alguma. Saber que não conseguiria feria tanto
quanto as memórias que me perseguiam. Toquei seu queixo, trazendo os
olhos vermelhos para os meus, sentindo que era verdade o que havia
percebido fazia semanas.
— Eu não te quero beijando outras pessoas. — Ela realmente tinha
aquele poder em dar coragem para as pessoas, eu lhe devolvendo a
honestidade que ganhava sem hesitar. — E eu não quero beijar mais
ninguém além de ti, Alana.
Vê-la sorrir tinha um estranho poder em tornar as coisas boas, por mais
que ainda houvesse lágrimas em seus olhos.
— Eu também não quero.
Ter os lábios finos outra vez contra os meus foi a melhor coisa da
semana, Alana derretendo nos meus braços. Pela primeira vez, não era
desejo que me fazia devorar sua boca, mas o mais puro alívio de não ter
fodido com a única coisa boa que habitava meus dias. Poderia passar a noite
apenas a beijando, sentindo como suas mãos descobriam os traços do meu
rosto da mesma forma que as minhas acariciavam os cabelos soltos.
— Não me deixa dormir sozinha. — O pedido veio assim que nos
afastamos, as palavras tão absurdas me fazendo soltar uma risada.
— Mai, dolcezza.
Fechei o laptop e subi as escadas com ela aninhada nos meus braços.
Ainda me surpreendia o quão pouco Alana pesava, o quanto eu me
importava com alguém que estava havia tão pouco tempo na minha vida.
Era influência de Lorenzo? Eu finalmente ficando louco? O que havia nela
que me dava aquele sentimento de lar?
Chutei os chinelos, meus lábios em seu pescoço e meus braços ao
redor de sua cintura tão logo nos deitamos. Eu ainda me aproveitava do
cheiro de framboesa quando Alana voltou a falar.
— Por que eu? — Ela virou a cabeça para mim, os olhos esperando
uma resposta enquanto os dedos seguravam as tatuagens dos meus
antebraços.
— Porque estar contigo me dá paz.
— Então não é só porque eu te lembro da sua amiga? — Toquei sua
testa com meus lábios, sorrindo contra sua pele.
— No. Não me lembro dela quando te tenho assim, dolcezza.
Giovanna era água. — E os olhos mel estavam outra vez nos meus. — Eu te
olho, e só vejo fogo, Alana. Meu fogo particular. O que sinto quando te
tenho nos braços, nunca senti com ninguém. — Eu nunca quis sentir com
ninguém. E eu estava apavorado, ao mesmo tempo que buscava aquilo
todos os dias. — É a única coisa normal na minha vida.
— Sabe que vai chegar uma hora que o normal vai acabar, não sabe?
— Mesmo quando o normal acabar, saber de ti ainda vai ser meu
melhor motivo para sorrir. — Dar aquela resposta era o começo do fim do
conto de fadas que nos deixávamos viver. Por mais que não quisesse, me
forcei a perguntar. — Quer que acabe agora?
Ela roubou um último beijo antes de voltar a se aconchegar em mim.
— Acho que podemos aproveitar um pouco mais.

Conviver com Alana era assustadoramente fácil. A vida normal que


me deixava ter era algo com o qual poderia me acostumar, as roupas dela,
antes na mala, já penduradas em cabides junto das minhas. Adorava chegar
e encontrá-la no quarto com uma das minhas camisetas, e dividir um café
antes de levá-la até a faculdade era tão bom quanto ouvi-la gemer como
agora.
Suas mãos agarravam meus cabelos enquanto eu a chupava, e só
conseguia pensar que era a primeira vez que as coisas iam bem demais na
minha vida. Isso gritava problema, mas o único grito que me importava era
o abafado que ela dava ao gozar na minha boca.
Ouvi-la assim era mesmo meu jeito favorito de começar o dia.
— O que nós estamos fazendo? — escutei quando voltei para seus
lábios.
— Sesso? — A risada se transformou num gemido quando minha boca
achou seu seio, e eu entrelacei minhas mãos com as dela antes de copiar seu
som ao penetrá-la. — Não estou fazendo um bom trabalho — As palavras
sempre me fugiam com ela contraindo-se ao meu redor. — Se precisa
perguntar.
— Ah, confia em mim... — E com ela, acontecia o mesmo. — Você tá.
É que minha mãe nos convidou pra um almoço — Alana continuou,
ganhando minha atenção. — Amanhã. Em família.
Sair de dentro dela era pura tortura.
— Ok. É só isso que está tirando sua atenção? — perguntei, Alana me
dando um olhar desconfiado.
— Ok?
— Era para eu dizer não? É o que se faz no Brasil quando se recebe
convites de mães?
— É o que se faz quando você vai fugir de todas as perguntas! — ela
respondeu, me deitando na cama. — O que você vai falar se perguntarem
algo do seu trabalho?
A puxei para cima de mim, não resistindo mais ficar longe.
— O que quiser que eu fale. — Saiu antes dela me tirar mais uma vez
a capacidade de falar, Alana prendendo meus pulsos enquanto subia e
descia numa velocidade tortuosamente lenta.
— Com o que você trabalha, Nickolay? — A mulher me ofereceu seus
lábios.
— Quer mesmo que eu te diga? — Apenas para tirá-los de perto dos
meus quando tentei alcançá-los.
Ela não fazia ideia do efeito que tinha sobre mim quando tentava me
domar daquele jeito.
— Você falaria se eu respondesse sim? — Assim como não fazia ideia
que já tinha conseguido me domar fazia um tempo.
— Eu faria qualquer coisa que me pedisse contigo em cima de mim.
Aquele sorriso sempre precedia as melhores safadezas.
— Vou me lembrar disso, italiano. — Fechei os olhos, copiando seus
lábios enquanto sentia as unhas curtas arranharem meu peito.
Sim, mesmo com todos os atípicos atrasos que manhãs como aquela
me proporcionavam, conviver com Alana era assustadoramente fácil.

Tinha vinte e oito anos, e era a primeira vez que conhecia a família de
uma mulher com quem dividia a cama. Não que Alana apenas
compartilhasse meus lençóis, por mais que aquela tivesse sido minha parte
favorita dos últimos dias.
Era sábado, e eu já não queria mais tê-la fora da minha casa, por mais
que Lorenzo e meu cérebro gritassem diariamente sobre como deveria
deixar claro para a mulher no que se metia. Ela não podia ser tão cega a
ponto de não desconfiar, podia?
— Está nervosa — comentei ao estacionar, afastando da boca o dedo
que ela insistia em morder.
— E você tá calmo demais!
— Dolcezza, eu passo por situações piores numa base diária —
respondi, outra vez me perguntando quando Alana começaria a questionar
os pedaços de informações que soltava.
Eu queria que questionasse. Seria muito mais fácil renunciar à
normalidade falsa se fosse ela quem me obrigasse a tal.
— Se você fugir das perguntas da minha mãe como foge das minhas…
— Mas ela não andava me perguntando nada desde a sexta em que me
acordou com um beijo. — Acredite, não vai ser bonito.
— Eu vou responder o que puder, bella — a tranquilizei, alcançando o
maço de cigarros que dividíamos antes de tê-lo tirado das mãos.
— Isso aqui fica no carro, italiano.
Não objetei, trancando a Mercedes e achando suas costas nuas com a
palma da mão. Nicotina não era tão necessária com ela ao meu lado, Alana
sendo uma droga muito mais deliciosa e calmante. Já não era mais verão,
mas o calor de São Paulo a fazia continuar usando os vestidos leves que eu
adorava tirar, e o branco de agora combinaria muito bem com o piso de
nosso quarto.
Nosso quarto. Cazzo, precisava parar de adiar minha verdade.
— Se continuar me olhando como se eu fosse de comer — Alana
provocou, passando a mão pelos cabelos soltos. — Os homens da minha
família não vão ficar tão contentes em te ter na mesa.
— Sabe que nunca fiz isso na vida, não sabe? É meu primeiro almoço
em família. — A expressão que vi foi impagável, ela ainda processando a
informação que eu tinha acabado de soltar quando a porta foi aberta.
Não que eu precisasse aprender como me portar, por mais que a
experiência fosse inédita. Sabia tratar mulheres do jeito que pais
aprovavam, Giovanna tendo me pós-graduado em distanciamento e
paciência.
Então mantive minhas mãos longe de qualquer parte dela, a olhando
abraçar a mãe antes de me apresentar. Entreguei as flores que segurava, os
olhos escuros que me observavam parecendo considerar por alguns
segundos se eu era merecedor de sua confiança antes de suavizar.
Astrid tinha um abraço tão caloroso quanto o da filha, e eu sempre era
pego de surpresa com o costume de abraçar estranhos. Ainda havia alguma
desconfiança quando a mão aceitou nossas flores, fazendo eu me perguntar
se mesmo de camiseta branca e jeans escuro, eu tinha cara de poucos
amigos.
Talvez devesse ter feito a barba, como Lorenzo sugeriu mais cedo. Não
que pudesse cobrir minhas piores tatuagens, caveira e ódio sempre estando
aparentes demais.
Deveria ter pegado a jaqueta.
— Já era hora da pirralha aparecer com alguém! — escutei uma voz
masculina provocar, um homem quase da minha altura bagunçando os
cabelos ondulados da minha mulher, Alana tentando se livrar da mão. —
Quanto tempo desde o último, mesmo?
— Cala a boca! — Era bom vê-la agindo despreocupada, o medo que
havia achado naquela quinta nunca mais tendo retornado. — Nico, esse é
meu irmão do meio. Ai, para com isso! — ela se virou para mim,
esbravejando quando o irmão desarrumou mais uma vez os cabelos
castanhos. — É o problemático da família, como dá pra ver!
— É o único que passa perto de ser normal! — O sorriso que ele me
dava era simpático, mas o olhar era mais desconfiado que o da mãe. —
Rogério — se apresentou ao me estender a mão.
— Nickolay.
— Aperto forte, gosto disso. — O desconforto veio assim que os olhos
pararam nas tatuagens da mão esquerda. — E com o que você trabalha,
Nickolay?
Alana suspirou, as mãos na cintura.
— Já começou a entrevista, problema?
— Preciso conhecer quem eu vou sentar na mesa com meu filho, não
preciso?
— Eu te pedi pra ficar quietinho!
— Prefere eu ou papai?
— Prefiro o silêncio! — Rogério tinha coragem o suficiente para
colocar-se entre nós dois, Alana sendo muito mais ameaçadora do que
minhas tatuagens descobertas, o assassinando com os olhos.
Por mais que a quisesse distante do meu mundo, em momentos como
aquele, Alana parecia ter sido feita dentro da máfia.
— Por que você não vai dar um beijo no seu sobrinho? — O vi apontar
para o jardim dos fundos, onde uma criança com os mesmos cabelos
crespos do pai corria em volta de uma palmeira. — Ele vai sobreviver,
Nana.
— Me preocuparia mais com o contrário.
Sorri quando os olhos mel pararam nos meus, fazendo sinal para ela
seguir em frente. Só voltei a olhar para seu irmão quando a vi beijar o
menino na bochecha, Rogério me oferecendo uma cerveja.
Não era bom sentir o que sentia ao vê-la brincar com uma criança,
principalmente com ela ainda vivendo no meio das minhas inverdades.
— Estou dirigindo. — Dei como desculpa, aceitando um copo com
água. — E respondendo sua primeira pergunta, eu cuido dos negócios da
minha família. — Não era mentira.
— Cuida? — Tinha incômodo ali, eu talvez não sendo o primeiro a dar
aquela resposta. — Ou apenas curte a herança como o último cara que ela
trouxe aqui pra dentro? — Sabia.
— Cuido — respondi com segurança, tomando um gole do copo antes
de voltar meus olhos para os dele. — Tempo livre é algo raro, e todo o que
tenho ando usando com sua irmã.
Rogério pareceu considerar minhas palavras por alguns segundos antes
de largar o assunto. Mas eu não estava propenso a largar o que queria saber.
— Não parece gostar do último homem que esteve com Alana. — Pela
cara feita, desgostar não cobria metade do sentimento.
— Começa que ele não era homem, era moleque. O babaca só sabia
festar, e tenho certeza que ele tava levando a Nana pra umas paradas
erradas. Ninguém gostava dele. — Ele se privou de continuar, e me
perguntei se deveria insistir. — O cara era o inverso de você. Me fez
aprender que não devemos julgar o livro pela capa, porque olhando, ele
parecia ser o sonho de todos os pais. — Sim, eu deveria, pelo menos, ter
feito a barba. — Só que não era, então eu vou ignorar o que vejo aqui, e
acreditar que você também vai ser o inverso dele em relação à minha irmã.
Era tudo que eu queria.
— Acredite. Alana é minha prioridade — afirmei sério, outra vez
escolhendo-a ao invés de todos os juramentos feitos. — Estou cuidando
bem dela, Rogério.
Ele me devolveu um olhar que tinha a mesma seriedade.
— Pai, pai! — Quem interrompia a conversa era o menino, correndo
até onde estávamos com um brinquedo nas mãos. — Olha o que a tia Nana
deu!
As feições do homem suavizaram no mesmo instante, Alana correndo
não muito atrás com um sorriso que me obrigava a copiá-la, agarrando meu
braço para se fazer parar. Aquela felicidade tão simples, será que as pessoas
que a tinham sabiam o quão sortudas eram?
— Eles se empolgam tão fácil! — ela me contava enquanto o sobrinho
mostrava o foguete colorido, comprado em uma de nossas paradas.
— Leandro, agradeceu o presente? — Os olhos grandes pararam nos
meus, a criança me vendo pela primeira vez.
A única parte boa de Alana ter parado com qualquer pergunta era o
fato de não precisar mais contar sobre minha antiga família. Por mais
diferente que seu sobrinho fosse de Nicolas, a dor que ainda aparecia ao
lembrar dos olhos verdes e cabelos loiros me fazia mais fraco do que
poderia me dar ao luxo de ser.
A mão pequena agarrando minha calça conseguiu me afligir mais do
que a primeira vez que puxei o gatilho, e olhei nervoso para Alana antes de
desviar a atenção para baixo.
— Obrigado tio! — O menino disse tão rápido quanto voltou a correr,
e o braço quente da minha mulher não largou mais o meu até nos sentarmos
para o almoço.
E outra vez ali estava ela, sabendo que havia coisas que eu preferia
esconder e aceitando sem perguntar. Alana passava muito longe de ser
burra, e me deixei aproveitar aquela rara tarde de felicidade, sem culpa por
todas as minhas omissões.
Eu iria seguir o conselho de Lorenzo e falar tudo.
Só não o faria agora.

— Quando se conheceram? — Esteban era tão agradável e fácil de


conversar quanto sua filha. Sentado entre os integrantes da família mais
normal que já frequentei, era incrível e confortável o fato de eu ser tratado
como um homem simples.
Era tudo que tinha buscado durante meus melhores seis anos.
— Alana me comprou um café há pouco mais de dois meses — revelei
entre garfadas. — Foi o pior que já tomei em toda a vida, e a melhor
companhia que tive.
— O pior? — Alana me olhou fingindo indignação, e outra vez ela me
fazia sorrir com as coisas mais pequenas.
— O barista se confundiu, e eu acabei com seu pedido. Lembra disso,
não lembra? Fui atrás de ti por isso. — Vi diversão em seu olhar, ela enfim
entendendo como eu sabia sobre sua preferência por ao menos duas
colheres de açúcar. — Ainda preciso entender como alguém consegue
tomar um café tão doce.
— Então foi assim, por acaso? — Quem perguntou foi a mãe, e eu
conseguia ver Alana nela, por maiores que fossem as diferenças físicas. —
Certeza de que o encontro não foi fruto de nenhuma das festas que Djamila
andava reclamando que você não larga? O café era mesmo café, Alana?
Será que era só eu que via a hesitação nos olhos mel? Estava pronto
para abrir a boca e revelar minha surpresa ao tê-la descoberto minha aluna
quando Alana respondeu.
— Totalmente por acaso. — Sabia que o sorriso ali era apenas uma
imitação de seu genuíno, e olhando para sua mãe, descobri não ser o único
que tinha aquele conhecimento. — Nico esqueceu a carteira, e cafeína é
algo que não deve ser negado a ninguém que precisa. Ele me recompensou
com alguns cafés, e agora, aqui estamos.
— Viciada. — Veio de Rogério, parecendo querer salvar a irmã de
mais perguntas de Astrid.
— Eu não sou!
— Ela é, não é? Naninha é que nem a mãe, não acorda antes da
primeira xícara. — Esteban se colocou no meio da conversa, os olhos
fundos em mim. — E quando começaram a namorar?
— Namorar?
E as memórias da última sexta-feira voltaram para minha cabeça. A
Alana de agora evitava meus olhos, mas estava corada e sem palavras igual
a que eu tive durante todas as minhas últimas manhãs.
— Era isso que queria saber ontem, quando perguntou o que
estávamos fazendo?
Era tão raro vê-la desconcertada, o vermelho que cobria as bochechas
tão tentador quanto a visão dela se contorcendo na minha cama.
— Pai, nós não...
— Estou com sua filha desde o dia que a conheci. — A frase não era
mentira, por mais que tivesse tentado não ficar com Alana ao provar
inutilmente outras bocas depois da dela. — Mas o conceito de namorar para
mim é passageiro demais — continuei, decidindo pela sinceridade e
conseguindo colocar todos os olhos novamente em mim.
Só existia ela nos meus, e o sorriso que ganhei com a próxima frase
fazia valer todos os apertos que passaria por causa de quem eu queria como
mulher.
— Podemos usar esse nome, mas te vejo como mais do que alguém
com quem me encontro. Sempre vi, dolcezza.
E a cada dia, tinha mais certeza de que sempre veria. Ainda não sabia
o que fazia meu coração chamá-la de casa, mas tinha certeza de que não
acharia em nenhuma outra o que encontrava em Alana.

Só que por mais que ela fosse meu lar, era difícil não lembrar das
palavras de Emília ao observá-la de longe, junto do pai. O homem a olhava
como um dia eu fiz com Nicolas, amor e cuidado evidentes em cada gesto.
Alana era a única que queria, e eu, tudo que gostaria de evitar ter perto
de um filho. Era irritante como nunca conseguia passar um dia inteiro me
enganando, e sentado no sofá da sala colorida com fotos e desenhos
infantis, desejava saber qual seria o limite de quem eu já chamava de
minha. O que ela aceitaria, e o que a faria correr de mim?
— Ela é a menininha do papai. — Veio de Astrid, a mulher mais velha
dividindo o sofá da sala comigo.
— Mas a mãe é mais protetora, — Meus olhos foram da piscina para a
mulher mais velha. — Estou errado?
— Você lê bem as pessoas, Nickolay. — Ela sorriu, sacudindo a
cabeça. — Eu também tenho esse dom. Anos de trabalho como psicóloga te
fazem aprender muito. — Alana tinha esquecido de mencionar o detalhe, e
me senti um iniciante por ignorar por completo as informações que tinha
em sua ficha, esquecida em uma gaveta do quarto. — Onde conheceu
minha filha?
— Numa festa. — Não adiantaria mentir sobre aquilo, minha agora
namorada tendo deixado muito evidente sua mentira na mesa.
Alana precisava aprender a mentir melhor.
— Estou cuidando dela, Astrid. Sua filha está segura comigo.
— E é só isso que vai me falar, não é mesmo? — Não precisei
responder que sim. — Você esconde coisas, Nickolay. Alana esconde
também.
Era quase engraçado descobrir que a intenção nunca havia sido me
interrogar.
— Eu sei que ela anda tendo problemas. Também sei que não deveria
estar conversando disso com você.
— Deveria. — Não me importei em suavizar a voz, ignorando por
completo quem era a pessoa com quem falava. — Que problemas?
Houve surpresa, a mulher parecendo travar um debate interno,
tentando chegar a uma conclusão sobre a intensidade que via em mim antes
de continuar.
— Eu não sei — respondeu com certa culpa, eu tomando nota mental
de rever a ficha que Souza havia levantado. — Já deu pra notar que Lana
não é minha filha, não deu?
— Não vejo como ela poderia ser mais parecida contigo — disse,
achando toda a sinceridade de Alana em sua mãe de criação. — Mas sim,
eu notei a diferença.
Não tinha como não notar. Rogério era uma mistura perfeita dos traços
latinos de Esteban, herdando seus olhos verdes e a pele negra da mãe. Alana
era quase pálida, suas linhas sendo muito mais parecidas com as minhas
italianas do que com as de seus pais.
— Alana estava procurando a mãe biológica. Ela não achou...
— Conheço pessoas que podem ajudar — a interrompi, mas logo
descobri que não era por aquele motivo que as coisas andavam cinzas.
— O problema não é esse, o problema é que minha filha desistiu. — A
confissão veio com um suspiro, a atenção de nós dois voltando para a
piscina. — De um ano pra cá, ela mudou. Parou de procurar os pais
biológicos, parou de nos procurar, simplesmente parou. Como se tivesse
acontecido algo que não pudesse falar. — Ela deu uma risada amarga. —
Eu tenho certeza de que algo aconteceu. Só não consegui descobrir
exatamente o que foi.
Definitivamente ligaria para Souza assim que ficasse sozinho, a mãe
me confirmando o assunto que deveria investigar.
— Thobias não era bom pra ela. — Era a primeira vez que escutava o
nome do ex-namorado que já odiava. — Alana é difícil quando contrariada.
Ela é teimosa, e quanto mais íamos contra o relacionamento, mais ela
parecia se afundar naquele rapaz. Então nós aceitávamos, e eu rezava todos
os dias pra ela conseguir abrir os olhos e colocar um ponto final no que
fazia. Dizia que não iria forçar nenhuma decisão que Alana não estivesse
pronta pra tomar, até o dia que...
Ela parar agora era não-negociável.
— Fale. — Nem mesmo me importei em esconder a impaciência, a
necessidade que tinha em saber que merda havia acontecido sendo muito
maior do que qualquer educação que gostaria de manter.
Não sabia o que Astrid tinha achado em mim, mas os olhos escuros
viram algo que me fez digno da sua confiança, e a mulher continuou.
— Há quase um ano, Alana sumiu por um mês inteiro. Ela não me
atendeu por uma semana, e quando finalmente pegou o telefone, a primeira
palavra já me fez entender que havia acontecido alguma coisa. — Ela
enrugou a testa, os olhos indo para a filha. — Alguma coisa feia. A mãe
sempre sabe, e eu sabia que minha filha tinha passado por algo que não
queria me contar. — E ali estava, uma sensação tão ruim quanto no dia que
mandei Alana sair do apartamento. — Eu só a vi de novo depois de trinta e
sete dias. Se você observar de perto, ainda consegue ver a marca dos
pontos, aqui. — E Astrid apontou para a própria testa, na linha entre a pele
e os cabelos.
Era difícil me sentir enjoado, mas tudo que havia acabado de aprender
fazia meu estômago revirar da pior maneira. Para nós dois, era óbvio
demais o que Alana passou semanas escondendo. Eu caçaria no inferno
aquele moleque, a certeza de que Thobias tinha relação com a mudança que
Astrid me contava tão forte quanto os socos que queria usar para acabar
com aquela vida.
Era difícil reconhecer que me sentia feliz com as próximas palavras.
— Não te conheço o suficiente, mas preciso confessar que fico
aliviada por Alana ter encontrado alguém como você, Nickolay. —
Novamente, a sinceridade que achava em minha dolcezza. — Do seu lado,
consigo ver outra vez um olhar sereno, ouvir a mesma risada de antes.
Minha parte egoísta diz que posso fechar os olhos para os negócios de
família que você diz cuidar, desde que a mantenha segura e feliz.
E como a filha, Astrid me surpreendia. Alana realmente não poderia
ser mais parecida com a mãe.

Decidi por não tocar no nome que havia descoberto durante o café da
tarde, escolhendo um assunto que aparentava ser muito mais tranquilo.
— Por que não disse que foi minha aluna?
Só aparentava, descobri segundos depois de trazê-lo para a conversa.
— Porque meu pai ia querer te matar. — Alana revirou os olhos
quando viu que eu não havia entendido. — Nico, não é óbvio?
— Não?
— Você é muito mais estranho do que eu pensava — ela respondeu,
mas o sorriso nunca deixou seus lábios. — Nickolay, você mesmo acabou
de dizer! Você era meu professor quando me chamou pra sair!
— Não é como se fosse menor de idade, Alana — retruquei, ainda não
enxergando o problema enquanto parava no sinal vermelho. Ela sacudiu a
cabeça, me dando um sorriso debochado. — Eu perguntei se precisava me
demitir! — defendi, ainda lembrando bem da negativa que veio dela.
— Ai, Nickolay. — Tinha um pouco de frustração naquela risada. —
Deixa eu fingir que você tá se fazendo de idiota, porque eu sei que de burro,
não tem nada aí. — E mais uma vez, era ela a única corajosa o suficiente ao
meu redor para usar tais palavras. — Vamos começar com o fato de que
todo mundo que te olha se sente intimidado por você. Adiciona que você
me assediou por semanas...
Talvez devesse ter escolhido Thobias para ser o assunto, já que ambos
estavam deixando meu bom humor inexistente.
— Eu te assediei? — E a culpa veio, eu não sabendo o quanto nosso
começo havia sido ruim para ela.
— Não sei se é exatamente confortável pra todo mundo um professor
te chamando pra sair, pagando um café com notas de cem ou falando que
uma gozada na boca da aluna faria ela mais dócil. — Cocei a barba, ela me
fazendo nervoso já um hábito, eu sempre falando demais ao lado dela.
— Deveria ter me demitido, vero?
— Ou não ter retribuído tão bem minhas tentativas de tirar sua roupa
— ela respondeu, deixando a mão subir pela minha coxa.
— Fora de cogitação. — A segurei, encarando meus olhos favoritos.
— Eu não sabia que tinha te deixado tão desconfortável. Me enfrentava
como se eu não fosse um ninguém, dolcezza!
— Um ninguém? Como se isso fosse possível! — E a risada dela,
quando saía assim verdadeira, conseguia fazer meu coração esquecer como
funcionar por um segundo.
— Cazzo, não estava nos meus planos gostar de ti como gosto, Alana!
— confessei em voz alta pela primeira vez, fazendo o sorriso dela
desaparecer, a surpresa óbvia em todo seu rosto.
Só notei o farol outra vez aberto pela buzina insistente que vinha do
carro de trás.
— Precisa de muito mais do que um professor babaca pra me deixar
mal. — A resposta veio mais séria do que a de segundos atrás, sua mão
ainda em mim. — E como eu já disse, você não me intimida nem um
pouquinho, italiano. Quem faz isso sou eu, esqueceu?
Houve silêncio até a próxima curva, eu parando o carro na frente do
portão da casa que andava dividindo com ela. Envolvi a mão pequena com
a minha, a levando até meus lábios, procurando seus olhos.
— Me desculpa. — Fui tão verdadeiro quanto consegui, a palavra tão
pouco usada por mim soando estranha. — E grazie, por ficar.
Ela desviou os olhos antes de responder.
— Às vezes, você é tão sincero que me assusta.
— Como eu posso me redimir? O que quer? — perguntei, não mais
resistindo e a puxando para um beijo, nós dois ignorantes ao portão aberto.
— São poucas as coisas que eu não posso te dar.
E ali estava o mesmo sorriso da manhã de sexta, Alana deixando uma
das mãos explorar meu corpo enquanto eu estacionava na frente da entrada.
— Quero saber o que você tanto falou com a minha mãe depois do
almoço. — Veio assim que tirei a chave da ignição.
— Dolcezza…
O que Thobias fez contigo? Mas perguntar aquilo era assinar minha
própria confissão, acabando com a farsa que ainda queria manter com ela.
— Quer ajuda para achar sua mãe biológica? — Imaginava que seus
olhos se encheriam de lágrimas.
Ela fungou antes de me responder.
— Sim.

Conviver com Alana era assustadoramente fácil. Ao menos para mim.


Lorenzo fazia sua presença limitada desde que a mala da mulher
entrou na casa, mas bastava olhá-lo para saber o que ele me aconselhava em
silêncio. Desde a última segunda, os conselhos vinham em voz alta, numa
frequência muito maior do que eu estava disposto a aturar.
— Isso que você está fazendo é errado, Nico. — O homem mais velho
era uma das três pessoas que conseguia me falar tais palavras e continuar no
meu lado bom. — A ragazza tem o direito de saber por quem está se
apaixonando.
— Entendi que tinha me dito para não falar nada.
— Sobre a primeira noite de vocês! E eu disse para esperar, e não
esconder! — ele esbravejou, fechando a porta do escritório. — Lembre bem
do que não falar nada te trouxe!
— Não estou exatamente reclamando da minha atual situação,
Lorenzo! — respondi igualmente irritado, me sentindo velho demais para
uma bronca sobre relacionamentos.
No entanto, ainda lembrava de toda a ajuda do homem em relação à
Giovanna. Aquele tempo teria sido muito pior sem suas palavras, e tão
melhor, caso as tivesse levado em consideração.
Mas o que acontecia agora estava muito longe de copiar meu
casamento arranjado.
— Eu não te criei para você achar correto colocar uma inocente no
meio da nossa merda sem consentimento, Nickolay. — Esfreguei os olhos
com força, tentando manter a calma que era tão difícil conseguir ouvindo
aquilo. — A ragazza está morando aqui dentro!
— É temporário!
— Meu conceito de temporário é bem menor do que duas semanas,
moleque!
Cazzo, havia se passado todo aquele tempo? Para onde minhas horas
iam com ela ao meu lado?
— É por isso que ainda não se incomodou em mandar alguém trocar a
fechadura, ou reforçar a segurança do prédio dela? Por que é uma situação
temporária? — Lorenzo era sempre ótimo em quebrar as mentiras que
contava para mim mesmo.
— Pensei que apoiava eu me relacionar com ela, pai — disse a última
palavra no tom irônico que eu sabia que o homem detestava, recebendo um
suspiro como resposta. — Prefere também que eu me prenda a mais um
casamento arranjado?
— O que acha que vai acontecer com a ragazza quando o nome dela
chegar até Matarazzo? Quando ele souber o que está fazendo...
— Ele só vai saber se contar! E ninguém aqui dentro abriria a boca!
— Está certo disso? — Estava pronto para dizer que sim, até sua
resposta prender a minha. — Todos que trabalham aqui podem ficar
quietos, sim. Mas quanto tempo até ela ver algo que não deveria? O que vai
ter que sacrificar quando Alana se tornar cúmplice de um dos seus
trabalhos?
Detestava o jeito que ele me fazia pensar em tudo que eu fingia
esquecer enquanto aproveitava meu normal.
— Nico, assim que Vincenzo souber o que está fazendo, Alana fica
presa a você. Tire a garota daqui de dentro, ou pelo menos conte tudo e a
deixe escolher. É o certo a ser feito, e você sabe. — Ele já estava na porta
quando se virou. — Nenhum amor nasce numa prisão, filho.

Conseguia esquecer das palavras de mais cedo com ela nos meus
braços. Ali, dividindo uma quarta ensolarada no meio da piscina, não me
importava com a falta de perguntas de Alana. Nos grudávamos na promessa
de normalidade, aproveitando um ao outro na mesma tarde que pessoas
normais passavam enfurnadas dentro de um escritório.
Ao invés de preso a um cubículo, estava preso a ela, suas pernas ao
meu redor enquanto Alana terminava de me contar sobre sua manhã, e o
estágio que pensava em tentar conseguir. Os beijos que me dava eram bons
demais, sua boca sabendo melhor do que qualquer outra de tudo que eu
gostava, e já imaginava com quem deveria falar para que o emprego fosse
dela.
Ela sorria de olhos fechados contra o sol, e Astrid estava certa: ainda
era possível ver a marca dos pontos, bem no fim de sua testa. Também já
sabia tudo sobre Thobias Albuquerque, e o moleque tinha sorte de estar fora
do Brasil e eu não poder ir pessoalmente atrás dele.
Ao menos não ainda.
— Poderia passar mais dias assim — admiti, empurrando para longe a
memória do playboy mimado que ela um dia teve o desprazer de namorar.
Pensar nele tendo minha mulher nos braços me fazia querer pegar o
próximo voo e caçá-lo em Portugal, o país pequeno demais para o moleque
se esconder de mim.
— Eu também. — Gemi quando senti a mão dentro da minha sunga, a
pressionando contra a borda da piscina enquanto mordia seu pescoço. Alana
não parecia conhecer a palavra descanso, sempre me fazendo descobrir um
lugar novo para tirar sua roupa.
Ou naquele caso, nem mesmo tirar.
— Se não parar — sussurrava, me esfregando contra a palma da sua
mão, mal lembrando que não estávamos a sós na mansão naquela tarde. —
Não garanto chegar até o quarto.
Ela testava meu autocontrole ao passar as unhas pelas minhas costas,
me deixando ofegante com todos os estímulos. Até a risada dela conseguia
me fazer ficar mais duro, e eu nem mesmo precisava me livrar de nenhuma
peça para começar o que queria.
— Você tá tão mudado! 'Não garanto chegar até o quarto', tá se
tornando um romântico! — Sorri contra a pele do seu pescoço antes de
mordê-la mais uma vez, Alana gemendo no meu ouvido me fazendo
considerar desamarrar a parte de baixo do seu biquíni cinza. — O italiano
que eu conheci não era tão doce.
— Ah, não? O que ele falaria? — perguntei, brincando com as tiras,
tão próximo de mandar qualquer pudor para o inferno e me enterrar nela no
meio da piscina. — O que ele falaria, Alana?
Ela sempre ficava muda quando via que tinha provocado demais, a voz
sumindo e o coração acelerando em antecipação.
— Nico...
— Se não parar de me provocar — comecei, sorrindo ao sentir as mãos
agarrando meus cabelos, os seios pequenos enrijecendo contra meus dedos.
— Todos vão ouvir quando eu te debruçar na borda e te...
— Chefe? — Grunhi ao escutar a voz de Matteo, o segurança na porta
anunciando visitas que não esperava para aquela tarde. — Souza está
esperando na entrada.
— Por que Mantovanni não atende? — reclamei, minha mulher
provando ser o que eu sempre a chamava em pensamento ao não me dar
trégua nem no meio de uma conversa.
— Ele está com Matarazzo na linha. — Às vezes, eu odiava Lorenzo.
Bufei, me livrando de Alana a contragosto, tentando pensar no que
poderia ser importante o suficiente para me colocar longe dela.
A única coisa que me tranquilizava era a impossibilidade de ser
Vincenzo, por mais que aquela fosse a escolha mais segura para a mulher
que queria me deixar ir tanto quanto eu queria sair da piscina. Não confiava
em tê-la perto de nenhum dos homens com quem trabalhava, e me
inquietava ter Alana sozinha com mais pessoas na casa.
A voz de Mantovanni gritava na minha cabeça, e eu me forçava a
acreditar que aquilo não era intuição, mas paranoia.
— Se enrole numa toalha e fique aqui — mandei, Alana franzindo a
testa e já se preparando para responder. — Fique, dolcezza. Pega a toalha.
Pareceu sorte ela resolver por obedecer ao que eu pedia, apenas me
dando um bico em protesto.
— Vai sair desse jeito? — Escutei já fora da piscina, Alana rindo ao
ver a sunga não escondendo o que estávamos prestes a fazer.
— Essa piscina deveria ser mais gelada.
Vesti a bermuda abandonada sobre a espreguiçadeira e fui para dentro
da casa, Matteo já de pé ao lado de dois homens que não me eram
estranhos.
Os contratados não faziam parte da Famiglia, o que me deixava ainda
mais ansioso ao ter Alana nos fundos da mansão. Os brasileiros com os
quais trabalhava não eram conhecidos pela gentileza ou pela noção, o
respeito mais do que ausente quando se tratava de mulheres. Souza estava
entre eles, e já imaginava qual assunto seria tratado.
— Não estava esperando ninguém — reclamei, cruzando os braços e
estreitando os olhos.
— Desculpe interromper, senhor DeLucca. — Quem respondeu foi o
mais velho, minha atenção focando nele. Já sabia o que viria, o único
objetivo dos homens à minha frente sendo o de encontrar o que eu buscava
desde que me associei a Matarazzo. — Nós temos informações sobre a
mulher que procura.
A conversa seria demorada, e eu precisava acabar com aquilo o mais
rápido possível. Ah, minha inexistente sorte.
— Comece — mandei, notando Matteo voltar para a entrada da
mansão, o homem mais baixo encostando-se contra a escada que dava para
o andar superior. — E seja rápido. Estou ocupado.
— A senhora Barbosa estava na Itália no dia em que a filha morreu. —
Respirei fundo, me contendo para não reclamar que já sabia daquele detalhe
sobre o dia da morte de Catarina. — Achamos uma pessoa que a viu
segurando um bebê na tarde do assassinato.
— E como isso me ajuda? Barbosa está morta — apontei, não
escondendo minha impaciência. — Está morta, e qualquer um pode falar
sem provas. Onde estão? — O olhar confuso não me ajudava a manter a
calma. — As provas! Eu contratei imbecis?
— Senhor DeLucca, se posso interromper. — Era Souza, ele não
podia, e eu sabia que o assunto demoraria mais do que alguns minutos. —
Talvez seja melhor nos sentarmos para continuar a conversa.
— Por que não falou com Mantovanni? — Voltei a olhar para a
piscina, por um momento aliviado ao vê-la seguindo uma ordem à risca pela
primeira vez, Alana enrolada na toalha.
— Porque o senhor pediu para nunca ser deixado de fora. — Bufei: era
verdade, as férias das minhas responsabilidades que andava me dando com
quem dividia um quarto me tornando um puttano esquecido.
— Ok, vamos para o escritório — mais lamentei do que disse,
arrumando para trás os cabelos úmidos e alcançando a camiseta que Alana
havia me feito largar no corrimão.
Talvez ter aqueles homens ali, no fim, fosse muito melhor do que
encarar quem eu chamava de chefe.
— Quem é a pessoa? Temos a localização?
— Sim. Ela trabalhava numa empresa ilegal de adoções — Souza disse
quando começamos a caminhar para a porta à esquerda, eu virando a
maçaneta e me virando para onde estavam os outros dois. — Com tudo que
achamos, existe motivo para acreditar que a criança foi adotada aqui no
Brasil.
Parei de escutá-lo assim que contei apenas um, o moreno que estava
antes na escada tendo desaparecido. Queria desacreditar que qualquer um
seria idiota o suficiente para tornar justo o que eu não queria verdade, mas o
grito agudo que veio do lado de fora provava o contrário. O barulho de
alguém caindo na água veio quando saí pela porta de correr, e alcançar a
arma escondida embaixo da mesa da área externa foi puro instinto.
Destravá-la e apontá-la para a cabeça da pessoa que tentava sair da piscina,
também.
Eu estava tão próximo de puxar o gatilho.
— O que fez para minha mulher gritar? — Tão, tão próximo, o cano
em poucos segundos alcançando a testa molhada.
O homem estava tendo um problema tão grande para falar quanto eu
estava para controlar meu temperamento.
— E-eu não sabia que era sua mulher! Eu juro!
Aquelas seriam suas últimas respirações, eu tinha certeza.
— Ele te tocou? — perguntei sério, meus olhos não deixando os
verdes arregalados do homem que estava para matar. Ela só precisava
responder que sim. — Alana, ele te tocou? — Seria apenas um stronzo[54] a
menos no mundo.
Ela fungou antes de responder, meu dedo apertando mais o gatilho ao
ouvir o som.
— Não aconteceu nada Nickolay, pelo amor de Deus, abaixa a arma!
O alívio nos olhos verdes foi automático, por mais que eu não
acreditasse nas palavras ditas. O cano continuava pressionado na testa
pálida, mas eu já estava prestes a travar a pistola. O teria feito, não tivesse
olhado para onde Alana estava.
A ver sem a parte de cima do biquíni, o tecido junto da toalha
flutuando na água cristalina, seus braços mal cobriam os seios, me fez não
ter mais dúvidas do que deveria ser feito. O medo voltou para o homem
assim que ele entendeu o que aconteceria.
— Nico, no! — Foi a voz de Lorenzo que me impediu de atirar, ele
jogando uma toalha seca para Alana antes de ir para meu lado. — Ele não
sabia, eles se conhecem! Eu já te falei para deixar isso claro, Nickolay!
Foi a mão dele, o único que se atrevia a chegar perto de mim em
momentos como aquele, que afastou o cano da testa marcada. Praticamente
jogou o homem para longe de mim antes de chamar Matteo, o segurança
aparecendo em segundos.
Recuei, tentando recuperar alguma calma, guardando a arma travada
no cós da bermuda. Nunca deveria ter saído de perto dela, e só quando me
virei para Alana que entendi o tamanho da merda que tinha acontecido.
Porque os olhos assustados nunca haviam me visto reagir daquela forma,
por mais natural que tivesse sido fazer aquilo na frente dela.
E porque reagir daquela forma queria dizer somente uma coisa: a
mulher que presenciava a cena sabia de tudo, e era de confiança.
Praticamente da Famiglia. Olhava para os três homens que desapareciam
para dentro da casa, e me perguntava se precisaria matá-los para evitar que
aquilo chegasse em quem não devia. Eu os mataria para protegê-la sem
pensar, se ao menos o sumiço deles não fosse gerar tantas perguntas.
Cazzo. O gosto amargo tomava conta da minha boca, e me virei com
pesar para a mulher que amarrava a parte de cima do biquíni. As mãos
tremiam, o nervosismo a impedindo de dar um nó nas tiras, ajudá-la sendo
automático.
Ela recuar do meu toque queimou mais que uma bala no peito, as
palavras de Lorenzo voltando para minha cabeça. Como Alana conhecia um
homem que nos ajudava a esconder corpos?
E a ficha dentro do armário voltava para minha mente, a mulher e sua
lista tão longa quanto a que eu tinha de pessoas que haviam aquecido sua
cama me fazendo ver vermelho.
— Quem era? — O único jeito dela conhecê-lo era aquele, e eu
reconsiderei deixar o homem sair ileso. Eu tinha ótimas desculpas para
eliminá-lo. — Por que ele te tocou assim?
— É sério que você tá me perguntando isso? — Alana recuou da
minha mão como se fosse fogo. — Não, Nickolay! Por que você tem armas
escondidas pela casa?
— Alana...
— Você mata pessoas? — ela questionou, por mais que já tivesse uma
boa resposta após presenciar minha reação. — Eu te vi quase puxando o
gatilho, Nico!
Sim, ela tinha visto, e eu deveria tê-lo feito. Esfreguei os olhos,
respirando fundo antes de soltar a pergunta.
— O quão errado seria matar o traficante que tentou te estuprar
naquela sexta?
A escutar puxar o ar me vez voltar a encará-la, e ali estava o
sentimento que ela tanto lutava para esconder. Os olhos mel mostravam
medo, e não ter certeza da origem do sentimento me angustiava além do
meu confortável.
— Sempre existe outro jeito.
Alana escapar novamente do meu toque e se enrolar na toalha me fez
lembrar da conversa tida no começo daquela manhã. Novamente me
enganei dizendo que ainda tinha tempo, que ainda podia contar tudo e
deixá-la escolher entre ficar e partir, por mais que eu não a quisesse
distante.
— Eu não quero mais fingir, Nico. — E ali estava o fim da nossa farsa.
— O que você faz?
O barulho do celular vibrando sobre a mesa de vidro prendeu nossa
atenção, eu alcançando o aparelho parecendo encurtar ainda mais a
paciência dela. Claro que a tela me mostraria justamente o número que eu
não queria ver agora, e minha mente montava os últimos acontecimentos
como um quebra cabeça.
— Preciso atender essa ligação.
Ainda haveria chance de eu me livrar do que estava acontecendo,
tivesse Alana deixado o aparelho na minha mão. Já deveria ter aprendido o
quão arisca ela ficava quando assustada, o quanto não se sentir no controle
despertava seu pior temperamento.
Alana era tão como eu.
— Não, você vai me responder! — Ela também era uma das únicas
que me desafiava, se atrevendo a me contrariar mesmo depois de me ver
quase matar um homem. — Me fala logo que merda você faz! Eu quero
ouvir!
— Alana, me dê meu telefone. — Tentei, numa voz calma.
Deveria tê-lo arrancado de suas mãos.
— Ele está ocupado — Alana atendeu de forma áspera. E então,
desligou na cara de Matarazzo.
E fazendo aquilo, sabia que a mulher tinha acabado de desligar todas
as chances que eu tinha de poder deixá-la fora da minha vida. Porque só
havia duas possibilidades, e eliminá-la era algo completamente fora de
questão.
O amor não nascia numa prisão, e por mais que eu me sentisse
emocionalmente burro quando o assunto era relacionamentos, tinha noção
de que ambas as partes precisavam do sentimento para um dar certo. Saber
que eu tinha acabado com qualquer chance nossa doía tanto quanto a
lembrança de todos os dias ruins ao lado da minha antiga esposa.
— Está louca? Pare de se comportar assim! — E o telefone voltou a
tocar, Alana recuando quando tentei alcançá-lo.
— Eu preciso de alguma coisa, Nickolay! Essa normalidade que você
insiste em buscar comigo...
— O telefone, Alana! — Ela insistia em afastá-lo das minhas mãos,
mostrando toda a coragem que tinha ao me enfrentar.
— Isso não tá mais funcionando pra mim! — Eu não deveria
incentivar essa coragem.
— Me dá o telefone, agora!
Eu, também, não deveria me surpreender com ela jogando o aparelho
no fundo da piscina, mas já havia concluído que essa mulher teria tal poder
sobre mim até o final dos meus dias. A última vez que havia lidado com
tanta desobediência tinha sido com Giovanna.
— Vai buscar.
Mas era diferente. Enquanto eu literalmente obedecia a seu último
comando, recuperando o aparelho e agradecendo por ter escolhido um
modelo à prova d'água, escutava uma porta bater. Giovanna me enfrentando
era fria como a água da qual saía.
Alana sempre queimava.
E desejava mais do que tudo que continuasse queimando. Justo eu, um
ateu, pedia a qualquer Deus para deixar o fogo vivo, mesmo depois de todas
as informações que precisaria oferecer à mulher que ouvia ir embora da
mansão. Rezava para que o fogo continuasse apenas nos momentos que
precisava dele, e não em todos, assim que descobrisse haver apenas uma
opção a ser seguida.
— Isso não vai se repetir — prometi ao atender o telefone, não
conseguindo pensar em nenhuma desculpa para a voz feminina que o tinha
destratado minutos atrás.
— Posso saber por que ignorou seis ligações, figlio? — Matarazzo
perguntava numa voz séria, e eu já sabia que estava fodido.
— Porque jogaram meu celular na piscina. — Não ter uma desculpa
para a demora fazia minhas mãos suarem frio, eu já querendo meu calor
ambulante de volta.
— Os homens que expulsou da tua casa, ou a tua puttana? — Ele riu,
mas para mim não havia graça no som, quanto mais na forma que o Don
insistia em se referir a única mulher que eu queria. — Bem, eu tenho que,
no mínimo, respeitar a coragem que existe nela. Sempre gostou das difíceis,
Nico.
A bronca de Lorenzo veio assim que finalizei a ligação, o homem me
esperando encostado na porta de vidro.
— Eu te avisei, Nickolay. — Ele sacudiu a cabeça em desaprovação.
— Olha bem a mulher que tem! Por que nunca me escuta?
Engoli, mas a bola na minha garganta não dissolvia. Odiava ter aquela
reação relacionada a quem só queria associar a minha paz, e me sentia um
imbecil por ter, mais uma vez, decidido ignorar as palavras do homem que
eu sabia querer só ajudar.
Ainda lembrava de todas as vezes que havia desprezado seus
conselhos, eu novamente me fodendo por fazê-lo. Quem eu ainda me
negava a chamar de pai reconheceu meu cansaço e todas as memórias que
vieram, e o sermão se limitou a cara irritada, ele me ordenando para dentro.
A tarde foi muito mais longa do que gostaria, a tarefa de focar nas
novas descobertas ao invés de Alana beirando o impossível. Descobri que
sim, as informações de mais cedo checavam, e a agora mulher que
procurávamos estava, em teoria, viva. Mas não havia muito além disso, e
não haveria antes de ter qualquer conversa com a ex-funcionária.
Cazzo. O quão difícil poderia ser achar uma mulher de vinte e quatro
anos naquele país? Talvez eu até conseguisse antes do fim da minha vida,
sendo otimista ao pensar que passaria dos quarenta.
Foi com o mesmo otimismo que bati na porta de Alana naquela noite.
Não foi ela quem respondeu.
— Sim? — A garota que me recebia tinha uma cara de poucos amigos
que se igualava à minha.
— Onde ela está?
— A Lana não quer falar com você.
Bufei, copiando sua mania irritante de revirar os olhos. Ela realmente
conseguia se portar como uma pirralha mimada, por mais que nunca mais
fosse usar tais palavras.
Quis dizer aquilo em voz alta quando reparei no que ambos havíamos
esquecido de fazer.
— Incredibile[55]! Voltou para o apartamento, mas ainda não trocou as
fechaduras! — Pincei o nariz: Alana iria me deixar louco. — Só são as
duas?
— Te interessa? — E tinha amigas que pareciam querer ajudar na
causa. — Acredite, nós sabemos nos defender.
Não precisei me esforçar para escancarar a porta e entrar, quem eu
tanto queria ver permanecendo com os olhos grudados na televisão
enquanto esparramada no sofá. A amiga me olhava com uma irritação que
competia com a da minha mulher, dando a entender ser tão difícil de lidar
quanto.
— Estou vendo como consegue. — Mas não iria insistir. — Diga para
Alana me ligar se precisar de qualquer coisa — falei, alto o suficiente para
quem vestia uma camiseta que não era minha, depois de tantas noites
deixando o cheiro na minha cama, ouvir. — Boa noite, senhorita Amaral.
Fechei a porta atrás de mim, mas só andei após ouvi-la sendo trancada.
Filha da mãe.
“Vá para um hotel. Reservo um quarto para as duas.”
Sabia qual seria a resposta antes de clicar em enviar.
“Não.”
Mas ainda assim, continuei.
“Te mando o endereço em 1 minuto.”
“NÃO VOU, NICKOLAY.”
Suspirei, aceitando que passar a noite no carro seria mais fácil do que
lidar com Alana.
“Por que é tão teimosa?”
Fechei a porta, trancando a Mercedes e ligando o ar-condicionado. Ela
não tinha respondido.
“Quando vai trocar o cazzo da fechadura?”
Tirei o laptop do fundo falso que havia no banco do motorista, me
perguntando o quanto conseguiria ficar de olhos abertos antes de desistir. O
dia havia me drenado, a vontade de dormir abraçado a ela me deixando com
o mesmo humor que tinha antes de conhecê-la.
O celular não vibrou mais.
E assim, conviver com Alana, antes assustadoramente fácil, começou a
deixar de ser.

Haviam sido ótimos dezesseis dias, o número sendo o presságio da


minha má sorte. Dezesseis dias de paz, dezesseis dias ao lado dele como se
nada existisse, a não ser nossa atípica vida normal. Odiava o número
dezesseis.
Era assustadoramente confortável estar com o italiano, e eu ainda
lembrava de como os começos poderiam ser bons. Também recordava bem
demais de como os começos acabavam, as máscaras caindo e as pessoas
mostrando seu verdadeiro eu.
A de Nickolay escorregou hoje, antes dele voltar a pregá-la no rosto.
Ele estava tão perto de puxar o gatilho, e eu já sabia que os sonhos da noite
não seriam gentis, mesmo dividindo o quarto com Djamila. Não teria como
eles serem, não depois dos minutos de inferno que passei na piscina.
Mila disse sim assim que falei que estava indo comprar bolo, e me
senti menos ridícula ao sair do carro de biquíni e enrolada numa toalha.
Tinha certeza de que Carlos havia tido algumas longas conversas com
minha amiga, o jeito que ela me tratava sendo muito menos seco do que
semanas atrás.
Ela estava tentando, e eu também, por mais que não parecesse. Era um
esforço gigantesco, afinal, socializar, quando tudo que eu mais queria era
me afogar na garrafa de vodca guardada no congelador. Djamila me falava
sobre as últimas fofocas da sua família tão normal, e a ouvia com um
sorriso e um pouco de inveja, eu também querendo ter aqueles assuntos
para dividir.
Nem andava vendo direito a minha, e me doía o coração saber que
estava perdendo os primeiros meses da sobrinha que tanto quis conhecer.
Segurar Isabella era maravilhoso e machucava, e eu sabia que o melhor a
ser feito era tratá-los com distância.
Então eu o fazia, e me deixava ter apenas Nickolay para discutir.
Porque era seguro discutir sobre Nickolay, ele sendo capaz demais de se
defender — e me defender — sozinho.
— Nico é complicado. — falei com um suspiro, acabando com um
copo de Coca-Cola, me orgulhando por deixar a garrafa de vinho toda para
ela.
O som insistente da mão batendo na porta havia interrompido a melhor
parte da conversa, e eu queria ter escutado o fim da história sobre o
encontro romântico da avó materna de Djamila, ao invés de ter me forçado
a ficar quieta enquanto ouvia a voz dele. Era difícil ficar parada com Nico
tão perto, do mesmo jeito que era admitir ele não ser mais apenas alguém
que poderia me proteger dos meus demônios.
Decidir chamar Mila para dividir uma noite tinha sido impulsivo.
Contar quase tudo que havia acontecido nos últimos dias, além do que
imaginava que conseguiria fazer. Mas o fiz, omitindo qualquer palavra que
pudesse prejudicar algum dos lados, contando sobre as partes que Carlos
soube no sábado da festa e a tarde de hoje.
Deixando apenas o fato daquela ser a primeira em dezesseis noites que
passava em meu apartamento, minha melhor amiga tinha uma opinião bem
forte — e provavelmente correta — sobre o homem com o qual estava
dividindo uma cama.
— Complicado é eufemismo pra traficante? — Era tão óbvio assim?
— Ele não é um traficante, Mi. — E eu quase ri da minha negação:
nem eu andava mais acreditando nas minhas palavras.
Sim, Nickolay se limitou a contar que cuidava dos negócios da família,
em uma de nossas primeiras conversas agradáveis. Então passar os dias
descobrindo restaurantes e novas formas de me fazer gemer seu nome era
aceitável, o homem me dando a entender não ter nenhum horário fixo de
trabalho.
— Quer dizer que ele não vende drogas? — Encolhi os ombros, por
um momento feliz de não fazer ideia da resposta para aquela pergunta.
Ele poderia não vender drogas, mas não conhecia muitos homens
corretos que sabiam manusear armas como Nickolay. Não conhecia homens
estáveis que sabiam bater como Nickolay. E definitivamente, não conhecia
ninguém bom que tiraria uma vida sem hesitar e depois voltaria a ler as
notícias do dia.
Nickolay era bom comigo, mas estava longe de ser um homem normal.
A situação passada naquela tarde parecia corriqueira demais para ele, e me
angustiava estar cada vez mais perto de acabar com todas as dúvidas que
tinha em relação ao italiano.
Me angustiava também eu ter considerado, mesmo que só por um
momento, dar a resposta que o faria atirar.
— Eu não sei o que ele faz. — Talvez devesse ter deixado as armas de
fora da nossa conversa.
Peguei mais um pedaço de bolo, precisando ocupar a boca para não ir
até a sacada fumar um cigarro. Djamila já estava gastando o tempo dela
comigo em plena quinta, poderia muito bem me manter distante do vício
que ela detestava.
— O cara tá lá embaixo ainda. — Ela, no entanto, não ficou longe da
janela. — E parece que vai dormir no carro.
Brinquei com a cobertura de brigadeiro no prato, me perguntando se a
proximidade seria o suficiente para me confortar quando deitasse a cabeça
no travesseiro. Por mais quanto tempo conseguiríamos manter aquela farsa?
Até Djamila já sabia sobre o que eu me negava a admitir.
— Deixa dormir — disse, ainda tentando me agarrar no um por cento
de chance de Nickolay ser diferente, apesar da sua letalidade.
— Pipoca, desculpa te perguntar isso. — Mila virou para mim,
fechando a janela da sala. — Mas não tem perigo a gente dormindo no seu
apartamento, tem?
Pelo menos as batidas ainda não haviam começado, elas se mantendo
distantes desde a noite em que o italiano me tirou do meio do corredor.
— Com ele lá embaixo, não tem. — Ao menos daquilo eu tinha
certeza.

— Passou uma semana inteira sem dar notícias. A faculdade anda


cansativa? — E eu não sabia se a doutora Paula falava sério, ou se a
pergunta era puro deboche.
Se viesse de mim, seria a segunda alternativa. Eu só fazia faculdade, e
ela sabia bem daquilo. Só fazer faculdade não era cansativo. Eram as coisas
das quais ela não sabia que consumiam minha força, todo dia um pouco
mais.
— Como eu sei se o que eu tenho com Nickolay é — Bom. Certo.
Necessário. — Saudável?
— Estar duvidando já me conta que algo não vai bem.
Suspirei, me afundando no sofá, a primeira sessão em que eu ligava
zero para qualquer linguagem corporal. Não era como se ainda tivesse
esperança de ganhar algum remédio, assim como sabia não precisar deles
com os braços tatuados ao meu redor.
Eu só precisava voltar para eles.
— Você gosta do Nickolay, Alana?
— Estar com ele é confortável. — Até demais. Por mais que ele quase
tenha estourado os miolos de um homem na minha frente.
Homem que havia desfeito o nó da parte de cima de meu biquíni, e
caído com ela assim que revidei quando fui tocada no braço. Era o que
Nickolay sabia, era o que qualquer um teria visto pelo vidro, do lado de
dentro. Não era o bastante para precisar matá-lo, meu lado racional gritava.
No entanto, meu emocional falido só conseguia ver mais segurança ao
ser defendida daquele jeito. Eu nem mesmo sabia o porquê de ter saído
correndo como fiz. Foi por causa dos gritos? Por quase ter visto alguém
perder a vida?
— Mas?
Talvez eu deveria tê-lo deixado terminar com aquilo. Eu lembrava
daquele homem, e ele recordava bem demais quem eu era.
Monstro, meu cérebro novamente insistia na palavra.
— Tenho medo de estar indo rápido demais — confessei, já sabendo
que ir rápido demais era o que eu estava fazendo. Eu tinha, afinal, uma mala
cheia de roupas na casa de um homem que conhecia havia menos de dois
meses.
— Nickolay te força a ir rápido?
— Não — respondi sincera, o contrário soando muito mais verdadeiro.
Eu havia pedido pelo endereço dele, eu havia pendurado minhas roupas, eu
o levei para conhecer meus pais.
Ele, também, não parecia se opor a nada daquilo, abraçando todas as
decisões que eu tomava por nós dois com um sorriso.
— Ele te pressiona a algo que você não está pronta para fazer? — Fiz
que não com a cabeça. — Ele é perfeito demais?
— Longe disso. — E eu ri, Paula me deixando ver surpresa em seu
olhar antes de voltar a usar uma expressão mais neutra. — Nickolay me
deixa ver bem demais os seus defeitos. — Só que até seus pontos negativos
conseguiam ser qualidades para mim.
— E quais defeitos são esses?
— Ele é grosso e cabeça-dura quando quer. Superprotetor. — Tinha
armas, sabia bater, quase matou um homem na minha frente.
Com certeza matou um quando eu não estava olhando. Devia ter
matado vários na vida, as tatuagens me contando em imagens a história que
eu não queria ler.
— Violento? — Outra vez fiz que não.
Mas Nickolay era violento, só não comigo.
Thobias também não era no começo. Ele ter sido no fim era o que me
fazia estar ali naquela tarde.
— Como eu posso saber se ele vai ser? — Paula demorou para me
entender, me obrigando a continuar. — Violento?
Ela pareceu considerar por um momento antes de responder.
— É difícil identificar isso, Alana. Vocês estão faz pouquíssimo tempo
juntos, e eu não tenho como opinar com o que você está me contando. — E
eu não poderia contar mais nada, então por favor, arranje uma resposta com
o que posso te dar.
— Me fala no geral. O que eu deveria olhar, no geral? — Esperava não
parecer tão desesperada quanto me ouvia soar. — Pra saber se devo ou não
sair correndo?
Graças a Deus por aquela médica não ser uma conhecida de minha
mãe. Porque eu acabava de admitir para minha psicóloga — dava para ver
nos olhos calmos que ela sabia — algo que nem mesmo Djamila
desconfiava.
— Thobias era violento com você?
Não era a resposta para o que eu tinha perguntado. Mas ouvindo pela
primeira vez a pergunta, não consegui mais negar nem para mim, nem para
quem deveria me ajudar com aquilo.
— Sim.

Era oficial: terapia não me ajudava. Saí do consultório apenas mais


angustiada, o celular quieto desde o começo da manhã. Não que esperasse
qualquer mensagem quando nem mesmo havia respondido as duas últimas.
Eram seis da tarde, a pior hora para se dirigir em São Paulo, e eu
cantava junto de Norah Jones que mais um longo dia tinha terminado.
Minha voz não passava nem perto da dele, querê-lo ao meu lado parecendo
errado depois de ontem, mas sendo a coisa mais certa que tinha na vida.
Deveria colocá-lo contra a parede e falar das armas, ao invés de querer
silenciá-lo do jeito que ele amava. Deveria perguntar em quantos negócios
ilegais estava metido, e não deixar meu coração acelerar de um jeito bom
quando a caveira tocava meus cabelos. Deveria sair correndo de tudo. O
italiano, ao fazer um homem tão forte quanto ele temer pela vida, parecia a
própria morte. Qualquer pessoa sã correria da morte.
Eu estava apaixonada por ela. E perceber aquilo, no meio da avenida
Sumaré, fez meu estômago gelar e minhas mãos suarem frio.
O celular preso no suporte do carro vibrou, mostrando uma mensagem
na parte de cima da tela bem quando pensei em ligar para o número que
queria que tocasse.
“To indo pro seu apartamento com tudo que você gosta, pequena.”
Mesmo não sendo dele, sorri com a mensagem, a lentidão me deixando
digitar sem problemas.
“Ok feioso, se o trânsito não piorar mais, chego em 20.”
Lucas já me esperava na frente do prédio quando entrei na garagem,
segurando duas sacolas de papelão cheias das melhores — conhecendo bem
o irmão que tinha — besteiras.
Ele escondeu a seriedade que usava ao responder alguém no celular
quando me viu, meu irmão não precisando falar nada antes de eu saber que
a visita tinha dedo de mamãe. Manter meu conhecimento só para mim era o
melhor a ser feito, e me pendurei no seu pescoço quando ele passou pelo
portão, tentando não pensar nos motivos que dona Astrid tinha agora para
mandar o filho mais velho visitar a caçula.
— Como que é esse cara, mini? — escutei quando chegamos na frente
do elevador, e ali estava o motivo. Revirei os olhos pelo apelido, alguém
que não chegava nem perto da altura de Nickolay insistindo em caçoar dos
meus um e sessenta e quatro sendo ridículo.
— Ele é bem gato — provoquei, apertando o botão no painel do
elevador, e foi a vez do Lucas revirar os olhos. — Nickolay é irritante,
grosso, e me trata bem melhor do que eu o trato. — Fui sincera.
Meu irmão balançou a cabeça.
— Esse cara sabe o problema que arranjou? — Dei um tapa no braço
fino, fingindo indignação e colocando uma mão no peito.
— Você tinha que perguntar o contrário, eu sou sua irmã!
— Mamãe gostou dele, sabia? — Levantei as sobrancelhas.
Não imaginava que a dona Astrid pudesse gostar de qualquer um que
trouxesse para dentro de casa.
— Ela está brava por eu ter vindo aqui perguntar dele pra você. Disse
pra deixar a filhinha dela em paz, que você finalmente tinha arranjado
alguém decente e não queria o mais velho estragando as coisas. — E eu abri
a boca, sem palavras. — É, a surpresa é mútua.
O elevador abriu antes de eu conseguir responder. Senti o coração
quase parar ao ver dois homens na frente do meu apartamento, não
escondendo a tempo o sorriso que saiu quando reconheci o mais alto.
A porta estava aberta, e deu para ver que quem acompanhava Nickolay
trocava minha fechadura, eu não sabendo se agradecia ou o matava por
fazer aquilo por mim sem nem avisar. Era nítido como os olhos escuros
ficavam mais suaves ao me ver, indo curiosos para o homem ao meu lado.
Antes que pudesse torturá-lo de curiosidade, Lucas se colocou entre
nós.
— Esse é seu Nico? — Eu não saber ficar de boca fechada, com
certeza, era um traço adquirido dele e sua enorme boca.
— Ele não é meu...
— Cara, prazer! — E meu irmão estendia a mão para o italiano,
Nickolay a apertando com a que estampava sua caveira. — Lucas! Eu não
consegui ir no almoço de sábado. Tatuagens fortes as que você tem, hein?
Deve ser igual pra aguentar essa aí.
Revirei os olhos. Claro que meu irmão iria querer se tornar o melhor
amigo do homem que tinha uma cara tão fechada quanto as pinturas que
carregava na pele.
— Aconteceu alguma coisa com a porta, nano? — E ele não parava
com os apelidos, e eu esperava que Nickolay não se atrevesse a abrir a boca
para copiá-los. Até mamãe era mais alta que eu, e ser minoria naquela
família era ridículo.
— A fechadura estava emperrando. Sua irmã quase ficou do lado de
fora ontem à noite. — Escutei meu namorado responder, e qualquer um
teria acreditado nele.
Lucas acreditou.
— Você mal entra pra família e Alana já tá te dando trabalho?
— Eu não me importo. — E Nickolay soou tão sincero, que me senti
mal por ter saído batendo a porta na tarde anterior.
Como me apaixonei por alguém que deveria ser apenas minha
salvação?
Tirei a carteira na bolsa, pronta para perguntar quanto havia sido o
serviço quando senti sua mão na minha. O arrepio que veio não era um de
medo, e detestei meu corpo por se render fácil demais a ele.
— Já está pago.
Eu deveria dizer obrigada, mas minha boca se abria para reclamar.
Lucas me conhecia bem demais, meu irmão já imaginando o que estava na
ponta da minha língua.
— Agradece, Nana! Ele não precisa pagar suas coisas, não era nem pra
tá trocando sua fechadura!
A mão se afastou, Nickolay agradecendo o chaveiro antes dele sumir
pelo elevador enquanto meu irmão se fazia em casa. Encostada no batente,
o via desempacotar o jantar, e precisava me controlar para não me jogar
contra o cheiro que ansiava sentir desde que fechei os olhos noite passada.
Virei o corpo para o italiano, ele me encarando com o mesmo meio
sorriso que me deu durante nossas duas últimas semanas juntos. Nico com
certeza sabia o problema que tinha arranjado ao me escolher, visto nosso
começo. O que o fazia ficar com uma mulher como eu?
— Obrigada — agradeci, toda minha braveza indo embora ao achar os
olhos escuros, a mão grande, ao invés de me tocar, me entregando as novas
chaves. — Por que essa é diferente? — Ergui a dourada, presente em
apenas um dos molhos.
— Porque é a minha. Para entrar quando quiser, por mais que sempre
tenha alguém para abrir a porta. — O gesto me deixou sem palavras.
Ele estava me dando uma chave. A chave da mansão onde eu estava
praticamente vivendo.
— Quem disse que quero voltar lá? — Eu realmente não sabia ser fácil
e cruzei os braços, Nickolay me olhando com uma expressão sofrida.
— Volte para pegar o que deixou. — A mão estava outra vez em mim,
os dedos traçando meu braço, meu ombro, até chegarem na minha bochecha
e serem substituídos por seus lábios. — Volta, Alana. — Ele cheirava a
nicotina, o vício que só andava sendo consumido nos maus dias me
mostrando que aquele não tinha sido um bom. — Fica.
Mas a boca, mesmo tão perto, não beijava a minha.
— Me pedir algo assim é tão injusto quanto eu te perguntar as coisas
em cima de você.
Nickolay virou o rosto ao dar uma risada nervosa, mania que sempre
acontecia quando eu conseguia deixá-lo sem palavras. Adorava ver aquilo,
e assim fácil, eu respondia que ficava ao descruzar os braços.
— Acho que temos o suficiente pra três, não temos? — Veio da sala, o
cheiro de hambúrguer e batata frita já tomando conta do ambiente.
— Nós temos.
Ele sabia se portar bem demais na frente dos membros da minha
família, e precisava admitir que eu adorava ver aquela parte dele. Mesmo
mantendo uma expressão mais dura do que quando sozinho comigo, o
italiano aparentava ser um homem normal conversando com meu irmão,
Lucas virando seu novo fã ao me ver tão confortável ao lado dele.
Com certeza falaria ainda mais bem dele para mamãe, os dois
descendo juntos, meu dito namorado tentando se passar por bom moço ao
me deixar sozinha no apartamento.
Da sacada, eu esperava a Mercedes voltar para a vaga que havia na
frente do edifício. Nickolay nem mesmo precisava mais interfonar, eu o
vendo entrar pelo portão e, minutos depois, o ouvindo bater na minha porta.
Daquela batida, eu gostava.
Ao mesmo tempo em que minha birra me fazia não querer atender, eu
ansiava pela boca que não achou a minha durante toda a noite. Dormir nos
braços dele nunca me traria qualquer pesadelo, os de ontem tendo deixado
meus olhos abertos mesmo com Mila ao meu lado.
— Te assustei ontem de tarde, dolcezza? — ele perguntou, a testa
encostada na madeira escura, os dedos pegando uma mecha dos meus
cabelos pela fresta que deixava aberta.
— Você não me assusta. — Precisei me segurar para não fazer o
mesmo, ainda mais quando o toque progrediu dos meus fios para a curva do
meu seio. — Eu tenho aula amanhã.
Quase reclamei quando ele afastou a mão.
— Só vim testar a fechadura. — Claro. — Posso testar do lado de
dentro?
Suspirei. Quem eu tentava enganar?
Abri o resto da porta, me afastando para ele entrar.
— Se correr toda vez que brigamos, isso não vai dar certo, Alana —
ele começou, ainda apoiado no batente, os olhos aparentando cansaço. Com
certeza uma noite no banco de motorista passava longe do confortável. — E
eu quero que dê.
Não consegui mais manter as mãos distantes e o puxei para dentro,
fechando a porta e me encostando contra ela.
— Eu também quero que dê. — E resolvi pela sinceridade. — O que
eu sinto por você é bom, Nico. É a primeira coisa boa que sinto em muito
tempo. E isso é assustador, e perigoso. — Respirei fundo. — Eu sei que
você também é. Não pensa que eu não imagino o que tem pra me dizer, o
que fica escondendo atrás desse discurso de normalidade. Você tem armas,
você tem seguranças, e eu vou usar a palavra capangas aqui porque não
faço ideia de como chamar os homens que vi ontem.
Ele ainda não me tocava, as mãos apoiadas na porta ao invés de em
mim, eu como sempre considerando implorar para tê-las na minha pele.
— E mesmo assim, quer continuar?
Tranquei e tirei a chave da fechadura, o puxando pela camisa.
— Essa é sua, por mais que eu vá voltar com você. — Ele dava o
sorriso que era reservado só para mim ao pegar o objeto de metal e colocar
no bolso, e simples assim, acabava de me derreter. — Disse que veio testar
a porta. Quer tentar abrir? — sussurrei no seu ouvido ao mesmo tempo em
que achei a fivela do seu cinto.
— Quero.
Ainda dava para sentir a nicotina na língua que devorava a minha. Às
vezes, achava que conseguiria gozar só pela intensidade que Nickolay usava
em seus beijos. Agradecia estar de saia e abria o zíper da sua calça social,
ele a abaixando apenas o suficiente para fazer aquilo funcionar. Minha
pressa parecia ter passado para ele, o italiano pressionando-se contra minha
mão quando o agarrei por cima da cueca.
— Abre a boca. — Dois dedos eram postos contra meus lábios, ele
puxando o ar quando obedeci a ordem e os chupei forte. Observá-lo perder
as palavras era tão bom quanto a mão que beliscava meu seio, minha língua
molhando os dedos do mesmo jeito que a dele fazia com meu pescoço.
Senti os mesmos dedos úmidos afastarem minha calcinha, nós dois
gemendo quando eles entraram com facilidade, os olhos escuros achando os
meus assim que o homem descobriu o quanto eu já estava molhada para ele.
O jeito cru que Nickolay mostrava precisar de nós sempre me
hipnotizava. A vontade que tinha em mim desde a tarde anterior voltava
com a mesma força que ele demonstrava possuir ao me levantar pelas
coxas, prendendo minhas pernas ao seu redor. O italiano ensaiava as
melhores estocadas comigo ainda de calcinha, sua boca me calando ao
voltar para a minha.
Adorava vê-lo sem palavras tanto quanto precisava ouvi-lo, Nickolay
só voltando a me dar sua voz ao sentir-se por inteiro dentro de mim. Era a
segunda vez que tirar qualquer peça de roupa tomaria mais tempo do que
estávamos dispostos a gastar, transar completamente vestidos sendo tão
excitante quanto vê-lo nos consumir nu.
Reconhecia o mesmo descontrole da manhã de sábado dividida no
chuveiro, ele me pressionando contra a porta enquanto testava nossa
resistência. Nickolay mostrava outra e outra vez o quão mais forte era
comparado a mim, eu tendo total consciência de que não conseguiria
escapar do seu aperto nem se quisesse.
Minha tensão não passou despercebida, mas felizmente foi mal
interpretada.
— Eu te seguro, dolcezza — ele sussurrou ofegante, as mãos firmes
nas minhas coxas me afirmando a mesma coisa. — Não precisa ter medo,
eu te seguro.
Envolvi seu pescoço com meus braços, achando seus lábios antes de
relaxar entre ele e a porta.
— Com você, eu não tenho. — E pela primeira vez, resolvi confiar
totalmente no homem que gritava perigo, me sentindo confortável mesmo
não tendo nenhum controle.
Era impossível sentir qualquer desconforto ouvindo sua voz rouca
gemer no meu ouvido. Adorava como ele parecia tão impossibilitado de se
calar quanto eu, o italiano nunca fazendo questão de esconder como
aproveitava sexo comigo.
Não era medo que havia no peito ao olhá-lo me dominar. Não havia
nada além de desejo ao senti-lo fundo, as mãos tatuadas mantendo minhas
coxas presas ao redor dele, os dedos apertando mais sempre que ele sentia
minhas unhas arranharem sua pele. As estocadas eram fortes e os lábios
urgentes, o homem me confirmando o quão perto estava ao explodir dentro
de mim quando me deixei gritar. Nickolay nunca era silencioso, meu prazer
sempre se prolongando ao escutá-lo ofegante falando indecências italianas.
— Você gozando é tão gostoso de ouvir — deixei escapar, ainda
entorpecida pelas sensações que aquele homem me causava.
A risada rouca veio quando uma voz gritou ser mais de onze da noite
para tanto barulho.
— Não sei se os vizinhos concordam. — Os vizinhos deveriam me
odiar, e eu não estava nem aí. — Acho que a tranca funciona. — Ele ainda
recuperava o fôlego, os cabelos úmidos, o suor escorrendo pela testa.
O meio sorriso que estava aprendendo a adorar apareceu, o italiano me
deixando descer devagar. Quase reclamei ao perder nossa conexão quando
Nickolay enfim soltou minhas pernas, meus pés tocando o chão, meus
braços ainda ao redor do seu pescoço. Precisávamos de um banho, e eu
muito o puxaria para debaixo do chuveiro.
— Me dá esse fim de semana — ele pediu, achando meus lábios antes
de fazer a proposta. — Um fim de semana sem perguntas, longe daqui, só
nós dois e o mar. — Tinha uma expressão doída em seu rosto quando
continuou. — E então, eu te conto tudo.
Eu queria tanto aquilo quanto ele parecia precisar.
— Só mais um, Nico — falei quando já estávamos debaixo da água.
— Só mais um — Nickolay respondeu enquanto copiávamos o feito da
porta no azulejo frio.
Foi a primeira vez que me perguntei o quanto realmente queria que
nossa normalidade acabasse.

Respirei fundo, o ar salgado invadindo minhas narinas, a maresia


grudando na pele. O relógio marcava dez da manhã de sábado, e da sacada,
eu observava o italiano ainda dormindo na cama, apenas coberto pelo lençol
branco.
Ele me esperando assim que saí da faculdade foi a melhor surpresa,
superando o motorista-segurança nos dirigindo até o aeroporto. Por mais
que eu desgostasse do mar, era impossível não gostar da praia que via, o
hotel onde estávamos hospedados no Arraial do Cabo sendo, sem dúvida, o
mais luxuoso que já havia visitado.
Nickolay era muito bom em fazer surpresas agradáveis.
Passamos toda a viagem, tarde e noite de sexta falando de amenidades
ou aproveitando o silêncio confortável, me recordando ao lado do italiano
de como um cérebro quieto e seguro fazia bem.
Ele me fazia bem.
Os olhos escuros se abriram preguiçosos quando voltei para dentro, o
ar-condicionado arrepiando minha pele, antes quente do sol.
— Ainda é cedo, italiano. — Voltei a me deitar, a cama convidativa
demais com ele nela. — Pode descansar mais um pouco.
— Descansar num quarto é algo impossível de se fazer contigo — ele
sussurrou no meu ouvido, as mãos indo para dentro do roupão que eu ainda
usava, os lábios beijando minha nuca.
Suspirei, seu corpo encostando no meu me mostrando o quão
verdadeiras eram aquelas palavras.
— Nico...
— Precisamos comer antes, eu sei. — E ele se afastou, um sorriso
vitorioso em seu rosto, o italiano tendo total conhecimento de como
conseguia me fazer derreter com tão pouco.
De pé, não fazendo questão nenhuma de se cobrir, Nickolay me
encarou como se eu fosse o café da manhã. O homem sabia que o ver assim
me fazia parar de pensar.
— Provocador! — E eu amava parar de pensar com ele.
Já na porta do banheiro, Nickolay se virou, sorrindo.
— Provocadores só provocam, dolcezza. Não é o que vai acontecer
depois da comida chegar.
Era engraçado descobrir como um homem tão complexo gostava das
coisas mais simples. Torrada com geleia de morango era uma das suas
comidas favoritas para acompanhar o café, e eu me perguntava o quão
pesado ele deveria malhar para continuar com aquele corpo, Nickolay sendo
abertamente fã de tudo que continha açúcar.
Ocupamos a mesa da sacada com mais do que conseguiríamos comer,
a praia de fundo se tornando agradável com ele, e me deixei sorrir. Dividir
momentos assim era mais relaxante do que poderia esperar. Era algo
totalmente diferente do que havia me acostumado, e estava se tornando tão
perigoso quanto o álcool com o qual tinha me viciado nos últimos meses.
— Com o que sonha, dolcezza? — E meu estômago gelou. Colocar o
dedo na boca era automático, eu já me perguntando o quanto poderia ter
falado durante o sono nas nossas madrugadas juntos.
Mas Nickolay queria saber sobre outro tipo de sonho, um tão difícil de
se falar quanto.
— Seu futuro — ele continuou depois de mastigar mais um pedaço de
torrada, e eu ocupei minhas mãos trêmulas descascando uma laranja. — O
que vê? O que pensa em fazer?
— Acho que prefiro falar sobre sua vida na Itália. — Reconheci o
olhar que ele reservava para assuntos que não queria discutir comigo. De
repente, passar geleia no pão se tornava muito mais interessante do que
manter os olhos nos meus. — Não pode me contar nada sobre isso também,
Nico?
Ele se ocupou mais do que o necessário em mastigar antes de
responder.
— Não é uma história bonita.
A minha também não era.
— Me fala sobre as partes boas — pedi, provando da laranja doce
antes de continuar. — Precisa ter alguma parte boa, italiano.
Nickolay só respondeu depois de eu terminar de comer a fruta inteira,
a voz uma sombra do que estava acostumada a ouvir.
— Nicolas. — A torrada precisando de café para ser engolida fez eu
me sentir a pior pessoa, insistindo em assuntos aparentemente proibidos
para aquele fim de semana. — Meu menino era a parte boa.
Quando nervosa, eu não sabia parar de falar.
— Você não tem mais contato com seu filho?
A voz saiu rouca, e eu mordi o lábio inferior para ficar quieta.
— No. — Foi tudo que ganhei antes dele levantar, largando a caneca
de café vazia na mesa.
Suspirei, tendo no peito a certeza de que ele me deixaria sozinha na
sacada, indo para qualquer canto que nos desse distância. Alana, você e sua
boca grande. Às vezes, parecia que nunca iria aprender a mantê-la fechada.
Nickolay decidiu pelo que eu não esperava. A mão tatuada me puxou
da cadeira, ele me segurando contra a parede pelas coxas da mesma forma
que fizera na última quinta-feira. A boca calava as minhas perguntas,
morango se misturando com laranja, o calor que vinha dele tentando
dissipar minha curiosidade.
— Você disse que precisava tomar café primeiro! — consegui falar
entre beijos, a atenção dele indo para meu pescoço e me tirando toda a
coerência.
— Já tomei o suficiente. — Agarrei seus cabelos quando senti a
mordida no ombro, as mãos me soltando e se livrando do meu roupão. —
Prometemos sem perguntas, dolcezza. — O sol e ele me aqueciam, e de
olhos fechados, o ouvi me cobrar antes da boca se ocupar com meu
pescoço. — Só dois dias, nós prometemos.
Nunca sabia como parávamos na cama, assim como não fazia ideia de
como consegui afastá-lo ao sentir a língua macia contornar meu seio.
Nickolay fazia meu corpo queimar, mas o barulho das ondas conseguia me
devolver um mínimo de foco.
— E quando a gente não puder mais resolver tudo com sexo? —
perguntei, por mais que até horas atrás, imaginava que o intuito da viagem
fosse somente ficar sem roupa.
— Ainda podemos?
Mas ele já havia desistido de me deixar sem palavras, soltando uma
longa respiração antes de encostar a testa na minha.
— Me ensina — começou, continuando ao me ver confusa. — A
resolver os nossos problemas, eu quero aprender. Já disse que nunca fiz
isso, dolcezza.
— Nunca resolveu problemas? — Duvidava muito daquilo.
— Nunca tive um relacionamento. — Abri a boca, mas absorver a
informação dita pela primeira vez em todas as palavras era engraçado, para
não dizer cruel.
Um homem que nunca teve um relacionamento, achando justo a
mulher que teve um que quase acabou com sua vida. Que parecia tirar um
pouco mais dela a cada dia. Como eu poderia ensinar qualquer coisa boa
para ele?
Afastei meu rosto da barba curta, deixando meus olhos se perderem
nas ondas que via estourarem pela porta de vidro.
— Eu costumava amar a faculdade que estou cursando. Agora, é tudo
— Doído. Complicado. — Cinza. — Arranjei forças para voltar a atenção
para seu rosto, sabendo tudo que ele poderia encontrar nos meus olhos. — É
difícil ver cor no que eu amava, mas você traz um pouco do colorido de
volta, Nico. Eu não estou pronta pra falar sobre isso, e tudo bem se você
também não estiver. Só responda que não está pronto.
Nickolay havia dito que falaria qualquer coisa comigo em cima dele.
Às vezes, odiava lembrar daquelas pequenas informações, do mesmo jeito
que era irritantemente bom o quanto ele sempre me dava tanta sinceridade.
Seus olhos foram das letras N e G tatuadas no interior do pulso
esquerdo para os meus, e era a primeira vez que o via tão próximo das
lágrimas. Já não queria mais a resposta, eu não sabendo que forçava dele
algo que machucava tanto.
Não, eu não estava preparada para a resposta, por mais que ela fizesse
total sentido.
— Giovanna e Nicolas estão mortos. — E como no dia em que ele
falou pela primeira vez sobre a mãe, eu quis passar todo o conforto que
conseguia ao italiano, minhas mãos achando o rosto sério, ele me puxando
para perto e afundando-se no meu pescoço. — E eu não estou pronto para
falar sobre isso.

