You are on page 1of 4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

DISCIPLINA: LLV8003 - Literatura Brasileira I | TURMA: 1426


PROFESSOR: Alexandre Nodari

NOME COMPLETO: Fernando dos Santos


MATRÍCULA: 22204611

PROVA 2

2)
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra
da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?
José de Alencar, Iracema

O mito de fundação perpassa toda a prosa poética de Iracema. São muitos os aspectos
do romance que podemos tomar para analisar a presença do mito fundacional e o estilo
indianista do escritor cearense José de Alencar.
Comecemos pelo mais evidente: o uso da linguagem indígena.
Por toda a extensão do romance, o uso de vocábulos de línguas indígenas se mostra
vigorosamente presente. A começar pelo título “Iracema”, que, no guarani, significa “lábios
de mel”, ademais pode ser lido também como um anagrama de “América”. Este aspecto,
junto a outros, é significativo e marca uma oposição do estilo indianista do autor em relação
ao de outros escritores românticos indianistas, como Gonçalves Dias. Alencar, em suas
ressalvas aos poemas do escritor maranhense, aponta para a ausência de um “vocabulário
específico” que desse conta de caracterizar esse estilo. Outra ressalva é o uso do verso, o que
o leva a optar pela prosa: “O verso pela sua dignidade e nobreza não comporta certa
flexibilidade de expressão que entretanto não vai mal à prosa a mais elevada”. Mas não se
trata de escolhas sumariamente poéticas, há também um nível ideológico envolvido nelas.
Para Alfredo Bosi, “Em Alencar, ao contrário [de Gonçalves Dias], a imagem do
conflito retrocederia para épocas remotas passando por um decidido processo de atenuação e
sublimação” (BOSI, 2006). A perspectiva que Alencar possuía do processo de colonização e
conquista dos povos originários está imbricada, temática e formalmente, em seu estilo
indianista, configurando-o diferentemente de outros escritores românticos também
indianistas. No seu caso, trata-se de uma “simbiose luso-tupi” (BOSI, 2006). Este processo
de atenuação e sublimação aparece latente em Iracema. Em síntese, a história do romance é o
caso de amor entre um guerreiro branco, Martim, e Iracema, a virgem dos lábios de mel;
deste caso, entremeado por confrontos e dominações entre populações inimigas, nasce um
bebê. Iracema morre. Martim parte e retorna, quatro anos depois, para fundar uma cidade. O
mito aparece explícita e implicitamente no decorrer da narrativa: “a felicidade nasceu para ele
na terra das palmeiras, onde reacende a baunilha, e foi gerada no sangue da tua raça, que tem
no rosto a cor do sol”. O entrelaçamento entre o branco colonizador e a índia — a sua
virgindade poderia ser uma referência ao solo virgem e inexplorado da América?, e, por
conseguinte, a dominação dos povos “inimigos”, culminando no nascimento de um bebê,
pode ser lido como a metáfora da fundação da própria nação brasileira. Segundo o próprio
Alencar, “Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para
aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda”, percebe-se assim que os
procedimentos operados pelo escritor — o uso de vocábulos indígenas, de uma toponímia
muito precisa, de metáforas constantes — deslocam os personagens históricos e as ações para
o terreno do mito. “Tudo passa sobre a terra” é assim que encerra o romance.
Mas há também outros procedimentos dignos de se destacar: as perífrases, a excessiva
quantidade de notas e as duas cartas (uma no início e outra no fim). Quanto ao uso das
perífrases, o crítico literário, Paulo Franchetti, aponta, de modo exemplar, que:

“Na ficção de Alencar, a decifração etimológica e a invenção de


palavras, junto com a liberdade de opor ao uso português o uso
brasileiro, apontam para uma concepção de língua muito distante do
padrão conservador, castiço e lusitanizante, que se imporia
progressivamente pelo final do Romantismo até o momento do
esplendor parnasiano” (FRANCHETTI, 2016)

Esse processo de decifração etimológica estaria relacionado à fundação da nação? De uma


“simbiose luso-tupi”? De uma literatura propriamente nacional? Certamente. Na carta final,
Alencar confirma: “O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a
nacionalidade da literatura” e “É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro”. A excessiva
quantidade de notas reforça o uso das perífrases; as duas cartas, endereçadas ao Visconde de
Jaguaribe, dão um tom de gênese e afirmação do seu estilo indianista.
Ressaltando os aspectos temáticos e formais, torna-se evidente a diferença entre a
clave utilizada por Alencar para trabalhar o mito fundacional em Iracema e a de Gonçalves
Dias em poemas como os dos Primeiros cantos. No primeiro, trata-se da conciliação,
paradoxalmente também uma dominação, com a cultura “primitiva” dos povos originários; no
segundo, “O fim de um povo é descrito como o fim do mundo” (BOSI, 2006). Por fim, o
mito de fundação em Alencar é também um mito sacrificial, e é percebido sobretudo no
fatídico e triste destino de Iracema e seu povo: “Os olhos de Iracema, estendidos pela
floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos e, longe, o bando dos guerreiros
tabajaras que fugia em nuvem negra de pó”.

