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Doenca psiquica e vulnerabilidade antropolégica Thomas Fuchs Resumo ‘A questi, por que a doenga psiquica existe, pode ser respondida pela referéncia a intimeras condig6es, fatores e contextos — biolgicos, psicol6gicos, sociais. A antropologia filoséfica e psquiatrica, ao contrario, pergunta de maneira mais profunda pelas condigdes de possibilidade para que os seres humanos em geral possam adoecer psiquicamente. Em especial, 0 fato de que distirbios psiquicos persistentes no ocorrem nos animais que vivem livres, sugere uma vulnerabilidade antropolégica, portanto, uma ameaga psiquica especifica do ser humano. A conferéncia investiga possiveis razées para essa vulnerabilidade e as situa sobretudo na especial abertura, na variabilidade, mas também na cotraditoriedade das formas de organizagao ¢ de existéncia do ser humano. ‘Na segunda parte, essa predisposigao para a doenga psiquica serd interpretada como uma vulnerabilidade existencial, a saber como uma especial sensibilidade para as contradigdes ¢ para as situagées limite da Conditio Humana. Introdugi0 Se fizermos a pergunta, por que existe doenca psiquica, entdo ela se deixa responder de diferentes maneiras. Apontar-se-4 para algo como influéncias genéticas, para disfungdes neurobiologicas, para fatores de personalidade, vivéncias de infincia marcantes ou traumatizantes, para conflitos pulsionais inconscientes e correspondentes formagées de sintomas. Ou se pensara em condigées sociais como a falta de recursos materiais e emocionais, experiéneias de exclustio e discriminagao, migragfo ete. As formas e variantes de condigdes causais para a doenga psiquica sao quase inestimaveis. Contudo, eu quero abordar a questo de outra maneira, a saber, a partir da perspectiva da antropologia filoséfica e psiquiétrica, Esta ndo pergunta pelas causas especificas de determinados distirbios, mas, de maneira mais profunda, pelas condig6es de possibilidade para que os seres humanos em geral possam adoecer psiquicamente. Dito de outra forma: o que se passa exatamente com a organizagao psicofisica do ser humano que 0 torna to evidentemente suscetivel, ou vulneravel, a doengas psiquicas? O fato de que nos animais que vivem livres doengas psiquicas persistentes nao ocorrem, sugere uma vulnerabilidade antropolégica, portanto, uma ameaca psiquica especifica do ser humano. Também em alguns mamiferos superiores, quando advém um comportamento passivo de retragdo e Ietargia, como reagao a derrota ou a exclusao social, essas situagdes persistem, em regra, somente por poucos dias. Psicoses, ages compulsivas, alucinacdes e ideias fixas nao aparecem nos animais. Em especial, a possibilidade de suicidio da-se exclusivamente no ser humano. Pois, para decidir-se contrariamente a propria vida, precisa-se ter uma relago com essa vida e consigo mesmo, precisa-se enxergé-la como um todo, atribuir- Ihe valor e preferi-la morte — algo que evidentemente nao é possivel aos animais, pois também em situacdes de falta de perspectiva nenhum animal tira a propria vida, Esta é uma primeira mostra — ainda que atormentadora— de que a possibilidade de doenga psiquica e de fracasso do ser humano esta claramente conectada com os graus mais altos de liberdade de sua organizacao psicofisica. Nas palavras de Karl Jaspers: “Para o ser humano sua incompletude, sua abertura, sua liberdade e sua interminavel possibilidade so ao mesmo tempo 0 motivo de um estar doente” (Jaspers 1965, S. 8). Farei desta citagdo uma sentenga orientadora de minhas reflexdes. Portanto, trata-se para mim da questdo sobre em que medida clivagens, contradigdes e conflitos inevitaveis, inerentes 4 conditio humana, podem levar, sob certas condigdes, & exigéncia excessiva, descompensacao ¢ finalmente a doenga psiquica; e em que medida exatamente os graus absolutamente novos de liberdade de organizagaio do ser humano caminham necessariamente juntos com uma labilidadde e fragilidade de seu psiquismo. Essa perspectiva