Não insisti em mais nada a não ser escutá-lo gemer meu nome durante
o resto da manhã. O italiano não se opôs as minhas tentativas de fazê-lo
esquecer de qualquer coisa desagradável, e por toda a tarde, o distraí com
todas as histórias que poderia lhe contar. Era bom saber que eu tinha o
mesmo poder que Nico em fazer os problemas desaparecerem, os olhos
escuros outra vez livres de aflição ao observarem meu corpo, coberto por
uma camiseta branca e a parte de baixo do biquíni.
Vestir as roupas dele havia se tornado um hábito que Nickolay
adorava, e eu não resisti quando fui puxada para seu colo. As risadas
deixavam a noite leve, e a mão que tinha uma caveira tatuada era inofensiva
ao me alimentar chocolate na beira da piscina do hotel, minha boca
lambendo seus dedos sendo muito mais perigosa.
Era a vez dele de me fazer perguntas difíceis.
— Por que eu? — Mas estranhamente, minha resposta para aquilo veio
de forma natural.
— Porque eu não tenho pesadelos com você me abraçando. Porque, do
seu lado, eu consigo respirar. — A sinceridade pegou nós dois de surpresa.
— Também deve ser pelo corpo — brinquei, minha mão traçando os
músculos definidos do peito nu, ele conseguindo ficar mais do que
desejável vestindo só uma sunga.
— Isso é o suficiente para ti, Alana?
— O corpo? — perguntei, mesmo sabendo que Nickolay não se referia
a isso.
— Respirar.
— É. — admiti no mesmo segundo. Eu já prendia a respiração havia
tempo demais. — É o suficiente, Nico.
A próxima pergunta só veio após meu nome sair gemido dos lábios
dele pela última vez naquele sábado, nós dois não ligando para o quanto
estávamos suados, o italiano ainda ofegante achando meus lábios.
— O que mais precisa saber sobre mim, dolcezza? — Veio com ele me
puxando para seu peito, e eu sorri contra sua pele.
— Acho que quis perguntar o que seria um empecilho para mim,
certo? — Levantei a cabeça, Nickolay parecendo curioso esperando minha
resposta. — Eu ainda não sei se teria algum, se você continuar me tratando
bem.
E ali estava a confusão que eu deveria, mas não esperava, ver.
— Por que eu trataria diferente?
Às vezes, esquecia do que tinha me falado tantas e tantas vezes quando
fui morar sozinha. O que eu tive por cinco anos não foi saudável. Não era o
normal, e eu não deveria nunca repetir aquilo, não poderia nem considerar
me juntar com alguém que passasse perto do que havia sido Thobias.
Eu gostava de não achar semelhanças entre os dois homens, meu
presente não tendo comparação com meu passado, apesar de todas as
minhas desconfianças. Mesmo com as respostas vagas e trabalhos
duvidosos, Nickolay era melhor do que Thobias algum dia seria.
— Porque as coisas mudam — admiti, já querendo mais que tudo que
nada mudasse. Poderia viver sem a sinceridade que pedia, não precisava de
nenhuma resposta. Queria que nosso fim de semana durasse para sempre.
— Começos deixam de ser começos, e a suavidade vai embora.
A voz que encheu o quarto era séria, Nickolay entendendo bem demais
o que quis dizer, os olhos expressando toda a verdade que havia nas
próximas palavras.
— Sempre vou ter essa suavidade contigo, Alana.
Ele sempre sabia o que falar, e por um momento, a perfeição
exagerada fez algo gritar dentro de mim. Nada nunca bom demais durou na
minha vida. Contos de fadas não existiam no mundo real, e me dava um
medo irracional pensar no que poderia dar errado entre nós dois.
Quanto custaria ter minha normalidade de volta?
— Isso não quer dizer que não vão ter brigas — ele continuou com um
sorriso brincalhão. — Com a cabeça dura que tem...
— Que eu tenho??
Decidi que sim, sua risada era meu segundo som favorito, o primeiro
sendo feito quando meus lábios tocaram seu pescoço.
— Começo, meio ou fim, dolcezza, — Ele me puxava para cima dele
outra vez, e em poucos segundos, descobri estar errada sobre aquela ser a
última vez que meu nome seria dito pela voz rouca naquele sábado. —
Todas as nossas partes vão ser suaves contigo do meu lado.
Queria mais que tudo acreditar naquilo.

Caminhar na areia da praia era gostoso ao lado dele. Andávamos de


mãos dadas e fingíamos ser um casal normal, por mais olhares que o normal
de um metro e noventa atraísse. Ele não conseguir tirar as mãos de mim era
o melhor remédio para o ciúme que sentia, as mulheres que davam a
entender quererem estar no meu lugar muito mais bonitas do que eu.
Odiava minha insegurança, ela fazendo eu demorar mais que o normal
me arrumando para nosso jantar. Nickolay falava algo sobre estarmos
atrasados para a reserva quando me viu, e a reação tão instantânea que tive
fez valer cada minuto gasto na frente do espelho.
— Madonna mia. — Ele sorriu desconcertado e virou o rosto, voltando
a me encarar com a boca coberta.
— Nem pense em dizer que vamos jantar na cama.
E a risada que eu amava veio.
— Já me conhece bem demais, dolcezza.
O restaurante japonês não tinha muitas das mesas ocupadas, e eu ainda
agradecia a caminhada curta até ele. Mesmo usando um salto bem mais alto
que de costume, não chegava nem perto da altura do homem ao meu lado, a
mão que não soltava minha cintura sendo meu melhor equilíbrio.
O atendente nos levou para um espaço privativo, os dedos tatuados
acariciando o pedaço de pele exposto entre o cropped branco e a saia longa.
O deck elevado de madeira sobre a areia da praia era grande o suficiente
para uma mesa baixa e algumas almofadas, o local iluminado pela lua cheia
e o fogo que vinha dos lampiões espalhados pelo chão.
Dividir sushis e histórias leves era tão bom quanto o silêncio
confortável que compartilhamos na noite da lasanha. Ele ria da minha
inabilidade em manusear os palitos, e eu desistia de usá-los e pegava um
dos bolinhos de arroz com os dedos.
— Um dia, quero te levar para Sicília. — A frase me pegou de
surpresa, Nickolay muito mais interessado em mim do que na comida. —
Quero te mostrar onde cresci, te apresentar o melhor gelato[56] da Itália. — O
beijo na minha nuca tinha um efeito bem menor quando eu olhava para a
água azul. — Tirar sua roupa num barco em alto mar.
Claro que o italiano me percebeu tensa.
— Che, bella[57]? Cansando de tirar a roupa para mim?
Revirei os olhos: como se isso fosse possível.
— É o mar. Eu não gosto do mar. — Me virei para ele com um sorriso
forçado, tentando afastar meu desconforto. — Mas com você, é diferente —
confessei, comendo mais um sushi antes de continuar. — O mar é bem mais
aturável com você do meu lado.
— Aturável? — Ele deu uma risada rouca, e o jeito que as pontas dos
seus dedos contornaram o cropped que eu usava me tirou o foco. — Acho
que posso melhorar isso. — E as mãos foram para baixo do tecido mole, os
dedos me fazendo arfar ao torcerem os bicos, acabando com minha
coerência.
— Nós estamos numa praia, Nico!
— Nós estamos num restaurante, se isso te deixa mais confortável —
ele sussurrou no meu ouvido assim que me puxou para perto.
Definitivamente o italiano tinha me tirado a coerência, visto que eu
estava disposta a fazer tudo que ele mandasse. E as ideias que viriam com
certeza eram as melhores, e as que não deveriam ser reproduzidas com a
possibilidade de um público.
— Qualquer um pode passar por aqui! — Mas minha voz passava
longe de uma brava, nós dois sabendo que eu já tinha me rendido ao que
Nickolay quisesse fazer.
— Eu sei. — A resposta vinha num tom calmo, tão calmo quanto a
mão que achava a barra da saia que eu esperava continuar usando.
Olhei ao nosso redor, nada além de nós dois e as estrelas, as poucas
pessoas que frequentavam o restaurante naquela noite longe demais para
entenderem o que fazíamos. Ele nos levou até a beirada do deck, os joelhos
dobrando e os pés tocando a areia antes de me puxar para seu colo. Nunca
gostei tanto de uma saia longa, o tecido cobrindo bem o que já sabia
estarmos prestes a começar.
— Senta nas minhas coxas. Pernas entre as minhas. — Adorava como
a voz dele se transformava ao me ter por cima. — Deixa eu te ensinar a
gostar do mar, dolcezza.
Nem pensei antes de obedecer, meu coração torturando meu peito do
mesmo jeito que Nickolay torturava a minha sanidade. Apoiava as mãos nas
coxas grossas enquanto seus dedos achavam minha calcinha, o barulho do
zíper da calça de linho abrindo trazendo uma antecipação deliciosa.
— Você sempre foi assim? — deixei sair num suspiro quando ele
descobriu o quanto eu já estava molhada, sua outra mão puxando a saia até
eu senti-lo sem nada contra minhas nádegas.
— Eu não fodia fora de quartos, se é o que está me perguntando. Não
até o dia que eu fui puxado para o meio de um banheiro. — E meu coração
acelerou mais, Nickolay me levantando pelos quadris e se posicionando em
mim antes de sussurrar no meu ouvido. — Agora, essa praia poderia estar
cheia, e eu ainda arranjaria um jeito de me enterrar em ti. Me transformou
num depravado, Alana.
E ele me desceu sem nenhum aviso, minhas mãos cobrindo a boca para
tentar abafar o choro, quase impossível de conter ao escutá-lo nem se
esforçar para fazer o mesmo. Um dos braços me segurou contra seu peito, a
outra mão me puxando para baixo, e eu decidi que me arrumaria muito mais
se isso o fizesse se comportar daquele jeito.
O italiano era louco. E eu amava.
— Eu vou ter q-que — tentei falar, falhando ao me pressionar contra
ele, sentindo-o se acomodar mais dentro de mim. — Gozar quietinha, não
vou?
O gemido que ouvi me fez virar o rosto, os olhos escuros denunciando
o prazer que o dono sentia.
— Se conseguir.
— Você vai? — Encostei a cabeça no seu ombro, tentando recuperar o
fôlego, por mais que estivéssemos parados. — Gozar quietinho?
— Com certeza não. — Apertei as unhas nas coxas cobertas, o italiano
enfim me penetrando por inteiro e soltando uma respiração satisfeita. Meu
sexo pulsava, o calor que vinha da boca no meu pescoço me tornando
dolorosamente apertada ao seu redor. — Sei que quer me ouvir gozando.
Ama quando falo minhas perversões no seu ouvido, vero?
Voltei as palmas da mão para a boca, não confiando na minha voz e
fazendo que sim com a cabeça. As palavras dele me deixavam encharcada,
as mãos que seguravam meus quadris me subindo, apenas para fazê-lo
voltar até o fundo numa estocada voraz.
— Dá para sentir o quanto gosta. Sei bagnata[58], Alana. Nem precisei
te tocar para isso. — Nickolay não ajudava ao misturar as palavras na sua
língua. — É por saber que não estamos totalmente sozinhos? Por saber que
qualquer um pode aparecer e te ver ofegante? — Mas o italiano se afetava
tanto com meus choros quanto eu com suas palavras, a voz cada vez mais
rouca. — Quer isso? Alguém te vendo se contorcer em cima de mim,
enterrada no meu pau?
E me contorcer sobre ele foi o que eu fiz, antes dos braços fortes
voltarem a me prender contra seu peito.
— N-não...
— Não? — Meu coração ia explodir, meu corpo inteiro implorando
por mais. Só pressionar as coxas juntas era o suficiente para me fazer
gemer, eu pronta para implorar para ele se mexer só mais um pouco. —
Quer que eu pare?
Eu estava tão perto, ele conseguia sentir? Conseguia saber que o
menor dos estímulos me faria gozar?
— Não para, Nico! Não para…
Ele sorriu contra o meu pescoço, as mãos subindo para meus seios
enrijecidos, e me perguntava se era o italiano que me deixava com tanto
tesão, ou se o perigo que me fazia ficar tão molhada. Não tinha medo de
correr riscos com ele, Nickolay sendo muito mais letal do que qualquer
coisa ao nosso redor.
— Eu sei que gosta disso, Alana. Lembro de ti no carro, lambuzando
meus dedos. Estava encharcada, minha pequena exibicionista. Gosta de
correr perigo nas minhas mãos, não gosta? — Os bicos sendo beliscados
fizeram minhas mãos irem para trás, bagunçando seus cabelos, as tatuadas
voltando para minha cintura me fazendo antecipar o que estava por vir. —
Ssh, quietinha agora... — ele sussurrou no meu ouvido, e eu daria um jeito
de ficar quieta, desde que ele acabasse com essa tortura. — Estão trazendo
nossas bebidas.
— O que?
— Não goze agora. — Nickolay ordenou, como se fosse fácil controlar
aquilo com ele tão fundo em mim. — Ou eu vou ter que arrancar os olhos
do garçom. — E eu era doente por ficar ainda mais excitada com aquelas
palavras, medo dele algo que tinha certeza ser impossível de ser sentido,
por mais que devesse. — Só eu posso te ver assim, Alana. Só eu posso te
ver gozar, entendeu?
Respirei fundo, tentando achar qualquer força no meu corpo para fazê-
lo esfriar mesmo com todo o fogo que o italiano alimentava. Conseguia
escutar passos, vendo de canto de olho um homem descendo as escadas em
direção a nós.
— Responda. — Ele puxou o ar quando me sentiu mais apertada, a
resposta sendo automática cada vez que ouvia sua voz de comando.
— Só você, Nico. — Não passou de um sussurro, meu corpo imóvel,
descobrindo que o desespero também podia ser delicioso.
Cruzei os braços, uma das mãos cobrindo minha boca, perto o
suficiente para conseguir me calar se precisasse. A vodca com frutas
vermelhas e um copo com whisky eram postos na nossa mesa, Nickolay
agradecendo o garçom como se não estivesse enterrado até o talo dentro de
mim.
— Precisam de mais alguma coisa? — Que você vá embora, pensei,
tentando tirar algum frio das ondas pequenas que estouravam na beira da
praia. Nem o mar acalmava as batidas do meu coração, o italiano me
roubando todo o ar ao se mexer.
— É tudo, grazie.
Sorri por baixo da palma da mão ao escutar a voz rouca falhar pela
primeira vez, Nickolay passando uma das mãos pelos meus cabelos soltos.
Até o toque inocente parecia demais, ele respirando no meu ombro uma
tortura deliciosa. Demorou segundos que pareceram uma eternidade até
ficarmos sozinhos outra vez, nós dois ainda parados quando ele voltou a
achar meus olhos.
— Molto bene[59], dolcezza. — E a mão que portava a caveira foi para
baixo do meu cropped, a outra agarrando meu quadril. — Agora me deixa
te ver gozar. — E as simples palavras combinadas com os dedos
provocando meus seios bastaram, o calor no meu baixo ventre se tornando
insuportável.
A sensação que tomava conta do meu corpo era devastadora, toda a
minha pele sensível, e precisei morder forte a mão para não gritar. Eu
derretia contra ele, Nickolay me movimentando de uma maneira quase
selvagem, os dedos deixando meus seios, os lábios procurando meu
pescoço. As estocadas eram curtas e fortes, ele tocando repetidas vezes um
ponto que me deixava entregue demais.
— Fanculo[60], sto per venire[61]... — Os lábios deixaram outro vergão
na minha pele depois de falar, sugando-a com vontade enquanto eu me
contraía ao seu redor, o orgasmo me atingindo forte. — Ah, cazzo!
Ainda tremia quando fui preenchida pelo líquido quente, Nickolay se
calando no último segundo contra minha nuca, as mãos apertando minha
cintura. Sentir as vibrações dos gemidos abafados era delicioso, assim como
eram as mãos que sempre me buscavam depois de gozar.
Adorava como ele se expressava em italiano, a língua saindo natural
em momentos como o que acabamos de dividir. Quase nunca conseguia
entender, quase sempre imaginava as frases mais sujas quando elas saíam
comigo em cima dele.
Eu conseguia traduzir as últimas, assim como sabia o que significavam
as próximas, as palavras sendo ao mesmo tempo boas e ruins.
— Te voglio tanto bene, cuore mio[62]. Tanto, tanto.
Nickolay beijava meu rosto quando voltei a abrir os olhos, nós dois
com um sorriso nos lábios, por mais que nenhum fizesse ideia de como
limpar a bagunça que, com certeza, havíamos feito em nossas roupas.
— Não quero que isso termine — fui sincera, achando seus lábios.
— Eu também não.
O mar era realmente mais agradável com ele.

Era quarta-feira, e desde a manhã de segunda, decidimos ignorar o que


havia sido prometido no final do domingo.
Nossa conversa no primeiro jantar depois do fim de semana foi sobre
como as estradas deveriam ser melhoradas, ele rindo enquanto terminava
uma taça de vinho, eu revirando os olhos ao ser chamada de difícil de
agradar. Terça de manhã foi praticamente uma aula sobre como fazer massa
fresca, Nickolay muito mais interessado em falar sobre a escolha da farinha
de trigo certa do que sobre o jantar que teria na quarta.
Não teve qualquer conversa terça à noite, e eu estava longe de
reclamar da falta de assunto, a boca do italiano boa com ou sem palavras. E
assim, chegávamos no meio da semana.
Djamila abria um vinho e falava com o cara que me contou estar
saindo enquanto Carlos descia para buscar a pizza. Peguei o celular, a tela
marcando sete da noite e me mostrando uma mensagem não lida da minha
mãe.
Mas foi para Nickolay que meus dedos resolveram ligar, o italiano
respondendo depois de três toques. Dava para ouvir vozes masculinas ao
fundo, falando na língua que eu não entendia, a rouca dele se fazendo
presente ao pronunciar meu nome.
— É uma má hora? — perguntei, me jogando no sofá, um pouco
surpresa por ele ter atendido. Esperava deixar uma mensagem na caixa
postal, não sabendo bem o que falar agora que o tinha na linha.
— Nunca, dolcezza. — Mas alguém batendo na mesa seguido de um
grito abafado me falava diferente. — Disse que poderia me ligar sempre. O
que precisa?
Carlos entrou com a comida bem quando abri a boca, cortando
qualquer coisa que tivesse pensado em responder.
— Mila, Pipoca, comida chegou!
Deu para escutar a risada dele e uma porta se fechando, as vozes agora
abafadas deixando a de Nickolay mais evidente ao repetir o apelido que
escondera até aquela noite dos seus ouvidos.
— Pipoca? — ele questionou curioso, finalmente fazendo uma
pergunta que eu poderia responder. — Por que Pipoca?
Meu amigo abria a caixa da pizza de pepperoni, e eu, como sempre,
queria beijá-lo e matá-lo ao mesmo tempo.
— Porque eu sou branquela e estourada — contei o motivo do apelido
que Mila usava desde meus dez anos, revirando os olhos ao escutar a risada.
— Ei, não é pra debochar!
— Que problema que peguei para mim, hein Pipoca? — E deu para
ouvir a porta sendo aberta, o nome do italiano sendo chamado por uma voz
séria. — Vá jantar, bella. Volto antes das onze, ok?
E Nickolay desligou, meus olhos voltando para minha pizza favorita e
duas das minhas melhores pessoas.
Puxei a cadeira e me sentei, tomando metade da taça de vinho rosé
antes de pegar um pedaço de pizza. Vi Carlos e Djamila trocarem olhares,
os dois com certeza já desconfiados de algo.
Sim, eu queria falar as coisas que podia para meus amigos. Aquela,
inclusive, eu queria contar para eles antes mesmo de considerar comentar
com minha mãe, temendo menos a represália de Mila do que o olhar
silencioso que a mulher mais velha me daria.
Ainda lembrava com muitos detalhes do dia em que apareci na sala
com uma mala e dei a notícia, fazia pouco mais de um ano. Minha mãe
tinha um olhar sincero demais, e tudo que eu não precisava ouvir era
qualquer coisa sobre eu estar cometendo o mesmo erro pela segunda vez.
— Então, o que tem pra nos contar? — Foi Carlos quem começou a
me incentivar a revelar logo o motivo que os reunia em plena quarta para
uma janta.
— Eu meio que acho que... — Será que Mila desconfiava do que
estava prestes a falar? Consegui me conter para só morder o queijo e não o
dedo como feito domingos atrás, tentando controlar o nervosismo.
Não deveria ficar nervosa com aquilo. Deveria?
— Que estou dividindo uma casa com Nico.
Era engraçado ver o garoto que era a calma em pessoa engasgar-se
com o vinho ao escutar minha notícia, Mila dando tapas nas suas costas
antes de voltar a atenção para mim.
— Uau, Pipoca! — Dava para saber o quão surpresa ela estava pelo
tom de voz, mas tinha certeza de que um parabéns não sairia dos seus
lábios. — Quando você diz que tem novidade, você tem a novidade!
Eu reagiria igual no lugar dela, me forcei a lembrar de novo e de novo.
O que pensaria se ela estivesse me dando aquela notícia? Nem mesmo um
mês de relacionamento, entrando na terceira semana após definir que a
única boca que beijaria seria a dele, e eu tomava um passo que, em
situações normais, costumava demorar bem mais do que o curto tempo de
vinte e poucos dias.
Não que tivéssemos discutido sobre morar juntos, eu apenas
percebendo o que havia acontecido no começo daquela manhã. Tinha a
chave da mansão no meu chaveiro, minhas roupas estavam misturadas com
as dele, meu apartamento vazio e sem data para ser outra vez ocupado.
Estava até pensando em devolvê-lo para papai, e era sobre aquilo que
queria conversar hoje quando ele voltasse para nossa cama. Nossa cama, e
Nickolay adorava quando me ouvia usando aquele pronome, dava para ver
sem ele precisar falar.
— Eu sei que é muito cedo — admiti, mas não consegui evitar de
sorrir.
Eu também adorava nosso plural. Meus pesadelos haviam acalmado
desde a noite que resolvi dormir em seus braços, sem data para ir embora.
Quem, em sã consciência, reclamaria de ter paz?
— Que bom que você sabe. — Djamila soltou depois de mastigar mais
um pedaço, eu fazendo o meu descer com o final do vinho que tinha na
taça. — Sua mãe sabe?
Fiz que não com a cabeça, por mais que minha amiga já imaginasse a
resposta. Mila sabia que algumas coisas era ela quem escutava primeiro, e
pude ver um certo contentamento ao notar que aquilo não havia mudado
entre nós.
— Ela vai te matar.
— Eu sei que vai. — Limpei a garganta. — Mas meu pai gostou dele,
meus irmãos também, até ela tava babando pelo Nico, o Lucas dedurou.
Isso deve contar uns bons pontos, não deve? — Ainda mais porque
ninguém, nem mesmo meu sobrinho, gostava da última pessoa que eu havia
apresentado como meu par.
Carlos, como sempre, se mostrou uma benção na nossa vida, levando o
assunto de um jeito muito mais confortável de se falar. Contei os detalhes
que eram possíveis compartilhar, falando sobre o fim de semana na praia e
como Nickolay me fazia bem. Reafirmava aquilo quieta ao deixar a nicotina
longe, o maço de cigarros que os dois implicavam tanto nunca sendo tirado
da bolsa, graças a minha nova calma.
— Só eu tenho o pé atrás com o cara? — Mila perguntou quando
ficamos sozinhas, Carlos indo para a sacada atender quem agora era,
oficialmente, seu noivo.
Djamila também poderia escolher ele para brigar. Pelo menos, eu não
estava noiva aos vinte e três.
— Acho que só você sabe da história inteira. — E me larguei no sofá
ao seu lado. Já tinha um copo de água nas mãos, conseguindo parar na
primeira taça, diferente das últimas vezes que bebia e rezava para não ser
pega em alguma blitz. — Ele está me ajudando a procurar minha mãe
biológica.
— Ele deve ter seus contatos, né?
— Ele tem. — Talvez até contatos demais. — Dá uma chance pra ele,
Mi. Nico me faz bem.
E eu sabia que ela queria perguntar o porquê. Como alguém tão
perigoso poderia me fazer algum bem?
— Só toma cuidado, Alana. — Era bom ela entender o quanto eu não
queria aquela pergunta sendo feita. Ela na minha cabeça bastava.
— Eu tô tomando. — Sorri, o gesto não sendo mais forçado com ela,
mas o mesmo de antes de todos os nossos desentendimentos.
Vi de longe meu amigo finalizar a ligação, e voltávamos para o
número três no sofá.
— Vai ter que me dar umas dicas de como é morar junto, Pipoca. — E
o sorriso saiu outra vez, eu revirando os olhos. Como se estivesse fazia
muito tempo junto da minha calma para ter boas dicas.
Mas não ia perder a chance de me gabar sobre o quanto ficar com
Nickolay era bom.
— Só se me ensinar mais alguma frase sacana em italiano.

— Buonasera, bella. — Veio junto de um beijo na minha testa, a mão


de Nickolay passando pelos meus cabelos antes de me deixar.
— Que horas são? — perguntei abrindo os olhos, o cheiro dele
fazendo eu me sentar na cama.
O quarto já estava vazio, a luz do banheiro acesa, eu o vendo tirar a
gravata pelo espelho que ocupava toda a parede em frente à pia.
— Tarde.
Não consegui ficar sentada, me encostando no batente da porta antes
de soltar a cobrança.
— Disse que voltaria antes das onze.
Achei estranho ele nem mesmo se virar, os olhos indo para o celular ao
invés de fitarem o conjunto que havia escolhido para ser arrancado. Ele
nunca agia assim, e segurei minha frustração ao vê-lo pegar o aparelho e
começar a responder uma mensagem, naquele momento querendo ser seu
único trabalho.
Ah, trabalho. Por mais que Nickolay não houvesse me contado nada,
eu também não havia insistido. Sendo sincera, estava com medo do dia em
que minhas suspeitas se tornassem realidade. Hipócrita, sim, por querer a
proteção que sabia ter com ele, e ao mesmo tempo, não desejar ter a certeza
da origem do dinheiro que o fazia viver numa mansão daquelas com menos
de trinta anos.
Herdeiro, claro. Um herdeiro italiano que sabia atirar, e fazia negócios
com gente que eu sabia não ser correta. As mãos tinham cicatrizes demais,
inutilmente cobertas pelas tatuagens, para eu acreditar que aquilo era ele
aliviando o estresse com boxe. Nickolay ou não estava se esforçando, ou
mentia mal demais, e eu fingia que acreditava.
— Tá bonito, italiano — elogiei ao me sentar na bancada da pia,
observando-o começar a desabotoar a camisa que eu queria tirar.
— Tu che sei bellissima[63], dolcezza. — Ele ainda não me olhava,
usando da língua que me deixava queimando só de ouvir.
— Assim você me obriga a te dar todo o italiano que sei — provoquei,
esperando que minha voz tivesse saído tão sensual quanto soara na minha
cabeça.
— Vai me pedir um expresso duplo à meia noite? — ele caçoou e
estreitei os olhos, bem quando seus escuros me acharam.
E eu esperava que nada conseguisse apagar nosso fogo. Nickolay havia
respondido semanas atrás que me queria queimando junto dele, e sempre
que seus olhos paravam em mim usando aquela intensidade, eu me sentia
no meio de um incêndio.
O italiano parecia absorver cada detalhe do conjunto que eu havia
comprado semanas atrás apenas para ele, a renda mal cobrindo meu corpo,
a calça social que Nickolay ainda usava deixando óbvio o quanto ele
apreciava o que via.
Eu gostava de vê-lo sem palavras, me sentindo molhada antes das
mãos tatuadas me tocarem. Mordi o lábio inferior, abrindo as pernas quando
o vi abandonar o telefone e se aproximar, ele se encaixando entre minhas
coxas enquanto deixava os dedos roçarem na renda do sutiã.
— Dio santo, Alana. — Ele molhou os lábios, e as reações que me
deixava ver eram as melhores recompensas.
Gemi ao senti-lo pulsar contra mim, as pupilas dilatadas denunciando
o quanto o homem gostava da minha escolha. Quase não achei minha voz
para pronunciar a única coisa que me lembrava da conversa de mais cedo.
— Scopami[64]. — Nossa nova intimidade me deixava muito mais
confortável em ser cara de pau, e me perguntei se pedir para ele me foder
em português teria o mesmo efeito. — Scopami, Nickolay.
Porque o efeito em italiano era melhor do que o esperado.
Se não estivesse buscando seu corpo, a intensidade da resposta seria
tão esmagadora quanto o beijo que me roubava o fôlego. Enquanto
devorava minha boca, as mãos abaixavam apressadas a calça, me fazendo
sentir melhor o quão duro ele já estava. O italiano gemeu contra meus
lábios ao confirmar que era recíproco, os dedos me deixando, eu afastando
minha calcinha e o puxando pelos quadris, finalmente o tendo como queria
desde o começo daquela manhã.
Tinha um descontrole raro no jeito que ele investia, Nickolay
parecendo precisar mais do que o normal de mim. Me perguntei o que
poderia ter acontecido para aquele fogo além da renda branca, eu sabendo
bem que sexo era sua válvula de escape, mas não conseguindo coerência o
suficiente para me importar enquanto era pressionada contra o espelho
gelado.
Não esperava ser virada, o italiano me debruçando e voltando a me
preencher com estocadas fortes. Encarei meus olhos assustados, cerrando os
punhos, meu corpo inteiro tencionando por um segundo antes de ver pelo
espelho quem estava atrás de mim. Era Nickolay. Era ele, e eu queria
aquilo.
— Te machuquei? — A preocupação que ganhava me tranquilizou,
seus olhos me observando enquanto ele se forçava a ficar parado. — É
muito bruto para ti, Alana?
Fiz que não com a cabeça, me debruçando mais no balcão, meus olhos
nunca saindo de nós dois. Ele pareceu considerar por um momento antes de
voltar a se entregar a sua vontade, eu também me entregando a dele e
fazendo-a minha.
Ser possuída de um jeito tão cru por aquele homem era meu inferno e
paraíso, e eu o deixei exorcizar todos os meus demônios a cada gemido.
Admirá-lo pelo espelho era mais excitante do que poderia imaginar, o
italiano sendo meu melhor pornô ao se enterrar em mim. Nickolay me
segurava pelos quadris e eu me tocava com a mão esquerda, tentando
acompanhar o ritmo frenético que ele ditava. Outra vez, livrar-se das roupas
era irrelevante, a camisa aberta ainda nele, os lábios achando meu pescoço
deixando uma marca que não seria possível cobrir.
A forma como Nico se deixava olhar para nosso reflexo por alguns
segundos, para então desviar o rosto e apertar os olhos, me fazia entender o
quanto nos ver daquele jeito era o suficiente para ele se perder. Era o
suficiente para mim, e meu choro ecoou pelo banheiro, o dele não
demorando para seguir.
Conseguir observá-lo tão entregue ao gozar me fazia querer botar
espelhos por todo o quarto. A forma que seu corpo sempre procurava o meu
parecia querer me dar poder até mesmo comigo lhe dando toda minha
submissão.
— Por que italiano te deixa com tanto tesão? — perguntei, a voz ainda
mole, nós dois debruçados sobre a bancada de mármore.
— Não foi o italiano. — Nickolay beijou meu pescoço antes de tirar
seu peso de cima do meu corpo, eu ainda vendo seu reflexo, ele apreciando
a lingerie que tinha começado aquilo.
Os dedos que traçaram minhas costas provocaram o melhor arrepio, os
olhos escuros absorvendo todos os detalhes do conjunto branco. O meio
sorriso fazia meu coração acelerar outra vez, a mão que considerava abrir
ou não o fecho do sutiã me deixando ofegante mesmo parada. O senti se
afastar, meu sexo ainda sensível, meu corpo reclamando do vazio antes da
minha boca.
— Por mais que mandar eu te foder na minha língua tenha ajudado.
Cazzo, Alana. — Ele nos fez gemer ao enterrar-se novamente em mim,
debruçando-se para sussurrar em meu ouvido. — Posso te foder a noite
inteira contigo usando isso.
— G-grosso... — Mas aquilo saiu longe de uma reclamação.
— Sei que gosta quando eu sou grosso. — Seus olhos acharam os
meus através do espelho, me devorando. — Quer um espelho no quarto, não
quer?
Quase não achei as palavras ao senti-lo começar novamente o que mal
tínhamos terminado.
— É uma ideia pra se considerar.
Sim, eu queria espelhos no quarto, assim como esperava que as
paredes fossem grossas o suficiente para bloquear todos os sons que ele me
fazia soltar.
Nós dois precisávamos de um banho, Nickolay só voltando a falar
sobre sua língua enquanto secava os cabelos com a toalha.
— Sua voz falando em italiano é linda de se ouvir. — Ele sorria, e
novamente, nenhum de nós dois queria falar sobre o elefante branco que
crescia mais a cada dia. — Ela também é a única que gosto me dando
ordens. — Elefante que ficava aparecendo em irritantes pequenos detalhes.
— Acho que vou começar umas aulas — respondi com um sorriso,
voltando a sentar na bancada da pia, a toalha amarela ao meu redor.
— Eu te ensino. — Ele falou o que eu imaginava que viria, se
colocando entre minhas coxas, o fogo já calmo o deixando muito mais
gentil ao beijar minha bochecha. — Quer começar com o que?
Para quem observava de longe, conseguíamos passar pelo casal
perfeito, sem nenhum problema.
— Gosto quando me olha assim. — Nunca me cansaria de seu meio
sorriso.
— Mi piace quando mi guardi così[65]. — A resposta veio depois de um
beijo rápido, o toque dos nossos lábios sendo seu pagamento.
— Gosto de sentir suas mãos em mim. — E outra vez um selinho antes
dele me hipnotizar com sua língua.
— Mi piace le tue mani su di me[66]. — As mãos pararam e ficaram na
minha cintura, os olhos nos meus.
Eu era uma boa observadora. Observar era um passatempo, e em
silêncio, quem olhava bastante conseguia descobrir tudo. Era apaixonada
por detalhes e em como eles traduziam as pessoas. Ele poderia não
perceber, mas eu via os detalhes dele.
Em poucos dias, tive a certeza de que o Nickolay que ele me deixava
ver era só meu. Os lábios só subiam quando estávamos a sós, as linhas na
sua testa só suavizavam quando eu o tocava. Com todos os outros, o
homem, que se deixava relaxar apenas na minha frente, era a tradução de
seriedade e poder. Ele era forte, e com certeza era um dos muito — senão o
mais — influentes em seja lá o que fosse que fazia.
Fechei os olhos por um segundo antes de trancá-los nos escuros dele,
afirmando que sim, Nickolay havia se tornado importante e não substituível
do mesmo jeito que ele me admitia ser. E naquele momento, não importava
o que poderia vir a descobrir: era com o italiano que eu queria ficar.
— Gosto de você. — Finalmente retribuí o carinho que ele me dava
sem eu precisar pedir, os olhos me devolvendo tudo que ele ouvia. O
italiano deu uma risada ao virar o rosto, e eu era apaixonada por aquela
mania que vinha quando ficava nervoso tanto quanto adorava como meu
coração batia ao lado do dele. — Gosto de você, Nico.
Os lábios me calaram, e eu ainda conseguia sentir o vinho na sua
língua, Nickolay novamente me beijando como se eu fosse seu bem mais
precioso. As mãos me tocavam com a gentileza reservada para os minutos
em que palavras não eram suficientes, o italiano derretendo com meu toque
como eu derretia com o dele.
Não falamos nada até chegarmos na cama, Nickolay sabendo se
comunicar bem demais mesmo quieto. A voz rouca ressurgiu quando ele
voltou a nos unir, o italiano traduzindo meus sentimentos outra e outra vez.
E eu não me importava mais em tê-lo por cima, o jeito que ele prendia
meus pulsos longe de me incomodar. O sentimento que antes me angustiava
agora me deixava leve, Nico se enraizando ainda mais no meu coração
enquanto expressava de todas as formas a importância que eu tinha em sua
vida.

Dormi já era mais de duas da manhã e o despertador tocou às seis.


Ainda assim, acordei melhor do que muitas noites dormidas sem ele, a
quantidade de horas de sono sendo irrelevante para meu bom humor.
O dia prometia ser bom, por mais que fosse dividir uma aula
desconfortável com a professora que andava odiando. Emília Ferretti não
tinha me dirigido o olhar na última quinta, e hoje, em nossa graças a Deus
penúltima aula, parecia estar repetindo o feito.
Não precisava dos olhos azuis em mim, inclusive os queria bem longe
de qualquer parte minha e do italiano que ela quis fazer dela. O que eu
precisava era entregar o trabalho que a professora havia gentilmente me
passado, após ressaltar que eu lembrava a amiga-esposa de Nickolay nas
piores qualidades. Poderia fazer isso sem sequer olhá-la, não poderia?
— Alana, precisamos conversar. — Aparentemente não.
Coloquei o trabalho sobre a mesa com um sorriso forçado,
expressando toda minha vontade de estar ali.
— Tem cinco minutos? — Não!
Talvez todo o controle que enxergava em Nickolay estivesse ficando
um pouco em mim. Por mais que quisesse gritar uma negativa e sair
correndo, consegui reunir forças para me manter na frente da loira,
respirando fundo antes de usar minha voz mais neutra.
Deveria ter ido embora.
— O que você quer?
Não esperava que viesse tanta honestidade.
— Quero que se afaste de Nico. — Emília respondeu, cruzando os
braços ao encostar-se na cadeira. Quem ela achava que era para me pedir
isso? — Você só vai causar problemas para nós, Alana.
— Nós?
— Já está causando.
— Se está usando nós pra se referir a vocês dois...
— Você sabe o que ele faz? Ele te contou sobre a Itália? Sobre o que
procura aqui? — ela me interrompeu, a expressão séria mudando para uma
vitoriosa ao ver minha confusão. — Você ainda não faz ideia, não é
mesmo? Sabia que Nico estava mentindo ontem à noite.
— Ontem? — Ontem à noite, e meu estômago revirou ao pensar nele
tão perto da mulher que claramente queria tirá-lo de mim. — Ele foi jantar
com você.
Mas não era só com ela, e eu queria repetir aquilo até o ciúme ir
embora, me recordando das vozes masculinas que tinha escutado durante
nossa ligação. Não era só com Emília, e ele não estava me traindo.
Ele não estava me traindo. Eu não acabaria com outra DST e mais um
olho roxo.
— Sim. Tínhamos negócios para resolver. — Ela falava com um
orgulho que eu a queria fazer engolir, me arrependendo de ter dito para
Djamila não me esperar. Não podia deixar meu temperamento explodir, o
ciúme que ela provocava em mim me tentando a respondê-la da forma mais
irracional.
Eu não era irracional. Eu não era uma pirralha mimada.
— Não vai perguntar que tipo de negócios?
E duas poderiam jogar aquele jogo.
— Prefiro ouvir do meu namorado. — Enfatizei a última palavra,
dando o melhor dos meus sorrisos doces.
Emília deixou transparecer por um segundo o quanto não gostava de
associar Nickolay como sendo meu, mas rapidamente o desprazer em me
ouvir se transformou num sorriso cínico. Eu não gostava dela, e gostava
menos ainda do italiano tendo qualquer forma de contato com alguém tão
contra o que tínhamos.
Duvidava que ele aceitaria bem, se o contrário acontecesse agora.
— Ah, namorado. Eu não usaria exatamente essa palavra. — A forma
que ela falou me causou um arrepio, assim como a frase que seguiu. —
Confia nele tanto assim?
E me forcei a não a deixar ver o que já me comia por dentro.
— Muito mais do que em você! — Não consegui segurar, pouco
ligando para o quanto tinha subido a voz, ou quem era a pessoa com quem
eu gritava no meio da faculdade.
— Continuaria confiando se soubesse das drogas que ele traz para o
país? — Ela finalmente expôs o que eu não queria ver, e meu cérebro
demorou para processar a informação que tinha sido dada tão gratuitamente.
Só conseguia escutar a voz de Djamila.
"Complicado é eufemismo pra traficante?"
— Dos negócios que ele coordena, das decisões contraditórias que
precisa tomar? Sabe quanto sangue Nico tem nas mãos? — E outra vez,
quis gritar ao ouvi-la o chamando pelo apelido. — Vai continuar se sentindo
segura quando ele precisar matar alguém na sua frente?
Tinha uma bola na minha garganta que não estava descendo, por mais
que eu tentasse engoli-la. Emília me falar tudo aquilo era tão errado, ela nos
tirando o direito de conversarmos sobre o que eu desconfiava.
Depois de vomitar as informações, a loira se levantou e andou com
passos firmes até minha frente, o olhar vitorioso ao ver o quanto tinha
mexido comigo. Dava para notar que havia dor ali, mas meu cérebro
registrava muito mais sua crueldade.
— Alana, Nickolay é um dos homens mais importantes da Famiglia.
Máfia, se quiser usar esse termo. E ele nunca vai deixar de ser da máfia —
ela afirmou, enfatizando a informação que me dava com um prazer mau.
Máfia. Claro que ele era da máfia.
Na família dele, os casamentos funcionavam de uma forma diferente.
Eram negócios, e por um momento, me perguntei o que estávamos fazendo.
Eu passava tão longe de ser um bom negócio, e ter a certeza de que sim, ele
era tão poderoso quanto o achava ser, me deixava certa de que qualquer
ligação mais profunda comigo era impossível de acontecer.
Por isso que ela não usaria a palavra namorado? Por isso que ele não a
usava? Pensar no que foi dito para meu pai no almoço de sábado me fazia
sorrir, mas no momento, doía. Como eu podia ser algo além de uma
namorada — nem mesmo sabia mais se a palavra namoro dava para ser
utilizada — para aquele homem?
— Acha mesmo que pode continuar com ele? — Machucava não ter
mais a certeza que estava comigo segundos atrás.
Ano passado, uma mulher dois anos mais velha bateu na porta da casa
que eu morava. Era noite, estava chovendo, e eu estava exausta, mas não
conseguia ter raiva das coisas que Gabriela me contava. Decepcionada, sim.
Doída, com certeza. Só que ver alguém tão quebrada quanto eu não
conseguia despertar ódio em mim.
Ódio não começava a explicar o que eu sentia agora. Queria respirar
fundo e começar a gritar, e foi tão, tão difícil reunir controle o suficiente
para devolver uma resposta venenosa ao invés de berrar como uma
descontrolada.
— Você se sente melhor depois de me contar isso? — A imitei e cruzei
os braços, fingindo calma enquanto colocava um sorriso tão debochado
quanto o dela. Precisava tanto ser Djamila agora, minha melhor amiga
sempre sensacional em socar com palavras. — Acha mesmo que eu não
desconfio? Que eu não sei?
Eu não iria gritar, nem mesmo ao vê-la sacudir a cabeça. A filha da
mãe estava segurando uma risada, e eu estava pronta para voar no seu rabo
de cavalo. O quanto essa maldita poderia acabar comigo se partíssemos
para o físico?
Não, eu não precisava usar as mãos. Dava para acabar com Emília de
outros jeitos, e lembrei do detalhe contado por Nickolay sobre sua ex-
mulher. Machucaria a loira tanto quanto ela havia me ferido.
— Ou isso é ciúmes porque Nico tá te trocando por uma mulher mais
nova? — Touchè. — Não, espera. Eu acho que pra ser trocada, você tem
que ser escolhida primeiro, certo? — Dava para ver nos olhos azuis que eu
havia tocado em um ponto fraco, ela demorando demais para esconder o
incômodo. — E pelo que fiquei sabendo, Nickolay nunca te escolheu! E
olha que ele nem fodia a Giovanna!
Ignorei os passos que a traziam para meu lado e continuei.
— Só dá pra concluir uma coisa disso, Emília — cuspi o nome,
querendo mesmo era cuspir no rosto fino. — Eu posso não ter a sua
experiência, posso não ser do seu mundinho, mas pelo menos eu sei chupar
bem o suficiente pra deixar Nickolay querendo mais!
E a verdade ardia, dava para ver o quanto ardia. Eu só não estava
esperando que fosse arder em mim também. O tapa que não vi chegar fez
minha bochecha pegar fogo, e o choque da agressão me deixou imóvel.
Eu sempre perdia o ar quando lembrava daquela noite, e eu odiava
olhos azuis.
— Nickolay pode estar fodendo você, mas a noiva sou eu — ela falou
com uma calma tão grande que só me restava acreditar em suas palavras, a
surpresa que sentia sendo impossível de esconder. — Também sabia disso?
Minha boca ficou seca, o gosto amargo tomando conta da minha língua
enquanto parecia que todo meu corpo mergulhava na água fria. Emília não
era nada perto de mim, eu lembrava que Nickolay havia dito aquelas
palavras. Ela não era nada além de sua noiva. Gabriela também escutou a
mesma coisa de quem um dia foi o meu.
E Gabriela estava certa: ser a outra doía. Descobrir dilacerava a alma.
— Aproveite enquanto pode. — Ela se aproximou mais, sussurrando
no meu ouvido. — Ele vai sumir com você quando terminar.
Não tive reação, nem depois dela sair da sala. Meu estômago
embrulhou, e eu trancava as informações que tinha acabado de descobrir
num canto enquanto respondia para mamãe que precisaríamos cancelar o
almoço. Tinha orgulho de ser boa em compartimentalizar, a qualidade
sendo adquirida após anos de sofrimento.
Eu não iria mostrar que estava sofrendo. Não iria chorar enquanto
ligava o rádio. Enquanto colocava no mapa o endereço da mansão, pela
primeira vez necessitando de comandos falados para conseguir dirigir até lá.
Não pensaria repetidas vezes em como eu era a outra, mas gritaria com
Nickolay sobre ele ter me escondido estar na máfia. Sobre ele ser um
criminoso, e não um traidor.
Ele não iria me bater quando descobrisse que eu sabia, e eu estava
muito tentada a desaparecer no mundo, sempre que o pensamento aparecia.
Ao menos o trânsito me ajudava. Estava sem um pingo de paciência
quando cheguei quase duas horas depois no meu destino, largando o carro
de qualquer jeito com as chaves na ignição e rumando para a porta da
frente.
Dava para ver surpresa nos olhos de Matteo, ele e três novos
seguranças mais sérios do que o normal guardando o jardim da frente.
Ótimo dia para o mafioso contratar mais gente, pensei, ainda me forçando a
esquecer qualquer informação que não fosse sobre os negócios ilegais da
Famiglia.
Família. Até o nome parecia zombar de mim.
— Signorina? — Ninguém me esperava antes das oito da noite, mas eu
não dava a mínima.
— Onde ele está? — Depois do que tive esfregado na cara, eu não
dava a mínima se era ou não esperada, e ignorei os olhares receosos dos
quatro. — Onde tá o Nickolay, Matteo?
Demorou demais para vir a resposta, eu já me dirigindo para a porta
antes do homem mais alto se colocar na minha frente. Ele conseguia ser
maior que Nickolay, mas minha raiva me fazia ignorar o rosto fechado que
tentava me intimidar.
— O signor DeLucca está com visita...
— Não me importa! — Virei a cabeça ao responder Matteo, puxando a
respiração assim que senti uma mão forte segurar meu braço.
— Giovanni, é la moglie di DeLucca[67]! Ele te mata se te ver tocando
nela! — E fui solta no mesmo segundo, o segurança gigantesco colocando
os braços atrás de si antes de sair de meu caminho. — Signorina, bata
primeiro!
Claro que eu ignorei o pedido de Matteo, a única coisa batida sendo a
porta da frente após eu entrar.
— Nico? — Maldita casa gigantesca, mas só podia haver um cômodo
sendo usado com ele tendo visitas. Ele sempre levava todos os não-
moradores dali para o lugar que falava ser seu escritório. — Nickolay?
Deveria ter escolhido agarrar os cabelos da Emília. Deveria ter saído
no tapa com ela. Odiava a razão que eu achava nas palavras de mais cedo,
querendo estar em qualquer lugar menos ali.
Claro que eu não sabia que o cômodo era à prova de sons, Nickolay
nem ninguém me ouvindo chamar. Claro que não haviam trancado a porta
que eu, uma intrusa, abria.
Claro que eu não estava pronta para ver o homem com quem eu dividia
a cama puxar o gatilho. A mão tatuada não hesitou, a bala acertando um
corpo que, deitado numa poça do próprio sangue, implorava pela morte
antes de ser silenciado para sempre.
Não, eu não estava pronta para ver aquilo.

Tinha vinte e quatro anos quando disparei o primeiro tiro para matar.
Eu ainda lembrava do barulho da bala atravessando o crânio, o cheiro de
sangue que sempre enchia minhas narinas naqueles momentos.
Eliminar pessoas não fazia mais parte do meu dia a dia, mas era um
trabalho que nunca me incomodei em realizar. Todos homens, todos
culpados, todos com tanto, senão mais, sangue nas mãos quanto eu.
Traidores da Famiglia, empecilhos para nossos negócios, fiéis aos rivais
com quem por muitos anos travávamos uma guerra.
Eu não me importava, nem fazia questão de questionar as ordens, e
Matarazzo mostrava adorar o quanto conseguia me moldar em quem um dia
fora seu assassino particular. Como meu pai, cada vez que puxava o gatilho,
colocava mais tinta no corpo, uma forma de não esquecer o que fazia — de
exibir que deveriam me temer. Já planejava a próxima tatuagem desde o
começo da quarta, a única distração para minha mente sendo o toque de
Alana.
Não havia algo que me distraísse antes dela, eu não sendo capaz de me
envergonhar da minha falta de compaixão depois de ter perdido Nicolas.
Era engraçado como a morte dele fora tão mais doída que a de sua mãe, eu
me sentindo muito próximo das lágrimas ao vê-lo deitado na areia.
Talvez fosse por já ter perdido Giovanna muito antes, a garota
morrendo por dentro no dia em que Alice partiu. Nicolas era toda a luz que
havia deixado minha amiga, e o tendo nos meus braços, me questionava
como Armando conseguiu simplesmente desistir de nós após a morte da
nossa mãe. O menino era minha vida inteira, e pouco me importava a
criança não ter meu sangue: era meu filho, muito mais meu do que de
Giovanna.
Demorou mais do que deveria achar o responsável por tirar o pouco de
luz que me restava. Eu já tinha uma nova centelha quando recebi a notícia
no dia anterior, Alana diminuindo minha dor na noite passada, mesmo tão
ignorante aos meus machucados. Era por causa dela e do carinho que
ganhava que eu estava disposto a dar uma morte mais rápida que a
planejada por anos para o assassino de Nicolas?
A mulher beijou todas as minhas feridas, as deixando prestes a
cicatrizar depois de tanto tempo. Mas ainda doía, Nicolas sendo minha dor
crônica, minha inabilidade de protegê-lo me fazendo paralisar sempre que a
lembrança vinha.
Com as mãos já manchadas de sangue, sabia que puxar o gatilho não
seria minha cura. Ainda assim, o fiz.
Escutei alguém puxar a respiração e soube quem era antes de me virar.
Meu coração batia tanto quanto o do corpo que caía aos meus pés quando
achei os olhos mel. E ali estava: medo. O mesmo medo que via antes no
homem, que agora, sem vida, manchava o piso de vermelho.
O próximo minuto pareceu uma eternidade. Travei a pistola, a
colocando sobre a mesa e me forçando a olhar para longe de Alana e de
volta para a única pessoa que deveria ter minha lealdade. Amaldiçoava meu
azar, assim como rezava para a mulher continuar quieta enquanto encarava
quem ainda se considerava meu sogro. Vincenzo tinha um sorriso satisfeito
no rosto, mas denunciava a curiosidade pelos olhos.
— Nickolay, quem é? — ele perguntava em italiano. Só havia uma
resposta que poderia ser dada, e eu sabia.
Não precisei olhar para Lorenzo para ter conhecimento de sua
reprovação antes mesmo de eu abrir a boca, a voz do homem que tinha sido
mais pai do que meu verdadeiro ecoando em minha cabeça.
"Nenhum amor nasce numa prisão."
— Minha noiva — respondi na minha língua mãe, assinando um
casamento que seria obrigado a acontecer, independente da resposta de
Alana.
Independente da vontade do meu chefe, eu sabendo que a única
maneira de a salvar era amarrá-la a mim. E era o que eu faria, mesmo que
fosse contra a vontade de quem ainda permanecia paralisada na entrada.
— Não lembro de Emília ser morena. — Matarazzo andava me
olhando mais incomodado do que eu deveria considerar seguro nos últimos
tempos.
— Ela não é.
Repetia que precisava manter os olhos nos castanho-claros de quem
deveria obedecer, por mais que quisesse correr até quem eu reconhecia estar
em choque. Ela estava em choque, estava em choque e não reagiria, eu me
convencia outra e outra vez.
— Preciso de um minuto, Don Matarazzo.
— Motivo?
— Minha mulher nunca viu um corpo — justifiquei, disposto a usar
qualquer sorte que me tivesse restado para conseguir um maldito minuto a
sós com ela.
— Então está na hora de aprender, não acha? O que uma mulher fraca
pode te trazer de vantagem? — Não ir até Alana antes da aprovação dele foi
uma das coisas mais difíceis que já tive que fazer. — Emília traria muito
mais.
— Ferreti traria mais vantagens casando-se na Itália, e eu posso provar
— afirmei confiante, não fazendo ideia de que vantagens inventaria se ele
perguntasse quais. — Eu não sou ninguém para trazer qualquer benefício
para a Famiglia. Por mais que me veja como um filho, não sou influente,
apenas temido por fazer o que faço.
— E existe influência melhor do que o medo? — Já pensava em quem
precisaria eliminar para tirar Alana com vida daquela sala quando Vincenzo
me deu sua decisão. — Um minuto.
E por mais ateu que fosse, grazie a Dio[68].
Não respirei aliviado, mas respirei, a alcançando em cinco passos
largos. Soltei a mão pequena que ainda estava presa na maçaneta e fechei a
porta atrás de nós, os olhos grandes me observando desacreditados, a boca
aberta tentando pronunciar palavras que não vinham. Minha mão sujava a
pele branca com o sangue que nunca deveria estar nela, e a visão fazia meu
estômago revirar.
E eu sabia que não podia consolá-la. O que eu mais queria era
envolver o corpo trêmulo num abraço, e a última coisa que deveria fazer era
aquilo. Alana continuando assustada era uma opção muito melhor do que
ela tendo coragem para qualquer reação.
— Tem sangue...
— Me olha — ordenei sério, minha mão segurando seu queixo e
mantendo seus olhos nos meus. — Precisa me obedecer sem discutir, Alana.
— Era tão errado falar com ela usando a voz que guardava para meus
subordinados. — Vamos voltar para a sala, e quero seus olhos em mim o
tempo inteiro, ouviu? Olha para mim e não fala nada, sorria e não responda.
Só olhe para Matarazzo se ele falar contigo. — Dio santo, ela nem mesmo
sabia quem era Vincenzo, e meu cérebro me atormentava com todos os
cenários que poderiam transformar a situação num caos.
— Nickolay...
— Alana, quieta. — Um minuto era pouco demais. — Por tudo que é
mais sagrado, fica quieta.
Soltei seu queixo, uma mão a prendendo pela cintura antes da outra
abrir novamente a porta, e Alana estava cheia de sangue.
Pelo menos um minuto parecia ser o suficiente para cobrirem o corpo,
a única evidência do feito vista do local onde paramos sendo a enorme
mancha no tapete branco.
— É um prazer finalmente te conhecer, Alana. — Foi a primeira coisa
dita ao voltarmos para o escritório, e eu sabia que era mentira. — Esperava
um rosto muito menos dócil, visto a personalidade que ouvi dizer que tem.
Os olhos mel estavam em mim, mas ela não estava ali. Tentava
imaginar o que seria preciso para fazê-la voltar: um grito, um puxão, um
tiro? Meu corpo denunciava o nervosismo para todos da sala, as palmas das
mãos suadas, o coração praticamente explodindo, eu parecendo um puttano
novato, e não o ceifador sem sentimentos que tinha me acostumado a ser.
Tendia ao pessimismo, mas quais as chances de tudo acabar bem?
Ao menos o italiano era a língua usada, uma desculpa para Alana nem
ao menos inclinar a cabeça em direção a voz.
— Don Matarazzo disse que está encantado em conhecê-la — traduzi,
meus olhos indo dos do Don para os dela.
— Não fala italiano? — Fiz que não com a cabeça, amaldiçoando a
vida ao senti-la tremer mais. — Hum.
A puxei para perto com a mão que mantinha em sua cintura, Alana
parecendo sair de seu transe e finalmente me olhar e reconhecer. Ela
mordeu o lábio inferior, a mão direita apertando minha camisa por trás, a
língua provando o sangue que havia deixado em seu rosto.
— É mais fácil deixá-las de fora desse jeito.
— Concordo. — A afirmação não podia passar mais longe da verdade.
Eu não queria Vincenzo andando para perto de minha mulher, e não
podia fazer nada para impedi-lo de tal. Alana parecia perceber o sangue só
agora, ela limpando com seu antebraço onde minha mão a havia segurado.
A forma que eu a vi trancar todas as emoções que sentia e colocar uma
expressão calma no rosto me assustou mais do que Matarazzo. Alana era
para estar surtando, e novamente, minha negatividade me fazia considerar
aquilo como o começo de um. Ela tirou os olhos dos meus e os levou até
quem nem deveria considerar olhar, e eu queria acreditar que a mulher que
chamava de minha era mais forte do que esperava que fosse.
— Nickolay é como se fosse meu figlio. — Vincenzo escolheu usar
português, seu sotaque muito mais carregado. — Eu não esperava chegar no
Brasil e encontrá-lo noivo. — O jeito que ele a encarava com desdém me
incomodou além do que deveria.
Ele não deveria olhar assim para minha mulher. Ele não deveria sequer
olhá-la.
— Bem, não de ti. Isso é uma paixão do momento, ou tem algo a mais
que eu deveria saber? — A pergunta foi para mim, ele levantando uma
sobrancelha. — Vou ser avô outra vez, Nico? É por isso que só agora
descobri essa troca de noivas? Engravidou a ragazza e Emília não quer criar
um bastardo?
Ouvir tais palavras doeu muito mais do que poderia imaginar, minha
voz me traindo e saindo rouca ao lhe dar uma negativa.
— No. — Voltei para os olhos mel que estavam novamente em mim,
minha noiva me encarando com uma surpresa que sabia passar longe do
agradável. — Apenas achei desrespeitoso avisar por outro meio que não
pessoalmente. Só esperava poder fazer isso em uma situação mais
apropriada — menti, querendo mais do que tudo pedir perdão por estar
prendendo-a daquela forma.
Ela entendia o que estava acontecendo?
— Alana é especial, Don.
A risada atípica fez um arrepio percorrer minha espinha.
— Sim, eu já entendi essa parte. Afinal, não são todas as donne[69] que
afogam o teu celular e continuam do teu lado! Para uma mulher com um
temperamento desses, me surpreende ela não ser italiana.
Ele se aproximar me fez abraçá-la ainda mais forte, o que não passou
despercebido. Eu estava fodendo mais e mais com tudo a cada segundo.
— E onde está o anel?
Passei a mão pelos cabelos, deixando uma sombra de risada escapar.
Cazzo. Eu nem mesmo tinha a minha arma comigo.
— Está mentindo para mim, figlio? — Como se ter uma arma agora
fosse adiantar. — O que é de Nickolay, Alana? Donna ou puttana? Porque
se for puttana, o costume é dividir.
Não, uma arma na minha mão agora só teria nos matado. Porque eu já
teria atirado assim que o ouvi outra vez chamar minha mulher de puta.
Então eu repetia que nada iria acontecer. Vincenzo era instável, mas não era
como se eu tivesse feito algo para trair sua confiança. Alana ficaria quieta,
e...
— Mulher dele. — Se minhas mãos suavam antes, agora elas
escorriam, Alana como sempre tornando o outono paulistano mais quente
que o normal. — Nickolay não está mentindo.
Ela sabia para quem estava respondendo? Quantos santos eu conhecia
para pedir qualquer serenidade para a mulher que abria a boca?
Adiantaria um ateu pedir alguma coisa?
— Sou exigente com anéis — ela continuou, a voz firme. — Nico sabe
disso. Vamos escolher um essa semana, não vamos? — terminou me
olhando, e novamente, a observei precisando forçar uma expressão neutra,
por mais assustado que estivesse com o comportamento que ganhava dela.
Alana havia acabado de me ver matar um homem, minha mão sujava
sua cintura de sangue, e a mulher nem mesmo hesitava ao despejar as
palavras. Ela poderia ter aberto a boca para falar qualquer coisa, ela poderia
estar gritando e fazendo da minha vida um inferno maior, e escolheu
defender quem estava acabando com suas escolhas.
Claro, ela poderia muito bem ter deduzido que era isso ou a morte. A
mulher era, com certeza, mais esperta do que havia lhe dado crédito, e tudo
que eu queria era voltar no tempo e lhe contar tudo.
— Nós vamos, dolcezza. — Sabia bem que voltar no tempo era
impossível.
— Ah. — As palavras pareceram ser suficientes para Matarazzo, e
respirar se tornava bem mais fácil. — É, o que houve fugiu um pouco dos
planos de todos. Alana, não ache que isso é o dia a dia que escolhestes para
ti. — Ele mostrou os dentes amarelados em um sorriso. — Nossas mulheres
quase nunca precisam ver nossa bagunça, então não se assuste. Deveria, no
entanto, aprender a bater nas portas: não bater pode te matar.
— Vou ter uma conversa com Matteo — me apressei, antes que Alana
resolvesse responder por nós. Não deveria testar tanto meu azar.
— Se é que vai adiantar. — Veio com uma risada. — Quando elas
querem entrar, elas entram.
Mas a boca vermelha dava a entender que permaneceria fechada até o
final da nossa conversa, a mão nas minhas costas cravando as unhas curtas
de um jeito nada gentil.
— Estou aprendendo.
Alana poderia fazer o que quisesse comigo mais tarde, desde que
continuasse a se comportar na frente de quem era capaz de eliminá-la com
uma palavra.
— Já deveria estar gravado na tua testa depois de minha figlia[70] — ele
fez questão de me lembrar, meu cérebro voltando a gritar que aquilo tinha
sido fácil demais. — Preciso cuidar de outros negócios. Os homens vão
ajudar com a limpeza, mas acho que um novo tapete seria a melhor saída.
E novamente os olhos dela grudavam em mim, os meus não tendo
mais coragem de encará-la e indo para as manchas vermelhas. Lorenzo
tinha toda a coragem que me faltava, e quieto, me dava todas as palavras
que tantas vezes repetiu nos últimos dias.
— Um prazer conhecer uma donna tão bella. — Vincenzo estendeu a
mão, a mulher ao meu lado me surpreendendo mais uma vez ao colocar a
sua sobre a dele e aceitar o beijo no dorso.
E ela nem tremia. Talvez fosse eu quem entrasse em choque depois
disso.
— Nickolay, um minuto? — Matarazzo não esperou uma resposta
antes de rumar para a porta da frente.
— Vá para o quarto — sussurrei em seu ouvido ao me inclinar, Alana
mais uma vez me deixando sem palavras ao não emitir nenhum som antes
de obedecer e subir.
Ela também sequer olhou para trás, o que me fazia ter a certeza de que
passaria o resto do meu tempo livre em uma conversa longe do confortável.
Quem acabara de rotular de minha noiva havia medido as palavras pela
primeira vez na vida, mas eu tinha minhas dúvidas quanto a capacidade de
seguir seu exemplo ao parar na frente do meu chefe.
— Sente-se vingado?
— Não — fui sincero. — Nada vai trazer Nicolas de volta. — Nada o
traria de volta, e pagar sangue com sangue havia apenas me tirado mais
durante a tarde.
— Nem Giovanna — o homem mais velho cutucou, o desprazer
presente na voz. — Por mais que pareça estar esquecendo da minha filha.
Esquecendo tão bem, que nem mesmo respeita as ordens do seu único
superior. Também vai esquecer dos juramentos que fez, Nickolay?
O quanto deveria me preocupar com suas palavras? O quanto deveria
ficar quieto?
— Amava Catarina, não amava, Don? — Alana andava me
influenciando mais do que o considerado seguro.
— Aonde quer chegar com isso? — Mas apesar do incômodo que me
deixou ver, os olhos se mostraram cansados ao continuar. — Esse tipo de
amor não vale a pena no nosso meio. Ele te destrói, e te faz matar tudo ao
redor.
— Por isso que me deu uma vida normal por um mês, Vincenzo? —
Deixei as palavras saírem, ressentido de ter passado semanas quase normais
ao lado de Alana, para agora ter minha normalidade tomada. — Para me
fazer sentir que não vale a pena?
— Eu não vou tirar Alana de ti. — Ele entender meu medo só me fazia
ter certeza de que a ideia ao menos passou por sua cabeça. — Com todos os
inimigos que fez durante os últimos anos, alguém vai fazer isso por mim. —
E não estar errado incomodava. — O próprio signor Ferreti vai considerar,
ao saber que negou a filha pela segunda vez. Na primeira vez, eu te defendi.
Por que o faria, agora?
Queria responder que nem ao menos havia aprovado qualquer coisa
para aquela família considerar Emília como minha noiva — em nenhuma
das vezes. Os Ferreti o terem feito com o Don falando por mim só mostrava
o quanto o velho tinha poder sobre minha vida.
Fugir nunca foi uma ideia tão apreciada.
— Claro, eu sempre posso escolher aprovar esse noivado. — As
palavras conseguiram me prender, Vincenzo sorrindo com um
contentamento que eu odiava. — Gostaria da minha aprovação? Melhor,
gostaria de um passe branco para fora? — Senti minha garganta fechar. Era
assim óbvio? — É uma opção, Nickolay.
Entrei na Famiglia quando me casei com Giovanna. Durante todo meu
tempo com Nicolas, sabia que a única forma de o manter protegido na Itália
era continuar nela. Nos anos depois dele, estar ao lado de Matarazzo era a
única coisa que me mantinha existindo. Eu não via uma vida longa para
mim — menos ainda para Alana — se continuasse a lutar as malditas
guerras do chefe. E quem eu chamava de minha me fazia querer ter muitos
anos pela frente.
— E desde quando alguém sai com vida da Famiglia, Don?
As risadas secas nunca me incomodaram, até começarem a ser
direcionadas para mim.
— Eu vi como olha para Alana, Nickolay. — As palavras eram pura
zombaria, e eu me orgulhava por continuar calmo por fora. — Está
apaixonado, e eu sei o que é estar apaixonado. Por mais que possa ser difícil
de acreditar, sei o que é amar uma mulher a ponto de doer. Então, eu te
deixo ir com ela, figlio. Com uma condição.
Sabia que não seria assim fácil. Nunca nada era fácil no cazzo da
minha vida. Minha liberdade teria o maior dos custos.
— Já passaram anos demais, e eu ainda não tenho minha figlia de
volta. A encontre, e eu te deixo sair. A encontre, e mate quem a tirou de
mim. Faça isso, e eu te dou tua liberdade.
Mas com minha liberdade, viria a de Alana. E pela de Alana, eu estaria
disposto a fazer tudo para pagar.

Parecia que tinha engolido cimento. Era um peso que não ia embora,
por mais que já fizesse horas desde o café da manhã.
Apesar do peso, meu cérebro me obrigando a vê-lo atirar outra e outra
vez fazia eu me sentir tão vazia quanto minha barriga. Eu nem tinha
almoçado. Eu não conseguia colocar nada na boca, a não ser meus dedos.
Pelo menos, tinha parado de vomitar.
O relógio já marcava cinco da tarde, anunciando que haviam se
passado pelo menos duas horas desde o início de mais um pesadelo. Não
tinha forças para me levantar, e continuava deitada na cama que dividíamos
havia semanas.
Mas só eu estava na cama. Nickolay não tinha voltado para o quarto, e
eu queria procurá-lo, gritar com ele, e sumir dali. No andar de baixo, pude
sair da minha cabeça quando senti o cheiro dele ao ser puxada para perto, o
cítrico amadeirado que amava misturado com cigarro fazendo meu corpo
parar de tremer, apenas para deixar meu coração a ponto de explodir ao
cheirar metal.
O corpo estava coberto, mas dava para ver o sangue. No tapete, em
mim, nas mãos dele.
Ele matava pessoas.
Ele matava pessoas.
Ele matava pessoas.
Porra.
Era óbvio que Nickolay matava pessoas.
Eu sabia, e repetia a informação sem parar, para ver se entrava na
minha cabeça e amenizava o que tinha visto. Ele matava pessoas, e era por
isso que eu quis mantê-lo perto: pela segurança que viria comigo sendo
dele. Porque ele matava pessoas, e ele mataria qualquer um que tentasse
tocar em mim, e eu era boa em me enganar que era apenas isso.
Mas ver Nickolay tirando uma vida foi um de meus piores momentos.
Vê-lo apertar o gatilho fazia memórias que eu não queria rever voltarem. O
fazia parecido demais com quem eu não queria recordar.
Tinha alguém batendo na porta, e meu coração, daquela vez, ia
explodir.
— Sou eu, Alana. — Era difícil escutar a voz dele e não ter o conforto
de sempre me invadindo, as batidas continuando. — Vou abrir a porta, ok?
Escutei um clique, a maçaneta virando em seguida, mas continuei
deitada, o lençol cobrindo meu corpo. Claro que ele conseguiria abrir a
porta, e me senti idiota por tê-la trancado, me sentindo ainda pior ao
perceber que queria mantê-lo do lado de fora. Puxei a respiração ao sentir
sua mão tirar uma mecha de cabelos que insistia em cobrir meus olhos, ele
me copiando ao achá-los inchados e vermelhos.
Aquela mão matava pessoas, a caveira não sendo mais tão inofensiva.
E novamente me contava que, lá no fundo, eu sabia disso, e o mantive perto
porque queria isso. Então por que era tão difícil aceitar? Por que estava se
mostrando impossível aguentar o toque que eu passava o dia ansiando,
depois de assisti-lo acabar com uma vida?
Era por não ser a vida que eu queria que terminasse?
Monstro. Eu não deveria querer o fim de nenhuma vida.
Era irônico como o motivo de eu abrir sem pensar aquela porta se
tornava irrelevante. Emília se tornava tão irrelevante quanto meu sim para o
pedido que nunca veio, eu me tornando noiva sem sequer abrir a boca.
— Dolcezza, me diga o que preciso fazer para consertar isso. — Não
passou de um sussurro.
Tinha cândida e o cheiro metálico que me embrulhava o estômago na
mão tatuada, e eu não podia começar a chorar outra vez.
Saí da cama, me afastando de quem queria me confortar e indo para a
janela. Já estava escurecendo e as luzes do térreo mostravam um carro preto
que não costumava ficar ali.
— Você atirou numa pessoa — escapou enquanto eu observava o
homem que havia conhecido naquela tarde voltar a entrar, acompanhado por
quem havia sido um segundo pai para Nico. Lorenzo parecia tão cansado
quanto o italiano que, ainda na cama, mostrava não ter palavras para
começar a conversa. — Na minha frente. Você matou alguém na minha
frente. Você matou alguém, e tinha tanto sangue...
Nickolay esfregou os olhos e respirou fundo, mas manteve-se longe.
— Alana, não ter suspeitado de nada durante todo esse tempo é
simplesmente impossível!
Era quase engraçado como justo aquele homem, o retrato do
autocontrole, pudesse perdê-lo por completo ao meu lado. Engraçado, mas
naquele dia, fazia meu corpo gelar. Eu não queria ver o descontrole dele
agora. Não assim.
Não depois de ver quem não sobreviveu a ele.
— Não tem como nenhuma desconfiança ter se passado pela sua
cabeça, escutei de ti tantas vezes que já imaginava o que eu fazia! — A voz
saía alta, o italiano não fazendo questão de esconder a frustração, eu
querendo atravessar a parede e sair correndo dali. — Eu não te falo sobre
meu trabalho, lido com pessoas que claramente não são executivos! Eu
carrego uma arma!
Claro que nossos temperamentos sempre se chocariam nos piores
momentos, especialmente quando me sentia acuada.
— É diferente imaginar, e então ver você matando alguém! — Minha
voz saiu muito mais alta, e agradecia por minhas mãos estarem vazias.
Tinha certeza de que teria arremessado nele qualquer coisa que estivesse
segurando, o medo se juntando com a raiva de perder a segurança que
sentia ao seu lado. — É diferente pensar e escutar o barulho, o...
O som grotesco da bala afundando-se numa cabeça. O sangue que
espirrou em seu rosto depois do tiro. Ele, travando a arma e espalhando
mais o vermelho com a mão. Meu Deus, eu ia vomitar.
Vê-lo tentando se acalmar e não devolver o grito só me mostrava o
quanto Nickolay queria diminuir o abismo que se formava entre nós.
— Eu sei! — Era uma lamentação, ele finalmente se levantando e
dando alguns passos para perto de mim. — Eu sei que é, eu sei. Eu não
queria... — Tentei não sentir tanta culpa quando o passo que dei para trás o
fez parar. — Não queria que visse nada disso, dolcezza. Sei que entre ver e
saber existe uma diferença enorme. Nunca foi minha intenção te fazer
presenciar... — Era difícil para nós dois falar assassinato. — Isso. Te fazer
descobrir desse jeito.
Não tinha como continuar olhando para o rosto que tanto gostava sem
querer confortá-lo. Ao mesmo tempo, não conseguia juntar forças para me
aproximar e continuar sã. Nickolay nunca me machucaria. Ele havia me
contado em todos os beijos e carícias, em todas as vezes em que deixou
meu temperamento ganhar.
— Por quê? — Ainda assim, eu cruzava os braços em frente ao peito e
me encostava no vidro da janela. — Por que você faz o que faz? — Já tinha
sido enganada assim antes. Meu cérebro burro já acreditou em alguém que,
de bom, tinha apenas a aparência.
Era difícil como ainda havia sangue em nós dois, mas o que eu fazia
questão de registrar era a exaustão que via nos olhos escuros. Nunca o vi
tão cansado, e era desesperador o quanto meu coração se preocupava com
aquilo. Desesperador como meu cérebro me fazia ficar parada, lhe negando
qualquer conforto. Nickolay era um assassino, era da máfia, e estava
enraizado demais em mim para eu poder arrancá-lo sem morrer.
Literalmente.
Ele era apenas para ser alguém que me mantivesse segura. Eu era tão
estúpida.
O observei voltar para a cama, sentando-se o mais longe possível de
mim, como se soubesse que eu precisava daquela distância. Eu necessitava,
por mais que a falta de um toque estivesse machucando nós dois.
— Quando eu tinha seis anos, mataram minha mãe. — Ele começou
com um fato que eu parcialmente sabia. — Foi numa quinta-feira. Todas as
quintas, íamos ao mercado e voltávamos para casa pela praia. Eu lembro de
tomates caindo do saco de papel, lembro de ter achado que era por causa
disso que o mar estava vermelho. Lembro de flashes.
Ah, Nickolay. Por que meu coração sofria tanto pelas suas feridas?
— O nosso cérebro apaga coisas. — As lágrimas que ele não deixava
sair acabavam sendo derrubadas por mim, eu não fazendo ideia que
Nickolay havia presenciado a morte de quem ele me mostrou amar tanto. —
Apaga para continuarmos vivos. Então eu lembro do sangue, do barulho do
mar. Do cheiro dela misturado com o sal, eu chorando como um bebê.
Os olhos escuros saíram de mim, indo se perder na parede creme.
— Meu pai mudou depois de perdê-la. Dizem que amor de pai é
diferente, que homens não se expressam tão bem, e eu lembro que repetia
isso para tentar entender. Meu irmão mais velho praticamente nos criou,
enquanto meu pai passou o resto da vida atrás de vingança. Mal o vi durante
os anos que seguiram a morte da esposa, e não tenho exatamente boas
recordações das vezes que o encontrei em casa.
Descruzei os braços, as mãos já querendo ir até ele, meu coração mole
demais vencendo qualquer parte racional do meu cérebro.
— Eu não entendia o que se vingar poderia trazer de bom, ou como
alguém poderia pensar apenas nisso. Meu pai já era da máfia, e meu irmão
entrou assim que tinha idade suficiente para ser aceito. Quando soube, só
consegui sentir raiva. Os dois morreram com meses de diferença, e a morte
me fez conhecer a filha do Don. — Tinha um sorriso irônico nos lábios
tristes. — Eu falava que nunca me associaria a quem me tirou tanto, e
então…
Seus olhos continuaram na parede quando me sentei ao seu lado.
— Giovanna era filha de Don Matarazzo. Entrei para a Famiglia no
dia que me casei com ela. — As próximas palavras pareciam lhe causar
uma dor física ao serem pronunciadas. — E sabia que teria entrado quando
Nicolas morreu nos meus braços. Hoje meu filho faria onze anos. Já faz
mais de quatro que achei os dois na praia, mas só a memória da tarde…
Nicolas era tão pequeno...
A voz falhou, assim como minha capacidade de manter minhas mãos
longe dele. Deu para sentir o quanto meu abraço conseguia relaxá-lo, os
músculos tensos ficando mais leves com meu toque, o rosto procurando o
cheiro que dizia amar em meu pescoço.
— Meu trabalho hoje não é matar pessoas, Alana. — Ele me olhava
com arrependimento, e eu queria mais do que tudo que aquilo fosse o
suficiente. Sabia bem a frase que viria, me lembrando da promessa feita de
não mentir. — Mas eu mato pessoas, e elas tem tanto sangue nas mãos
quanto eu. — A palma que colocava sobre seu peito sentia o coração mais
rápido que o normal, e eu sabia que os lábios dele queriam buscar os meus
ao invés de se contentar com minha testa. — Ao menos é o que me conto
todas as noites para poder dormir.
Ele mataria Thobias por mim? Ele mataria a pessoa que havia me
deixado presa dentro de um quarto por uma semana inteira? O homem que
me tirava noites de sono, que havia me colocado em uma prisão, por mais
livre que eu fosse para todos que enxergavam de fora?
Sabia que sim sem precisar perguntar.
Assim como era óbvio que Nickolay me libertaria, apenas para eu ser
outra vez contida.
— Qual era a pergunta que você ia me fazer? — questionei, lembrando
de nosso primeiro jantar. — O que você precisava saber antes de me contar
tudo isso?
Finalmente entendi a frase que ficou por dias na minha cabeça: preciso
do seu sim. Era difícil ver o arrependimento aumentar ainda mais em seus
olhos, eu fazendo uma pergunta para a qual já havia uma resposta.
— Eu disse que casamentos na minha família eram diferentes — ele
começou, a mão que arrumava alguns fios atrás da minha orelha mais
instável do que estava acostumada. — São negócios, são internos. Quando
trazemos alguém de fora, não podemos apenas contar. Precisa haver um
compromisso. Na posição que estou, já faço mais do que poderia te
escolhendo. Cazzo. — O lábio inferior sofreu uma mordida que quase o
rasgou, o italiano olhando para cima antes de voltar a me encarar. — Eu ia
te pedir em casamento. Não era para saber nada antes de estar casada
comigo, Alana.
E eu queria beijá-lo, ao mesmo tempo que queria sair correndo dali. Eu
não tinha mais aquelas duas escolhas.
— E eu preciso dizer sim? — rebati, considerando o quão melhores as
coisas poderiam ter corrido caso a pergunta tivesse sido feita antes da
última tarde. Caso eu ainda vivesse na ilusão de poder dizer não a ele.
Não duvidava que teria dito sim, assim como tinha a certeza de que
reagiria muito melhor ao que agora sabia caso não tivesse visto Nickolay
atirar. Emília novamente me tirava as chances de ter paz, e ponderei o
quanto ela tinha conhecimento sobre aquela tarde para ter me feito ir
correndo até o italiano.
E pela primeira vez desde que abri a porta, lembrei do que me fez
voltar antes da hora. Ela achou que estava me mandando para a morte?
Achou que Nickolay fosse escolhê-la?
— Ok, pergunta desnecessária. Afinal, eu já sou sua noiva, e você nem
mesmo me pediu. — Ele havia pedido Emília, ou o acordo não passou de
um simples negócio?
Meus braços voltaram a se cruzar, mas os dele se negavam a fazer o
mesmo, o abraço me confortando e me fazendo querer chorar. Amava e
odiava as mãos que faziam cafuné, os lábios que beijavam minha testa, seu
cheiro.
— Te defender aquele dia, te ter dentro da minha casa, o que viu hoje...
— Me tirou o direito de dizer não. — Aproveitei por mais um segundo
aquele carinho antes de me separar. — Você me avisou que era egoísta. Não
basta mais eu pedir pra ir embora, basta? Não basta mais eu pedir pra ir
embora e jurar nunca abrir a boca.
— Alana...
— Você vai me matar se eu disser não?
Era como se eu tivesse lhe perguntado o maior dos pecados.
— Dio santo, Alana, mai! Como me pergunta uma coisa dessas? —
Nickolay me olhava assustado, e eu me afastar da mão que tentou tocar meu
rosto foi mais um tapa. — Eu nunca vou levantar a mão para ti, dolcezza...
— Mas alguém vai, não vai? Se eu negar. — A hesitação me deu o sim
que esperava ouvir. — Nickolay, não adianta falar que não vai deixar
ninguém me tocar. Não acho que possa fazer algo pra impedir se me
quiserem morta, estou errada? — E mais uma vez, tive minha resposta com
o silêncio.
Irônico, eu sendo salva, apenas para ter outra vez a vida em perigo. Eu
presenciando o fim de alguém, e a morte novamente me tirando a liberdade.
— Quem você matou? — perguntei, muito mais para me distrair do
que querendo uma resposta.
Não esperava a que veio.
— O homem que assassinou meu filho. — Ele abaixou a cabeça, as
mãos apertando o edredom embaixo de nós.
Como aquele dia terminava de um jeito tão errado? Porque era muito
errado nossas mãos apertarem o tecido por outro motivo que não a paixão
que sempre dividíamos naquela cama. Era muito errado eu não ter força o
suficiente para confortar quem se tornou tanto em tão pouco tempo, justo no
dia que ele parecia precisar tanto de mim.
Eu também precisava de alguém, e hoje, esse alguém não poderia ser
ele.
— Você não sente nada quando puxa o gatilho?
Que resposta eu esperava?
— Sinto.
O que ele poderia dizer para me fazer esquecer de tudo? Para resetar
todos os meus sentimentos para o começo de nossa manhã?
— Mas hoje, só senti raiva. E a única coisa que me arrependo é de ter
feito isso na sua frente. — A sinceridade dele não tinha o efeito que eu
precisava. — Disse que não mentiria para ti.
Me deixei olhá-lo por um minuto antes de dar uma resposta, tentando
entender tudo que estava sentindo. O que doía mais? Nickolay ser capaz de
fazer o que eu precisava, ou ele me arrancar a liberdade que eu nem mesmo
havia conseguido? Não tinha sido apenas eu que Thobias ameaçou antes de
partir. Era só eu que sofreria com a nova prisão.
Respirei fundo, minha mão enfim achando a dele.
— Ok — falei, e nem eu nem Nickolay parecíamos acreditar na
resposta.
— Ok?
— Eu entendo as suas escolhas, Nico. Eu consigo entender o que te fez
entrar nessa vida. Consigo entender o que... — Engoli, tentando diminuir a
bola que se formava na garganta antes de continuar. — O que te fez puxar o
gatilho hoje. — Dava para ouvir o alívio em sua próxima respiração. —
Obrigada por ser sincero...
Os lábios grossos estavam nos meus antes que pudesse completar a
frase, Nickolay outra vez me mostrando o quanto eu era essencial para sua
calma. Como um homem como ele conseguia tirar qualquer conforto justo
de uma pessoa tão quebrada quanto eu?
Era estranho o quanto, por alguns segundos, me senti em paz beijando
um assassino. Ele me colocou no seu colo, me calando da melhor maneira,
a língua contra a minha sendo a melhor carícia, os braços me trancando em
um abraço.
Me trancando com ele.
O que sentia por Nickolay me faria escolhê-lo todas as vezes. Mas não
ter a liberdade para tomar aquela decisão me matava por dentro. Pela
primeira vez, as batidas estavam presentes mesmo com ele no quarto.
— O que foi? — A pergunta veio quando meus lábios não
conseguiram mais responder.
— Eu entendo, mas... — E eu deixava mais uma vez escapar todas as
lágrimas que o orgulho dele secava. — Mas hoje não, Nickolay. Hoje eu
não posso.
— Alana...
— Eu disse que entendo, não que estou em paz com tudo que
aconteceu! — E saía de cima dele, de perto da pessoa que até horas atrás, só
me trazia coisas boas. — Você me tirou uma escolha! Outra vez me tiraram
uma escolha! — E como antes, meus gritos pareciam piores que tapas. —
Eu gosto de você, mas não poder escolher dói!
Era como se nós dois tivéssemos uma ferida aberta no peito.
Machucava não conseguir curar a dele, assim como estava me matando
sangrar tanto outra vez. Em vinte e três anos tive dois relacionamentos, e os
dois insistiam em me forçar a ficar confortável demais com a morte.
— Quero ficar sozinha. — Não daria para manter a sanidade e sua
companhia, um dos dois precisando ir embora naquela noite. — Sozinha,
Nickolay. — Insisti quando ele hesitou em se levantar. — Me deixa
escolher pelo menos uma coisa, por favor.
Sim, doía vê-lo de pé, doía saber que ele precisava tanto de alguém, e
ao mesmo tempo ter a certeza de que não podia ser eu aquela pessoa. Doía
ser tão quebrada, doía quebrar mais. Justo eu, que achava ser impossível
fazer mais cacos do resto que tinha me sobrado de coração.
Filho da mãe, que tinha me curado só para me fazer de novo doente.
Maldito, por me fazer gostar tanto dele à ponto de poder ser machucada.
Mordi o lábio para não deixar o soluço sair, escondendo o rosto no
travesseiro ao escutar a maçaneta girando.
— Quando se perde alguém que é sua vida, fica esse buraco. É um
difícil de preencher. — A voz dele nunca soou tão fraca, o adjetivo não
combinando com quem falava. — Eu nunca quis te colocar numa prisão,
Alana. Mas ao seu lado, esse buraco fica tão, tão menor.
Entendia sobre buracos e perdas, mais do que gostaria. Assim como
me reconhecia nas próximas palavras, eu também não tendo a capacidade
de mandá-lo embora, ou querendo ouvir o que acabaria com nosso conto de
fadas.
— Foi impossível afastar alguém que só me fez bem. Desculpe meu
egoísmo, dolcezza.
E ele saiu, as quatro paredes ao meu redor sendo as companheiras do
choro que varreu a noite.

