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CapiruLo L Origem e¢ histérico da Psicometria 1 - Introdugéio Estamos nos limiares do século XX. Em Psicologia vigoravam vé- vias tendéncias epistemolégicas, bastante isoladas umas das outras, procu- rando superar 0 statues pré-cientifico no estudo do psiquico Boring, 1957). A tradicional diatribe de origem cartesiana, alma vs. corpo, subsi- diava esias tendéncias. Assim, temos, de um lado, a psicologia alemi da introspecao, interessada na experiéncia subjetiva e, do outro, o empirismo inglés ¢ norte-americano interessado no comportamento, bem como a es- cola (psivofisica) de Leipzig estudando os processos sensoriais. Estas duas grandes orientacdes se caracterizavam também pelo uso de procedimentos mais descritivos, no caso da psicologia introspectiva, e a procura de pro- ccdimentos mais quantitativistas por parte dos empiricistas. Portanto, nilo causa surpresa que as origens da Psicometria sc encontrem no enfoque empiricista das psicologias da época. Desta sua origem, a Psicomettia, tanto classiea quanto moderna (Teoria de Resposta ao Item), retém algn- mas caracterizagées que permitem controvérsias. Entre elas, duas parecem particukarmente fortes ¢, quicé, preocupantes. Por um lado, a Psicometria, pelo menos na sua prética, é ainda guiada pela concepeao positivista ba- coniana do empirismo, isto é, que a ciéncia do universal se faz através do conhecimento do singular (indugio), enfoque demonstrado como Jogi- camente invidvel, tanto pelo empiricista Hume (1739-1740) quanto por Popper (1972). Creio ser esta concepgdo a responsavel pelo descuido inaceitivel da Psicometria com relagao & teoria psicolégica, que deveria ser a peacupagio preliminar e primordial na medida do psicolégico, Preocu- paciio esta que, felizmente, a Psicologia Cognitiva moderna procura res- suscitar. Por outro lado, predomina em Psicometria a concepgiio estatistica sobre a psicoldgica. Os precursores ¢ os que descnvolyeram a Psicometria eram estatisticos de formagéo, tanto que ainda se define Psicometria como um ramo da Estatistica, quando na verdade ela deve ser concebida como um 19 ramo da Psicologia que interfaceia com a Estatistica. Thurstone (1937) parevia preocupado com este problema, quando detiniu como objeto de estudo para a sociedade psicométrica que acabara de fundar a Psicologia Matematica, esta concebida como ramo da Psicologia dedicada & pesquisa dos modelos matemiticos dos processos psicolégicos, mas sempre a servi- co destes. 2- Origem da Psicometria 2.1 — Apanhado histérico A Psicometria (mais especificamente, os testes psicolégicos) poderia ter tido origem em duas situagdes bastante distintas: (1) a psicologia de ori entagao empiricista ou (2) a psicologia mais mentalista de Binet, na Franca. De fito, as duas tendéneias entraram em cena na mesma época para resolver os mesmos problemas, a saber, avaliar objetivamente as aptiddes humanas. Apenas, Binet e Simon (1905) utilizando processos mentais ¢ Galton (1883), Spearman (1904b) e outros empiricistas fazendo uso de processos compor- tamentais, mais especificamente, sensoriais. Embora o teste de inteligéncia de Binet tenha tido grande sucesso na Psicologia, nao foi sua otientagdo que deu a origem & Psicometria e fomentou scu desenvolvimento porque Ihe faltava o enfoque primordial da quantificaciio, que era o especifivo da ori- entaco da psicologia empiricista, Da psicologia introspeccionista da época realmente no se poderia esperar a origem da Psicometria, dada sua orienta- go puramente descritiva dos processos psicoldgicos. Conta Joncich (1968) que Thomdike (1904) ao enviar seu trabalho de medida em Psicologia a William James (que era da orientagio descritiva) incluiu uma nota dizendo que 0 manuscrito era para seus alunos e que ndo aconselhava ao proprio James sua leitura! Assim, a origem da Psicometria deve ser procurada nos trabalhos do estatfstico Spearman (1904a, 1904b. 1907, 1913), que, no que se refere & Psicologia, seguiu os procedimentos fisicalistas de Gatton (1883). Tam- bém nao se deve estranhar que a Psicometria surgisse no campo das apti- does humanas (mentais, fisicas, psicotisicas), pois, além de ser a tematica psicoldgica da época, se coadunava melhor a um estudo quantitative, pois se pode ali contabilizar 0 comportamento em termos de acertos e erros Alids, para melhor entender a origem da Psicometria, pode-se se- guir duas orientagdes, de inicio bastante independentes, que mais tarde se unificariam no que podemos chamar da Psicometria Classica, a saber, a 14 preocupagao mais pritica e a preocupagio mais teGrica da Psicometria. A primeira tendéncia era mais aparente entre os psicélogos cujas preocupa- gGes cram mais de carter psicopedagdgico ¢ clinico; estes psicélogos utilizavam as provas psicoldgicas para detectar, sobretudo, o retardo mental © 0 potencial dos sujeitos para fins de predigZo na drea académica. A outra tendéneia visava mais o desenvolvimento da prdpria teoria psicométrica ¢ era, sobretudo, perseguida por psicdlogos de orientagdo estatistica, Esta polaridade covaria com 0 que Boring (1957) chama de psicologia experi- mental ¢ psicologia individual, esta mais preocupada com problemas hu- manos € aquela, mais com a ciéneia “pura”. Este cisma seria somente su- perado 14 pelos anos 1940, com a influéncia decisiva da orientagio dos psicélogos que utilizavam a andlise fatorial, especialmente de Thurstone (1938) com seus Primary Mental Abilities. Estas tendéncias podem ser sumariamente visualizadas na exposigio feita em 2,2, A esta altura, parcee relevante termos uma visio de conjunto do que aconteceu na histéria da Psicometria, desde sua origem até o presen- te momento, para, em seguida, desenvolver mais detalhadamente alguns temas desta histéria. Na verdade, scguindo Boring (1957), a historia da avaliagdo psicolégica foi, no inicio, dominada por alguns psicélogos ex- poentes em diferentes épocas. Assim, pode-se esquematizar esta historia em termos da era de Galton, da era de Binet, etc., como veremos a seguir: 1) A década de Galton: 1880. Seus trabalhos visavam a avatiagao das aptidées humanas através da medida sensorial, salientando-se sua obra Inquiries into Human Faculty, de 1883. O trabalho de Galton tera enorme impacto tanto na orientagao mais pratica da Psicometria (Cattell e outros psicometristas americanos), quanto na tedrica (Pearson ¢ Spearman). 2) A década de Cattell, 1890, Sob a influéncia de Galton, Cattell desenvolven suas medidas das diferengas individuais ¢ recolheu sua expe- rincia no Mental Tests and Measurements, de 1890, inaugurando, inclu- sive, a terminologia de mental test (teste mental). 3) A década de Binet: 1900. Nessa década predominaram os inte resses da avaliago das aptidées humanas visando A predigdio na drea aca- démica ¢ na drea da satide. Embora Binet se destaque, outros expoentes aparecem neste periodo, salientando-se sobretudo Spearman na Inglaterra. Na verdad, no que se refere propriamente 3 teoria psicométrica, a década de 1900 deve ser considerada a era de Spearman, 0 qual langou os funda- mentos da teoria da Psicometria clissica com suas obras The proof and 15 measurement of association berween two things (1904a), ‘General inrelli- gence’ objectively determined and measured (1904b}. Demonstration of formulae for true measurement of correlations (1907) & Correlations of sums and differences (1913). 4) A era dos testes de inteligéncia: 1910 — 1930. Varios foram os fatores que concorreram para o desenvolvimento dessa era, a saber, 0 teste de inteligéncia de Binet-Simon (1905), o artigo de Spearman sobre o fator G (1904b), a revisio do teste de Binet para os Estados Unidos (Terman, 1916) eo impacto da Primeira Guerra Mundial com a imposicio da neces- sidade de selectio répida, eficiente ¢ universal de recrutas pura 0 exército (os testes Army Alpha ¢ Beta). 