ndo obtém finalmente uma justificagao pelo fato de que para uns nao se encontram causas genéticas especificas para doengas psiquicas, mas no maximo diferentes predisposi¢des hereditérias; enquanto para outros — quando deméncias sto previstas ~ néo se deixam atribuir, para elas, quaisquer causas neurobiolégicas especificas. Apesar de décadas de pesquisas biol6gicas, até hoje nao estamos em condigdes de diagnosticar distarbios psiquicos por meio de procedimentos de imagem ou por meio de biomarcadotes genéticos e outros, e é duvidoso, se isto sera enfim algum dia possivel. E claro que isso nao tem a ver com simples doencas do cérebro, mas com distirbios complexos que remontam a uma interagao de processos biolégicos, subjetivos e sociais. Ademais, de um ponto de vista bioldgico, nao existe fronteiras claras entre a doenga e as variagdes da vida psiquica saudavel, ou ainda-saudavel. A seguir, eu perguntarei de inicio pelos fundamentos da vuinerabilidade antropolégica para a doenga psiquica e os procurarei, com Jaspers, antes de tudo, nas especificas incompletude e abertura, mas também na contraditoriedade da organizagao psiquica e forma de existéncia do ser humano, Na segunda parte, entdo, eu interpretarei essa disposi¢ao para a doenga psiquica também como uma vulnerabilidade existencial, a saber, como uma especial sensibilidade para os conflitos fundamentais e para as contradigdes da existéncia humana, que apontam para a doenga psiquica de seres humanos predispostos. Esta vulnerabilidade os tomna suscetiveis determinadas situagdes, nomeadamente, situagées limite, nas quais essas contradigGes tornam-se inevitaveis e conduzem & descompensagao e por fim ao adoecimento. I. Vulnerabilidade Antropologica Tratemos primeiro das circunstncias especificas da organizagao psicofisica e do desenvolvimento do ser humano; veremos que elas apresentam ao mesmo tempo condigdes de possibilidadade de disparates e adoecimento psiquico. Em primeiro lugar esté a jé realgada por Max Scheler (1928) e Arnold Gehlen (1940) “pobreza de instinto” do ser humano, isto é, sua libertagao de pulsdes e esquemas fixos de comportamento. padrdes de comportamento dos animais so incomparavelmente mais fortemente estabelecidos por suas estruturas fisicas e por seus aparelhos genéticos. O ser humano ao contrério precisa adquirir apenas passo a passo sua certeza comportamental. A especifica abertura e liberdade de escolha de seu desenvolvimento individual é indissociavel disso. Ele é, nas palavras de Friedrich Nietzsche, 0 “animal no estabelecido”, ou como exprime 0 bidlogo Adolf Portmann (1944), um “prematuro fisiolégico”: 0 equipamento biolégico do ser humano € ainda imaturo e incompleto no nascimento; apenas por meio da socializagio primeva, por meio da aquisigdo de padrdes de interago, do caminhar ereto e da linguagem no contato com os outros, torna-se ele um ser humano em sentido auténtico. Concetado a isto esta a plasticidade, tinica no mundo animal, do cérebro humano, cujo cortex ainda nao esta plenamente desenvolvido no nascimento. O cortex pré-frontal, enquanto fundamento das capacidades centrais, como a tomada de perspectiva e desenvolvimento moral s6 amadurece mesmo completamente até o vigésimo quinto ano de vida. O cérebro humano dispde com isso de uma potencialidade tinica, que ndo se realiza contudo por si mesma, mas somente por meio da socializagao cultural. O comportamento humano é¢ determinado assim, em um alto grau, por esquemas e papéis culturais, que substituem os instintos. A cultura e 0 habitus por ela transmitido enquanto totalidade de papéis e costumes adquiridos aliviam com isso os seres humanos da tarefa de, por assim dizer, criarem-se por si mesmos, de buscarem sempre novos objetivos e de planejar cada acao por si préprios. Mas também, a cultura deixa 0 ser humano ainda indefinido, nao completamente determinado, e nisso reside a liberdade de escolha individual de seu desenvolvimento. Seres humanos no apenas vive, mas conduzem suas vidas, ¢ assim formam-se a si mesmos, estruturam por meio de suas decisdes e ages seu proprio desenvolvimento. Essa abertura deixa-se interpretar de maneira muito otimista, como no famoso tratado “De hominis dignitate” do poeta da Renascenga Pico de la Mirandola, no qual Deus diz ao ser humano: “Tomaste-te livre de todas as limitagdes para determinar por ti mesmo tua natureza de acordo com tua propria vontade livre, a qual eu confiei a ti. Coloquei-te no centro do mundo... a fim de que tu como artifice de ti mesmo, segundo tua prépria conveniéneia, possas te esculpir na forma que tu preferires.” (Pico de la Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem, 1486) Angistia como “vertigem da liberdade” Por outro lado, essa abertura traz consigo também miiltiplas possibilidades de distirbio, e, sem divida, de inicio, uma especial predisposigao para a angistia, uma das mais frequentes formas de manifestagdo de distirbios psiquicos. De inicio, a angistia possui, como nos outros animais, uma fungo biolégica no sentido de um sistema de alerta, que em vista do perigo mobiliza a preparacdo do organismo para a fuga ou 0 ataque. Todavia, essa fungdo asseguradora da sobrevivéncia representada pela angisstia desloca- se cada vez mais para 0 plano de fundo no decurso da evolugdo das culturas. Ao invés dessa fungio, a angiistia assume de maneira crescente 0 papel de uma reagdo do individuo a ameagas sociais e existenciais, para as quais aquele alarme corporal originério possui utilidade apenas limitada. Enquanto “prematuro fisiolégico”, o ser humano esté desde o inicio abandonado a uma especial ameaca. De modo correspondente, Freud viu a raiz priméria da prontidao neurética da angiistia nos “longamente estendidos desamparo e dependéncia da crianga humana pequena” (Freud, Inibiedo, sintoma, angiistia, 1926). A angistia preenche uma fungao importante no sistema de vinculagio biologicamente estabelecido, na medida em que ela indica a perda da proximidade da mae e com isso a perda da protegao vitalmente necesséria para a crianga pequena (Bowlby 1975), Também a assim chamada “angiistia de desagregago” do ser humano de tenra idade (“medo do abandono”, Bilz 1971) referia-se a perda do contato com o grupo, que era necessario para a sobrevivéncia em um meio ambiente hostil. Ser deixado, abandonado, rejeitado correspondeu a uma sentenca de morte e acionou massivas reagées de alarme. No sentimento de abandono na amplidao vazia, como é caracteristico de agorafobias e ctises de panico, espelha-se sempre de novo seu frequente acionamento por meio de situagdes de separagao ou de outras perdas. ‘A evolugo das culturas baseia-se agora, como ja apontado, em um sistema de controles de pulsdes e frustragdes, que séo internalizados pelo individuo, que asseguram a vida em grupo e equilibram a falta de instintos. Tal como Freud mostrou, como se sabe, em Mal-estar na Civilizagdo, isto acontece todavia a custa da anguistia, que por assim dizer é instalada como vigia interna do autocontrole. Angistias voltam-se entdo as ameagas a0 valor proprio, ou ao proprio status no grupo ~ destarte, angiistia diante da frustragao ou da perda de status. Elas também se voltam entretanto para possiveis punigées, culminando na ameagadora perda do abrigo do grupo por meio da marginalizagao e da expulsdo. “Consciéncia é [...] em sua origem ‘angustia social’ e nada mais”, como Freud (1926) formulou brevemente, e angistias de consciéncia so, como se sabe, um rico reservatério para desenvolvimentos neuréticos. Os conflitos entre necessidades egocéntricas e os mandamentos sociais da comunidade estdo colocados para os seres humanos literalmente desde o berso. Eles representam também os mais frequentes motivos para angiistias e para distarbios clinicos relacionados a angiistia, sejam eles propiciados por ora externamente, ou estejam eles estocados no sujeito. Nesses conflitos, a angistia também pode contudo desacoplar-se de motivos concretos e transformar-se em uma angustia fundamental que