"Eu passei menos de um dia do lado dessa vadia, Alana!"


Meu ouvido zumbia, e por um momento isso foi tudo que meu cérebro
conseguiu registrar.
“E você resolve acreditar nela?”
Então veio a dor. Demorou alguns segundos para eu entender o que
estava acontecendo. Mais alguns para me lembrar do porquê aquilo
acontecia. A batida na testa tinha sido forte, e eu me sentia zonza demais
para reagir.
Minha cabeça virou para o lado com o próximo soco, e eu forcei meus
braços a cobrir meu rosto. Ele ia me matar, mas eu tampava os olhos para
não ver mais os abertos de Gabriela. Tinha tanta vida em seus verdes
minutos atrás, e a culpa de não a ter feito ir embora me dominava mais do
que a agressão de Thobias.
Culpa de não ter feito nada para ajudá-la. De só ter observado, ainda
não entendendo se era choque ou medo que havia paralisado meus
músculos. Ele ficou tão bravo quando chegou e nos viu sentadas, quando
viu o que Gabriela exibia para mim. Eu achei que ele fosse nos matar.
E então, eu tive certeza, depois dele puxar a mulher pelos cabelos e
esfregá-la contra a parede. Eu queria sair correndo, mas mal tive forças
para me mexer. Era tarde demais quando o fiz, e os cacos de vidro
espalhados pelo chão cortavam demais.
Covarde. Praticamente merecedora de cada soco, pensei ao me curvar
com o chute que veio no estômago. Ele não podia chutar meu estômago.
Tinha gosto de metal na boca, e eu já não sabia se era do corte que havia
no meu lábio superior, ou se a causa era mais interna.
E meu noivo não parava de me bater. Ele gritava alguma coisa, mas o
último golpe havia roubado o resto da minha audição, a voz soando
abafada como se eu estivesse debaixo d'água.
A sensação de que iria desmaiar fazia os machucados doerem menos,
mas se tivesse o azar de escapar com vida, sabia que a dor continuaria no
dia seguinte. Em todos os outros.
Um homem tão loiro quanto Thobias o continha, quem eu chamava de
noivo se debatendo antes de finalmente se acalmar. Ele deu mais um chute,
mas dessa vez o alvo não era eu.
Por um momento, achei que fosse ganhar alguma ajuda.
Gemi quando me virei para o lado, tossindo vermelho perto de onde
antes estava Gabriela. A última coisa que pensei antes de apagar foi que o
corpo não estava mais ali.

Detestava as noites nas quais sonhava com ele, meu cérebro pedindo
paz, meu corpo cansado e suado me obrigando a tomar um banho antes das
seis da manhã. Eu estava sozinha na cama, e os pesadelos não foram gentis
sem minha morte me protegendo. A tarde passada não era nada perto do
que meu cérebro conseguia me recordar nos mínimos e piores detalhes.
Ainda assim, lembrar do dia anterior fez a dor se multiplicar por dez,
eu não me preocupando em secar os cabelos e escolhendo meu jeans mais
surrado. Ao menos lembrei de colocar um sutiã, por mais que a camiseta
preta não ficasse transparente como a branca usada meses atrás.
Preferia que a dor de cabeça fosse por causa de uma ressaca.
Desci com a esperança de estar sozinha na mansão, mas fui
surpreendida com um enorme café da manhã, Nickolay dividindo a mesa
enorme da sala de jantar com Lorenzo e o mesmo homem do dia anterior.
Quem eu lembrava se chamar Vincenzo Matarazzo se sentava na ponta, e
abria a boca antes que eu tivesse a chance de dar qualquer desculpa para me
retirar.
— Que bom que decidiu se juntar a nós, bella. — O português era
claro, mas muito mais carregado no sotaque do que o de Nickolay, e eu não
tinha como escapar.
Que merda.
— Eu dormi demais — respondi, escolhendo a cadeira em frente ao
meu dito noivo para me sentar.
— Nico disse a mesma coisa. — O homem coçou o queixo, ele não
tendo nenhuma barba sendo o oposto do italiano que me encarava. Os olhos
de Nickolay pediam por qualquer atenção, e por isso, mantive-a inteira no
seu chefe. — Por mais que o tenha achado dormindo no escritório.
Matarazzo não fez o mesmo, os olhos colando nos escuros.
— Figlio, não é inteligente deixar tua donna dormir sozinha. Fiz isso
demais, e olha bem o que me rendeu. — Lembrar que o homem que falava
era viúvo aumentava ainda mais meu incômodo.
Enchi meu copo de suco de laranja, me contendo no último segundo
para não revirar os olhos. Deveria, no mínimo, estar sentindo pavor da
pessoa que poderia ser a nova responsável pelo fim da minha vida.
Só conseguia sentir raiva de todos os homens presentes. Eu estava
assim desapegada de viver? Havia desistido depois de ontem?
— Por um acaso estão tendo problemas por causa do sangue?
— Precisava terminar de revisar alguns negócios, Don. — A resposta
de Nickolay seguiu tão logo a pergunta veio, ele mostrando o quanto queria
que eu abrisse a boca.
— Não precisas falar negócios na frente da tua noiva. — Os olhos dele
estavam outra vez em mim, os meus muito mais interessados no pão de
queijo fresco que era trazido para a mesa. — Estamos todos em família
aqui, não estamos?
— Claro. — A voz soava muito mais séria do que tinha me
acostumado a escutar sair dele. — Desculpe.
Não consegui esconder minha irritação, e era quase engraçado como
não havia mais nenhum senso de autopreservação em mim. Meu Deus, eu
precisava de ajuda, eu precisava de muito mais ajuda que as oito sessões
mensais de terapia. Mal cumpria as duas semanais, e soltei uma risada ao
lembrar das vezes que não fui.
Todos os olhos pararam em mim.
O quanto poderia ferrar nós dois se eu começasse a gritar como na
noite passada? Não passou despercebido o jeito que o italiano na minha
frente agarrou seu copo vazio, a outra mão pairando sobre a faca da
manteiga.
Sabia que aquilo era uma arma nas mãos Nickolay, assim como meu
coração acreditava cegamente que eu seria defendida, e não atacada. Mas
meu cérebro, ainda envolto no pesadelo de mais cedo, gritava o contrário.
Nico nunca faria o que Thobias fez, eu repetia na minha cabeça, mas
acreditava com ressalvas nas minhas afirmações. Eu também acreditei que
Thobias nunca seria capaz de me machucar, e ele o fez das piores maneiras.
— Está acontecendo alguma coisa? — Matarazzo perguntou, meus
olhos indo da faca para seus sérios.
E repeti em pensamento: Nico nunca me machucaria. Nem mesmo
chegaria perto do feito por Emília, e lembrar do arranhão que achei no
contorno da minha mandíbula transformou qualquer sombra de medo em
fogo.
— Não. — Novamente a resposta vinha antes que eu pudesse falar
qualquer coisa.
Era óbvio que ele não queria que eu abrisse a boca. Era óbvio que não
era bom eu queimar justo agora.
— Perguntei para tua noiva, Nickolay.
Assim como deveria ser óbvio para o italiano que não o obedeceria
naquele dia.
Eu não era cruel como a loira que, depois de ontem, tinha se tornado
uma inimiga, mas minha raiva me impedia de sorrir e ser dócil. Deu para
notar o medo nos olhos de Nickolay, assim como foi perceptível o receio se
transformando em alívio, e então entendimento, com minha próxima frase.
— Você jantou com Emília na quarta-feira — soltei o que sabia, sem
esconder minha irritação, revelando a responsável pela nossa situação
delicada.
— Dolcezza...
— Por que não me falou? — Era melhor voltar a pensar em como
havia doído descobrir o que me fez sair correndo ontem, do que focar no
que me atormentava nos últimos meses. — Você jantou com ela, chegou em
casa e se deitou do meu lado!
De canto de olho, via os outros dois italianos me encarando surpresos,
Vincenzo parecendo se divertir com a situação enquanto Nickolay tentava
me calar chamando meu nome. Eu queria arremessar o pão de queijo na
cara dele, e não o fazer mostrava muita maturidade da minha parte, ou pelo
menos era o que eu me dizia.
— E ontem, ela veio me contar o que você faz! — Eu não iria
arremessar comida no meu noivo, e não iria me calar. — Porque ela achou
que eu não sabia! — Eu tinha me calado demais na vida. — E quando eu
falei pra essa vadia...
— Alana!
— Que eu sabia, porque é óbvio que eu sabia! — Não fiz questão de
controlar o volume da voz, a frase saindo quase gritada fazendo Nickolay
enrugar a testa. — Afinal, como eu estaria com você...
— Alana, basta! — Ele igualou o tom, batendo os punhos na mesa ao
se levantar.
Eu copiá-lo calou a todos.
— É esse tipo de mulher que eu vou precisar aturar pra ficar com
você? — Nunca vi o italiano me olhar daquele jeito, e se não tivesse
transformado todo meu nervosismo em raiva, teria gargalhado. Ele
realmente estava com medo do que eu poderia falar. — Porque eu prefiro
nunca mais dividir uma cama contigo, do que ver essa filha da puta te
tocando!
O som que minha cadeira fez quando voltei a me sentar foi
ensurdecedor. Nickolay ainda me olhava em choque quando Vincenzo
limpou a garganta, o chefe sendo o único que parecia se divertir naquele
cômodo. Achei seus olhos castanho-claros antes dele começar a falar.
— Alana, não sinta ciúmes de quem não significa nada. — A voz não
tinha sinal de irritação, o tom quase paternal me desconcertando. —
Nickolay era novo quando deixou claro para Emília a importância que ela
tinha em sua vida. E reafirmou agora, escolhendo ficar justo contigo.
A minha também saía muito mais suave ao responder.
— Mesmo assim, ele se encontra com ela — bufei. Algumas vezes eu
realmente merecia o título de pirralha mimada. — E eu não gosto, por mais
que estejam tratando de negócios. — Arrastei a última palavra, enfim
revirando os olhos.
— Gostaria que eu resolvesse isso para ti, ragazza? — A pergunta me
pegou desprevenida.
Estava prestes a responder que sim, eu queria muito que ele desse um
jeito na loira, quando me lembrei com que tipo de homens estava lidando.
Resolver aquilo não soava mais tão bem, e Gabriela voltou para meus
pensamentos, fazendo o pão de queijo perder qualquer gosto bom.
Thobias tinha resolvido aquilo, e eu não queria mais resolver nada.
— Estou atrasada. — Voltei a ficar de pé, minha voz uma sombra do
que era segundos antes. — Com licença.
Saí apressada da sala de jantar, e tudo que eu queria era sair correndo
daquela casa. O plano era pegar o mínimo no andar de cima e sumir, e já
estava no primeiro degrau quando uma mão segurou meu braço.
— Alana, espera! — Não passava de um sussurro, mas a voz era
áspera. Sacudir o braço foi inútil, os dedos apertando mais minha pele, pela
primeira vez, por algo que não era prazer. — O que foi isso? O que pensa...
— Nickolay parou a frase no meio ao enfim notar a marca de unha que eu
carregava na pele. — O que é esse arranhão?
Mas nem mesmo sua preocupação conseguia me suavizar.
— O que acha? Sua ex-noiva não reage bem a verdade! — Tentei
soltar meu braço pela segunda vez, querendo estapeá-lo ao mesmo tempo
que o queria me confortando.
— Emília não era minha noiva! — E novamente, me recordava de
Thobias, Nickolay escolhendo se defender ao invés de fazê-lo comigo.
"Gabriela nunca foi meu caso, sua estúpida! Você pediu por isso
ficando do lado dessa louca!"
Precisava sair de perto dele. Puxei meu braço tão forte que
desequilibrei nós dois, o italiano nos ajudando a continuar de pé. Mesmo
evitando seus olhos, Nickolay viu o que eu tentava esconder.
— Dolcezza, o que foi? — Medo.
Ele só não sabia que o medo não era dele.
— Não se sente mais segura comigo?
Doía não conseguir responder sim. Desde ontem, tudo doía mais do
que eu me sentia confortável em aguentar.
— Quero voltar pro meu apartamento. Ainda posso escolher isso?
Ele não me impediu mais de subir.

Não fui para a faculdade, escolhendo abrir uma das malas sobre a
cama e arremessar as roupas dentro dela. Nickolay entendeu bem o quanto
eu queria companhia e nem subiu as escadas, e não me importei em fechar a
porta.
Lorenzo não compartilhava do conhecimento do homem mais novo.
— Posso entrar, Alana?
— Posso dizer não? — reclamei sem parar o que fazia, tirando com
raiva do meio das minhas roupas a camiseta grande que não me pertencia,
por mais que tivesse meu cheiro.
— Sempre temos essa escolha.
Tive que segurar o riso, minha falta de escolha uma prova ainda viva
do contrário. Talvez devesse ter dito não, ao invés de deixar o italiano
confortável a ponto de começar a falar.
— Acho que nunca conversamos direito.
Não era o melhor dia para começarmos, queria responder. Com
certeza, dele viria a bronca que Nickolay não teve coragem de me dar, e eu
não me sentia merecedora de tomar.
— Eu cuidei do Nico quando ele ainda era um moleque. O pai dele era
meu amigo mais próximo, praticamente o irmão que nunca tive — Lorenzo
contou, encostado no batente da porta. — Nickolay é como se fosse meu
filho, por mais que o moleque seja resistente ao título.
— E? — perguntei, quando a continuação demorou para vir.
— E é difícil para um pai ver o filho sofrer.
Ah, pronto. Como se eu estivesse muito feliz na posição que me
encontrava. Por que ninguém parecia achar a minha situação difícil?
— Não estou insinuando que sua posição é fácil — ele disse quando
me virei para encará-lo, ignorando minha expressão nada amigável.
— Eu não ia falar isso. — Franzi a testa, desejando saber se todos
tinham o mesmo dom de Nickolay, ou eu que era muito fácil de ser lida.
— Tem certeza? — Lorenzo sorriu, sacudindo a cabeça. — Ele está
apaixonado por você. É a primeira vez que meu moleque se apaixona. Nico
teve seus casinhos, mas quando veio Giovanna… Ele se fechou para
qualquer coisa boa depois dos dois.
E mais uma vez, Giovanna. Ao menos ela era uma boa distração. Não
teria mais nenhuma depois de colocar os pés para fora dali.
— Por que Nickolay se casou com ela? — Saiu antes que pudesse me
conter, minha curiosidade sobre o porquê de ele ter feito tal sacrifício ainda
presente.
— Porque era a coisa certa a se fazer.
— Não era! — contrariei, minha voz outra vez saindo irritada. Não era
certo se casar sem amor, e era o que todos da família de Nickolay deveriam
acabar fazendo.
O tom calmo que o homem mais velho usava servia bem demais para
me acalmar.
— Eu sei que não era certo, Alana. Especialmente para Nico, eu não
queria que ele se casasse assim. Seu pai e eu tentamos tanto mantê-lo longe
disso — confessou com as mãos nos bolsos. — Mas se não fosse ele, seria
outro. E o menino sabia que outro poderia não ser tão compreensivo com a
situação da amiga. Ele aceitou o sacrifício pela ragazza.
Lembrei de Alice, e de como meu italiano contou que algo em
Giovanna quebrou após a morte dela. Mortes tinham aquele poder com os
vivos.
— Ter um pai que gostasse dele era o certo para Nicolas, por mais que
o casamento não fosse o certo para Nickolay, muito menos para Giovanna.
Sabe como foi o primeiro casamento do seu noivo?
Dei um sorriso sem graça e fiz que sim, lembrando do pouco que
Nickolay tinha mencionado sobre o assunto.
— A menina se tornou difícil depois de saber que se casariam. Depois
de ter o bebê. Ela culpava o marido e o filho por tudo, sempre arranjando
um motivo para brigar. Nico tinha pouco mais de dezoito, um bebê que não
parava de chorar nos braços, uma esposa que o detestava. Eu olhava para
ele odiando aquela situação, e meu coração apertava pelo meu menino. —
Lorenzo lamentou, e me perguntei se ele imaginava que eu seria um
segundo inferno na vida do seu protegido.
— Ele deveria ter se separado. — Minha afirmação me rendeu um riso
debochado.
— O moleque é bem persistente. — Lorenzo andou até mim. — E não
era como se ele pudesse abandonar a filha do Don, Alana. Nickolay sabia
da responsabilidade que assumia ao se oferecer como marido. Casamentos
nessa Famiglia são até a morte.
Até a morte, e a informação tinha o poder de arrepiar minha alma.
Mas mesmo com medo, a voz calma e as palavras do moreno
deixavam meu coração um pouco mais mole, o carinho que havia pelo filho
de criação voltando um pouco para mim. Eu conseguia suavizar sabendo
que não era a única que havia sido moldada por maus bocados.
— No dia em que Nico perdeu a família, ele e Giovanna tinham
brigado, e o menino saiu sem se despedir. A última coisa que disse para sua
amiga era que a detestava. — Ah, Nico. — E ele se culpa por isso até hoje.
— E agora, você vai tentar me convencer a ficar. — Mas a história já
havia feito aquele trabalho.
— Você sabe quem é Vincenzo Matarazzo, não sabe? — Fiz que sim, a
pergunta me confirmando que eu deveria temer aquele nome. — Você viu
Nickolay matar uma pessoa. Os dois estão claramente sem se falar,
Nickolay está nervoso, e você não para de gritar. Don Matarazzo não é
conhecido por tolerar gritos, Alana.
— Era pra eu aceitar? — Lorenzo ignorou minha pergunta.
— E agora você está indo para sua casa. O que isso parece?
— Que eu estou brigando com o meu noivo. Deixei isso bem claro no
café.
Ele deu uma risada seca, balançando a cabeça.
— Você está com medo e fugindo, e deixando Don Matarazzo ver toda
a mentira contada pelos dois. Ele simpatizou com você, estar viva é prova
disso. Mas só simpatia não te ajuda por muito tempo, ainda mais com
alguém que muda de humor numa velocidade maior que a sua.
Estreitei os olhos.
— Vai ser muito mais fácil pra vocês se eu voltar pro meu
apartamento. — Ao menos, ninguém mais teria que lidar com minhas
mudanças de humor.
— Realmente acha isso? — E eu estava prestes a responder que sim,
era óbvio que sim, quando as próximas palavras me tiraram qualquer poder
de decidir pelo que eu queria. — Você ainda não sabe onde se meteu,
ragazza. Nickolay noivando contigo foi contra uma ordem direta do Don.
Ninguém desobedece Matarazzo sem sofrer as consequências, Alana. Ele só
está procurando um motivo.
— Já chega. — A voz que interrompeu era a que antes só me trazia
conforto, a mão no ombro de Lorenzo o fazendo deixar o quarto antes da
próxima frase. — Termine de arrumar suas coisas, Matteo está esperando
para te levar.
Não me mexi, abandonando toda a vontade de continuar socando
roupas dentro da mala minúscula.
Os olhos que mostravam tanto cuidado comigo não haviam tido
qualquer compaixão na tarde passada. O quanto precisaria para eu esquecer
aquilo? O que aconteceria se eu fosse embora?
Quando pararia de doer tanto?
— Isso vai te causar problemas?
Meu fim poderia ser igual ao de Gabriela. Até pior.
— Não importa — Nickolay rebateu, ele mesmo retirando um dos
meus vestidos do armário antes de eu pará-lo.
Era angustiante ele me olhar esperançoso ao sentir minhas mãos em
seu antebraço, meus dedos ao redor da morte.
— É, eu realmente não deveria me importar — disse antes de me
afastar, começando a retornar as peças de roupa para os cabides. — Mas eu
não consigo. Eu fico.
Só que ficar não era confortável. Longe disso, era me trancar num
inferno, eu longe de qualquer paz durante toda a sexta.
Passar na frente do escritório que tinha a porta fechada era necessário
para praticamente tudo, então deixei o dia terminar comigo na cama, a mala
abandonada ao lado do armário, as roupas empilhadas nas prateleiras de um
jeito que passava longe do organizado. Nickolay gostava de arrumação, e
ter o poder não lhe dar aquilo seria a melhor vingança do dia.
Ele entrava era mais de onze, olhando para a bandeja ao meu lado, a
comida praticamente intocada. Adorava tudo que Olga preparava, e ao
mesmo tempo, nada descia, mesmo com o buraco que havia no meu
estômago.
Ao menos o italiano entendia que me cobrar algum apetite era inútil,
Nickolay desabotoando a camisa que usava antes de tentar uma primeira
frase.
— Preciso dormir aqui hoje. — Virei as costas para ele.
Dava para ouvir o italiano se trocando assim como dava para escutar a
quilômetros meu coração batendo, a velocidade aumentando quando senti o
colchão afundar. Nunca quis tanto que alguém não me tocasse. Eu iria
perder o resto da minha sanidade se ele resolvesse me abraçar.
— Até quando vai me dar silêncio, Alana? Sabe que temos que
conversar.
Fechei os olhos sem responder.

Quando acordei, estava claro demais. Senti alguém tocando minha


testa, e por um momento, aproveitei o carinho. Eu poderia aproveitar o
toque que tanto quis durante o dia de ontem de olhos fechados, poderia tirar
conforto da mão tatuada sem olhar para o rosto, ainda marcado demais de
sangue.
Mas não era o quarto de paredes creme e cores escuras que aparecia
para mim. As cores eram erradas, a cama era dura demais, e a mão que eu
via pairar sobre mim não tinha tatuagem alguma.
— Sentiu minha falta, gata?
E os dedos apertaram minha garganta, fazendo eu me virar para quem
nunca mais gostaria de ver. Conseguia sentir as lágrimas, e o ar que eu
precisava não vinha, os olhos azuis me observando com a mesma crueldade
que vi na noite de Gabriela, e em todas as inúmeras que seguiram.

Puxei uma respiração ardida, me sentando na cama com as mãos no


pescoço. Ainda estava escuro, e eu buscava algum consolo repetindo que
tinha sido apenas um sonho. Apenas um sonho, mas as lágrimas corriam
pelo meu rosto, eu impossibilitada de contê-las.
Fui para o banheiro, não precisando acender a luz, a lua cheia e as
semanas ali passadas sendo o suficiente para me fazer chegar até a pia sem
tropeçar. Funguei, tentando fazer as mãos pararem de tremer enquanto
jogava água no rosto.
Apenas um sonho. Foi apenas um sonho.
Foi apenas um sonho, e mordi o lábio para não deixar um soluço sair, a
última coisa que gostaria era acordar Nickolay.
Óbvio que já o tinha feito, o italiano estando sentado na cama assim
que voltei para ela, meu orgulho me impedindo de pedir o que meu cérebro
estava implorando.
— Teve um pesadelo?
Ele me lia dolorosamente bem.
— Vem. — Nickolay disse, estendendo um dos braços, confiando que
não era o motivo dos meus sonhos ruins.
Ainda tinha a certeza de que nunca teria pesadelos com as tatuagens ao
meu redor, e me aconcheguei contra ele. Por mais que meu cérebro ainda
estivesse reaprendendo a desligar com o italiano ao meu lado, o toque
carinhoso já me devolvia a calma. O jeito que me puxava para seu peito
fazia meu coração desacelerar, e eu sabia que por maior fosse a prisão que
estivesse me colocando, estaria segura ali.
Presa, porém segura. E segurança, depois de ser relembrada do meu
pior medo, era o suficiente.

Ainda tinha o cheiro dele em mim quando acordei, mas Nickolay já


estava fora da cama, seu lado frio. O chuveiro ligado e as roupas jogadas na
porta denunciavam sua rotina, meu estômago pedindo por qualquer coisa
para comer. A bandeja com a janta quase intocada não estava mais sobre a
mesa de cabeceira, eu não tendo muita escolha senão buscar algo na
cozinha.
Olhei para a porta fechada do banheiro, me perguntando o que poderia
dar errado se eu me trocasse e descesse as escadas. Eu não ferraria com
tudo apenas indo tomar café da manhã, ferraria?
Decidindo que não, substituí a camiseta gasta que usava para dormir
por um vestido-camisa, lembrando da única coisa boa que aconteceu na
minha sexta. Passar o sábado com minha mãe teria o poder de me relaxar, e
me forçaria a esquecer de tudo que não saía da minha mente nessa mansão.
O espelho do banheiro do andar de baixo falava que minha aparência
nem estava tão ruim, as olheiras menores do que achava que encontraria
depois de ontem. O filho da mãe realmente curava meus males, e era
irritante precisar admitir aquilo.
Era irritante como o queria junto comigo quando entrei na sala de
jantar, Olga sorrindo nervosa antes de me deixar sozinha junto de quem eu
tinha esperança de conseguir evitar.
— Alana. — Só havia Vincenzo ocupando uma das cadeiras, e
amaldiçoei minha pressa e falta de sorte. A última gota com certeza caíra na
noite em que fui salva por Nickolay, e respirei aliviada por desejá-lo ao meu
lado.
O queria também fora da cama, e ao mesmo tempo que isso me
acalmava, também fazia eu me perguntar o quanto eu era quebrada. Deveria
querer sair correndo dali, e não querer correr para ele.
— Bom dia… — comecei, minha boca permanecendo aberta, eu não
achando as palavras certas para continuar. — Eu não sei como chamar o
senhor. — Acabei falando ao passar pela porta, meu plano sendo o de pegar
um pão e sumir.
— Vincenzo basta. — O italiano não parecia ter a menor intenção de
me deixar ir, a mão enrugada apontando para a cadeira ao seu lado quando
alcancei o bule de café. — Mais descansada?
O que seria errado falar para esse homem? O que Nickolay
recomendaria fazer?
— Sim.
Provavelmente mandaria eu calar a boca e deixar somente ele falar, e
aquela não era uma opção disponível no momento. Maldita seja a minha
pressa.
— Acordou cedo. Vai me dar o prazer da tua companhia hoje?
Ok, eu sabia me virar sem Nickolay.
— Estou atrasada — respondi, cortando um pão com as mãos, e
provando que não, eu não sabia.
Vincenzo fez um som que tanto poderia ser uma risada, quanto poderia
ser uma reprovação pela resposta que ganhou. Eu não estava atrasada, e por
um momento quis pedir desculpas e falar para começarmos de novo.
Pessoas que comandavam pelo medo realmente tinham um efeito
estranho sobre os outros, eu sabia. Vivia pisando em ovos com Thobias,
nunca sabendo o que poderia ativar o comportamento que me fazia querer
fugir do planeta.
— Sempre atrasada, ragazza. — Os olhos eram desconfiados, as mãos
descansando sobre a mesa deixando meu coração inquieto. Lembrava bem
de quem sempre fazia isso antes de escolher o que iria arremessar. — Ou
está me evitando, ou tem medo de mim.
Os dois.
— Nenhum dos dois.
Mas eu não o deixaria ver aquilo. Eu sabia esconder bem quando
queria, passei meses, anos escondendo, somente deixando ver o pavor ao
desviar do que era jogado na minha direção. Mas não pensaria naquilo
agora. Agora eu só pensaria em como jogar fora a maior conversa fiada da
vida.
— Suco?
E sorrindo de uma forma muito mais agradável, Vincenzo aceitou a
oferta, e eu enchi seu copo antes de repetir o mesmo com o meu.
— Como conheceu Nickolay? — Era como estar outra vez no almoço
de sábado, meu pai soltando a mesma pergunta que o homem que chamava
meu noivo de filho me fazia. — Ele já me contou a história dele, mas tenho
a impressão de que a tua vai ser mais interessante.
Nós nos conhecemos numa cafeteria. Ele pegou meu café, eu peguei o
dele, e minutos depois, descobri que o mafioso seria meu novo professor.
Tirando a parte dos assassinatos, era praticamente a sinopse de uma
comédia romântica, e o jeito que os olhos castanho-claros me encaravam
fazia uma voz na minha cabeça gritar mentirosa.
Era mentira, e ele ia saber que era mentira.
— Nós transamos. — Saiu antes que pudesse me parar, o medo me
fazendo ser sincera demais. Será que o absurdo que eu respondia era bom o
suficiente para evitar a pergunta sobre onde estava o meu noivo? Ele não
tinha descido comigo, e eu estava sozinha com o chefe de uma organização
criminosa. Aquilo gritava infinitos tons de problema. — No banheiro de um
clube noturno. — Por Deus Alana, pare de falar, e eu senti minha mão
começar a tremer embaixo da mesa assim que calei a boca.
Vincenzo levantou uma sobrancelha, provavelmente esperando alguma
continuação.
Ok, continue falando, Alana. Só continue falando. Continue falando
para parar de tremer.
— Foi bem interessante. — Eu era boa em conversa fiada, assim como
descobria que era boa em não ficar vermelha enquanto falava sobre minha
vida sexual com um estranho. — Ainda mais depois que eu fui embora e
deixei ele me perseguindo por semanas. — Os olhos continuavam a me
observar de forma curiosa, mas muito menos surpresos do que esperava. —
Nickolay consegue ser bem insistente. Acho que ele tem problemas em ser
rejeitado. Mas então, quem não tem, não é mesmo?
Ele demorou para mostrar qualquer reação, e nunca cinco segundos
foram tão eternos. A risada do homem, quando verdadeira, conseguia ser
tão divertida quanto a do meu pai.
Talvez eu não tenha ido tão mal.
— Dio santo, coitado do Nico! — Vincenzo falava entre risos, e me
deixei acompanhá-lo. Até que não estava sendo tão difícil dividir a mesa
com um chefe da máfia.
— Ele passa bem — continuei, mordendo meu pão. — Acho que estou
fazendo um bom trabalho cuidando dele. — Era a primeira mentira que
contava, sabendo bem que nos últimos dias, tinha feito tudo menos cuidar.
Percebi Nickolay no segundo que ele parou na porta, a presença dele
sempre forte o suficiente para chamar minha atenção. A barba estava maior
do que o normal, ele vestido mais formal do que nosso habitual para um
sábado fazendo eu me sentir simples ao seu lado.
— Alana? — Sorri para ele pela primeira vez desde quinta de manhã, e
senti meu coração acelerar como sempre fazia quando recebi o mesmo de
volta, por mais desconfiado que nos olhasse. — Do que estão rindo? —
perguntou ao sentar-se, e eu continuei sem pensar.
— Da noite que eu te levei pro banheiro. — Óbvio que ele se
engasgou, eu mesma sentindo uma bola na garganta ao processar o que
havia falado. Encontrei os olhos do mais velho outra vez, me perguntando
se era o medo que me forçava a checar a reação que minhas palavras
causavam nele.
Nickolay ainda tossia quando sacudiu a cabeça, eu não sabendo se a
vermelhidão era por conta do engasgo ou pelo fato de eu estar revelando
nossa primeira noite para seu chefe.
— Figlio, esqueceu de me dizer como tua donna é divertida! — Ao
menos ele ria, e aceitei o elogio com mais um sorriso, Nickolay parecendo
incomodado por esse meu gesto estar saindo com tanta facilidade ao lado de
outro homem. — E ainda assim, adorável. — Não me opus quando
Vincenzo alcançou minha mão. — Vai se juntar a nós essa noite, bella?
— Alana não vai, Don. — A negativa veio automática, sem qualquer
traço de gentileza na voz. — Não hoje.
— Por que não? — Falhei em não parecer tão incomodada, assim
como ele não fez questão de ser carinhoso ao me responder.
— Porque não acho que saiba o suficiente para continuar a ser
agradável. — E eu poderia arremessar o resto do pão que segurava nele.
Mas a dor que senti ao nem mesmo ser considerada me fez continuar
com minha sinceridade desenfreada.
— Não escutei isso quando minha boca...
— Está pronta? — Foi o suficiente para fazê-lo se levantar, Nickolay
abandonando a mesa muito mais sério do que quando se sentou. — Te
espero no carro.
Bufei, a manhã rapidamente se tornando péssima, eu sabendo que teria
que ir para o carro apenas para começar uma briga. Voltei a olhar para
Vincenzo após ouvir a porta da frente abrir e fechar, dando um sorriso sem
graça.
— Nico é tímido — menti, e se ele o conhecesse tão bem quando eu,
saberia que Nickolay passava longe da timidez.
Mas o homem mais velho parecia longe de incomodado com minha
desculpa, a mesma expressão de divertimento ainda presente ao encontrar
meus olhos.
— Ele não está acostumado a ser desafiado, e faz isso bem demais,
Alana. — Senti um pouco de orgulho ao ganhar aquela resposta. — Aonde
vão?
Bem, eu estava indo ganhar uma bronca, pensei.
— Vou passar o dia com minha mãe. Não sei o que Nico vai fazer. —
expliquei sem hesitar, me perguntando se todos se comportavam daquele
jeito sincero na frente do homem. Duvidava muito, as pessoas do meio sem
dúvida sabendo controlar as emoções muito melhor do que eu, Nickolay
sendo meu melhor exemplo. — Podemos continuar nossa conversa amanhã
— sugeri, admitindo que não tinha sido tão ruim quanto imaginava nossa
troca de palavras.
— Espero que sim, ragazza.
Meu noivo com certeza esperava o contrário, a cara dele mostrando
todo o seu incômodo. Sabendo da briga que estava por vir, meu humor
também passava longe do bom quando abri a porta da Mercedes, e me
sentei sem vontade no banco de passageiro. Preferia ter a opção de pegar o
meu e ir sozinha, mas ao não achar minhas chaves, muito menos meu carro,
concluí que até isso pode ter sido tirado de mim.
— Por que você não me quer junto? — Mal coloquei o cinto de
segurança e ele já dava a partida.
— Porque são negócios. — Nickolay não me olhou ao responder, a
atenção focada no portão que recuava devagar demais. — E não vou te
meter no meio mais do que já está, Alana.
Se o italiano tentava apaziguar nossa situação, estava fazendo da pior
forma possível.
— Não quer me meter no meio dos seus assuntos, ou não quer me
colocar na frente da Emília? — perguntei com raiva, tirando o celular de
dentro da bolsa e abrindo uma conversa de meses atrás. Djamila o chamava
de contatinho, e a última foto enviada deixava pouco de ‘inho’ para ser
imaginado.
Não fiz questão alguma de esconder, o carro já em movimento quando
os olhos escuros pararam no nude que eu nem lembrava que ainda tinha
guardado até aquela manhã.
— Se você pode sair com seus negócios, eu vou sair com meus
negócios também.
Nickolay pisou no freio.
— É um jantar formal! — E voltávamos aos gritos.
— Mais um, em menos de uma semana! — respondi tão calma quanto
ele, afastando o celular da mão que tentava agarrá-lo. — Quantas vezes
você se encontra com essa mulher por semana, Nickolay? — Precisava
tanto ficar brava com algo além de minha nova prisão, e nada melhor do
que lembrar de quem colaborou para me colocar nela. — Se ela te manda
mensagem pra ir jantar...
— Dolcezza, ela não me manda mensagem...
— Eu também posso mandar mensagens pra minha ex-foda!
— Cazzo, Alana! — Ele esmurrar o volante fez um bom serviço em
fechar minha boca. Ainda assim, mantive uma expressão neutra, por mais
que tivesse recuado para perto da porta. — Não vai ter apenas Emília, ou
apenas pessoas em quem confio! Como que eu te ponho num lugar assim
com esse seu comportamento? Como que eu te ponho no meio da minha
máfia, quando está fazendo o Don te ver como uma puttana? — A palavra
cortou como navalha. — Me diz como! Disse que não teria empecilhos,
mas todo dia está criando um diferente!
Esfregar aquilo na minha cara era tão injusto. Ainda nem havíamos
passado do portão, e os cinquenta e sete minutos que o aplicativo dizia
demorarmos até a casa dos meus pais seriam eternos. Deveria ficar surpresa
por Nickolay saber que eu iria até minha mãe naquela manhã, mas o que me
surpreendia era a palavra que, mesmo em italiano, não passava muito longe
da versão em português.
— Uau. — De todas as coisas que ele poderia ter falado, me comparar
com uma puta era a última que eu esperava. — É assim que você me vê,
também? Porque se é, eu preciso começar a cobrar.
Demorou um segundo para ele entender ao que me referia.
— Claro que não!
O meu cérebro inseguro entendia o contrário.
— Mas é assim que todos do seu mundo me veem, tô errada? Como
uma puta. — Nunca mais teria coragem de aparecer na frente do homem
mais velho sozinha, quanto mais gostaria de participar de alguma de suas
reuniões privadas. — Porque vocês podem enfiar o pau em todos os
lugares, mas quando é a gente que transa...
— Não é isso!
— Quando é a gente que transa com vários, somos chamadas de
vadias! Sabe, eu não lembro de ter transado com ninguém comprometido,
ninguém sem ser você! — acusei, não me importando em esconder o quanto
tinha sido afetada com a informação, forçando a voz a continuar, por mais
ridícula que estivesse soando. — Emília esfregou na minha cara que era sua
noiva! Faz ideia de como doeu ela me falando isso? Faz ideia do que senti
dirigindo até aqui?
Nickolay me deixou ver seu arrependimento, ele descobrindo o real
motivo de eu ter invadido a sala sem pensar. O vi respirar fundo, o pé
voltando para o acelerador, os olhos não mais em mim, e por um momento,
esperei um pedido de desculpas pela situação que passei. Ou ele
reafirmando que não me via diferente por ter mantido minha cama ocupada.
— Precisava entrar sem bater? — Inacreditável.
— É, a culpa é minha por ter entrado sem bater. — Ele via que minha
risada era sarcástica, não via? — Quer dizer que eu nunca vou participar
dos seus jantares? — Consegui perguntar sem gritar, escolhendo olhar para
fora do que para ele.
— Não enquanto for arisca desse jeito. — Nickolay parecia estar
escolhendo as melhores palavras de propósito.
Não tinha como não responder aquilo.
— Para de falar como se eu fosse um animal!
Não tinha como não me magoar com a resposta que veio.
— Pare de se comportar como um! — Ele viu que meu lábio tremia,
com certeza reconheceu o esforço sobre-humano que eu estava fazendo
para não chorar. Não iria mais chorar na frente dele, ao menos alguma
dignidade eu iria manter. — Cazzo Alana, desculpa...
— Entendo agora como animais acuados se sentem.
Passamos o resto da viagem em silêncio.

Não estava com o melhor dos humores naquele sábado, e fingir estar
tudo bem justo na frente de alguém que me lia até melhor do que Nickolay
era uma tarefa exaustiva.
Dividia um balde de pipoca com minha mãe, ela sem dúvida se
controlando para não perguntar o que estava acontecendo, a comédia
romântica escolhida desinteressante para mim. O filme parecia fazer pouco
caso da minha vida, eu querendo mais que tudo ter os problemas da mulher
atrás da tela. Deveria ser bom chorar por não ter alguém ao seu lado. Do
jeito que as coisas andavam, eu nunca saberia a sensação disso.
— Gostou do filme, Nana? — A pergunta veio quando a pipoca de
chocolate acabou, eu tão perdida nos meus pensamentos que nem percebi os
créditos rolando.
— Foi legal. — Tentei não forçar muito o sorriso, lambendo um dedo
cheio de açúcar.
— Fiquei sabendo que tem novidades pra me contar. Algo relacionado
a malas?
Ótimo, tudo que eu gostaria de não discutir naquele sábado.
— Mila tá muito bocuda — reclamei, já pensando em como mudaria
de assunto.
Escondi meu desconforto tarde demais, minha mãe sabendo do
sentimento, mas ainda assim escolhendo continuar. Eu realmente deveria ter
batido na merda da porta.
— Você tá feliz com ele? — Era sempre difícil mentir para dona
Astrid, e eu demorar para abrir a boca a fez continuar. — Ele te trata bem,
não trata?
Ok, aquela era uma pergunta que eu conseguia responder.
— Nico trata. — Bem melhor do que o último, completei
mentalmente.
Ela ia abrir a boca para perguntar mais sobre Nickolay, eu sabia, e já
previa como meu único momento de conforto do fim de semana acabaria
em caos. Talvez por isso que as próximas palavras saíram, minhas defesas
precisando ser ativadas sem me importar o quanto poderia deixá-la
desconfortável.
— O que você sabe sobre a minha mãe? — Saiu rápido, e muito menos
delicado do que eu queria que tivesse saído. — Quer dizer...
— Está tudo bem, filha. — Tinha um sorriso nos lábios grossos, apesar
do desconforto.
— Você é minha mãe, ela é só a mulher que me gerou — corrigi,
cutucando uma pele solta no dedo indicador. — Eu só tô curiosa.
— Eu sei, meu amor. Esperava essa pergunta desde que te tive nos
braços pela primeira vez, Nana. Até estava achando estranha sua falta de
curiosidade — ela respondeu, tirando um bombom da caixa ao lado do sofá.
Mamãe sempre escondia chocolates pela casa, e eu me perguntei se ela
desconfiava do detetive que havia contratado um ano atrás para tentar achar
a mulher que me deu. Se ela fazia ideia do de agora, que por ordens de
Nicolay, procurava por alguma informação.
— Mas eu não sei nada sobre essa mulher. A única coisa que tenho é o
contato da agência de adoção. — A resposta veio com um olhar arrependido
e um Sonho de Valsa.
— Ficaria chateada se eu tentasse procurar por ela? — Desembrulhei o
bombom. Eu já sabia que o contato que minha mãe dizia ter era falso, os
dois detetives me afirmando a mesma coisa.
Astrid era tão boa em omitir informações quanto Nickolay, mas como
mentirosa, era tão profissional quanto eu.
— Claro que não ficaria, Nana. — Os olhos castanho-escuros me
falaram o contrário. Será que a mulher tinha medo do que eu poderia achar?
— É um direito seu saber sobre os seus pais.
— Você e papai são meus pais — afirmei, sentindo uma pontada de
culpa por ter trazido o assunto à tona. — As pessoas que me deram não
significam nada pra mim. — Coloquei todo o chocolate na boca e a abracei,
encostando a cabeça em seu ombro como fazia quando era uma menininha.
Deu para ouvir o contentamento, ela me puxando para perto, eu me
perguntando quanto tempo fazia que não me deixava abraçá-la daquele
jeito. Por mais que a história da minha adoção fosse estranha, não forçaria a
única que considerava minha mãe a falar sobre o assunto. Não hoje. Talvez
nunca.
E meu respeito foi retribuído. Talvez por querer me aproveitar dócil, o
nome de Nickolay não mais deixou seus lábios durante nosso tempo juntas.
Foquei em nós duas durante o resto da tarde, e aproveitamos filmes,
chocolates e pizza.
O italiano não foi mencionado nem mesmo quando Matteo chegou
para me buscar, por mais que tivesse sido visível a surpresa nas feições da
mulher mais velha. Com certeza ela queria falar alguma coisa, e eu fiquei
mais do que agradecida por apenas ganhar um abraço depois dela me falar
para ficar com Deus.
Entrei no carro pensando que, voltando para a mansão, o contrário era
mais verdadeiro.
O quarto estava vazio quando entrei, eu lembrando com certo desgosto
sobre o jantar que Nickolay atenderia sem mim. O frio me obrigava a
agarrar um cobertor e descer para procurar uma bebida quente, e o
conhaque com chocolate e leite na mão era melhor que vodca pura.
Não esperava que houvesse alguém além de mim e dos empregados na
casa quando pisei no jardim dos fundos, e me surpreendi ao achar o homem
sentado numa das espreguiçadeiras em frente a piscina iluminada. Lorenzo
terminava um charuto quando me aproximei, e ainda enrolada no cobertor
cinza, me sentei ao seu lado.
— Achei que participasse de todos os jantares — iniciei uma tentativa
de conversa, o álcool me esquentando mais do que o cobertor.
— Negociar é trabalho de Nickolay. — Foi a resposta que veio, os
olhos azuis curiosos ao pararem em mim. — E o moleque é bom nisso,
precisa ver. — Ele percebeu tarde demais o que tinha dito, eu querendo ver
aquilo e sendo sempre barrada.
— E o que Nickolay negocia? — perguntei, querendo que alguém me
desse respostas mais concretas sobre o meio no qual seria obrigada a
permanecer. — Ele é mais que um assassino, eu sei disso. Então o que mais
ele tem nas mãos? Nickolay comanda o tráfico aqui no Brasil, lava
dinheiro, ele faz o quê? A única coisa que seu moleque sabe falar ao meu
redor é a palavra negócios, e que eu não sou digna de fazer parte deles, por
mais que esteja amarrada nisso!
Novamente deixava meu temperamento ganhar, minha voz tão alta
quanto a que usei no carro durante a manhã.
— Você está brava com Nico — escutei Lorenzo afirmar com certo
estranhamento. Era óbvio que eu estava brava, eu estava presa! E estava
prestes a retrucar aquilo quando ele continuou. — Isso é curioso.
— Era pra eu estar feliz?
— Era para você estar com medo. — Ah. — Depois de tudo que
aconteceu, era o mais lógico. Todos temem o moleque, Alana, às vezes
antes mesmo dele abrir a boca. Nico até já está acostumado com o
sentimento.
— Precisa de muito para eu ter medo, Lorenzo — confessei,
percebendo que não, eu não estava com medo do meu noivo.
Sorri. Aquilo era um progresso, me deixei acreditar. Era melhor estar
brava com ele do que a outra opção. Eu poderia consertar braveza.
— Estou vendo. — Ele deu uma risada, tão parecida com a que meu
italiano dava ao descobrir pequenas coisas sobre mim. — Se ainda precisa
de alguma clarificação, Nickolay é o braço direito do chefe dessa Famiglia.
Isso quer dizer que ele é a segunda pessoa no comando. — Levantei as
sobrancelhas, um pouco surpresa e ao mesmo tempo esperando a resposta.
Era óbvio desde o dia da piscina a importância que Nickolay tinha. — A
Famiglia controla algumas empresas no Brasil, muitas na Europa. Tem
laços políticos, possui alguns clubes. E vende drogas.
— E o último é o mais lucrativo, certo? — E lembrei do traficante que
Nickolay esmurrou até quase matar.
Até matar, me corrigi, eu finalmente conseguindo coragem para
admitir aquilo.
Lorenzo encolheu os ombros.
— Nickolay detesta o último, mas ao menos nossas drogas são limpas.
Você já provou.
— A vez que eu apaguei? — A noite que foi por semanas apagada da
minha memória voltou para minha mente. Eu estava em um dos clubes que
meu noivo disse ser dele, pelo que me recordava.
Fazia ainda mais sentido Nickolay sentir-se tão culpado no dia
seguinte.
— Disse que nossas drogas são limpas, Alana. Foi um mês antes.
Tinha sido um dia ruim, e Nickolay estava bêbado como um gambá.
Quando te viu, não conseguiu mais tirar os olhos de você. Ele passou a
noite inteira te olhando. — Me dava raiva como, até não querendo, o
italiano me surpreendia. — Ele não lembra, eu nunca contei. Não
imaginava que te encontraria outra vez, muito menos que fosse acontecer
algo entre vocês.
— E minha história de amor fica cada vez mais linda. — disse com
ironia, largando o copo vazio no chão e apertando mais o cobertor ao meu
redor.
Foi a primeira vez que Lorenzo me olhou com reprovação.
— Por mais que o menino tenha ficado obcecado depois da segunda
noite de vocês, ele tentou te afastar por semanas. Eu o conheço, Alana, sei o
quão quebrado Nico é. Como foi difícil admitir que não queria você como
ele quis todas as que vieram antes. Como o matava descobrir o quanto era
bom te deixar entrar na vida dele.
Desviei a atenção para a água parada da piscina.
— Ele também me faz bem. — De canto de olho, vi que minha
confissão me rendeu um mínimo sorriso.
— Nickolay é mais rude do que gostaria que fosse, às vezes mais
temperamental do que as mulheres gostam. Discutimos no dia que ele
contou o que te respondeu no parque.
— Quando ele disse que uma gozada na minha boca ia me deixar mais
quieta? — Lembrar da ocasião foi divertido, eu tendo desejado na época
que meu café estivesse quente ao despejá-lo na cara dele. — Acho que fiz
um bom trabalho respondendo.
— Eu também. — E ele apontou para o queixo, me contando o motivo
do roxo que havia visto em Nickolay numa sexta não muito distante. —
Não me orgulho de como respondi, mas espero que ele tenha melhorado.
Falar com Lorenzo era confortável, e muito mais simples do que com
seu filho postiço. Suspirei, me deitando na espreguiçadeira, meus olhos
achando a lua.
— O que eu preciso tanto aprender? — Lá no fundo, eu sabia.
Mas talvez ouvir de alguém tão calmo tornasse a realidade mais fácil
de ser aceita.
— Você quer aprender, Alana? É bom começarmos por aí.
— Acho que não tenho muita escolha se quiser continuar viva, tô
errada? — E mais um riso.
— Aprende rápido. — Eu mesmo soltei um, tão amargo quanto
divertido. — Nico me falou sobre o café da manhã com o Don.
Fiz uma careta.
— Não pode ter sido tão ruim! Ele disse que eu era divertida!
— Sim, divertida. — Lorenzo enfatizou a palavra. — Matarazzo se
diverte com um tipo bem específico de mulher. — Ele outra vez me olhava
com curiosidade antes de continuar. — Alana, provavelmente não sabe, mas
nessa Famiglia, as mulheres costumam se casar ainda virgens. Você tanto
disse não ser uma, quanto deixou claro que não foi Nickolay o seu primeiro.
— E eu me senti ficando da cor de um tomate, o calor tomando conta das
minhas bochechas e me fazendo voltar a atenção para a água gelada.
— Você tá de brincadeira, não tá? — De repente, o cobertor parecia
quente demais.
— Parece que estou brincando? — Ele cruzou os braços, e eu, mesmo
vermelha, bufei. — Não faça essa cara, pare de revirar os olhos. Não, eu
estou falando. — Lorenzo se apressou ao me ver abrir a boca, e me
perguntei se isso era um teste onde a resposta certa era obedecer e ficar
quieta. — Eu sei o quanto isso é antiquado e machista, mas é o mundo no
qual se enfiou. Precisa controlar melhor essa personalidade, e se comportar
como uma de nossas mulheres do lado de Nickolay. Ele precisa desse
respeito na posição que tem, Alana. E o Don precisa ver isso.
Esperei alguns segundos antes de responder.
— Preciso obedecer Nickolay de boca fechada, então. Tô aprendendo
direitinho?
Ele deu uma risada verdadeira.
— As mulheres da máfia não obedecem, Alana. Mas elas sabem não
tirar o poder do marido na frente de pessoas perigosas. — E ali estava outra
vez aquela denominação. — Nickolay vai te deixar falar o que quiser no
quarto, eu já ouvi as discussões de vocês para saber disso. Ele vai concordar
contigo, e pedir desculpas.
— Também não era pra gritar alto o suficiente pra você poder me
ouvir? — Não tinha mais muita aprovação no olhar que ganhei. —
Nickolay não é meu marido. Não ainda, pelo menos.
— É melhor começar a agir como se fosse. — O homem disse sério,
meus olhos voltando para ele ao vê-lo se levantar. — Te tratar como esposa
é o que ele sempre fez contigo, ainda mais quando tentaram substituir você
com Emília. Ele nunca nem considerou o noivado, Alana. Se é que tem
dúvidas quanto a isso.
Confiava mais do que deveria naquelas palavras.
— E conhecendo meu moleque, cabeça-dura do jeito que é, ele nunca
vai aceitar nenhuma outra no seu lugar.
Não houve mais nenhuma palavra antes de Lorenzo se retirar.

Escutei Nickolay abrindo a porta do quarto, eu tendo tanta capacidade


de dormir sozinha quanto ele tinha de se manter afastado de mim. Gastou
todo meu autocontrole para não o puxar para meu corpo ao sentir seus
lábios na minha testa, meu coração mole demais, meu cérebro
irritantemente racional. Fingi que dormia enquanto o ouvia se trocar, e
contei por muitos minutos antes de me virar para onde o italiano estava
deitado.
Ele usava uma calça de moletom e camiseta, as peças cinzas tão
normais contrastando com o rosto fora do comum. Nico dormia sobre o
edredom, e a luz da lua conseguia me dar outra vez a imagem do homem
pelo qual havia me apaixonado.
Era difícil aceitar gostar de alguém que me prendia. Difícil saber que,
independentemente de minha vontade, esse casamento estava fadado a
cumprir o juramento 'até que a morte nos separe'. Eu nunca sairia viva dele.
Eu também nunca teria pesadelos dormindo em seus braços. Sabia que
o italiano tinha um sono leve, provavelmente despertando comigo o
cobrindo, mas ele fingiu bem não acordar enquanto me aconchegava em seu
peito. A respiração contenta que ouvi denunciava o prazer em me ter perto,
a proximidade me devolvendo toda a calma que sempre ia embora com ele.
Meu orgulho era mais meu inimigo do que Emília, mas conseguia
engoli-lo o suficiente para tirar conforto daquele abraço nas horas da
madrugada. O cheiro dele se misturava com o do cigarro que sabia que
estava fumando demais, eu deixando meus lábios passarem rápido pelos
grossos antes de forçá-los para longe.
Eu perdoaria qualquer coisa com aqueles lábios em mim. Aceitaria
qualquer coisa que viesse junto de seus beijos. Nickolay era minha melhor
fraqueza, mas ainda não estava pronta para ser consumida por ela.
Por enquanto, os braços teriam que bastar.

Não esperava acordar com ela nos braços, do mesmo modo que meus
olhos nunca acharam os de Emília durante todo o jantar.
A mulher que um dia considerei uma amiga ter se feito ignorante a
situação que criara tornou cada minuto da noite uma eternidade. Minha
intuição gritava que Ferreti nunca me daria paz, principalmente depois de
ser rejeitada pela segunda vez, o que me fazia querer colocar em prática o
plano que a levaria para longe de mim e minha única noiva.
Vincenzo, que partiria na manhã de sábado, resolveu estender a
permanência no Brasil por mais tempo que julgava necessário, e sua
decisão também me trazia desconforto. Algo mudara em seus olhos quando
me encarava, eu procurando uma confiança que não conseguia mais achar
completa desde que desobedeci a sua última ordem.
Desobedecer era algo que tinha feito poucas vezes naquela vida, mas
minha indisciplina para certas coisas nunca fora um problema para
Matarazzo. Nada era, eu tendo me transformado em quem ele havia perdido
e fazendo com certo prazer todos os trabalhos realizados por meu pai. O
jeito que eu era tratado agora, combinado com a forma que ouvia o nome de
minha mulher sair de seus lábios, deixava claro o quanto sua paciência
comigo estava por um fio.
E o Don da Famiglia perdendo a paciência nunca era agradável de se
ver.
Então eu entrei no quarto, e me deixei respirar framboesa antes de
trocar de roupa. Quando me deitei, foi sobre o edredom, a distância que
Alana mantinha durante o dia me fazendo incerto sobre sua necessidade de
proximidade a noite. Fingi que dormia quando a coberta foi posta sobre nós
dois, e passou perto do impossível continuar imóvel com os lábios doces
passando pelos meus.
Achava que ela acordaria antes e faria questão de nos lembrar da
distância. Alana acordando depois e me dando ainda mais proximidade
reacendeu a esperança do normal ter voltado, a mulher dando um sorriso
antes de se afundar mais no meu peito. Apertar mais os braços ao seu redor
foi automático, e a próxima coisa que via era olhos cor de mel colados nos
meus.
— Buon giorno, bella. — Me atrevi a chegar perto de sua bochecha.
— Dormiu bem?
Ela não me afastar era uma vitória, e me deixei aproveitar a
proximidade. Alana me contando em silêncio que meu toque ainda matava
seus pesadelos era tão reconfortante quanto sua respiração no meu pescoço,
os lábios acariciando minha pele sendo a faísca que bastava para começar
um incêndio. Minhas mãos achavam seu rosto numa carícia, as dela
retribuindo de forma muito mais sexual, me lembrando que quem
provocava também usava sexo como válvula de escape.
O quanto deveria ceder à mão que se perdia dentro da calça?
Precisávamos conversar, por mais que andasse difícil fazer tal, Alana se
mostrando tão disposta a falar quanto eu estava de pôr suas mãos longe de
mim. Ouvi-la gemer quando as minhas desceram foi minha resposta, eu
sabendo que continuaria com o que ela precisasse. Eu, acostumado demais a
ter seu toque em todos os momentos, também precisava, a falta me fazendo
entrar em abstinência dela.
E a falta me dava urgência, a pele do seu pescoço sendo pouco demais
para me saciar. Segurei-a pelos pulsos, a prendendo contra o colchão tão
como em nossa primeira noite numa cama, minha mão livre levantando a
camiseta branca. Era impossível provar da pele rosa sem mordiscar seu
seio, o arrepio percorrendo seu corpo sentido pelo meu.
O coração dela batia rápido demais, mas o jeito que tremia embaixo de
mim denunciava que não era pelo mesmo motivo que o meu explodia. A
forma que apertava os olhos e a expressão aflita tornou afastar-se
automático, as mãos pequenas cobrindo o rosto assim que saí de cima dela.
Não achei que fosse sentir mais qualquer pontada no peito depois de
ter meu filho morrendo em meus braços. Alana vivia provando erradas
minhas suposições, e o medo que reconhecia nela fazia algo dentro de mim
apertar. Ela respirava rápido, e vê-la sofrendo também tornava automático
me aproximar.
— Alana, o que foi? — Preferia um tapa do que vê-la ter aquela reação
comigo, a mulher praticamente pulando da cama assim que meus dedos
roçaram no seu ombro.
— Preciso de um banho. — A porta do banheiro se fechou sem mais
palavras.
A única possibilidade que se repetia na minha cabeça era a de que
minhas mãos tinham sangue demais para aquele tipo de conforto. Quanto
tempo demoraria para ela se esquecer o suficiente da maldita tarde? Quanto
tempo levaria até eu relembrá-la?
Porque com certeza ainda a recordaria da morte que existia em mim, o
assassino de Nicolas conseguindo me tirar mais uma paz ao deixar este
mundo.
— Pode me ensinar a atirar? — veio assim que ela voltou para o
quarto, Alana não se importando em cobrir o corpo enquanto escolhia uma
roupa.
— O que? — Talvez a visão dela nua tivesse me feito ouvir errado.
Alana mostrou que não ao virar-se, vestindo uma calcinha pequena
demais antes de me encarar. Os fios compridos ainda gotejavam, e ela se
comportava como se nossa última interação não tivesse existido, o medo
antes visto em seu rosto sendo substituído por algo que reconhecia como
divertimento.
— Eu quero aprender a atirar.
— Não foi bem isso que quis dizer quando falei sobre aprender a se
portar, Alana — esclareci, desviando os olhos do corpo que se aproximava.
Essa mulher iria me deixar louco, mas era impossível reclamar de uma
loucura que tinha um sabor tão bom. Limpei a garganta quando os dedos
passaram pela minha barba, suas pernas afastando as minhas antes de se
acomodar entre elas.
— Do que você estava falando, então? — A pergunta veio ao sentar-se
no meu colo, Alana sorrindo de um jeito que me fazia querer jogá-la na
cama, as palavras indo embora quando senti seus lábios no meu pescoço. —
Me fala do que.
Filha da mãe, ela sabia que me tinha nas mãos quando fazia isso.
Filha da mãe, ela sabia, e não fosse eu me fodendo, teria orgulho do
jeito que minha mulher manipulava alguém após descobrir seu ponto fraco.
— Nickolay — escutei meu nome antes de ser puxado pelos cabelos,
minha fraqueza me oferecendo lábios vitoriosos ao me ouvir gemer. —
Você pode ou não me ensinar a atirar?
— O que quiser. — Eram tão verdadeiras aquelas palavras, e ela nem
precisava me chantagear para tê-las.
— Eu quero aprender a atirar. E eu quero uma arma. — Merda.
— Ok — cedi, me perguntando que diabos Alana queria com uma
arma. Ela roçando-se em mim fez eu prometer ainda mais o que não deveria
colocar em suas mãos. — Te dou uma, dolcezza. Te ensino a atirar.
Os lábios tão perto dos meus era um teste? Era ela me tentando a
tomar o que eu queria à força? Minha boca salivava com o menor dos seus
toques, e apertei as mãos no edredom para não a puxar para mim e para
tudo que a vontade que tinha gritava para ser feito.
Alana não parecia querer as mãos de um assassino na sua pele, mas
não se importava em colocar as próprias em um, e o comportamento não
fazia o menor sentido. Os olhos mel me encararam curiosos, antes da dona
decidir por descer, eu puxando a respiração ao voltar para um mínimo de
sanidade.
— Pode me ensinar hoje? — Ela cobria os seios com uma camiseta
quando perguntou, eu ainda largado na cama virando a cabeça para a porta
que Alana abria.
Fiz que sim, e a mulher saiu sem mais nenhuma palavra, a frieza
atípica demais para quem sempre andava pegando fogo. Deveria ter dado
um jeito de mandar Emília embora após nossa primeira briga, eu odiando a
responsável pela minha vida atual recordar meu passado da pior forma.

— Estique os braços — instruí, imitando o que queria que ela fizesse.


Alana queria uma arma, mas ter uma nas mãos a deixava tensa.
— Assim. — Me posicionei atrás dela e arrumei sua postura. — Tem
que segurar com as duas mãos.
— E se eu não puder usar as duas mãos? — A pergunta me
surpreendeu.
— Alana, eu espero que não precise usar nem mesmo uma. — Ela
pareceu considerar falar algo, antes de decidir pelo silêncio. — Vamos
começar com as duas mãos. Sua dominante fica no gatilho.
— Eu sou canhota. — O detalhe veio quando estava prestes a inverter
seus dedos, e me perguntei como justo eu não havia notado aquilo.
— Então está correto. Quando atirar, vai sentir uma pressão para trás.
— As mãos pequenas segurando o objeto de metal gritava erro, eu
novamente vendo o quanto não a queria presa a vida que levava. — Segure
firme. — Coloquei meus dedos sobre os dela. — E puxe o gatilho até o
final.
Ela puxou, o corpo sendo impulsionado contra meu peito quando a
arma disparou no alvo improvisado.
Tinha um silenciador na pistola, ainda assim decidi por um campo
aberto para ensiná-la, longe dos barulhos da cidade. O barulho do disparo
podia ser ouvido, mas a risada nervosa ao acertar a garrafa de vidro era
muito mais alta.
— Belo tiro — elogiei, os músculos de suas costas relaxando, mesmo
estando contra meu peito.
— Você tá me ajudando, assim fica fácil.
— Só até se acostumar com o coice. Preste atenção agora — avisei,
aliviando a pressão no gatilho até escutar um clique. — Ouviu esse
barulho? — Ela fez que sim com a cabeça. — Quer dizer que pode atirar
outra vez.
— Eu não preciso soltar até o final?
— Só até ouvir o clique.
Não teve espera antes do gatilho ser puxado. Apressada, tão apressada,
e tão fácil de ensinar. Alana manteve o corpo muito mais estável na segunda
tentativa, buscando aprovação ao virar-se com um sorriso apreensivo nos
lábios.
— Molto bene, dolcezza. — Por mais errado que fosse uma arma em
suas mãos, não conseguia evitar uma pontada de orgulho.
Alana parecia tão boa em domar seus medos. Poderia aprender uma
coisa ou outra com ela.
— Mais uma vez? — Ela afirmar contente, voltando a postura que
havia mostrado, fazia o domingo parecer normal. Não a tinha como
gostaria, mas vê-la novamente sorrindo reacendia minha esperança de
conseguir nossa paz de volta, mesmo que aos poucos.
— Faz tempo que sabe atirar? — A pergunta veio depois de mais
alguns disparos, minhas mãos ainda nela.
— Desde meus doze anos.
— Seu pai que te ensinou? — Alana sempre me dava curiosidades
difíceis de responder.
— Lorenzo. Meu pai nunca me deixou tocar em uma — confessei,
lembrando com certa amargura de uma das nossas piores tardes. — Me deu
uma surra no dia em que me viu com a dele nas mãos. Com razão, eu mal
tinha nove, poderia ter feito um estrago.
E o gatilho que estava para ser puxado permaneceu imóvel, Alana
virando a cabeça, a testa franzida.
— Sem razão. — A voz saiu séria, a mulher mostrando braveza com
aquela informação. — Ele deveria ter conversado com você, e guardado
melhor a arma.
A ingenuidade dela era adorável.
— Claramente não sabe como as coisas funcionam no nosso meio —
respondi com uma risada, mirando a pistola que segurávamos na última
garrafa e atirando.
— Você batia no seu filho, Nickolay? — Ela voltou a olhar para frente.
— Deixava armas pra ele alcançar?
Nunca pensei em levantar a mão para Nicolas, quanto mais em deixar
ao seu alcance qualquer coisa que o danasse. Ainda assim, todos os meus
cuidados foram insuficientes. Respirei fundo antes de abrir a boca, o cheiro
de framboesa me servindo de conforto para todas as memórias agridoces.
— No.
— Então você também parece não saber como as coisas funcionam no
seu meio — a escutei afirmar, Alana me vendo como bom naquele assunto
sendo um carinho numa ferida aberta.
Sabia bem demais como tudo funcionava no meu meio, meu filho
debaixo da terra sendo uma prova amarga do meu conhecimento. Mas o
melhor era desencorajar o assunto, a ausência de uma resposta incentivando
novos disparos.
— Posso tentar sozinha? — O pedido veio depois de terminarmos um
pente juntos.
A soltei, mas me mantive atrás dela.
— Continue com os braços esticados e olhe para frente — reforcei
quando ela fez menção de virar o corpo, Alana dando um sorriso sem graça
e atirando.
Antes do primeiro tiro, dava para notar as mãos dela tentando esconder
o tremor. Depois do vigésimo, a mulher parecia tão familiarizada com a
pistola que chegava a ser assustador.
— É uma natural, bella — elogiei, a observando de longe enquanto
terminava um cigarro.
— Você é um bom professor. — E ela disparou mais uma vez,
finalmente acertando a latinha de alumínio sem minha ajuda.
A excitação de acertar o alvo difícil deu para ser ouvida no grito agudo
que seguiu, e me deixei rir com ela até vê-la se virar. A pistola era segurada
com apenas uma das mãos de um jeito descuidado demais, e por um
momento considerei que aprender a atirar tivesse sido sua melhor
encenação, Alana apenas querendo uma em suas mãos enquanto à sós
comigo.
Me senti a pior pessoa ao realizar que não era, meu último pensamento
denunciando minhas desconfianças em relação a pessoa mais importante em
minha vida. Alana percebeu meu olhar aflito, minha ponta de desespero
ativando o dela e a fazendo puxar sem querer o gatilho.
— Nico...
— Abaixa a arma, Alana. — Ignorei o olhar assustado e me forcei a
manter a voz firme, saindo de sua mira. — Tira o dedo do gatilho. Parada!
— ordenei quando a vi querendo se virar outra vez para mim, e o soluço
que ela conteve mordendo o lábio inferior fez eu me apressar para trás dela.
Ela não resistiu quando tirei a pistola de sua mão, e eu era um idiota
por tê-la deixado fazer aquilo sozinha na sua primeira vez. Travei a arma e a
coloquei sobre a bancada que havia ao nosso lado, não me importando com
o quanto a mulher poderia não querer meus braços ao seu redor.
Alana não se opôs ao abraço. A segurei contra meu peito, os olhos mel
parecendo surpresos quando me acharam preocupado. Esperava que
estivesse bravo com minha estupidez?
— Está tudo bem — afirmei com uma nova calma, minha mão
acariciando os cabelos ondulados. — Está tudo bem, Alana.
— Eu quase atirei em você! — Os braços foram para o redor de meu
pescoço, e descobri que tomaria um tiro de bom grado se fosse o necessário
para ganhar aquela reação. — Eu quase te acertei!
— Dolcezza, seu tiro passou muito longe de mim. — Tentei
tranquilizá-la, aquela sendo a primeira mentira que lhe contava em um
tempo: a bala tinha passado muito perto do meu braço. — Vamos tentar
outra vez.
— Não!
— Sim Alana, nós vamos. — Fui firme, continuando assim que a vi
abrindo a boca para me contrariar. — Se é uma arma que precisa para voltar
a se sentir no controle, eu te dou uma arma. Eu te ensino a atirar. Eu passo
uma semana inteira fazendo isso contigo. — Os lábios voltaram a se unir, os
olhos descendo, envergonhados. — Eu sei que precisa de controle. Acha
que não te enxergo? Nós vamos tentar de novo, Alana. Sem discussão.
Minhas mãos soltaram as dela, descansando em sua cintura após
metade da munição ser gasta. Só paramos quando as balas acabaram, e tê-la
relaxada com meu toque junto de uma arma era como uma pequena vitória.
— Muito bom, bella. — Alana disparou uma última vez, antes de
travar a pistola e entregá-la para mim, se virando com um pequeno sorriso.
— Eu posso mesmo ter uma? — Ela só perguntou quando eu dei a
partida no carro, ligando o som e escolhendo a playlist que sabia ser minha
favorita.
Sorri, me atrevendo a pegar sua mão e levá-la até meus lábios antes de
começar a dirigir, me perguntando se aquele era o começo de uma trégua.
— Sim.