5) A década da andlise fatorial: 1930, J por volta de 1920, 0 en- tusiasmo com os testes de inteligéncia vinha caindo muito, sobretudo quando se mostrou que eram demasiadamente dependentes da cultura onde eram criados, no apoiando a idcia de um fator geral universal, como proposto por Spearman. Tais eventos fizeram com que os psicdlogos esta Usticos comegassem a repensar as ideias de Spearman. De fato. Kelley quebrou com a tradigdo de Spearman em 1928. Esta tendéncia foi seguida. na Inglaterra, por Thomson (1939) e Burt (1941) ¢ nos Estados Unidos da América, por Thurstone (1935, 1947). Este tiltimo autor & especialmente relevante nesta época, pois além de desenvolver a andlise fatorial muiltipla, atuou no desenvolvimento da escalonagem psicolégica (1927, 1928, Thurstone & Chave, 1929), bem como por ter fundado, em 1936, a So- ciedade Psicométrica Americana, juntamente com a revista Psychome- trika, ambas dedicadas ao estudo e avango da Psicometria. 6) A era da sistematizagdo: 1940 - 1980. Duas tendéncias opostas marcam esta época: os trabalhos de sintese € os de critica. Nas obras de sintese, temos Guilford (1936, Psychometric Methods, reeditada em 1954), tentando sistematizar os avangos em Psicometria até entéio conse- guidos: Gulliksen (1950, Theory of Mental Tests), sistematizando a teoria Classica dos testes psicoldgicas e Torgerson (1958, Theory and Methods of Scafing), sistematizando a teoria sobre a medida escalar. Além disso, Thurstone (1947) e Harman (1967) recolheram os avangos na drea da and- lise fatorial; Cattell (1965; Cattell & Warburton, 1967) procurou sintetizar ‘os dados da medida em personalidade e Guilford (1967) procurou siste- matizar uma teoria sobse a inteligéncia. Por outro lado, Buros (1938) ini- ciou uma coletanea de todos os testes existentes no mercado, a qual vem sendo refeita periodicamente (mais ou menos a cada cinco anos), publica- 16 da no Mental Measurement Yearbook. Na mesma época, A American Psychological Association — APA (1954, 1974, 1985) introduziu as nor- mas de elaboragiio ¢ uso dos testes. No lado da critica, temos Stevens (1946) questionando o uso das es- calas de medida que deu/dd muita polémica na rea (Lord, 1953: Gaito, 1980; Michell, 1986; Townsend & Ashby, 1984) ¢, sobretudo, surge a pri- meira grande critica & teoria classica dos testes na obra de Lord ¢ Novick (1968 = Statistical Theory of Mental Tests Scores), que iniciou o desenvol- vimento de uma teoria alternativa, a teoria do traco latente, que vai desem- bocar na teoria moderna da Psicometria, a Teoria de Resposta ao Item (IRD, mais tarde sintetizada por Lord (1980). Qutra tendéncia de eritica para superar as dificuldades da Psicometria chéssica foi iniciada pela Psico- logia Cognitiva de Sternberg (1977, 1982. 1985; Stemberg & Detterman, 1979; Stemberg & Weil, 1980) com seu modelo, procedimentos ¢ pesquisas sobre os componentes cognitivos, na drea da inteligéncia. 7) A era da Psicometria moderna (Teoria de Resposta ao Tem — ‘TRI: 1980. Chamar a era atual de eta da TRI talvez seja inadequado, por- que (1) esta teoria, embora esteja sendo 0 modelo no dito primeiro mundo, ainda nao resolveu todos seus problemas fundamentais para se tomar 0 modelo moderno definitive de Psicometria ¢ (2) ela no veio para substi- tuir toda a Psicometria clissica, mas apenas partes deta, De qualquer for- ma € 0 que hd de mais nove no campo. Alids, poderiamos melhor sinteti- zat 0 que est ocorrendo hoje no mundo da Psicometria, arrolando as prin- cipais linhas genéricas nas quais os psicometristas vém atuando: a) Sistematizagao da Psicometria Classica: Anastasi (1988), Crocker e Algina (1986), Thorndike (1982). b) Pesquisa na TRI: Lord (1980), Hambleton e Swaminathan (1985), Hambleton, Swaminathan e Rogers (1991) sistematizam esta 4rea ¢ mostram a quantidade de pesquisa que nela estd sendo re- alizada. ¢) Pesquisa em uma série de Sreas paralelas da Psicometria: — testes com referéneia a eritério (Berk, 1984): — testes sob medida (computer adaptive testing — Wainer, 1990): — baneo de itens: Applied Psychological Measurement (1987), Millman & Arter (1984), Wright & Bell (1984); - equiparagdo dos escores; Angoff (1984), Holland & Rubin (1982), Skaggs & Lissitz (1986); ~ validade dos testes: Wainer & Braun (1988); ~ vieses dos testes: Berk (1982), Reynolds & Brown (1984), Os- terlind (1983); ¢ funcionamento diferencial dos itens (Dorans & Holland, 1992: Green, 1994; Holland & Thayer, 1988; Ho- land & Wainer, 1994; Swaminathan, 1994): — construgao de itens: Brown (1983), Gronlund (1988), Mehrens & Lemann (1984), Osterlind (1989), Roid (1984), Roid & Haladyna (1980, 1982). d) Neste contexto podemos igualmente situar o impacto dos traba- Ihos da Psicologia Cognitiva (Sternberg, 1977, 1982, 1985; Stemberg & Detterman, 1979: Sternberg & Weil, 1980; Carpenter, Just. & Shell, 1990) com suas pesquisas na drea das aptiddes, através do estudo dos componentes cognitivos. 2) Finalmente, vale a pena relacionar as principais revistas onde cs- tao sendo hoje publicados os trabalhos de Psicometria (em pa- rénteses, 0 ano de fundagdo da revista): — Psychometrika (1936) — Educational and Psychological Measurement (1941) — The British Journal of Mathematical and Statistical Psychology (1948) — Journal of Educational Measurement (1964) = Journal of Educational Statistics (1976) — Applied Psychological Measurement (1977) ~ Psychological Bulletin (1903) — Behavior Research Methods, Instruments & Computers (1969). 2.2 - Os testes psicoldgicos Os testes psicolégicos que foram surgindo no final do século XIX ¢ nas primeiras décadas do século XX representaram 0 campo propicio onde a Psicometria se originou e mais se desenvolveu. Assim, algumas notas histéricas neste campo sdo tteis para estudar o desenvolvimento da propria teoria psicométrica. Embora haja relatos de uso de testes para selegdo de funciondrios civis da China 14 por 3,000 a.C, (Dubois, 1970), as origens efetivas destes instrumentos psicolégicos podem ser rastreadas aos wabalhos de Galton 41822-1911) no scu laboratério em Kensington, Inglaterra. De fato, havia dois tipos de preocupagies na rea da avaliagdo do psicoldgico: 1) Preocupacao psicopedagégica ¢ psiquidtrica na Franga (Esqui- rol, Seguin, Binet). Esta tendéncia se preocupava com o (ralamento mais humano a ser dado aos doentes mentais que eram detinides por retardos mentais mais ou menos graves, havendo, portanto, lugar para se distingnir diferentes niveis de doenca mental ou retardo mental. Eo trabalho do mé- dico francés Esquirol (1838). De interesse para a Psicometria é sua preo- cupagdo com a questio de como identificar o nivel de retardo mental Concluiu que € na rea da linguagem (uso da lingua) onde estaria 0 crité- rio para tal decisiio. Seu colega Seguin (1866-1907) também se preocupou com o retardo mental, mas sua atuagdo foi mais no sentido de tratar esses deficientes através de treinamento fisiolégico. Na mesma linha de agdo se encontra outro francés, 0 psicélogo Binet, que desenvolveu um teste men- tal para avaliar o retardo mental (sobre ele. mais adiante). 2) Preocupagdo experimentalista (Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos). A preocupagiio central dos psicélogos desta orientagdo era a des- coberta de uniformidades no comportamento dos individuos, nao tanto as diferengas individuais (como na escola francesa). Alids, as diferengas cram concebidas como desvios ou eros. Seus temas versayam sobre o comportamento sensorial, preocupacio que espetha a origem destes psi- e6logos como fisicos ¢ fisiologistas. im outro elemento importante para a futura psicometria foi a preocupagde com o controle das condigdes em que se faziam as observagcs. Um enfoque mais individual neste grupo de psicdlogos foi o de Cattell, psicdlogo americano estudando na Europa, que se interessou sobretudo precisamente pelas diferengas individuais dos su- jeitos (dele, mais adiante). Alguns expoentes destas tendéncias serio brevemente detalhados a seguir, Sir Francis Gatton (1883), cientista, explorador ¢ antropometrista acreditava que as operagées intelectuais poderiam ser avaliadas ingl 9 através de medidas sensoriais. Dado que, dizia ele, toda a informacao do homem chega pelos sentidos, quanto melhor o estado destes, methores seriam