flutua livremente ‘A prontidao humana para a angustia é ainda intensificada pela sua capacidade de imaginacdo e de antecipagao do futuro, a qual o deixa antecipar na imaginago possiveis riscos ~ doengas, perdas, separagdes, miséria, ou guerra. E apenas no ser humano amplia-se sua perspectiva temporal para além do futuro préximo, avangando até a possibilidade de uma condigdo fundamental da existéncia, a possibilidade do impasse ultimo da propria morte — cujo significado para tentativas desastradas de compensagao e pata os distirbios psiquicos nao deve ser subestimado, Com a consciéncia da morte, abre-se 0 campo multifacetado das angiistias existenciais, e a preocupagao com a propria vida toma-se uma estrutura fundamental da existéncia. O fato de que a vida humana nao esta simplesmente prestabelecida, mas sim entregue significa ao mesmo tempo uma ameaca mais elevada, a saber, uma ameaga existencial. Ele pode falhar em suas metas, ou valores, por ocasidio das préprias decisdes, ele pode corter um risco grande demais; somente o ser humano pode fracassar na vida. Posicionaliddade Excéntrica Para o ser humano, a angiistia € por conseguinte essencialmente o prego a se pagar pelo espaco de jogo da liberdade, que se contrapde As necessidades naturais da vida animal; e ela é 0 prego a se pagar pela consciéncia da propria vida e com isso também da morte. - Especialmente significativa, nesse caso, é uma outra condigao fundamental da existéncia humana, que o filésofo Helmut Plessner (Os estdgios do orgdnico e do humano, 1928) caracterizou como posi¢do excéntrica. Enquanto 0 animal esta atado a seu respectivo meio ambiente e permanece sempre no centro, 0 homem é capaz de deslocar-se para fora de si, por assim dizer, e assumir a perspectiva do observador, e isto quer dizer, ver-se a si mesmo com os olhos dos outros. Isto caracteriza sua posigao “excéntrica” (deslocada do centro). Ele a alcanga com o desenvolvimento da consciéncia de si e com a reflexdo no segundo e terceiro anos de vida. Nesta fase a crianga conscientiza-se acerca de si mesma como um ser auténome, ela aprende a dizer “eu”, a distinguir-se dos outros e a assumir um comportamento com relago a si mesma, ‘A autoconsciéncia e a capacidade de reflexdo sao tao centrais agora para 0 ser humano e suas aquisig6es culturais, que elas cobram um alto prego. De inicio, a espontaneitade e imediatidade da crianga pequena experimenta uma quebra fundamental, que se externaliza de algum modo em emogées autorreflexivas como timidez, ou também orgulho, vergonha ou mais tarde culpa. Especialmente, vergonha e culpa sao emogdes nas quais 0 olhar ou a voz dos outros séio, em certa medida, corporalmente notadas, a saber como naquelas do olhar constrangedor ou como acusagao e condenagao. Porém, a vulnerabiliddade, que vem acompanhada da posigo excéntrica, continua ainda a predominar. Psicopatologicamente, a labilidade da relagao do ser humano consigo mesmo e da autoestima humana manifesta-se, p. ex., nos distirbios histriénicos, narcisicos e depressivos, ou também em fobias sociais: todos esses distirbiospressupdem exatamente a capacidade de tomadas de perspectiva, portanto a autopercepedo ¢ a autoavaliagao a partir da visdo dos outros, diante dos quais 0 préprio si mesmo (Self) aparece como sedutor, magnifico, ou ent&o como inferior € deslocado. Tampouco a capacidade de reflexdo do ser humano é somente um dom, mas traz consigo também o germe de um alheamento, ou distiirbio. Na ruminagdo excessiva do paciente depressivo, no pensamento obsessivo dos pacientes anacésticos ou esquizofrénicos, o pensamento se autonomiza em um circulo vazio de pensamentos, sem que os acometidos achem uma saida das espirais atormentadoras da reflexdo. Hé uma psicopatologia regular de hiperreflexividade, de consciéncia excessiva, que somente os seres humanos podem desenvolver. Tomemos o exemplo na neurose obssessiva. Autonomiza-se aqui a possibilidade do controle das pulsdes e dos afetos, que o ser humano possui como