Olhei inseguro para a cama antes dela perguntar o que eu estava


esperando para me deitar. Era difícil, mas tentava entendê-la, por mais que
não conseguisse exatamente me colocar no lugar da mulher. Então
considerei o pedido velado uma pequena vitória, por mais que Alana
dormisse virada de costas para mim.
Seu corpo sempre achava o meu durante a noite, o cheiro dela sendo a
primeira coisa que respirava ao acordar. Decidi que não reclamaria,
aproveitando os minutos de paz que dividíamos enquanto ela dormia nos
meus braços.
Ao menos não precisava mais lidar diretamente com Matarazzo, o
homem tendo desistido da ideia de trazer Emília para meu sobrenome e
retornando para a Itália. A distância era uma tranquilidade, eu tendo
passado perto demais de muitas respostas que deveriam permanecer
silenciadas sempre que o ouvia fazer qualquer comentário sobre Alana. As
insinuações incomodavam demais, ainda mais vindas de alguém que
poderia me tirar o que quisesse.
Outra vez era sexta-feira, e outra vez Alana almoçava e ia calada para
o quarto. Mesmo morando fazia dois anos no Brasil, ainda não havia me
acostumado com a falta do frio, sendo julho e ainda fazendo calor o
suficiente para ela posar com o menor dos tops. Nunca havia visto o
vermelho que mal cobria seus seios, e tinha certeza de que a combinação
dele com o short jeans tinha sido feita especialmente para provocar minha
sanidade.
A porta da frente abria mostrando mais homens do que gostaria de
receber, e minha mente foi para a tarde em que nossa convivência tinha
começado a dar errado. Que qualquer santo a fizesse ficar no andar de cima
ao invés de se aventurar para o hall de entrada.
Andava com todos para o escritório quando os deuses outra vez
resolveram me punir. Sabia que merecia pagar inúmeras penitências por
tudo que havia feito na vida, mas Alana aparecer justo agora era um preço
alto demais.
— Nickolay? — Era demais ela estar com aquela roupa na frente de
homens que não pareciam saber se comportar.
— Saia, Alana.
Demais estar mastigando o lábio inferior de forma convidativa, lábios
que ainda me torturavam com distância. Ela me torturava diariamente ao
manter-se longe, e vendo-a descer as escadas, eu tinha certeza de que o
batom vermelho passado era para mim.
Deveria tê-la tirado à força dali, mas meu temperamento escolheu o
mais fácil. Alana ainda iria me matar, mas eu mataria primeiro o homem
que não fazia um bom trabalho em esconder o quanto desejava a mulher
que eu rotulava de minha. Eu ser novamente o primeiro no comando me fez
esfregar a cara do contratado na parede, não me importando com meu nome
sendo gaguejado com medo por quem me deixava muito perto da loucura.
— Tira os olhos da minha mulher — rosnei em seu ouvido enquanto
pressionava o cano da arma entre suas costelas, vendo de canto de olho
Matteo se aproximar.
— N-nico...
— Quieta! — Expressei toda a minha paciência a respondendo, ainda
mantendo os olhos longe dos mel. — Leve Alana para o quarto — ordenei
ao segurança, o silêncio reinando por alguns segundos. — Mantenha ela lá
dentro, tranque a porta se precisar.
Foi só quando a escutei correr escada acima que considerei o que teria
visto tivesse me virado. Lorenzo me observava com reprovação, e eu sabia
que quem se trancava no nosso quarto estava com medo, meu
temperamento com certeza a fazendo temer presenciar eu tomando outra
vida.
Daquela vez não me importei, o que sentia por ela como sempre me
queimando por dentro. Só que o fogo não passava nem perto do desejo
habitual, Alana me deixando com a mais pura raiva pela primeira vez.
Menos de uma hora depois, e apenas Souza permanecia sentado
comigo, eu não sabendo se me preocupava com a quietude ou agradecia o
silêncio que vinha do andar de cima.
— Diga que tem alguma notícia boa para mim — pedi exausto,
enchendo um copo de whisky.
— O bebê que estamos procurando...
— A mulher que estamos procurando — corrigi, sabendo bem que a
criança já tinha, pelas contas, mais de vinte anos.
— Ela foi adotada no Rio Grande do Sul. Estou com o contato da
família, e temos quase certeza que é a menina. O senhor pode ver aqui. —
Souza tirou a foto de uma mulher vestindo uma roupa muito maior do que a
que me fez perder a paciência naquela tarde. — A marca que ela tem no
ombro tem o mesmo formato de coração. A mulher também se chama
Stella, por mais que a data de nascimento seja outra.
— Já me surpreende muito terem mantido o nome — confessei,
virando o líquido amarelo em um gole. — Se é que essa é a Stella que
procuramos. E os pais?
— Parecem não saber de nada. Eles adotaram pela agência que
estamos investigando.
Decidi por visitar pessoalmente o estado na próxima semana, liberando
Souza antes de tomar mais um gole de calma. Os deuses em que não mais
acreditava sabiam o quanto precisaria de tranquilidade ao destrancar a porta
do meu quarto, e subia as escadas com mais paciência do que tive no
começo da tarde.
Alana ainda vestia a mesma combinação que me extinguiu a paz, e
pela primeira vez, quis que estivesse mais coberta. Ela sempre nos enchia
de primeiras vezes, aquela sendo muito mais amarga do que as que havia
aprendido a gostar.
— Você ia matar aquele cara. Por me olhar. — Em quinze dias, tinha
dado dois passos para frente. Em minutos, voltava quilômetros para trás. —
Quem é você pra decidir como as pessoas podem me olhar?
Vê-la sendo desejada por outro homem havia gastado um pouco da
minha paciência. Precisar usar parte da noite para falar sobre isso fazia o
resto da minha calma evaporar.
Nem uma garrafa inteira de álcool me faria gritar menos.
— Eu sou um dos chefes dessa merda! — Igualei meu tom ao dela, a
enfrentando do mesmo jeito que Alana sempre fazia. — E meus
empregados não podem olhar minha mulher do jeito que olharam! E se eu
não reagisse, a próxima coisa seria alguém colocando as mãos em ti!
— O corpo é meu, Nickolay! Não é você que decide quem vai olhar ou
tocar! — Respirei fundo. Como faria justo aquela mulher aprender o que
era viver no meio que seria obrigada a permanecer?
Em três passos longos eu estava de pé ao seu lado, Alana ajoelhada no
colchão me enfrentando com o olhar. Ela nunca recuar me deixava à beira
da loucura, me recordando demais da garota que me infernizou por anos.
— Se aquele homem te tocasse, eu teria que matá-lo! — expliquei sem
suavizar, tentando fazê-la entender o que quase provocara. Ela não sabia,
queria me convencer que não tinha ideia do que estava fazendo, que seu
comportamento não era para me desafiar, mas pura burrice. — É isso que
quer? Eu matando pessoas? Não é o que parece, visto o jeito que está
comigo depois de me ver atirando!
Alana não recuou, mas mostrou um mínimo do que reconheci como
arrependimento no olhar. Não que aquilo fosse fazê-la verbalizar qualquer
desculpa, eu já conhecendo bem demais a mulher que cruzava os braços.
Era eu quem deveria pedir desculpas no mundo dela, Alana novamente
expondo o quanto nossos planetas eram diferentes, por maiores que
pudessem ser nossas similaridades. Querer me desculpar e não poder era
um inferno.
— Tudo é tão difícil contigo — lamentei, passando a mão pelos
cabelos. Eram seis horas de uma sexta feira, e não conseguia mais encontrar
paz onde antes paz era tudo que havia. — Está tentando me castigar?
Ela não respondeu, seu silêncio sendo meu sim.
Fui para a cama, sentindo a tensão acumulada no pescoço enquanto me
livrava do paletó, não me importando em esconder a pistola como sempre
fazia. Alana não parecia mais se importar com armas, especialmente após a
tarde passada inteira com uma ao meu lado. Era bom e ao mesmo tempo
desesperador como nada mais parecia assustá-la, as mãos pequenas achando
os botões da minha camisa enquanto sua boca fazia o mesmo com meu
pescoço.
Amava e odiava aquela nossa semelhança. Tê-la distante por mais de
duas semanas era tortura, e seu toque era tudo que eu queria. Suas mãos
também eram o que mais precisava afastar de mim naquela noite.
— Não quer tirar minha roupa, Alana. — Minha voz conseguiu ser
firme até senti-la abrir meu zíper. — Não hoje... — Como sua
desobediência ainda me surpreendia?
A mão que se fechava ao redor do meu pau sabia bem demais de tudo
que eu gostava, a mordida no pescoço mais possessiva do que estava
acostumado. Meu corpo não deveria incentivá-la tanto, mas a maldita me
tinha na sua palma, eu sabendo muito mais o que era obedecê-la do que o
contrário.
— Se o meu corpo é seu, é justo o seu ser meu também. — Os lábios
no lóbulo da minha orelha causavam arrepios, e agarrei o edredom, me
forçando a não responder do jeito que precisava.
Como Alana ainda não tinha entendido que eu era inteiro dela?
— Se você tem o direito de não querer nenhum homem me olhando,
eu também posso não querer Emília tocando no que me pertence. — Sua
boca ordenava bem demais, eu apenas conseguindo concordar, firmando
mais as mãos no tecido. — Ela já aprendeu quem é sua noiva? Não é como
se eu fosse saber, já que não tem coragem de me levar com você!
A mão pequena apertou mais ao meu redor, os movimentos rápidos me
deixando ofegante, eu mal conseguindo pronunciar as próximas palavras.
— Eu não deixo mais Emília chegar perto de nós — saiu numa voz
rouca, um gemido seguindo ao sentir unhas curtas arranhando minha
virilha. Cerrei os dentes, a necessidade de gozar me tirando toda a coerência
enquanto prometia tudo que ela queria. — Eu não a vejo, eu a mando para o
inferno, é isso que precisa?
Entendi bem demais o que era frustração quando sua mão parou
segundos antes de me dar algum alívio. O gemido que soltava não era mais
de prazer, eu virando a cabeça com raiva para quem me olhava com um
sentimento igual.
— Ma che cazzo, Alana! — Corri a mão pelos cabelos, apertando os
olhos enquanto tentava ignorar meu pau pulsando por atenção. — Qual a
necessidade disso?
E as próximas palavras me fizeram entender que Alana conseguiria
sim fazer parte do meu mundo. Ela só precisava aprender a direcionar a
rebeldia que havia ali para outro lugar que não fosse eu.
— Essa frustração que você tá sentindo, eu quero que lembre bem dela
— ela falava amarga, meus olhos favoritos me dando um ressentimento que
machucava. — Porque é como eu me sinto todos os dias, presa de novo!
— Eu não estou te prendendo! — rebati, nem eu acreditando nas
palavras.
— Quer dizer que não precisamos casar? Que eu posso decidir ir
embora, que eu sou livre pra isso?
Era como um soco no estômago.
— Quer ir embora? É isso que está acontecendo? — Tinha um mínimo
de arrependimento em seus olhos mel. — Ver o que faço te fez mudar de
ideia, Alana?
Não vieram mais palavras, ela encarando o edredom me fazendo
incapaz de ficar longe. Por mais que as provocações tivessem dado certo,
tê-la nos braços era o suficiente para eu fingir alcançar qualquer paz, e
poderia ter me contentado com aquele abraço o resto da noite.
Mas as coisas nunca eram fáceis conosco. Alana não era fácil, e ao me
ouvir suspirar aliviado, as pernas foram para o meu redor, reacendendo o
que eu lutava para apagar.
Ela negar meus lábios como sempre andava fazendo foi a gota.
— Eu não quero beijar você! — As palavras pinicaram como tapas, os
olhos sérios me desafiando a responder.
Eu deveria sair dali. Deveria me colocar longe das mãos tão pequenas,
e tão perigosas.
— Não quer beijar, mas quer foder?
— Se quer chamar assim, então sim. — E os dedos passavam pelos
meus cabelos, puxando os fios do jeito que ela sabia que eu gostava. — Eu
quero foder.
Deveria ter saído do quarto, mas escolhi mal pela segunda vez e a
empurrei contra o colchão. A mão que achava seu seio era tão delicada
quanto as que me arranhavam, meus dentes em seu ombro deixando uma
marca como os dela deixavam no meu pescoço.
Alana queria me empurrar para baixo, mas do mesmo jeito que me
negava seus lábios, eu lhe negaria o controle naquela noite. Se a mulher
quisesse qualquer alívio, o prazer viria do meu jeito, eu a prendendo entre
meu corpo e a cama. Filha da mãe provocadora, que acabaria com o resto
da pouca sanidade que mantive durante os últimos anos. Era difícil entender
que cazzo acontecia naquela cabeça para sexo ser mais aceitável que um
beijo, eu a virando de costas, minhas mãos abaixando o short jeans.
— É isso que quer? Meter fingindo que não tem sentimento é o que te
faz gozar agora? — Tinha a mesma falta de filtros que a mulher embaixo de
mim. — Quer que eu te coma que nem faria com uma putanna?
Irritante como não fazia questão de tê-la daquele jeito, pela primeira
vez sem a menor vontade de continuar o que ela começava. Aquela
frustração era ainda pior, eu tendo estado tão perto de gozar e agora nem
mesmo duro, por mais que a bunda descoberta me desse toda a fricção que
necessitava minutos atrás.
Queria gritar, e estava prestes a fazê-lo antes de ouvir as próximas
palavras.
— Todo mundo já pensa que eu sou isso mesmo! — Mas a voz não
tinha metade da força de antes, Alana fungando antes de continuar. — Todo
mundo pensa, e você tá toda hora me comparando com uma! Por que não
admite que é o que deve achar também?
Ela também tentaria me consolar se fosse eu no seu lugar, mesmo com
a raiva que havia agora? Porque querer parar os soluços do corpo que
chacoalhava embaixo do meu foi automático, acariciar os cabelos longos
enquanto achava qualquer pedaço de pele para beijar a primeira coisa que
fiz.
Mas só senti o corpo pequeno tremer mais com meu toque. Demorou
para eu entender que o motivo do choro estava em cima dela.
— Eu não quero. — Minhas mãos foram para longe, nossos corações
batendo acelerados juntos antes de nos separarmos. Ela não se mexer
enquanto continuava sussurrando as mesmas palavras era desesperador de
ver. — Eu não quero, eu não quero…
Ao seu lado, me forçava a manter distância, tentando pensar no que
poderia tê-la machucado se não minha escolha de palavras. Saíam lágrimas
dos olhos fechados, o rosto branco que eu queria acalmar e não conseguia
apertado meu peito.
— Alana, o que foi? — Mas ela não parecia escutar, e minha coragem
de tocá-la havia evaporado.
Memórias que eu não estava pronto para enfrentar voltaram com força
demais, e eu via com clareza cabelos loiros numa pele muito mais
bronzeada, um rosto mais fino na mesma situação. Uma voz tão quebrada
quanto.
Alana puxava rápido o ar, e se a deixasse continuar com aquilo, ela
acabaria hiperventilando. O quanto as coisas piorariam se ela começasse a
ter crises de pânico com os menores estímulos? Como eu aguentaria viver
sem poder tocá-la?
— Alana, abra os olhos! — Fiz o mesmo que fazia com Giovanna
quando a achava num estado parecido, saindo da cama e rezando para que
funcionasse igual com quem eu rezava para não ter quebrado.
Talvez mesmo um ateu pudesse se atrever a pedir, pensei ao ver os mel
se abrindo.
— Respira devagar, Alana. Está... — Engoli seco, a bola que se
formou na minha garganta ao olhar bem para o rosto apavorado não
dissolvendo. — Está tudo bem. Eu não vou mais te tocar, ok?
Tínhamos pouco tempo de convivência, mas mesmo no curto espaço
passado juntos, havia aprendido coisas valiosas sobre a mulher que se
levantava. Alana era infinitamente mais resiliente do que eu. Alana,
também, compartimentalizava os sentimentos ruins com uma facilidade
invejável.
Ela trancou tudo que antes me mostrava em segundos, limpando o
rosto e saindo do quarto sem me encarar. A porta sendo encostada e não
batida denunciava a apatia que usava de máscara, e me forcei a empurrar
Giovanna e todos os pensamentos relacionados a ela para o fundo de minha
mente.
Estava prestes a seguir quando vi o papel amassado no chão. Assim
que reconheci a imagem, soube antes de ver a pasta fora do lugar o que
Alana havia achado. Sabia quem era o moleque que me encarava, sabia
tudo menos a localização do filho da mãe, a última coisa eu tendo certeza
minutos atrás.
E todas as torturas que já havia aplicado não seriam suficientes para
Thobias, meu cérebro achando mais algumas enquanto eu descia as escadas.
Alana conversava com Olga, jantando na mesa da cozinha, e eu me
trancava no escritório, preferindo passar o resto da sexta trabalhando do que
forçando-a minha presença.

Talvez dormir em um dos quartos de hóspedes fosse a escolha mais


sábia, ao menos por algumas semanas. Era estranho não dormir ao seu lado,
mas bom ter a capacidade de lhe dar alguma privacidade.
Tinha o sono leve demais, mas ouvir os gritos que vinham do meu
quarto seria possível mesmo se dormisse pesado. A porta estava
destrancada e a arma destravada na minha mão direita, mas Alana estava
sozinha na cama. Sozinha no quarto.
A presença que queria matar apenas a atormentava nos sonhos.
— Não! Eu não quero! — Teria deduzido ser eu o motivo de seu
pesadelo, não tivesse ouvido aquele nome sair dos seus lábios. — Eu não
quero, Thobias!
A pistola parou na cômoda, eu na cama, e meu coração parecia que iria
parar fora do meu peito. O corpo pequeno estava de bruços, as unhas
cravadas na dobra do cotovelo. Era doloroso vê-la tentar inconscientemente
acordar, doloroso ter certeza do que aquilo se tratava.
Eu não havia chegado a tempo naquela sexta. Estava meses, senão
anos, atrasado.
— Alana, acorda! — A puxei pelo ombro, colocando-a de costas no
colchão. — Alana, é só um sonho!
Mas não era apenas um sonho, e eu sabia. Não impedi o tapa que veio,
me sentindo merecedor da queimação na bochecha.
Talvez o devesse ter feito, Alana acordando ao realizar que tinha me
batido colocando um medo genuíno em seu rosto. Ela paralisou antes de se
afastar até o pé da cama, deixando óbvio a reação que esperava de mim ao
cobrir o rosto com os braços. A primeira coisa que pensei foi em como
Astrid me fez reparar na marca de pontos que havia na testa de quem
tremia. A segunda foi a que não deveria ter tentado tocá-la, minha mão indo
em direção a ela a fazendo sair correndo.
A porta do banheiro fechou e trancou, e eu finalmente aceitei o que,
até agora, tratava apenas como uma possibilidade. Já havia notado sua
necessidade por controle. O quanto ela parecia mais confortável no
comando durante o sexo, os momentos que a tinha reconhecido tensa ao ser
contida. A vez contra a porta, nós nos vendo pelo espelho do banheiro.
Alana me deixava lê-la tão bem.
Eu só não quis ler aquilo.
Preferia ter passado uma noite inteira sentindo seus tapas, do que viver
os minutos sofridos do outro lado da madeira, escutando um choro sofrido
que não conseguiria fazer parar.

O piso frio do banheiro não servia para me acalmar.


Por mais que puxasse a respiração, não havia ar o suficiente. Por mais
que tentasse colocar tudo para fora com lágrimas, os sentimentos ainda me
sufocavam, junto com todos os soluços.
Tudo começou a dar errado no início da manhã. Escolhia uma roupa,
Nickolay já longe do quarto, quando vi a foto no chão. Eu sabia que foto era
aquela, sabia que eu nunca a tinha mostrado para ele, e sabia que seja lá o
que tivesse na pasta preta fechada sobre a imagem, eu precisava ver.
Doeu menos ter conhecimentos de todas as informações minhas que
Nickolay colecionava dentro de um plástico. Nem fez cócegas aprender que
o italiano havia investigado minha vida — e todas as minhas transas
casuais. Conhecendo o número, talvez ele achasse que eu era mesmo uma
puttana, mas o que me feria era ver a ficha limpa de quem eu considerava a
pior pessoa do planeta.
Nenhuma passagem pela polícia. Sem qualquer detalhe que
denunciasse o quão podre era o homem da foto. Mesmo com seu melhor
sorriso, Thobias parecia me ameaçar, os olhos azuis me lembrando de todas
as promessas feitas antes de partir.
Ele fez eu entender bem demais como poderia me machucar na última
vez que o vi. Tão bem, que seus atos haviam se transformado no meu pior
pesadelo, eu sonhando com ele até de olhos abertos. O homem me mantinha
presa mesmo estando a quilômetros de distância.
Nickolay mandar seu segurança fazer igual foi o primeiro gatilho da
tarde, e eu quase saí correndo pela porta da frente quando escutei que seria
trancada. Me forçar de bruços foi o segundo, eu pouco ligando dele ter me
comparado com uma puta, mas ficando sem ar ao ser contida naquela
posição. Era a primeira vez que parar de respirar perto dele passava longe
de ser bom, a primeira vez que me lembrava tão bem do que havia
esquecido desde que começara a dormir ao seu lado.
Tinha já a certeza de que o italiano era muito mais forte que Thobias, e
foi desesperador lembrar do estado que alguém muito mais fraco me
deixou. Perceber que minha mão estava estampada na sua bochecha me fez
temer pela vida, eu sabendo que um soco dele bastaria para me desacordar.
Talvez por isso eu tenha começado a chorar tão logo fechei a porta. A
dor física que meu corpo esperava nunca veio, e eu soluçava alto, não me
preocupando em quem poderia me ouvir. Tentava acalmar minha
respiração, mas minha memória não ajudava. Nunca esqueceria daquela
noite, nunca esqueceria de como, por muito menos que um tapa, passei
semanas sem poder sair, dias mal conseguindo me levantar da cama.
Era horrível saber que tinha duvidado de alguém que sempre manteve
sua palavra. Óbvio que Nickolay não revidaria: ele nunca revidou, nem
quando arremessei água na sua cara, ou quando abri seus pontos, nem
depois de nenhum de meus gritos e acusações. Eu apontei uma arma para
ele, e Nico me deixou chorar no seu peito.
O que será que passava pela sua cabeça depois de ter descoberto o que
eu só queria esconder? Porque, sem dúvida, agora o italiano tinha
conhecimento de uma das coisas que me fazia buscar segurança nele. E me
cortava por dentro pensar que os olhos escuros poderiam me observar de
uma forma diferente depois da descoberta.
A memória de Thobias em cima do meu corpo era sufocante, e passei
horas buscando uma respiração que não vinha antes de conseguir pegar no
sono. As noites depois de Gabriela povoaram meus pesadelos, o
relacionamento que eu era obrigada a fingir após testemunhar seu
assassinato me estrangulando muito mais do que uma vez.
Quando abri os olhos, ainda estava deitada no tapete, a toalha branca
sendo usada de coberta. Nickolay não tinha se atrevido a destrancar a porta,
e não sabia se ficava feliz com o respeito, ou preocupada pela falta de
insistência.
A cama estava feita, a porta do quarto fechada, e não havia sinal do
italiano. Coloquei vestido e casaco de moletom, e tomava nota mental de
que precisava de um banho depois de comer alguma coisa quando vi a flor.
Tinha uma única rosa branca sobre o edredom cinza escuro. A flor
parecia ter sido colhida do jardim, e me deixei sorrir por um gesto tão
simples vir de um homem tão complexo. Paz. Estava tão cansada, a oferta
sendo tudo que eu queria.
Passei um café, a mesa estranhamente vazia, eu só notando ainda ser
seis e meia da manhã de um sábado ao olhar para o relógio na parede.
Nickolay estava do lado de fora, sentado na beira da piscina com uma
caneca tão grande quanto a minha. O observei da janela da cozinha, me
perguntando tanto se ele sabia que eu estava ali, quanto o que estávamos
fazendo. O que eu estava fazendo, nos ajudando a destruir a coisa que mais
me trazia calma.
Tomei um gole do líquido quente, observando a cafeteira italiana que
havia sido largada na pia: ele passava um café melhor que o meu, sempre
soube. Assim como sabia que Nico era problema antes de ter certeza em
palavras. Eu sabia, e eu fui atrás do problema outra e outra vez. Não queria
mais apenas uma solução, queria ele, e as olheiras no rosto agora sempre
cansado apertavam meu coração. Sentia falta de ter sua boca na minha
como senti falta de café nos poucos dias que passei sem cafeína, e rezava
para não ser ele quem me negasse qualquer conforto agora.
Era bom e ruim saber que, lá no fundo, tinha certeza de que Nickolay
não me negaria. Saí pela porta de vidro, fazendo barulho com os chinelos ao
meu aproximar. A expressão séria não mudou, mesmo quando ficou claro
que ele não estava mais sozinho, mesmo quando me sentei ao seu lado.
Acomodado na beirada, ele usava casaco e bermuda, as pernas descobertas
dentro da água gelada. Será que precisava do frio para manter alguma calma
comigo?
Ainda clareava, mas tinha luz o suficiente para eu ver a marca deixada
sem querer na última noite, a culpa me tomando ao achar um arranhão em
sua bochecha, quase igual ao que eu carreguei dias atrás. A barba cobria
bem, mas o machucado ficaria ali por um tempo. Ele tinha visto a linha
vermelha? Era o motivo da raiva que via no olhar?
— Desculpa, Nico.
Ele ignorou o que falei.
— Quem foi? — A voz era tão séria quanto a que ele usava com seus
homens, Nickolay parecendo tão letal quanto na tarde em que saí correndo
da piscina. — Quem foi, Alana? Me dê o nome. — Os olhos continuavam
encarando a água enquanto o italiano me cobrava uma resposta, o rosto sem
nem o esboço de um sorriso. — Só o nome basta.
O quão errado era respirar aliviada? Aquele pedido era tudo que eu
tinha buscado desde que reconheci o quanto o homem era perigoso. E eu
queria falar, eu precisava falar.
Mas como sempre acontecia, abria a boca e o nome não conseguia ser
dito, por mais que meu cérebro gritasse para eu obedecer a voz.
— Foi Thobias? — E minha garganta apertou. Mesmo apenas tendo
visto uma ficha limpa, o italiano sabia quem me tirava o sono. Era assim
óbvio? — Foi o moleque da foto, Alana? — Como que ninguém além dele
via isso? — Responda.
Fechei os olhos, as emoções de finalmente ser vista sem precisar falar
me atingindo forte. Eu sabia sobre o que ele perguntava, sabia qual seria o
motivo que assinaria a sentença de morte de quem um dia eu disse amar.
— Sim. — Era o motivo errado, mas por enquanto, bastava.
— Eu vou matar esse pezzo di merda[71]! — Por mais que me sentisse
desumana ao desejar a morte de alguém, o que Nickolay afirmava era tudo
que eu precisava para continuar viva.
Ainda no escuro, escutei a água se mover. A respiração dele. A caneca
de café sendo posta no chão. Foi a primeira vez em uma semana que não
quis recuar quando a mão grande encontrou a minha, os dedos se
entrelaçando devagar, como se com receio de ter meu toque outra vez
negado. Nickolay deu um suspiro aliviado e eu voltei a enxergá-lo, seus
olhos carregando uma suavidade triste.
— Passei a noite com a certeza de que nunca mais poderia te tocar. —
A voz tinha muito mais sentimento do que estava preparada para ouvir, eu
nunca mais querendo lhe negar nada. — Dolcezza…
— A gente vai se destruir se continuarmos assim, eu sei. — A mão
livre coçava a barba, as olheiras tão grandes quanto meus olhos inchados.
— Eu não quero destruir isso, Nico.
— Trégua. — O pedido veio e fez eu me arrepender de todos os beijos
negados nas últimas semanas. — Eu não consigo continuar assim, Alana.
Nunca me relacionei antes, mas o que estamos fazendo... — Ele respirou
fundo antes de continuar. — Não é saudável. Eu sei que sabe que não é,
bella.
Não era. Eu sabia que não era. Não era antes de Nickolay, quando a
pessoa que tinha ao meu lado teria me matado se eu tivesse feito metade do
que fiz com o italiano. Nico tirava vidas, mas tinha o poder de devolver a
minha.
— Também sei que não está numa posição fácil, mas me ajuda a tornar
isso menos difícil.
Lembrei das palavras ditas por Lorenzo um dia depois de eu ver
Nickolay matando o homem no meio da sala. A vida dele era um inferno
com Giovanna. E eu acreditava na informação, imaginando o quanto sua
primeira esposa deveria querer casar-se justo com ele, após ter o amor de
sua vida assassinado. Gerando um filho que nunca quis.
Doeu pensar o quanto eu deveria estar recordando-o de sua antiga
vida, outro casamento forçado, outro inferno sem qualquer carinho. Não era
como se não sentisse nada pelo homem ao meu lado, não era como se
Nickolay não fosse me fazer falta se eu o tirasse da minha vida.
— Um mês foi tão pouco. — Enfim, deixei meu corpo encostar no
dele. — Mas foi tão bom, Nico — continuei, apertando a mão que segurava
a minha. — Eu quero que seja bom outra vez.
Ver a esperança voltar para os olhos escuros era melhor do que poderia
imaginar.
— Me diz o que tenho que fazer. — Larguei sua mão, os braços se
fechando ao meu redor assim que o abracei. Dava para sentir o cigarro que
ele deveria ter acabado de fumar, e eu outra vez queria tirar esse vício de
nós dois. — Eu faço, dolcezza. Já disse que são poucas as coisas que não
posso te dar, e confesso que tentaria até as impossíveis para ter seus olhos
outra vez em mim.
Era uma próxima do absurdo a que me deixei sonhar.
— A gente pode fugir. Começar de novo, deixar tudo pra trás. —
Levantei a cabeça, e achá-lo considerando minha brincadeira fez o resto do
meu ressentimento evaporar. — Eu fujo com você, italiano. Eu fujo, só nós
dois, sem mais ninguém, pra onde você quiser. Pra onde quer nos levar?
Os lábios acharam minha testa.
— Para longe daqui. Para longe de tudo isso. — E a mão no meu
queixo me fez inclinar a cabeça em direção à dele. Nickolay sabia que eu
não nos afastaria mais, mas manteve sua distância, mesmo com meus lábios
tão próximos. — Nunca quis ver medo nos teus olhos, Alana.
Principalmente medo de mim. — Ali tinha um arrependimento genuíno. —
Te fazer lembrar de algo assim doeu mais do que qualquer tapa. Me perdoa.
Eu compartilhava do mesmo sentimento, meus lábios alcançando o
arranhão que a unha roída havia causado. E ali estava o sorriso que eu
adorava ver.
— Eu nunca quis te bater. — Eu estava tão arrependida quanto ele.
Sabia a dor que era um machucado vir de alguém que tinha sua confiança.
— Desculpa por...
— Não se preocupe com isso, bella.
Sacudi a cabeça.
— É claro que eu me preocupo, Nico! Eu sei o que é...
Isso. Sabia o que era uma pessoa que tinha sua confiança te machucar.
E eu não continuei a frase, mas o deixei me ler por inteira.
— Eu não sabia que era você. Eu não sabia, e eu senti uma mão me
virando. Foi reflexo — expliquei, também por reflexo indo para cima dele,
outra vez vendo o quanto éramos cheios de pequenas manias em tão poucas
semanas juntos. — Foi reflexo, e eu...
Não deveria ter me surpreendido quando escorreguei, eu não sendo,
das pessoas, a mais habilidosa. Nickolay era, mas nem mesmo o italiano
conseguiu me impedir de levar nós dois para a água.
Puxei o ar quando voltei para cima, pensando que sim, a água estava
muito gelada àquela hora da manhã, que o grito que dei tinha sido alto o
suficiente para acordar o resto das pessoas que dormiam, e que eu queria
ouvi-lo rindo para sempre. A risada do italiano puxava a minha, do mesmo
jeito que parecia haver uma força que me empurrava para ele.
A única coisa que me fazia considerar calá-lo era a necessidade que
tinha de seus lábios, e descobri que a falta que senti deles se movendo
contra os meus era enorme em nós dois. Não tinha como ter frio com sua
língua na minha. Seus braços me seguravam enquanto enrolava minhas
pernas ao redor da sua cintura, Nickolay me encostando no azulejo da
piscina do mesmo jeito que estávamos semanas atrás.
Ele procurou meus lábios tão logo me afastei para respirar, e quando
enfim nos tirou da piscina, nossas mãos estavam enrugadas e o sol já batia
na água.
— Saudade disso. De ti me olhando assim — escutei enquanto era
levada de volta ao quarto, nenhum de nós se importando com a bagunça que
fazíamos ao molhar toda a casa. — Desse beijo — ele disse antes de me
calar outra vez. — Seus lábios conseguem curar tudo, bella.
Era tão bom entender que eu não era a única.
— Os seus também.
Pela primeira vez tomamos juntos um banho comportado, seus beijos e
a esponja cheia de sabonete sendo suficientes.
— Ti voglio, Nico — disse enquanto secava seus cabelos, conseguindo
mais um de seus sorrisos. — Falei certo? Ti voglio, Nickolay.
O coração dele batia num ritmo bom demais contra o meu, os lábios
sempre sabendo me calar bem demais. O italiano que usei só me rendeu
mais carinhos, e pela primeira vez em tanto tempo, carinho era a única coisa
que eu precisava.
— Tem um almoço na casa dos meus pais hoje — contei ao cobrir o
corpo com um vestido seco para o café, o relógio marcando quase dez. —
Vem comigo.
— Seu pai gosta dele — escutei quando me servi de café pela segunda
vez, o bolo de milho dissolvendo na boca.
— Tô vendo. — Olhei curiosa para fora, enxergando os dois homens
mais importantes da minha vida pela janela da cozinha. Já tinha desistido de
não rotular meu italiano como tal. — Tão até fumando um charuto juntos.
— Ele também leva jeito com crianças. — Sorri.
Nickolay levava jeito com praticamente tudo, ele sendo muito bom em
se fazer gostar quando queria, por mais que sua aparência gritasse distância.
As tatuagens enchiam os olhos de Leo, meu sobrinho passando boa parte da
tarde as traçando com uma canetinha enquanto o dono falava com meus
irmãos. Os olhos escuros ficavam mais suaves com a presença do menino, e
me perguntei o quanto era bom deixá-los tão perto, algo dentro de mim
gritando que aquilo poderia fazê-lo querer imitar meus irmãos.
Não me importaria em imitá-los, se a vida fosse fácil. Lá no fundo, era
tudo que eu queria.
— Nico gosta de crianças. — Não tinha dúvidas sobre o quão bom o
homem havia sido como pai, o jeito carinhoso e saudoso que usou nas
poucas vezes que falou do filho me fazendo doer e me apaixonar mais. —
Ele é bom, mãe.
Por mais que suas ações o transformassem num antagonista para uma
família normal. Era bom não ser normal naqueles momentos, eu sabendo
estar apaixonada por um assassino e não exatamente me importando.
— Eu não disse o contrário.
— Mas tá com o olhar que tinha quando vinha me falar do último. —
Não deu para ignorar, minha mãe olhando para as mãos antes de me
encarar, séria.
Mas eu não esperava o que vinha.
— Nickolay me perguntou se precisava pedir permissão pro seu pai
para se casar com você. — Quase cuspi o café. Filho da mãe, era aquilo que
ele estava fazendo agora? — Eu disse pra ele falar com Esteban. Ele
provavelmente está perguntando isso agora.
Revirei os olhos, terminando com o bolo que tinha na mão.
— Acho que as coisas funcionam diferente na Itália — Astrid
continuou, enchendo a própria xícara antes de me olhar. — Filha, você sabe
com que tipo de homem está se envolvendo?
E senti um arrepio percorrer meu corpo. Eu sabia, e pelo que via nos
olhos de minha mãe, ela também tinha total conhecimento de que Nico não
era um homem simples como eu o fazia parecer.
— Você sabe, não sabe? O que ele faz? — Não adiantaria mentir.
— Sei. — Mas como ela sabia? E por que não se opunha a isso?
Por um segundo, tinha algo que me lembrou tristeza na mulher mais
velha. Logo ela, que nunca me deixava ver além do que queria, mostrar tão
abertamente um sentimento como aquele, trazia mais desconforto do que
esperava.
— Me fale quando acontecer, filha. — Mas ainda assim mamãe sorriu,
a mão de unhas perfeitamente redondas e esmaltadas cobrindo a minha de
unhas roídas e peles soltas. — Tem algo que eu deveria saber para esse
pedido vir tão rápido?
Sacudi a cabeça, pegando mais um pedaço de bolo.
— Eu não tô grávida, mãe. — Por mais que naquele dia, estivesse
comendo por praticamente dois, meu apetite retornando no momento que
me deixei ter minha paz de volta.
Senti seus olhos em mim antes de levantar a cabeça, Nickolay me
encarando com um sorriso junto de meu pai. Eu não estava grávida. Saberia
se estivesse, e me levantei com aquela certeza, meu noivo apagando o
charuto antes de Esteban lhe dar um tapinha amigável nas costas.
— Ele te olha como se você fosse o mundo, Alana — minha mãe
afirmou assim que os dois homens começaram a andar em direção a nós. —
Disse pra ele que te ver sorrindo assim era o suficiente. — Ela mordeu o
lábio inferior, mania que havia me passado. — Eu só não quero te perder.
— É muito clichê se eu falar que não vai perder uma filha, mas ganhar
mais um moleque? — brinquei, e ali estava, outra vez. Apenas um mísero
segundo, mas o suficiente para eu notar que algo incomodava a mulher que
nunca se deixava abalar.
Meu pai e Nickolay entrando na cozinha me fizeram decidir
interromper a conversa, eu não querendo insistir em haver algo errado na
frente de um detector de mentiras mais avançado que mamãe. Ele tinha um
sorriso bonito demais quando sua mão me puxou para perto, seus lábios
indo para minha testa como sempre ao ter minha família ao redor.
Mas não conseguia esquecer da emoção escondida duas vezes tarde
demais. Eu não gostava, mas havia aprendido a confiar na minha intuição, e
uma voz gritava erro cada vez que repassava a cena na minha cabeça.
Minha mãe estava escondendo algo, e eu ter descoberto parecia deixar
nós duas aflitas.

Tive mais paz do que gostaria de volta, Nickolay longe demais durante
toda a semana. O italiano se ocupava com os negócios sobre os quais ainda
não discorria, ficando menos na nossa cama e mais fora de casa desde o
último domingo.
Eram cinco e meia de sexta, e já não tinha mais ninguém no
travesseiro ao lado quando abri os olhos. O achei abotoando a camisa, me
perguntando se essa vida corrida seria o verdadeiro normal com o qual
precisaria me acostumar.
— Continue dormindo, dolcezza. Ainda é cedo. — Mas me levantei,
mesmo com os olhos semifechados de sono.
— Sinto falta de você sem roupa, Nico. — O vi sorrir sem jeito, ele
falhando em dar o nó na gravata quando minhas mãos tocaram seu peito.
Por um momento, achei que qualquer que fosse o compromisso, seria
mandado para o inferno. Os lábios grossos acharam meu pescoço, e o som
que deixei escapar o fez reagir como eu quis a semana toda. O gemido que
ouvi quando o toquei sobre a calça me fez querer rasgar aquela peça de
roupa, meu italiano vestido demais para o que eu precisava.
— Hoje de noite, bella. — Poderia gritar.
Minha frustração era óbvia, e eu não conseguia entender como o
homem conseguia afastar minha mão e me colocar de volta na cama,
quando não ficaria na mesma. O sorriso nervoso voltou, Nickolay não
ligando de eu ter acabado de acordar e me beijando de uma forma que só
piorava a vontade que tinha dele.
— Agora. — Fiz um bico, conseguindo com que ele desse a risada que
era só minha antes de se afastar e reclamar algo em sua língua mãe. —
Português, Nico.
— Hoje de noite, dolcezza. — Ele já estava na porta quando falou. —
Volte para casa hoje de noite.

Ainda estava com sono quando desci para o café da manhã, Lorenzo
sendo o único presente em frente à mesa grande demais.
— Nico foi tratar de negócios? — Saiu mais natural do que eu
esperava, minha mão alcançando o bule de café que tinha certeza ter sido
feito só para mim. Aqueles homens eram viciados em expressos, Nickolay
tomando o seu passado apenas quando o dividia comigo.
— Saiu com Matteo. — Foi o que ganhei. — É só o que posso te dar
sobre esse assunto, Alana.
— Já disse pra me chamar de Lana — cutuquei, mordendo um pão de
queijo.
— Nico não te chama assim.
— Porque eu gosto quando ele fala meu nome inteiro — saiu natural, a
lembrança da forma como Alana saía de seus lábios me fazendo sorrir e
ficar vermelha.
Era um calor bom. Ultimamente, o italiano andava me fazendo sorrir
até longe, algo incomum para a vida que levei nos últimos anos.
Passei a faca na manteiga, vendo o celular sobre a mesa vibrar com
mensagens de Carlinhos. Era sexta, e nossos almoços haviam se
transformado em semanais desde o mês passado, eu confirmando mais um
antes de notar os olhos de Lorenzo em meu ombro.
Odiava quando alguém estudava aquele ponto, e o cobri por instinto
com os cabelos antes presos, o homem mostrando arrependimento nos olhos
cristalinos. A cor me deixava desconfortável, mas daqueles azuis eu
conseguia gostar.
— Desculpe, Lana. Não era minha intenção ficar encarando. — Dei
um sorriso que não alcançou meus lábios, ciente que dava para perceber
meu desconforto. Ainda assim, ele resolveu tocar no assunto. — Sua
cicatriz é peculiar.
Eram pontos, quis responder, ainda lembrando dos cacos de vidro. Mas
notei que o homem olhava para o ombro contrário, a lembrança daquela
maldita noite muito bem escondida de seus olhos pela regata.
— Era uma marca de nascença. — Eu poderia falar sobre a que ele se
referia sem doer muito. — Estava crescendo de um jeito estranho. Minha
mãe disse que o médico recomendou tirar quando eu era bebê — expliquei
o que Astrid havia me contado pelo menos umas três vezes. — A pele
cresceu um pouco diferente. Ficou bem grande, mas eu não me importo.
Realmente não me importava, afirmei em pensamento enquanto
mastigava o pão. A marca era uma das coisas que preferia não ter, a pele
mais grossa que havia na cicatriz sendo melhor do que uma vida me
perguntando se a mulher que me gerou tinha o mesmo sinal no ombro.
Não dei mais importância ao olhar curioso de Lorenzo e mudei de
assunto, deixando claro que preferia discutir sobre qualquer outra coisa.
Mas era irritante como, ultimamente, me incomodava recordar de
qualquer coisa relacionada à minha mãe biológica. Eu amava minha
família, e sinceramente, não poderia ter parado em uma melhor. Só que
havia sempre uma voz que perguntava como poderia ter sido minha vida
caso não tivesse sido entregue aos meus pais adotivos.
Haveria outro fantasma que não Thobias? Ou eu teria uma vida muito
mais simples, muito menos dolorida?
Só quando estacionei ao lado do restaurante que me veio à cabeça o
que eu não queria considerar. Uma existência mais pacata teria
provavelmente me tirado o homem responsável pela minha outra vez
achada paz.
Por mais que não imaginasse mais uma vida sem acordar e estudar
suas tatuagens, uma existência calma tornava a letalidade do italiano
desnecessária.
Trocaria Nickolay por uma vida sem fantasmas?

Ele parecia mais ansioso que o normal naquela noite, a última


mensagem sendo a terceira recebida perguntando onde eu estava. Sorria ao
estacionar o carro, aproveitando o pequeno momento de normalidade.
Lembrando do desejo do começo da manhã, imaginava que seria
recebida com um beijo muito mais safado do que o carinhoso ganhado ao
passar pela porta da frente. Nickolay vestia jeans e camiseta branca, a
combinação que já tinha dito ser minha favorita de tirar, mas meu noivo me
levando para a sala ao invés de escada acima denunciava que nós dois
continuaríamos vestidos por mais tempo do que eu gostaria.
— Cansou de me deixar sem roupa, italiano? — provoquei, e ganhei o
sorriso sem jeito que me fazia querer repetir aquilo para sempre.
— Se ficar sem roupa, não vamos jantar.
— Nada que não seja eu? — usei a frase que disse tantas semanas
atrás, e o jeito que suas mãos me prensaram contra a parede enquanto seus
lábios me devoravam me lembrou demais da nossa segunda noite juntos.
Pela primeira vez, algo me distraiu mesmo com os lábios grossos nos
meus.
— O que é isso? — Tinha um cheiro bom demais vindo da sala de
jantar, Nico me levando para lá pela mão e revelando a mesa posta.
— Lasagna[72]. — Ele puxou uma cadeira para mim e sentou-se à minha
frente. — E vino[73]. Um encontro, só nós dois. Já tem tempo demais que não
fazemos isso.
— Tirou a noite pra ficar comigo? — perguntei, salivando ao
confirmar que sim, era meu prato favorito que descansava sobre a mesa de
madeira.
Nickolay fez que sim, servindo o vinho tinto que eu sabia ser seu
favorito. O olhando com mais atenção, dava para notar uma parte do
pescoço ainda suja com o que esperava ser molho de tomate. Se ele tinha
algo para falar e estava tentando me comprar pelo estômago antes de abrir a
boca, estava conseguindo, comida caseira funcionando tão bem quanto as
outras coisas que ele fazia com as mãos.
— Você preparou tudo isso? — Limpei o vermelho, ele outra vez me
olhando com uma timidez que não combinava com o rosto confiante.
— Quase tudo.
Era quase errado um homem como ele parecer desconcertado justo na
minha frente, o poder que Nico deixava eu ver que tinha sobre seus
sentimentos me inebriando muito mais que o cabernet servido.
— Italiano, às vezes eu acho que você não existe.
— É mútuo, dolcezza. Penso que é fruto de minha loucura todos os
dias.
O jantar preparado lembrava demais nossa primeira experiência num
restaurante italiano. A lasanha era tão boa quanto uma noite inteira sem
roupas ao lado dele, a massa tornando a próxima frase muito menos doída.
— Se tudo fosse normal, eu faria isso mais vezes. — Dava para sentir
o arrependimento que havia ali. — Estaríamos planejando viagens, eu não
precisaria te ensinar a atirar.
— Eu gostei de aprender — o interrompi, não querendo estragar a
noite que ele parecia ter planejado tanto com assuntos que pudessem nos
causar atrito. — Você cozinha muito melhor do que eu algum dia vou
cozinhar. Dá pra passar a vida com as suas receitas.
Ele não duraria mais muito tempo vestido se continuasse a sorrir
daquele jeito, eu descobrindo que gostava tanto do seu lado dominante
quanto do seu inibido.
— Só se quiser passar a vida comendo lasagna e massa fresca.
O problema estava no fato de Nickolay tímido não ser exatamente algo
normal, o olhar com dificuldade de fixar no meu me fazendo pensar no que
poderia estar acontecendo para isso.
— Não sei se me importaria. A lasanha pesa, mas é muito gostosa. —
E o deixei perceber pela minha expressão que eu não falava sobre a comida.
— A lasanha? — Soube que ele queria continuar vestido tanto quanto
eu quando achei seus olhos. Mas mesmo com o olhar fazendo o trabalho
que deveria ser de suas mãos, o italiano continuou sentado. — Nós
precisamos conversar, dolcezza.
E minha boca ficou seca, o homem que era a personificação do
controle me deixando ver seu nervosismo e matando qualquer calma que
havia em mim. Imaginava que todos no mundo tivessem aprendido a odiar a
última frase dita, então até estava orgulhosa por manter o mínimo de
sanidade no rosto quando perguntei.
— Quer fazer isso hoje? Conversar?
Novamente os olhos escuros me disseram tudo, ele os abaixando antes
de coçar a barba.
Talvez existisse a chance de eu ter fodido com tudo, no final das
contas. E pensando no pior, mantive minha atenção nele, rezando para ser
forte o suficiente para sabe-se lá o que viria.
Eu esperava muitas coisas. Esperava uma bronca pelo meu
comportamento impróprio para seu mundo. Esperava ele me dizer que
ficaria meses fora. Minha mente chegou a considerar Nickolay estar prestes
a me mandar embora de alguma forma, aquele sendo um jantar de
despedida. Juntando com a semana de abstinência que me fazia subir pelas
paredes, a última opção fez tanto muito sentido, quanto deixou um gosto
ruim na boca.
Não esperava uma mistura de nervosismo com ansiedade nos escuros,
ou uma mão menos estável que o normal. Não esperava a caixa de veludo
preta, meu coração acelerando ao notar a ausência de um dos seus anéis.
Ele aguardava uma reação, e com mãos trêmulas, me obriguei a abrir o
posto na minha frente, arfando ao descobrir que sim, a última coisa que meu
cérebro esperava era o que acontecia.
— Nico, é lindo! — E era mesmo, eu pegando com receio o que me
era dado.
Aquela joia era maravilhosa. A banda de ouro era grossa, decorada de
uma forma rústica com traços do que pareciam folhas, e eu não sabia como
teria coragem de andar em São Paulo mostrando o diamante enorme exibido
no centro. O anel era uma das únicas coisas que ele guardava da mãe, e
tinha certeza de que havia sido ajustado para caber no meu dedo.
— Mas eu não posso...
— Pertence a ti, dolcezza. — Veio antes que eu pudesse terminar
minha negação.
— É o anel da sua mãe!
— É seu — ele afirmou, sério. — Nunca vai haver qualquer outra em
quem eu queira vê-lo, Alana.
O meu coração ia explodir.
Tinha sido antes de qualquer relacionamento aquela conversa com meu
pai. Esteban insistia que só deveria falar sim para alguém que fizesse para
mim o que ele fazia para mamãe durante as noites de sábado. Comida
caseira, um bom vinho, e uma companhia agradável que me possibilitasse
ver além da paixão que sentia.
Tinha certeza de que aquilo havia feito parte da conversa ao fumarem
os charutos. E realizar que sim, eu conseguiria ter aquele jantar com
Nickolay muitas vezes mais durante a vida, me deixou tão nervosa quanto o
via estar.
O meu coração ia explodir, mas finalmente, explodiria por um bom
motivo.
— Não. — Fechei a caixa, a empurrando de volta. Ele me deixou ver
seu receio antes da confusão vir com as próximas palavras. — Você tem que
pedir. Me pede, Nico — expliquei, desejando conseguir me expressar da
forma certa, as palavras não vindo para mim com a mesma facilidade que
Nickolay possuía. — Como se você não fosse obrigado.
— Eu não sou obrigado!
— Quer dizer que pode escolher não se casar comigo?
E eu vi confusão em seu rosto outra vez antes de ter uma resposta.
— Eu posso. — Nickolay foi sincero, nós dois sabendo bem o que
aconteceria se ele resolvesse desistir do casamento. — Mas nunca
considerei não casar contigo. Eu não quero considerar isso. — Ele puxou
uma respiração, por um momento parecendo conflitado entre continuar ou
não. — Alana, eu sei que sou o único...
— Não é. — não hesitei, a situação de agora me dando a resposta do
que meu cérebro questionava naquela manhã. — Eu nunca te vi fora da
minha vida, nem mesmo nas últimas semanas. Eu não quero você fora dela,
italiano.
A boca abrindo e fechando me fez enfim soltar um riso nervoso, e era
engraçado como aquilo conseguiu instantaneamente relaxá-lo, eu outra vez
vendo o efeito que tinha sobre um dos homens mais intimidadores de São
Paulo.
— Eu gosto tanto de você, Nico — afirmei, meus olhos nunca saindo
dos dele. — E eu me sinto segura do seu lado, e isso é tão importante pra
mim. Você sabe que é. Sabe que com você, eu consigo respirar outra vez.
Eu te disse.
Tinha um sorriso que fazia minhas pernas amolecerem quando o
italiano parou ao meu lado. Ele me pegando nos braços e sentando-se
comigo no seu colo tinha muito mais simbolismo para nós do que ajoelhar-
se, Nickolay sabendo o quanto ficar no controle era importante para minha
calma.
— Alana, eu... — Controle, e reuni todo o meu para não o calar com
meus lábios. — Quero fazer os seus medos irem embora. — A voz era
rouca e sincera, os olhos nunca deixando os meus, minhas mãos achando os
detalhes de seu rosto. Eu confiava naquelas palavras. — Quero te proteger
durante todas as noites e dias, passar minha vida te mantendo segura. Eu
nunca vou deixar nada acontecer contigo, dolcezza. — E eu confiava
naquela promessa com minha vida. — Me escolhe também, e casa comigo
— ele pedia ao beijar minha mão direita, antes de se deixar encostar a testa
na minha. — Fica.
Quase não achei minha voz para responder a única coisa possível, o
cheiro tão dele me consumindo do mesmo jeito que a vontade de beijá-lo
fazia.
— Eu fico.
Mal consegui esperar o anel ser posto antes de juntar nossas bocas,
meu cérebro esquecendo completamente do jantar ainda no prato e
conseguindo apenas processar Nickolay. Os beijos tinham mais vontade do
que todos os dados na última semana, a língua que passava na minha e
arrancava gemidos sendo tão boa quanto as mãos que me puxavam pela
cintura.
Eu repetia os movimentos que tantas vezes fizemos no banco do carro,
e a última coisa que lembrava era de não sermos os únicos moradores da
casa. Já levantava sua camiseta, ele ainda muito mais comportado do que eu
gostaria, quando voltei a falar.
— O que eu preciso fazer pra você arrancar minha roupa? — E o
italiano me olhou, enfim revelando todo o fogo que tinha em seus olhos.
— Ainda me quer assim, dolcezza? — Tinha mais incerteza do que eu
gostaria na sua voz. — Ainda consegue me querer, depois de me ver com
sangue?
Por que ele continuava me perguntando aqueles absurdos?
— Eu já te disse, Nico. — Era quase engraçado Nickolay duvidando
do quanto eu precisava dele. — Não sei mais o que é não querer você.
Minhas palavras bastaram para os receios desaparecerem. Eu era
levada escada acima sem esforço, meus lábios apenas deixando-o quando os
dele me fizeram suspirar seu nome. Deitada na cama, ele treinava meu
controle ao tirar peça por peça com uma calma maior do que estava disposta
a aguentar, minhas mãos muito mais urgentes do que as que abriam meu
zíper.
— Devagar — escutei quando busquei fazer o mesmo, os lábios indo
para a curva do meu seio ainda coberto e me deixando sem palavras. —
Deixa eu te aproveitar com calma.
E eu tentei, me forçando a não implorar como sempre fazia enquanto
tudo era devagar demais, contido demais, as mãos que deveriam me possuir
se bastando com carícias. Mas eu não sabia ter calma depois de semanas
longe dele, a paciência de Nickolay sendo muita para um corpo em chamas.
— Isso é tortura! — reclamei chorosa quando finalmente o senti, me
pressionando contra sua ereção enquanto imitava o que precisava fazer sem
roupa. — Para de me torturar, italiano!
Entendi o motivo de toda a calma quando fui pressionada contra a
cama, Nickolay me mostrando o descontrole que eu sempre buscava ao
cobrir meu corpo com o dele. Eu o queria tanto, e era tão bom sentir os
lábios no meu pescoço, por mais que meu coração estivesse prestes a
estourar, por mais que meu corpo quisesse recuar da resposta que ganhou.
Fechei os olhos, tentando afastar memórias que não queria ligadas à
minha calma.
— Está com medo de mim. — Não era uma pergunta, a frase sendo
dita assim que minha tensão foi sentida. Era possível ver o arrependimento
nos olhos escuros, a vontade que eu tantas vezes tinha de voltar no tempo.
— Não de você — negava, tentando lidar com o peso que sentia no
peito. — Não vai, Nico. — O puxei de volta, antes que ele desistisse. Eu
não queria desistir, precisando achar um jeito para aquilo poder funcionar
outra vez. — Não para. Eu não quero parar.
— Alana....
— Você sempre consegue — confessei, respirando quase aliviada
quando não o senti mais querer ir. — Sempre faz meus medos irem embora.
Tinha um conhecimento em sua expressão que me fazia entender que
ele poderia ter uma solução, e me concentrei para relaxar comigo embaixo
dele.
— Precisa confiar em mim para isso dar certo, dolcezza — escutei
enquanto suas mãos trabalhavam para abrir meu sutiã, os dentes roçando na
minha pele me fazendo afundar os dedos em seus cabelos. — Confia em
mim.
Adorava a textura dos fios tanto quanto gostava de sentir sua língua
passando pelo meu peito, minha virilha, a provocação um prelúdio do que
estava por vir. Mas sua boca demorou apenas o suficiente para me fazer
queimar mais, Nickolay me colocando no seu colo.
— Diga não, e eu paro — ele repetiu as mesmas palavras ditas no seu
carro, tantas noites atrás. — Em qualquer momento, Alana.
Eu sabia que as palavras eram verdadeiras, e confiar em cada sílaba
que ouvia foi o que me fez puxá-lo para cima de mim. Tinha consciência da
apreensão que o deixava ver, assim como Nickolay sabia do quanto
precisava dele daquele jeito.
Os olhos escuros nunca deixaram os meus, eu incapaz de desviar da
cor castanha. O sentir deslizar centímetro por centímetro enquanto me
perdia nas tonalidades de sua íris era tão íntimo que fazia meu peito apertar.
Nickolay repetia os movimentos na velocidade que disse antes querer
me aproveitar, deixando transparecer o que sentia sem precisar de qualquer
palavra. Manter toda minha atenção nele fazia meu coração bater mais
rápido do que a vez que testamos a força de uma porta.
— Confia em mim — ele pedia enquanto minhas mãos achavam sua
cintura, suas costas, seus cabelos. — Eu não vou te machucar, bella. Mai,
Alana.
Era como se meu corpo precisasse escutar as palavras para finalmente
entender. O prazer que vi em seu rosto ao me sentir relaxar só me fazia
queimar mais, ele gemendo provocando o melhor dos arrepios. Toda minha
pele parecia responder a cada toque do italiano, Nickolay conseguindo
reproduzir todas as sensações que já tive ao tomar a melhor das balas sem
usar qualquer droga.
Nós dois estávamos ofegantes apesar do ritmo lento, a velocidade
tortuosa nos fazendo aproveitar cada toque, cada pressão. A forma que seu
peitoral roçava nos bicos dos meus seios a cada estocada. A sensação de ser
preenchida completamente, para então senti-lo sair, a cabeça deslizando
pelo meu sexo inchado me fazendo fechar as pernas e suspirar com a nova
investida.
Pareceu uma eternidade, e ainda assim foi pouco demais. Gozei
forçando meus olhos a ficarem abertos, meu orgasmo trazendo o dele, eu
chorando seu nome enquanto sentia o italiano se derramar em mim. O beijo
que seguiu foi tão íntimo quanto o que acabávamos de dividir, tão lento
quanto os movimentos que haviam deixado meu corpo dormente.
Quando nos separamos, Nickolay me encarava de um jeito novo, a
suavidade sendo mostrada até na mão que tirava uma mecha de cabelos do
meu rosto. Sua voz era rouca, e as palavras sinceras traduziam tudo que ele
já havia me mostrado em silêncio.
— Ti amo, Alana. — Um dedo foi para os meus lábios antes que eu
pudesse abri-los. — Não. Eu não estou falando para ouvir uma resposta,
estou falando porque não tenho dúvidas. Sei que te aconteceu um mal, e sei
que não está pronta para falar, mas acredite: ninguém vai te tocar. Eu morro
antes de permitir isso. — O beijo na minha testa tinha um sabor tão bom
quanto os que ele me dava na boca. — Confia em mim, dolcezza.
Abri a boca algumas vezes antes de conseguir falar qualquer coisa,
minha voz saindo tão quebrada quanto eu, denunciando todas as lágrimas
que queriam cair.
— Nico... — Será que algum dia ele saberia o quanto esperei poder
falar aquilo novamente? Entenderia que o que estava prestes a dizer era
mais importante do que o amor que eu deveria retribuir? — Eu confio em
você.

O começo de agosto chegava com um gosto amargo. Ainda faltavam


dois dias para acabar julho, mas o mês que considerava o pior de todo o ano
batendo na porta deixava difícil lidar com o que em outro tempo seria
apenas mais um punhado de dias. Ainda me acostumava com a ausência
maior de Nickolay, meu noivo sendo muito mais requisitado para trabalhos
sobre os quais preferíamos não conversar.
Ele sempre chegava sorrindo, e eu fingia não ligar. Por um momento,
me senti parte de uma normalidade quase irritante, me enganando que vivia
uma vida livre de qualquer perigo perdida nas tatuagens. Havia me
acostumado com o anel na mão direita, meu coração ficando sempre mais
leve quando o olhava, uma parte do meu italiano sempre comigo.
— Dolcezza, vou ter que viajar. — Era o que vinha no final do
domingo, o cabernet que dividíamos não tendo mais o mesmo gosto bom.
— É só por uma semana.
Entrei em modo de defesa assim que lembrei como a última viagem do
italiano tinha acabado. Nunca mais havia visto Emília, Nickolay insistindo
que a última vez que esteve junto com a mulher fora bem antes da manhã
em que fizemos as pazes.
E eu acreditava, por mais que imaginasse como alguém que antes
parecia muito mais presente pudesse simplesmente evaporar. Não queria
falar dela, se possível, nunca mais, o que me fazia, na maioria das vezes,
aceitar quieta a falta de informação.
— Pra onde? — perguntei, a taça indo para a mesa de centro, os braços
sendo cruzados, o filme que passava e não víamos subitamente mais
interessante do que olhá-lo.
— Não posso te levar — ele emendou, como se soubesse que tal
pedido viria, por mais que minhas aulas estivessem para começar na
próxima semana. — É melhor que não saiba, bella. Não faça essa cara.
Não era como se eu não pudesse faltar. Não era como se eu tivesse
algum amor pela faculdade que cursava, minha vontade de concluir
Publicidade e Propaganda sendo igual ao desejo que tinha de ficar sozinha.
E não era como se eu estivesse cheia de paciência, agosto sendo o mês do
desgosto e do fim de qualquer reserva de calma que possuía, ainda mais
com ele indo embora.
Odiava com todas as minhas forças a palavra não.
— Nunca me inclui em nada dessa sua parte, Nickolay — reclamei,
desviando da mão que queria me puxar para perto. — Você me avisa as
coisas ao invés de tomar decisões comigo. Vai ser sempre assim no
trabalho, não vai? Nos seus negócios. Por que ainda me trata como se eu
fosse uma idiota, por que me deixa de fora da sua vida? Não é como se eu
não soubesse o que você faz!
— Alana, pare com isso...
— Disse que as coisas mudariam se eu aprendesse a me comportar! O
que mais eu tenho que fazer? Não posso brigar com você entre quatro
paredes, não posso discordar de nada, o que falta? Eu tô me esforçando
tanto, e você ainda me mantém longe de tudo! — Quem visse de fora até
poderia pensar que eu merecia o apelido usado por ele semanas atrás. —
Odeio o jeito que me exclui de uma parte que eu sou obrigada a aturar!
Mas não ligava de ser uma pirralha mimada. Eu só não queria ficar
sozinha.
— Aprenda a gostar! — A resposta veio numa voz séria, Nickolay por
um momento parecendo tão incomodado quanto eu. — Te colocar numa
situação de risco falando mais do que deve saber está fora de cogitação! —
Ele levantou a mão para me calar, e eu queria arremessar o que tivesse perto
nele sempre que o via fazendo isso. — Nem se incomode em continuar a
discutir, Alana. O assunto está encerrado.
A paciência de Nickolay sempre ressurgia. Naquela noite, tal coisa só
fazia a minha evaporar mais.
— Então o que eu quero não conta? — deixei sair, ainda distante,
ainda amaldiçoando o mês que estava por vir. — Não que isso seja uma
novidade na minha vida, nunca nada do que eu quero conta! — Poderíamos
ter ficado sem aquela cutucada. — O engraçado é você achando que me
largar aqui sozinha vai me deixar segura!
Talvez ele não estivesse com toda a paciência que lhe dei crédito, o
italiano revirando os olhos e se levantando do sofá.
— Com todos os meus empregados te protegendo? Com Matteo
sempre sabendo onde está? — O que? — Como alguém vai fazer alguma
coisa contigo, Alana, como, se eu não te deixo um minuto sozinha?
— Você colocou gente pra me seguir? — E era minha vez de revirar os
olhos: óbvio que tinha colocado, e ele nem se deu o trabalho de tentar
negar. — E nem me falou? Por que você vive omitindo as coisas de mim?
— Se não fosse quase agosto, teria rido.
Mas agosto já batia na porta, então respirei fundo, tentando buscar
alguma calma antes de voltar a abrir a boca.
— Eu sempre descubro por acidente. Por que você fica me
desrespeitando com essas omissões?
A frase pareceu acabar com o resto do controle que ele segurava,
Nickolay usando sua língua para reclamar sobre algo antes de voltar para o
português.
— Cazzo, isso não sou eu te desrespeitando, isso sou eu te protegendo!
— A taça se juntou a minha, o italiano saindo da sala sem olhar para trás.
— Não vai saber de mais do que precisa, Alana. Aprenda a lidar com isso.

Dormir brigada com ele só piorava o mês que estava para chegar.
Tentei impedir o sorriso que queria vir quando senti os braços tatuados
apertarem ao meu redor, os lábios nos meus cabelos sussurrando bom dia.
Ele andava me derretendo mais fácil do que deveria deixar, e culpava o
maldito mês pelas emoções exacerbadas.
— Não faz eu ir embora contigo brava, dolcezza — Nickolay me pediu
numa voz ainda sonolenta, me lembrando bem demais da conversa tida com
Lorenzo no dia em que ameacei partir.
Saber o quanto a ausência de uma resposta minha poderia tornar a vida
de Nickolay difícil fez eu me virar sem dificuldade, a boca dele a primeira
coisa que toquei na manhã de segunda. Do mesmo jeito que ele tinha tanto
cuidado com minhas particularidades, tomei nota mental de nunca mais me
despedir sem um sorriso. Eu conseguia, mesmo chateada, lhe dar aquilo.
— Não tô brava com você, italiano. Mas vamos conversar disso
quando voltar — fui sincera, ele passando os lábios nos meus de um jeito
preguiçoso. — Precisa me deixar entrar nessa parte, Nico. Se eu vou viver
nesse meio, eu preciso disso, e você sabe.
— Alana… — O calei com um dedo.
— Agora não. Quanto tempo tenho até precisar te deixar ir? — O
arrepio que ele me fazia sentir ao traçar meu colo com a ponta dos dedos
me tirava toda a coerência, sua língua seguindo, fazendo tudo que havia
prometido na noite anterior.
— Tempo suficiente.
Mas a hora que passei com ele debaixo do edredom não parecia ser
suficiente, muito menos os minutos que passamos tomando banho. Não
teria ninguém além de mim na cama assim que anoitecesse, e o vendo
desaparecer dentro de um táxi, sabia que não estava pronta para ter meus
sonhos transformados em pesadelos.
Incomodei Carlinhos na segunda e na terça, me perguntando se, para
Matteo, era suficiente saber onde eu estava, ou se Nickolay o fazia passar a
noite no estacionamento. Quarta-feira foi a vez de Djamila, e desejava não
ter devolvido as chaves do apartamento para poder chamá-los para pernoitar
quinta e sexta.
Tinha as entregue de volta para papai e tirado o resto das minhas
roupas na última semana, e não queria abusar da boa vontade da mãe de
Mila ficando lá durante mais uma noite. Peguei no sono no mesmo sofá
onde havíamos dividido vinho e beijos no domingo, sendo acordada por
uma mão que não era a dele.
— Nickolay quer você dormindo no quarto, Lana. — Era Lorenzo, e
ele riu quando revirei os olhos, eu fazendo tanto aquilo ultimamente que a
mania estava se tornando minha marca registrada.
— Por que não foi com ele? — Senti o pescoço mais tenso do que
gostaria ao colocar os pés no chão.
Lorenzo me acompanhou escada acima.
— Estou fazendo outros trabalhos.
— Achei que seu trabalho fosse aconselhar. — E arranquei outra
risada do homem mais velho. — Se é que é isso que um conselheiro faz. —
Ele levantou uma sobrancelha. — Escutei te chamarem de Consigliere.
Nickolay acha que sou burra, e você deve achar também, mas sei usar o
Google pra traduzir as coisas. — Traduzir, e conseguir algumas
informações que eu imaginava serem parte verdadeiras sobre grupos
mafiosos na Itália, já que eu era mantida no escuro.
— Eu não te acho burra, ragazza. — A confissão ao chegarmos na
porta do quarto me surpreendeu. — Longe disso, e acredito que seu noivo
tenha a mesma opinião. E é por isso que ele te mantém de fora.
Aham, claro.
— Achei que tinha dito que se eu aprendesse a me comportar, Nico me
daria mais crédito — cobrei, me sentindo muito distante de qualquer
confiança referente aos negócios ilegais que os homens comandavam.
— Deixa ele ficar confortável, Lana. — A mão apertou meu ombro de
um jeito amigável, Lorenzo me dando um sorriso leve antes de continuar.
— Nosso meio não é seguro, você já sabe disso. Nico só quer seu bem, mas
o moleque nem sempre sabe te falar essas coisas.
— Ele sabe — admiti antes de me dar conta. Nickolay sabia expressar
os sentimentos muito melhor do que eu. Eu não sabia, então enrolava o
homem mais velho na frente do quarto, me aproveitando de todos os
segundos possíveis de paz antes de fechar a porta. — Você realmente cuida
dele como um pai cuidaria.
— Nickolay é como se fosse um filho para mim, por mais que meu
amigo tenha sido o único pai que o moleque aceitou na vida. — A resposta
veio num tom triste. — Por isso que voltei para o Brasil quando o fiz vir
para cá. Eu prometi ao meu amigo que sempre teria um olho nele. Boa
noite, ragazza.
Forcei um sorriso enquanto murmurava um boa noite, ele se
dissolvendo ao fechar a porta.
Nickolay passou toda a quinta sem dar notícias, e minha vontade de ir
para faculdade na sexta se comparava com a que eu tinha de ficar sem
cigarros o tendo longe. Menos de quatro horas de sono, e as que passei de
olhos fechados me trouxeram o olhar sem vida de Gabriela.
Queria saber qual mágica que tinha os braços tatuados, meu coração só
acalmando ao ver a mensagem recebida assim que me sentei na sala de
aula. Ao menos não teria mais aulas com Emília, por mais que ainda
pudesse cruzar com a víbora pelos corredores.
“Quero passar o domingo contigo.”
Italiano tonto, me fazendo sorrir no meio da aula.
“Só se for sem roupa.”
A resposta veio muito mais rápido do que esperava e de um jeito que
eu não estava esperando, o som do chuveiro alto demais fazendo todos se
virarem para mim. Filho da mãe, e Carlos me lançou um olhar de quem
sabia muito bem que tipo de vídeo eu tinha recebido enquanto me apressava
para fora da sala.
Claro que não tive paz durante nosso almoço, e mesmo com todo o
barulho da praça de alimentação lotada do shopping Paulista, ainda ouvia
Nickolay. Ele no banho me perguntando se era assim que o queria tinha sido
muito melhor do que uma foto, eu pensando em fazer igual assim que
chegasse na mansão.
Tinha me tornado um clichê, não conseguindo chamar o lugar de casa
sem ter ele nela.
— Aérea hoje, hein Pipoca? — Carlos provocava, o mesmo sorriso de
mais cedo. — Recebeu algum problema grande demais?
— Você viu o vídeo??
Os dois caíram na risada, meu rosto vermelho como se fosse eu quem
tivesse se filmado num banho bem exibicionista.
— Se não sabíamos o tamanho do seu problema, Pips. — Ele não
controlava a risada, Djamila acompanhando o amigo ao se divertirem com a
minha cara. — Agora a gente sabe que cê tá bem servida!
— Vocês são insuportáveis — reclamei, enfatizando cada sílaba antes
de terminar meu hambúrguer.
— E você nos ama mesmo assim.
Foi só na tarde de sábado, passada com Djamila, que toquei no
segundo assunto que mais andava me deixando acordada.
— Andei pensando na minha mãe — saiu automático quando nos
sentamos, o sol aquecendo nós duas no primeiro dia realmente frio daquele
ano. — Na minha mãe biológica — especifiquei, por mais que aquilo não
precisasse de clarificação.
Respirei fundo, provando a primeira colherada do meu sorvete de
pistache favorito. A sobremesa derretia na língua enquanto pensava o
quanto agosto poderia ser menos pior tivessem meus pais nunca me
abandonado.
E novamente me senti a pior filha do mundo, sabendo que foram
minhas escolhas que tinham me levado até ali. A mulher que era minha
única mãe me avisou outra e outra vez que havia algo de errado com o
homem que eu chamava de namorado, e o mês de agosto era o do desgosto
justamente por eu ir contra isso.
— Eu sei que não deveria. Que o melhor é nem pensar nisso...
— Lana, você tem todo direito de pensar nela — Djamila me
confortou, alcançando minha mão sobre a mesa. Ela sabia o quanto eu
ficava culpada sempre que quem me gerou invadia minha mente, o quanto
doía querer achar a pessoa que me deu como se eu fosse uma mercadoria.
— Tia Tridi falaria a mesma coisa que eu, e você sabe.
Suspirei, fazendo uma careta ao tentar conter as lágrimas que queriam
vir. Tão irritante o quanto ficava emotiva naquele maldito mês, assim como
era angustiante lembrar que mamãe estava escondendo alguma coisa de
mim.
— O gringo tá te ajudando a procurar, não tá? — Fiz que sim, mais
uma colherada de sorvete na boca. — E?
— E nada — lamentei, finalmente assumindo como era difícil a falta
de informação. — É como se meus pais não quisessem ser encontrados.
Como se quisessem mesmo ter se livrado de mim. — Dei uma risada seca:
eles se livraram de mim, e com sucesso.
— Não pensa assim, Pipoca — Mila tentava me animar. — Você não
sabe o que aconteceu! Nenhuma mãe quer se livrar do filho.
Mentira, a voz que sempre me atormentava caçoava.
— Então por que não consigo achar nada? Mesmo se minha mãe
estivesse me escondendo algo, já era pra eu ter achado alguma coisa! —
choraminguei, minha única certeza sendo a de que Astrid encobria o fato da
minha adoção não ter sido exatamente legal.
Mas mesmo que ocultasse mais coisas, as pessoas que trabalhavam
para Nickolay eram boas. Os profissionais eram minha última esperança, e
era triste como a cada dia, eles a faziam diminuir mais e mais trazendo
mãos vazias.
— Eu só queria saber por que ela fez o que fez. — Novamente meus
olhos marejavam, outra vez eu fungava por uma pessoa que nem deveria
lembrar da minha existência. — Ver como ela é. Saber de onde eu vim, ou
quem era meu pai, se eu gosto tanto de lasanha porque foi a comida que ela
mais comeu quando estava grávida. — Meu sorriso era amargo. — É tão
idiota, eu sei.
E a mão que segurava a minha a apertou mais forte, os olhos da minha
melhor amiga tentando me passar o mesmo conforto que Nickolay me dava
com tanta facilidade.
— Não é não, Lana. Eu também ia querer saber, e não achar nada me
deixaria chateada igual. — E do mesmo jeito que Djamila conseguia socar
com as palavras, ela também sabia fazer o melhor dos carinhos. — E você
pode falar comigo sobre isso, sempre que precisar.
— Sou sortuda por ter você, brigona. — Eu era mesmo, e não consegui
mais segurar uma lágrima, Djamila sacudindo a cabeça e desviando os
olhos para cima.
— Nós duas vamos acabar fungando se continuar, Pipoca! — Ela
gostava de chorar na frente de pessoas tanto quanto eu, nós duas rindo antes
da atenção voltar para a sobremesa. — Tá emotiva esses dias, hein? Isso
tudo é saudade do gringo?
— Quietinha, boba. — Revirei os olhos. Passar tempo com ela fazia
bem para minha alma.
— Talvez o contrário seja mais verdadeiro, né? — ela provocou. —
Afinal, menos de dois meses e a pessoa me enfia um anel desses no seu
dedo. Ou você tá grávida e resolveu não contar justo pra mim?
E eu quase ri. Mas a possibilidade passava longe de ter graça.
— É claro que não! — A possibilidade era, afinal, absurda.
Não que estivéssemos dependendo de algo além do meu
anticoncepcional para evitar qualquer imprevisto, mas quais as chances?
— Alana?
— Eu não tô! — Eu não estava.
No entanto, parando para pensar, eu também não estava menstruada, e
pelos meus cálculos, deveria ter ficado antes de começar a próxima cartela.
E a próxima cartela era também para ter começado ontem, e precisava
admitir que estava sendo um tanto displicente ao tomar as pílulas.
Mas eu não estava grávida. Eu saberia, se estivesse grávida.
— É impossível — afirmava mais para mim do que para Djamila.
— Com todo o sexo que você diz que anda tendo?
E meu corpo, que não sabia o que era tensão desde que Nickolay fez a
mágica de evaporá-la com seus beijos, reaprendeu o sentimento no mesmo
segundo.
— Ainda dá pra ver a boca do italiano no seu pescoço, e eu aposto que
ele não parou no beijo. — A provocação era para ter sido engraçada, só que
enquanto eu sorria, não via graça nenhuma.
Porque eu não podia estar grávida. Eu não podia estar grávida.

Não podia, mesmo assim comprei um teste de farmácia, o deixando


escondido na gaveta da mesa de cabeceira. Era improvável, só que a chance
pequena de um positivo tornava impossível tomar qualquer ação antes da
minha coragem voltar.
Ouvi minha coragem passando pela porta antes das seis da manhã do
domingo. Levantei a cabeça quando escutei casaco e mala sendo jogados no
chão, Nickolay tendo as olheiras grandes que sempre surgiam após suas
viagens, seu cansaço aparente o fazendo perceber meus olhos nele apenas
quando chamei seu nome.
— Nico? — Minha voz saía rouca, eu tão sonolenta quanto ele após ter
dormido poucas horas noite passada.
— Ciao, bella. Era para estar dormindo.
Respirei fundo.
— Senta — pedi, e fiz o mesmo.
Ele não pareceu muito feliz em obedecer ao meu pedido.
— Dolcezza, acabei de passar mais de trinta horas acordado. Eu
preciso dormir.
— Senta, Nico — repeti, a voz agora saindo muito mais séria. Ele
obedecer sem questionar teria sido engraçado, eu não estivesse surtando por
dentro. — Você não está autorizado a surtar.
Eu nem deveria estar surtando, porque com certeza não havia nada ali.
— Não é a melhor forma de se começar um assunto. — Mas também
não havia sangue.
— É sim — retruquei, mesmo sabendo que não era, colocando um
dedo em seus lábios quando o vi abrir a boca. — Quem está autorizada a
surtar aqui sou eu, entendeu? — Ridículo como já estava muito próxima
daquilo, mesmo antes de ter feito xixi no potinho. — Eu.
— Alana, fale logo. — Eram poucas as vezes que eu o via nervoso.
Foi difícil continuar com meus olhos nos dele ao deixar as palavras
saírem.
— Eu tô atrasada.
Engraçado que, por mais que eu estivesse gritando por dentro, não
havia sinal de preocupação no rosto do italiano. A expressão tinha todo o
cansaço de antes, com a calmaria que eu invejava e não mais me pertencia.
— Achei que quisesse me falar algo. — Ele não deveria ter escutado.
— Nico, eu estou atrasada. — O observei irritada esfregar os olhos
com uma das mãos, Nickolay talvez ficando com um humor similar ao me
ouvir insistir no que ele parecia não entender. — Consideravelmente
atrasada.
— São seis da manhã de um domingo, Alana. — O homem se rendeu
ao travesseiro e a um bocejo. — Atrasada para que?
— Ai Nickolay, atrasada. — Ele realmente não fazia ideia do que eu
estava falando? — Ah, por Deus! — Abri a gaveta, não achando que fosse
ser tão difícil fazê-lo entender sem falar a palavra da qual fugia. — Isso não
pode ser tão diferente em italiano! — Não foi difícil achar o pacote, eu não
conseguindo pronunciar a possibilidade e mostrando o que havia comprado
e ainda não tido coragem de fazer.
Ele sentou-se, demorando alguns segundos para entender o que havia
sobre o edredom, e o sorriso que veio quando pegou o pacote fechado nas
mãos era a reação que eu não estava pronta para ganhar.
— Está grávida? — E com meu receio de ver sozinha um positivo que
seria tão difícil de vir, eu colocava esperança onde não podia plantar algo.
Ah, merda. Deveria ter feito o teste sozinha, ao mesmo tempo que
esquentava meu coração a reação que via. Em uma vida normal, a
felicidade que estava estampada no rosto de Nickolay pela possibilidade de
um filho me alegrava. Em uma vida simples, aquele era o retrato perfeito, o
que sonhava acontecer ao começar uma família.
— Eu não sei. — Sabia que sentir tal esperança era tão, tão perigoso.
— Eu só não quero fazer sozinha — confessei baixo, cutucando uma pele
solta no indicador.
— Mai. — Ele me deu a sinceridade que guardava só para mim, os
lábios achando os meus num beijo rápido, a mão grande passando pelos
meus cabelos bagunçados. — Nunca vai precisar fazer nada sozinha
enquanto estiver vivo, dolcezza.
E ele sorria.
— Você tá feliz? — Aquele sorriso estava partindo meu coração.
— Cazzo, eu sei que não é a melhor hora. Eu sei que talvez nunca seja
uma boa hora, mas... — Nickolay tirou as palavras de minha boca. — Mas
não consigo ficar triste com um filho, Alana. — A mão que foi carinhosa
demais para meu ventre fez meu coração disparar. — Nosso filho. Ou filha.
— Ele se deixou rir, levantando uma sobrancelha. — Ou os dois, se eu fiz
direito.
Me deixei olhar para aquele sonho por dez segundos. Eu poderia
sonhar com a normalidade por dez segundos, não poderia? Eu, nervosa por
ser mais nova do que imaginava que seria ao me descobrir mãe. Nickolay
guardando papéis, e não armas, ao entrar pela porta. Um lar tranquilo, um
casamento no campo, uma cerca branca e macieiras. Eu amava macieiras, e
eu poderia me dar dez segundos.
O jeito que os olhos ganharam um brilho novo com a possibilidade
estava acabando comigo.
— A gente nem sabe se tem alguma coisa aí — falei, tentando não
parecer tão incomodada ao me livrar de suas mãos ao me levantar.
Deveria ter feito o teste sozinha. Deveria ter lidado com o resultado
sem ninguém.
— Quer que tenha? — Doeu quando uma voz na minha cabeça
respondeu que sim. — Eu vou ficar feliz dos dois jeitos, dolcezza. — Ele
levantou-se logo atrás, qualquer traço de sono tendo desaparecido de seu
rosto.
Eu deveria ter feito sozinha, o pensamento não conseguindo parar de
se repetir. Precisava ver um negativo, e nós dois parecíamos querer um
positivo, Nickolay me mostrando abertamente seu desejo.
— Ok. — Abri a caixa. — Você já fez isso? Porque eu já fiz — fui
sincera, aquela sendo a quinta vez que me via na mesma situação. — E vão
ser os cinco minutos mais longos da vida — lamentei, indo em direção ao
banheiro.
Nickolay considerando entrar comigo só provava o quanto o homem
deveria estar cansado.
— Essa parte eu consigo fazer sem companhia, italiano.
Ele ainda estava na porta quando voltei a abri-la, o teste descansando
sobre a pia.
— Cinco minutos, não me deixa olhar pra isso por cinco minutos. —
Era tão irritante eu estar muito mais nervosa do que ele, Nico sendo calmo
demais, ou escondendo muito bem todo o desespero.
Suas mãos me puxando contra seu peito, os dedos bagunçando meus
cabelos, faziam um bom trabalho em me passar um pouco de calma.
— Eu também já fiz isso. — Fiquei surpresa com ele compartilhando a
informação, Nickolay nunca dividindo nada sobre seu passado sem que eu
antes perguntasse. — Giovanna me pediu o mesmo. Foram eternos minutos,
e ela chorou por horas ao ver o positivo. — Os olhos tinham uma pontada
de tristeza ao encontrarem os meus. — Nicolas foi uma benção só para
mim. Então saiba que a escolha sempre vai ser sua.
Aquelas palavras também eram sinceras, por mais que claramente lhe
doesse dizê-las.
— Cinco minutos, dolcezza.
Respirei fundo.
— Cinco minutos.

