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COLECGAO ENFOQUES Letras Jéréme Roger A critica literdria Tradugio Rene Janowitzer oO DIFEL Copyright © Dunod, Paris, 1997 “Titulo origina La rq hdate (Capa: Ral Fernandes 2002 Impreso no Brasil Printed in Baal CiP-Bral Catalogo na fone Sinicto Nacional dos Eons de Los, RJ RDG Roger, fre "A cits orca / Jérdme Roger, wadugio Rejne Janowitz. — Rio de Jno: DIFEL, 2002. 200. — (Colegio Enfoques Leas) “Teabugo de: La nite ésite Inch biogrfa ISBN 85.-7452-021-8 1. Cet eri 1 Th, HL See cpp - 801.95 01.1874 cou 82 “Todos os diritos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Raa Argentina, 171 — I? andar — Sto Cristovio 2092-380 — Rio de Janciro — RJ Tel: 04x21) 2585-2070 — Fax: (00121) 2585-2087 ‘permitida a reproduo tol ou parcial desta obra, por quals- {quer meios, sen a prin autorizacfo por escrito da Editor, ‘Aedes pel Reembola Psa. Sumario InTRoDUGAO 7 cartruto 1 ‘A HERANGA DO PASSADO I. OS DESAFIOS DA NOGAO DE“CRITICA" 11 1. Aristoteles eos crtérios da obra litersria 11 2Z.Afllologia helenistica 13 Tl AIDADE CLASSICA: TENSOES E RUPTURAS 19 1. Apogeu e contradigées de uma eritica prescritiva 19 2. Da estética a critica ciativa 25 cartruto 2 [DAS CERTEZAS AS MUTAGOES 1 ACRETICA, UMA CIENCIA A PROCURA DE LEGITIMIDADE? 31 1. Disisdes da critica no século XIX. 31 2. Aliteratura, objeto da cifncia? 34 3. 0 ponto de vista da Hist6ria sobre a literatura 41 I A HERANGA DO PASSADO- I. OS DESAFIOS DA NOGAO DE “CRITICA” 1. Aristételes ¢ os critérios da obra literdria Se, na lingua de Platio, o adjetivo eftca (rtikos) designava normalmente a prépria faculdade de pensar € ,. discernir, tanto do legislador quanto do médico ou do filésofo, foi Aristteles quem, pela primeira vez, subme~ teu as obras de ficgio ao exame do espfrito, na Poética, texto de cariter didatico escrito quando ele ensinava em ‘Atenas, entre 334 € 323 aC, ‘Com efeito, as obras que decorrem da “arte poética propriamente dit”, de acordo com “o efeito peculiar” a cada tum dos géneros que a constituem, como “epopéia, poesia trégica ou comédia”! no expdem um saber usual (como 0 fazem os tratados cientificos, mesmo quando escritos em verso), mas apenas “imitam” ou representam a vida em vez de reproduzila: Poetics p. 101 A critica literdria ‘Com efeito, por menos que alguém exponha um. ‘tema de medicina ou de hist6ria natural com a aju- da de versos, as pessoas tém 0 costume de chamé-lo assim [poeta]; contudo, nio existe nada em comum. entre Homero e Empédocles, a nio ser 0 verso: por iss0, & justo chamar de poeta o primeiro e de natu- ralista 0 segundo, nio de poeta? Ao indicar, como primeiros evitérios da obra pot a (a nogio de literatura ainda nao existia), a mimese da vida, que supe a representagio eo distanciamento do mundo “real”, ¢ 0s efeitos particulares dessa arte sobre * © pablico, Aristételes nao pretendeu de modo algum ditar as regras da produgio literéria dos séculos seguin- tes. Ao contrério, baseou-se na observagio metédica de tuma prética plurissecular de linguagem na Grécia, A Poética, nesse sentido, foi ao mesmo tempo o primeiro blanco critico ¢ a primeira definigio, devido a compre- ensio, do fendmeno literdrio: exalta um certo mimero de obras anteriores e contemporaneas, associando-as a autores (Homero, Séfocles, Esquilo, Euripides, AristS- fanes), a0 mesmo tempo destacando prinefpios de fun- Gionamento préprios a cada um dos géneros (ou “espé- cies”) assim criados, segundo uma l6gica classificatéria aque Aristételes tomou emprestado das ciéncias naturals. Top chp. 102. 12 A heranga do passado Portanto, seria de todo anacrénico falar, propésito > de Aristételes, de critica literdria segundo a nogio mo- derna que temos dela, a saber: uma reflexio autdnoma sobre as obras, que ndo veréo dia antes do século XIX Capitulo 2). Mas nem por iso a Rte dea de const a referéncia para qualquer procedimento critico, uma vez que acentua 0 caréter construido (do verbo gre~ g0 poiein) ¢ consciente de obras cujo valor e poder resi- cdem na emogio que despertam no leitor. E justamente a esta atualidade de Aristételes que Valéry faré alusio em sua primeira ligio de poética no Collige de Fronce, em 1937 (Capitulo 4,1). De fato, 0 elo explicitamente estabelecido por Aris- tételes entre a postica ea critica, isto 6, entre a andlise € a avaliagSo das obras, no ser mantido depois dele, uma ‘vez que, a partir de sua introducio em Romayseus dois grandes tratados sobre a ciéncia do discurso, a Poca € a Retdica, foram interpretados como tendo um sentido prescritivo, em conformidade aos ideais de elogiiéncia € de formacio do cidadio, que prevaleceram na Repiblica «¢, depois, no Império Romano. Mas foi sobretudo por intermédio dos tratados de ret6rica de Cicero, O Orador, em 51 a.C., da Epéstola aos Pos € da Ante Potca, de Ho- ricio (por volta de 14 a.C.), ¢, enfim, dos doze livros de A Instituigéo Oras, de Quintiiano (92-94 d.C.), que 0 pensamento de Aristételes se tornou progressivamente ‘um ponto de referéncia para as “artes poéticas”, que, na Franga, surgiram nos séculos XVI e XVII. B potben A erltica literdria ‘Mas, 20 integrarem o domfnio da poética a0 da ret6rica, na arte da expressio em poesia versficada, 0s autores prvilegiaram uma estética da linguagem com 0 ccuidado de legitimar a lingua por meio da literatura, a cexemplo dos antigos. Foi assim que seus critérios de jul- gamento, como em Art poéique, de Thomas Sébille, se tornaram naturalmente uma doutrina: Ainda neste caso recorremos a noss0s pais, os gre- {g05 € 05 latinos, Retéricos e Poetas [.]. E, da mes- ‘ma maneira que 0 futuro Orador tira proveito da ligio do Poeta, 0 futuro Poeta pode enriquecer seu estilo; e, com a licio dos Historiadores e Oradores franceses, tornar fértil seu campo de atuacio, que de outro modo seria estéril T. Sébillet! A diferenciacio entre critica pottica, que se ope- “ rou a partir da Antigiiidade latina, separou por muito tempo a reflexio sobre a linguagem do julgamento das obras, especializando desse modo a atividade critica, que se voltou para destaque dos defeitos e das quali dades, de acordo com o sentido clissico da palavra, da freqiientemente difundido. O exame lexicogréfico TA pottique francais 1548, em Traits de poetique et de rhé- ‘orique de a Renaissance, Le Livre de Poche, 1990, p. 60. “4 A heranga do passado (remetemo-nos, em especial, a0 artigo “critica” do Té- sor dela longue fangalse) revela, aliés, a origem do confi- to entre descrigio e avaliagio dos textos: desta oscilagSo decorre um deslocamento continuo do préprio objeto da critica. 2. A filologia helentstica * A difusio ptiblica dos textos Foi coma filologiaalexandring, inttuida no decor do século IIf antes da era cristi, que a ciéncia liters da Antighidade veio a conhecer seu apogeu, com a obra do gramitico Aristarco de Samotrécia (220-143 a C.), diretor da biblioteca de Alexandria e primeiro editor de -Homero. A filologia, disciplina irma da gramética, se tornava de fato um auxilio indispensivel 8 critica, uma vez que o estabelecimento dos textos, segundo 0s auto- res € os géneros, destinava-se & formagio dos futuros letrados ou graméticos. Foi principalmente no curso desse periodo que se designaram os autores escothidos ‘como modelos, segundo 0 cénone alexandrino, sob 0 nome de fekrinoi expressio que se pode traduzir por “os que foram admitidos apés exame”. Esta pesada perifrase seré traduzida mais tarde em Roma por uma palavra destinada a um grande prestigio: os “clés nogio que faz da conformidade de um texto com a gra- 15 A critica literdria mitica da lingua escrita um critério decisivo para sua qualidade litera. A filologia nfo instaurava uma separacio clara entre a transmissio da cultura, 0 jutzo formado sobre as obras, € 0 “estabelecimento dos textos”, no moderno sentido de método filolégico. Se bem que, a partir do século XIX, tenha se especializado na “edicio critica” (provida de comentérios ou “aparato critico”) dos escritores, a filologia teve no comego uma dupla tarefu: garantir a autenticidade dos textos — 0 que seré uma constante dos estudos literdrios no Ocidente, com a introducio de inogdes fundamentals de datacio de textos, variante € interpolagio — e propor a exegese, isto 6, a intepreia- 8, a partir da andlise precisa da lingua ¢ do sentido, ‘yezes oculto, obscuro ou remoto, das palavras. * Ahermenéutica, uma arte da interpretagio ( problema da interpretagio de textos, que jé havia sido levantado em Atenas para a explicagio das duas epo- péias homéricas, a Hada © a Oita (trata-se de historia, , moral ou flosofia2), torna-se, em Alexandria, obje- ‘to de uma verdadeira ciéncia da interpretagio de textos, depois que sibios judeus helenizados conclufram a prk- rmeira tradugio da Tos (ou Lei Mosaics) para o grego. Sem entrar nas questées relativas & cronologia do texto biblico, que se estende por sete séculos, é preciso 16 A heranga do passado sublinhar que o problema do sentido das Esrturas esta~ va ligado a sua dimensio histérica (ou do que decorre do sentido literal do texto) e & sua mensagem espiritual (ou do que os exegetas cristios chamario as vezes de sentido(ariagégic® ou mistico), oculta por natureca. Ora, a elucidagio do sentido oculto de um texto requer uma relacio especial com os signos que 0 com= Sem. Estes sio tratados como simbolos de uma outra realidade, osmica, moral e sobretudo divina; em outras palavras, sfmbolos de uma transcendéncta bésica em rela- ‘io imanéncia do texto, Este procedimento, conhecide dos gregos, foi aplicado pela primeira vez por Filon de Alexandria (por volta de 20 a. C.