insténcia determinante de si mesmo. Precisamente a angistia diante das parcelas incontrolaveis e inconscientes do si mesmo (Self) leva a uma defesa desproporcional com relagao a elas na forma de variados rituais de autodisciplina e controle, nos quais a vida cadad vez mais se paralisa. O exemplo a seguir descende de Viktor Frankl, que também desenvolveu a técnica da “derreflexao”, ou “intengdo paradoxal”, para o tratamento de tais distirbios obsessivos. Um paciente perfeccionista, de 21 anos, sempre primeiro da classe, iniciou uma carreira de contador apés o Abitur (andlogo ao nosso vestibular), mas logo notou que sua letra nao estava sempre bem legivel. Alertado disso por seu chefe, ele procurow entdo aprimorar-se e sacrificou todo seu tempo livre a fim de “aprender a fazer uma bela letra”. Ele tentou copiar as letras da escrita de seu amigo, contudo logo nao sabia mais, que letras ele deveria usar, como ele deveria afinal escrever. Concentrado apenas em sua escrita, finalmente ele ndo conseguia mais escrever na frente de outros, ele desenvolveu angustias diante da observasio deles e precisou desistir de sua atividade. Na clinica, ele foi submetido a intengio paradoxal: “vou rabiscar agora algo para ele, eu escrevo apenas para lambuzar, s6 para ficar trinta vezes atolado”, ¢ assim se conseguiu curar o distirbio em trés semanas (Frankl, GWV 2, 2007). és vemos aqui muito claramente como a hiperreflexividade, a atengao desproporcional na execugao da escrita leva a dissolugao da aco ébvia, que é fortalecida por meio da angiistia e vergonha diante dos outros. “Consciéncia demais” prejudica, pode-se dizer, vé-se ent&o apenas os detalhes, nao mais 0 objetivo e 0 todo. O neurdtico obsessivo, 0 ser humano perfeccionista, no encontra o caminho de volta para a obviedade, t&o logo ele a tenha abandonado. Ele quer fazer tudo e nao pode deixar nada acontecer, pela angiistia (Angst) de se deixar levar e perder o controle. A intervengao paradoxal consiste em fazer exatamente isto, ou seja, “tabiscar algo” para 0 chefe descontroladamente, ela trabalha portanto ao mesmo tempo com as parcelas rebeldes e reprimidas do paciente. As diferentes formas de despersonalizacdo, ou autoalienagio, deixam-se igualmente compreender como expressdo da fratura fundamental, que caracteriza os seres humanos: a saber, como um ser que, por meio da autoconsciéncia, surge também a distancia de sua autossensagdo e autoexperiéncia primarias. Mesmo que nisso resida, sem divida, um ganho em liberdade — nas vivéncias de alienagao, a separagaio quanto & propria sensagdo e & propria captagiio também assumem um cardter aflitivo. A perturbagdo do autossentimento atravessa entdo todos os ambitos das vivéncias: Eu preciso me perguntar constantemente quem sou eu de verdade. Reflito tanto sobre isso que eu nao consigo fazer outra coisa... Como se de repente se fosse completamente uma outra pessoa. (de Haan & Fuchs 2010). Tao logo um pensamento passasse pela sua cabega, ele precisava novamente prestar atengo e investigar sua consciéneia, para saber exatamente, 0 que ele tinha pensado. Ele tinha medo/angtstia (Angst) de que ele pudesse por um momento cessar de pensar... Uma noite ele acordou e perguntou-se: “Estou mesmo pensando? Como nao hé nada que prove que eu ppenso, entio no posso saber se eu existo” (Parnas u. Handest 2003). Esse paciente tenta inutilmente exorcizar seu medo/angiistia (Angst) existencial da perda de si por meio do autoasseguramento constante. Uma vez que a diivida penetra no intimo do sujeito, ent&o a certeza cartesiana do “penso, logo existo” nao ajuda mais. A relac&o consigo mesmo do ser humano torna essa diivida radical possivel, e a reflexdo torna-se entdo um lago frouxo. 