— Negativo.
Alana respirando fundo e fechando os olhos deveria ter feito eu imitá-
la.
No entanto, qualquer reação que demonstrasse alívio apenas sugava a
felicidade que a dúvida havia colocado em mim. Era mais egoísta do que
deveria me permitir ser por querer um filho com a mulher que amava,
sabendo bem dos perigos que já a colocava sem um. Como poderia garantir
que a criança não tivesse o mesmo destino de Nicolas, quando até o de
Alana me tirava o sono?
Ainda assim, doía. Desde aquela tarde no mar, sabia que permitir
qualquer sentimento bom trazia a possibilidade da dor aparecer. Eu permiti
a entrada da mulher, e desse jeito, a dor era outra vez uma constante em
minha vida, por maior que também fosse a alegria que Alana trouxesse.
— Isso é bom, esse resultado é bom. — Ela estava de mãos juntas e
olhos fechados, como se estivesse agradecendo uma divindade que parecia
apenas me amaldiçoar. — Um filho é a última coisa que eu preciso trazer
pra vida que levo. — A frase deveria sair de mim, e não dela.
A frase também não deveria machucar tanto, minha habilidade de lidar
com a dor sem escapes tendo acabado ao perder Nicolas.
Aceitando me casar com Giovanna, sabia que assinava o fim de uma
vida normal. Preso num contrato sem amor, criando o único menino que
poderia chamar de filho enquanto com ela, aquela não era nem de longe a
vida que havia me deixado sonhar quando moleque. Após a morte de quem
foi minha esposa, a última coisa que desejava era tentar outra vez. Nunca
me preparei para Alana, nunca imaginei que iria querer com ela meus
sonhos de criança.
Não existiam sonhos no meu mundo, uma família minha sendo tudo
que imaginava antes de entrar na máfia, e tudo que não deveria querer
estando dentro dela. Alana parecer aliviada por não iniciarmos uma deveria
ser bom, mas era como um banho de álcool numa ferida aberta. E por mais
que fosse injusto, e contra tudo que havia prometido a ela minutos atrás,
não consegui sorrir com isso.
Suspirei, desejando saber se meu amor seria para sempre unilateral.
— Falei merda, não falei? — A mulher notou o incômodo, eu
ultimamente deixando-a me ler bem demais. — Nico, eu não disse isso por
mal! É difícil explicar, e eu não tô...
— Não está errada, Alana. — Forcei os lábios para cima, mas pelo
espelho, via o quanto não havia mais traço da felicidade que prometi existir,
independente do resultado. — Uma criança, na vida que levo, é loucura.
Faz parte dessa vida agora, não desejar uma é apenas o correto. — Balancei
a cabeça, me livrando de seus braços. — Não deveria nem considerar isso,
quanto mais ficar feliz em te colocar em uma prisão ainda maior. — Ela
abriu a boca para responder, eu a impedindo de falar. — Vamos ser mais
cuidadosos.
— Nickolay...
— Só estou cansado. — Respirei fundo, não a encarando enquanto
lavava o rosto com água fria. — Preciso de um banho e algumas horas de
sono, ok? — Aceitei os braços que envolviam minha cintura, mas não me
virei antes de pedir. — Está tudo bem. Volte a dormir, dolcezza. Só me dê
alguns minutos.
Ela fechou a porta ao sair, e xinguei baixo, sabendo que meus sonhos
haviam terminado com qualquer alegria que poderia haver naquele
domingo. Estava odiando ser tão transparente na frente de Alana, do mesmo
jeito que detestava o dia de hoje, meu aniversário sendo uma data
amaldiçoada. O negativo deveria ser meu maior presente, e não um tapa.
Agosto, como sempre, era amargo demais.

Não me sentia mais experiente após meus recém-feitos vinte e nove


anos. Pelo contrário: me sentia livre de qualquer inteligência, eu reagindo
errado e tarde demais causando um problema que poderia ter sido evitado
caso tivesse usado a cabeça.
Usar a cabeça ao escutar alguém ameaçando minha nova família era
impossível. Escutar o nome de Alana saindo da boca do subchefe dos
Barbosa havia acabado com as chances de acalmar os ânimos entre as duas
máfias, a arma na minha mão antes da racionalidade. Sim, o amor era
perigoso, assim como todos os homens ao meu redor.
Só que eu era mais. Eu era muito mais, e por isso apenas dois dos
nossos caíram enquanto eu levei todo o outro lado para o chão. Um tiro no
ombro era um preço pequeno a se pagar para a segurança da única pessoa
que me dava alguma cor além de todo o vermelho que vivia em mim.
Como já haviam chegado no nome dela, comigo a escondendo do
mundo?
Era difícil encontrar uma resposta com a queimação que tomava conta
do meu lado direito, e eu mordia forte o pedaço de couro que Lorenzo havia
enfiado na minha boca. Algo na história que havia sido contada não batia,
mas não conseguia descobrir o erro com Santi cavoucando minha pele.
— Nickolay, que merda que eu acabei de presenciar? — Meu pai de
criação não estava com o melhor dos humores, o meu refletindo muito o
dele. — Eu te disse tantas vezes para não comprar brigas que não consegue
resolver!
Ouvi-lo era a última coisa que queria, minha mandíbula travando
quando a pinça mais uma vez falhou em tirar o pedaço de metal.
— Lorenzo, non me ne frega un cazzo[74] suas lições enquanto tem uma
bala no meio do meu ombro! — Mas graças a algum Deus, o projétil estava
bem afastado do meio. A última coisa que eu precisava era ir parar no
hospital pela merda feita hoje.
Já bastava o quanto me sentia impotente ao ter Alana ameaçada, o
sentimento de inutilidade aumentando ao receber mais uma negativa dos
homens que estavam atrás de Thobias Albuquerque. Queria afirmar que
seus dias estavam contados, mas não ser capaz de achar um moleque
acabava com qualquer resto de bom humor que ainda tinha em mim.
— Nós vamos conversar depois — bufei, vendo de canto de olho dois
homens entrando no escritório. — Quando Vincenzo souber o que
aconteceu...
— Ele só vai saber de toda a verdade se você contar — respondi entre
os dentes, não disfarçando minha irritação.
— Ele vai saber de qualquer jeito, Nico! Se é que já não foram contar
para o homem, onde anda com a cabeça? — Lorenzo sabia que era o único
que tinha permissão de me censurar, mas o velho andava exagerando nas
últimas semanas. — Outra vez foi contra uma ordem dele. Você matou
metade dos espanhóis sem nem pensar por causa de uma ameaça, e tivemos
que dar um jeito no resto para conseguir sair vivos!
— Preferia que eu esperasse encontrá-la morta para acabar com eles?
— Mantovanni não teve coragem de responder. — Mataria o dobro, o cazzo
da Famiglia inteira se fosse preciso! Se for preciso. Não é como se mais ou
menos sangue nas mãos fosse fazer alguma diferença, nessa altura da minha
vida.
— Chefe? — Olhei para quem parava na minha frente, a voz ainda
mais receosa depois de encontrar meus olhos. — Precisamos saber o que
fazer com os corpos.
Por que as coisas andavam terminando de formas tão erradas? Era o
maldito mês de agosto e seu irritante jeito de foder ainda mais minha vida?
Quando vi Alana passando pela porta, tive certeza de que era. Quantos
círculos faria ao redor do braço depois de hoje, e quantos mais precisaria
fazer para defendê-la?
— Nico? — Chegaria o dia no qual não haveria mais lugar para tanta
tinta.
Por mais sorrisos que viessem da mulher desde domingo, os meus
eram raros e forçados, minha vontade de permanecer ao seu lado
conflitando com a necessidade de precisar me afastar. Querer duas coisas
diferentes doía, doía tanto quanto o que sentia ao vê-la assustada enquanto
tentavam arrumar a merda que eu tinha feito.
— O que houve? — Achava que ela fosse se incomodar muito mais
com sangue do que se mostrava estar, correndo para o meu lado antes que
eu pudesse ordená-la a ficar longe.
Quis rir com meu último pensamento: como se Alana obedecesse a
algo que alguém pedisse, ainda mais se o pedido viesse de mim.
— É só um arranhão — menti, tentando manter a voz firme, me
deixando tirar algum conforto das mãos que achavam meu rosto suado. Os
olhos estavam ansiosos demais, e precisei desviar deles para o teto numa
tentativa inútil de manter o foco em algo que não minha dor. — Deixe Santi
trabalhar, Alana.
— Tem uma bala no seu ombro! — Não dava para negar aquilo.
— Alana... — comecei, bem quando a queimação se tornou
insuportável, a pontada aguda me fazendo perder as palavras e travar outra
vez a mandíbula. — Ah, porco Dio[75]! Vá devagar, Santi!
A mão que tirava os fios suados da minha testa tencionou, a outra
puxando meu rosto para ela.
— Você tá sentindo isso? — Minha expressão a fez ver que sim antes
que pudesse negar. E no próximo segundo, uma de suas mãos impedia o
trabalho do médico. — Para! Dá um anestésico pra ele!
— Alana...
— Não, Nickolay! Pra que ficar sofrendo? — O motivo só a faria
querer correr mais. — E se fosse eu?
Se fosse contigo, te faria tomar a merda do anestésico, quase respondi.
A última coisa que precisava era ter qualquer recaída, e estava no pior dos
meses para tentar minha sorte. Já bastava ter dois homens que deveriam me
temer tentando conter o riso ao verem a mulher gritando.
— Você vai aceitar o remédio, Nickolay. — Ela ia me deixar louco. E
eu acabaria, literalmente, morrendo. — Agora!
Me livrei do toque de Alana e afastei a mão com a pinça, a mulher
considerando continuar a falar antes dos olhos mel pararem em mim.
— Todos para fora. — Não precisei pedir duas vezes, segurando o
pulso fino para ela entender que deveria ficar.
Ou ao menos me enganava que aquele era o motivo pelo qual me
deixava tocá-la. Não era como se a mulher fosse sair pela porta, diferente
do médico que estava prestes a acompanhar Mantovanni.
— Não saia, Santi. — Esperei Lorenzo fechar a porta antes de
continuar. — Eu posso usar isso? — Diferente da minha noiva, o médico
sabia por que perguntava.
— Uma vez não vai te matar, DeLucca.
Ok, talvez houvesse algum Deus, por mais que ainda tivesse ressalvas
quanto a seringa que Santi já segurava. Respirei fundo, sabendo que me
arrependeria da decisão assim como tinha certeza de que Alana não me
daria paz se não a tomasse.
— Aplica esse cazzo.
E o alívio foi quase instantâneo ao sentir o líquido injetado no
músculo, o relaxamento que só conseguia depois de noites cheias de álcool
ou dela vindo com o anestésico.
Cuspi a tira de couro, afirmando repetidas vezes que não pensaria nos
tempos passados. Não agora, não com Alana me olhando com uma
expressão vitoriosa. Precisava repetir mais que o necessário que ela não
sabia o quanto sua vitória machucava, assim como sabia que uma melhora
em nossa comunicação era preciso para continuarmos com o que fazíamos.
Éramos um fracasso em certas conversas, eu, como ela, não querendo
falar sobre nada que me remetesse as dores do meu passado.
— Foi tão difícil assim? — A mulher realmente não sabia o quanto
tinha sido. Mesmo assim, fechei a cara.
— Senta.
Talvez tenha sido eu olhando-a do mesmo jeito que fazia segundos
atrás com os homens que mandava sair. Era fato o quanto conseguia parecer
amedrontador quando queria, aquela sendo a primeira vez que tentei tal
com quem eu só queria me enxergando como bom.
Ela foi para a cadeira vazia que havia à minha frente, os olhos
apreensivos achando outra vez os meus após se acomodar.
— Nico...
— Nunca mais faça isso, Alana — a cortei, pela primeira vez sem
qualquer paciência para ouvi-la falar. — Nunca mais — reforcei sério
quando a vi abrir a boca. — Respeite as escolhas que eu faço,
principalmente na frente das pessoas com quem trabalho!
— Mas você estava com dor!
A preocupação que tinha ali não conseguia me suavizar hoje.
— Eu consigo lidar com a dor! — Sabia que o tom que usava puxaria
seus gritos, mas estava sem humor para o comportamento teimoso que
Alana sempre me dava. — Eu não consigo lidar contigo me fazendo parecer
fraco!
— Por causa de um remédio?
— Por causa de ti, cazzo! — gritei, e ali acontecia mais uma primeira
vez que não me agradava, Alana não se atrevendo a gritar de volta. — Por
sempre ceder quando me pede algo! Por te deixar ficar berrando, e nunca
tomar nenhuma atitude! Quantas vezes vou ter que te dizer que aqui é
diferente, hein? Quantas?
O olhar que ela me dava era pior que a bala que Santi finalmente
retirava da minha carne. Me senti mais próximo do monstro que era antes
dela por não suavizar ao vê-la tão arrependida. Sabia que havia alguém me
traindo ali dentro, e era cada vez mais claro o quanto Alana poderia ser um
alvo por estar ligada a mim.
Mas não era apenas por esses motivos que continuei a ser duro, mesmo
ao ver os lábios tremendo.
— Eu já disse Alana, aprenda a se comportar. — Talvez não estivesse
mais acostumado a ser magoado, pensei, desviando minha atenção para o
médico. — Não tem como eu sequer considerar te falar as coisas quando
me dá esse tipo de comportamento.
Talvez, depois de anos fechado para qualquer sentimento, não
soubesse mais me machucar. Não deveria, mas estava revidando a dor
sentida ao ouvi-la aliviada por não ter a ligação que eu havia desejado ter,
assim que vi a possibilidade.
— Saia.
Estava anestesiado demais para me importar com o jeito quieto e tão
incomum que Alana deixou o cômodo, a porta sendo fechada com uma
nova delicadeza ao invés de batida. Deveria me incomodar com seu
silêncio, mas o que me incomodava mais era a aparente inabilidade dela em
retribuir o que eu já sentia tanto.
Nunca deveria ter pensado que relacionamentos eram para mim, assim
como deveria tê-la avisado sobre minha vida antes de prendê-la a um
casamento sem futuro. De nada adiantava eu ter sua confiança, se um dia
isso se transformasse na única coisa que teria dela.
— Não acha que foi muito duro com a garota? — escutei de Santi, o
médico já costurando minha pele, eu olhando o que seria uma das muitas
cicatrizes que carregava. — Dá pra ver o quanto ela gosta de ti, DeLucca.
Por que tomar um tiro era mais fácil do que me relacionar com Alana?
— Fui tão duro quanto precisava ser.

Ela estava com minha camiseta quando entrei no quarto. Esparramada


na cama, sentou-se na beirada enquanto eu virava de costas, me livrando da
camisa ensanguentada e vestindo uma camiseta limpa, ainda anestesiado
demais para os pontos incomodarem.
— Eu não faço mais, Nico. — Não tinha anestésico para o
arrependimento que vinha dela. — Desculpa.
Ela nunca pedia desculpas, e eu nunca passava reto. Indo para meu
lado da cama, arrumava dois travesseiros contra a cabeceira antes de me
encostar, o livro, fazia meses esquecido na gaveta, parando em minhas
mãos.
— Tá doendo? — Alana não conseguia se deixar ser ignorada.
— No.
Abri numa página qualquer, com mais vontade de ser deixado em paz
do que de me perder em páginas. Já sabia que meu péssimo humor junto
com o temperamento dela era a receita para o arrependimento na próxima
manhã.
— Tá cansado?
— Si. — Suspirei. Eu estava exausto.
— Mas vai ler. — Dava para escutar sua frustração, ela querendo uma
atenção que eu não estava disposto a dar.
— Estou cansado, não com sono — respondi, virando uma página.
O livro foi tirado das minhas mãos, Alana o substituindo e indo para o
meu colo. Respirei fundo, tentando reunir o resto da pouca paciência que
havia me sobrado.
— Você tá bravo comigo. — Não passava de um sussurro. Os olhos
estavam nos meus, ela sentada nas minhas coxas, as pernas dobradas me
prendendo. A mulher em cima de mim era tudo que eu queria e evitava
havia semanas. — Você tá sempre bravo esses dias.
— Pare de besteiras, Alana.
— Para de me afastar, Nico. Disse que seria sempre suave — ela
cobrou, e eu nunca conseguia vê-la triste, a maldita mais uma vez
exercendo todo o poder que tinha sobre mim e me impedindo de tirá-la dali.
— O que eu fiz? É porque não consigo me comportar como a esposa que
você precisa ter? — Ela encostou a testa na minha, eu desejando saber se
ainda tinha sangue no rosto que não fosse meu. — Eu vi uma bala no seu
ombro, Nico. Como que eu posso ficar calma com uma bala no seu ombro?
— Não foi nada. — Se havia sangue, Alana ignorava o vermelho.
— Eu sei que pra você não foi nada. Mas pra mim, foi. Me diz que não
te deixaria louco ver uma no meu ombro, e eu te deixo em paz.
Ela sabia o quanto eu queria admitir minha derrota e me calou com
seus lábios. A mão que passava pelos meus cabelos era mais delicada do
que havia me acostumado, o toque fazendo minha garganta apertar.
— Trégua, Nico. — A voz pedia junto de um carinho, a mão que
vestia meu anel puxando meu queixo, os dedos explorando minha barba. —
Eu não quero mais brigar com você. Por que a gente tá sempre brigando?
Eu também me perguntava aquilo, e estava chegando à conclusão que
talvez não tivesse sido feito para relacionamentos. Aquilo era difícil
demais. Me relacionar com Alana era o paraíso, e me levava direto para o
inferno. O jeito que ela mordiscava meu queixo me fazia querer tirar sua
camiseta — minha camiseta — e a forma que mexia os quadris era capaz de
tirar todas as ressalvas que tinha sobre incentivar o nós.
Deveria afastá-la.
— Deixa eu beijar pra sarar.
Mas eu não conseguia.
— Diz que não me quer, e eu vou embora. — Alana sussurrou no meu
ouvido, o gemido que seguiu quando a puxei pela cintura me fazendo
decidir por só mais uma noite.
Só uma noite sem pensar no futuro, só mais uma fingindo que o buraco
que carregava no ombro não era o feito por uma bala. Que a mulher que
beijava meu pescoço queria estar comigo por inteira, que não havia
obrigações ou contratos. Que eu não era egoísta.
Era tão difícil tê-la presa a mim, e ainda assim, era tudo que eu queria.
Era puro egoísmo ficar feliz por ela não poder partir. Alana era boa demais
em me fazer esquecer de tudo quando em cima de mim, eu incapaz demais
de tirá-la dali. Os lábios eram melhores do que qualquer droga, tão viciantes
quanto o que injetei tantas vezes na veia.
— Não vai, dolcezza. — Eu não a queria longe, e me afoguei no cheiro
que me confortava. — Fica aqui — pedi numa voz rouca, minha boca não
conseguindo mais manter distância da dela.
Amava os lábios doces, o jeito que ela sempre parecia derreter nas
minhas mãos quando minha língua a acariciava, Alana melhor que açúcar.
Estava prestes a deitá-la na cama quando a mão pequena me empurrou
contra a cabeceira.
— Hoje é você que vai ficar quietinho — ela avisava com um meio
sorriso, a outra mão indo para dentro da minha cueca. Sim, seu toque era
melhor do que qualquer anestésico, os dedos que apenas provocavam
tornando difícil continuar parado.
— Vai me prender? — Fechei os olhos, me deixando apenas sentir por
um minuto.
Ela fechou a mão ao meu redor, a outra me libertando da cueca, o jeito
que me esfregava me deixando duro em segundos.
— Quer que eu te prenda? — a voz era linda quando sussurrada, a
ausência do seu toque me fazendo olhá-la. Viveria na prisão dela de bom
grado. — Não sabia desse seu lado, italiano.
Jogando a camiseta no chão, Alana mostrava o conjunto que me fazia
parar de pensar.
— Não me prenda — soltei, perdido entre a excitação que sentia e o
relaxamento que ainda vinha do anestésico. — Eu preciso te tocar, bella.
Senti com prazer a textura do sutiã que ela vestia, deixando sair um
suspiro satisfeito ao apertar seus seios. Havia adorado a renda branca contra
sua pele desde o dia em que tinha sido provocado com a foto. Ela fez o
mesmo na noite em que descobrimos como os espelhos eram bons, e fazia
igual agora em cima de mim, um meio sorriso nos lábios antes de se abaixar
entre minhas coxas.
— O que mais você precisa? — Alana perguntou, mordendo o canto
do lábio inferior, a respiração quente tocando meu pau.
O sorriso aumentou ao ouvir o som que saiu dos meus lábios, sua
língua passando ao redor dos delas ao invés de me lamber. Era irritante e
maravilhoso como tudo poderia estar errado entre nós, e ainda assim, o sexo
seria perfeito. Alana era perfeita, a filha da mãe sendo tudo que eu queria
prender comigo.
— Alana... — era uma advertência rouca, o jeito que ela apenas
provocava e nunca cedia ao toque pelo qual ansiava testando meu controle.
— Eu só vou saber o que você quer se me falar, italiano. — Os lábios
passaram perto de onde tanto precisava, os dentes indo mordiscar minha
virilha ao invés de darem atenção para a parte que já pulsava contra sua
bochecha. — É aqui que você quer que eu beije?
O jeito inocente que ela perguntou aquilo combinado com a falta de
inocência que a lingerie mostrava provocou um incêndio em mim.
— Eu não quero que beije, Alana. — Uma das minhas mãos prendeu
os cabelos longos, a que carregava a caveira inclinando seu queixo, seus
olhos achando os meus, a mulher finalmente percebendo que tinha me
tentado demais.
Alana parecia viciada em alimentar meus incêndios. A mulher adorava
me ver a beira do descontrole, o jeito que me encarava denunciando aquilo,
os olhos mel esperando o comando que a dona sabia estar por vir. A língua
passou por minha virilha e desceu até a base, apenas os lábios contornando
minha extensão, parando entreabertos na ponta.
Apenas olhá-la daquele jeito me deixava a ponto de gozar, ela com
certeza não sabendo dos efeitos que causavam suas provocações. A
respiração quente era uma prévia deliciosa do que viria, eu grunhindo e
apertando os fios ao sentir o beijo quase inocente que ganhava na pele
sensível.
— Me chupa. Forte. — Amava as recompensas que vinham sempre
que ela me ouvia falar daquele jeito.
Sim, eu amava o meio sorriso, o jeito devagar que usava para tentar
ainda mais alguém que tinha pressa. A boca macia envolveu meu pau, o
olhar nunca saindo de mim, as mãos fechando na base, Alana observando e
repetindo tudo que me fazia gemer seu nome.
Ela empinando a bunda enquanto me chupava tirava toda minha
concentração. A língua rodando por toda a cabeça, os lábios me sugando, e
a boca me libertando com um poc apenas para volta a me engolir era a
tríade que me faria enlouquecer. A pressão nas coxas era insuportável, a
vontade de investir contra ela e não o fazer gastando quase toda minha
força.
Se sentisse meu pau mais uma vez no fundo da sua garganta, eu iria
gozar. Respirava pesado, nem lembrando mais da dor que antes havia no
ombro ao fazê-la voltar para o meu colo. Era delicioso ver seus lábios
vermelhos, o gosto que havia neles depois de estarem em mim, meu cheiro
nela.
Gemi com Alana quando meus dedos a penetraram, minha donna me
reafirmando que o desejo seria difícil de morrer entre nós e encharcando
minha mão. Aquela boca nunca conseguia ser quieta, ela apoiando a testa
no meu ombro bom enquanto dissolvia contra mim.
— Não tira — saiu quando a vi tentar abrir o sutiã, eu amando apreciá-
la tanto sem nada quanto naquela lingerie.
A primeira vez que meus olhos acharam seu corpo vestindo aquela
renda também havia sido um dia de machucados, a imagem sendo a melhor
forma de não sentir a dor. Alana inteira era meu melhor anestésico, eu
apenas sendo capaz de perceber seu toque enquanto a tinha rebolando no
meu colo, se enterrando mais nos meus dedos.
Cazzo, que visão deliciosa.
— Vai me foder a noite inteira se eu não tirar? — Provocadora, até
mesmo nos dias que deveria ficar quieta.
— Vai parar de provocar se eu te foder a noite inteira? — A sentir
contrair, sempre me lembrando em silêncio o quanto gostava das minhas
palavras sujas. — Não vai, vero? Ama me provocar. — Meus olhos estavam
nos dela quando retirei meus dedos, as pupilas escuras roubando a cor,
Alana prestes a responder e se calando ao ser descida por toda minha
extensão.
Era bom vê-la tão sem palavras quanto eu ficava a tendo ao meu redor.
Ela fechava os olhos, sua boceta me engolindo, o melhor dos choros saindo
dos lábios finos. As mãos pequenas agarravam a grade da cabeceira de
metal, Alana me cavalgando com a mesma vontade da nossa primeira vez.
Não me mexer era impossível, as mordidas que ganhava no pescoço não me
servindo de advertência, mas de incentivo. Nunca conseguiria me
incomodar com Alana me marcando como seu, a mulher se apropriando de
mim só aumentando o desejo que tinha dela.
Fechei os olhos, a visão da cabeça sendo jogada para trás sendo
demais, ela sendo demais. A boca que vinha calar a minha era doce e
picante, me deixando para sussurrar meu nome, me obrigando a soltar o
dela ao senti-la aumentar mais o ritmo. O cheiro de framboesa se
misturando com o meu ficava ainda mais forte no escuro, assim como as
unhas curtas arranhando minhas costas por cima da camiseta.
Só voltei a olhá-la quando a senti gozar, e vê-la tão perdida em seu
prazer foi o suficiente, eu a alcançando em segundos. Adorava a boca
ofegante achando a minha, as mãos bagunçando meus cabelos, o aroma de
framboesa.
Queria para sempre a paz que existia entre nós comigo dentro dela.
Queria que essa mulher fosse a mãe dos meus filhos, minha anestesia
durando muito menos do que eu precisava naquela noite.
— Eu te amo, Alana — saiu quando meus lábios deixaram os dela, e
ganhei de volta o sorriso que só fazia meu sentimento aumentar. Era injusto
querer cobrar dela o que eu já lhe dava tanto, mas abri a boca para fazê-lo.
E como se soubesse o que viria, a mulher em cima de mim voltou a me
calar da melhor maneira.
No fim da noite, pegávamos no sono abraçados. Alana andava muito
mais carinhosa do que me acostumara, mas era inevitável lembrar das
palavras de Lorenzo. Por mais que ainda tivesse a dormência do anestésico,
escutar repetidas vezes que nenhum amor nascia numa prisão pinicava
demais.

Já estávamos no meio de agosto, e meu ombro não incomodava mais


tanto quanto a minha inabilidade de esquecer a manhã do meu aniversário.
Acordava com Alana nos braços, e ela sabia que os sorrisos que me forçava
a dar estavam longes do meu normal. Amornava todos os beijos quentes
que ganhava, na minha cabeça sempre uma nova forma de deixá-la livre.
Nenhuma parecia funcionar a longo termo, e aquilo me desesperava e
alegrava.
Por mais que não suportasse pensar em uma vida sem ela, a última
coisa que queria era que minha pessoa favorita murchasse igual Giovanna
murchou ao meu lado. Não conseguir achar um jeito para colocar um fim
em nós era confortante e desesperador, a mistura que mais havia no nosso
relacionamento.
— Matarazzo está voltando para o Brasil — falei antes de dar bom dia,
abotoando os botões da camisa. — Ele quer um jantar hoje à noite. Não são
negócios, é apenas um jantar — continuei, me desvencilhando dos braços
que tentavam me puxar de volta para a cama. — Mas preciso que chegue na
hora, tudo bem? Ele te quer lá, Alana.
Era um teste, e eu sabia. O Don queria ver o quanto eu conseguia fazer
a mulher me obedecer, e eu estava fodido.
— Podemos ir juntos, Nico. Eu não volto tarde.
Só isso já deveria fazer com que eu não descolasse dela durante todo o
dia. Quem eu ainda chamava de chefe ainda parecia estar procurando
motivos demais para o casamento não acontecer. Por mais que tivesse me
prometido liberdade quanto a isso caso achasse Stella, eu tanto não havia a
encontrado, quando sabia ser visto como um peão valioso demais para me
casar com uma mulher sem nome. O jeito que ele se referia a Alana fazia
meu sangue ferver, e me mostrava que Vincenzo não tinha medo do meu
péssimo temperamento.
Eu temia o dele.
— Não vou estar em casa. — Olhei para a janela, a culpa por não
conseguir usar o apelido pelo qual amava chamá-la incomodando tanto
quanto vê-la decepcionada. — Te mando o endereço por mensagem, esteja
lá até as sete...
— Por que você tá me tratando assim? — Ela me cortou pela primeira
vez em quase duas semanas, e ali estava a faísca que conhecia tão bem. —
Eu só sou boa pra sentar em você?
Faísca que queimava de uma maneira ruim, que ultimamente, me fazia
querer reagir da pior forma. Mas eu não ter vontade de gritar de volta
mostrava haver algo de errado, e me perguntei se, naquela manhã de
domingo, Alana matou o que me fazia sorrir para ela de graça.
Giovanna tinha conseguido assassinar nossa amizade, seus pontapés
diários um dia se tornando demais. Talvez eu não precisasse de muito para,
agora, desistir. Não que nosso relacionamento tenha passado perto do
tranquilo, nós o deixando conturbado desde o primeiro dia.
— Se comportar como uma criança nunca te caiu bem, Alana. — O
tom baixo e calmo surpreendeu ambos, e eu a deixei ver que sim, havia
mágoa de um dia que ela poderia nem mesmo se lembrar. — Nunca foi só
sesso para mim, eu te disse que não queria só isso. Mas o que eu sou para
ti? Segurança? Uma boa foda? — E eu lembrei das palavras ditas por ela
tantos meses atrás. — Um cara que sabe chupar bem? — Eu deveria
suavizar ao ver os olhos marejados. — Claramente não sou bom o
suficiente para qualquer outra coisa. — Não consegui conter, as palavras
saindo enquanto vestia o casaco.
Nada saiu dos seus lábios, os olhos indo com o que parecia vergonha
para o chão.
— Lorenzo avisou que amor não poderia nascer numa prisão —
lamentei, um sorriso amargo nos lábios.
— Nico...
— Sinto muito por ter te colocado em uma. — Virei a maçaneta com
pesar, mas não me virei para ela antes do último pedido. — Avise se não for
aparecer.
Decidi ao fechar a porta. Arranjaria um jeito de deixá-la livre, por mais
que livrá-la de mim pudesse me custar.

— Como tão indo as coisas, Pipoca? — Carlos perguntou, enchendo a


boca com mais batatas-fritas.
Era difícil admitir que as coisas, outra vez, não pareciam estar indo tão
bem.
— Eu acho que falei umas merdas — A salada que mastigava era tão
sem graça quanto minhas últimas manhãs. Ridículo como tinha me
acostumado tanto com a risada dele, patético como sentia falta de ser
despida antes das sete. Queria as tatuagens em mim, e não distantes como
ele andava fazendo questão de manter.
Nickolay estava me afastando, e aquilo tanto doía quanto me fazia
prometer em silêncio que eu nunca mais repetiria o feito com ele.
— Do tipo?
Fiz uma careta e engoli o agrião. Não falaria do teste para Carlos.
— Nickolay disse que me ama.
Não queria falar do negativo para mais ninguém depois daquele
domingo, eu tendo desejado inúmeras vezes ter visto o contrário no bastão.
Eu sorriria com um positivo, e após a discussão da manhã, tinha certeza de
que o resultado teria nos proporcionado muito mais paz. Deveria ter reagido
diferente, por mais que ainda não conseguisse entender o que o havia
magoado tanto a ponto de me evitar. O homem repetia quase que
diariamente o quanto sua vida era perigosa, ele deveria ficar feliz por não
ter uma criança no meio dela.
Eu deveria ficar feliz.
— E você respondeu obrigada?
Será que minha resposta o fez entender que eu o via como um mau
pai? O jeito que Nickolay se comportava com meus sobrinhos gritava o
contrário de ruim, e eu sabia disso. O filho da mãe era um assassino, e ainda
assim, eu enxergava tudo menos vermelho nele, por mais que houvesse tinta
daquela cor em seu peito.
Talvez as feridas dele quanto ao filho doessem como as minhas
ardiam. Talvez Nickolay estivesse me afirmando que elas nunca fechavam.
— Eu disse que falei umas merdas, não que fodi com tudo. —
Esperava estar certa.
— Precisando de mais umas aulas de italiano? — Só esse menino para
me fazer rir depois dos dias de inverno.
— É sempre bom. — Eu poderia tirar proveito de mais algumas
palavras na língua que despertava o interesse do meu noivo. Assim como
poderia me encher com os conselhos sempre bons do meu amigo. — Como
você soube que amava o Leo? — A pergunta me rendeu olhos curiosos. —
Um dia você acordou e simplesmente sabia que amava?
— Vai soar muito clichê se eu responder que foi isso mesmo?
Soltei um suspiro frustrado: não podia ser assim fácil. Não era assim
fácil, o amor era muito mais complexo do que o cenário que meu amigo me
dava. Se fosse simples, ia conseguir falar o que meu coração dizia já sentir
por ele todas as manhãs. Ia ter conseguido dar a resposta que ele tanto me
fez ver querer na última vez que me deixou parar em cima dele.
O italiano só me afastava agora, e eu precisava repetir várias vezes por
dia que o que isso fazia eu sentir no peito não era amor, mas medo dele
decidir ir.
— Te odeio às vezes — reclamei, terminando com a Coca-Cola.
— Alana, eu não sei como aceitou o pedido sem saber se ama o
italiano — Carlos usou meu nome para me fazer entender que falava sério.
— Mas ele deve realmente te amar pra te pedir em casamento sem você ter
certeza.
Só que Carlos não sabia que nós não tínhamos escolha, que eu não
tinha escolha a não ser responder que sim.
Nickolay também não precisava ter me pedido do jeito que fez, a
memória do jantar caseiro deixando um sorriso melancólico sair no meio da
sala de espera. Ele não precisava ser agradável com minha família,
tampouco me deixar mal-acostumada realizando os meus desejos. O
italiano era letal e eu sabia — eu vi — mas comigo, ele se transformava
apenas nas partes boas do perigo. A caveira era suave quando passava pela
minha pele.
Eu gostava da suavidade que ganhava do italiano, e sentia falta dela
desde o maldito domingo. Sentia falta do jeito que tudo antes era natural,
dos sorrisos verdadeiros e toques carinhosos. Estava tentando tanto
controlar meu temperamento, por mais difícil que fosse não explodir com
ele me afastando. Por mais que todo o silêncio de agora fosse parecido
demais com o que já tive.
Nunca deveria ter desejado o fim da nossa normalidade. Filho da mãe,
precisava ter meu coração desse jeito? Tinha prometido que não o daria
para mais ninguém, afirmando dia após dia que acordar nos braços dele era
apenas uma questão de segurança. Já tinha muito tempo que havia passado
disso, ele sendo meu porto seguro e meu melhor motivo para voltar para
casa.
Como Nico não via isso?
Levantei quando chamaram meu nome, a doutora Paula me recebendo
com um aperto de mão antes de eu ir para o sofá.
— Já faz um tempo, Alana.
Não, não era mais apenas pela segurança, e eu estava outra vez num
consultório para admitir algo que era difícil fazer sozinha.
— Foram só três semanas. — E peguei um biscotti do pote que sempre
estava lotado dos biscoitos italianos.
— Foram vinte e três dias — Paula observou, arrumando os óculos
redondos. — Aconteceu alguma coisa?
— Pra eu parar de vir ou pra eu voltar?
Aquelas últimas semanas tinham sido, no mínimo, intensas. Eu
também mal poderia mencioná-las ali, a terapia mais uma vez sendo boa e
ruim.
— Para voltar.
Agradeci em pensamento: uma pergunta fácil. Não andava tendo
muitas.
— Eu gosto de Nickolay — comecei, mexendo nervosa a perna
esquerda. — Eu consegui dizer que confio nele — continuei, mordendo o
biscoito de amêndoas. — E eu estou noiva dele — finalizei, como se a
última informação fosse a mais trivial.
Nem Paula conseguiu disfarçar a surpresa, e me diverti em ver seus
segundos de incredulidade perante o que ouvia.
A forma como ela se recompunha rápido me lembrava demais Nico.
— Mais alguma coisa?
Será que ela conseguiria me dar qualquer luz no que eu pensei em
guardar só para mim?
— Fiz um teste de gravidez. — Escondi as mãos nos bolsos, tentando
evitar mostrar o tremor que sempre vinha quando falava de assuntos fora da
minha zona de conforto. — E eu falei umas coisas quando vi o negativo. Eu
acho que ele queria muito o outro resultado, e eu sou muito ruim pra me
expressar quando fico nervosa.
As palmas geladas suavam contra o casaco de moletom, e me senti
ridícula por tentar esconder aquilo: minhas pernas inquietas denunciavam
todo o conforto que tinha em falar sobre o assunto. Lembrar dos olhos
ansiosos me fazia recordar de uma noite passada meses atrás, muito antes
da minha calma. Eu trancada no banheiro, sozinha. Tudo que não queria nas
minhas mãos.
— Deu pra ver que ele não ficou tão feliz quando ouviu. — Por que
nunca tinha felicidade em nenhum resultado? — E depois do que eu falei,
ele não deixou eu me explicar. Nico nem mesmo quer tocar no assunto.
— E isso anda incomodando você, certo?
— Bem, eu escutei por semanas que precisávamos nos comunicar
melhor, e eu tô tentando. — Mas não andava sendo bilateral, e novamente,
pensei se tinha conseguido foder com um casamento que estava fadado a ter
um sim no final. — Ele não anda muito aberto a falar sobre nada. Não sei
bem o que fazer pra consertar nossa situação, e isso me incomoda muito,
sim.
Nickolay tendo a certeza de que eu não o queria como pai de um filho
meu me incomodava, assim como me angustiava ele não estar aberto para
eu falar o contrário. De todos os homens que tive na vida, o italiano era o
único que confiaria para ser o pai de todos que eu pudesse querer ter.
— Sabe, eu sempre quis ser mãe. — Era mais difícil do que imaginava
verbalizar aquilo. — Sei que não tenho estrutura pra ter um filho agora, eu
não sou idiota, Paula. — Tentei ignorar a voz falhando, as lágrimas que
estavam já na superfície.
Ia continuar quando a terapeuta abriu a boca.
— O que você disse para ele achar o contrário? — Eu amava as
perguntas que sempre cortavam o que estava prestes a falar.
Respirei fundo, ainda lembrando das palavras exatas que saíram de
mim. Isso é bom, esse resultado é bom, e eu tentava me enganar, porque ao
vê-lo tão feliz com a possibilidade, por um momento, também quis ver
positivo.
Um positivo tão difícil de vir, então me consolei dizendo que um filho
era a última coisa que eu precisava trazer para a vida que levo. Eu talvez
nunca trouxesse um filho para minha vida, independentemente de como ela
estivesse.
Mas eu falei em voz alta. E o jeito que Nickolay mudou após ouvir
meus lamentos era perceptível demais, ele não querendo ouvir o quanto eu
não estava pronta para falar do assunto que fez minhas palavras saírem sem
filtros. E ali estava eu, como sempre, fodendo com tudo que tinha de bom.
Agora, até estava disposta a conversar com ele sobre aquela parte
dolorosa da minha vida. Eu abriria mais a ferida e explicaria tudo que o
italiano precisasse ouvir, se isso o trouxesse de volta para mim.
Preferi falar sobre minha mãe biológica durante o resto da sessão.

Eram cinco da tarde quando saí da terapia, e o vício me obrigava a


parar na Starbucks mais próxima e pegar o maior café disponível. No
celular, uma mensagem de Nickolay me informava o endereço e reforçava a
hora, eu enviando segundos depois que estaria antes das sete na cantina do
bairro do Bexiga.
Não tive mais resposta, mas decidi não deixar a distância que ele
estava mantendo me afetar. Eu havia feito o mesmo quando machucada, e
eu poderia consertar a merda que tinha deixado escapar naquele domingo.
A merda que tinha falado hoje de manhã.
Eu só precisava falar, e obrigá-lo a me ouvir.
Esperava meu café encostada na parede, me distraindo ao rever o
vídeo enviado antes daquele domingo. Desgraça de italiano, tinha que ser
tão lindo?
Só ali que notei a nova tatuagem. Tão acostumada com o corpo
coberto demais por tinta, era difícil reparar em uma nova se não prestasse
muita atenção. O distanciamento dele, como eu fiz nas semanas posteriores
ao vê-lo matar um homem, me fazia atenta, e o que meus olhos achavam
contornando a santa em seu peito me tirava o ar.
Bem nas costelas, no lugar onde Carlos afirmava ter chorado de dor
para se pintar, estava meu nome na letra que eu sabia ser dele. E por mais
piegas que aquilo fosse, e por mais que tatuar o nome de alguém que você
mal conhece parecesse impulsivo, eu havia escutado sobre as tatuagens de
Nickolay. Cada uma era muito bem pensada, e depois de me pedir em
casamento, ele passou uma tarde me contando o significado dos desenhos
que exibia no corpo.
Desejei saber se, depois da manhã que gostaria de ter tido filtros, havia
algum arrependimento em carregar Alana do seu lado esquerdo. Mais do
que queria aquela informação, eu queria ouvir sua voz, meus dedos achando
o número que estava na primeira posição, o sorriso de volta nos meus
lábios.
Precisei me contentar com a voz da caixa postal, desligando antes de
ouvir o bipe. O que eu precisava falar não poderia ser um entre os tantos
recados que ele recebia, e pensei que, se me apressasse, talvez conseguiria
pegar Nickolay ainda sozinho.
A tatuagem nova não foi a única coisa que tirou meu ar naquela tarde.
Sempre que eu sentia o cheiro daquele perfume, as piores memórias
vinham para a superfície. Era um cheiro de patchouli e noz moscada que,
quando combinados com bala de canela, fazia meu estômago embrulhar.
Nico fazia meu coração bater rápido. Thobias fazia meu coração
explodir em pedaços. E a pessoa que esbarrou em mim, alto como meu
italiano, mas completamente diferente da minha paz, me deixava tão
paralisada quanto a porta aberta do meu apartamento.
Ele não olhou para mim, eu só reconhecendo os cabelos loiros e as
costas largas. O homem escondia o rosto com a aba do boné, e eu repetia
outra e outra vez que era meu cérebro o vendo nos menores detalhes. Não
era ele, e a mentira que me contava sem parar me dava o mínimo de calma
para continuar de pé.
Quem me tirou toda a paz foi o barista que o chamou pelo nome, e eu
ia desmaiar.
— Thobias!
Eu ia desmaiar. Eu ia desmaiar, as vozes ao meu redor se tornando
abafadas, minhas mãos congeladas e minha testa pingando.
— Lana! — Mal ouvi chamarem o meu logo após o nome que me
causava ânsia, e só quando abri a boca que notei a garganta seca demais
para responder. — Você é Lana?
Eu não conseguia nem mexer a cabeça.
Será que pensariam que estava drogada? Porque eu parecia estar.
Como se tivesse fumado demais, como se estivesse na pior viagem da
minha vida. O ar que eu puxei queimava, e notei ter prendido a respiração
até quase cair.
— Moça, você precisa de ajuda? — Sim, e por que Nickolay não me
atendia?
— Tá tudo bem — forcei a voz e um sorriso, fazendo que não com a
cabeça.
Saí da Starbucks sem pegar o café.
Caixa postal, e eu ficaria calma. Precisava chegar até o carro. Onde
estava meu carro? Se a cafeteria ficava na esquina do estacionamento, eu só
precisava virar a rua. Eu conseguia virar a rua. Eu conseguia pagar o ticket.
Conseguia dirigir sem bater.
Eu conseguia dirigir sem bater.
Eu conseguia.
Mas já eram quase sete horas, e tinha alguém batendo na merda da
minha porta. E eu acelerei, e repetia que era porque estava atrasada.
Porque não tinha ninguém batendo na minha porta, e eu não vi a
caçamba. Nem mesmo sabia o motivo de ter virado numa rua tão escura, e a
minha cabeça latejava. O barulho da buzina só parou quando saí da direção,
tentando recuperar o foco acendendo a luz interna e abaixando o espelho.
Tinha vermelho escorrendo pelo meu rosto, o líquido se juntando com
o molhado das lágrimas. A última coisa que pensei antes de tudo ficar
escuro foi que o sangue que escorria era igual ao que manchava o tapete na
noite em que Thobias abriu minha testa.

A primeira vez que vi Thobias foi numa festa a fantasia da Medicina


da USP. Eu estava vestida de Arlequina e ele de Coringa, e parecia adorável
o garoto grudar em mim a festa inteira, afirmando que éramos o par
perfeito. Não tinha maldade em seus olhos azuis, assim como a boca me
mostrava apenas delicadeza, as mãos, somente carinhos.
Na época, via nossas fantasias como destino. Como poderia saber que
ele vestido de vilão era o aviso que ignorei por anos? Como imaginaria que
ele me levaria para tão próximo da loucura da personagem que vestia?
Hoje, me sentia tão disfuncional quanto a mulher que representei no nosso
primeiro dia.
O menino vinha de uma família muito mais rica que a minha. O pai era
dono de terras, todos de seu círculo social pertencendo a alta elite de São
Paulo. Mas Thobias se fazia enxergar como tão simples. A simplicidade
fingida em um garoto que parecia tão lindo por dentro quanto era por fora
deixava meninas demais apaixonadas, e eu ser a escolhida parecia o começo
de um conto de fadas, e não o terror que se apossaria das minhas noites.
A necessidade que o homem de vinte e quatro anos tinha de mim não
fazia nenhum alarme soar na cabeça de uma garota de dezessete. Recém-
formada no colégio e ainda pensando no que fazer de graduação, eu era
feliz sendo dele, Thobias sendo meu primeiro tudo. Meu primeiro beijo,
meu primeiro namorado, o garoto que enchia minha vida de primeiras
vezes.
No começo, elas eram boas. No começo, ele era apenas ciumento. Não
havia nenhuma marca para ser coberta, e os dias de sorrisos superavam os
que meus olhos passavam inchados. E então, tudo foi ficando nebuloso.
Nunca havia tido um relacionamento, e por tanto tempo, achei que o
que passava era o normal de qualquer namoro. Era normal ele não gostar
das minhas amizades masculinas, porque todos os homens só queriam me
comer. Saia curta era coisa de puta, e eu perdi as contas das roupas que ele
me fez jogar fora. Não tinha problema algum com as checagens diárias que
fazia no meu celular, mesmo comigo não podendo chegar perto das
mensagens que apitavam sempre no dele.
O relacionamento dos meus pais não era assim, e a única vez que
mencionei aquilo, Thobias respondeu que o que tínhamos era mais forte do
que o mundano, e desapareceu por uma semana. O sumiço dele era uma dor
física que me dissolvia por dentro, e hoje eu preferia ter escolhido sofrer
por meses, e não voltar correndo assim que recebi sua mensagem.
Djamila dizia que não era certo eu ser tão insegura, mas Djamila nunca
tinha namorado para saber. Eu não deveria me importar com as outras
garotas que davam em cima dele, mas ela me afirmava brava que Thobias
não deveria incentivar. Usar um jeans número quarenta tendo o meu
tamanho não era estar acima do peso, meus seios não eram pequenos
demais, meus dentes não eram tortos.
Os sorrisos diminuíram depois do último detalhe, todas as minhas
fotos mais sérias do que eram antes dele.
Talvez lá no fundo, eu soubesse que havia algo errado. Mas se fizesse
só mais aquela pequena mudança, era só perder mais um quilo, só mais um
mês de aparelho, seriam só 200 mililitros de silicone, talvez ele finalmente
parasse de encontrar defeitos. Ou os dias que passava me ignorando
deixariam de existir. Era tão difícil passar dias com Thobias em silêncio. A
dor que sentia me fazia parar de funcionar.
Quem nunca passou por isso, não consegue entender direito. Era tão
difícil explicar, era tão difícil fazer um amigo compreender que terminar
não era fácil de fazer como era de falar. Porque na frente de todos os outros,
Thobias era tão bom. Nos dias em que não brigávamos, a vida era tão boa.
O sentimento que tomava conta de mim nos dias normais era viciante.
A abstinência do pouco de felicidade que ele me dava era desesperadora.
Pior que droga. Nos dias ruins, ele apertava meu braço e me chamava de
piranha, e então as palavras que vinham depois pareciam lavar todo o ruim
embora.
Ele iria mudar se eu mudasse, e o que eu dizia ser amor e não
dependência me fazia ter vontade de mudar só mais um pouquinho. Ele
sempre pedia desculpas, por mais que o pedido viesse junto de algo que me
causasse culpa por ele estar se desculpando.
Thobias tratou toda minha família bem demais, nas menos de cinco
vezes que se deu o trabalho de aparecer nos almoços de domingo em cinco
anos de relacionamento. Ainda assim, minha mãe dizia abertamente que
deveríamos terminar. E por saber que aquilo só me faria querer insistir
mais, um dia ela parou de falar.
Conseguia ver arrependimento na mulher até hoje por ter desistido de
insistir. Lembrava dos olhos marejados que se despediram de mim, eu
saindo do meu quarto com duas malas na mão para morar na casa que
Thobias ganhou no dia da formatura.
Mamãe sabia que algo tinha acontecido naquela casa. Sabia que o
ocorrido havia me deixado dormente. Ela não tinha coragem de perguntar o
que, e eu agradecia todos os dias por sua covardia.
Eu estava tão dormente até Nickolay. Foram os lábios grossos que me
trouxeram de volta a vida, a mão grande me puxando para a superfície. Ele
e suas tatuagens viraram minha aquarela, o mundo com o italiano sendo
muito mais que apenas o vermelho que eu via. Ele me chamava de dolcezza,
e a última coisa que pensava era em como quis acabar com tudo antes de tê-
lo. Seus olhos me notando como boa me davam esperança.
Precisava chegar até Nickolay.
Abri os olhos e vi o couro preto, o som da cidade vindo abafado do
lado de fora. Eu tinha batido, mas meu coração desacelerou ao ver que
havia apenas meu carro ali, mesmo com o gosto metálico me trazendo
enjoo.
A rua estava vazia, o que nunca era um bom sinal em São Paulo. Eram
sete e meia, e eu rezava para o carro ligar. Girei a ignição, agradecendo
quando o veículo respondeu, por mais que o para-brisas estivesse trincado e
tivesse uma fumaça estranha saindo do capô. Eu deveria estar bem mais
machucada pelo estado do carro, e pensei que alguém lá em cima deveria
estar olhando por mim, o espelho mostrando apenas o corte na testa que
parecia me perseguir.
Dava para chegar no restaurante. Mesmo com trânsito, o aplicativo
falava que eu estava a apenas dez minutos do local.
Só precisava chegar até Nickolay, e tirei do porta-luvas os lenços
umedecidos que guardava ali para retirar a maquiagem. Pressionei um
contra o sangue que escorria ao virar a esquina, o rasgo menor do que o da
noite de Gabriela. Nem doía, não deveria estar tão grande. Nem precisaria
costurar, sendo até preferível eu ter outra marca cobrindo a cicatriz dos
pontos dados por ele.
Merda, estava com a mesma roupa de hoje de manhã. Deveria ir para
casa me trocar? Era um jantar formal?
Nico tinha falado para chegar antes das sete.
Eram sete e quarenta.
Como o tempo passava tão rápido?
Tinha sangue no celular.
Tinha tanto sangue no piso da minha antiga casa.
Eu nem avisei que atrasaria.
Você chegou ao seu destino.
Passei muito próxima de um infarto ao escutar o aviso da voz robótica,
o caminho se fechando no mapa, a viagem aparecendo como finalizada na
tela.
Vestia jeans e um casaco verde-escuro, e tinha certeza de que a gota
que via perto da manga poderia se passar por molho de tomate. Prendi os
cabelos num rabo de cavalo e desisti assim que me olhei no espelho,
decidindo ser preferível eles soltos e oleosos do que presos e expondo
minha burrice. Deveria cortar uma franja para esconder como era estúpida.
Estava sem qualquer maquiagem, mas melhor limpa do que manchada de
vermelho.
E eu ri: eles não se importavam com essa cor.
Talvez minha testa estivesse inchando, e tinha uma marca no volante.
Minha cabeça pulsava. Queria vomitar.
Sete e quarenta e cinco, e alguém buzinava. Com certeza era para eu
sair, e eu saí do carro, checando duas vezes o nome do restaurante antes de
ir para a porta.
Sorri para a atendente, por mais que recebesse de volta lábios retos.
Ela parecia estar prestes a me parar quando pedi pela mesa de DeLucca,
checando mais uma vez a última mensagem de Nico para ter certeza de que
a reserva havia sido feita no nome dele. Ainda tinha sangue no celular, e eu
achei melhor escondê-lo de volta na bolsa.
Bastou mencionar o sobrenome para a fisionomia mudar, a mulher
parando o segurança que estava atrás dela ao invés de mim, e me perguntei
se minha aparência estava assim ruim para ganhar aquele tratamento
desconfiado. O reflexo na janela não mostrava nada de errado, o sangue não
mais escorrendo pela minha testa. Parecia tão bem quanto antes de bater.
Uma voz masculina gritava do estacionamento, mas eu era levada para
dentro antes que suas palavras pudessem fazer sentido. Nico já havia me
apresentado aquele lugar, e o ravióli que serviam ali era realmente de outro
mundo, desde que pedido com o molho certo. Senti um calor gostoso com a
memória, eu andando entre os clientes até chegar na frente de uma porta
fechada.
A mesa redonda dentro da sala tinha apenas três lugares ocupados, os
homens virando-se para mim assim que passei pelo batente.
E ali estava todo meu oxigênio, depois de horas sem respirar. Olhar
para meu italiano fazia meu coração voltar a bater normalmente, por mais
que sua expressão estivesse longe de uma feliz. Nickolay ignorou o
pequeno sorriso que tentei dar e se levantou irritado, puxando a cadeira que
eu deveria ter ocupado quase uma hora atrás.
Não me importei com a falta de afeto, ou com os olhos escuros nunca
encontrando os meus. Tinha chegado até ele. Eu cheguei.
Debaixo da toalha, cerrei os punhos para forçar minhas mãos a não
voltarem a tremer, as unhas cravadas na palma tentando manter meus olhos
secos.
— Acho que precisamos conversar sobre pontualidade. — Não era a
voz de Nickolay. — Gostaria de nos contar o motivo do atraso, ragazza?
Olhei para baixo, sentindo o cheiro de massa fresca e molho branco
que tinha na sala. Molho branco, mas tinha molho de tomate na minha
manga.
— Ela sente muito. — Não, não era molho de tomate, eu sabia, e a voz
que falava comigo era mais áspera do que estava acostumada a receber. —
Eu te pedi uma coisa, Alana — Nickolay repreendeu num sussurro.
Era tão bom ouvir sua voz, mas o que ele havia pedido mesmo?
Queria responder que sentia muito, mas talvez fosse melhor comer. Eu
estava ao lado dele, eu poderia comer. Abri o guardanapo branco no meu
colo, não tendo mais coragem de olhar para cima, e eu chacoalhava minha
perna esquerda. Talvez manter a boca fechada deixasse as coisas melhores
para mais tarde. Queria conversar com ele mais tarde, eu lembrava que
queria.
O que eu tinha para falar mesmo?
Me dê as chaves do carro.
Não era sobre o carro, por mais que fosse precisar contar sobre a
batida. Segurei uma risada: que estúpida, bater numa caçamba de lixo por
falta de atenção. Tão idiota que nem cinto de segurança usava. Às vezes,
me achava merecedora de todos os xingamentos que ouvi durante anos.
Preciso das chaves, Alana.
A voz abafada dele me pedindo aquilo não fazia o menor sentido, meu
cérebro insistindo em voltar para o que eu precisava contar no fim daquela
noite. O que eu tinha para falar para Nickolay?
Não era sobre chaves. Não era sobre chaves, e era tão irritante meu
corpo querer tanto chorar! Era tão difícil não chorar na frente deles! Nossa
situação só pioraria mais se desabasse agora. Eu nunca podia desabar sem
que viesse uma briga.
Coloquei as mãos sobre a mesa, sentindo uma pontada no estômago.
Estava com fome, com certeza era o motivo de estar tão aérea. Alcancei os
talheres, decidindo que sim, o melhor a ser feito era comer alguma coisa.
Eu conseguia comer, novamente afirmei em pensamento.
O carro está largado na saída do estacionamento, Alana.
No meu colo, tinha um ponto vermelho sobre o guardanapo branco. O
tecido absorvia o líquido, a cor tingindo-o e criando veias pelos fios. A
próxima gota caiu de um jeito que formava um coração, e eu sentia o meu
outra vez acelerar ao escutá-lo tão bravo.
— Alana!
Foi a mão segurando meu braço que me fez olhar para cima, meu
corpo tencionando antes de relaxar. Era Nickolay. Era Nickolay, e ele nunca
me machucaria como...
Franzi a testa, eu parecendo sentir o corte pela primeira vez. Tinha
uma dor ardida na palma da mão esquerda, mas os olhos escuros nos meus
me ajudavam a ignorar ambas as sensações. Queria tanto abraçá-lo, e não
conseguia mover um músculo.
Abri a boca para falar que as chaves estavam na bolsa — por que as
chaves do carro eram tão importantes? — mas nenhuma palavra saía.
Escutei Lorenzo comentar algo sobre eu não estar bem, e acreditei
naquilo. Talvez estivesse doente. Eu me sentia tão estranha. Os olhos
escuros que me observavam, antes tão distantes, mostravam uma
preocupação que eu ainda não entendia precisar. Então eles foram dos meus
para cima, e senti algo líquido escorrendo pelo meu rosto.
Estava mais aérea do que deveria. Por que raciocinar estava sendo tão
difícil?
— Alana, o que houve? — Nickolay parecia tão preocupado. Ele
deveria estar bravo, eu estava tão atrasada!
Tão atrasada, eu nunca podia chegar atrasada com...
Uma voz desconhecida cobrava as chaves mais uma vez.
— Fodam-se as chaves! — Nico respondeu tão bravo quanto no dia da
piscina, o tom ameaçador desencadeando minha resposta.
— Estão na minha bolsa — contar foi automático, eu notando Matteo
saindo pela porta com elas, meu italiano focado demais na minha testa.
Recuei quando os dedos tocaram um ponto dolorido, Nico afastando
de mim uma mecha de cabelos antes de puxar a respiração. O que eu tinha
feito de errado agora para ele me olhar assim?
— Está tudo bem, dolcezza. — Por que a voz não passava de um
sussurro? — Está tudo bem. — Senti uma pressão na mão esquerda, e meus
olhos foram dos dele para a mesa. — Abra.
E eu abri, a dor enfim fazendo sentido ao ver a faca de serra cravada
na minha palma. Tinha tanto sangue, e Nickolay puxava meu queixo em
direção a ele.
— Olhos em mim, ok? — Ele continuou segurando meu rosto, mas eu
não consegui segurar um choro ao sentir a mão queimando, a faca sendo
substituída por um líquido que causava um incêndio na pele aberta. —
Ligue para Santi, ela vai precisar de pontos.
A última vez que precisei de pontos foi por causa dele. Não eram boas
recordações, tão diferentes das que tinha com minha calma personificada.
Até nossas brigas haviam sido melhores do que qualquer pensamento que
incluísse o homem com quem um dia considerei me casar. Causava a pior
taquicardia lembrar dos olhos azuis, e me prendi aos de Nico para manter
um pouco de paz. Poderia passar horas perdida em seus escuros. Amava o
jeito que minha calma me olhava.
Eu nunca precisava falar que tinha algo errado para Nickolay perceber
haver. A aflição que o italiano me deixava ver contava que ele já sabia.
— Dolcezza, quem fez isso?
E eu finalmente lembrei da batida. Da cafeteira. Das costas largas e do
boné.
Mas era uma mentira afirmar o que meu cérebro me dizia.
— Eu. — Afinal, não era meu ex-noivo quem bateu meu carro.
Nenhum dos três pareceu acreditar. Quem chamavam de Don olhava
para a parede creme com uma expressão neutra, Lorenzo sacudia a cabeça
enquanto esperava atenderem sua ligação, e Nickolay me deixava ver o
quanto discordava de minha resposta.
Os olhos escuros encaravam os meus com dó, e ver tal emoção neles
me corroeu um pouco mais por dentro.
— Quem foi, Alana?
— Eu!
— Por quê? — Porque eu estava desatenta!
Mas não consegui responder aquilo. Abri a boca e outra vez nada saía,
o motivo da minha desatenção novamente consumindo minha coerência.
Thobias estava no Brasil. Eu tinha certeza. Ele esteve tão perto. Ele
esbarrou no meu braço, e eu queria esfregar a minha pele até a arrancar.
Puxei o ar, e só percebi que fazia isso outra e outra vez quando senti
uma mão no meu peito, um copo sendo colocado nos meus lábios.
— Água com açúcar. — Nickolay explicou, me forçando a beber um
gole. Dava vontade de rir, um mafioso italiano me dando algo que minha
mãe insistia ser placebo! Ele sabia que o açúcar apenas estimulava mais o
cérebro, não sabia? Não tinha nada de calma ali, nada que fosse fazer parar
de doer.
Só que achar sua expressão tão aflita me fez beber o copo inteiro, ela
apenas suavizando quando minha respiração fez o mesmo. Não sabia se o
que me acalmava era o não-remédio caseiro ou seu toque, mas após alguns
segundos, parecia ser possível falar.
— Nico — Minha voz estava rouca, baixa, tão diferente da que ele
deveria estar acostumado a ouvir. E era tão difícil pronunciar qualquer coisa
que me obrigasse a lembrar dele. — Ele tava atras de mim. — As palavras
cortavam como a faca que abriu minha mão. — Eu tenho certeza.
Só tive coragem suficiente para falar ao concluir que ficar quieta
poderia tornar todo o prometido pelo meu ex-noivo verdade. Eu ainda podia
ouvir as ameaças. Sentir o quanto eu precisei aturar as mãos dele em mim.
Ainda me recordava das vezes que quis morrer, ter ido no lugar de Gabriela.
Olhava para Nickolay agora, e sabia que não queria mais que nada disso se
cumprisse.
— Ele esbarrou em mim, ele tem esse… — Eu sentia o amargo na
boca só de lembrar. — Esse cheiro.
E minhas palavras chamaram a atenção dos outros dois homens,
Nickolay precisando mais uma vez puxar meu queixo para ele.
— Quem?
Fazia tanto tempo que não falava o nome em voz alta.
Eu conseguia falar com Nickolay ao meu lado. Sentia que conseguiria
fazer tudo tendo a companhia do italiano. Ele não me desencorajava, nem
quando estava sendo uma pirralha mimada. Ele me protegia, eu incapaz
disso.
Era tão bom sentir o que sentia quando pensava em Nico. Era tão bom
poder falar.
— Thobias.

Choque era uma coisa engraçada: cada um reagia de uma forma


diferente. Vincenzo destruía coisas. Eu me destruía. Alana, mais uma vez,
mostrava o quão parecidos éramos.
A mão dela era pequena demais para um corte tão grande, eu
amaldiçoando minha lerdeza em ver os dentes da faca afundando em sua
pele. Toda a mágoa que guardava do último domingo desaparecia, o mesmo
acontecendo com qualquer sorriso, e me sentia um idiota por demorar tanto
para notar o estado de quem chamava de minha ao passar pela porta.
Agora, incomodava além do confortável saber que o atraso não era
birra. Que o silêncio não era pirraça, que o descaso ao entrar era ela
tentando não desmoronar, e não ela querendo me levar para o chão. Alana
tão encolhida contra mim fazia a culpa tomar conta.
Eu parecia não aprender. Era a segunda vez na vida que cometia o
mesmo erro.
Bastava tê-la encontrado em casa, ao invés de mandá-la ir sozinha.
Teria sido tão simples realizar seu único pedido da manhã. Com Matteo
dirigindo mais devagar do que gostaria, me envergonhava do meu orgulho,
este sendo capaz de ferir fisicamente quem amava, mais uma vez.
— Dolcezza, fique acordada. — A cutuquei no ombro quando vi os
olhos fecharem, me perguntando se não teria sido melhor levá-la até um
hospital. — Não pode dormir.
No banco de trás, aninhada no meu colo, Alana parecia mais confusa
do que gostaria de ver. Por mais que tivesse uma elevação onde a testa
estava aberta — tão perto dos pontos que Astrid me fizera notar — ela não
parecia mais desorientada pela batida. Ainda assim, eu não gostava de
arriscar com ela, e se não estivesse tão perto da mansão onde Santi já nos
aguardava, teria mudado nosso caminho.
Não tinha tanto sangue, nem no volante do carro que era guinchado,
nem saindo dela, para a colisão ter sido tão ruim. No entanto, o estado do
veículo contava uma história diferente, o capô amassado, o para-brisa bem
próximo de quebrar.
— Só um pouquinho, Nico. Eu tô exausta.
— Bateu a cabeça, Alana — explicava pela terceira vez, a mão direita
segurando mais forte minha camisa enquanto eu mantinha pressão no corte
da esquerda. — Estamos quase chegando, ok?
Respirei fundo, framboesa com sangue sendo o pior dos cheiros. Não,
eu tinha certeza de que não era culpa da batida seus olhos perdidos, e
forçava minhas mãos a não tremerem como ela inteira tremia. Encontraria a
pior forma possível de se matar uma pessoa e a colocaria em prática com o
moleque que tomou a infeliz decisão de voltar para o Brasil.
— Ok. — Nunca ouvi sua voz tão fraca.
Mesmo não sabendo de toda a história, já tinha uma certeza: agora que
estava mais perto dela do que eu gostaria, acabaria com a vida de Thobias,
assim que o achasse.

— É sempre bom uma tomografia. — Foi o que escutei de Santi


quando finalizou os pontos da testa.
Minha culpa só aumentava, eu afirmando mentalmente que Alana
nunca mais andaria sozinha. Não enquanto aquele moleque estivesse vivo.
Não enquanto houvesse qualquer coisa que pudesse feri-la.
Ela nem mesmo era para estar sozinha durante a tarde, o segurança que
a seguia como sombra tendo desaparecido justo no dia em que minha
mulher precisava de um gritando erro. Tinha alguém me traindo, e não era
bom desconfiar de quem eu já suspeitava.
— Não foi tão forte. — A voz dela já passava perto da sua normal,
mas eu sabia o quão longe de calma quem eu amava estava por dentro.
De pé ao seu lado, me sentia infantil pela mágoa que carreguei desde
meu aniversário. Deixar o orgulho falar mais alto que a importância de
Alana era um dos responsáveis pelos mais de dez pontos dados em sua pele.
Era um erro que poderia ter custado mais do que apenas cortes, e que eu
não voltaria a repetir.
— Você bateu forte o suficiente para abrir a pele, ragazza. — A vi
desviar os olhos dos claros, o médico procurando os meus para algum
suporte. — A testa está inchada.
Ela notou na mesma hora que queriam lhe tirar o poder de decidir.
Cazzo, Alana não iria mais considerar aquilo, e eu precisaria levá-la
amarrada se fosse mesmo necessário um hospital.
— Eu já estive pior e não morri — ela respondeu emburrada, cruzando
os braços, e sabia que o pior a se fazer seria insistir, justo naquele dia. —
Acho que consigo sobreviver outra vez.
— Santi, deixa — pedi quando o vi abrir a boca. — Eu te acompanho
até a porta.
Ela tensionou no mesmo segundo, Alana agarrando a mão que mantive
todo o tempo em seu ombro.
— É menos de um minuto, dolcezza. — A assegurei, precisando
respirar sem a necessidade de manter qualquer calma por pelo menos
sessenta segundos. — Pode contar, amore mio[76].
Quase não fui quando a ouvi contando baixo. Encostei a porta do
escritório, esfregando os olhos antes de me virar para o médico da
Famiglia. Ainda tinha sangue dela nas mãos, ainda conseguia senti-la
tremendo, e nunca quis tanto sair da máfia que Nicolas me obrigara a entrar.
— Me diga o quanto preciso fazê-la ir para um hospital — soltei ao
abrir a porta da frente. — E para qual a levo, e com quem falo, se precisar.
Os olhos do homem mais velho julgavam de uma forma que
despertava minha vergonha. Deveria ter o mesmo pensamento que eu: o que
uma mulher normal estava fazendo ali?
— Ela parece confusa.
Hoje havia sido o figlio di puttana que teve o azar de tocá-la, e um
incompetente já havia feito um estrago enorme. O que aconteceria quando
fosse alguém do nosso meio?
— Ela está em choque, Santi — afirmei, tendo certeza da razão do
comportamento aéreo.
— Vômitos, desmaios, dor de cabeça e pescoço enrijecido. Fique
atento a isso até amanhã, DeLucca. — O médico advertiu, indo para o lado
de fora. — Te mando o endereço e contato por mensagem.
— Grazie. — Fechei a porta, meus sessenta segundos prestes a acabar.
Não esperava precisar lidar com Matarazzo ao me virar, o homem mais
velho me encarando com um olhar que me lembrava o passado. Sabia o que
o Don pensava, e sabia quais memórias que tinham sido trazidas à tona.
A noite que achamos Giovanna. O estado em que a garota estava. Ela
tendo batido justo na minha porta, não conseguindo suportar as mãos de
ninguém senão as minhas por semanas. Sua filha estava tão quebrada
quanto a mulher que me esperava no outro cômodo, e era desesperador
enxergar tão bem minha falecida amiga nela, por maiores que fossem suas
diferenças.
— Sabe quem é esse Thobias?
Limpei o vermelho coagulado que havia na mão nos cabelos, me
perguntando o quanto deveria dar informações sobre quem Vincenzo ainda
mostrava desgostar por ser minha escolha. Será que aquilo mudara, ao
reconhecer Giovanna na mulher quebrada que chorava no restaurante?
— Eles eram namorados...
— Noivo. — A voz feminina me interrompeu, Alana de pé, encostada
no batente da porta. — Thobias... — E parecia lhe doer fisicamente
pronunciar o nome, Alana reforçando sua força ao repeti-lo. — Thobias era
meu noivo. Nós iríamos nos casar no final desse ano.
A revelação dava um novo sentido a todas as vezes que ouvi dela estar
numa prisão após descobrir que nosso casamento não era uma escolha. Não
a imaginava fora de uma ao lado do moleque que eu já caçava.
— Você mata gente — escutei assim que cheguei ao seu lado, Alana
agarrando as mangas de minha camisa. Ela insistiu quando não teve uma
resposta imediata, a voz trêmula. — Nickolay, você mata, eu vi.
Como impedir Matarazzo de ver que perseguir o maldito que deixou
minha mulher naquele estado era mais importante que achar sua filha?
Porque era o que eu estava fazendo. Era a única coisa que eu faria até
encontrá-lo.
— Alana...
— Você disse que ia me proteger. — Era um sussurro, e as lágrimas
que estavam prestes a cair me deixava próximo de sair agora para caçar o
moleque. Algo dentro de mim me dava a certeza de que o coração de Alana
apenas acalmaria quando o de Thobias parasse de bater. — Você disse que
ia, Nico. Por favor...
— Nós vamos te proteger, figlia. — A frase vinda de Vincenzo
surpreendeu nós dois.
Os olhos medrosos foram dos meus para os do homem que nos
observava, e pude ver ali o mesmo pesar do dia que perdemos sua filha
mais velha. Sabia que ele chamando Alana de figlia era muito mais do que
reconhecê-la como minha mulher. Em quem eu me atrevia a chamar de
minha, Vincenzo via Giovanna, e me deixei acreditar que priorizar a morte
de um abusador de merda estivesse nos planos de ambos.
Talvez fosse ver alguém tão mais poderoso que eu com um olhar quase
paternal, talvez a necessidade de provar — por mais que já estivesse escrito
— que sim, Thobias merecia o destino que ela pedia. Havia algo naquele
momento que a fez, finalmente, falar.
E do mesmo jeito que eu nunca estive preparado para escutar sobre os
detalhes da minha primeira esposa, cortava minha alma ouvir a história que
enchia a sala.
— Ele era bom no começo. — Tinha mais vergonha do que deveria em
sua voz. — Eu fui tão idiota, mas ele fingiu tão bem ser bom. E de repente,
começou a ser sempre ele, e o lado dele, e tudo que eu sentia era
irrelevante, tudo que eu fazia era ruim. Thobias gritava tanto. — Agradecia
ela falar olhando para meu chefe, eu ainda falhando em esconder a dor nos
olhos. — O jeito que ele socava a parede me fazia entender bem que ia doer
se…
Ela parou.
Apenas imaginar aquilo me fazia querer puxá-la para perto, eu
desejando tanto ter aparecido mais cedo em sua vida. Entendia mais do que
gostaria que um relacionamento tóxico poderia destruir uma alma, e ouvir
como a dela tinha sido machucada doía demais.
— Mas ele nunca ia me bater, não pra machucar. Os apertos que ele
dava no meu braço eram só pra chamar minha atenção, e quando ele me
empurrava, eu caía por ser desastrada. Eu levantava, e dizia que tava tudo
bem. Eu nunca reclamei.
Ela dando um sorriso amargo, os olhos me mostrando o quanto
queriam chorar, foi uma das coisas mais tristes que já vi.
— Os dias bons eram como droga. Eu me sentia tão bem, tão normal,
tão feliz. — Naquela noite, Alana não limpou as lágrimas que caíram. —
Mas eles não duravam. Eles nunca duravam, e Djamila viva me falando pra
terminar com aquilo. Que eu não era mais eu, que todas as vezes que ela me
via, eu acabava chorando. E um dia, Thobias descobriu, e disse que eu
precisava escolher. Disse que casaríamos se eu cedesse, se eu afastasse ela
da minha vida. — A risada que veio era amarga demais. — E eu cedi! Eu
disse sim pro pior pedido de casamento da história! Ele nem pediu, ele...
Os olhos voltaram para os meus, e eu sabia que era inútil tentar
esconder o que estava sentindo. Queria matar esse moleque, queria nunca
mais sair do lado de Alana, e queria poder voltar no tempo.
Sabia que só uma opção era possível de realizar.
— Então eu me afastei dela. E logo depois de eu dizer sim, nós fomos
morar juntos. Achava que era o certo a se fazer, estávamos namorando fazia
tanto tempo, eu estava...
Ela hesitou novamente, reconhecer medo em Alana sempre me tirando
todo o conforto.
— Estava certa de que o que eu fazia era o melhor pra mim, pra gente.
Dois meses depois, bateu uma mulher na nossa porta. Era de noite, Thobias
estava fora com os amigos, e Gabriela gritava que iria entrar de qualquer
jeito. — E as palavras de Astrid voltavam como um soco, a mãe afirmando
ter ficado mais de um mês sem ver a filha. — Eu não fazia ideia de quem
ela era, até considerei ligar pra polícia, eu deveria ter chamado a polícia!
E eu a fiz abrir a mão machucada, Alana tão próxima de estourar todos
os pontos ao cravar as unhas na pele. Ela não pareceu perceber, e era visível
o tremor que a mulher nem mais tentava disfarçar.
— Eu descobri que não era a única que tinha um relacionamento com
Thobias. Gabriela contou que eles tinham se relacionado por meses, me
mostrou fotos, mensagens. Falou que um dia, ele simplesmente sumiu. Que
semanas atrás, ela o viu sair por acidente de um restaurante e o seguiu até a
casa onde morávamos. Que demorou dias até ela ter coragem de bater na
porta. Thobias chegou enquanto a gente conversava, e quando viu quem
estava no sofá comigo… — Nós dois notamos o quanto foi difícil para as
próximas palavras serem ditas. — Quando ele viu o tamanho da barriga…
Eu, que nunca me impressionava com nada, precisei de um segundo
para digerir a informação. Alana nunca me contou em palavras, mas eu não
precisava de palavras para lê-la. Eu sabia que o homem que matei naquela
tarde não era seu primeiro corpo, por mais que tivesse afirmado tal coisa
para o Don.
— Ela estava grávida. Sei que deveria ter feito alguma coisa, deveria
ter reagido quando ele jogou Gabriela contra a mesa. — E a coragem de me
olhar foi embora, os olhos indo com vergonha para o lado. — Mas eu senti
tanto medo. Thobias estava tão nervoso. Ele era tão forte, ele perdia a noção
quando chegava bêbado do jeito que chegou! Eu só consegui me mexer
quando o vi com as mãos ao redor do pescoço dela. E eu sabia que era
tarde, já tinha tanto sangue! Eu sabia que era tarde e deveria ter ficado
tremendo no sofá, e quando eu agarrei seu braço… — Saber o que viria não
suavizou em nada o que ouvi. — Quando agarrei ele e gritei pra ele parar,
eu virei a parede.
A tristeza que Alana me deixava ver igualava a minha quando perdi
meu filho.
— Eu acordei na cama. E ao invés de agradecer por estar viva, eu
agradeci por ter dinheiro o suficiente pra não precisar trabalhar. Por poder
me trancar em casa por semanas, por não precisar da faculdade que fazia.
Porque mesmo antes de me olhar no espelho, eu sabia que não tinha como
aparecer na frente de nenhum conhecido por semanas. — Ela secou o rosto
com uma das mangas, eu reparando só agora nos pontos vermelhos secos
que manchavam o tecido. — Eu tinha muito mais pontos do que agora.
Nunca tive coragem de perguntar nada sobre Gabriela, mas lá no fundo, eu
sabia. Eu soube antes de ver o pôster de pessoa desaparecida.
O olhar que troquei com Vincenzo deixava claro qual seria o próximo
passo. Meu ódio refletiu nos olhos do meu chefe ao ouvir as próximas
palavras, eu descobrindo a cada frase que não estava pronto para ouvir
sobre as piores coisas do passado dela.
— Moramos na mesma casa por mais dois meses, e Thobias me tratava
como se nada demais tivesse acontecido. Como se eu ainda fosse... —
Nunca estaria pronto. — Dele.
Era engraçado da pior das formas como, até horas atrás, não imaginava
que minha sede de sangue pudesse ser maior do que a saciada ao eliminar o
assassino de Nicolas. Thobias iria descobrir o significado da morte que
tomava meu braço direito. Eu faria valer o apelido que tinha ao matá-lo.
— Um dia em setembro, ele me mandou juntar minhas coisas porque
iria passar um tempo na Europa. Falou que precisava vender a casa, e que
eu precisava sair. — Era tão difícil continuar calmo. — Eu sabia que não
conseguia mais funcionar como uma pessoa normal. E ninguém podia
saber, eu precisava ficar quieta, então não dava pra nem considerar voltar
pra casa dos meus pais. Eu era...
Alana pareceu buscar alguma força em mim para continuar, minhas
mãos a trazendo para perto. O rosto molhou minha camisa antes de
voltarmos a ouvir a voz abafada.
— Eu era cúmplice de um assassinato, ele me lembrou disso várias
vezes antes de ir embora. Eu era tão culpada quanto ele por ter ficado
parada, por ter deixado ele matar alguém e não ter feito nada. A última
coisa que Thobias disse foi que mataria toda minha família se eu abrisse a
boca. E eu sabia que ele tinha como cumprir a ameaça. Ele escondeu tão
bem o que fez, nem você achou nada sobre isso, eu vi na ficha! Ela tá
limpa! A ficha dele tá limpa!
— Dolcezza...
— Eu não me sinto segura faz tanto tempo. Mesmo tendo você, Nico
— ela me interrompeu, os olhos vermelhos achando os meus. — Quando eu
estou do seu lado, eu me sinto em paz. Mas a paz sempre vai embora
quando você vai...
— Então eu nunca mais vou, Alana. — Não ligava de prometer o
impossível na frente de Matarazzo, por mais que o homem ao meu lado
soubesse que as minhas promessas nunca eram vazias. — Se é o que precisa
para a sua paz, eu nunca mais te deixo. Nunca mais.
Ela soluçou contra meu peito por minutos, minha mão tentando passar
algum conforto afagando seus cabelos. Encontrava fios sujos de sangue que
eu queria lavar, mas a força que tinha nela era o suficiente apenas para
vestir uma de minhas camisetas antes de se deitar para dormir.
Era meia noite e quatro quando Alana fechou os olhos, uma e
cinquenta quando, sem conseguir copiá-la, fui em busca de algo mais forte
que água. No escuro da sala, com um copo na mão e meia garrafa de
whisky na mesa de centro, achei Vincenzo sentado no sofá, dividindo da
minha insônia.
— Já sabe o nome completo desse moleque? — Fiz que sim depois de
encher um copo, o líquido amarelo descendo quente. — Sei que quer matá-
lo...
— Eu não quero. — Era a primeira vez em muito tempo que o
interrompia. — Eu preciso.
Tinha um sorriso mais compreensível do que eu esperava, ainda mais
após todas as minhas últimas insubordinações.
— Ela pode não ser a melhor escolha para ti, mas figlio, é a melhor
para ela. — O mais velho soltou um suspiro, me deixando entender que
tinha tomado uma decisão. — Não vou mais me opor a esse casamento,
Nickolay. O que está fazendo, e o que vai fazer, até compensa as mortes que
carrega.
— O que estou fazendo, Vincenzo?
Ele me deu um sorriso que me dizia entender demais minha atual
situação.
— Está com ela por amor. Já ela, faz o mesmo por proteção — ele
finalmente me jogou na cara, eu me arrependendo de ter feito o mesmo com
Alana em nossa última conversa antes do acidente.
Antes de vê-la tão quebrada, havia considerado o quanto aguentaria
mais um relacionamento unilateral. Depois de ter a mulher que amo
soluçando nos meus braços, soube que aguentaria calado tudo que passei
gritando com Giovanna. Alana não era Giovanna, por mais que, a cada dia,
aparecesse uma nova similaridade entre as duas.
— Não me importa o motivo, desde que ela queira ficar. — E eu a
faria querer, para sempre. Arranjaria um jeito de fazê-la me ver como
alguém bom, por mais que minha bondade pudesse se resumir a proteção
que vinha sempre associada ao vermelho.
O resto do whisky desceu em um gole, meus pés já me levando de
volta para as escadas quando ele voltou a falar.
— Então finalmente entende, Nickolay. — O olhei confuso por um
momento. — Pouco importa o motivo, quando amamos o suficiente para
começarmos uma guerra. — E novamente, eu sabia: entraria em guerra com
o inferno por Alana. — O amor é o sentimento mais perigoso que existe em
nosso meio, figlio.
Engraçado como o homem que deveria ter minha total lealdade
pareceu não se incomodar ao saber que tinha sido colocado em segundo
plano. Ele me olhava como alguém que entendia demais minha situação, e o
nome da mãe da menina que buscávamos sair de seus lábios depois de anos
quieto me falava que havia sinceridade em suas palavras.
— Catarina estava comigo pela mesma coisa: um porto seguro. E eu
não a protegi o suficiente. — A expressão que Vincenzo vestia era
carregada de arrependimento, e me perguntei o que faria em seu lugar. —
Não cometa o mesmo erro que cometi.
O que faria se alguém me tirasse Alana, e eu nem mesmo soubesse a
identidade do responsável?
— Mai.
Subindo as escadas, soube que havia apenas uma resposta. Sem Alana,
eu começaria uma guerra com o mundo, do jeito que Matarazzo começou.