- $0 d. C.), na tradugioy ‘gga da Tord, de maneira tio convincente, que os pensa- dores cristios irio difundi-lo, e sobretudo aumenté-lo, 1. Now Testamento. A radicalizagio deste principio de leitura & sugerida rma segunda epistola do apéstolo Paulo, Epistola aos Crintos:interpretar letra que mata e pelo espirito que vivifica (28 carta, IIL, 6). Mas esta leitura,legitimada pe- 1a procura do sentido dos textos sagrados, decorre, de fato, tanto da filologia quanto da arte especifica de ler: arte hermentutica (do verbo grego erméneusin: interpretar) ‘ouarte de revelar 0 sentido fundamentalmente ambiguo ou oculto. Ela mereceré, no século XVII, todo 0 favor dos pensadores ¢ criticos de cultura(jansenista) Arte essencialmente exigente, como escreverd Pascal: “Dois Ypws o 7 A erftica literdria cerros: I. Considerar tudo literalmente, Hl. Considerar tudo espiritualmente.”? TTodavia, a exegese ou a hermenéutica biblica, supon- do.a existéncia de um sentido sob o sentido, no podia evitar a questio da instincia teoldgica cultural ou polti- ca, que, em aitima anlis, ratifiea a interpretagio, Para velar pelo respeito aos dogmas da Igreja, a tradigio esco- \istica da Idade Média tratou de limitar 0s riscos de leitu- as arbitriias ou excessivamente subjetivas, codificando ‘0 maximo possivel a exegese herdada dos Doutores da Igeja em quatro niveis de leitura — literal, alegbrica, moral e anagégica —, frmula cuja validade ¢ perenida- de supunham uma quantidade de leitores limitada & cspecializada na interpretacio das seriturs. ‘Ao tornar posstvel a leitura individual da Biblia, 0 movimento da Reforma passou a exigit um novo letor, que, beneficiado pela difasio do livro impresso, afir- mou-se na Era das Luzes. No final do séeulo XVIT, a cobra nto conformista do protestante Pierre Bayle, autor do primeiro Dicionnaie historique et critique, publicado em 1697, ilustra 0 espitito de livre exame do texto bi- blico, fruto das glosas e dos dogmas, transformado em verdadeiro método de pensamento pelos autores da Enciclopédia, Pot sua vez, herdeira das Luzes, a critica Iiteréria moderna, partindo de pressupostos_teéricos. TPensdes, 204, ed, de Philippe Selier, Classiques Garnier, 1991, pai 18 A heranga do parsado origindrios da filosofia ou das ciéncias humanas, iré se reapropriar em parte da heranga da filologia e da her- rmen€utica; ¢ cada escola de interpretagio — temstica, psicanaltica ou sociolégiea — corresponderé. a uma corrente especifica da critica (of. Capitulo 3). II. A IDADE CLASSICA: TENSOES E RUPTURAS 1. Apogeu e contradigées de uma critica prescritiva * Os cédigos da criacio literéria Introduzido em 1565 pelo gramético Henri Estien- ne 10 Trait dela conformité du langage fangais ave le grec, © sentido da palavra critica permaneceu, a0 longo dos séculos XVI ¢ XVII, estreitamente subordinado a redes- coberta daqueles grandes tratados da Antigiidade, nos quais Montaigne, contudo, no se reconhecia: “Para mim, que s6 quero me tornar mais sibio € nio mais erudito ou elogiiente, essas disposigées légicas e aristo- télicas nao sio pertinentes."* (O sistema de regras da eriagio literéria fot erigido no século seguinte pelos especialistas em linguagem (os “doutos”), assim como pela maior parte dos escritores S7Des Livres", sais liv, Cap. X, em Fuvres complies, p. 393. 19 A crltica lterdria clissicos,¢ a Poética de Aristételes tornou-se a abonado- ra da critica erudita, pois, como notou Antoine Adam, “foram_os teéricos que expuseram_¢ sustentaram as méximas da nova literatura; antes de se consagrar pelas obras magistrais, o classicismo afirmou-se por meio das obras de criticos."* Foi assim que 0 académico, critico € poeta Jean Chapelain — que redighu os Sentiments de Taeadéinie sur “Le Cd"— pode ditar a regra chamada “das vinte e quatro horas”, & qual se ajustardo todos os

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