10 Todos os seres humanos saudaveis tém a conviegao de sua existéncia e de um existente ao seu redor. Entretanto, também hé um ponto oco no cérebro, isto é, um lugar no qual nenhum objeto se espelha, como também na propria visdo ha um ponto em que nada se vé. Caso 0 ser humano preste especial atencao a esse lugar, caso ele se aprofunde nele, entdo ele cai em uma doenga do espitito... (Goethe, Méximas e Reflexdes) Isto pode levar finalmente a uma confusio na tomada de perspectiva, de modo que mesmo a delimitagdo entre o eu e 0 outro se dissolve, como na esquizofrenia: Um jovem frequentemente confundia-se quando conversava, pois ele nao conseguia distinguir mais entre si mesmo € 0 interlocutor. Ele comegou a perder a nogao sobre de quem vinha 6 pensamento de cada qual, ¢ tinha a impressio de que 0 outro de algum modo “entrava” nele, 0 que ele vivenciava como algo extremamente angustiante. Quando ele andava na rua, ele evitava cuidadosamente olhar para sua imagem espelhada na vitrine, pois ele nfo estava certo a respeito de que lado ele realmente se encontrava. (Pamas 2003). Aqui a tomada da perspectiva externa sobre si mesmo conduz a perda de si: Quando a propria autovivéncia corporal torna-se quebradiga, ela pode prevalecer diante dos pensamentos dos outros, ou mesmo diante da propria imagem espelhada. A relagao entre corpo (Leib) e corpo fisico (Kérper) Somente para o ser humano o proprio corpo (Leib) vivido em autoevidéncia tona-se também corpo fisico (Kérper) observavel, um instramento, ou objeto, que ele pode esculpir e manipular, mas que é também ele mesmo, com o qual subsiste portanto uma relagdo ambivalente. “© ser humano é seu corpo e, ao mesmo tempo, contrapde-se também ao seu corpo na reflexo”, diz Jaspers na Psicopatologia Geral (295). A observagao angustiada-hipocondriaca do préprio corpo fisico, a fobia cardiaca, a dismorfobia, da mesma forma que os disturbios alimentares tm u nessa relacdo ambivalente seu fundamento antropolégico: De um lado, & mercé da indisponibilidade e contingéncia do proprio corpo fisico, os pacientes tentam por outro lado controlé-lo, dominé-lo, esculpi-lo, ou manipulé-lo. Assim 0 hipocondriaco perde a confianga nos processos naturais e fisico- corporais e tenta inutilmente assegurar a capacidade funcional de seu corpo fisico por meio do monitoramento médico. Sua desconfiada autoobservacao reforga, ou gera, exatamente sensagdes corporais desconfortaveis, que ele entdo interpreta como sintomas ameagadores. ‘Angustiou-se assim um de meus pacientes com um tumor, por conta do qual ele poderia perder a visio. Ele monitorou continuamente sua capacidade de ver ¢ registrou obsessivamente suas sensagées oculares, de modo que ele, ¢ claro, apenas provocou tensdes, parestesias e lacrimagées adicionais. Sua atengdo, por conseguinte, também se dirigia, de modo hiperreflexivo, do mundo de volta a si mesmo, ou seja, para 0 proprio corpo material, por assim dizer, deixava o visivel para fixar-se na capacidade de visdo. ‘A perda da confiaga no proprio corpo fisico certamente ja esté fundada em uum saber conquistado reflexivamente, a saber, na consciéncia enquanto ser corpéreo fundamentalmente suscetivel a doengas e yulnerdvel, feito mesmo para ser mortal, de modo que toda e qualquer dor banal ja anuncia por principio a possibilidade de uma doenga mortal. O hiponeriaco € tao sensivel a Vulnerabilidade de sua existéncia corpérea, que ela se torna ao mesmo tempo insuportavel para ele. Ele tenta destarte exoreizar a vivéncia do petigo continuamente presente da doenga e da morte por meio da observagao angustiada de todos os processes fisico-corporais. O hipocondriaco ergue a pretensdo de um absoluto controle do corpo fisico ¢ fio consegue de forma alguma ignorar o fato da doenga e da morte. A neurose hipocondriaca toma-se frequentemente uma luta interminavel contra uma condigo fundamental da existéncia, que nao pode ser reconhecida e aceitada, a saber, sua mortalidade. 