Foi uma noite sem sonhos, e desejei saber se era efeito do analgésico
forte que Nickolay me fez engolir. Dormi com seu calor contra meu corpo,
e quando abri os olhos, minha mão ardia e minha cabeça latejava. A
lembrança do dia que gostaria de esquecer sempre vinha forte em manhãs
como aquela.
Mas não era a dor que fazia meu coração acelerar.
— Nico? — Era a ausência dos braços ao meu redor. Eles sempre
estavam ali, mesmo comigo o afastando, mesmo com o italiano magoado, e
senti o ar me deixar.
Teria a história de ontem sido a gota que traria o fim, a separação que
ele me fez ver ser possível durante a semana toda? Respirei fundo, já
sentindo as lágrimas surgindo quando a maçaneta virou, Nickolay
apressando-se para dentro ao me ver acordada.
— Ainda é cedo, dolcezza. — O italiano falava aquilo demais
ultimamente, mas não me importava com nenhuma palavra quando ele
voltava comigo para baixo dos lençóis.
— Fica. — Ele apenas me abraçou mais forte.
Acordei outra vez com o cheiro de café e Nickolay encostado na
cabeceira, segurando o mesmo livro de noites atrás com uma mão enquanto
seu outro braço me mantinha perto.
— Buon giorno, bella. — Ele abandonou a leitura no edredom e me
puxou para seu peito, os lábios achando minha bochecha. — Está com dor?
Fiz que sim, e um comprimido foi posto na mão livre de pontos.
— Ibuprofeno. — Um copo com água foi para meus lábios assim que
coloquei a pílula na boca, Nickolay me tratando com uma delicadeza
desesperadora.
Engoli o remédio querendo gritar, encostando os pés no chão ao me
sentar na cama.
— Se sente enjoada? — Por que ele queria saber sobre enjoos? —
Tonta, dor no pescoço? — Ah.
— Pra que tanta pergunta? Já não contei que sobrevivi a coisa pior? —
Era injusto responder daquele jeito grosseiro, e me arrependi do meu
temperamento descontrolado, achando os olhos escuros. — Desculpa.
Mas Nickolay não estava bravo, nem surpreso, a expressão suave
como se eu tivesse lhe dado bom dia. Tinha dó ali. Eu sabia, e não consegui
encarar tanta pena, preferindo olhar para a caixa sobre a mesa de cabeceira
do que para ele.
— O que é isso? — A dó foi embora, os olhos ganhando uma nova luz
ao irem dos meus para a caixa.
— Disse que queria uma arma, vero? — Dei um mínimo sorriso, por
mais que fosse claro para ambos que o feito não atingia nada além dos meus
lábios. — Vamos treinar com ela amanhã.
Não reclamei ao tê-lo como sombra durante todo o dia, por mais que
por muitas vezes quisesse a solidão para chorar em paz. Era até bom não
poder derramar tantas lágrimas enquanto dividíamos um balde de pipoca e
sofá, na TV um filme que nenhum dos dois parecia olhar.
Preferia tirar sua roupa e esquecer dos meus problemas, mas me
contentei em tirar o controle das suas mãos quando os créditos rolaram, eu
escolhendo a próxima hora de entretenimento, as tatuagens de Nickolay
nunca me deixando. Eu gostava do toque nos meus cabelos tanto quanto
adorava o roçar dos dedos em lugares bem mais cobertos.
Não houve muitas palavras, a casa vazia tornando grande demais a
pizza tamanho família sobre a mesa de centro. Ele sabia ser portuguesa meu
sabor favorito, e fiz descer pelo menos um pedaço junto de uma latinha de
Coca Zero.
Domingo pareceu demorar uma eternidade para chegar, o italiano me
dizendo para vestir algo confortável, mas não mantendo os olhos em mim
enquanto me trocava. Tentava não me incomodar com o fogo ausente, assim
como levei uma eternidade para cobrir os seios, já sabendo bem das partes
minhas que Nickolay gostava de ver.
— Esse não é meu carro — notei confusa ao chegamos na garagem,
por um momento esquecendo que meu antigo não deveria estar em
condições de ser dirigido.
Nico pareceu arrependido por um momento, mas logo explicou.
— Agora é. — Quando viu que eu abriria a boca, se apressou em
continuar. — Esse carro é blindado, Alana. Aceite, ou eu não vou ter paz.
Revirei os olhos. Amava e odiava tamanho cuidado, assim como sabia
bem o que era ser privada de paz.
— Ok. — Mesmo incomodada, eu gostava de ser a responsável pelos
sorrisos em seus lábios.
O interior cheirava a novo, o couro falso impecável cobrindo os
bancos e volante. Nickolay me fez sentar no banco de motorista, e meu
coração acelerou depois de horas calmo quando ele se inclinou sobre mim.
Mas os lábios grossos não chegaram perto dos meus, me deixando
apenas com as memórias de tudo que já fizemos em lugares como aquele.
— Está sentindo? — A pergunta veio com ele levando minha mão
direita para trás do banco. — É um fundo falso, a arma fica aí. — Ele me
conduziu até eu achar o metal frio, meus dedos sendo encorajados a fechar
no cabo. — Não se preocupe, está travada. Sempre tem que ficar travada,
Alana. — Era instruída, o tom sério. — Lembra como destrava? — Fiz que
sim, trazendo a arma para nós com certo receio. — Não está carregada,
dolcezza. Pode manusear sem medo. Consegue sentir a diferença no peso?
— Acho que não. Precisava saber?
As palavras pareceram lhe causar um conflito interno.
— É sempre bom saber todo o possível. — Nickolay acabou decidindo
por falar, olhando da arma para mim. — Pequenos detalhes podem custar a
vida, Alana — ele dizia como alguém que tinha aprendido aquilo da pior
maneira.
A tristeza que passou pelos olhos escuros me fez decorar todos os
detalhes que o italiano se esforçava para me passar.
— Se algum dia a polícia parar esse carro e por qualquer motivo
estiver sozinha, a primeira coisa que vai fazer é me ligar. A primeira, Alana.
— Nickolay reforçava, a voz firme. — Se eu não atender, ligue para
Lorenzo, se ele não atender, Matteo. Se ninguém atender, vai ligar para
nosso advogado e ficar quieta até alguém chegar. Ok?
Havia sinceridade no sorriso que eu lhe dava agora. Minha segurança.
Ele poderia me olhar do jeito que quisesse, assim como eu poderia sorrir de
verdade pelo resto do dia ao seu lado.
— Ok.

Depois de muita insistência da minha parte, consegui ir para a


faculdade após um fim de semana entre a cama e a área de tiros. Foi a
primeira vez que Nickolay parecia descontente com algo que eu fazia desde
o jantar de sexta, e fiquei feliz ao vê-lo não me tratando como uma boneca
de porcelana ao reclamar sobre minha teimosia.
A felicidade acabou quando o beijo veio outra vez na bochecha, eu
sentindo falta dos seus lábios nos meus e não sabendo como pedir. Não
estava sabendo pedir muita coisa depois de praticamente implorar para ele
sumir com quem me deixou em pedaços.
Doía lembrar daquela noite tanto quanto doía a memória da manhã que
acordei cheia de hematomas. Incomodava eu finalmente ter a segurança que
precisava em troca do fogo que, antes, consumia nossas manhãs. O sol era
morno demais, o calor que eu precisava fora da cama antes de eu acordar.
Eu sempre parecia perder algo ao ganhar uma coisa boa.
A chave do carro novo foi confiscada e Matteo me levou, e podia jurar
que tinha mais dois seguranças no carro que nos seguia. Dava para ver que
Djamila não acreditava na história que eu contava, Carlos nem mesmo se
surpreendendo ao ouvir sobre a batida. Mas os dois fingiam crer no que saía
da minha boca, e eu imaginava que tinha dedo de Nickolay ali.
Só que mesmo sendo tratada como um vidro fino por todos, eu me
obriguei a ir para a faculdade e sorrir durante toda a semana. Assim como
me forcei a almoçar com minha mãe na quinta, antes da terapia na qual nem
me incomodei em aparecer. Os olhos escuros e carinhosos de Astrid
estavam preocupados demais, mas ela olhava para meus pontos e acreditava
na minha história sem contestá-la. Era atípico.
Tinha sim dedo do italiano.
Ele iria me deixar louca com todo aquele cuidado, aquilo não sendo o
que eu buscava ao pedir por segurança.
Talvez por isso tenha chegado em casa na sexta e ido direto para o
quarto. Carlos tinha me ensinado as melhores frases enquanto dividíamos
hambúrgueres — que tentei comer até a metade e falhei — e eu me sentia
bem menos fraca ao fechar a porta do banheiro.
Nenhum dos homens estava, e demorei num banho de banheira até
minha pele enrugar. Ainda eram quatro da tarde, mas cacei o conjunto que
sabia ser irresistível para quem eu queria que tirasse, esperando que ele
cumprisse o prometido e chegasse antes das seis. Foda-se que eu achava
ridículo passar maquiagem para transar, eu precisava de toda a ajuda
possível para as mãos tatuadas quererem arrancar minha roupa.
Já estava escuro quando senti a mão afagar meus cabelos, o edredom
cobrindo meu corpo, escondendo o que eu tanto queria mostrar. Não me
mexi quando senti o beijo na bochecha, meu estômago se revirando com a
falta de paixão que tanto buscava nos últimos dias.
Eram as menores coisas que me faziam quebrar, e foi vê-lo alcançar
um livro o responsável pelo primeiro pedaço cair.
— Você não me quer mais. — Não era uma pergunta, e a acusação o
fez abandonar as páginas e voltar toda a atenção para mim.
Nickolay me dava o sorriso desconcertado que eu adorava antes de
tocar meu rosto. Queria gritar, assim como queria a mão tatuada em um
lugar bem diferente.
— Que absurdo é esse, dolcezza? — Afastei a mão que tentou acariciar
minha bochecha, eu cansada dele ignorando a parte da minha anatomia que
lhe cuspia acusações.
— Você não me procura mais. — Era ridículo como o homem parecia
não entender sobre o que eu falava. Às vezes, achava que ele se fazia de
idiota, o português dele sendo bom demais para não compreender a que me
referia. — Pra sexo, Nickolay! Você não quer mais transar! Você não quer
mais a única coisa que eu consigo te dar, e isso tá me deixando louca!
Driblei os dedos que tentaram me segurar e levantei, o ar frio do
quarto contra minha pele quase nua incomodando menos do que o
tratamento morno que ele me dava.
— É por causa da briga que a gente teve? Ou você não consegue mais
me querer depois de saber de tudo? — Não me importava em falar baixo,
por mais que minha voz parecesse uma imitação fraca dos gritos que já
havíamos trocado no passado. A última frase mal passava de um sussurro,
mas parecia doer como um tapa, nele e em mim. — Eu sou quebrada
demais pra ti?
— Alana, no! De onde tirou isso? — Ele passou uma mão pelos
cabelos, ainda parecendo pensar se era ou não sábio se aproximar. — Eu
só...
— Não sabe mais agir ao meu redor? — Apontei o que Nickolay me
deixava ver, decidindo por nós dois e indo para a frente dele. Eu não o
queria longe. — Desde aquela noite, você me trata diferente — ainda assim
acusei, e o olhar de culpa que ele me deu me deixou nua demais, eu
precisando reunir forçar para não cobrir a lingerie que exibia. — Com esse
cuidado irritante, como se eu fosse quebrar com qualquer palavra!
E ele permitir mais uma vez eu me portar como uma pirralha mimada
estava acabando comigo, a bola que havia na minha garganta me tirando a
capacidade de respirar. Era só reagir, era só gritar de volta. Por que ele não
gritava de volta? Por que ele não fazia esse peso que tinha no meu peito ir
embora?
— Eu não quero isso, Nickolay! Eu não quebro! — Finalmente gritei,
a força machucando a minha garganta e o coração de nós dois. — Você
fazia eu me sentir normal, só faz eu me sentir normal de novo!
Chorar contra o peito dele estava se tornando uma constante na minha
vida, a única com Nico que eu não conseguia gostar. A mão que agora
sempre estava na minha cabeça me fazia soluçar alto, a maquiagem que
havia me dado o trabalho de botar com certeza manchando a camisa branca.
Não que o italiano se importasse. Do mesmo jeito que ele me
provocava dizendo que eu tinha uma inabilidade crônica de ficar parada,
Nickolay era incapaz de se deixar afetar pelas merdas que eu fazia. Eu
sujava sua roupa enquanto ele me pegava no colo, minhas pernas falhando o
fazendo nos levar para a cama. Eu queria ele e a cama, por mais que
soubesse que meu planejado durante a tarde estivesse já bem longe de
acontecer.
Chorei até as lágrimas acabarem. Quando nada mais saía, levantei os
olhos inchados até os dele, os dedos grandes e desajeitados tentando limpar
o rímel que deveria ter manchado as maçãs do meu rosto.
E esse filho da mãe tinha essa magia, essa habilidade de me fazer
melhor. Não me importava mais com ele tocando só a minha bochecha. Os
olhos escuros me observavam como se eu fosse preciosa, por mais que eu
devesse estar bem mais próxima de um panda raquítico do que de qualquer
tesouro. Meus lábios se levantaram, o primeiro sorriso verdadeiro que dava
desde domingo puxando um dele, os grossos finalmente achando os meus
finos e me fazendo quente, por mais que tenha sido apenas a sombra dos
beijos que estava acostumada a receber.
Mas as mãos continuaram segurando meu rosto. O sorriso foi embora
antes das próximas palavras saírem, e a voz do homem que eu amava nunca
havia soado tão letal.
— Alana, eu vou achar esse puttano — ele afirmava para nós dois. —
Eu vou acabar com a vida dele. E vou te fazer nunca mais se preocupar com
isso. Ok?
O quão errado era ficar feliz com aquelas palavras?
— Ok.
A próxima afirmação me deu o resto da calma que seu beijo tinha
começado a devolver.
— Eu te quero, dolcezza — Nico continuou, outra vez roçando os
lábios nos meus. — Quero tanto que chega a doer. E eu sei que é sua
válvula de escape, sabe que é a minha também. Escutei de ti que não
conseguiríamos resolver tudo com sesso, mas se é o que precisa, Alana, eu
nunca vou negar te ter em cima de mim.
E era verdade, porque Nickolay sempre me deixava ver quando era
verdadeiro. Porque o homem sempre era, e eu finalmente enxergava que o
desejo continuava nele.
— Mas nunca mais pense que é só isso que tem para me oferecer.
Sesso não é a única coisa boa que me dá. — E ele me puxou contra seu
peito, dando um suspiro, contento, todas as suas tatuagens me abraçando.
— Isso basta. Chegar em casa e te achar na nossa cama basta. Poder te
tocar, depois de tudo, basta. Deveria ter falado isso antes de hoje, não
deveria? Eu ainda estou aprendendo a lidar contigo, bella. Com um
relacionamento.
O cuidado fez meu peito queimar, os olhos seguindo o mesmo rumo, o
sentimento sendo maravilhoso, e ao mesmo tempo, dolorido.
— Só achei que precisasse respirar um pouco. Não é vergonha precisar
respirar. Todos precisamos.
— Eu não queria, Nico. — As palavras quase não saíram. — Não
queria precisar respirar assim.
Por que era tão difícil ser normal?
— Eu sei. — O beijo que ganhei na testa não era mais tão ruim. — Eu
também não queria que fosse difícil, dolcezza. Prometo que vai melhorar.
Eu vou fazer melhorar.
Rezava para que sim.

Não tirar sua roupa era muito mais difícil do que Alana imaginava.
Acordar com o cheiro que amava já me deixava precisando dela, o corpo
pouco vestido sempre pressionado contra o meu não ajudando a apagar o
fogo que acendia.
Vivia num incêndio, mas não apagaria nada antes que quem tinha nos
braços estivesse pronta. Ela precisava pedir.
Ainda lembrava demais da noite que passei acordado com a mulher
chorando no banheiro. Os soluços que ouvi por horas por detrás da porta me
faziam temer tocá-la de algum jeito errado, eu tendo passado por situações
diferentes, mas tão semelhantes, com Giovanna. Conseguia sentir a tensão
em seus músculos quando eu me deixava beijá-la com a necessidade que
havia se acumulado, e sabia que Alana lutava contra memórias muito mais
dolorosas do que poderia algum dia imaginar.
O que ouvi na última noite de sexta era o maior dos absurdos, eu não
sabendo mais o que era acordar não a desejando. Viveria dentro dela, se
apenas isso pudesse curar a dor que via, se tal pudesse proporcionar a paz
que ainda buscava entregar para minha mulher.
Contar a Astrid o ocorrido havia sido mais fácil do que o esperado, a
mulher fazendo a caridade de passar a notícia para Djamila. A senhorita
Amaral definitivamente não me tinha na sua lista de favoritos, e ouvir da
mãe da sua melhor amiga ao invés de mim poderia torná-la muito mais
colaborativa em se calar sobre os pontos e acreditar em qualquer história
que Alana decidisse contar.
Claro que os detalhes revelados pela filha ficaram de fora, por mais
que a mais velha fosse quem tivesse plantado o começo da certeza de que
Thobias deveria ter um fim. Claro que Alana desconfiava que tinha
conversado sobre seus machucados, e aquilo havia sido dito de forma
discreta pela mãe antes de nos sentarmos em meu sexto almoço com aquela
família.
Ainda tinha a mão pintada por canetas coloridas, a caveira que
carregava ganhando um tom de deboche com as cores escolhidas. Com as
mangas arregaçadas e Alana nos meus braços, o silêncio pós-refeição
casava bem com o café que bebia.
Quase todos os integrantes da família muito maior do que a minha um
dia havia sido estavam do lado de fora, na sala apenas a mais nova, que
dormia no carrinho, e minha noiva de companhia. Mesmo coberta pelo
casaco, ainda me lembrava bem da imagem vista hoje pela manhã, Alana se
despindo de minha camiseta e mostrando o quanto tinha conseguido
emagrecer em pouco mais de uma semana.
A mulher não comer quase nada estava me deixando louco, e todo o
chocolate que queria empurrar para sua boca tinha um efeito muito parecido
nela.
— Você vai me engordar com tudo isso. — A mão empurrou brava o
quarto bombom que eu tentava fazê-la comer, ela o obrigando a ir para
minha boca quando a abri para reclamar.
Sacudi a cabeça, quase desistindo das calorias extras enquanto sentia o
doce derreter contra a língua.
— Eu te amo com qualquer peso, dolcezza — sussurrei contra seus
cabelos, tentando insistir uma última vez. — Coma um só, é seu favorito.
Precisa comer mais para curar seus pontos, bella.
— Não quero, Nico. — Ela fechou a cara e se afastou, preferindo o
apoio do braço do sofá.
Deveria ter ficado quieto, mas a convivência nos tornava parecidos nos
bons e maus aspectos.
— Está tão magra, Alana. — Ter ficado quieto evitaria o olhar doído
que ganhei antes da mulher se levantar.
— Você acabou de falar que me amaria com qualquer peso!
Revirei os olhos. A convivência realmente me dava suas manias.
— E eu amo! Mas eu consigo ver as suas costelas, é demais! Não está
saudável! — Olhei para o lado de fora, quase toda a família entretida com
as histórias de Leandro, Astrid me lançando um olhar preocupado. — O que
posso fazer para te dar algum apetite?
— Eu não quero comer! — As palavras eram gritadas, mas não altas o
suficiente para chamar a atenção de alguém além de Isabella.
Era engraçado como escutar o choro de uma criança me fazia reagir
antes de pensar. Pegar Isabella no colo foi automático, e só me dei conta do
que havia feito ao sentir as mãos pequenas agarrando minha camisa.
Nunca havia segurado nenhum além de Nicolas, e o bebê que tinha nos
braços trazia todas as boas e más memórias. Voltei para o sofá, o choro
acalmando, Alana retornando muito mais dócil para meu lado.
Do mesmo jeito que eu tinha conhecimento das pequenas coisas que a
afetavam, ela mostrou ter a mesma atenção aos detalhes comigo. Beijei o
pulso da mão que alcançava meu rosto antes de limpar a garganta,
embalando a pequena até os olhos fecharem, por mais que meu peito
queimasse.
Eles voltaram a abrir assim que tentei colocá-la de volta no carrinho.
— Lucas disse que ela não para aí depois que acorda. — E parecia ser
verdade, Isabella outra vez ameaçando começar um berreiro. — Quer que
eu a segure, Nico?
Os olhos mel encaravam os meus com uma preocupação que me fazia
sorrir, eu me orgulhando por um momento de nosso novo equilíbrio. O
temperamento de Alana, que antes a empurrava para longe de mim, agora
conseguia calma o suficiente para continuar ao meu lado. O meu tinha
controle o bastante para me manter calado, e afirmei que era bom ver um
crescimento em nós.
— Não precisa, amore mio.
Aquele amor que ela me dava sem falar uma palavra tornou todas as
memórias antigas muito mais suportáveis.
— É chorona como sua tia? — provoquei, Alana revirando os olhos e
a pequena balbuciando algo que poderia muito bem ser um sim. — Talvez
eu tenha algo que goste. Brilla brilla una stellina[77] — comecei a música
que por tantos anos não conseguiu sair dos meus lábios. Alana tornava
cantar assustadoramente fácil. — Su nel cielo piccolina[78].
Isabella parecia gostar tanto de italiano quanto a tia, e tinha a criança
dormindo em meus braços até a canção favorita de Nicolas acabar.
Mas as lágrimas que vi nos olhos de Alana me falavam que minha
noiva talvez não compartilhasse da mesma opinião naquele dia. A puxei
para perto com meu braço livre, a deixando escondê-las em meu peito.
Havia mais lágrimas do que gostaria ultimamente, minhas ideias para
acabar com elas cada vez mais escassas.
— Que foi, dolcezza? — Mas eu não tive uma resposta, e aceitei
quieto as duas que pegavam no sono encostadas em mim.

Alana foi calma o resto da tarde, e muito mais quieta que de costume.
Era óbvio que aceitava a segunda fatia do bolo de fubá mais para agradar a
mãe — e talvez a mim — do que por qualquer vontade de comer. Mas ao
menos comia mais do que o pouco ingerido durante a semana, e eu me
contentaria com todas as besteiras que a conseguisse fazer ingerir.
Ela colocou sua playlist favorita na volta para casa, eu cantarolando
algumas das músicas enquanto Alana me ouvia quieta. Cantar na frente dela
já não me causava desconforto, e mesmo se causasse, o sorriso que lhe
tirava me faria passar por cima do incômodo.
A tinha nos braços no fim da noite, nós dois já debaixo do edredom,
quando Alana quis qualquer conversa.
— Nickolay? — ela sussurrou, esperando por minha atenção antes de
continuar. — Me desculpa.
— Por que, dolcezza?
— Por aquela manhã.
Era óbvio a qual manhã ela se referia, e sentia que se alguém deveria
pedir desculpas, era eu. Era meu temperamento que a fizera cruzar com
quem já deveria estar morto, e não conseguia me perdoar por ter tido a
chance de buscá-la e desperdiçado mandando-a ir sozinha.
— Não precisa pedir desculpa, bella.
— Precisa sim! — Com certeza era meu arrependimento que me
deixava controlar meu gênio forte.
Mas Alana se virava com pesar no instante seguinte, seus olhos
achando os meus ao mesmo tempo em que as mãos pequenas seguravam
meu rosto.
— Eu não quis dizer que você não era bom, Nico. Dá pra ver o quanto
você era um bom pai, o quanto Nicolas teve sorte de ter você. — Agradeci
por haver pouca luz, limpando a garganta enquanto forçava um sorriso.
Nicolas estava morto. Que bom pai deixa o filho morrer? As palavras,
por mais que Alana não tivesse qualquer intenção, doíam como ferro em
brasa. Eu não era bom.
Algo parecia provocar uma dor muito semelhante nela, a voz falhando
assim que voltou a falar.
— Você nunca me deixou explicar. Tudo que eu disse foi pra mim.
O choro que estava por vir só me fez querer adiantar a passagem para
o inferno do moleque que tinha as horas contadas, por mais que, pela
primeira vez, a culpa não pudesse ser posta nele.
— Eu vi o jeito que você olhou pra Bella. Você quer isso outra vez,
não quer? — Engoli, tentando suavizar a maldita bola que se formava na
garganta sempre que pensava em tal assunto. — Um filho.
— Alana...
— Eu não sei se posso. — Suspirei.
Eu já sabia daquilo. O medo de haver algo tinha sido claro, as mãos
trêmulas ao segurarem o resultado, o olhar apreensivo durante os minutos
de espera. Era óbvio, e me senti mal por desejar novamente uma família
durante nossa tarde, tendo conhecimento do quão importante era o desejo
vir das duas partes.
— Dolcezza, ainda é tão cedo para pensarmos nisso...
— Não, você não entende! — A vi sacudir a cabeça, as mãos fugindo
de mim conforme Alana se sentava. — Eu quero, Nickolay. Eu sempre quis
ser mãe, eu quero ser mãe. Mas eu não sei se eu posso. Se é fisicamente
possível pra mim. — Descobrir que estive errado nos últimos segundos doía
mais do que pensar em Nicolas, a voz terminando o resto da confissão num
sussurro. — Talvez ele tenha me tirado até isso.
Os olhos mel encararam o teto, e eu sabia que acabar com a vida
daquele desgraçado não seria o suficiente para as lágrimas secarem. Mas se
diminuíssem, seria apenas mais um que me faria puxar o gatilho sem dó.
Não sabia o quanto não estava pronto para ouvir sua resposta até a ter.
— Eu fui mãe. Quando aceitei morar com ele, eu estava grávida. —
Ela quase não conseguiu pronunciar, e minha mão achou a sua ainda
machucada. Sabia que Alana estava cerrando o punho, sabia que acabaria
abrindo os pontos mais uma vez, e sabia que mataria Thobias. — Quando
acordei naquela manhã, tudo doía tanto, tinha tanto sangue.
Apenas ela conseguia continuar falando. Alana era tão mais corajosa
do que se dava crédito.
— Eu demorei pra entender que tinha perdido mais do que a minha
paz. Eu sei que deveria ter entendido depois de ver o sangue, mas acho que
passei tantos dias em choque que não consegui fazer a ligação. Ou eu não
quis, porque era a última coisa boa que me restava. Um dia, eu comecei a
ter essas dores, era uma cólica insuportável, e quando fui pro hospital… —
Vi a risada amarga que nunca combinava com ela. — Eu nem lembro
direito. Fui ao mais longe de onde eu morava, num que não tinha chance de
alguém me reconhecer. Disseram que eu estava com uma infecção, falaram
algo de aderências. Me deram alguns antibióticos no final, e o médico
comentou algo sobre eu talvez não conseguir mais — Alana olhou para
longe antes de continuar. — Ter filhos. Que poderia ser mais difícil, depois
daquilo.
Era perturbador o medo que via em seu rosto quando puxei seus olhos
para os meus. De novo, era ela quem tinha coragem de falar primeiro.
— Como pode querer continuar comigo, depois de tudo isso? Eu só te
decepciono, Nico.
O que eu poderia fazer para tirar aquela dor?
— Alana, como pode dizer uma coisa dessas? — Encostei minha testa
na dela, limpando uma lágrima que escorria com o coração pesado. —
Dolcezza, nós dois sabemos tão bem que família não tem nada relacionado
com sangue. — Só pesava mais ao ver todas as que seguiram. — Nicolas
não tinha nada meu, e eu o amei tanto quanto eu te amo.
Beijei o topo da sua cabeça, a puxando para mais perto, tentando
inutilmente lhe passar algum conforto. Era o fim de mais um domingo, e
Alana se aninhava nos meus braços e chacoalhava com soluços. E outra
vez, achava nela mais semelhanças do que gostaria, nós dois dividindo
quase todas as dores crônicas que queria manter apenas em mim.

Sabia o quanto Alana queria sentir-se normal, assim como imaginava


que havia algo na forma que andava a tratando que a fazia se afastar. Ela era
resistente demais a preocupações, todo sinal de apreensão vindo de minha
parte sendo motivo para dar um passo para trás e se fechar.
Alana tinha a certeza de que eu a via como algo frágil, e nunca esteve
tão errada. A mulher que apenas beliscava o miolo do pão de sal era a
pessoa mais forte que eu conhecia, mas mostrar aquilo de um jeito que ela
acreditasse estava sendo mais difícil do que o esperado.
Engraçado como as soluções muitas vezes vinham nas coisas mais
simples. Não que convidá-la fosse simples, o nervosismo ao considerar
falar aquelas palavras quase me calando no café da manhã.
No entanto, lembrar do jeito que achamos harmonia no começo de
uma briga me fazia não ter mais medo de dizê-las.
— Temos um jantar hoje — anunciei após um gole de café, recebendo
surpresa tanto dela quanto de Lorenzo.
— Temos? — Daria um jeito de tratar dos negócios mais simples com
ela todos os dias, se fosse o necessário para seus sorrisos verdadeiros
voltarem.
— Consegue estar pronta antes das sete, dolcezza?
E naquela sexta, Alana finalmente comeu o pão inteiro.

Talvez tenha sido a confiança ao me chamar para algo que ele sempre
mostrou ter tanta resistência. Nickolay falava outra e outra vez que eu
precisava aprender a me portar antes de entrar em seu meio, e queria
acreditar não ter sido apenas desespero o responsável pelo voto de
confiança.
O vestido que o espelho mostrava era novo e marcava minha cintura, o
tecido preto caindo até o fim das minhas pernas. Era uma das poucas roupas
que conseguia me fazer feliz pelos seios quase inexistentes, eu não
precisando me preocupar com sutiã enquanto exibia o decote em v longe de
discreto. Bem mais comportado que o do nosso primeiro jantar, mas
esperançosamente, bom o suficiente para o italiano querer me colocar em
cima dele depois de tempo demais longe do seu colo.
Ele realmente me faria implorar, pensei enquanto girava o anel na mão
direita, o visor do celular mostrando ser quase sete horas.
O olhar que Nickolay me deu quando cheguei no fim da escada era o
que procurei durante todas as últimas semanas. O italiano parecia sem
palavras enquanto absorvia os detalhes que havia me esforçado escolhendo,
e eu conseguia novamente ser a garota que o fazia falar sacanagens dentro
de um carro.
— Dolcezza, che bella[79]. — Adorei as primeiras palavras que saíram,
uma mão achando minha cintura, ele mostrando estar desconcertado ao
coçar a barba. O sorriso que ganhei em seguida passava longe do
comportado, a mão subindo para as minhas costas nuas e me puxando
contra ele.
— Gosta? — Ele virar o rosto e dar um riso nervoso era minha
resposta, seus dedos logo achando a fenda da saia, a ponta do nariz roçando
no meu pescoço causando o melhor dos arrepios.
— Dio santo, não consigo pensar contigo nesse vestido — Nickolay
confessou ao me encostar no corrimão. — Quando eu vou parar de te querer
tanto?
Vê-lo daquele jeito era mais delicioso que o melhor dos vinhos, eu
tinha certeza.
— Espero que nunca.
O beijo que ganhei era tudo que buscava desde que comecei a me
arrumar. Desde dias, semanas atrás, Nickolay mostrando o quanto eu
conseguia acabar com seu controle.
— Preciso de mais que seus lábios, Alana. — A reclamação veio numa
voz sofrida, os dentes torturando meu pescoço, a mão grande achando
minha coxa. Senti a mordida quando gemi seu nome, o italiano duro
pressionando-se contra mim e me fazendo querer mandar o jantar para o
inferno.
— Assim eu vou desarrumar seus cabelos. — Mas a preocupação de
nós dois era zero, meu coração perto de explodir ao sentir a língua correr
pelo decote.
— Desarrume o que quiser, eu não ligo.
E com isso, minhas mãos foram para os fios pretos, os lábios grossos
provando o que o vestido antes escondia. Nickolay sugava meu seio como
se fosse ele quem estivesse pronto para implorar, e eu teria o feito, se
estivesse apta a pronunciar palavras inteiras. Estávamos ofegantes quando
nossas bocas voltaram a se achar, eu agradecendo por ter deixado o batom
para depois enquanto o italiano acabava com o resto do meu fôlego.
— Fanculo, não quero mais ir — ele confessava ao deixar a mão subir
por baixo do vestido, e joguei a cabeça para trás quando os dedos
alcançaram minha calcinha.
O que eu mais queria era me livrar dela, mas meus olhos encontraram
tudo que eu menos queria ver. Lorenzo limpando a garganta no topo da
escada fez as mãos grandes cobrirem minha coxa e arrumarem o vestido
que estava prestes a ser tirado. Nickolay ainda olhava para o teto enquanto
arrumava os fios que eu tinha bagunçado, eu reparando haver muito mais
cor que o normal em suas bochechas.
— Sobremesa só depois do jantar, Nickolay. — A voz veio debochada,
o homem mais velho segurando uma risada ao passar por nós. — Já é bem
crescido para eu ter que lembrar você disso.
Vê-lo parecendo um menino pego no meio de uma de suas travessuras
foi uma das melhores coisas da noite, e ainda ria ao passar pela porta. Não
me importei com o beijo na bochecha que ganhei ao chegar do lado de fora,
tendo certeza de que o mais sábio a se fazer era me manter longe de seus
lábios até o fim do jantar, se quisesse ficar vestida.
— Limusine? — Levantei uma sobrancelha ao notar a mudança de
carro, Nickolay encolhendo os ombros e abrindo a porta. — Dá pra fazer
muita coisa numa limusine — provoquei antes de entrar, pensando em quão
seguro para ele seria ficar num ambiente fechado comigo.
Me sentei no banco de couro, forçando para o fundo da mente todas as
ideias que vinham ao tê-lo outra vez perto. O jantar deveria ser no mínimo
importante, e eu deveria no mínimo nos manter inteiros até o fim dele,
então minhas mãos foram repousar no meu colo, e não em qualquer das
partes do italiano.
— Alana, a noite de hoje, ela… — Era raro ver aquele homem não
saber o que falar. — É difícil colocar em palavras.
— É um ambiente machista e tóxico, onde você é o foda e eu sou seu
enfeite? — me atrevi a adivinhar, sabendo que não teriam palavras para
suavizar o que me aguardava.
— Nunca vai conseguir ser meu enfeite, Alana. — A voz saiu séria, os
olhos me encarando como se eu tivesse dito um absurdo. — Com a sua
personalidade, é mais provável que um dia o contrário aconteça.
Revirei os olhos. Como se isso fosse possível.
— Bem, tenho que confessar que você é muito bom de se olhar,
Nickolay. — Minhas mãos realmente eram inquietas, a direita apertando sua
coxa, eu quase mandando para o inferno a promessa de me manter
comportada ao ouvi-lo arfar.
Agora era ele quem limpava a garganta, e eu ri da tentativa de se salvar
de mim ao abrir a janela que dava acesso a Matteo. Nico gostava de me
ouvir rindo, os olhos dele me mostrando aquilo antes de eu me deixar
encostar em seu ombro.
— Alana — ele continuou, a voz demorando demais para achar o que
queria falar. Nickolay não sabendo se expressar era sim, engraçado. —
Ninguém vai te desrespeitar, mas duvido que todas as conversas serão
agradáveis.
— Uhum. — A testa franziu, os olhos escuros me encarando
desconfiados. — Você quer me pedir pra ficar quieta, não quer?
A expressão disse tudo.
— Só tente medir as palavras antes de começar a agredir os homens
com quem trabalho, dolcezza. — Ele parecia tão envergonhado de me pedir
aquilo quanto se mostrou ao ser pego por Lorenzo, minutos atrás.
— Eu quis vir, não quis, Nico? — respondi, lhe oferecendo meus
lábios. — Se quiser, pode começar a me calar agora.
Por mais que tivéssemos plateia, os beijos passavam longe da
suavidade, meu corpo inteiro sensível quando o carro estacionou em frente
ao restaurante escolhido.
O homem ao meu lado era realmente bonito demais para passar
despercebido. Por mais que seu braço estivesse ao meu redor e os olhos só
demorassem o necessário na loira que nos recebia, o jeito que seu rosto era
observado fazia meu ciúme aparecer. O filho da mãe riu ao perceber meu
descontentamento, sacudindo a cabeça antes de me puxar para mais perto.
— Eu só te enxergo, bella — ele sussurrou no meu ouvido, nós dois
entrando em um corredor. — Seria burrice minha tentar te achar em
qualquer outra.
Nickolay não sabia o efeito calmante de suas palavras.
— É mais de meia noite e dois assassinos estão andando floresta
adentro. — Escutamos a voz masculina ao pararmos na frente de uma porta
entreaberta. — O que está na frente diz: assustadora a floresta a essa hora
da noite, não acha? E o outro responde: nem me fale, eu ainda vou ter que
voltar sozinho!
Ele voltou os lábios para meu ouvido ao ver minha cara confusa.
— Porque um assassino vai ter que matar o outro. — Sacudi a cabeça,
mas não consegui deixar de dar um sorriso. — Gianlucca já teve melhores,
tenho que admitir.
Por um momento, tinha esquecido por completo de onde estava prestes
a entrar.
— Nervosa, dolcezza? — Fiz que não, o italiano ignorante a calma que
me passava.
— DeLucca nunca atrasa. — Levantei uma sobrancelha. — Meu
estoque de piadas já está acabando.
— Eu tô sendo uma má influência pra você! — Ele sorriu, beijando
minha testa.
— Mai. É a melhor que tenho.
— Eu tenho uma! O que a boceta e a máfia têm em comum? — E ali
estava. Revirei os olhos, lembrando da nossa conversa no carro.
— Ele vai falar que é muito mais divertido quando se está dentro, não
vai? — E foi o dito na resposta, Nickolay segurando o riso. — Você tá se
divertindo escutando isso!
— Estou vendo um sorriso nos seus lábios também, bella. — Ele
colocou a mão na maçaneta. — Pronta?
E eu fiz que sim.
Todos se calaram quando a porta se abriu, as cabeças se virando para
onde estávamos.
Por menores que fossem as mudanças, era perceptível demais para
mim o quanto o homem que estava comigo segundos atrás e o de agora
eram diferentes. A mão continuava na minha cintura, mas o que antes era
um carinho, agora era pura possessividade, Nickolay me marcando como
dele sem precisar falar uma palavra. O rosto não era mais suave, o sorriso
sendo substituído por uma expressão dura. Quando abriu a boca, a voz era a
mesma que me faria obedecer a tudo que me pedisse.
— Buonasera. Perdão pelo atraso. — Tinha algo de muito erótico em
exalar poder, eu pela primeira vez entendendo as atitudes de Emília para
tentar possuir o homem ao meu lado.
A mão forte que apertava minha cintura parecia em chamas, me
fazendo arder por dentro. Todos os olhos estavam nele, os meus, mal
conseguindo deixá-lo para observar o ambiente ao nosso redor. Havia muito
mais do que quatro cadeiras naquela noite, todos homens, tirando a
presença que eu sempre passaria de ter qualquer contato.
— O trânsito de São Paulo ainda vai me deixar louco — ele justificou,
muito mais por educação do que por precisar dar qualquer motivo pelos
minutos que o fiz perder.
— Pode se atrasar até o dobro se for para deixar nosso jantar mais
agradável! — veio de um senhor de cabelos grisalhos que se levantava,
todos os outros o copiando.
— Também não me incomodaria em chegar sempre mais tarde se
tivesse uma companhia tão bonita — falou o homem mais perto de nós, mas
os olhos ainda não estavam em mim.
Eu realmente poderia ser considerada seu enfeite, mas no momento,
não me importava. A autoridade que Nickolay mostrava me deixava
hipnotizada, ele se revelando o oposto do que me deixava ver em nosso dia
a dia. Saber que esse homem me permitia exercer qualquer domínio sobre
ele fazia meu coração acelerar, eu tanto querendo vê-lo se portar assim
quanto sem roupa alguma em nosso quarto.
— Senhores, Emília. — Sua mão me conduziu até a frente da mesa, e
não pude evitar um sorriso quando os olhos escuros pararam outra vez em
mim. — Essa é minha noiva, Alana Martins. — O orgulho que vi só me fez
sorrir mais.
— Adorável. — Veio do primeiro homem que me cumprimentou, o
beijo na mão me deixando completamente sem jeito.
Estava muito mais acostumada depois do quinto, e agradecia por
Emília estar bem longe. Talvez conseguisse chegar no meu lugar antes de
precisar ter alguma interação com ela.
— Don Matarazzo bem que mencionou que um casamento estava a
caminho!
Ou talvez Nickolay usasse de toda sua inteligência e nem considerasse
nos obrigar a ficar frente a frente.
— Não sabíamos que seria justo o seu, DeLucca.
Pensando bem, não faria mal algum Emília beijar minha mão.
— Dava pra desconfiar, ele anda muito mais relaxado esses dias!
Voltei a atenção para o rosto sério, e consegui ver um mínimo de
diversão ali. Então meu noivo estava gostando de me mostrar para sua
máfia? Quase revirei os olhos, Nickolay me deixando descobrir pequenas
coisas que o tornavam muito mais mundano.
— Tem donne que nos relaxam, tem donne que nos deixam pior que
malucos!
Ouvi uma risada vinda dele, muito mais séria do que estava
acostumada, enquanto sentia seus olhos outra vez vagarem pelo meu
decote.
— Minha mulher consegue os dois.
Dava para notar o quanto o italiano me queria, eu o enxergando bem
demais. Nickolay sempre me deixou ver o quanto apreciava meus esforços,
eu nunca esquecendo da nossa noite na praia. Já pensava em como poderia
me arrumar mais vezes para causar aquele efeito, e minha mente ainda
estava leve antes de parar na frente de um rosto muito mais familiar do que
esperava encontrar ali.
— Alana? — Eu conhecia aquele homem, o motivo do meu coração
acelerar passando longe do agradável.
Nickolay ainda respondia alguém quando a mão ignorou a minha que
tentava afastá-lo e tocou onde a de meu noivo antes estava.
— Não vai cumprimentar um velho amigo? — E eu paralisei, e
amaldiçoei a inabilidade de me mover estar se tornando uma constante em
minha vida.
Recordava bem do rosto coberto de pintas, e talvez ainda tivesse o
contato em meu celular. Não conseguia lembrar do nome, eu provavelmente
me referindo a pessoa como gato do clube x ou contatinho número mil, mas
ainda estava bem fresco na minha memória sua insistência para sair comigo
pela segunda vez. Ele estava bloqueado no aparelho, e naquele momento,
gostaria de poder fazer o mesmo na vida real.
Meu nervosismo durou até lembrar de quem estava ao meu lado. O
homem nunca conseguiu chegar perto o suficiente para o abraço que ele
queria dar, Nickolay se pondo no meio de nós dois.
— O que pensa que está fazendo? — A mão tatuada se fechava na
camisa, a caveira parecendo amedrontadora.
Mas não para mim, nunca para mim. E quem precisava ter medo não
tinha, provavelmente desconhecendo o quanto deveria temer o homem que
amassava sua roupa. Não conseguia ver os olhos de Nickolay, mas pelos
outros pares que observavam a cena, entendia que não era algo bom que
estava prestes a acontecer.
Era engraçado como a maioria dos homens não sabia a hora de calar a
boca. Engraçado como era tão fácil ser julgada por algo que as duas partes
aproveitaram.
— Cara, Alana é pública. — Puxei o ar, por um instante me
perguntando se ainda existia alguma coisa que poderia ser dita para mudar a
visão que Nico tinha de mim. O chão era mais interessante com meu rosto
queimando, e eu repetia que meu rímel não era a prova d’água. — Deveria
saber das noites que essa putinha passou com São Paulo inteira antes de...
Era surpreendente a mesa não ter quebrado com a força que o italiano
usou. O ódio que via nele superava o dia da piscina, os olhos refletindo toda
a raiva que Nickolay usou ao bater a cabeça do homem contra a madeira. A
mão da caveira pressionava a bochecha contra a toalha maculada de sangue,
e era possível ver um ponto vermelho sujando a testa enrugada.
— Repete. — A voz nunca soou tão letal quanto agora, e o soco dado
entortou o nariz. — Repete o que falou. — No lugar de quem parecia estar
perto de encontrar a morte, eu nunca mais abriria a boca.
Ninguém se mexia, a maioria tratando a cena que acontecia como algo
que fazia parte do normal. Era surpreendente a falta de reação, assim como
era a minha inabilidade de ter uma que pudesse suavizar o que se passava
na minha frente.
Lembrava do dito semanas atrás, e me perguntei se aquela seria a
terceira pessoa que eu veria morrer. Se a morte se tornaria mais uma
constante em minha vida.
Só notei que os dedos estavam quebrados quando escutei o grito,
Nickolay parecendo destampar a boca apenas para ouvir o som, apenas para
testar se haveria alguma coragem ou loucura o suficiente em quem ele
torturava.
— Depois da mão — a mudança de entonação era quase cômica, a
pergunta saindo como se o italiano estivesse lhe dando opções como
escolher entre chocolate e baunilha. — Quer perder a boca, ou as bolas?
Talvez queira que termine de arrancar seu nariz. — E ele ignorava por
completo a necessidade de uma resposta, fazendo os gritos pararem ao
enfiar o guardanapo de tecido dentro da boca cheia de sangue. — Eu estou
me sentindo generoso hoje, então até te deixo escolher.
Óbvio que não houve uma resposta além do medo genuíno nos olhos
do homem que me agrediu de forma tão gratuita.
— A boca, então. — E por um segundo, tive a certeza de que Nickolay
sacaria a pistola e puxaria o gatilho. Ele já segurava a arma na mão.
A voz que o parou vinha de um homem mais velho, parecido demais
com o que era pressionado contra a toalha branca.
— Senhor DeLucca, ele não quis isso!
— Ele não quis o que? — E a raiva estava de volta, Nickolay
mostrando odiar ser interrompido por alguém que não fosse eu.
— Faltar com respeito!
— Por isso que chamou minha mulher de puta? — A mão esquerda
pressionava mais o rosto contra a mesa, e dava para sentir o terror nos olhos
que apareciam entre os dedos. — Isso é um elogio aqui no Brasil e eu não
sei?
— Ele é um moleque!
A justificativa pareceu deixá-lo ainda mais irritado, a voz saindo quase
gritada.
— Idade não tem relação com respeito!
O silêncio da parte de todos os outros reinava, Nickolay parecendo
precisar respirar fundo para voltar a ter um mínimo de calma.
— Olha para a minha mulher. — Ele enfatizou a palavra minha,
virando o rosto do homem para mim antes de rosnar as próximas palavras.
— Se algum dia se atrever a olhar para minha mulher novamente, eu vou
saber. E vai desejar ter nascido cego.
No segundo seguinte o italiano se afastava, limpando as mãos em um
guardanapo de pano antes de voltar para o meu lado.
— Saiam. Sua família não é mais bem vinda aqui — ele clarificou, por
mais que não devesse precisar, e esperou os dois homens se retirarem antes
de voltar a falar. — Mais alguém gostaria de dizer algo sobre minha mulher
antes de começarmos?
Os olhos escuros ainda não tinham parado em mim, e por um
momento, temi tê-lo envergonhado demais. Sim, eu tinha passado por
algumas boas camas nos meses antes de Nickolay, mas pelas palavras de
Lorenzo e pela ficha que havia achado, imaginava que ele ao menos
considerasse aquilo.
Eu sabia que imaginar era bem diferente de ter confirmado em voz alta
o fato de sua mulher ter vivido com a cama quente, justo na frente da máfia
que, ainda no carro, confirmei não aceitar bem comportamentos que fugiam
do tradicional.
Talvez estivesse imaginando demais, me tranquilizava.
— Eu teria atirado nas bolas. — O comentário veio com uma risada.
Ou talvez Nickolay fosse tão temido que pudesse fazer o que bem
quisesse, livre de julgamentos.
— Pelo menos! — E o clima de antes do acidente voltou como se nada
tivesse acontecido.
— E Lorenzo nunca mais pararia com o discurso sobre como as coisas
são feitas no Brasil. — A voz de Nickolay voltou a normal que usava com
seus homens, mas os olhos que acharam os meus me deixaram ver a
suavidade de sempre.
Nunca foi tão bom respirar aliviada. Ele não estava decepcionado, ou
bravo, ou qualquer coisa além de preocupado. E descobrir aquilo me fazia
querer fazer tudo que não podia, ou ao menos sabia não ser próprio para
onde estávamos.
Então me contentei em tomar o guardanapo das suas mãos e limpar o
ponto sujo de sangue que Nickolay havia esquecido de esfregar. Não me
importei com o silêncio que se fez, os olhos dele sendo a única coisa que
meu cérebro conseguia processar enquanto eu limpava sua testa.
Era orgulho que eu via ali? Orgulho, depois de alguém ter anunciado
para todos na sala que eu era uma vadia? Realizar que sim me deixava perto
demais das lágrimas.
— Grazie, bella. — Era ele quem agora beijava minhas mãos, como se
eu o ter limpado fosse algo de outro mundo. Demorou um segundo, mas o
sentimento que vi no seu rosto era suficiente para fazer qualquer aflição ir
embora. — Desculpe a bagunça, Gian — Nico disse, puxando uma cadeira
para mim.
A vida acontecia ao meu redor, mas meus olhos não conseguiam sair
do italiano. Nickolay ocupava o lugar ao meu lado enquanto dois atendentes
substituíam a toalha e recolhiam os talheres caídos e louças quebradas, e a
única coisa que conseguia ver era ele.
— Emília, a competição aqui é pesada! — escutei, ainda hipnotizada
por quem eu me atrevia a chamar de meu, os olhos escuros indo em direção
a voz.
— Sua mulher é como uma italiana de verdade, DeLucca! — O sorriso
que ele se deixou dar era muito próximo dos que só eu via. — Nem piscou!
Ainda tinha orgulho demais em seus olhos quando eles voltaram para
mim, a mão grande achando a minha por baixo da toalha limpa.
— Ela é.
A única coisa que consegui enxergar durante todo o jantar foi
Nickolay.

Minha antiga professora só se aproximou de nós no final da noite. Já


estávamos à espera do carro quando a loira apareceu, uma felicidade
forçada no rosto que eu adoraria estapear.
— Senhora Ferretti. — Foi Nickolay quem disse, a mão nunca saindo
da minha cintura. Eu pegava fogo com aquele simples toque, e por mais que
a mulher estivesse mais próxima do que gostaria, minha tensão passava
longe de ser por desconforto.
— Parabéns pelo noivado. — As palavras saíram tão falsas quanto
Emília era. Colocar-me entre ela e Nickolay foi inevitável, eu preferindo ter
qualquer proximidade com a cobra do que deixá-la se aproximar mais do
meu noivo. — Não precisa ter medo de mim, Alana.
Eu sabia que não. Esperava que o orgulho continuasse em Nico após
minhas palavras.
— Don Matarazzo perguntou se precisava dar um jeito em você. Eu
ainda não respondi. — Porque eu me orgulhava do tom calmo que usava
para falar aquilo, como se discutisse uma situação corriqueira. — Mas não
precisa ter medo de mim, Emília.
O escutei tentando conter uma risada antes mesmo da mulher se
afastar. A mão que achava minhas costas nuas por debaixo do casaco me
fazia suar mesmo no meio de um inverno chuvoso, a voz sussurrando em
meu ouvido não ajudando minha inquietação.
— Eu gosto de te ver possessiva — ele começou, a rouquidão que
usava fazendo eu me perguntar onde diabos estava a limusine. — Mas não
precisa ter ciúmes, bella. Depois de hoje, todos sabem que sou apenas seu.
Se Nickolay soubesse o quão perto eu estava de agarrá-lo no meio da
rua, ele pararia de sussurrar qualquer coisa no meu ouvido. Respirei fundo,
tentando focar em algo que não fosse arrancar sua roupa.
— Por que todos me olharam daquele jeito quando eu limpei você? —
Não tinha nada de sensual em sangue, e eu escolhi perguntar aquilo depois
de considerar o assunto por meros segundos.
Era raro vê-lo com dificuldade em achar palavras, a noite se tornando
memorável por tê-lo assim pela segunda vez.
— Isso que fez, limpar o sangue, Alana... — Esperava que na terceira
eu estivesse em cima dele. — As mulheres geralmente não participam dos
nossos jantares porque se incomodam com o sangue, com o que fazemos.
Elas sabem, mas boa parte escolhe fechar os olhos. Limpar sem hesitar é…
— Aprovação? — arrisquei, pela primeira vez, realizando que aquela
era a verdade.
Eu não desaprovava nada que havia ocorrido na noite.
— Podemos usar essa palavra, sim — ele pareceu desconfortável com
a afirmação, a limusine finalmente estacionando na nossa frente. — Me
desculpe por quebrar minha promessa — Nickolay continuou, segurando a
porta aberta para mim.
Os segundos nunca passaram tão devagar, e eu já apertava o botão que
nos isolava de Matteo quando o italiano se sentou ao meu lado. A janela
preta havia terminado de subir, e vi meu italiano franzir a testa, a expressão
preocupada. Contive uma risada, me perguntando se ele achava que
estávamos prestes a brigar, a voz continuando numa entonação que soava
como um pedido de desculpas.
— Alguém te desrespeitar foi a primeira coisa que aconteceu.
— Vai entrar mais alguém na limusine? — O corpo dele já tinha ficado
tempo demais longe do meu.
— Não, dolcezza. Mas me deixe...
Subi em seu colo assim que ele respondeu, Nickolay mal tendo tempo
de fechar a porta antes de eu abrir seu cinto. Era irritante como as mãos dele
pareciam confusas, eu precisando delas em mim, as duas preferindo
repousarem no estofado enquanto o homem gemia na minha boca.
— Te senti tensa até agora, Alana — ele se separou dos meus lábios
tempo suficiente para dizer, Nickolay provando nunca ter me lido de forma
tão errada.
Fazia sentido ele pensar que eu estava com medo. Que minhas mãos
inquietas, meus punhos cerrados, meu cruzar e descruzar de pernas poderia
ser nervosismo. Era tão mínimo, mas sabia que Nico prestava atenção em
tudo. Depois do ocorrido naquela noite, muito mais.
— Eu estou — respondi, me apoiando com uma mão em seu peito, a
outra achando o pouco tecido que usava por baixo do vestido. — Muito
tensa.
Ele não viu a calcinha que parou no chão, ainda tentando entender o
que acontecia enquanto eu bagunçava os cabelos antes impecáveis. As mãos
grandes finalmente me acharam quando mordi seu lábio inferior, os dedos
agarrando meus quadris.
— Não está com medo? — Era a primeira vez que revirava os olhos
em cima dele, assim como era a primeira vez que precisava fazer com que
ele me tocasse. — De mim, do que eu faço? Do que eu fiz?
— Parece que eu tô com medo, Nico? — E puxei a caveira para o
meio das minhas pernas, fechando os olhos ao finalmente ter seu toque
onde precisava.
As pupilas ficaram escuras, Nickolay descendo o olhar até onde sua
mão se mexia. A mandíbula estava travada, o foco na fenda do vestido, ele
acariciando minha coxa com as pontas dos dedos, eu roçando meu sexo
contra os que descobriam o quão pronta já estava para recebe-lo.
— No. Não está com medo. — Soltei um gemido rouco quando senti
seu anular me invadir, meus quadris imitando o que queria fazer em outra
parte dele ainda muito coberta. — Mas talvez devesse. — Veio com um
sorriso que fazia as melhores promessas sem usar palavras. — Me mostra o
quanto quer isso, Alana. Eu quero ver.
Não tinha como desobedecer a aquela ordem. Ele me fez suspirar
satisfeita ao introduzir um segundo dedo, as pontas batendo exatamente
onde eu precisava, e a última coisa que eu queria era gozar quieta.
Duvidava que Matteo não estivesse ouvindo o que acontecia, morder os
lábios não adiantando para calar tudo que Nickolay fazia com meu corpo, o
que eu fazia com o pouco dele que ganhava.
O italiano não se importava — eu muito menos — e pensei que talvez
nem mesmo teria ligado se tivesse deixado toda a vizinhança me ouvir na
primeira vez que aproveitamos um carro. Os olhos estavam atentos a todos
os meus movimentos, a mão direita contornando meus seios com mais
suavidade que meu corpo tinha se acostumado a querer. Ele molhava os
lábios grossos e eu espalmava as mãos em seu peito, Nickolay me
observando com uma calma tão letal quanto a usada mais cedo.
Letal, porque ele iria acabar comigo, eu sabia. O homem me assistia
com toda a paciência do mundo conseguir o alívio que necessitava,
parecendo prometer em silêncio que, assim que eu gritasse, seria sua vez de
me destruir para conseguir o dele.
Só que a destruição que vinha de Nickolay eu aceitava de braços
abertos. Ansiava pelas tatuagens me arruinarem ainda mais, seu toque
sendo a escuridão que eu amava, e ainda assim, toda a minha luz. Não me
importava mais estar presa ao homem, eu já não querendo mais escapar dos
seus braços.
Estava ofegante, o casaco escorregando pelos ombros, ele
pressionando mais forte o dedão exatamente onde eu precisava. Gritei
contra a mão que tapou minha boca, mordendo a pele calejada da palma ao
sentir a pressão que conhecia tão bem. Fechei os olhos, meus dedos
torcendo o tecido da camisa, o orgasmo correndo por todo meu corpo, me
castigando por tanto tempo de ausência.
Caí contra seu peito, a sensibilidade tomando conta da pele, a
antecipação ao senti-lo tão duro embaixo de mim fazendo meu coração
triplicar as batidas. Ele me deixava vazia ao retirar seus dedos, se
esfregando devagar, sua ereção pulsando contra minha pele sensível me
lembrando de uma forma deliciosa que mal havíamos começado.
— Impossível esperar chegar em casa depois de te ver gozar fodendo
meus dedos. — Nickolay reclamou baixo, as mãos indo para o zíper, um
suspiro aliviado vindo ao se libertar do tecido. — Cazzo Alana, come sei
bagnata[80]. Quando? — A pergunta veio com ele agarrando meus quadris,
as mãos firmes me deslizando por toda sua extensão, molhando todo seu
pau. — Quando ficou assim pra mim?
Era tão fácil responder aquilo.
— Quando eu te olhei, depois que limpei você. — Me deixei gemer
contra sua boca antes de continuar. — Na vinda pra cá, te vendo parado na
escada. — Minha voz se tornou chorosa, eu não entendendo como aquele
homem ainda conseguia conter sua pressa. — Todos os dias que você não
quis tirar minha roupa, Nickolay, por favor… — escapou antes que me
desse conta, ele me impedindo de descer, a cabeça provocando minha
entrada. — Por favor, por favor…
A mão que segurava minha nuca era possessiva, os dedos subindo
pelos cabelos levando meus olhos de volta para os dele.
— Por favor o que? O que quer, Alana? — ele perguntou ao mesmo
tempo em que deixou a cabeça entrar, apenas para tirá-la. Filho da mãe,
Nickolay realmente me faria implorar, e eu estava pronta para suplicar o
que ele quisesse.
— Eu quero que você me foda. — Foi o suficiente para ele.
Não soube ser quieta ao senti-lo me penetrar, só agora entendendo o
quanto meu corpo gritava fazia dias por aquela conexão. Eu negava
qualquer suavidade ao agarrá-lo pelos cabelos, ele copiando minha
indelicadeza, obedecendo bem demais meu pedido ao se enterrar por inteiro
em mim, outra e outra vez.
— Vão nos ouvir! — tentei avisar, minha voz ofegante, a dele
negando-se a ser silenciosa. Ele me preenchia com estocadas fortes, e eu
mal conseguia achar as palavras. — Vão nos ouvir, Nico...
— Acha que me importo?
Nickolay mostrou as palavras serem verdadeiras ao se deixar gemer
mais alto, e a última coisa que eu pensava era em como a rua inteira
escutava o que o italiano fazia comigo. Ele me dava todo o descontrole que
tão poucas vezes me deixava ver, as mãos ásperas agarrando minha pele
com vontade, os dentes me fazendo arfar ao acharem o bico do meu seio,
meus olhos existindo apenas para seus detalhes.
Desisti de abafar meus gritos, o silêncio sendo impossível ao senti-lo
tão fundo. A necessidade crua que nos consumia precisava de sons, e os que
enchiam o carro bastavam para me fazer esquecer qualquer coisa que não o
italiano. O jeito que meu sexo roçava contra ele tornava desnecessário seus
dedos, assim como a velocidade que nos deixava suados seria o suficiente
para me fazer gozar em segundos.
Eu estava apaixonada pelo descontrole que me tirava o ar. Agarrei a
camisa branca, o calor subindo por todo o corpo, o orgasmo sufocando
minha voz. O tamanho de Nickolay era demais quando gozava tão forte, ele
me descendo uma última vez antes de se perder comigo. As mãos
seguravam minha bunda com força, os dedos afundando na pele, os dentes
deixando uma marca na curva do meu seio, ele gemendo contra minha pele
enquanto se esvaziava dentro de mim.
O líquido quente escorria pelas minhas coxas e lambuzava a calça
social, mas nenhum dos dois se importava com o jeito que estávamos
arruinados demais para sair do carro. A limusine cheirava a sexo, e quando
levantei a cabeça para ver melhor o estrago que havíamos feito, Nickolay
me olhava com um meio sorriso que traduzia satisfação.
— Você vai me matar, Alana. — Mas aquilo passava longe de uma
reclamação. — Você vai me matar. De onde veio toda essa vontade? — Ele
me roubou um beijo preguiçoso. — Não que eu esteja reclamando, me fez
gozar forte o suficiente pra esquecer que tem alguém dirigindo.
Tive que rir ao perceber detalhes tão pequenos.
— Você? Pra? — Mexer os quadris nos deixou ofegantes, ele ainda
duro demais dentro de mim. — Tá falando que nem eu, agora?
— É a convivência, dolcezza. Obrigado por você ter esperado até
depois do jantar pra acabar comigo. — As mãos grandes nos mantinham
juntos, as semanas sem sexo fazendo o menor dos toques me deixar pronta
para mais. — O que te deixou tão safada? — ele perguntava, como se eu
fosse a parte perigosa da relação. — Eu preciso saber pra repetir mais
vezes.
Encostei a testa na dele, tentando conseguir alguma coerência de volta.
— Você. — Era a verdade. — É sempre você — confessei, envolvendo
o rosto suado com minhas mãos e ganhando o sorriso que sempre me
derretia. — Eu não queria precisar ser defendida, Nickolay. Mas obrigada.
— Passei uma mão pelos fios úmidos, tão escuros quanto a noite lá fora. —
Por me defender enquanto eu ainda não consigo.
Ele me olhava com uma expressão bonita demais, as mãos saindo da
minha pele e finalmente abaixando as alças do meu vestido. Me ver
seminua surtiu o melhor dos efeitos, sua boca me incentivando a começar
um ritmo lento ao sugar preguiçosa o seio que antes havia marcado.
— Sabe que eu te defendo numa base diária, não sabe? — O italiano
me lembrou, a língua que passava pela pele sensível fazendo minha voz sair
chorosa.
— Você não tem jeito, italiano — suspirei, nossos olhos voltando a se
achar.
O homem embaixo de mim fazia coisas demais com a alma, pelo
menos comigo. A forma que se expressava, sempre tão verdadeira, o jeito
que seus toques viviam traduzindo seu silêncio. Ao me observar, eu
reconhecia uma adoração que fazia meu coração pular uma batida, e abri a
boca antes que me desse conta.
— Eu não quero mais ser hipócrita, Nickolay. Você disse que as
mulheres não gostam do sangue, mas eu não quero ser assim. Se aceito a
segurança que você me dá, também aceito o que você faz. — Lhe dei toda
minha sinceridade, cada palavra me fazendo entender mais o sentimento
que tinha no peito. — Posso nem sempre concordar, mas eu aceito, Nico.
Eu aceito tudo que vejo em você, italiano. — A descrença que vi nele
também fez meu peito apertar, como se o que eu falasse fosse algo
impossível de acreditar. — Eu aceito você, por inteiro.
Amava como aquele rosto se transformava quando estávamos só nós
dois. Amava o jeito que ele me deixava ver cada emoção, cada maldito
sentimento. O homem me mostrava o quanto as palavras haviam mexido
com ele em cada toque. No jeito que me puxava pela cintura, na forma que
se marcava na minha pele, nos beijos, ao gemer meu nome, tirando e
devolvendo minha paz.
E eu amava vê-lo se desfazer embaixo de mim, do mesmo jeito que
amava todas as formas que as mãos que acariciavam traziam proteção. Já
encostada em seu peito, nós dois suando por mais que fizesse menos de dez
graus do lado de fora, descobria querer por inteiro o coração que batia
acelerado contra o meu. Os dedos tatuados passavam pelo meu rosto, os
lábios achando todas as partes do meu corpo que alcançavam, e eu chegava
à conclusão que aceitava e queria tanto o que tinha agora quanto o que
presenciara mais cedo.
Eu queria Nickolay, e todas as faces que ele me deixava ver.

O barulho do mar era diferente naquela praia. As ondas que batiam


na pedra ecoavam de uma forma única, o som das gaivotas sendo engolido
pela água.
O grito que deveria ter escapado dos lábios abertos também foi
engolido pela água, pensei. Quando me virei, vi que a tia Catarina tinha
caído em cima dos tomates, eles tendo explodido debaixo do seu queixo e
sujando tudo de vermelho.
Stella estava chorando, e mamãe a pegava nos braços. Por que ela
não ajudava a tia a se levantar?
Tinha um cheiro de metal que se misturava com o de mar naquela
quinta-feira, mas eu ignorei, indo para perto das mulheres. Era minoria ali,
mas me confortava com Stella sempre parando de chorar quando me
escutava cantar. Adorava cantar, e mamãe sempre dizia que minha voz
tinha o poder de deixar tudo melhor.
Mamãe se colocou entre mim e a tia Catarina quando cheguei perto
dos tomates. Escutei a voz de um homem, mas não conseguia entender
nenhuma palavra que ele falava. Como mamãe conseguia entender aquilo?
— Mama! Mama, por que...
Parei de falar quando o homem segurou minha camiseta, minha mãe o
empurrando para longe antes de responder, e novamente ouvia palavras
que eu não entendia. Tentei olhar para cima e tive os olhos cobertos, o
cheiro doce de maçãs que ela sempre tinha apagando os outros.
Sentia meu coração bater rápido demais, a água do mar sendo a única
coisa que mantinha minha calma no escuro. Quando a mão saiu da frente
dos meus olhos, encontrei os coloridos na minha altura.
Eu nunca gostava quando mamãe chorava.
— Kolya, segura ela. — Ela me entregou Stella, e eu fiz que não com a
cabeça.
Sempre me falavam para deixar Stella no carrinho, por mais que eu
soubesse que era grande o bastante para carregá-la no colo. Mas ela não
me deixava olhar para onde deveria estar a tia Catarina, as mãos frias
prendendo meu rosto perto do dela.
— Mama, não!
— Segura forte, ok? Não deixa ela cair. — E eu não entendia por que
tinha tantas lágrimas saindo dos seus olhos, nem porque isso me fazia
chorar igual. — Eu te amo, meu menino. Não esquece disso, promete? —
Ela me virou e me sentou na areia, a água fria molhando minha roupa.
Mamãe não me deixou virar a cabeça.
— Não olha mais para mim, olha para ela. Olha para Stella, Kolya.
E eu obedeci.
— Brilha brilha, estrelinha... — Mas as palavras doíam para sair. Os
olhos grandes de Stella tinham tantas lágrimas quanto os meus, e era difícil
me forçar a parar de chorar com todos ao meu redor fazendo o mesmo.
Papai sempre dizia que filho dele não chorava, e eu tive vergonha de
soluçar quando escutei o tiro. O barulho era mais alto que o das ondas
contra as rochas, mais alto do que os gritos agudos que não paravam.
Apertei forte os olhos, abraçando a escuridão. Era difícil chorar de
olhos fechados. Eu conseguia parar. Eu não iria mais chorar.
Chorar não iria trazer nada de volta.
— Está tudo bem. — Não estava, mas me enganava que ficaria,
embrulhando Stella no meu casaco, por mais que ficasse com frio. — Não
precisa ter medo, dolcezza. Eu te seguro.

O suor na testa grudava os fios de cabelo contra minha pele. Os


cabelos molhados foi a primeira coisa que senti ao acordar, o sonho se
perdendo no meio dos tremores que corriam meu corpo.
Abri os olhos, o quarto completamente escuro denunciando que ainda
era madrugada. Não estava tão frio para eu tremer a ponto dos meus dentes
baterem, os movimentos acordando quem dormia nos meus braços.
— Nico? — Alana ainda estava sonolenta, os olhos mal abertos
achando os meus. — O que foi?
— Acho... — Minha garganta queimava, meu corpo doendo como se
tivesse levado a pior das surras. — Que estou doente. — Mal consegui falar
antes de me virar e começar a tossir.
A mão na minha testa era quente e bem-vinda, a outra passando pelos
fios úmidos. Sentia a cama inteira úmida, o quanto tinha suado?
— Cê tá ardendo! — Ela soava preocupada demais, a luminária sobre
sua mesa de cabeceira acendendo. — O que você tá sentindo?
— Frio. — Fechei os olhos, ela me cobrindo com o edredom até o
pescoço. — Dor no corpo. — Mas eu queria me levantar. — Cazzo.
Não que parecesse que fosse conseguir fazer alguma coisa no estado
em que estava, todos os xingamentos que conhecia correndo na minha
cabeça e mal saindo dos meus lábios. Quando foi a última vez que peguei
alguma coisa?
— Ei, ei, ei! — Alana me empurrava de volta para o colchão, e era
ridículo como a mão pequena tinha mais força do que eu. — Para de se
forçar, Nickolay! — Ridículo como mal conseguia achar energia para
contestar, o travesseiro e o calor de Alana me servindo de consolo. —
Deitado, mocinho. Eu já volto.
Quando a mão voltou para mim, Alana me entregava comprimidos e
um copo com água. Conseguia ver Lorenzo pela porta entreaberta antes de
ser obrigado a abrir a boca.
— Engole. — Tão mandona.
— Alana… — Eu não tomo remédios, e não estou pronto para falar
sobre isso, pensei em responder.
Mas não era como se eu tivesse capacidade de contestar qualquer coisa
que ela mandasse. Parecia que só tinha capacidade de continuar tremendo, o
edredom novamente ao meu redor, dessa vez junto dos braços dela.
— Obrigado.
Não conseguia reclamar de seus cuidados.
— Tenho tanto para fazer hoje.
— Um dia de folga não vai te matar. Pode dormir, Nico. — Ela tirou
os cabelos molhados do meu rosto. — Eu cuido de você.
Não, não conseguia reclamar daquilo.

Quando abri os olhos outra vez, o sol já entrava pela janela do quarto.
Alana estava sentada ao meu lado, o celular nas mãos. O relógio mostrando
onze e meia me dizia que ela tinha ignorado o dia de aula, eu querendo dar
uma bronca e me enrolar para sempre nela.
— Está com fome? — A mulher mal me deu tempo de responder antes
de emendar. — Você precisa comer alguma coisa, italiano. Não me venha
com desculpinhas, ouviu?
Tão, tão mandona.
— Claro, o que a senhora mandar. — O deboche fez os olhos mel
estreitarem, antes da dona sair da cama.
Ela pareceu feliz demais ao descer para pegar seja lá o que fosse me
obrigar a comer, eu só tendo força o suficiente para chegar até o banheiro.
Lavando o rosto, tentei tirar com pasta de dente o gosto de gripe na boca,
assim como percebi que as memórias do sonho tinham se esvaído por
completo.
Odiava sonhar com o dia que arruinou minha vida, na cabeça, apenas a
lembrança do barulho do mar indicando que a noite havia sido ruim. O
pesadelo parecia sempre vir me atormentar antes da vida me tirar mais, eu o
considerando um mau agouro que não conseguia eliminar.
Sacudi a cabeça, não querendo pensar no que poderia dar errado além
da gripe pega justo no dia em que teria uma janta com Dimitri. Lorenzo
teria que fazer a reunião sozinho, eu duvidando que manteria muita
distância da cama naquela sexta.
Respirei fundo — pela boca — e tentei ignorar a dor que ainda tomava
conta do corpo. As olheiras me davam a aparência de fraco, e era ridículo
como o frio me obrigava a vestir um roupão, apesar da casa aquecida.
Mas mesmo acabado, sorri ao voltar para o quarto, sobre a cama uma
bandeja com a combinação de comidas mais aleatória que já havia visto.
Alana me esperava ao lado de tudo aquilo, um pão de queijo já em sua mão,
parecendo orgulhosa do almoço preparado.
Ela me olhando apreensiva antes de eu colocar a primeira colher de
sopa na boca era engraçado. Eu não fazia ideia do que era aquilo, e
agradecia não conseguir sentir o gosto de quase nada quando coloquei o
líquido contra a língua.
— Está gostoso? — Poderia contar apenas aquela mentira para ela, e
fiz que sim com a cabeça. — Eu que fiz! É borsht!
Era um gesto tão pequeno, mas sem dúvida a coisa mais doce que
ganhei desde a morte da minha mãe. Aquele era o pior borsht que já comi
na vida, e ao mesmo tempo, a melhor sopa de beterraba que já haviam me
preparado.
Quando voltei a olhá-la, Alana me observava mais desconfiada do que
deveria, provando a sopa pela talvez primeira vez. Sacudi a cabeça quando
a vi fazer uma careta, as mãos pequenas levando a tigela para longe de
mim, ela me entregando o sanduíche que deveria ser de atum.
— Ai meu Deus, para de comer! — Ri, pensando que adoraria ensiná-
la as receitas que sabia. — Por que você deu mais de uma colherada nisso?
— Porque eu te amo, dolcezza. — Saiu muito mais natural do que eu
esperava, e decidi que poderia passar o dia repetindo meus sentimentos se
apenas ouvi-los tivesse o poder de fazê-la sorrir daquele jeito.
Ela era tão boa em me enganar com a normalidade que me fazia sentir.
Ela me fazia sentir tanto. Engoli o que tinha na boca, o sanduíche tendo
mais gosto do que esperava, e me deixei apreciar a cena ao meu redor por
um minuto.
— Casa comigo, Alana. — Aquela mulher sempre conseguia arrancar
tudo que deveria ficar guardado em mim. — Finge que sou um homem
normal te pedindo, que nós podemos ter uma vida normal. Que eu vou
guardar papéis, e não armas. Finge, só por agora, só por um minuto, e me
responde se...
Seus braços estavam ao meu redor, sua boca na minha, antes que
pudesse terminar a frase. Sempre derretia contra seus carinhos, Alana me
fazendo redescobrir como era bom poder ter um dia de fraqueza. Não a
queria doente, mas ao mesmo tempo sabia que nunca a afastaria. O poder de
fazer tal havia desaparecido fazia tempo.
— Eu caso, italiano. — As mãos no meu rosto prendiam meus olhos
nos dela, eu tocando o único anel que havia ali ao cobri-las com minhas
tatuadas. — Falei que te aceito, não falei? Eu me caso com todas as suas
faces, Nickolay. E eu digo sim porque quero dizer, não importa o que você
estiver guardando.
Eu nunca entendia como Alana acabava no meu colo, os lábios dela
sempre tirando a capacidade de me concentrar em algo que não fosse seu
gosto. A tarde passava comigo cochilando em seus braços, ela vendo um
filme qualquer no laptop enquanto passava os dedos pelos meus cabelos.
Sim, poderia me acostumar com uma vida assim, e me lembrei das
palavras de Matarazzo na quinta onde tudo começou a dar errado. Eu queria
aquilo, mas duvidava que fosse ganhar minha liberdade enquanto vivo. Já
estava fundo demais no buraco dele para sair ao me casar com sua filha, eu
agora mal vendo o céu quando longe de Alana.
— Nico? — ela chamou minha atenção, os créditos subindo, eu tendo
visto poucas partes da comédia que me deixou ouvir sua risada durante
última hora.
— Si, bella? — Odiava como minha voz soava fraca.
— Eu nunca perguntei direito o que você faz aqui no Brasil. — A
curiosidade fez eu me sentar, Alana se mostrando aberta a falar sobre meu
trabalho pela primeira vez desde nossa nova paz. Ela considerou por alguns
segundos antes de continuar. — Você pode me falar isso?
— Por mais que não queira, posso te falar tudo que quiser saber,
dolcezza. Basta perguntar. — Estudei seus olhos por um momento. — Quer
mesmo saber? — Ela sinalizar que sim com a cabeça me fez continuar. —
Vim achar a filha de Matarazzo. Esse é meu principal trabalho aqui.
— Ele tem outra filha?
— Si. É meia-irmã de Giovanna. — E o nome da minha amiga pela
primeira vez saiu muito menos amargo dos meus lábios. — A menina é
alguns anos mais nova. É a filha dele com sua última esposa, Catarina.
Catarina foi assassinada, mas não acharam a criança junto dela. Ninguém
sabe o que aconteceu.
Ela pareceu considerar antes de soltar a próxima pergunta.
— Isso tem relação com o tiro que você tomou no ombro? — A
pergunta veio natural, assim como minha resposta.
— Tem e não tem. O tiro veio de uma Famiglia espanhola, se é isso
que quer saber — expliquei, o desconforto rápido que vi não passando
despercebido, a mão dela que ainda curava procurando o machucado que já
era uma cicatriz. — Mas a morte de Catarina, tudo indica que não. A
mulher era para ter se casado com um dos capos da família dos Barbosa.
Ela não quis.
— Porque os casamentos funcionam diferente nas famílias, certo?
— O homem era violento — revelei o que sabia, a testa de Alana
franzindo. — Muitos casamentos por contrato têm essa característica, ou
pelo menos tinham, naquela época. O dela era um, e Catarina fugiu para a
Itália. Matarazzo se apaixonou pela mulher, e resolveu assumir a briga. Eles
se casaram, e em poucos meses tinha um bebê na história. Os espanhóis
descobriram, mas não pareceram se importar.
— Até o dia que mataram a mulher? — Ela logo se corrigiu. — Mas
você disse que não foram eles, certo?
— Eles não mataram Catarina, não. Mas mataram Giovanna e Nicolas.
— O carinho era tão suave, mas me confortava de um jeito que jamais
imaginaria poder acontecer. Alana e seu poder sobre meus sentimentos. —
A menina tem pouco mais que a sua idade. Eu tinha acabado de fazer seis
anos quando aconteceu, foi um pouco antes de mamãe. Mas na época que o
bebê sumiu, Vincenzo tinha certeza de que a máfia espanhola era culpada.
A rivalidade é sempre perigosa. — Apoiei o rosto contra a mão que
acariciava, a puxando para mim. — É o que matou toda a minha família.
O que escutei conseguiu fazer o resto do frio que sentia desaparecer.
— Eu não estou morta, Nico.
Alana estava no banho quando Lorenzo apareceu.
— Veio ver se eu já morri? — Estava doente, e muito mais bem-
humorado que o normal.
— Quanto drama, moleque. — O mais velho devolvia minha risada,
apoiando-se na cômoda ao lado da porta. — Vejo que a ragazza te mima
mais do que eu. — Ele apontou para os doces que haviam sobrado na mesa
de cabeceira.
— Fale logo o que quer e me deixe dormir, Mantovanni.
— Dormir, claro. — E o deboche continuava, eu não tendo qualquer
respeito dele quando doente. Os olhos claros perderem a diversão me fez
antecipar que eu preferia o deboche. — Sonhou com a praia outra vez,
Nico? — Tinha preocupação ali, ele me deixando ver o sentimento bem
demais.
— Como sabe?
— Está doente. Sempre sonha com o cazzo desse dia quando está mal,
Nickolay. — O homem respondeu, mais uma vez mostrando o quanto eu
deveria aceitá-lo como pai, ao invés de viver buscando a aprovação
estúpida de um morto.
Sacudi a cabeça. Não, aquilo estava errado: eu não buscava por mais
nenhuma aprovação. Não depois de ter a dela.
— E sempre acordo com apenas o barulho do mar. É ele quem te
manda perguntar essas coisas? — Eu era injusto, Lorenzo jogando certeiro
na minha cabeça a bola de meia que havia sobre a cômoda.
— Matarazzo nem sabe que você estava presente na tarde que
perdemos Katerina, moleque! — Ele soava verdadeiramente irritado, indo
para a frente da cama. — A febre queimou os últimos neurônios que
restaram aí dentro? — E eu queria jogar a meia de volta, mas a tosse que
veio me impediu de qualquer outra ação. — Falou dessa tarde para ele,
Nickolay?
— Como se o Don fosse ter interesse pela tarde que perdi minha mãe.
— E tossi mais, porque era uma das únicas coisas que conseguia fazer
naquele dia.
A porta do banheiro abriu, a mulher muito menor que nós dois nos
encarando desconfiada.
— Se veio tentar arrastar meu noivo pra qualquer jantarzinho de
negócios, vai ter que passar por cima de mim. — Alana cruzou os braços, a
firmeza que havia em seu rosto fazendo nós dois acreditar que passar por
ela seria uma tarefa longe de fácil.
Lorenzo testava demais a sorte ao rir dela, e a meia que eu quis jogar
foi arremessada pelas mãos pequenas, a pontaria dela muito melhor do que
em nosso começo.
Já estava quase dormindo quando Alana voltou a tocar no assunto de
mais cedo.
— Será que ela quer ser achada? A mulher que vocês procuram. — Ela
deixava minhas mãos geladas esquentarem na sua pele quente.
— Eu não sei. Não gostaria de ser, no lugar dela. — Fui sincero. —
Gostaria de uma vida cercada de seguranças? — perguntei, apenas depois
das palavras saírem realizando que essa vida já era dela.
Mas Alana me deixou ver que não se importava com o fato, apertando
mais os braços ao meu redor.
— Desde que um deles seja você.