REFERÊNCIAS

Iracema, Lenda do Ceará / José de Alencar; apresentação Paulo Franchetti; notas e comentários Leila
Guenther; ilustrações Mônica Leite. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2016. – (Clássicos Ateliê)

Dialética da colonização / Alfredo Bosi. – São Paulo, Companhia das Letras: 2006.
5)
Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que
as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.
Luiz Gama, Carta a Lúcio de Mendonça

O percurso biográfico de Luiz Gama cinge sua produção poética. Tendo uma vida
conturbada desde cedo, filho de uma africana livre, Luiza Mahin, e de um fidalgo branco e
rico, que o causou muitos problemas, foi um escritor engajado nas causas abolicionistas e no
reconhecimento de sua africanidade e dos seus compatriotas. No poema “Pacotilha”, de suas
Primeira Trovas Burlescas, percebemos a veia satírica e vivamente crítica do autor. Nesta
estrofe, por exemplo, é possível notar a crítica endereçada aos mulatos que querem se passar
por brancos:

Mulato esfolado,
Que diz-se fidalgo,
Porque tem de galgo
O longo focinho;
Não perde a catinga,
De cheiro fallece,
Ainda que passe
Por brazeo cadinho.

Segundo Elciene Azevedo, “A crítica e a repreensão aos que se fazem passar por brancos, no
argumento de Luiz Gama, fundam-se na ideia de que o afirmar-se negro estava subordinado,
e intrinsecamente ligado, ao reconhecimento de uma ascendência africana” (AZEVEDO,
1999). Esta ascendência africana fica mais visível na estrofe seguinte, em que Luís Gama faz
referência direta à um país africano (Angola) e afirma sua posição:

E se eu que pretecio,
D'Angola oriundo,
Alegre, jucundo,
Nos meus vou cortando;
que não tolero
Falsários parentes,
Ferrarem-me os dentes,
Por brancos passando.

O foco parece recair sobre o problema do já citado reconhecimento de sua africanidade e a


negação da negritude daqueles “mulatos” que se vêem como brancos, replicando até mesmo
seus costumes e preconceitos. A organização da estrutura das duas estrofes também parece
apontar para uma ironia. O primeiro quarteto de cada uma é a possibilidade da empreitada
que logo é negada pelos quatros versos finais. A rima que organiza a estrutura se sustenta,
essencialmente, com o verso do meio (o 4º) e o último (o 8º) em ambas estrofes, através da
repetição do “inho” na primeira e com o “ando” na segunda.
Em idos do século XIX, a tendência era a poesia lírica dos românticos e parnasianos,
sempre primorosos com a forma clássica e com referências à mitologia greco-romana. Luiz
Gama, por sua vez, ao optar pela sátira, nada contracorrente. Todavia, em diversos poemas
das Primeiras Trovas Burlescas, ele se apropria do estilo clássico e, num ato de potente
transgressão, o subverte para aproximá-lo das suas origens africanas. É o caso do poema “Lá
vai verso!”, onde o poeta toma nota do mito de Orfeu, querendo sê-lo como o Orfeu de
“carapinha”. Segundo Roberto Schwarz, em relação às trovas, “a sátira à sociedade imperial e
sobretudo às suas presunções de brancura alcança uma franqueza possivelmente única na
literatura brasileira” (SCHWARZ, 1989).
Simultaneamente, a sátira também passa a se popularizar, e Luiz Gama participa da
organização de diversos periódicos na época, como o famoso Diabo Coxo. E é através desses
periódicos que alcança espaço no meio literário. Assim, “Todos estes periódicos, criados por
Luiz Gama ou não, tinham muito em comum: usavam a linguagem da sátira para, através da
galhofa, propagarem seus posicionamentos políticos” (AZEVEDO, 199).
Se lermos as duas estrofes acimas em paralelo com a sua trajetória, percebemos que o
tema da inserção do negro na sociedade brasileira é recorrente em sua produção poética, seja
através de uma falsa inserção “Mulato esfolado // Que diz-se fidalgo”, que tece críticas
mordazes e satiriza, seja através do reconhecimento de sua africanidade e de todos aqueles
seus irmãos, e, sobretudo, através da luta abolicionista, da qual participou ativamente como
advogado, jornalista e escritor. Na segunda estrofe, o empoderamento através do
reconhecimento de sua africanidade é visto com alegria e revela uma força de combate nos
versos “D’Angola oriundo // Alegre, jucundo // Nos meus vou cortando”.
Vivendo entre dois mundos, participando e perturbando as estruturas sociais que o
oprimem, Luiz Gama construiu um legado de luta e resistência que permeia todos os seus
escritos. Seu ácido humor, sua potência política, sua vasta produção literária e teórica,
merecem um olhar mais atento: é escassa a quantidade de trabalhos dedicados ao autor. Com
isso, quem sabe, descobriremos que “Entre o coro dos anjinhos // Também há muitos
bodinhos”.

REFERÊNCIAS

Luís Gama e suas poesias satíricas / J. Romão da Silva – 2. ed. – Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília:
INI, 1981.

Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo / Elciene Azevedo –
Campinas, SP: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999.

SCHWARZ, Roberto. Autobiografia de Luiz Gama. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 25, p.
136-141, outubro de 1989.

You might also like