12 Para pacientes anoréxicos, 0 proprio corpo torna-se similarmente um objeto alienado. Poder controlé-lo plenamente, tornar-se independente dele, da alimentag&o, mas com isso, ao mesmo tempo, tornar-se independente dos outros, vem a ser a fonte de um grandioso triunfo. “Eu nao sinto fome alguma, mais nenhum apetite” significa para anoréxicos; eu sou sutérquico e ndo necesito de mais nada que venha de fora. Era como se eu precisassse punir 0 meu corpo. Eu o odiava e abominava. Se eu lidasse normalmente com ele por alguns dias, eu tinha que dispensé-lo novamente. Eu me sentia preso em meu corpo — Na medida em que eu o tivesse sob rigoroso controle, cle nao podia me enganar. (Kaplan 1988, 330) Aqui a tensao inerente a conditio humana do ser corpo ¢ do ter um corpo fisico torna-se um dualismo radical, que lembram as representagdes platénico-cristas do corpo fisico como “carcere da alma”. Novamente a fratura antropolégica é reconhecivel como fundamento do adoecimento — nenhum animal, de livre e espontanea vontade, deixaria seu corpo fisico passar fome, pois ele somente é seu corpo fisico, ele nao 0 tem. TI Vulnerabilidade existencial Nés vimos até aqui que as condigdes fundamentais da forma humana de existéncia esto conectadas com uma labilizagio e contraditoriedade, que trazem consigo uma vulnerabilidade antropolégica para a doenga psiquica. Com base na anguistia, obsessio, alienagao, hipocondria e distirbio alimentar eu forneci alguns exemplos dessa vulnerabilidade.eu quero agora responder a essas reflexdes por intermédio do conceito de uma vulnerabilidade existencial (Holzhey-Kunz 1994, Fuchs 2013), com a qual é visada em certa medida a face subjetiva da vulnerabilidade antropolégica. Ela consiste em que precisamente doentes psiquicos mostram uma especial sensibilidade ou sensitividade para as contradigées da existéncia humana. Nés todos vivemos sob as condigdes fundamentais da existéncia, sofremos talvez também das contradigdes entre autonomia e dependéncia, liberdade e seguranca, autorrealizagdo e culpa, vontade de viver e certeza da morte. Contudo, seres humanos psiquicamente doentes sofrem disso de uma maneira especial, a saber, pelo fato de que mesmo nas circunstancias em 1B que se manifestam cotidianamente, situagdes de conflito ou perda podem tomnar-se para eles situagdes limite no sentido de Jaspers (1919). Essas sao situagdes, nas quais vem 4 lume uma condigao fundamental da existéncia até aqui encoberta ou reprimida e que nao se deixa mais negar — a inexorabilidade da liberdade e da decisao; a inevitabilidade da divisdo ou da culpa; a vulnerabilidade do préprio corpo; a solidao fundamental do existir; e, finalmente, sua implacdvel finitude. “Em toda situagao limite”, diz Jaspers, “o cho é como que arrancado dos meus pés” (PW 249); algo é despedagado, o que Jaspers chama de cépsula, que sao as atitudes fundamentais, assungdes fundamentais e construgdes de pensamento fixos, que dao ao ser humano abrigo contra as contradigdes da vida e para os abismos da existéncia. Poder-se-ia também falar de mecanismos existenciais de defesa, que protegeriam o individuo das impertinéncias dificeis de suportar da existéncia. ‘A tais capsulas pertencem de algum modo implicitas, subrepticias e autoevidentemente assungées fundamentais sobre a vida, a propria pessoa e o mundo — assungdes que escamoteiam ou negam as contradigdes da existéncia, tais como as seguintes: (1)0 mundo esta arranjado de maneira justa. Se eu me empenhar 0 bastante, ele também vai me (Typus Melancholicus). (2)Desde que eu nao faga nada de errado, nada de ruim vai me acontecer. (Typus Melancholicus). (3) Se eu me submeter a outros, posso contar com sua protegao e condugo (defensivismo dependente). (4)Se eu fizer tudo perfeito, terei a vida sob controle e no poderei ser surpreendido por nada de inesperado. (defensivismo perfeccionista/anancdstico). (5) Se eu sempre realizar mais, ou se eu sempre subir mais alto, a morte nao poderd me tomar nada (defesa narcisica). Tais assungdes fundamentais ou sistemas de crengas seguem frequentemente 0 modelo do “nao pode ser, 0 que nao é permitido ser”. O mal, a injustiga, o sofrimento, a morte podem existir, mas de mim eles no podem tomar nada; eu ndo fiz nada, eu sou inocente ou invulnerdvel. Tais

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