— Mama, não!
— Segure forte, ok? Não deixa ela cair.
Mãe.
— Eu te amo, meu menino.
Ela parecia tão conformada com a morte.
— Não olha mais pra mim, olha pra ela. Olha pra Stella, Kolya.
Eu estava junto de Catarina. Mamãe estava junto.
— Brilha brilha, estrelinha.
Elas eram melhores amigas. A Santa Catarina. Minha mãe a chamava
de irmã de alma, e ela estava morta no chão de areia.
E eu olhava para Stella e não conseguia cantar. Eu não conseguia
falar, não conseguia parar de chorar. E os olhos grandes tinham tantas
lágrimas quanto os meus.
Papai sempre dizia que filho dele não chorava, e eu iria fazer as
lágrimas pararem. O barulho do tiro foi mais alto que o das ondas contra
as rochas, mais alto do que o choro agudo do bebê embaixo de mim.
Stella estava tão vermelha, e então azul, e eu não iria mais chorar.
— Está tudo bem. — E eu a embrulhei com o meu casaco, por mais
que ficasse com frio. — Não precisa ter medo, dolcezza. Eu te seguro.
Chorar não iria trazer nada de volta. Stella compartilhava da mesma
opinião.
— Nico? — A voz que me chamava era mais conhecida do que eu
gostaria de admitir. — Nickolay, solta! — Mãos tatuadas puxavam meus
braços com força suficiente para machucar. — Meu Deus. Mantovanni, vem
logo!
Mas eu não podia soltar Stella. Mamãe disse para não soltar.
— O que o moleque fez?
Por que queriam tirá-la de mim? Ela finalmente tinha parado, e eu
segurei mais forte quando tentaram abrir meus braços.
— Ah, Nickolay…
Quando abri os olhos, os de papai me encaravam, vermelhos e
assustados. Não tinha mais a quentura que eu sempre ganhava quando
estava mal.
— Victor está em casa?
Foi então que eu olhei para baixo, e finalmente entendi.
— Bata na cabeça, e torça para o moleque não lembrar disso.
Conseguimos dar um jeito no resto, Armando.
Até minutos atrás, Stella não parava de chorar, por mais que eu a
segurasse como mamãe havia mandado.
— Nico? Filho, olhe para frente.
E agora, eu só ouvia o barulho do mar.

Me levantei com todo o cuidado que consegui reunir, desenrolando


Alana de mim e rezando para seus olhos continuarem fechados. Eu tremia,
mas estava longe de ser febre o motivo, minha mão na maçaneta antes que
pudesse pensar.
A realidade que o pesadelo havia me dado era a pior possível.
— Nico?
Não pedi permissão para entrar, e o homem mais velho parecia já saber
o que seria discutido. Por um minuto, tentei achar algo em sua expressão,
em seus olhos, que me fizesse ver que minha certeza não tinha nenhum
fundamento. Que tudo aquilo não passava de um delírio febril. Era
desesperador não achar nada além da confirmação dos meus medos.
— Todos esses anos, Mantovanni. — A voz era tão amarga quanto o
gosto que carregava na boca. — Todos esses anos, e eu procurando uma
mulher morta.
— Nickolay...
— E você sabia! Estava lá quando aconteceu! Sabia que Stella estava
morta, Lorenzo! — E ele não negava, os azuis indo para baixo com nova
vergonha me dando a certeza de que o visto em sonho não era fruto de
minha imaginação. — E sabia que fui eu quem a matei.

Acordava com seus beijos e dormia com seus carinhos. Por mais que
um carro seguindo o meu tivesse se tornado uma constante na minha vida
— nas poucas vezes que agora dirigia sozinha — eu não me importava com
a segurança adicional que Nickolay fazia questão de me dar. O jeito que nos
entendíamos depois da noite do jantar beirava a perfeição.
Tudo que era perfeito sempre fazia uma voz dentro de mim gritar erro.
Sabia que havia algo de errado assim que coloquei meus olhos nele naquela
manhã, Nico ainda com uma aparência mais cansada do que havia me
acostumado a ver. Vê-lo tão fraco era um pouco assustador, ser a pessoa que
ele escolhia para ser vulnerável ao lado, quase absurdo.
Mas eu podia protegê-lo o suficiente de Lorenzo, em quem me atrevi a
jogar uma meia na noite passada. Queria salvá-lo dos pesadelos que notei
que ele também tinha, Nickolay já de olhos fechados sussurrando palavras
que eu não entendia, mas eram quebradas demais para virem de qualquer
coisa boa.
No primeiro minuto, me enganei ser isso. Ele estava acabado, e eu
conseguiria melhorar tudo com a péssima comida que o italiano tinha
gostado por milagre. Mas não existiam muitos milagres na minha vida, o
que me fazia reconsiderar o comportamento que via.
Era engraçado como, depois de um tempo juntos, aprendíamos a
identificar as pequenas coisas. Nickolay nunca deixava os olhos no teto
quando na cama comigo, assim como as mãos sempre estavam em mim, e
não descansando atrás da sua cabeça.
Estava se sentindo mal? Ainda tinha febre? As olheiras que ele
carregava faziam meu coração apertar.
— O que foi? — Ele nem mesmo tinha percebido que meus olhos
estavam abertos até eu abrir a boca, o pensamento longe demais.
Aquilo não podia ser bom.
— Só estou cansado, dolcezza.
Foram poucas as vezes que ele me deixou vê-lo fisicamente exausto, e
era quase engraçado o quanto Nickolay mostrava precisar de mim quando
assim. As mãos sempre me tocavam, ele manhoso me pedindo carinho com
seu corpo. Em menos de seis meses, eu sabia bem quando o italiano estava
cansado.
Aquilo não era apenas cansaço.
Levantei a cabeça do seu peito, deixando minha mão achar sua testa e
confirmar que a febre realmente havia baixado antes de afirmar.
— Você tá nervoso. — E os olhos, finalmente nos meus, me contaram
tudo.
Não era bom estar certa. Não era bom Nickolay me confirmando que
eu estava certa.
— Não fale isso perto de ninguém. — E um bloco de gelo pareceu se
materializar no meu estômago.
— Você tá? — A vez que o vi mais próximo de perder o controle havia
sido no dia em que eu quase perdi o meu, apenas de toalha no meio de um
corredor. — Nico, por quê?
Ainda não chegava perto do que eu via agora. As mãos dele eram
estáveis demais para tremerem tanto, e ter toda a minha estabilidade
chacoalhando provocava as piores sensações. O que poderia ter acontecido
de tão ruim enquanto eu dormia? Eu tinha fechado os olhos por menos de
seis horas!
— Está tudo bem, dolcezza. — Não estava, e ele se deixou ler muito
bem, a expressão não condizente com as palavras na voz calma. A testa
franzida, o olhar perdido, as mãos inquietas. Ele nunca estralava os dedos,
nunca rodava os tantos anéis que usava. — Mas vamos ter que partir. —
Nickolay até parecia doente, mas eu que parecia estar delirando ao escutar a
próxima frase. — Arrume tudo, se despeça de sua mãe...
— O que?
— Faça uma mala, só com o que precisar.
— Nico, o que tá acontecendo?
— Vamos ter novos passaportes, outro nome. — O italiano vomitava
as informações em cima de mim, tocando meu braço num carinho, pedindo
desculpas por algo que eu ainda não sabia. — Então não se dê o trabalho de
procurar o seu, nós...
E não saber o que deixava justo aquele homem com medo era
desesperador.
— Nickolay! — Minha voz era desesperada, mas o medo fazia o som
sair num sussurro. O segurei pelos braços, tentando fazê-lo parar de falar
para conseguir alguma coerência em suas ordens.
Ele retribuiu o gesto.
— Eu preciso que não discuta, Alana! — Não tinha como não revirar
os olhos.
— E eu preciso saber que merda que tá acontecendo!
Aquilo calá-lo ao invés de ativar seu mau temperamento fazia meu
estômago revirar. A voz saindo mais baixa que a minha demonstrava o que
eu temia: o homem mais intimidador que eu conhecia estava apavorado.
Não conseguia nem imaginar o que deveria ter tirado o sono dele justo
ontem, o italiano praticamente apagando de exaustão.
— Stella está morta. — A mão que tirava uma mecha de cabelos dos
meus olhos tremia tanto. As próximas frases só foram possíveis de ouvir
por ele estar sussurrando-as no meu ouvido, como se Nico estivesse com
medo de que alguém pudesse ouvi-las. — Ela está morta, e a culpa é minha.
E isso vai chegar em Matarazzo, vai chegar muito mais cedo do que pensa.
E...
— Como? — Stella? A mulher que procuravam?
— E eu não sei como ele vai reagir, o que ele vai fazer! — Mas ela
estava viva até ontem, e Nickolay nem mesmo tinha deixado meu lado para
poder ter feito alguma coisa! E as minhas mãos não podiam começar a
tremer também, repetia em pensamento outra e outra vez. — Eu não sei,
mas ele vai me matar, ele vai te matar! Alana...
— Não vai! — O sacudi mais, meus dedos cravando em sua pele, suas
emoções me afetando demais. O que tinha acontecido para ele ter essa
certeza? — Nós vamos dar um jeito Nickolay, nós vamos!
— Dolcezza, não entende...
— Ele não sabe, Nickolay! — falei as palavras séria, pela primeira vez
em muito tempo temendo verdadeiramente pela minha vida. — Seu chefe
não sabe de nada e não vai saber, porque você não vai contar! Não vai
contar!
Eu nem imaginava o que poderia ter lhe dado aquela certeza, mas vê-lo
daquele jeito me fazia entender que o melhor era não perguntar. Os olhos
escuros se fecharam quando minha mão achou seu rosto, o italiano se
apoiando na minha palma enquanto respirava fundo.
Era engraçado como justo eu tentava e conseguia passar paz para
aquele homem. Como justo eu, que sempre estive tão distante da calma, era
capaz de tranquilizar o coração em frente ao meu. Por mais que, bem lá no
fundo, me desesperasse ouvir dos meus lábios a próxima frase.
— Nós vamos fugir, Nico. Eu disse que fugiríamos juntos, não disse?
— Como ele, puxei uma respiração funda, envolvendo seu rosto
preocupado com as mãos, tomando seu lugar de tranquilizador e o puxando
para mim. — Disse que fugiria contigo, italiano.
Tinha um sorriso nos lábios grossos, mas passava longe de ser o que eu
gostava.
— Contigo? — ele notou, tentando deixar a situação mais leve.
— É a convivência. — Não tinha como deixar aquilo mais leve. —
Vamos fugir. Vamos fugir, Nickolay.

Só nos deixei sair do quarto depois das onze, sábado sendo a melhor
desculpa para nos mantermos trancados até um mínimo de calma voltar
para ele. Nickolay não quis falar e eu não quis fazer perguntas, nós dois
usando nossa válvula de escape para manter a sanidade naquela manhã.
Por mais que ele me aguentasse contra a parede do box, dava para ver
seu cansaço, seu nervosismo se misturando com o meu na mesa, por mais
que tentássemos parecer normais. Nico trocava olhares com Lorenzo
enquanto nos servia de café, os dois brincando de máfia ao invés de
conversarem sobre o que seria realmente feito no dia. Com certeza já estava
tudo acordado, e com certeza eu não perguntaria nada antes de estarmos
bem distantes dali.
Imaginava que Mantovanni tinha ao menos ideia do que estava prestes
a acontecer, mas qualquer palavra sobre isso só foi dita quando estávamos
literalmente fora da casa. Nico encostava-se na porta do carro, eu em seus
braços, e parecia uma manhã normal, não estivesse ele me contando sobre
seu plano ao invés de sussurrar o que faria comigo quando voltássemos para
o quarto.
Se tudo desse certo, nunca mais voltaríamos para aquela cama, e eu
rezava para meu coração continuar funcionando até o fim do dia.
— Precisa estar de volta antes das quatro para isso funcionar — ele
escondia o nervosismo ao deixar as mãos geladas entrarem debaixo da
minha camiseta. — A mala já está no carro, e assim que sair, busco nossos
novos passaportes. Vamos direto para a Cidade do Cabo.
— Nós vamos pra África? — Mas ele não me deixou interromper.
— E depois Tailândia.
— Mas...
— Precisamos sumir, dolcezza. — O italiano explicou, como se
sabendo o que se passava na minha cabeça. — Precisamos ir para algum
lugar que ninguém nos reconheça. Um lugar onde dê para desaparecer.
— Tailândia. — Era tão, tão longe. — É perfeito, Nico.
Os lábios acharam mais uma vez os meus, antes dos meus olhos
acharem os de Lorenzo. O homem mais velho dava a partida em seu carro,
e eu tive certeza de que ele era sim um dos responsáveis por nos ajudar a
virar fantasmas.
Mas havia algo além disso. Talvez fosse paranoia da minha cabeça,
assim como poderia ser a convivência com Nickolay me fazendo reparar
ainda mais nas coisas. A forma que os azuis pararam em mim me fazia
desconfiar que havia algo escondido, uma curiosidade que antes não existia
agora presente demais no rosto de Mantovanni.
— Volte logo, Alana. — Nickolay fechou a porta do carro, e eu virei a
chave assim que me senti pronta para dirigir pela provavelmente última vez
até o endereço tão familiar.
Família. Ele seria toda minha família agora, e eu não podia pensar
nisso.
Imaginava que o melhor a se fazer seria não levar nada que pudesse
comprometer alguma das pessoas que amava. Fotos estavam fora de
questão, eu já sabendo que precisaria me livrar do celular assim que saísse
da casa dos meus pais. Ainda no carro, quase chegando no portão da
residência que foi meu lar por tantos anos, fazia o doloroso exercício mental
de lembrar dos detalhes de todos que deixavam meu coração quente.
O jeito que meu pai sorria. Como os olhos da minha mãe brilhavam
quando a mulher gargalhava. A risada de Leandro, Isabella e seus
cachinhos, Rogério e Lucas e todas as irritantes semelhanças que sempre
quis para mim.
Nunca conseguiria falar uma última vez com Carlinhos, ou dar mais
um abraço em Mila. E talvez aquilo fosse bom, porque estava sendo
devastador abraçar a dona Astrid, sabendo que nossos carinhos estavam
contados.
— Oi, mãe. — Era tão difícil sorrir naquele sábado.
— Oi, meu amor.
Era difícil, mas ainda assim, o fiz ao entrar. Eu nos daria uma hora
antes de voltar para Nickolay, e uma hora era pouco demais para absorver
tudo que precisava guardar. Era uma da tarde e meu pai estava almoçando
com o grupo de amigos da antiga faculdade, ninguém na casa além da
mulher que me olhava triste.
Triste, como se ela soubesse, e eu desejei um espelho para ver o quão
óbvia estava sendo. Tinha vindo me despedir, por mais que não pudesse
realmente fazê-lo, por mais que devesse tratar aquele como um sábado
normal.
— Você vai embora — escutei assim que me sentei em um dos bancos
que havia na cozinha, a xícara de café aquecendo minhas mãos. — Não vai?
Como eu poderia contestar aquilo?
— Eu…
Melhor, adiantaria negar?
— Como você sabe disso, mãe?
Porque as mães sempre sabiam, eu pensei. Porque a minha era um
detector de mentiras ambulantes, e com certeza tinha conhecimento de
muito mais coisas que eu achava que escondia bem. Nico era tão parecido
com ela, e teria rido ao pensar que estava para me casar com uma versão de
quem me criou, caso houvesse algum humor no dia de hoje.
O cheiro de café e bolo de fubá, eu queria me lembrar disso, e dos seus
olhos cheios de carinho.
Era engraçado como nada do planejado por mim andava funcionando.
— Nickolay veio atrás de você, não veio? — ela perguntou, os olhos
cheios de lágrimas. — Ele veio te buscar, eu sei. Eu sempre soube que
alguém viria.
O que?

Depois de Thobias, achava que nada mais conseguiria me surpreender


negativamente. Ele havia sido a pior das surpresas, e seriam absurdas
demais as poucas coisas capazes de me fazer arregalar os olhos. Por mais
que tivesse entrado em choque, Nickolay não havia conseguido aquilo
matando um homem na minha frente: eu já tinha participado da morte, o
que era rever a peça da primeira fileira?
Minha mãe elevou a barra ainda mais, eu esperando tudo, menos o que
saía de seus lábios.
— Me buscar?
Por um momento, meu cérebro tentou colocar as coisas mais óbvias
juntas: não, Nickolay não viria me buscar hoje, eu estava de carro. Ele não
veio atrás de mim, eu tinha vindo sozinha. Nem mesmo a Range Rover
preta de sempre tinha me seguido, eu imaginando que isso fazia parte do
plano que ainda só tinha compreensão do raso.
Não gostava do jeito que minha mãe respirava fundo, as mãos tão
nervosas quanto as do meu italiano no começo do dia.
— O que quer dizer com me buscar? — O olhar, culpado demais,
impedia que eu continuasse a me enganar.
Mamãe sabia de alguma coisa, e eu não tinha informações suficientes
para juntar e decifrar. Mas eu desconfiava o bastante nas últimas semanas
para deixar o que era apenas dúvida — e tanto andou incomodando — ir até
a superfície.
Ela sabia. E não era apenas sobre quem era Nickolay, ou o que ele
realmente passava as horas longe de mim fazendo. Minha mãe sabia quem
eram meus pais biológicos.
— Sempre tive medo desse dia. — A voz sempre forte estava tão aflita
quanto na vez em que tomei meus primeiros pontos com ela, ainda criança.
— Era o que eu mais temia desde que te tive nos braços pela primeira vez,
filha. — Tão sofrida quanto no dia em que deixei de chamar aquela casa de
lar.
Eu não queria acreditar que aquilo estava acontecendo justo hoje.
— Você disse que não sabia de nada.
Justo hoje, quando eu precisava me despedir. Justo no dia em que eu
tinha menos de cinquenta minutos para dizer tudo que necessitava para
quem me criou, o tempo sendo pouco demais para um adeus, quanto mais
para as explicações que estavam prestes a vir.
— Sabia que eu estava procurando meus pais biológicos, e nunca me
disse nada, mãe! Eu te perguntei, e você me olhou nos olhos e mentiu! —
Aquilo não estava acontecendo. — O que você sabe pra falar isso? Pra dizer
que Nico veio me buscar, o que Nico tem a ver comigo?
E algo clicou na minha mente, por mais absurdo que pudesse ser. Por
mais que nossas idades não batessem, por mais que eu não visse
semelhanças entre quem meu noivo chamava de chefe e eu. Nickolay
poderia estar errado, não era como se ele estivesse na melhor das condições
para nos afirmar aquela certeza. Stella poderia não estar morta, como ele
contou desesperado horas atrás.
Nico mal se aguentava em pé sem os remédios que o obriguei a tomar,
e Stella poderia não estar morta. E se a criança — mulher — estivesse viva,
a possibilidade que eu alimentava poderia ser verdade.
Eu poderia ser Stella.
— Eu sou filha da máfia, mãe? — Porque com Stella viva, eu não teria
que partir. Com a filha do homem que me mataria viva, Nickolay e eu
poderíamos continuar a viver uma vida muito mais normal do que nossa
perspectiva de futuro.
Mas o quão normal minha vida poderia ser, sendo filha de um Don da
máfia italiana?
— Eu não sei.
Era mentira, e ela deveria ao menos suspeitar que me contar tudo era
algo que não tinha mais como ser adiado. Era surreal como justo aquela
conversa poderia ser uma de nossas últimas. Poderia ser nossa última.
— Mas você sabe o que vai acontecer, não sabe? O que tá acontecendo
agora, o que eu vim fazer. Dá pra ver, mãe. — Tentava entender como a
mulher que me criou mentiu com tanta naturalidade quando lhe perguntei
sobre minhas origens. O que poderia haver de tão ruim para ela, sabendo de
onde vim, escolher me tirar o direito de saber? — Me conta, mãe. Eu
preciso disso. — Funguei, olhando para o teto, a pior hora para termos
aquela conversa.
As verdades de Nickolay muitas vezes machucavam, mas ao menos
eram verdades.
— Antes do seu pai, eu tive alguém na minha vida. Ele nunca me disse
em palavras, mas eu sabia — ela começou, a voz me dizendo que estava tão
desconfortável quanto eu. — Eu sabia, como você sempre soube, porque
não tem como pensar o contrário de Nickolay, Alana. Armando era
igualzinho: as tatuagens fortes, os negócios de família sobre os quais ele
nunca comentava, os machucados que apareciam nele, e não condiziam
com a história que eu ganhava.
Nunca prestei tanta atenção em alguém falando, minha mãe
conseguindo a proeza de deixar meu dia ainda mais absurdo.
— Tudo em Armando gritava perigo, só que quando estavam em mim,
os olhos sempre suavizavam, da mesma forma que os de Nickolay fazem
quando estão em você — ela contava, e eu descobria que era difícil ouvir
minha mãe falando sobre outro homem que não seu marido. — Eu estava
tão apaixonada! O mistério que havia ali, combinado com o jeito que ele
deixava clara minha importância em sua vida era apaixonante demais. Saber
que é você quem dobra um homem como aquele é arrebatador.
— Eu sei que é — admiti, querendo ouvir mais, ao mesmo tempo em
que necessitava saber onde eu entrava naquela história.
Mas a mulher não parecia notar minha pressa.
— Era nova demais quando ele me pediu em casamento. Vovô foi
contra, claro que foi, sabe bem como seu avô era difícil e cabeça-dura.
Doía ver arrependimento onde eu deveria ver alívio. Não, minha mãe
não poderia se arrepender de ter negado essa vida para ela, para seus filhos.
Ela nunca faria ideia do quão difícil era ser impossível dizer não, e aquele
era o único conforto fora Nickolay que tinha no sábado.
— Ao contrário de você, eu neguei. — Respiramos fundo, e eu queria
que meu café fosse vodca. — Eu mal tinha dezoito anos. — Mas não era, e
um dedo foi para minha boca, eu girando o anel que estava na outra mão. —
Ele sumiu quando dei minha resposta, assim do nada. Foi como se
Armando nunca tivesse existido, e eu fiquei dormente por meses sem ele,
mesmo que só tenha o tido por três. — Como eu me sentiria sem Nico, e era
bom e difícil conseguir entender aquilo. — E então conheci seu pai, o
completo oposto do homem que foi meu primeiro amor. Eu amo seu pai,
Lana, não duvide disso. — Astrid me olhava aflita.
Eu não duvidava, e a coisa que mais quis durante a vida era que o casal
que me adotou fosse o responsável pelo meu DNA.
— Mas eu entendo você amar Nickolay. Eu entendo você ter dito sim.
Mas eles não eram, e pela primeira vez, agradeci por não serem.
Porque, dependendo da resposta que receberia, minhas suspeitas
alimentariam ainda mais uma perigosa esperança de não precisar dizer
adeus.
— Anos depois do não, eu escutei a voz de Armando outra vez. O
homem estava mais áspero, mais cansado. Disse que tinha um bebê que
precisava de uma família, e que eu seria o melhor lugar para escondê-la. De
algum jeito, o italiano sabia que eu queria uma menina. — A mão dela
alcançou a minha, e foi difícil eu não a tirar. — E me prometeu você, desde
que fizéssemos algumas mudanças. Eu nem pensei antes de aceitar.
Lembrar da história que Lucas contava sobre como papai conseguiu
subir na carreira foi automático. Meu irmão mais velho me chamava de
várias coisas no diminutivo, e a que mais me lembrava quando criança era
amuletinho. Dizia que bastou eu chegar na vida deles para tudo melhorar,
especialmente na parte financeira.
Era difícil descobrir que eu passava longe de ser um amuleto, ao
menos não um de boa sorte.
— Era pra eu te proteger, e eu fiz isso tão bem! — Era injusto ser ela
quem chorava primeiro. — Mas talvez eu tenha feito isso bem demais,
porque demorou tanto pra você me deixar ver que Thobias te machucava.
Eu te sufocava, não sufocava? — Era injusto, também, não conseguir
segurar as minhas lágrimas. — Procurou Nickolay porque algo aconteceu
enquanto estava com Thobias, eu sei disso. — Sim, mas eu nunca
verbalizaria aquilo para ela.
Limpei as bochechas, fungando irritada. A deixei continuar segurando
minha mão, mas era difícil retribuir o aperto, a palavra aparecendo demais
desde o momento em que abri os olhos. Tudo era tão difícil. A mulher
sentada ao meu lado era a única mãe que eu possuía, e para sempre seria
assim. Eu seria eternamente grata por tudo que havia sido feito por mim,
pela família tão normal que fui permitida ter por tantos anos.
Mas o sentimento de traição era inevitável. Doía, e eu sabia que doía
em mim e nela.
— Quando te peguei no colo, eu me apaixonei, do mesmo jeito que
aconteceu quando segurei os meninos pela primeira vez — ela falava, como
se com aquelas palavras tentasse um pedido de desculpas. — Não sabia
bem de onde eu te tirava, mas estava tão feliz por te deixar longe de
qualquer mal. Já chegou tão machucada, tão pequena e com um corte
enorme no ombro! Eu inventei a história da marca de tanto que você me
perguntava do seu dodói.
Só lembrei que o que dividíamos era uma despedida ao olhar para o
relógio: trinta minutos. A mão dela soltando a minha deixou um vazio,
minha mãe indo até uma das gavetas da bancada. Não sabia se ficava mais
surpresa ao descobrir haver um fundo falso, ou com os cadernos que eram
postos na minha frente.
Um C dourado decorava o vermelho, o debaixo sendo muito mais
simples — quase infantil. Observei a mulher voltar para o banco, meu
coração acelerado, minhas mãos não achando força para passar da capa.
— Eu passei a vida achando que não fosse precisar te dar os diários. —
A voz hesitou, e eu não conseguia parar de tremer. — Lorenzo veio aqui
ontem de tarde...
— O que? — Minha cabeça ia explodir, e tudo que eu queria era
Nickolay do meu lado.
Meu italiano, sem dúvida, conseguiria me dizer muito mais do que
Astrid tentava. Os lábios grossos saberiam me responder quem era
Armando, e como Lorenzo estava metido naquilo. Mas duvidava que Nico
tinha conhecimento da visita de Mantovanni, a informação dando um novo
sentido a todas as vezes que os olhos azuis me observaram com curiosidade.
Como minha mãe, Lorenzo sabia quem eu era.
Mas o mais velho também tinha afirmado que Stella estava morta para
meu noivo. Faltava uma peça ali, mas desde que Nickolay trouxe de volta
minha cor, ter esperança era novamente possível.
— Qual é meu nome? Meu verdadeiro nome — perguntei, agarrando
os cadernos e me levantando da cadeira.
Os olhos escuros deixaram eu ver o quanto a dona havia se afligido,
realizando que eu estava prestes a partir.
— Quantos anos eu tinha? Meses? A idade que tá na minha certidão,
ela tá errada, não tá?
Era válido ter esperança em ser a filha de quem estávamos prestes a
fugir?
— Eu não sei de muito, meu amor. — Astrid tocava meu braço, e
nunca tive um conflito interno tão grande.
Eu amava tanto minha mãe.
Eu me sentia tão enganada.
— O nome e aniversário, seu pai e eu escolhemos juntos. Mas as
informações verdadeiras, eu não tenho.
— Lorenzo tem? — Como iria dirigir de volta para a mansão naquele
estado? Eu poderia deixar o carro ali e ir até Matteo, o segurança sempre
estando do lado de fora nas últimas semanas. — Melhor, por que ele tá no
meio dessa história? Eu nunca nem mesmo te falei desse homem! Ou vai
me dizer agora que foi ele quem me deu pra você?
O silêncio disse tudo, e eu ri, começando a andar em direção à porta.
Eu tinha pouco mais de uma hora para voltar para casa, mais páginas do que
conseguiria ler, e uma dor de cabeça latejante.
— Eu conheci Lorenzo por Armando, eles eram amigos! Ele veio
deixar uma carta. — Uma carta? — Está num envelope, dentro do verde.
Mas foi em outro detalhe que meu cérebro se prendeu. Ela esperava
nunca precisar me dar os diários.
— Ele não deixou os cadernos aqui ontem. Só a carta — afirmei, mais
para mim do que para a mulher que me alcançava, e a confirmação veio na
ausência de palavras. — Você me recebeu com os diários.
Era mais um tapa.
— Meu Deus, você acabou de mentir de novo! — Inacreditável! —
Você leu tudo, não leu? E não tem nada de relevante aqui pra me contar?
Como que você me olha e diz que não sabe de nada? Que meu nome não tá
aqui dentro?
— Que mãe quer falar pra filha que ela veio de um meio sujo de
sangue? — era a primeira vez que ela me interrompia, e a primeira que suas
palavras me deixavam tão irritada. — Quem era seu pai te deu como se não
doesse se separar de um pedaço dele, como se fosse descartável! Acha que
eu queria te machucar com isso?
Ela poderia não querer.
— E você acha que não tá doendo me jogar isso na cara agora?
Mas com seu nervosismo, era exatamente o que estava fazendo. Era a
primeira vez que minha mãe se descontrolava na minha frente. Era um
reflexo do que eu sentia desde que o vi nervoso no começo da manhã.
Era exatamente como eu não queria me lembrar do nosso último dia.
— Eu escondi porque queria te proteger dessa loucura!
Era quase injusto o que meu cérebro me obrigava a devolver de
resposta.
— Se queria me proteger, por que você olhou quieta eu sair de casa?
— Meus lábios concordaram em falar, como sempre faziam, eu nunca
conseguindo manter a boca fechada. — Por que olhou me julgando, ao
invés de me impedir de perder tanto?
— Você nunca escutava nada sobre Thobias!
— E você nunca falava! — acusei, girando a maçaneta, procurando o
carro preto que deveria estar próximo do meu. — Você julgava, do mesmo
jeito que a Mila passou mais de meio ano fazendo! Ninguém nunca
perguntou se eu precisava de ajuda, todo mundo só soube apontar os meus
erros!
Aquele dia realmente era a junção de tudo que poderia dar errado, e eu
ainda tinha, pelo que o celular dizia, vinte minutos para gastar num
endereço que não queria mais ficar. Menos de meia hora era pouco para
tentar suavizar o peso que havia entre nós, os minutos passados ali tendo a
probabilidade de serem mais danosos do que a de me deixarem boas
memórias.
Eu já tinha tantas ruins, e não havia carro nenhum do lado de fora além
do meu.
— Ele vai cuidar de você, não vai? — escutei quando dei o primeiro
passo para fora.
— Vai — respondi, certa de que Nickolay sempre faria aquilo, e certa
de que precisava sair dali. — Eu preciso ir, mãe.
Astrid queria se despedir tanto quanto eu, os olhos dela implorando
para eu não o fazer. Amanhã era nosso almoço de domingo, eu tendo
ansiado por ele no começo da semana, e fingir mais um pouco seria a única
coisa boa que conseguiria nos dar naquele dia.
— Eu trago seu pão de queijo favorito quando voltar. — Eu precisava
achar alguma informação relevante naqueles diários. Qualquer informação
que me permitisse ficar. — Eu trago, nós tomamos um café, e eu te conto
como minha vida é melhor com ele.
Era impossível ter coragem de encarar os olhos escuros ao falar as
palavras, toda ela indo para o abraço apertado que dei, apesar de toda a
mágoa. Me separar da mulher que me criou foi uma das coisas mais difíceis
que precisei fazer, e arrancava um pedaço do meu coração saber que
poderia ser a última vez que sentia o cheiro de quem foi minha casa por
tantos anos.
Forçava as lágrimas a ficarem longe ao dar partida no carro, os
cadernos postos no banco, eu não olhando para o lado antes de começar a
dirigir. Eu precisava chegar até Nico. Eu precisava chegar até ele com tudo
aquilo, minha intuição me dizendo que sim, conseguiria arrumar a situação
absurda em que estava metida, pela primeira vez na vida.
Poderia acreditar que era a filha do Don, tudo batia, a não ser o fato de
Lorenzo querer me esconder do seu chefe. Seria o que Matarazzo quisesse,
se isso trouxesse de volta a paz do meu italiano. Porque ver toda minha
segurança tão desesperada foi uma das coisas mais assustadoras da vida, o
dia cheio de primeiras vezes que gostaria de apagar.
Ficar presa no meio do tráfego na marginal era um lembrete do quanto
São Paulo conseguia ser detestável, a quase morta parte otimista do meu
cérebro afirmando que na Tailândia as coisas poderiam ser melhores. Estava
parada fazia 10 minutos, não tendo para onde escapar, e considerava sair do
carro e pegar qualquer metrô ou trem.
E então eu ri: nunca chegaria a tempo, nem correndo até um táxi,
muito menos de transporte público. Tentava me acalmar repetindo que era
impossível alguns minutos de atraso acabarem com todo o plano, Nickolay
sabendo muito bem com que cidade lidava ao me deixar ir de Moema para
Alphaville.
Virei a capa do caderno vermelho, não me surpreendendo com o nome
que lia. Catarina Matarazzo estava escrito na primeira página, numa
caligrafia refinada, a marca redonda em vermelho escuro denunciando que a
antiga dona era uma possível apreciadora de vinhos. A antiga dona, que
poderia ser minha verdadeira mãe.
Só que não fazia sentido, porque Catarina estava morta, e seu viúvo
revirava o mundo atrás da filha perdida. Ter pais que me queriam — bem,
um pai que me queria — não batia com a informação que havia sido jogada
na minha cara, e por um momento, pensei que Astrid poderia ter falado o
que falou por pura mágoa. Não era de seu feitio, mas também não era
característico dela o desespero.
Nunca gostei tanto de espanhol, todas as aulas que tive durante os anos
de escola enfim se tornando úteis. Dava para entender as linhas sem muitos
problemas, a mulher usando da língua-mãe para encher as páginas
amareladas.
Os carros mal se mexiam, e na leitura rápida que fazia, descobria que
minha talvez mãe biológica se apaixonou depois de se casar com o chefe da
máfia. Que ela também queria ser livre, que ela andava com dificuldades de
se apegar ao bebê que lhe sugava demais. Eu lhe sugava demais.
Talvez mamãe estivesse certa, no final.
A carta que caiu do segundo caderno — talvez mais um diário,
estranhamente em português — quando os guardava dentro da minha
mochila tinha uma letra diferente. Estava em italiano, a única coisa
compreensível o suficiente para meu cérebro acelerado sendo figlia mia. Na
assinatura, o mesmo nome que minha mãe tinha mencionado menos de uma
hora atrás ser do homem que havia me dado. Armando era meu pai?
E eu gelei.
Se o quebra-cabeça que minha mente montava estivesse certo,
precisava sair dali agora. Porque duvidava que o Don que me procurava o
fazia para me assumir. Vincenzo Matarazzo provavelmente queria eliminar
a filha que nasceu no berço dele e não dividia de seu sangue, e era por isso
que Mantovanni estava tão empenhado em me fazer sumir com Nickolay.
A única coisa que me acalmava era o fato de Matarazzo estar a horas
de distância de nós, um avião não tendo o poder de fazê-lo chegar antes das,
quantas horas eram da Itália para o Brasil mesmo? Eu lembrava de Nico ter
mencionado, e era lindo ver os carros voltando a se movimentar.
Justo agora. Figlia mia, non fidarti di nessuno, e eu também lembrava
bem daquelas palavras, tatuadas nas costas de Nickolay. Fidarti nessuno.
Não confie em ninguém.
A carta amassou quando a enfiei dentro da mochila, mas a única coisa
que prendia minha atenção era o policial parando justo o meu carro. Eu não
estava acima do limite de velocidade, tinha certeza! Nem mesmo segurava
o celular, por mais que minha ansiedade me fizesse querer parar e traduzir a
carta inteira.
Havia três policiais, mas uma blitz às três e meia da tarde não fazia
muito sentido.
Mandar o meu carro encostar não fazia o menor sentido, mas não via
muita escolha a não ser obedecer.
— Habilitação, senhorita — escutei ao abaixar o vidro, já retirando o
documento da carteira. Estava pronta para recebê-lo de volta quando o
policial continuou. — Saia do carro, por favor.
— O que?
— Saia do carro, senhorita.
E eu congelei, pela primeira vez odiando o frio. Era sábio perguntar o
porquê, sabendo que eu portava uma arma ilegal atrás de mim? Deveria sair
do carro deixando dentro dele uma arma ilegal, num fundo falso que
poderia ser descoberto com um toque?
Puta que pariu, e eu saí da merda do carro com apenas o celular na
mão. Quantos palavrões eu conhecia para recitar, enquanto me mantinha de
pé do lado de fora? Porra, Nickolay iria com certeza — e com razão — me
dar a bronca da minha vida. Tinha uma mensagem dele piscando para ser
lida, e eu estava prestes a abrir quando o número de Lorenzo apareceu na
tela.
— Eu...
— Alana, vá para casa agora. — Eu tentei responder quando ele
continuou. — Agora, Alana — o homem ordenava ofegante, como se
estivesse correndo.
E eu ri. Não era como se eu fosse para algum lugar se achassem minha
pistola.
— Lorenzo...
— Sem perguntas, agora! — E ele desligou.
Mas que cazzo de dia! Poderia usar cazzo para isso, não poderia?
Soava bem melhor do que todos os palavrões que gostaria de colocar no
lugar de cada vírgula.
Tudo soava melhor em italiano, e eu estava prestes a ligar para
Nickolay — ele repetiu que deveria fazer aquilo na situação que eu estava
até me cansar — quando o policial resolveu sair do meu carro.
— Pronto, senhorita — ele disse, sorrindo e me devolvendo a
habilitação. — Apenas um procedimento de rotina.
Desde quando era um procedimento de rotina forçar alguém que não
tinha feito nada de errado para fora do seu carro? Mas resolvi não discutir,
agradecendo e colocando meu melhor sorriso de volta, a pressa junto da
ligação acabando com a necessidade do meu cérebro de entender o que
tinha acabado de acontecer.
Foi ali que aprendi que, se eu não fizesse ideia do que estava
acontecendo, precisava triplicar minha atenção. E não me apressar para
dentro do carro sem olhar para trás, como fiz.
Mal tinha me sentado no banco quando fui forçada para o do
passageiro. Foi tão rápido, eu já tão exausta, minha reação muito mais lenta
do que deveria ser. Demorou demais para eu perceber o que estava
acontecendo, para notar as portas sendo trancadas, para reconhecer quem
estava dirigindo o meu carro.
— Oi, gata. — A bile sujou minha língua assim que escutei a voz que
dominava meus pesadelos. — Sentiu minha falta?
Era patchouli, noz moscada e canela, e eu odiava aquele cheiro.

Eu havia pedido apenas uma coisa. Sabia que Alana ainda me deixaria
louco, assim como tinha certeza de que não devia tê-la deixado ir.
O plano era simples, e ao mesmo tempo, tão fácil de falhar. Tão
irritantemente improvisado, e eu não improvisava nada antes dela. Lorenzo
nos encontraria com os novos passaportes, o carro que explodiria no meio
da estrada estando pronto para queimar. Já comprara as passagens, o
dinheiro pronto para ser atrelado aos novos nomes que teríamos, e torcia
para quem agora era oficialmente minha mulher não surtar em nenhum dos
passos. Estaríamos tão vivos quanto Catarina para Matarazzo, e ele poderia
continuar com essa guerra estúpida sozinho.
Mas ela não poderia se atrasar, assim como quem eu via pela janela
passar pela porta não era para estar no Brasil. O velho não era para entrar na
mansão antes de partirmos, seguranças demais atrás dele.
São Paulo não deveria ter tanto trânsito.
Alana deveria atender a merda do telefone.
Eu não deveria estar me sentindo tão mal, tão irritantemente fraco,
justo hoje.
Cazzo.
Conseguia mentir tão bem para aquele homem quanto conseguia me
manter distante da minha mulher. Ainda no quarto, pensava em como faria
para sair dali sem perguntas. Ele não sabia de nada, lutava com meus
pensamentos repetidas vezes. Matarazzo não tinha como saber de coisa
alguma, eu não tinha falado a totalidade do que sabia para ninguém que não
fosse Lorenzo.
E Lorenzo era tão culpado quanto eu.
Disquei o número de Alana pela terceira vez. Ela não atendeu.
Cazzo, Alana. Te pedi uma coisa. Por que essa garota insistia em me
deixar tão próximo da loucura?
Olhei para a porta quando essa foi aberta sem qualquer batida, por um
segundo esperando ver a única pessoa que tinha permissão para fazer isso.
Não era minha mulher.
— Matteo? — O homem me olhava arrependido, a próxima pergunta
saindo por puro instinto. — O que está acontecendo?
Queria rir, mas a esperança que ainda havia em mim de sair vivo da
situação foi mais forte. Eu sabia o que estava acontecendo assim que não
achei Alana, assim como entendia ter uma só alternativa para explicar o que
estava prestes a começar.
Nunca foi confortável ser um pessimista depois que a abracei na minha
vida. Me forcei a manter os olhos na entrada, por mais derrotado que
estivesse. Meu cérebro cansado não achava nenhuma saída para o que
aconteceria, e só agora entendia o quão errado era ter meu segurança
naquele quarto.
Dez anos mais velho do que eu, me lembrava de Matteo desde garoto,
ele sendo o homem de maior confiança de Mantovanni. O homem que
passou a ser minha sombra desde que Lorenzo nos mudou para o Brasil
também foi dono da minha confiança, e eu era um tolo por tê-la dado a
alguém que não Alana. Era um idiota por tê-la confiado a ele, minha mulher
estando sozinha no dia que necessitava de alguém a acompanhando.
Era a segunda vez que isso acontecia, e meu cérebro entendendo o que
ocorria testava demais meu controle. Poderiam me matar, eu não me
importava. Poderiam acabar com a minha vida, desde que mantivessem a
dela segura.
— Senta, figlio. — Mas eu sabia que não era esse o plano. Eu sabia
que ela não estava segura, e me senti ainda mais iniciante ao juntar todos os
pedaços.
O chefe da Famiglia entrava no cômodo atrás de Matteo e um homem
tão grande quanto ele, o último me empurrando uma cadeira, quem eu
achava ser leal confirmando que eu não portava nenhuma arma de fogo.
Havia muito mais homens do lado de fora do quarto, e a bola na minha
garganta nunca esteve tão grande, as palavras quase não saindo.
— Por quê? — Doía largar o corpo na cadeira de madeira.
Respirei fundo, pensando que era a segunda vez em pouco tempo que
Vincenzo me encurralava sem eu estar com minha arma. Era difícil demais
reagir sem poder depender de uma hoje, e tentava imaginar um cenário
onde eu não me fodesse ao tentar. Conseguiria quebrar a cadeira,
conseguiria agarrar um dos homens como escudo?
Eu o mataria, se isso fosse necessário para salvar Alana. Eu tiraria
forças do inferno para acabar com todas as vidas ao meu redor, assim como
eliminaria cada um dos homens que me esperava atrás da porta.
Ou ao menos, morreria tentando. Morreria, se isso a fizesse continuar
viva, e era desesperador como aquela era minha escolha mais plausível.
— A ragazza não precisa de guarda costas todos os dias. — Porque era
óbvio que o homem que me encarava estava atrás de sangue, e eu esperava
ter o suficiente para saciá-lo. — Mas acho que tu, si. Ao menos hoje,
poderia utilizar toda a ajuda possível para continuar vivo.
Sentado na cadeira, tendo o corpo ainda fraco pela doença, meus olhos
nunca saíram dos castanho-claros de Matarazzo. Me perguntei se ele estava
blefando. Se aquela não era a pior das coincidências. Uma última tentativa
de me fazer largar meus planos com a mulher que passava longe de uma
esposa da máfia.
Porque não tinha como ele saber da noite passada. Não tinha como, a
não ser que tivesse plantado uma escuta no quarto de Lorenzo. Mas eu não
estaria mais vivo se ele tivesse conhecimento sobre nossa conversa, assim
como Mantovanni estaria numa cadeira ao meu lado — ou num caixão.
Fazia algumas horas desde que o homem mandara qualquer sinal.
Bastou constatar aquilo para meu coração disparar, eu forçando minhas
mãos, que lutavam para ficar inquietas, a agarrarem as bordas de madeira.
O áudio que encheu o cômodo não era de ontem, mas de hoje de
manhã. Minha voz ecoando pelo quarto soava desesperada, só agora
notando o quão mais calma Alana me respondia na gravação. Não tinha
como não mostrar o medo que senti, o sentimento tomando conta de mim.
Onde estava minha mulher?
— No fim das contas, aceitar tua insubordinação quanto a Emília foi a
melhor decisão que tomei.
Queria cortar com uma navalha o sorriso que via nos lábios finos. O
gesto mostrava dentes amarelados, e pensava que era a primeira vez que
considerava matar uma mulher, a que Matarazzo se referia conseguindo
tirar um pedaço de mim pela segunda vez na vida.
— Foi ela quem me sugeriu manter vigia em ti e Alana, ela quem disse
para plantar o microfone no teu quarto. — Sim, tinha certeza de que a
mataria, caso apenas eu saísse dali com vida. Talvez devesse, mesmo
salvando Alana, eu já tendo fechado os olhos para deslizes demais por parte
da italiana. — Uma mulher ferida é teu pior inimigo, Nickolay. E sabe o
quanto feriu Emília no passado. Ou o quanto cavoucou a ferida, a trocando
por uma puttana.
Agarrei as bordas com mais força, meu sangue fervendo ao ouvi-lo
insistir na maldita palavra.
— Eu vou te dar uma chance. — A calma com a qual as palavras eram
pronunciadas provocava o mais desconfortável dos arrepios. — Fale o que
sabe, e talvez eu poupe a ragazza quando ela chegar.
Os olhos permaneciam em mim, e eu morreria tentando tirar quem
amava de minha bagunça.
— Alana não sabe de nada. — Como intimidaria alguém com a voz
soando tão fraca? — A deixe de fora de seja lá o que for isso!
Eu não esperava o soco, a tosse me fazendo cuspir o sangue que se
acumulou na boca. Matteo desviou quando o olhei ao levantar a cabeça,
mostrando o quanto estava sozinho ali.
— Resposta errada. — Se tivesse a chance, iria arrancar unha por unha
de quem não tinha mais um pingo do meu respeito. — Como Stella estar
morta é culpa tua, figlio? Como sabe que ela está morta?
E novamente, nossas vozes enchiam o quarto, a manhã com minha
mulher mais fresca em minha memória do que gostaria. Deveria ter ficado
quieto. Deveria tê-la acordado e saído, a feito colar em mim, não a ter
deixado se despedir. Sentia que já lhe tirava tanto, e que ao menos aquela
bondade conseguiria fazer.
E agora, a bondade poderia custar a vida dela, também. Já estava
desistindo da minha.
— Tua voz, correto? — O mais velho perguntou, se aproximando de
mim, um único pensamento dominando minha mente.
Eu poderia matá-lo. Eu poderia matá-lo, e virar o primeiro no
comando.
— Tua voz, e a voz de Alana.
Não havia ninguém além de mim para assumir aquele cazzo. Não
haveria motivo para os homens presentes não me obedecer. Ou para, ao
menos Matteo, não me ajudar a eliminar o resto. Eu só precisava derrubar
todos da mansão, e talvez, tivesse forças para tal.
— Don Matarazzo, eu...
O segundo soco veio acompanhado de uma coronhada, o couro
cabeludo rasgando me fazendo entender as chances mínimas que tinha de
revidar. O sangue que escorria por cima do meu olho direito me fazia
enxergar tons de vermelho que deixavam Vincenzo com uma aparência
ainda mais repugnante, o gosto metálico na boca me fazendo amaldiçoar
pela talvez última vez minha sorte.
— Te dei uma chance de falar, e escolheu desperdiçá-la testando
minha paciência. Sabe mais do que ninguém que ela é curta quando mexem
com o que é meu.
Olhei para baixo, meu coração quase explodindo.
— Sabe a dor que é perder a mulher que ama? — Ele ia explodir. —
Claro que não sabe. Não amava Giovanna dessa maneira, e todos sabiam.
A vida não podia ser tão injusta. A minha sorte não podia ser tão
inexistente.
— Alana está chegando, não está? Pelo nervosismo que vejo em seu
rosto, ela não deve estar longe de aparecer.
O que eu poderia fazer para impedi-lo do que já sabia ser seu plano?
Porque era dolorosa demais a regra tão seguida dentro daquela Famiglia.
— Vincenzo, por favor. — Era injusto demais me fazer pagar na
mesma moeda, sendo que não era apenas eu que pagaria. Ela não tinha
culpa de nada, os únicos responsáveis por tudo sendo eu e meu egoísmo em
querer tê-la. — Alana é minha vida.
E eu não deveria ter confirmado isso.
— Catarina também era. E Stella era o resto dela.
Deveria ter mandado Emília para Itália. Deveria ter mandado Alana
embora. Deveria ter deixado Stella fora da água. Era quase cômico meus
arrependimentos começarem aos seis anos de idade, eu ainda criança
assinando minha sentença de morte.
Se eu desse um jeito de morrer agora, ele a deixaria viva? Porque eu
poderia não conseguir matá-lo, mas talvez pudesse obter o contrário.
Porcodio, o que o faria me matar?
Quase não acreditei quando o pedido de um ateu foi atendido.
— Posso te dar uma opção. — Senti o cano de uma pistola ser
pressionado contra minha nuca. Era a primeira vez que experimentava
aquilo, e saber que o metal frio tinha o poder de salvar me fazia querer
sorrir. — Disse que minha filha está morta por tua causa. Eu te prometi
liberdade se achasse minha Stella, e matasse quem a tirou de mim. Dou para
Alana essa liberdade, Nickolay. — O cano continuava pressionado contra
mim, um revólver sendo posto sobre minhas coxas. — Sabe o que tem que
fazer.
Eu tinha coragem para aquilo. Eu tinha coragem, por mais que minhas
mãos tremessem e meu coração estivesse prestes a explodir. Aproveitei
aquelas últimas batidas, o ritmo tão parecido com o que tinha quando Alana
estava perto.
Meu coração havia permanecido quieto por tanto tempo.
— Me dê sua palavra — pedi, já pronto para selar o acordo. — Me dê
sua palavra, Vincenzo.
— Eu não a toco, figlio. Se morrer, eu não a toco.
Tê-la como último pensamento era conforto o suficiente, e eu peguei a
arma. Era engraçado agora lembrar de todas as vezes que pensei que Alana
seria minha morte. Fechando os olhos, conseguia sorrir ao vê-la no meio
das rosas do jardim. E junto dela, pressionei o cano contra minha cabeça,
destravei a pistola e puxei o gatilho.
— Não achou que fosse se livrar de tudo sem nem mesmo me contar o
que aconteceu com minha figlia, achou?
A pistola estava vazia.
— O amor te deixou assim inocente, Nickolay? — Como não percebi
antes? Como não notei o peso de uma arma sem balas?
— Don Matarazzo, por favor...
E ali estava eu, pronto para implorar — porque era tudo que me
restava, eu não tendo nem a sombra de um plano B — quando meu coração
parou pela segunda vez.
— Alana não está chegando — ele afirmou, numa certeza assustadora.
— Não, a essa hora, ela deve estar para te ligar.
— O que?
— Ou melhor, nos ligar. Entenda, figlio, não tenho nada contra a
ragazza. Alana é até divertida, e no bom sentido da palavra. E se ela não
tivesse entrado na sua vida, com certeza terminaria o dia viva. Com certeza,
o moleque que disse ser seu ex-noivo continuaria na Europa. Ele estava na
Europa, até eu trazê-lo de volta. Já conversávamos na noite que me
confirmou o nome dele.
Eu iria matá-lo, e os dois homens que estavam atrás de mim quase não
foram suficientes para me prenderem sentado. Para o inferno as balas que
parariam em mim, elas não seriam suficientes antes de eu arrancar a cabeça
de quem um dia considerei dividir da mesma dor que eu sentia. O homem
na minha frente estava morto fazia tempo demais para poder sentir, e eu só
desejava levá-lo para o chão e terminar o serviço.
Alana estava bem, mentia outra e outra vez. Alana estava bem, e o
velho estava tanto blefando quanto com os minutos contados.
— Não foi difícil achar Albuquerque, mas escondê-lo de ti foi quase
impossível. Tenho que admitir que fiz um bom trabalho te ensinando quase
tudo que sei — ele revelava, o prazer visível no rosto cheio de linhas, eu
entendendo do pior jeito o motivo de não conseguir a localização de um
homem normal. — Esse stronzo também é uma das pessoas mais irritantes
com quem precisei lidar na vida. Se eu não tivesse foco, já teria enfiado
uma bala no meio da cabeça oca do garoto.
E meu peito ficou tão pesado quanto no dia em que achei Nicolas mal
respirando na areia, o gosto de sangue tomando novamente minha boca
enquanto me esforçava para achar uma solução para aquilo.
Meu cérebro não conseguia achar uma, e era cruel demais o que viria.
— Mas eu tenho foco, bastante foco. Tanto, que eles já devem estar
juntos. — Cruel demais, e Matarazzo, se esperto, deveria me matar. —
Prometi liberdade ao moleque, desde que cumprisse algumas condições.
Porque se por alguma chance eu saísse vivo dali, a guerra que ele
travaria seria comigo. E eu me certificaria de fazer valer meu apelido.
— Odeia homens como ele — o lembrei, o Don tendo me enganado
bem demais ao fingir se compadecer com a situação de Alana, tantas noites
atrás.
— Odeio os homens que estupraram minha filha. — A clarificação
veio com uma risada seca. — Pouco me importa o resto.
Estava de olhos fechados quando o telefone tocou, e eu conseguia
sentir o suor nas minhas palmas. O coração torturando o peito. Alana era
forte. Alana conseguiria se defender. Tinha uma arma no cazzo do banco, e
eu não havia dado descanso a mulher nas últimas semanas quanto a saber
atirar.
Ela conseguiria atirar, se a cena que se repetia na minha mente fosse a
que acontecia. Ela conseguiria, e eu nunca estive tão próximo das lágrimas
desde o dia que prometi não mais chorar.
Não esperava o nome de quem já dava como morto ser pronunciado, a
esperança que me invadia não sendo boa. Não poderia ter nada bom em
mim, se eu quisesse sair dali. E precisava sair, morrer não sendo mais uma
opção.
— Espero que seja importante, Lorenzo. — Matarazzo dizia, o
telefone contra a orelha, a testa franzindo e os olhos estreitando. O homem
que havia sido meu pai durante todos esses anos realmente me considerava
um filho para eu poder ter qualquer fé?
Talvez sim, e talvez o barulho que ouvisse do lado de fora tivesse dedo
dele. E talvez, apenas talvez — poderia trabalhar com a baixíssima
probabilidade — a ideia que crescia na minha mente não fosse tão absurda.
Talvez eu não estivesse tão fraco, e talvez a lâmina que guardava escondida
no tornozelo pudesse fazer o estrago que meus punhos não pareciam
conseguir no momento.
O quanto estaria testando minha sorte em me aproveitar da distração
do Don? Ainda me restava alguma?
Novamente me perguntava se adiantaria rezar. Mal não poderia fazer.
— Como? — Padre Nostro chi sei in celi[81], e o que Matarazzo ouvia
parecia suficientemente importante para o alvoroço que acontecia na parte
de baixo da casa ser ignorado. — Que absurdo é esse? — Sia santificato il
tuo nome[82], e eu fingi tossi mais sangue, abaixando o tronco como se
estivesse engasgando. — Que merda está acontecendo para me dizer isso
agora? — Venga il tuo regno e sia fatta la tua volontà[83], e o homem que
abaixou a arma para me levantar pelos cabelos respirou pela última vez.
A adrenalina fazia um serviço bom demais, mesmo nos meus piores
dias. Lembrar que já estive num estado muito mais deplorável e continuei
de pé me dava forças para usar o corpo que nos tingia de vermelho como
escudo, os olhos dos dois ainda vivos arregalando enquanto sangue
esguichava do pescoço rasgado.
O homem ainda se debatia contra meu aperto quando alcancei sua
arma. Os três tiros em Matteo o acertaram no meio do peito e o fizeram
atravessar a janela, e eu sabia que não demoraria para alguém derrubar a
porta. Haviam passado o que, cinco segundos? Mais cinco e eu teria o
sangue do velho nas mãos, e então, poderiam derrubar o que quisessem.
Mas não, eu não podia matá-lo. Não ainda, e a mão enrugada nunca
conseguiu sacar a pistola prateada, Matarazzo caindo junto com o celular.
Ainda não havia nem mesmo uma sombra de tentativa de colocar a porta
trancada abaixo, eu tirando o morto de cima do Don antes de substituí-lo, e
para o inferno: eu arrancaria aqueles lábios.
— Onde ela está? — Via com prazer os olhos aumentando, minha
morte cortando sua respiração, minha navalha arrancando uma das unhas.
Aquilo era uma das poucas coisas que conseguia me afligir por dentro, mas
arrancaria todas as dez com prazer. — Onde ela está, seu pezzo di merda?
— Não vieram palavras, o grito enchendo a sala, e a lâmina fez o primeiro
corte na pele ao redor do beiço, eu me sentindo muito mais perto de meu
passado ao observar com prazer o sangue que surgia. — Onde está minha
mulher?
Minha resposta foi o celular tocando sobre a cama, eu apenas agora
escutando a voz que ainda gritava através do que estava no chão. Lorenzo
mandava que eu parasse, e eu nunca estive tão longe de obedecer a qualquer
ordem.
— Vai precisar respirar para me levar até Alana, e é por isso que ainda
não corto o resto.
Terminaria quando a tivesse nos braços. Sairia da merda daquela
mansão arrastando Matarazzo pelo pescoço porque ele sabia, ele precisava
saber em que direção eu teria que ir para achar minha única família.
Revirei os olhos ao vê-lo sufocando com o sangue que escorria boca
adentro, o lábio inferior metade pendurado, o rosto vermelho. Deveria ter
focado em outra parte, e ao invés de sentir nojo, me senti estúpido por ter
escolhido ferir o que poderia impossibilitá-lo de falar.
— O telefone… — Mal consegui entender, a mão apontando para o
objeto me fazendo decifrá-lo.
O levantei pela camisa, nos levando até o edredom, meu coração
parando pela terceira vez ao ver Dolcezza na tela. A mão que estendi para
atender tremia, a outra substituindo a navalha com a pistola, pronta para
disparar contra a cabeça de quem um dia chamei de chefe. Sabia que era o
que ainda aconteceria hoje caso saísse vivo de tudo, deixar Matarazzo vivo
sendo não negociável para minha paz.
Nossa paz.
— Alana?
Não veio nenhuma palavra, mas um barulho conhecido demais, o som
se repetindo uma, duas, três vezes. E então, o telefone ficou mudo, a ligação
sendo finalizada.
A chamada que tentei completar caiu na caixa postal.
Descobri ali que não lembrava da sensação de perder tudo. Achava que
havia lembrado quando me sentei na cadeira, minutos atrás: era muito pior.
Era como se a linha que me mantivesse na terra fosse arrancada, eu não
conseguindo funcionar sem ela.
— Vincenzo? — Mal notei o homem que entrava no quarto, meu
cérebro ainda processando o que era tão difícil de acreditar. — Nico, solta!
Solta a arma, não puxa o gatilho!
Tinha uma mão que forçava a minha para longe, olhos azuis que me
encaravam desacreditados. Eu também estava desacreditado: desacreditado
no azar crônico que tinha. Desacreditado que estive tão perto de conseguir.
Tão perto, me enganava. Minha risada era tão amarga quanto um mundo
sem ela, eu não crendo que os disparos tinham vindo dela, mas feitos contra
a mulher.
Ela não teria desligado o celular, se estivesse viva. Teria ligado de
volta, e o telefone não tocava.
Não queria mais continuar naquele mundo depois de uma vida de má
sorte. Ao mesmo tempo, não tinha mais forças para fazer qualquer coisa a
não ser despencar na cadeira. Os gritos dos mais velhos ainda enchiam o
quarto, e eu não dava a mínima. Soltei uma respiração pesada, deixando
meus olhos fecharem. Queria que fosse a última vez.
Eu estava exausto.
— Eu te disse que o moleque estava delirando! Olha bem para ele! —
Exausto, e poderia acabar com tudo usando o que Lorenzo não teve forças
para me tirar. — Como considerou matar alguém com tanto valor? A
loucura finalmente te consumiu?
E eu ri, mais uma vez: estava tão longe de ter qualquer valor. Eu
apenas causava prejuízo, subtraindo tudo que tocava. Lorenzo falava algo
sobre a ragazza ter seus olhos, e eu só pensava que os olhos mel que eu
tanto amava não poderiam jamais ter qualquer semelhança com os que eram
do próprio diabo. Alana era toda a vida que Vincenzo não tinha.
Alana estava morta.
Era a segunda vez que me encontrava na mesma situação. Com
Nicolas, passei por isso com ele morrendo nos meus braços, a mão pequena
tatuando o lado direito do meu peito com sangue.
Com Alana, só ouvi os tiros.
— Nickolay? — Era difícil me obrigar a abrir os olhos. Eu nem tentei,
e respirei fundo quando tive a pistola tomada, o cano frio saindo do couro
cabeludo.
Matarazzo havia se sentido assim impotente quando perdeu Catarina?
Deveria passar dias o cortando. Deveria fazê-lo implorar pela morte, apenas
para negá-la. Sem ela, nem mesmo pensava mais em matá-lo, toda minha
vontade tendo desaparecido com a última perda.
— Me deixa em paz, Mantovanni. — A voz que saía era tão fraca
quanto meu desejo de continuar.
O barulho do tiro parecia ecoar na minha cabeça, se repetindo em
pensamento, caçoando da minha incompetência.
— O que eu sempre te digo, Nico? — Para eu calar a boca e obedecê-
lo, quis responder, o homem vezes demais tendo repetido tais palavras e
finalizado me chamando de moleque inconsequente.
Talvez até naquilo fossemos semelhantes, e Alana me fazia sorrir,
mesmo já tendo deixado o mundo. Ela realmente me faria sorrir para
sempre, assim como seria meu eterno tormento.
Ela me faria sorrir para sempre, e os tiros não estavam apenas na
minha cabeça.
— Para confiar em ti — deixei sair, meus olhos finalmente abrindo.
Matarazzo não estava mais no quarto, o cômodo banhado de sangue.
Matteo entrava pela porta — como um morto entrava pela porta? E os tiros
soavam reais demais.
— Confia em mim, filho. Eu vou te tirar daqui.
Sim, os tiros eram reais, e a arma voltava para minha mão, Lorenzo me
puxando de pé. O andar inteiro e o hall de entrada estavam pintados de
vermelho, e se me dissessem que eu estava no inferno, acreditaria. Pela
porta de entrada aberta eu reconhecia quem por anos chamei de chefe sendo
posto num carro, os homens que restavam atirando contra três blindados
vermelhos que eram a marca registrada de um conhecido.
Era a primeira vez que me surpreendia ao ver alguém atirar, o homem
que praticamente me criou disparando contra três e acertando, Matteo, que
jurava ter feito deixar esse mundo, eliminando mais dois. E não fazia
sentido, porque aqueles homens eram italianos. Eram nossos. Matteo estava
matando nossos soldados.
Eu estava sonhando? Talvez os socos tivessem sido fortes demais.
Talvez eu tivesse disparado, e ido direto para o inferno. E agora, seria
obrigado a enfrentar todos os que havia mandado para as chamas. Nunca
mais veria quem fazia meu coração apertar, mas não a ver aqui seria
consolo suficiente.
Ela estaria com Nicolas, e eu disparei em quem vi apontar o cano para
Mantovanni. Fiz mais dois irem para o chão, e me perguntei se as almas que
fazia cair precisariam ser tatuadas. Tendo acabado com o pente da arma que
segurava, alcancei uma pistola jogada junto de um rosto conhecido, e já era
a décima morte que coletava em apenas um dia, o único em que tive tantas
sendo o que quase me tirou a vida, anos atrás.
Mas eu não tinha mais uma vida para ser tirada, e os únicos que quis
orgulhar quando tinha nunca veriam meu caos. Saber daquilo fazia puxar o
gatilho ser uma tarefa fácil demais.
— Ele está em choque — escutei de Lorenzo, mas eu não estava em
choque.
Eu estava no inferno. Eu deixaria, finalmente, as chamas me
consumirem.
E todos queimariam comigo.

— Você não vai gritar. — A voz era de deboche, a vida parecendo uma
piada eterna com justo aquele homem aparecendo hoje. — Eu sei que não
vai. — Ao menos tinha conseguido abrir a boca, por mais que os cachos
loiros me paralisassem. A reação era melhor que nada. — Mas se quiser
tentar a sorte, vá em frente. — Thobias apontou com a cabeça para os dois
policiais que entravam na viatura, e eu fiquei parada.
Por que era tão difícil funcionar na presença dele?
— Foram eles que me deixaram entrar, Laninha. Então, mesmo se
fizer qualquer gracinha... — Ele deu a partida, o tom que usava sendo um
que fazia a conversa até parecer amigável. — Eu duvido que a viatura vá
nos parar quando eu enfiar a sua cara na janela. E você não quer isso, quer?
Sujar o vidro do seu carro novo de sangue? Você nem gosta de sangue, eu
lembro bem que não gosta.
A mão que parava na minha coxa enchia minha boca com um sabor
amargo, os dedos que se esfregavam contra a calça jeans gritando erro. Era
errado ele me tocar. Era tão errado eu não conseguir reagir.
Sentado no banco de motorista, Thobias dirigia como se os últimos
meses não tivessem acontecido, e meu coração dava indícios de que ia
falhar. Meu ex-noivo tratava o evento como corriqueiro, agia como se não
houvesse qualquer opção para mim senão a de obedecê-lo, e eu sentia as
batidas fortes demais no peito.
Minha boca estava cheia de saliva, e eu queria vomitar.
— Fiquei sabendo que você resolveu bancar a putinha de um italiano
enquanto eu tava fora. — Respirei fundo, forçando os olhos para longe dele
e obrigando meu cérebro a funcionar.
Pense, Alana. Tinha uma arma a centímetros da minha esquerda. Eu
poderia simplesmente atirar, fingir que me aproximava para um beijo e
atirar. Minha mão chegava até o gatilho, e a pistola nem precisaria sair do
banco, a bala com certeza tendo a capacidade de atravessar toda a estrutura.
Nico havia me garantido aquilo, eu sabia o que fazer, e só pensar no nome
dele me dava a clareza necessária. Nico me mandaria atirar.
Eu atiraria, e nós bateríamos a mais de noventa por hora na marginal.
E poderíamos não levar só a nossa vida. E eu me tornaria uma maldita
assassina, como já era o homem que eu queria matar.
— Gata, como você faz uma coisa dessas comigo? — Nickolay era um
assassino.
Mas meu assassino não atirava em crianças, como as que eu via no
carro da frente.
— Eu te fiz uma pergunta, vadia. — O som perdeu qualquer diversão,
a mão apertando para machucar. Thobias percebia o quanto me afetava, e eu
amaldiçoava o quanto meu corpo tremia perto dele.
— Você terminou comigo, Thobias. — Amaldiçoava o jeito que minha
voz hesitava, quase não saindo para dar a explicação.
— Eu só fui passar um tempo longe! — Uma mão esmurrou o volante,
a outra deixando hematomas na pele que beliscava. Doía, e eu puxei a
respiração, mordendo o lábio inferior para não soltar nenhum barulho. — E
você resolveu abrir as pernas pra São Paulo inteira, pelo que eu fiquei
sabendo!
Ele não me ouviria chorar. Ele não ouviria um som, e eu cobri a boca
para não deixar o soluço sair, o carro virando em uma saída a direita. Me
orgulhava por esconder as lágrimas, e me envergonhava pelas mãos
instáveis que errariam qualquer tiro que me atrevesse a dar.
— Gabriel me falou da vez que cê deu pra ele. — Gabriel? — Ele tava
todo marcado, cortesia do seu gringo.
E eu lembrei do jantar. Havia sido fazia mais de uma semana, e me
deixei fechar os olhos por um segundo, a imagem de Nickolay me
defendendo consumindo um pouco do meu medo. Como uma vida que
estava dando tão certo se tornou tão errada?
Estava tudo bem quando eu acordei, e então não estava mais, e as
lágrimas molhavam todo o meu rosto.
— Para de chorar! — ele gritou, como gritava na noite em que tudo
mudou. Como sempre gritou, e eu demorei tanto para ver.
— Eu não falei pra ninguém, Thobias! — gritei de volta por instinto,
os olhos cristalinos por um segundo espantados com a minha reação. — Eu
não falei, eu fiquei quieta...
— Não foi o que eu escutei do chefe do seu noivo! — O que?
Mas foi o celular vibrando no meu colo que me fez abrir os olhos, eu
sabendo quem era antes de ver o nome na tela. O sorriso que Nico me dava
fazia o de Thobias ser menos assustador, e por um momento, achei que
fosse conseguir atender.
Tive a certeza de que algo lesionou quando ele virou minha mão,
minha voz ecoando pelo carro. Thobias só torceu mais ao notar o anel que
eu vestia na direita, e eu só conseguia agradecer por ser canhota. E ele ria e
ria, Nickolay insistindo pela segunda vez.
— Quem é vivo sempre aparece, mesmo que seja por ligação.
Deveríamos atender juntos? — E pela terceira. — Talvez retornar a ligação
enquanto a gente fode?
A ameaça envolvia meu corpo num frio absurdo, o calor me deixando,
por mais que pensasse em toda sua fonte. Foi quem ele chamava de Don
quem planejou esse inferno, eu tinha certeza. Foi Matarazzo, e isso só
confirmava mais minhas suspeitas de minutos atrás: o italiano queria me
matar.
Assim como eu também sabia que o homem que dirigia o carro não
iria parar depois de tirar minha roupa.
— Thobias, por favor...
Ele iria me matar, e eu estava prestes a achar o fundo falso e
descarregar a arma nas suas costas quando dedos firmes se fecharam no
meu rabo de cavalo, a mão forçando minha testa contra a janela, uma, duas
vezes.
Ele iria me matar, mas o pensamento não foi suficiente para me manter
acordada.

Eu odiava o mar.
Sempre pensei que o desgosto tivesse relação com a mulher que me
carregou na barriga, alguma parte do meu passado responsável pelo
incômodo com a água salgada. Cheguei para minha mãe de criação com
meses, mas existem traumas que são tão grandes que te marcam mesmo
antes do seu primeiro ano no mundo.
Quando não sonhava com Gabriela, eu sonhava que corria para o mar.
Eu me via fugindo de alguém, olhando para trás, molhando os pés na água
fria. Realmente não gostava do sal que grudava na pele, da maresia, do som
das ondas batendo nas rochas.
Nunca tinha ninguém na praia. Nunca tinha ninguém na areia além de
mim.
Mas hoje, Nico estava me esperando na beira do mar.
Sorri, me afundando em seu peito, a dor que sentia na cabeça indo
embora com seu toque. Por que ele estava ali? Por que eu estava ali?
— Tô atrasada, eu sei — disse, e notei o gosto de sangue na boca.
Eu tinha batido a cabeça. Thobias tinha batido a minha cabeça, e em
algum momento, o impacto me fez morder o interior da bochecha.
— Dolcezza, precisa acordar.
— Eu não quero! — reclamei, sentindo as lágrimas voltarem. — Eu tô
com tanto medo... — Não passou de um sussurro, mas Nico me escutou.
— Não fique. Eu estou contigo, amore mio.
Mas ele não estava, eu sabia que não estava. Só que ouvi-lo era o
suficiente para fazer o calor voltar. Eu já sentia o fogo de sempre
consumindo todos os meus poros, acordando todo o meu corpo. Poderia
fingir que acordava ao lado dele.
— Lembra do que te disse? Se algum dia precisar atirar, finja que sou
eu puxando o gatilho. Eu faço por ti, Alana. — A mão tatuada levantou meu
queixo, e seus olhos gentis conseguiram me passar a calma que eu
precisava. — Abra os olhos e me deixe atirar.

Os olhos que achei quando abri os meus não passavam perto dos que
desejava ver.
Thobias sorriu, eu ainda atordoada notando com demora que
estávamos no banco traseiro. Via pelas janelas que tinha verde demais ao
nosso redor, o barulho da cidade sendo substituído por um silêncio
aterrorizante.
Ele iria me matar, eu tinha certeza disso.
— Finalmente acordou. — Não tinha por que ele me levar para o meio
do nada e não o fazer, e eu não podia deixar meu cérebro se render ao
desespero.
Eu não morreria. Não hoje. Eu precisava chegar até Nico, e para isso,
eu precisava ficar viva.
— Gabriela foi um acidente, Alana. Um acidente, em todos os sentidos
da palavra. — Tentei abrir a boca, apenas para ter seu dedo pressionado
contra os lábios. — Você nunca cometeu um acidente?
Assassinato nunca seria considerado acidente. Bater a cabeça dela até
sair sangue não foi um acidente. Segurá-la pelo pescoço até a vida da
mulher que carregava seu filho ir embora não passava perto de algo que
pudesse ser considerado um acidente. Ele tirou não uma, mas três vidas,
naquela noite.
— A senhorita perfeitinha nunca deve ter cometido deslize algum na
vida, estou certo?
E ele pagaria por elas com a dele. Eu precisava distraí-lo. Eu iria atirar,
mas precisava de sua surpresa para o plano dar certo.
— Thobias, vamos conversar...
— Nós vamos conversar. — Eu iria atirar, mas tremia com a mão que
abria o botão da minha calça, e repetia outra e outra vez que eu. Não. Podia.
Congelar. Agora. — Tava esperando você acordar pra isso, gata.
Olhei ao meu redor, minha cabeça bem ao lado da parte de trás do
banco do motorista. Dava para alcançar, a arma não estava longe. Forcei
meus olhos de volta para os azuis, me lembrando quantos segundos
demoraria para pegá-la, destravar e apontar.
Nickolay estava ali. Ele estava em tudo, e era o italiano que me
manteria viva. Fizemos aquilo juntos, seu corpo naquela tarde cobrindo o
meu como o de Thobias cobria agora. Então eu me enganaria que era ele, e
pararia de tremer.
— Eu não lembro de ter terminado com você, noiva. — Meu coração
apertava demais com a mão que ia para baixo da minha camiseta, e
precisava me forçar a respirar, eu precisando de oxigênio mais do que
nunca. — Isso quer dizer que você passou o ano me traindo, sua vagabunda.
— O aperto que recebi no seio era somente para machucar, e era difícil
demais fingir que era Nico para buscar estabilidade.
Eu morreria se não conseguisse fingir. Morreria se não acertasse o tiro
de primeira.
Eu morreria se não fizesse nada, e Thobias abria seu zíper com a mão
que antes me marcava, segurando meu celular com a outra.
— O mesmo padrão pra desbloqueio, a mesma senha, ai Laninha! —
A risada dele me dava enjoo. — Você não aprende. Vamos ligar pro
italiano, dolcezza? Que merda de apelido é esse? — O nome que amava
dito por sua voz fazia o enjoo aumentar, assim como o jeito que ele se
deitava mais sobre mim. — Esse seu comportamento é patético.
Eu daria dez segundos para meu corpo obedecer. Dez segundos.
Lembrava que tinha lido algo sobre como precisávamos respirar e dar um
tempo para nossos músculos se acostumarem com um comando.
Então eu contaria dez segundos, e ao final, apenas tremeria para
continuar enganando quem eu encarava. Era difícil, mas eu conseguia: já
tinha conseguido mais do que achava possível, o que estava prestes a fazer
não era nada. Era difícil ter seus dentes mordendo forte meu ombro, difícil
suas mãos puxando meus cabelos até arrancar os fios, e eu repetia como um
mantra que precisava aguentar só mais alguns segundos.
Os dez passaram, e eu agora me fazia tremer, e me faria parar assim
que tocasse no cabo da arma. Ele precisava estar distraído, e eu aguentei
quieta os dentes que cortavam meus lábios, as mãos que deixavam
constelações de roxos por onde passavam. Eu aguentei até a atenção dele
voltar para o celular, os dedos achando o contato que procuravam.
Ele discava o número da pessoa que me dava tranquilidade só de
lembrar, os olhos muito mais atentos na tela do que em mim. Continue
olhando para a tela, rezava. Olhe para a tela, não para baixo.
— O que você acha que o gringo vai pensar depois de te ouvir gritando
meu nome? — Era minha única chance, e ele ainda não me olhar me fazia
querer sorrir. Saber que Nickolay o mataria se eu não conseguisse me trazia
conforto, eu ponderando se tinha sido estragada por estar tirando prazer da
morte. — Está tocando — escutei, exatamente quando meus dedos tocaram
o metal frio.
E eu destravei a pistola, e parei de tremer.
Thobias ainda segurava o celular quando disparei o primeiro tiro.
Engraçado que, mesmo com o silenciador, eu conseguia escutar o barulho
da bala atingindo seu peito. Era um som rápido, o metal perfurando a pele
tendo um tom muito diferente do que ouvi quando acertei as latinhas de
alumínio.
A surpresa nos olhos azuis era divertida de se ver, e talvez eu tivesse
gargalhado, não fosse aquela a primeira pessoa que matava na vida. Sabia
que um de nós precisava morrer, e então, disparei o segundo. E o terceiro. E
o corpo caiu sobre mim, e eu continuei atirando, mesmo quando as balas
acabaram. Ele cuspia vermelho e sangrava na minha roupa, e eu agradecia
por estar usando uma blusa preta, a cor de luto combinando demais com o
dia amaldiçoado.
Só tive coragem de me mexer quando era apenas o meu coração que
sentia batendo.
Ainda estava muito mais claro do que gostaria e, mesmo no meio do
matagal, se enxergava bem demais o sangue manchando as janelas do carro.
Manchando toda minha pele descoberta, entrando debaixo das minhas
unhas. Thobias era pesado, mais pesado ainda agora que largava todos os
quilos sobre mim. Não conseguia soltar a arma, mas conseguia achar força
o suficiente para tirá-lo de cima do meu peito e voltar para o banco da
frente.
Era o choque que me fazia dar risada enquanto limpava o sangue das
minhas bochechas? Porque tinha um corpo no banco de trás do meu carro, e
eu precisava sair do meio daquele monte de mato, e nem mesmo tinha mais
meu celular. Me senti burra por ter acertado meu único meio de
comunicação com uma das balas, assim como me achava uma idiota por
nem mesmo considerar procurar pelo do homem que chegou perto demais
de me matar.
O carro cheirava a metal e patchouli, e eu acendi um cigarro que não
queria fumar para continuar sã. Usei mais lenços umedecidos do que o
necessário para tirar qualquer vestígio de um assassinato do rosto, o terceiro
corte que ganhara na testa durante a minha não tão longa vida já tendo fazia
algum tempo parado de sangrar. Quantos minutos fiquei de olhos fechados?
Meu Deus, eram cinco da tarde. Eram cinco da tarde, eu estava
atrasada, e Thobias estava morto no banco de trás. Ele estava morto, e o
sangue escorria pelo chão do carro. Quando o sangue parava de escorrer
depois que você morria? Era estranho querer dar um Google naquilo?
Com certeza era, e eu ainda escutava algo gotejando. Eu escutava, e o
vermelho debaixo das minhas unhas não ia embora, por mais lenços que eu
usasse. Eu ia vomitar. Ia vomitar o nada que havia no estômago, e o fiz
assim que abri a porta, a pistola descarregada continuando presa na minha
mão. Talvez eu nunca mais conseguisse soltá-la, assim como os olhos azuis
sem vida ficariam para sempre gravados na minha memória.
Limpava o canto da boca quando escutei um galho quebrar, e me virar
e mirar foi automático, por mais que não houvesse nenhuma bala sobrando.
Que se foda, conseguiria enganar quem fosse. O corpo que apodrecia no
carro era prova: seria capaz de fazer o que precisasse para sair dali e
reencontrar meu único conforto.
— Ela vai dar tanto trabalho quanto o italiano, quer apostar? — o
sotaque era carregado, mas não igual ao que eu tinha me acostumado a
ouvir.
Quem visse de fora a cena com certeza riria da minha audácia em
continuar apontando a arma, os dois que me encaravam quase tão grandes
quanto Nickolay — todos os homens daquele meio estúpido eram sempre
gigantescos?
Porque os que eu via, definitivamente, estavam envolvidos nas
mesmas coisas ilegais que o meu estava. E tinha certeza de que eu estava
em choque, meu cérebro tentando me fazer ficar quieta e voltar a ter
qualquer medo, eu só querendo rir. O sorriso que aparecia nos meus lábios
deveria me dar a aparência da loucura, e por um momento, achei que a
loucura fosse me servir de algo.
— Olha bem o tamanho dela. — Eu deveria sentir medo. Era normal
sentir medo, então por que o sentimento não vinha? — É só amordaçar e
colocar no carro. No porta-malas, se chutar demais.
— Fica longe! — E eu puxei o gatilho.
Entendi que eles sabiam que a arma estava descarregada, nenhum
tentando se proteger milésimos antes do clique. O maior fechou a cara, o
mais careca — os cabelos tão escuros quanto os de Nico — esticando o
braço e o impedindo de avançar.
— Yan, DeLucca vai te caçar no inferno se você arrastar a mulher dele
como pensa em fazer.
A resposta do outro homem veio numa língua complicada demais, e
aquilo era russo, sem dúvida. Aquilo era russo, e eu precisava chegar até
Nickolay. E tinha um corpo no banco de trás do meu carro.
— Alana, certo? Primeiro, já deu para perceber que sua arma está
descarregada, então se puder fazer o favor de abaixar... — E eu arremessei-
a nele, minha mira de agora provando ser tão ridícula quanto minha
escolha. — Bom o suficiente. Segundo, preciso que entre no carro. Não no
seu, no nosso — ele frisou ao me ver abrir a boca.
A última coisa que eu queria era entrar no carro de um estranho, e eu
olhei para o que Nickolay havia me dado. As janelas estavam espirradas de
vermelho por dentro, e aquele sim era um bom motivo para policiais me
pararem.
E para quem eu ligaria? Nem mesmo tinha um celular, pensava,
enquanto fingia ser uma possibilidade não obedecer ao que era — ainda —
pedido pelo homem mais baixo. Eu nem tinha um celular, mas tinha um
corpo no banco de trás. Eu matei alguém.
Merda, eu matei alguém.
— Foi Nico quem mandou vocês? — Eu matei alguém, e a única
coisa que queria era os braços dele ao meu redor. Eu matei alguém, e estava
a ponto de quebrar.
Eu quebraria inteira se confirmasse em palavras o que sentia, e tentei
ver no rosto cheio de cicatrizes alguma distração.
— Se eu te falar a verdade, devochka[84], você entra sem espernear
muito? — Fiz que sim, ignorando a palavra que não entendia e focando na
falha aparente que havia na sobrancelha direita. — Estamos pagando um
dos favores do seu italiano. Mantovanni nos mandou, e nosso chefe está
com seu noivo. — Dei um passo para trás. — Eu não gosto de bagunça: se
quisesse te matar, o teria feito de longe. Olhe para seu anel. — O que? —
Olhe a lateral. — E ele se aproximou, mostrando o que usava no dedo
anelar. — Igual, está vendo? Nickolay é família, o que faz de você família.
Nós não vamos machucar família.
Era realmente igual, e a joia me contava que a mãe do meu noivo
também teve pelo menos um pé na máfia antes de conhecer seu pai. Como a
mulher russa acabou com um italiano? A história dela havia sido parecida
com a de quem eu achava ser minha mãe? Catarina era minha mãe? Eu
adorava como meu cérebro sempre dava um jeito de achar coisas para se
distrair.
— Agora, se não começar a ser colaborativa, vamos ter que te arrastar.
Já estamos bem atrasados.
— Tem um corpo no meu carro. — Foi minha resposta, como se não
fosse óbvio que havia alguém morto ali.
— Yan vai cuidar disso, certo Yan? — O maior apenas levantou os
ombros. — Vamos, devochka. — E eu quase fui, até me lembrar do que não
poderia esquecer de jeito nenhum.
A hesitação fez o homem tentar cumprir a ameaça de me colocar no
carro contra minha vontade.
— Eu vou, eu vou, só preciso das minhas coisas! — justifiquei ao me
aproximar da porta escancarada, forçando meus olhos a ficarem longe dos
opacos.
Azul claro com vermelho era uma combinação estranha, e uma voz
dentro de mim gritava monstro, ao mesmo tempo em que admitia ser sua
combinação favorita. A mistura das duas cores era minha libertação.
Agarrei a mochila, me deixando confessar pelo menos uma coisa: com
ele morto, eu não tinha mais medo.
— Pronto. — Era tão estranho sorrir para um morto. Tão estranho
quanto não me arrepender da vida tirada. — Pra onde vamos?

Meu corpo chacoalhava, meus olhos pesados demais para serem


abertos. Aproveitava a sensação de relaxamento, eu inteiro dormente, algo
quente me cobrindo, a ausência de preocupações.
Cazzo, aquilo era bom. Poderia passar a vida assim, e seja lá quem
fosse que tocava minha cabeça, esperava que não parasse nunca mais. Algo
saiu dos meus lábios, os sons ainda abafados demais me fazendo ouvir com
clareza o nome que meu cérebro pronunciava.
Alana. Que esse seja o toque de Alana.
— Que bagunça. — Mesmo abafada, reconhecia aquela não ser a voz
da minha mulher. — Vocês italianos tem uma fissuração pela cor vermelha!
— Diz o homem que tem um estoque de carros escarlate.
— É mais fácil de limpar a porra do sangue! Tá na hora de me
agradecer, não tá, italiano?
— Chegou um pouco atrasado para agradecimentos, Dimitri.
— Atrasado? Não era nem pra eu estar nessa merda de cidade hoje! —
Tentei me mexer, e algo parecia rasgar minha cabeça.
Fechei os dedos no calor que me imobilizava, apertando até sentir uma
pressão no pescoço, o líquido frio entrando nas veias. Alguém tossia,
alguém falava numa língua que só podia ser russo, e eu sentia minha
consciência me deixando outra vez.
— Eu disse que era melhor amarrar o moleque! Nunca ninguém me
escuta nessa porra!
— Não vou tratar o menino feito um animal!
— Eu deixo a Morte te matar da próxima vez então, o que acha?
Eu reconhecia aquela voz, o homem presente por tempo demais na
minha vida para passar batido. O que Lorenzo estava fazendo ali?
— Ele já passou por merdas demais, Levina. — Também lembrava do
sobrenome, mas parecia que estava caindo, tudo que sabia escapando.
Eu lembrava daquela sensação, sim. Eu lembrava de vivê-la vezes
demais, num passado que parecia muito mais distante depois dela. Depois
de Alana.
Alana está morta, meu cérebro insistiu em recordar. Alana estava
morta, e a culpa era minha.
Eu realmente estava no inferno.
O relaxamento já não trazia mais conforto quando recuperei a
consciência. Abrir os olhos deixava luz demais entrar, e aquilo era errado.
Era simplesmente errado ter luz sem ela, e eu desejei que tivessem me
deixado morrer.
— Dá direito esse ponto, Mantovanni! Até parece que vocês não
sabem se machucar pra esse trabalho de merda que eu tô te vendo fazer. —
Mas Lorenzo nunca me deixaria partir. Ele nunca deixava, e mexi irritado a
cabeça antes de uma mão me prender contra o banco do carro, olhos azuis
me advertindo contra resistir sem precisar usar palavras.
Eu não conhecia o carro, mas sabia bem quem era o homem que não
conseguia fechar a boca.
— Finalmente acordou, bela adormecida! — Dimitri caçoava, e eu não
achava forças para responder a altura. Eu mal conseguia achar alguma
vontade de responder. — Dois tranquilizantes pra te apagar, Nickolay. Não
nega o sangue, hein?
Ainda assim, tentei, só então percebendo que até tentar era inútil. Um
pano tampava minha boca, o efeito de seja lá o que tivesse tomado
parecendo passar mais a cada segundo. Meus braços queimavam, eles
contidos atras de mim por uma corda apertada demais.
— É, eu precisei te amarrar por motivos de segurança. Fez um estrago
na mansão do italiano seu pai. Era do pai a mansão que explodimos,
Mantovanni? — A explicação veio num tom entediado, o russo com quem
tratei tantas vezes desde o começo do ano levantando as sobrancelhas. —
Espero que tudo de valor sentimental que tenha esteja contigo, a pressa nos
obrigou a improvisar um pouquinho.
Meu peito apertou ao lembrar que, na carteira que carregava no bolso,
havia uma foto dela. Não, eu queria meu relaxamento de volta. A
dormência que havia me abraçado quando injetaram o líquido no meu
pescoço.
— Filho, está bem? — Estava péssimo, e queria gritar que não era para
terem escolhido me salvar. Por que a deixaram morrer? Era eu quem não
deveria estar vivo.
Teria sido muito mais sábio terem me eliminado, porque comigo de pé,
a Itália inteira queimaria. Armando deixou dinheiro suficiente antes de
partir, eu tendo aumentado ainda mais a fortuna ao ser o maldito assassino
particular do Don — e de quem mais estivesse disposto a me pagar na
época.
Eu gastaria até o último centavo para eliminar quem havia destruído
todas as minhas chances de paz. Ao menos isso eu devia a ela. Ao menos
isso eu poderia lhe dar.
— Esse aqui, deve sua vida a ele. — O russo contava, apontando com
o queixo para quem insistia em me chamar de filho. — Se eu tirar a
mordaça, vai ficar quietinho? Ou vai tentar arrancar minha mão fora, que
nem quase fez com Pavel? Pavel não está muito feliz com seus dentes,
então agradeça que eles ainda estão todos aí.
Resolvi que era mais seguro observar os detalhes do carro, a luz forte
demais fazendo um bom trabalho em me cegar.
— Deixe o menino em paz, Dimitri.
— Você é muito suave com esse moleque. Ele seria bem menos
instável se tivesse limites. — Encarando a luz, era muito mais difícil pensar.
— Demidov não vai gostar nada disso. — Encarando a luz, eu conseguia
vê-la.
— Bem, diga para seu chefe que eu fiz o melhor que pude. — E era
muito mais simples me enganar por mais alguns minutos. Eu precisava
daqueles minutos como precisava de oxigênio, necessitando impedir meu
cérebro de associar toda minha calma com as drogas que não deveria
consumir.
— O melhor não é o suficiente. Deveria ter feito todo o possível. —
Os incêndios que já planejava provocar pediam uma mente sóbria para
serem postos em prática. — Manter essa informação guardada por anos não
te deixa nas graças do meu chefe.
Não me opus ao ter o pano que cobria a boca desamarrado, a anestesia
passando mais a cada segundo, minha mandíbula latejando. Meu corpo
inteiro latejava, e recuei da mão que tentava examinar meu rosto, apenas
para tê-lo imobilizado mais uma vez. Era inútil tentar lutar no estado em
que estava, e resolvi que fechar os olhos seria a melhor escolha.
— Como está se sentindo? — Lorenzo realmente estava me
perguntando aquilo?
Como acha que estou me sentindo? Mas não foi o que saiu dos meus
lábios. Cazzo de tranquilizante, ou qualquer que seja a merda que dopava
meu corpo. Dedos forçavam meus olhos abertos, e eu queria gritar, um som
que mais parecia um choro patético de socorro saindo dos lábios. Até meus
lábios doíam, o gosto metálico causando o pior enjoo.
— Nem pense em desamarrar ele, Mantovanni. Olha bem como o
moleque tá colaborativo, ele ainda tá no próprio mundo!
Queria rir, e o que saiu foi o mais perto do sarcasmo que conseguia dar
naquele estado. Não, eu não estava no meu próprio mundo, mas era tudo
que eu desejava. Um mundo com Nicolas e ela, um no qual não fosse
precisar enfrentar sozinho os dias de escuridão que viriam.
As lágrimas não caíam para me trazer o alívio que precisava, nem com
toda a dor que me destruía. Deveria merecer a dor, era o que assassinos
como eu mereciam, uma voz repetia. Ao menos conseguiria trazer o caos
com o que cultivava em mim, e o caos teria que bastar de consolo.
Os olhos azuis me davam uma preocupação da qual não era digno,
Lorenzo franzindo a testa antes de me prender por completo com suas
próximas palavras.
— Alana está viva, Nickolay. — Ele nem precisou das mãos para me
imobilizar. — Ela está bem, e está quase aqui.
Alana, e eu não conseguia a força para pronunciar o nome que me
trouxe de volta, mas sorrir com ela nunca era difícil. Queria sim a força
para reclamar: por que esperar até agora para me contar isso, cazzo?
— Matarazzo também está vivo. Talvez devesse ter deixado você
terminar o serviço. Ele tem certeza de que a ragazza é Stella.
Mas ela não era, e tentei me mexer pela terceira vez, só para lembrar
dos braços amarrados. Senti as amarras também nas pernas, e pouco a
pouco, minhas últimas memorias voltavam.
— Vá com calma, Nico. Está sedado. — Sacudi a cabeça, o estômago
embrulhando, eu tentando descobrir se era efeito do que havia tomado, ou
de todas as informações que pesavam demais. — Não tivemos muita opção
senão apagar você, moleque inconsequente. — Eu sabia que não. Também
sabia que Matarazzo, com sua nova certeza, nos caçaria em todos os cantos
do mundo.
E também sabia que iria vomitar, mal tendo tempo de virar a cabeça
antes de fazê-lo.
— É, com a quantidade de coisa que tem no sangue, até que levantou
cedo — escutei ao ser puxado para fora do carro, o vento frio que havia no
espaço aberto me devolvendo um pouco mais de foco. — Achei que fosse
acordar só no México — era Dimitri quem falava, e o país que não fazia
parte do plano original prendeu por completo minha atenção.
México? Eu não tinha como ir para o México. Enrugava a testa ao
olhá-lo, mas era irritante como ainda não achava as palavras para falar.
— O que? Algo contra voar pro México? Dormiu demais, a Tailândia
já é um plano bem distante, ragazzo.
Revirei os olhos, e pensar nela outra vez era todo o meu conforto. No
fim, talvez os deuses ouvissem até os descrentes, a voz chamando meu
nome suavizando o incômodo que toda a situação me fazia sentir.
— Nico! — Olhá-la era como voltar a respirar depois de tempo demais
debaixo d’água.
O homem que imaginava ser Pavel ainda me segurava pelas amarras, e
fui forçado a ficar de joelhos. Puxei o ar, odiando ser posto naquela maldita
posição, a única para quem gostava de me ajoelhar ainda longe demais.
Alana corria em nossa direção, e reconhecer sangue seco em sua testa
tornou lutar contra quem me continha automático.
Eu estava fraco demais para conseguir qualquer vitória, mas as mãos
pequenas que me tocavam eram suficientes. Alana era suficiente, ela viva
sendo a maior vitória que poderia ter, e a única que queria.
— O que aconteceu com você? — Ela tocava com delicadeza uma
testa que ainda nem doía, eu me forçando contra suas palmas para poder
senti-la. Ao menos o som que soltei ao ser outra vez puxado passava perto
da irritação que crescia.
Mas parei de me debater ao reconhecer a preocupação que havia no
rosto, tão machucado quanto o meu deveria estar. Os olhos marejados
sempre faziam meu peito apertar, e tentei forçar qualquer coisa coerente
para fora dos lábios abertos. O tecido da manga preta passou repetidas
vezes no meu pescoço, a testa franzindo, Alana me olhando impressionada.
— Nico, você tá coberto de sangue — não passou de um sussurro. Foi
apenas após processar as palavras que lembrei com clareza do que havia
acontecido antes de ir para o chão.
Também não deixaria livre o homem que pintou uma casa inteira de
vermelho. Que se banhou no sangue de todos que cruzara seu caminho. Eu
era outra vez o monstro que Matarazzo criou na Itália, e um monstro
precisava ser contido.
E ainda assim, ela tocava esse monstro com amor. Nenhuma droga
nunca conseguiu me anestesiar tanto quanto ela, assim como nenhum toque
nunca fez eu me sentir tão vivo.
— Não é dele, Lana. — Era impossível tirar minha atenção dos olhos
mel, a ansiedade me corroendo para saber a reação que teria quando a
mulher finalmente processasse as palavras.
As mãos continuarem em mim, e os olhos me mostrando preocupação
ao invés de julgamento foi o que me fez ser capaz de fechar os meus e
respirar aliviado. Não eram apenas palavras: ela aceitava. Alana realmente
aceitava um maldito assassino.
— Essa aí é a menina? Ela é tão normal. — Inclinei a cabeça em
direção a voz, a brava que respondia voltando a tomar minha atenção.
— Solta ele! — E eu queria falar que estava tudo bem, que por tudo
que ela considerava sagrado, deveria manter-se calada na frente de quem
comandava a Bratva no Brasil. — Desamarra agora, ou eu mesma corto
essa merda!
Quieta, Alana.
— E vai cortar com que, seus dentes?
Mesmo de joelhos, enxergava bem demais o rosto bravo, e podia sentir
o coração voltando a acelerar, eu pedindo novamente — e num intervalo
menor de tempo do que gostaria — alguma serenidade para a mulher que
não sabia quando calar a boca.
— Até com os seus, se precisar! — Foi o que ouvi logo antes de ter os
braços desamarrados, e teria nos levado para o chão se não estivesse de
joelhos, Alana equilibrando a nós dois. — Eu tô aqui, Nico. Eu tô aqui. —
E as mãos chegaram no corte que antes Lorenzo costurava, as minhas agora
livres inaptas de irem para longe dela. — Você tá tão machucado! O que
fizeram contigo, italiano?
Queria responder que tudo iria curar, mas precisei me contentar em
mantê-la perto. Meus dedos pressionavam toda pele que conseguia, Alana
tão quente por baixo da camiseta, eu notando pela primeira vez como estava
frio. O cheiro dela me envolvia, e eu não protestei ao ver o casaco pequeno
sendo posto ao meu redor. Estava tremendo. Que merda.
— Ele ainda está voltando, Lana. — Veio de Lorenzo, e eu notei o
lugar onde estávamos ser uma pista de aviões ao ver um pequeno pousando,
o barulho fazendo minha cabeça pulsar. A anestesia passando deixava meu
corpo sensível demais, e eu tentava conter a náusea que voltava com a dor.
— É muito ruim? — Era pior do que imaginava.
— Melhor do que aparenta. — Era bom não ter forças para me opor a
resposta, e deixá-la viver aquela ilusão por mais algumas horas.
Porque fugir do homem que nos perseguiria era ruim demais para eu
conseguir ver qualquer coisa boa. O futuro que poderia oferecer a quem
estava arrancando de uma vida normal, de confortável só tinha a conta
bancária. Encostei o rosto contra o corpo de Alana, tirando conforto do
cheiro tão dela: viver fugindo não era viver.
Precisava arranjar um jeito de fazer daquilo uma vida. Por ela.
— Precisam entrar nesse avião. — E alguém me levantava, eu
finalmente voltando a achar minha voz.
— No...
— Tá tudo bem, italiano! — Ela me olhava preocupada demais,
Lorenzo me dando o mesmo sentimento. — Para de lutar, tá bom? Pode
descansar, eu tô aqui. Eu não vou embora, Nico.
Pavel não me deu escolha senão a de apoiar meu peso nele, prendendo
um dos meus braços ao redor de seus ombros. Era a mão pequena agarrando
a minha livre que me mantinha calmo.
— Acha que consegue cuidar dele? Eu não posso acompanhar vocês.
— Mas eu posso, princesa, se me pedir com jeitinho. — Mesmo
dopado, quase levei nós dois para o chão ao tentar reagir.
Pavel, definitivamente, não parecia mais feliz ao voltar a nos
estabilizar.
— Dimitri, não provoque! E você, Nickolay, chega de dificultar! —
Lorenzo sempre conseguia fazer eu me sentir como um moleque com
aquelas broncas. — Nico, eles são de confiança. Se deixe descansar um
pouco, ok?
Agarrei mais a mão que tentou soltar a minha, e vi o homem mais
velho trocar um olhar nervoso com Alana.
— Não dê tanto trabalho para sua mulher, moleque. Acha que
consegue lidar com ele até o menino melhorar, ragazza? — Ele não falava
mais comigo, a dor finalmente se fazendo presente por completo, meu
corpo implorando para apagar.
— Nico me escuta, Lorenzo. Eu não tenho medo dele. — Eu queria
beijar aquela boca, ainda mais quando os olhos me mostraram mais uma
vez toda a verdade que havia em suas palavras.
A mão limpa de tatuagens que apertou meu ombro tinha um toque de
despedida, e descobri que dizer adeus para quem me criou passava longe do
confortável. Era o que Alana tinha passado parte de sua tarde fazendo, e ser
capaz de imaginar sua agonia aumentava a minha.
Lorenzo sorria, e eu não queria soltar a manga da sua camisa, me
agarrando a ele como uma criança agarrava o pai. Sua mão cobriu a minha,
e novamente sentia precisar fechar os olhos, meu corpo desistindo de lutar a
cada segundo contra a inconsciência que queria tomar conta.
— Até um dia, filho. — Era a primeira vez que sorria de volta ao ouvir
a palavra saindo dos seus lábios.
— Obrigado. — Foi a única coisa que consegui dizer antes de apagar.

O rosto dele estava tão machucado. Havia cores demais ali, e com um
lenço úmido e pouca luz, eu limpava o vermelho seco que, em sua maior
parte, não tinha saído do italiano.
Vê-lo de joelhos e coberto de sangue fez meu coração parar, as batidas
já tendo cessado demais em um só dia. Dava para notar os olhos mal
entendendo o que acontecia ao seu redor, ele forçando-se a ficar acordado.
Nickolay nunca se pareceu tanto com a morte, enfim fazendo jus ao apelido
que carregava tatuado no abdômen, e eu nem conseguia começar a imaginar
o que havia acontecido durante sua tarde.
O quarto estava escuro, mesmo com o relógio mostrando já ser oito da
manhã, e ainda estava tendo problemas em acreditar que, de todos os
lugares, tínhamos parado em Cancún. As cortinas pesadas faziam um bom
trabalho em bloquear a praia, visível do chalé privativo onde estávamos
hospedados, e Dimitri não havia me explicado nada antes de nos largar ali
com um novo celular, dizendo que o italiano saberia o que fazer quando
acordasse.
Com certeza, o homem que seguia apagado ao meu lado saberia o que
fazer, e tudo que eu queria era que ele abrisse os olhos para eu discutir
sobre como não aguentava mais me sentir inútil. Para perguntar tudo que
necessitava saber sobre nossa vida futura. Para conversarmos sobre
qualquer coisa que tirasse a última tarde do meu coração.
Não sabia como ainda estava sã, mas sentia que o resto da minha
sanidade me deixava cada vez que eu o reconhecia em algum reflexo. Do
mesmo jeito que Nico precisava de um banho, meu corpo gritava pelo
relaxamento que viria com a água morna, mas não foi um banho que
busquei ao entrar no banheiro. Sacudi a cabeça e respirei fundo: ele estava
morto, morto, morto, e tentei evitar o espelho e deletar o barulho de tiros
perfurando a pele enquanto abaixava para pegar mais lenços.
Quando me levantei, ele continuava ali. Dava para ver com clareza
demais os olhos opacos, o líquido que escorria, manchando seus lábios, sua
roupa. Inspirei pelo nariz e expirei pela boca, tentando focar na minha
imagem, no sangue coagulado enchendo meus fios de nós, na testa com
várias tonalidades de roxo. Tinha hematomas debaixo da camiseta, eu sabia.
Também sabia que tinha matado quem eu via ao meu lado.
Thobias estava morto, mas meu cérebro insistia em vê-lo. Até quando
ele me olharia de volta?
— Dolcezza?
E os braços tatuados ao meu redor afastaram tudo que era ruim, o
fantasma indo embora e eu vendo apenas nós. Por mais que nossa aparência
lembrasse alguma cena que se veria no Dia das Bruxas, não tinha como
evitar um sorriso. Minha Morte estava viva. Nós estávamos vivos.
— Achei que não fosse acordar nunca mais, italiano — foi o que saiu
quando me virei, minhas mãos indo para seu rosto, eu desejando que
pudesse curar todos os cortes que via com um simples toque.
Nickolay fechando os olhos contra minha palma e respirando aliviado
me deixava entender que ao menos os invisíveis eu era capaz de amenizar.
Ter aquele poder sobre alguém que era a morte personificada era assustador
e completamente inebriante, sentir seu gosto misturado com sangue me
trazendo de volta à vida. Ele tinha um cheiro que sempre acalmava meu
coração, o primeiro em muito tempo que me trazia toda a paz de volta.
Respirar ao lado de Nico era tão bom, mas a felicidade parecia estar só
em mim. Os lábios machucados não sorriam de volta ao deixarem os meus,
os olhos escuros sérios demais para um momento que deveria ter um
mínimo de alegria.
— Achei que nunca mais fosse te ver. — Foi a confissão que veio, a
primeira frase sóbria que ouvia dele apertando meu peito. — Achei que
tinha morrido. Matarazzo te queria fora da máfia. Fora de mim.
— Eu sei. — A culpa que via não deveria estar ali.
— Saber que estava com Thobias e não poder fazer nada foi meu pior
inferno. Eu escutei os tiros, Alana. Escutei, e quase morri contigo. Eu quis
morrer contigo.
— Mas eu tô viva, Nico. — Poderia sorrir por nós dois, por mais que
por dentro, estivesse em lágrimas. — Fui eu que disparei. Eu atirei, como
você me ensinou. — O confortava, desabotoando a camisa que um dia foi
branca, aliviada em não achar nada além de marcas de sangue.
Ele sacudiu a cabeça, olhando aborrecido para o chão, a camisa indo
para o piso frio. O sangue não era dele, me forçava a lembrar, e lavaria
embora toda a dor que meus olhos favoritos mostravam ter.
Era a primeira vez que eu via tão de perto o nome contornando a santa,
nosso tempo sem roupa desde aquela última tatuagem sendo escasso
demais. Alana, escrito na minha letra favorita, tirava minhas palavras, e eu
a descobrindo parecia tirar as dele também. Não havia motivo para todo o
receio que ganhava e, outra vez, sorri por nós dois, eu levantando os braços
e o deixando tirar a camiseta preta, Nickolay achando meus lábios antes de
me sentar na pia.
O italiano não teve o mesmo alívio que eu, enrugando a testa ao ver as
marcas debaixo do que eu vestia.
— Thobias não fez nada. — Tinha orgulho em conseguir pronunciar o
nome que não me mantinha mais prisioneira, e minha resposta veio em
forma de beijos.
Os lábios grossos foram para todos os machucados, eu como sempre
acabando nos braços do italiano, ele nos levando para dentro do box. Ainda
vestíamos calças quando a mão tatuada abriu o registro, a água morna
encharcando nós dois.
As mãos que lavavam meus cabelos eram tão cuidadosas quanto as que
eu usava para limpar seu rosto, a água vermelha descendo pelo ralo. Me
esforçava para deixar o dia de ontem ir junto com o sangue do mesmo jeito
que me esforçava para abaixar meu jeans molhado.
Sorri ao vê-lo me olhar desconfiado, praticamente me perguntando o
quão seguro seria ter os dois sem roupa entre quatro paredes. Queria citar
todas as vezes que as roupas nem mesmo foram embora, mas me contentei
em deixá-lo nu. Não importava o que ele vestia, nunca era seguro ficar ao
seu lado, e ao mesmo tempo, Nickolay era toda minha segurança.
— Eu não cumpri minha promessa. — Ele voltou a usar palavras
quando minhas mãos foram para seus cabelos, o xampu fazendo uma
espuma avermelhada, eu tomando cuidado com os pontos, ainda tão frescos.
— De te proteger.
— Você fez melhor que isso. — Recebi um olhar confuso. — Me
transformou na minha própria proteção. — O italiano deixou a bochecha
encostar na palma de minha mão, sua testa na minha, mostrando o quanto
precisava me ter perto. — Está tudo bem, Nico.
— Não é você quem deveria estar me tranquilizando — ele disse, seu
jeito de falar já tão mais parecido com o meu.
— É sim. — E o meu também se espelhava no dele. — Se precisar,
vou fazer isso por ti. — Ele se encolheu quando minha mão parou no corte
sem pontos que havia no supercílio, eu sabendo ser a única pessoa para
quem Nickolay mostrava abertamente suas fraquezas. — Dói?
O homem fez que sim, os olhos voltando para os meus.
— Vai passar. Tudo isso vai passar.
Era tão engraçado como eu conseguia fazer nós dois acreditarmos nas
minhas palavras. Mais engraçado ainda eu ter a certeza de que sim,
independente do que viesse a acontecer, tudo passaria se eu o tivesse do
meu lado.
O jeito que seus beijos foram dos meus lábios para meu pescoço me
fizeram suspirar, eu o incentivando a continuar ao passar as unhas pelas
suas costas.
Ele parou ao ver a marca de dentes que eu carregava em um dos seios.
Queria dizer que não era motivo para parar, que eu o queria independente
das marcas, que eu queria exibir as boas que o amor dele sempre deixava no
meu pescoço.
Foi nosso segundo banho comportado, Nico se mostrando grato em
apenas me ter nos braços.
— Lembra do que aconteceu? Lembra de antes do avião? — perguntei,
meus dedos explorando suas tatuagens, eu recebendo um sim. — Sabe o
que vai acontecer agora?
— Desconfio. — E os olhos foram para onde a ponta do meu indicador
traçava, eu outra vez apreciando a tatuagem de perto. — Estamos no
México, não estamos?
— Cancún. — Ele fez que sim com a cabeça antes de mordiscar
nervoso o lábio inferior. Minhas mãos o pararam a tempo de impedi-lo de
abrir o corte que tinha ali, os olhos escuros indo receosos para os meus. —
Eu não vou brigar contigo, Nickolay — afirmei, passando os dedos pelos
fios molhados que caíam em sua testa. — Chega de brigar, não acha? Não
tem motivo.
— Tem tantos motivos, dolcezza. — Outra vez, a tristeza atrás dos
olhos aflitos. — Eu te tirei da sua família. Da sua vida! Te arrastei para o
meu inferno, e uma vida contigo brigando não vai ser punição o suficiente
para mim. Acha que não me odeio pelo que te fiz? Acha que estou feliz em
te ter assim?
— E você acha que eu estaria feliz na vida que eu tinha antes de te
encontrar? Antes de você me ensinar que eu era o bastante? Antes de me
fazer ver que eu conseguia ser o bastante pra me defender? — Eu passaria a
vida sorrindo por nós dois se fosse preciso. — Eu acordava na pior das
prisões, dia após dia! Viver numa prisão não é viver, Nico.
— Então como pode dizer que está vivendo agora, Alana? — Porque
na prisão dele, eu passaria meus dias de bom grado, quis responder, mas
sabia o quanto o homem se doeria ao ouvir aquilo.
Eu também, lá no fundo, me doía com a palavra prisão.
— Para, italiano. Para de se torturar com isso, e me dá logo o sorriso
que é só meu. Se quer me dever alguma coisa, me deva isso. — Por mais
triste que fosse o que ele deixou sair, tê-lo conseguido já me aliviava um
pouco.
E ele voltou a morder o lábio, suspirando quando meu indicador parou
sua tortura, o homem parecendo precisar reunir forças antes de começar
seja lá o que fosse falar agora.
— Eu te amo, Alana. Eu te amo, e nunca vou deixar de te ter no peito.
— Nickolay tinha uma expressão sofrida, como se as próximas palavras lhe
doessem fisicamente. — Mas não quero continuar sendo egoísta. — Franzi
o cenho.
— Do que você tá falando, Nico?
— Disso. — Seus dedos acharam o anel que eu usava na mão direita.
— Eu quero que saiba que isso não precisa mais acontecer.
Como?
— Pelo menos essa liberdade eu consigo te dar. Está livre, Alana. —
Eu realmente não estava entendendo. — Livre de mim. Por mais que
estejamos fugindo juntos, por mais que deva ter meu sobrenome no seu
passaporte, é livre para fazer suas escolhas. Comigo, ou sozinha.
— Você quer o seu anel de volta? — perguntei, porque por um
momento, era a única coisa que fazia sentido.
— Nunca. — Ele sacudiu a cabeça, a voz saindo rouca. — É seu, para
sempre. Eu já te disse…
— Então eu não tô entendendo.
Parecia doloroso ele ter que me explicar. Os olhos carregavam uma
expressão angustiada antes da boca abrir para tentar me explicar que cazzo
— tinha aprendido a amar aquela palavra — estava acontecendo.
— Você pode me pedir para ir, dolcezza. — E eu finalmente revirei os
olhos. Talvez, daquela vez, eu tivesse mesmo batido a cabeça forte demais.
— Ir pra onde? — Aquela conversa era absurda. Talvez ele tivesse
batido a cabeça forte demais.
Nickolay me olhava com um sorriso muito mais triste do que deveria
haver em seus lábios, e eu tive que rir quando suas palavras, enfim, fizeram
sentido.
Ele não queria mais ser egoísta.
— Ir embora? — Aquela conversa realmente era absurda. Eu fiquei tão
magoada por estar presa a ele, mas nunca considerei tê-lo longe da minha
vida. Tinha lhe dito aquilo na noite em que ganhei o anel que olhava.
Por que Nickolay insistia em me dizer absurdos?
— Então, se eu pedir pra você ir embora…
Ele estava realmente considerando aquilo?
— Eu vou. Eu vou embora e te protejo de longe. Eu não vou te deixar
passar por nenhum perigo sozinha, mas nunca mais quero te impor minha
presença, Alana. Pode escolher ficar, mas também pode escolher ir. Pode
escolher, com segurança.
Não tive chance de dizer nada antes dos lábios acharem os meus, o
italiano me dando o que eu tanto quis, mas querendo aproveitar um último
momento antes das palavras que poderiam mudar tudo. Nico tinha gosto da
melhor das liberdades, e eu sorri contra a boca que devorava a minha.
Ai, que homem tonto. Tão, tão tonto, por pensar que pudesse haver
qualquer outra resposta.
A primeira vez que eu disse aquelas três palavras, tinha me convencido
de que era amor o que havia no meu peito. A angústia de perder, o
desespero de acordar e não ter Thobias ao meu lado. Todas as vezes que
precisava me certificar, diariamente, se o que ele sentia não havia mudado.
A necessidade, a dependência crua que tinha dele. Eu o amava, e o amor
que não deveria doer, doía.
Na noite em que fui morar sozinha, prometi que o amor nunca mais
iria doer assim. Que eu nunca mais me daria para alguém que me
mantivesse numa prisão. Que só teria o meu amor inteiro quem me deixasse
ser livre. As mãos tatuadas me colocavam mais uma vez sentada sobre a
pia, e os lábios nos meus me davam toda a liberdade que eu sempre quis.
Toda a liberdade que eu tanto desejei todas as vezes que lhe disse sim.
Toda a liberdade que nunca achei que fosse ter a chance de possuir com ele.
Nickolay dizendo me amar e me deixando livre só fazia o que sentia pelo
italiano aumentar mais. Ao seu lado, meu coração se permitia bater rápido,
mas no meu peito, só havia calma. Minha língua acariciava a dele, e eu
nunca tive tanta certeza sobre meus sentimentos.
Eu não dependia dele para viver, como achei que fosse o normal ao
amar alguém. Mas uma vida sem ele era algo que, se dependesse de mim,
não gostaria de conhecer.
Os lábios desciam para o meu pescoço quando seu nome saiu da minha
boca.
— Nico?
— Si, dolcezza?
Por mais que o último dia me desse tantos motivos para ficar triste,
parar de sorrir era impossível.
— Eu amo você.
Foi a primeira vez que notei que havia mais cor do que até agora me
deixei ver naqueles olhos. Nickolay puxou a respiração, as mãos
paralisando na curva da minha cintura, e os olhos escuros, que iam
desacreditados para os meus, tinham um esverdeado lindo quando
brilhavam.
— Eu amo você, Nickolay.
E Nico finalmente me imitou, virando a cabeça ao levantar os lábios da
forma que fazia meu coração pular uma batida. Eu nunca vi um sorriso tão
verdadeiro nele, assim como nunca tive tanta certeza sobre a promessa que
carregava na mão direita.
— Fica, italiano.
Queria vê-lo sorrir assim para sempre.
— Até meu último dia.

Dava para sentir os pontos repuxando o couro cabeludo, assim como o


lábio aberto incomodava, meu corpo ainda fraco tanto do resfriado quanto
de tudo que teve injetado nele.
Beijar Alana tornava toda a dor física irrelevante. O que saiu da boca
que tinha todo meu amor conseguia fazer o mundo leve, e me tornava capaz
de enfrentar as dificuldades que sabia estarem por vir.
Era a primeira vez em anos que escutava aquelas palavras, minha
mulher me relembrando o quanto um ‘eu te amo’ verdadeiro era poderoso.
Ela me escolhia, escolhia justo a mim, depois de tudo que passou. Ao
ganhar dela o que já considerava impossível, sentia que seria capaz de
entrar em guerra com o mar que Alana insistia não gostar, caso ela me
pedisse.
Por mais que não precisasse de mais nada tendo seu cheiro de
framboesa nos braços, fui em busca do celular abandonado sobre a cômoda.
Imaginava que estávamos bem escondidos, Dimitri me devendo demais
após eu ter colocado a irmandade russa nas graças dos políticos de São
Paulo. Ainda assim, as últimas horas que passei acordado me fizeram
aprender bem a não testar minha sorte.
Com certeza descartaria o aparelho quando chegássemos no nosso
destino, talvez até antes, dependendo do que descobrisse após a ligação.
Disquei o único número registrado nos contatos, o sem nome
provavelmente sendo do russo que salvou minha — nossa — vida.
— Levina. — Veio depois do terceiro toque, a voz confirmando minha
certeza, Alana me dando olhos curiosos. Ela se sentava na cama sem nem
mesmo uma toalha, minha atenção escolhendo ir para o mar.
— Sou eu.
— Oi, bela adormecida! — Dimitri me ensinava que o humor russo era
irritante. — Dormiu bem?
Dava para ver o corpo nu da minha mulher pelo reflexo, notei ao abrir
as cortinas, do lado de fora areia fina e um mar sem ondas.
— Melhor do que esperava. — A praia deserta deveria ser particular, e
eu já imaginava quem era o dono da propriedade na qual estávamos
hospedados.
— Deixei umas coisinhas no armário pra você e sua donna. — A
palavra em italiano era puro deboche, reforçando o quanto todos que
conhecia daquela nacionalidade tinham pouca noção do perigo, ou eram
simplesmente insanos. — Cortesia do Pakhan[85].
Alana precisava se cobrir, e eu, provavelmente, precisava rezar.
Ajudou antes, reforcei. Eu estava vivo, e numa situação bem melhor do que
imaginava.
— Agradeça Demidov. — Isso se o líder de todo o mundo ilegal russo
não me quisesse junto de seu exército.
Era melhor nem testar minha sorte, mas inevitável ter o pensamento:
meu azar não poderia ser tão grande.
— Ou quem sabe você mesmo pode ir agradecer o homem. Já passou
da hora do chefe conhecer quem tanto nos ajudou por debaixo dos panos.
— Cazzo. — Como Matarazzo não te matou antes ainda é um mistério.
Não tinha motivo para Demidov querer me conhecer, não fosse para
fazer alguma proposta. Assim como só havia uma resposta que me faria sair
com vida de uma.
— O velho não ligava para minhas omissões, desde que fizesse bem o
meu serviço. — Do lado de fora, saindo do ar-condicionado e sentindo o
calor que vinha com o sol e a umidade da maresia, eu preferia continuar
focando em quem um dia chamei de Don.
Matarazzo parecia muito mais seguro do que seu equivalente russo.
— Não o chame de velho na frente do seu novo chefe. — Eu mal tinha
saído de um problema. — Demidov não é exatamente novo. — Doía saber
que voltaria para o quarto com um novo. — Ele está esperando vocês no
chalé número sete.
Olhei ao redor, enfim notando as outras construções, cada uma tendo
distância suficiente da outra para privacidade. De longe, via alguém
acenando, e grunhi ao realizar que era o russo com quem eu falava.
— Onde estão nossos passaportes, Levina? — Eu também já sabia a
resposta daquilo.
— Pergunte ao Pakhan. Com jeitinho, DeLucca. — Dimitri reforçou
ao me ouvir bufar. — Se fizer merda, daqui você não sai com vida.
— Cazzo, Dimitri. Onde me meteu?
— Uma dica: evite usar italiano. Demidov detesta a nacionalidade. —
Ótimo, e eu gostaria de matar quem, horas atrás, me salvou. — Preciso falar
que ele quer ver os dois? — A voz soava feliz demais, e eu queria arrancar
dente por dente de quem eu via entrar na casa mais próxima de onde
estávamos. — Até mais, Morte.
Não tinha como voltar sorrindo para dentro, por mais que Alana
esparramada nos lençóis trouxesse alguma alegria de volta. Ela levantou
assim que passei reto pelo corpo que me tentava, meu foco sendo achar algo
apropriado para nos cobrir.
— O que foi? — As mãos quentes tocaram minhas costas, meu fogo
ambulante se enroscando em mim enquanto eu decidia que quem montou
aquele guarda-roupa só poderia estar fazendo uma piada de mau gosto
comigo.
— Nós vamos conhecer o Don russo. — A maior das saias ainda era
curta, e considerei enrolar Alana no cazzo do lençol. — Vista isso aqui. —
Decidi por uma saída de praia que mal esconderia qualquer biquíni que a
mulher escolhesse, me perguntando se seria considerado desrespeito
aparecer tão informal na frente de quem até eu era esperto em temer.
Descobrir que todas as peças reservadas para mim estampavam o
desenho de uma caveira fazia eu querer me enrolar no lençol.
— Ma che cazzo de guarda-roupa é esse? — Não tinha muita
alternativa senão a de decidir por uma bermuda e a menos pior das
camisetas. O espelho fazia um bom trabalho em mostrar o quanto estava
ridículo. — Precisamos de roupas novas para conseguir sair desse país.
— Não vejo problema no que eu tô vestindo. — Meus olhos foram
para quem falava, e teria vontade de devorá-la, não estivesse tão nervoso.
— Não gostou? — E ela sabia que eu estava, e eu sabia que minha mulher
estava com medo de tocar na palavra.
Forcei um sorriso, a puxando para mim, conseguindo um mínimo de
paz de volta ao respirar seu cheiro.
— Vai ficar tudo bem. Só me deixe conduzir a conversa, ok? — pedi,
os olhos grandes me estudando curiosos, esperando por mais. — O homem
com quem vamos falar é poderoso demais para cometermos qualquer
deslize, dolcezza. Eu te explico tudo, eu te ensino o que quiser aprender...
— Ver o pequeno sorriso me aliviava demais. — Depois dessa conversa.
Depois disso, pode me pedir o que quiser.
Ela passou os lábios pelos meus antes de falar.
— Você sabe que eu cobro, não sabe?
Só um idiota tentaria algo contra um homem com tantos seguranças ao
redor, e eu esperava não precisar ser um. Havia pelo menos uma arma à
mostra em cada um dos homens pelos quais passamos até chegar à sala
onde estava o russo. Não haver ninguém além de nós três dentro do cômodo
me dava a certeza de que, em algum lugar do lado de fora, alguém tinha
uma arma apontada para minha cabeça.
Com certeza a parede de vidro não era a prova de balas. Por mais
normal que o homem mais velho parecesse, os olhos escuros me avisavam
que, apesar da idade, deveria ser tão letal quanto eu.
Ele nos aguardava sentado, e eu soltei Alana a contragosto e segui
sozinho para sua frente.
— Pakhan. — Nem pensei antes de descer em um dos joelhos,
levando a mão que repousava no apoio da poltrona até os lábios. Deveria
considerar o figlio di putanna como meu novo chefe, afinal, e sabia o
suficiente sobre os costumes russos para entender que o novo meio
apreciava a submissão.
Por mais que soubéssemos a minha ser apenas uma fachada.
— Desnecessário. — Ele retirou a mão antes de eu tocar os lábios no
brasão do anel, se levantando.
Tinha uma curiosidade nos olhos escuros que eu reconhecia, mas não
me lembrava onde havia visto. O homem era quase tão alto quanto eu, mas
no corpo vestindo branco, eu não via qualquer tatuagem, o contrário do meu
cheio de tinta.
— Me disseram que você é a morte. — Ele escolheu o inglês, os olhos
nunca deixando os meus. — O melhor assassino de toda a máfia italiana.
Era bom eu confirmar aquilo? Adiantaria negar?
— Eu sou — respondi, voltando a ficar de pé.
A atenção foi para o que eu vestia, os lábios se levantando ao perceber
a camisa que expunha meu apelido. O desenho infantil estava longe de
impor qualquer respeito, e eu esperava que o resto da minha aparência
compensasse.
— Dimitri tem um senso de humor peculiar. — Franzi o cenho quando
os olhos foram para quem estava atrás de mim, tentando inutilmente
esconder qualquer desconforto. — Mas vermelho cai bem na sua mulher.
O interesse foi curto, e lá no fundo, admiti que era verdade, Alana
tendo reacendido minha paixão pela cor. Não queria imaginar todas as
formas que o chefe russo poderia usar para arruinar o vermelho para mim.
Ainda assim, perguntar era algo que deveria ser feito.
— Como posso servi-lo, Pakhan?
Era curioso como todos os chefes pareciam ser donos daquela calma
que eu tanto buscava. O que dava tranquilidade para aquele tipo de homem?
Saber da sua influência? Governar pelo medo? Ali, em frente ao mais
poderoso que havia na Europa — um que nem mesmo Matarazzo havia se
atrevido a incomodar — tentava conseguir uma resposta antes de ouvir a
dele.
— Sempre quis conhecê-la, a morte. Nunca cheguei tão perto dela. —
O que ele procurava tanto nos meus olhos? — Para alguém que fez metade
do exército italiano cair, me impressiona a suavidade que acho na sua
expressão. Você não gosta de matar. — Mas mato, quase respondi, ele o
fazendo por mim mostrando o quanto me lia bem. — Mas mata. Por ela? —
Bem demais.
— Tudo por ela — afirmei o que já deveria ser o óbvio, me atrevendo
a bloqueá-la dos olhos escuros dando um passo à frente.
Nossa altura era quase a mesma, eu ainda conseguindo ser mais alto
que o homem grisalho, Demidov desistindo de me encarar e me dando as
costas.
— Achei que fosse tudo pela Famiglia. — A observação veio com
uma gaveta sendo aberta, e me forcei a não recuar. Ele sabia da minha
aflição, me deixando ver ao sorrir e sacudir a cabeça, voltando para minha
frente com o que pareciam ser nossos novos passaportes. — É o que vocês
italianos dizem, estou certo? Tutto per la Famiglia.
Talvez afirmar o quanto minha antiga máfia já não era mais
considerada ajudasse.
— Alana é a minha. Tutto per lei[86] — completei antes que me desse
conta, as palavras de Dimitri sendo verdadeiras demais. Seria sábio pedir
perdão?
O que a Itália havia lhe feito para tanto ódio? Porque era esse o
sentimento escrito em todo o rosto.
— Anna. — A correção veio numa voz que combinava com o
incômodo, o chefe russo recuperando sua compostura antes de continuar. —
O nome dela agora é Anna. — Ele abriu o passaporte, mostrando o escrito
ao lado da foto da minha mulher. — Anna Orlov. E Kolya Orlov. — O
senso de humor daqueles homens era engraçado apenas para eles. — Por
que essa cara? Russo demais para você?
— Orlov era o sobrenome de minha mãe. — E ninguém sabia daquilo.
— Não vejo como pode continuar com DeLucca, Nickolay.
Sobrenomes fracos não combinam com a morte. — Não era sábio defender
meu pai agora, e permaneci quieto. — Acredito que Dimitri arranjou para
viajarem em alguns dias. Os passaportes são canadenses, então imagino que
isso responda qual é o destino de vocês. As duas malas que estão no quarto
também são suas. Leve-as.
E os passaportes foram estendidos para mim. Os segurei, o homem me
dando mais um olhar antes de passar por minha mulher e seguir para a
porta.
Mas eu sabia que nada na vida era assim fácil. A vida de quem tinha
valor demais para o meio no qual estava nunca se relacionava com a
facilidade.
— O que quer como pagamento, Pakhan?
— Você já pagou, Nickolay. — Ele não se virou ao responder, a mão
virando a maçaneta. — Está livre.

A incredulidade não estava apenas em mim, mas também na mulher


que molhava os pés na água salgada enquanto voltávamos para onde
passaríamos hospedados os próximos dias. Só agora descobria que Alana
não tinha o melhor inglês, mas sua compreensão era boa o suficiente para
entender que havíamos conseguido o que buscávamos.
— O que aconteceu pra ele não te querer, Nico? — Ela carregava as
sandálias nas mãos, verbalizando o que nós dois pensávamos.
Olhei para minha mulher, apreciando a calma que havia ficado em
mim após sair da casa. Andando no mar, segurando sandália e chapéu, os
cabelos longos se movendo ao vento, Alana era a visão do que sonhei um
dia ter quando adolescente. Eu amava a espontaneidade e as unhas roídas,
do mesmo jeito que adorava a teimosia e a forma que ela sabia curar o que
doía.
— Ele não achou o que precisava em mim.
Aquela mulher me tirou da escuridão, e foi por tê-la em minha vida
que Nikolay Demidov não conseguiu achar em mim o que necessitava que
seus assassinos possuíssem. Eu não tinha sede de poder, como era o lema
daquela máfia.
— Graças a ti, cuore mio. — Eu tinha sede dela. — O que quer me
pedir? — perguntei ao alcançá-la, minha mão em sua cintura a puxando
para perto de mim. — Sinto realmente que posso te dar tudo, depois do que
passamos.
Vermelho realmente ficava bem naquela mulher, Alana da cor de um
tomate ao escutarmos o estômago dela se manifestar.
— Acho que eu nunca senti tanta fome — foi a confissão que veio, ela
pela primeira vez sendo quem pedia comida.
— Vamos começar achando um café da manhã, dolcezza.

O chalé na beira da praia era para ser um descanso do inferno que


vivemos, mas era difícil descansar mentalmente com tudo que sabia que
enfrentaríamos.
As malas continham um dinheiro que eu não precisava, todo o resto
que possuía já atrelado aos nossos novos nomes em contas espalhadas pelo
mundo. A arma registrada era uma precaução que não estava disposto a
largar, e talvez até o celular considerasse manter após a interação com o
Pakhan ter corrido muito melhor que o esperado.
Alana sorria mais que o normal, e eu me fazia acreditar que era por ela
realmente estar feliz, ao invés de aceitar que isso era a mulher ainda não
percebendo no que tinha se metido. Ela comia panquecas com frutas
vermelhas e creme de avelã, e tudo que eu queria era esse apetite
continuando quando as dificuldades começassem.
Minha mulher fazia o que acontecia conosco parecer fácil demais de
aceitar, e me perguntei algumas vezes se aquilo era ela escondendo sua dor
atrás de uma alegria falsa. Nunca esqueci dela escondendo seu choque ao
me ver matando, me lembrando todos os dias como Alana era boa em
esconder tudo que era ruim quando queria.
Mas escolhi viver no mundo que ela nos dava durante nossas manhãs.
Noites sempre me faziam pensar mais que o necessário, eu a livrando de
minhas tatuagens em quase todas e aproveitando o mar. Sempre saía dele
renovado, as memórias de quando minha infância era boa tomando conta.
Armando que me ensinara a nadar, e lembrar da parte boa do meu pai
confortava.
— Pesadelos? — escutei, já sentado na espreguiçadeira que havia no
deck, ainda pingando água salgada.
Abri os olhos, Alana sendo a primeira coisa no meu campo de visão.
— Contigo, mai. — Puxei-a para perto por uma das mãos, sua livre
passando pelos meus fios molhados.
Respirei fundo, querendo guardar a memória para sempre. Mesmo com
tudo que passamos, mesmo ainda vendo mais tonalidades do que deveria
haver num rosto tão doce, havia momentos que sentia a necessidade de
manter. Minha memória não era exatamente boa, mas eu conseguia forçá-la
a ser quando queria.
E eu queria agora. Eu queria nosso agora.
— Não me diz que você tá nervoso. — A voz soou apreensiva, e
decidi que faria Alana esquecer o que era apreensão.
— Não desse jeito, dolcezza. — Encontrei seus olhos mel, escolhendo
as palavras antes de confessar. — Pela primeira vez em muito tempo, eu
estou… — Não tinha como não sorrir. — Livre.
Eu sabia que quem tinha nos braços me entendia bem demais.
— É bom, não é mesmo? — Era tudo com o que sempre sonhei, desde
o dia que ingressei no meio em que vivi tantos anos. Era maravilhoso.
Era aterrorizante. Mas ao lado dela, todos os meus medos eram
acalmados.
— Minha liberdade tem o melhor dos gostos — falei antes de prová-la,
o salgado do mar se misturando em nossas bocas.
— Ainda posso te pedir uma coisa? — Veio quando nos separamos, a
mulher dando alguns passos para trás antes de me dar um meio sorriso.
— O que quer?
E o roupão leve caiu no deck de madeira, Alana mostrando não estar
vestindo nada por baixo dele. Salivei ao olhar seus seios, os bicos rosados
enrijecendo antes mesmo da minha língua tocá-los. A cueca pouco escondia
o que só ver essa mulher fazia comigo, ela se aproximando me fazendo
molhar os lábios.
— Quero que me ensine a gostar do mar, italiano. Acho que não
aprendi direito da primeira vez. — Se ajoelhando na minha frente, Alana
roçou os dedos por toda minha extensão coberta, seu toque quente como
fogo. As mãos então foram para o cós da boxer que usava, a língua
passando pelos lábios finos antes dela abaixar o tecido. — Me ensina como
o mar pode ser gostoso de ouvir.
Sua boca se fechou ao redor do meu pau sem aviso, meus dedos
agarrando com força as bordas da espreguiçadeira. Minha mulher sempre
substituía as piores memórias com as recordações mais doces, minhas mãos
apertando a madeira apenas pelo prazer que seu calor me dava.
— Cazzo, Alana... — Joguei a cabeça para trás, vendo as estrelas
enquanto era chupado devagar. Alana sugava com uma calma que só
reconhecia nela no sexo, a língua macia passando ao redor da cabeça me
dando a certeza de estar no céu. — Isso é muito bom.
Resisti a vontade de impulsionar contra sua boca, a deixando trabalhar
devagar. Segurei os cabelos compridos com uma das mãos, a encorajando a
ir mais fundo, tentando manter o controle ao me ver escorregar para dentro
dos seus lábios.
Ver Alana me chupando era tão bom quanto as sensações que as
sugadas proporcionavam. Desde nossa primeira vez, ela chupava com
vontade, me mostrando que realmente gostava de me ter na sua boca. A
forma que fechava os olhos quando provava meu pré-gozo tirava meu ar, e
o jeito que gemia ao redor do meu pau sempre que o sentia pulsar me
deixava ainda mais duro.
— Minha vez. — Iria gozar se continuasse, e precisei deitá-la onde eu
antes me sentava, acomodando suas pernas nos meus ombros. Amava o
cheiro dela inteira, a pele do interior da sua coxa doce e salgada contra
minha língua.
— Eu ainda não acabei… — Sorri ao ouvir a voz falhar, minha vez de
provocá-la com a respiração quente.
— Eu sei, bella. — Ela arqueou as costas, a ponta do meu nariz
roçando na sua virilha, as mãos pequenas me buscando. — Mas eu preciso
começar.
Dei um suspiro satisfeito antes de me perder em sua boceta. Meus
lábios se fecharam nela, imitando sua forma preguiçosa de sugar, minha
língua a devorando com movimentos circulares. Estava dolorosamente
duro, os choros de Alana me deixando próximo demais do descontrole.
Mesmo ao lado do mar, a única tensão que vinha da minha mulher era a que
sempre reconhecia quando próxima de gozar.
Sim, ela aprenderia a gostar do mar comigo, decidi. Gemi contra seu
sexo ao senti-la tão pronta, Alana se contraindo e molhando os dedos que a
preenchiam. Ouvi meu nome, a voz chorosa me avisando que a dona estava
cada vez mais perto, o jeito que ela pedia por favor me fazendo atender suas
súplicas e ir mais rápido.
Amava Alana gozando na minha boca, minha mulher tremendo
enquanto sua boceta ficava ainda mais apertada. Ela ainda gozava quando
me enterrei nela, a pressão arrancando seu nome dos meus lábios.
Ajoelhado, segurava suas pernas contra o peito, meu pau sendo sugado
pelos espasmos, as investidas fundas nos fazendo arfar.
Ficar parado dentro dela era impossível, ainda mais com a visão que
tinha ao olhar para baixo, com os sons que os lábios que amava me
deixavam ouvir. A mão pequena se perdia entre as pernas, Alana se tocando
e gemendo tornando minhas estocadas urgentes. O suor escorria pela pele, o
calor da noite competindo com o nosso, o barulho do mar sendo abafado
pelos sons que fazíamos.
Já sentia a pressão conhecida, os lábios entreabertos e os olhos
cerrados da mulher embaixo de mim sendo demais, Alana sendo, como
sempre, demais. Ela arqueou as costas e se contraiu forte ao redor do meu
pau, me fazendo gozar de forma violenta, eu apertando suas pernas contra
meu peito enquanto me esvaziava dentro dela.
Soltei uma respiração aliviada, melando nossa pele ao sair dela e
alcançar os lábios para um beijo. Reafirmei ali que faria todo o possível
para o sorriso que ganhava nunca ir embora.
— O mar é mesmo mais agradável contigo, Nico.

Era a primeira vez que o via dormir antes de mim. Sentados nas
poltronas, já havia horas entre as nuvens de um céu escuro, Nickolay
segurava uma das minhas mãos de olhos fechados. A expressão que tinha
em seu rosto ao descansar era mais suave do que a mostrada antes de
entrarmos no avião, mas as olheiras ainda fundas denunciavam o cansaço
dos últimos dias.
As férias forçadas passaram longe de servir como um bom descanso,
nossas dores presentes demais para serem esquecidas, por mais que
tentássemos exorcizá-las. Os lábios grossos, piores que os meus, ainda
curavam, e algumas tonalidades de roxo e verde continuavam a pintar seu
olho esquerdo e parte da testa.
Por costume, busquei no bolso um celular que não existia mais,
tentando afastar os pensamentos que davam a pior das saudades enquanto
me distraía com um dos filmes disponíveis. Não consegui, e passei alguns
minutos recitando os dois telefones que necessitava nunca esquecer, por
mais que não pudesse discar nenhum deles. Ter os números de Djamila e
minha mãe era o mais próximo do conforto que conseguia chegar, a
comodidade da primeira classe não ajudando quanto a isso.
Preferia estar na econômica, mas voltando para elas. Preferia nunca ter
pisado em um avião, e passar a vida esperando pelos almoços de domingo.
Preferia não chorar, e voltei a focar nele.
Nico sempre conseguia acalmar meu coração. Observei os cílios
longos do italiano por mais um minuto antes de retirar o diário gasto de
dentro da mochila amarela. Com uma mão ainda segurando a caveira,
tentava equilibrar aberto o pequeno caderno com minha esquerda. Nickolay
não a largaria, do mesmo jeito que eu não conseguiria qualquer descanso
antes de pousarmos, e decidi deixar meus olhos devorarem as páginas
escritas pela mulher que Vincenzo achava ser minha mãe.
O diário da mulher que me carregou permaneceria guardado, eu
querendo lê-lo por inteiro em um ambiente muito mais particular que uma
cabine de avião. Me perguntei se a agonia que eu sentia agora era parecida
com a que meu marido — ainda era tão estranho chamá-lo assim — teve ao
me esconder nossa primeira noite. Durante todos os dias que não contou
sobre sua agora antiga máfia. Era horrível, e ao mesmo tempo que quis lhe
contar tudo todos os dias, sabia que precisava digerir as palavras sozinha,
para então digeri-las com ele.
Foi enquanto o homem dormia, dopado de tranquilizantes na primeira
parte de nossa viagem, que passeei pelas páginas do diário da minha
verdadeira mãe. Ela se chamava Carina, era tão brasileira quanto eu, e
estava apaixonada por um homem que parecia demais com Nickolay. O
mesmo homem que minha mãe de criação disse um dia ter se apaixonado,
minha mãe biológica afirmou amar já nas primeiras páginas. Ela escrevia
Armando e cortava o R que havia no nome, e eu desejava saber se era assim
clichê quando pensava no meu italiano.
Ler sobre aquele amor me fez feliz e triste, e guardei o caderno quando
cheguei na parte em que a tristeza se tornou maior, aquele sábado já tendo
lágrimas demais para eu derramar mais algumas.
Me mexi e Nico continuou dormindo, a respiração pesada denunciando
que o sono era profundo o suficiente para eu arriscar a leitura. Queria achar
o que havia de errado ali, o que Lorenzo achou pesado demais para dividir
com seu protegido, mas compartilhou comigo da pior forma. Ainda
lembrava das palavras antes dele nos deixar embarcar para fora do Brasil, o
homem mais velho sabendo que eu estava com os diários: leia sozinha, e
depois com ele.
Era arriscado, mas precisava descobrir o que havia ali antes do avião
pousar, antes dos meus olhos favoritos abrirem outra vez.
Então eu li sobre a espanhola. Catarina era nascida em Madrid, e
diferente da letra redonda e infantil da minha mãe — Carina — a da esposa
de Matarazzo era fina e elegante. A história contada começava como um
conto de amizade, duas imigrantes compondo uma história linda e triste. Já
me perguntava se teria algum sossego após a última frase, ou se lê-lo por
inteiro só me faria ter mais vontade de correr pelas páginas do próximo.
Descobri muito antes do meio que sossego era uma palavra que não
parecia mais fazer parte de minha vida.
"Não sou a única que busca segurança nos homens italianos. Vince
saiu para um dos tantos jantares de negócios com Armando, e me deixou
com sua esposa Katerina e seus dois filhos."
Armando. Era o mesmo nome do homem que havia me dado para
minha mãe. O homem que me chamava de filha. O homem que Carina
amava. Era coincidência demais haver dois Armandos.
Puxei o ar, tentando acalmar meu coração. Do jeito que andava minha
sorte, apenas o som dele batendo mais rápido conseguiria acordar o homem
que descansava ao meu lado.
"Katerina Orlov está na Itália há quatro anos, e me contou sobre
quem era antes seu marido. Armando é muito mais gentil, mas não existe
amor entre os dois, por mais que dividam uma cama."
Eu tinha lido errado, e meus olhos voltaram para o começo do
parágrafo uma, duas, três vezes. Orlov era o sobrenome que estava no nosso
passaporte. O sobrenome que Nico disse, pelo que entendi da conversa com
o líder russo, vir de sua falecida mãe.
Sem dúvida, tinha entendido errado. Meu inglês era péssimo, e eu já
me perguntava como me viraria num país no qual eu não dominava a
língua.
Eu não queria ouvir a voz de Nickolay agora, por mais que ela só
estivesse na minha cabeça.
"Mamma tinha a mesma teimosia que vejo em ti. Seu nome era
Katerina."
Katerina. Katerina Orlov tinha sido a mulher de Armando. E eu olhei
para o italiano, pedindo a todos os santos para os olhos escuros continuarem
fechados.
Porque minha mãe também era uma mulher de Armando, e eu queria
gritar. Porque Armando era meu pai, eu tinha certeza, e eu estava surtando
por dentro.
Não havia semelhança alguma entre nós. Não havia. Eu era,
fisicamente, o oposto do homem que dormia encostado em mim. Por mais
que compartilhassem apenas um pai, meios-irmãos precisam, no mínimo,
ter alguma semelhança física.
Certo?
Precisei me forçar a parar de tremer e continuar, mordendo forte o
lábio inferior, como se tentasse tirar qualquer calma do gosto metálico que
provava no corte aberto.
"As coisas na Rússia não eram tão bonitas, por mais que a neve seja
linda. Nunca gostei de neve mesmo. Kata também não gostava de como o
sangue dela sujava todo aquele branco, e disse que preferiu fugir com seus
meninos ao ver o gelo com o vermelho deles. Kolya ainda tinha meses
quando pisou na Itália pela primeira vez."
Kolya.
"Minha mãe nunca me chamava de Nico. Dizia que o certo era
Kolya."
E eu respirei outra vez. Nickolay não era filho de Armando. Eu
poderia entender isso dessa passagem, não podia?
Era tão frustrante só poder perguntar aquilo para mim mesma, eu não
sendo religiosa, mas dando graças a Deus por não ter dividido os cadernos
com o italiano. Nickolay teria surtado, do mesmo jeito que eu quase me
entreguei à loucura ao descobrir estar transando com o homem que, por
alguns segundos, achei ter meu sangue.
Nico não tinha, ele não tinha. Mas ele não ter significava que não fui
só eu a enganada por anos quanto às origens. Lembrei do detalhe que havia
nas laterais do anel que eu agora usava na mão esquerda, o homem que me
tirou do meio do matagal falando sobre como aquela era a marca da
organização russa para qual trabalhava. Era estranho pensar que,
geneticamente, eu era mais italiana que Nickolay, meu marido tendo a alma
de um, mas o sangue inteiro vindo da Rússia.
Era inevitável me perguntar se quem Nickolay chamou de Pakhan
sabia da verdade sobre meu marido. Portando o mesmo primeiro nome,
Nikolay Demidov, além de ser rotulado como uma das pessoas mais
perigosas do planeta, tinha os olhos e cabelos iguais aos do homem que
dormia contra mim. Combinando a semelhança com todas as vezes que
Nickolay comentou sobre a liberdade ter vindo de forma fácil, não fazia
sentido e tinha todo o sentido do mundo o que meu cérebro insistia em ser a
verdade.
Mas não pensaria sobre como Nickolay poderia ter conhecido seu
verdadeiro pai sem saber. Não agora, não antes de digerir a história que eu
ainda estava juntando os pedaços. Alcancei a carta, guardada dentro da
última página do caderno vermelho, notando que a letra de Nico era
parecida demais com quem ele passou a vida acreditando ser seu sangue.
Eu compreendia uma palavra ou outra do que lia escrito em italiano,
meu desespero me fazendo bufar e querer acesso à internet para abrir um
tradutor. Já xingava Lorenzo quando virei a folha, respirando aliviada ao
achar a nova letra reescrevendo a carta em português.
"Minha filha,
Não confie em ninguém. Confiar demais foi o que matou sua mãe.
Confiar demais te levou embora, antes mesmo de eu poder te ter nos
braços.
Barbara me disse que vê meus olhos nos seus. Os mantenha abertos
sempre. Nessa vida, aprendi da pior forma que nada é o que parece, e todos
escondem segredos.
Astrid, depois de sua mãe, é a mulher em quem mais confio, e vou
deixar com ela a escolha de revelar ou não a verdade para ti. Não se
magoe se vier tarde. Por mim, a verdade não viria nunca.
Meu maior desejo é que tenha uma vida normal, e farei de tudo para
que sua normalidade seja possível.
Eu te amo, meu único sangue.
Armando."
A tradução parecia ter acabado, mas Lorenzo, não.
"Armando era bom, Anna. Ele só tomou algumas escolhas erradas.
Cuide do meu menino. Nickolay se apaixonou por ti desde a primeira
vez que viu seus olhos. Talvez porque tenha procurado durante toda a
infância, num olhar tão parecido, a aprovação que você dá de graça.
Carina colocava a culpa na cor, e queria que os da filha fossem iguais
aos do pai. Pelo menos um dos desejos da sua mãe se realizou. Em ti, eu
vejo os olhos do meu melhor amigo. Foi o que me fez desconfiar, desde a
primeira noite que te vi, que a mulher que eu procurava havia me
encontrado.
Desculpe a cicatriz que fiz em seu ombro. Você ainda era um bebê, e
me senti a pior das pessoas quando te ouvi chorar. Não havia pinta alguma
ali, mas sabia que tal marca poderia nos ser útil.
Como com Astrid, a escolha de revelar a verdade também é sua. Ache
a hora correta de falar. Nico é mais quebrado do que deixa transparecer.
Ainda vamos nos encontrar. Enquanto isso, fiquem bem."
Olhei para Nickolay. Ele ainda dormia pesado, a cabeça quase
escorregando do meu ombro. Guardei a carta junto ao diário, os dois sendo
postos de volta na mochila com cuidado para os olhos escuros continuarem
fechados.
Katerina havia fugido para a Itália com os filhos.
Filhos.
E eu era a filha de quem Nickolay chamou por uma pequena parte de
sua vida de pai.
Cazzo. E eu definitivamente tinha mais um xingamento em meu
vocabulário.
Respirei fundo, o movimento fazendo com que Nickolay se enroscasse
ainda mais em mim. Era engraçado o quanto o italiano, tão maior que eu,
parecia manhoso quando cansado. Ao mesmo tempo, as descobertas que
havia acabado de fazer não tinham graça nenhuma.
E eram descobertas que meu marido nem considerava, ele até hoje
ressentido pela falta de afeto de quem achava ser seu sangue. Eram
informações que eu não fazia ideia de como, ou quando, deveria contar.
Mas não pensaria no que fazer agora. Não, decidi que deixaria meu
cérebro descansar de todos os assuntos relacionados a minha antiga vida por
mais alguns dias. Eu desligaria, compartimentalizar sendo minha melhor
qualidade agora, e manteria os diários enterrados no fundo da mochila, até
juntar calma o suficiente para pensar no que fazer com as informações que
me consumiam.
Porque nos próximos dias, eu precisava me acostumar que o nome do
meu marido era Kolya, e que nosso sobrenome era Orlov. Ele poderia
continuar me chamando de dolcezza, e eu, de italiano — poderia mesmo
continuar o chamando assim? — mas Nico e Alana ficariam dentro do
nosso quarto. Eu tinha vinte e cinco anos, me chamava Anna, e estava
voltando para minha nova casa.
Aprenderia a amar o frio, assim como precisaria aprender a controlar
minha ansiedade.
— Fica — escutei-o sussurrar, e me perguntei se Nickolay estava
sonhando comigo.
Me aconcheguei mais nele, pensando pela primeira vez em como
usávamos aquele verbo desde que desistimos de manter nossa distância. Eu
pedindo isso após tê-lo na minha cama, ele deixando a palavra sair de seus
lábios na primeira noite que dormimos vestidos. Cada vez que eu pedia para
ele ficar, Nickolay se abrigava mais em mim. E todas as vezes que
respondia que ficaria, o italiano tomava ainda mais posse do meu coração.
Se algum dia eu te amo se tornasse pouco, passaria as horas pedindo
para que ficasse.
Por mais que minha vida estivesse muito longe do que havia planejado
aos dezessete, eu sorri, respirando seu cheiro cítrico.
Eu amava aquele cheiro.
— Fico, italiano.
E sabia que, com ele, eu ficaria para sempre.

É impossível não começar agradecendo a pessoa que mais cadela as


minhas ideias malucas. Meu Nico, obrigada por existir. A vida sem você
teria muito menos graça.
Engraçado como a gente descobre umas coisas em comum por
acidente, e acaba conhecendo online umas pessoas que surtam com uns
negócios que eu achava que era loucura só da minha cabeça. Pra não ter
dúvida que é de ti que eu tô falando, eu vou deixar seu nome aqui, Sheila.
Obrigada por me apoiar desde o comecinho.
Tem uma maluca também que resolveu que minha história era boa, e
ficou só me botando fogo pra lançar o livro aqui. Wed, sem você, eu ainda
conseguiria pensar em mandioca e não dar risada, assim como sentar seria
algo normal. Sem você, eu também não teria publicado esse livro.
Como eu já disse lá na frente, sempre quis escrever uma história, e
nunca imaginei que teria tantas pessoas acompanhando meus protagonistas
malucos. A experiência de dividir isso com cada um de vocês foi
maravilhosa, então muito obrigada a cada um que está surtando comigo
desde o Wattpad. Agradeço demais todos os votos, comentários e opiniões
sinceras. Escrevi personagens que podem ser difíceis de compreender (ok, o
Nico já tem um fã clube faz um tempo, estamos falando mais da Alana
aqui), então obrigada por darem uma (duas, três, dez) chance para o
crescimento dos dois protagonistas.
E um beijo especial pra todos que aturaram algum dos meus surtos,
porque autora também surta e tem vontade de apagar tudo e fingir que foi
surto coletivo.
Vejo vocês no livro 2!
Obrigada por ficar,

[1]
Cold brew é um café de extração a frio
[2]
Obrigado
[3]
Família
[4]
Boa noite
[5]
Doçura
[6]
Caralho
[7]
Bela
[8]
Garota
[9]
Mindfulness é a prática de estar presente no momento da maneira mais consciente possível.
[10]
Verdade
[11]
Seda
[12]
Não entendo o que fiz de errado
[13]
Não entendo
[14]
Puta
[15]
Gozada/Esporrada
[16]
Filho
[17]
Mas que caralho
[18]
Filha da puta
[19]
Filho da puta
[20]
Amor à primeira vista
[21]
Conselheiro
[22]
Bom dia
[23]
Nunca
[24]
Sexo
[25]
Não
[26]
Mulher
[27]
Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um tipo de transtorno de ansiedade que uma pessoa que
vivenciou um evento traumático pode desenvolver.
[28]
Olá
[29]
Um biscoito de origem italiana
[30]
Bolonhesa
[31]
Uma sopa azeda de beterraba
[32]
Um tipo de panqueca/bolinho feito de batata
[33]
Chocolate
[34]
Mamãe
[35]
De viver
[36]
Essa é ela
[37]
Sim
[38]
Que saco/que droga
[39]
Ódio, em inglês
[40]
Que bela
[41]
Sobremesa italiana de massa doce frita, em formato de tubo e com recheio de creme à base de
ricota ou mascarpone.
[42]
Pequenas fatias de pão, geralmente torradas e servidas com opções de cobertura.
[43]
Um expresso duplo por favor
[44]
Você está me deixando com vontade de foder
[45]
Santo Deus
[46]
Quero seus lábios ao meu redor, bela
[47]
Quero sua cabeça no meio das minhas pernas
[48]
Abra as pernas
[49]
Está me matando
[50]
Expressão usada na Itália para expressar surpresa/perplexidade/espanto, similar à quando usamos
“nossa Senhora”
[51]
É lindo te ouvir gemer meu nome
[52]
Senhorita
[53]
Gosto de você
[54]
Cretino
[55]
Inacreditável
[56]
Sorvete
[57]
O que foi, bela?
[58]
Está molhada
[59]
Muito bem
[60]
Foda-se
[61]
Eu vou gozar
[62]
Gosto tanto de ti, meu coração
[63]
Tu que é belíssima
[64]
Me fode
[65]
Gosto quando me olha assim
[66]
Gosto de sentir suas mãos em mim
[67]
É a mulher do DeLucca
[68]
Graças a Deus
[69]
Mulheres
[70]
Filha
[71]
Pedaço de merda
[72]
Lasanha
[73]
Vinho
[74]
Eu quero que se foda(m)
[75]
Literalmente, Deus porco. É um xingamento usado em momentos de raiva/frustração.
[76]
Meu amor
[77]
Brilha, brilha, estrelinha
[78]
Lá no céu, pequenininha
[79]
Que bela
[80]
Como está molhada
[81]
Pai nosso que estais nos céus
[82]
Santificado seja o vosso nome
[83]
Venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade
[84]
Garota
[85]
Chefe
[86]
Tudo por ela
Table of Contents
Playlist
Notas da Autora
Dedicatória
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 01 | Alana
Capítulo 02 | Nickolay
Capítulo 03 | Alana
Capítulo 04 | Nickolay
Capítulo 05 | Nickolay
Capítulo 06 | Alana
Capítulo 07 | Nickolay
Capítulo 08 | Alana
Capítulo 09 | Alana
Capítulo 10 | Nickolay
Capítulo 11 | Nickolay
Capítulo 12 | Alana
Capítulo 13 | Alana
Capítulo 14 | Nickolay
Capítulo 15 | Alana
Capítulo 16 | Alana
Capítulo 17 | Nickolay
Capítulo 18 | Alana
Capítulo 19 | Alana
Capítulo 20 | Alana
Capítulo 21 | Alana
Capítulo 22 | Nickolay
Capítulo 23 | Nickolay
Capítulo 24 | Nickolay
Capítulo 25 | Alana
Capítulo 26 | Alana
Capítulo 27 | Alana
Capítulo 28 | Nickolay
Capítulo 29 | Alana
Capítulo 30 | Alana
Capítulo 31 | Alana
Capítulo 32 | Nickolay
Capítulo 33 | Alana
Capítulo 34 | Alana
Capítulo 35 | Alana
Capítulo 36 | Nickolay
Capítulo 37 | Alana
Capítulo 38 | Alana
Capítulo 39 | Nickolay
Capítulo 40 | Alana
Capítulo 41 | Nickolay
Capítulo 42 | Alana
Capítulo 43 | Nickolay
Capítulo 44 | Alana
Capítulo 45 | Alana
Capítulo 46 | Nickolay
Capítulo 47 | Alana
Capítulo 48 | Nickolay
Capítulo 49 | Alana
Capítulo 50 | Nickolay
Capítulo 51 | Alana
Agradecimentos

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