as operagées intelectuais. Assim, ele se preocupou em estabelecer 08 parametros das dimensées ideais dos sentidos, fazendo um levanta- mento umplo de medidas sensoriais. Considerava particularmente impor- tante wos individuos a capacidade de discriminacdo sensorial do tato e dos sons. Gallon de fato contribuin para a Psicometria um trés dreas: (1) me- dida da discriminagao sensorial, onde desenvolveu testes, cujos conceitos sao ainda wtilizados (barras para medi percepgiio de comprimento, apito para percepgao de altura do tom); (2) escalas de pontos. questiondrios & associagio livre, que cle ulilizaya ap6s as medidas sensoriais; (3) desen- velvimento ¢ simplificagio de métodos estatisticos para analisar quantita- tivamente os dados coletados, tarefa levada adiante por seu tamoso diset- pulo Karl Pearson. James McKeen Cattell, psic6logo americano, fez sua tese em Leip- vig sobre diferengas individuais no tempo de reaydo, apesar do seu orien- tador e estudioso do mesmo toma, Wundl, nao gostar deste lipo de pesqui- sa, dado que este estava a procura de uniformidades e nao de difereneas individuais. Como professor cm Cambridge (1988) ficou mais animaido com a sua orientagao vendo ¢ sentindo a influéneia de Galton que também trabalhava com a medida das diferencas individuais. Famoso é seu artigo de 1890, porque nele Cattell usa pela primeira vez, a expressiio, que fez sucesso internacional e histérico, de teste mental (mental test) para us pro- vas aplicadas anualmente aos alunos universititios no sentido de avaliar seu nivel intelectual nos Estados Unidos. Cattell seguiu as ideias de Gal- ton, dando énfase as medidas sensoriais porque elas permitiam maior pre- 10. Perecheu cle que medidas objetivas para fungées mais complexas, que vinham sendo usadas sobretudo na Alemanha, tais como testes con- tendo operagées simples de aritmética, testes de meméria e resistencia & fadiga (Kraepelin, 1895), bem como testes de eifculo, duragaio de memé- ria e complementagio de sentengas (Ebbinghaus, 1897}, no produzian resultados condizentes com o desempenho académico. Contudo. os pré- prios testes de Cattell também nao produziam resultados congruentes entre si (Sharp. 1899; Wissier, 1901) ¢ nem correlacionavam com a avaliagdo que os professores faziam do nivel intelectual dos alunos (Bolton, 1892; Gilbert, 1894) e nem mesmo correlacionavam com o desempenho acadé- mico desses alunos (Wissler, 1901), Alfred Binet e V. Henri (1896), psicélogos franceses, comegaram com uma séria critica a todos estes testes, afirmando que eles: (1) ou eram puramente medidas sensoriais que. embora permitindo maior preciséio, nao tinham relagio importante com as funcées intelectuais (irrelevancia) vou, (2) se eram testes de contetido intelectual, estes se dirigiam a habilida~ des demasiadamenie especiticas, como puro memorizar. calcular, et quando os testes deveriam se orientar para medir fungdes mais amplas como a memGria, imaginagdo, atengfio, compreensiio etc. De fato, Binet e Simon (1905) descavolveram seu famoso teste de 30 itens para cobrir uma gama variada de fangées (como julgamento, compreensio e raciocinio) com o objetivo de avaliar o nivel de inteligéncia de criangas € adultos, através do qual estavam especialmente interessados em detectar 0 retardo mental. Esta orientagdo de Binet ¢ Simon em elaborar testes de contetido mais cognitive (¢ nao sensorial) e cobrindo fungdes mais amplas (nao es- pecificas) fez grande sucesso nos anos subsequentes, especialmente nos Estados Unidos com a traducdo do seu teste por Terman (1916). inaugu- nando de yer a era dos testes, inclusive com a introdugiio do QI, sendo matematicamente representado por: QU= 100 1M /1C) one, QU= quociente intelectual TM = idade mental IC = idade cronolégica. Este quociente substituiu a forma de Binet e Simon de expressar 0 nivel intelectual do sujeito em termos de Idade Mental (Age Mentale) Idade mental significava © seguinte: a crianga teria aquela idade mental equivalente aos itens que uma crianca de dada idade cronolégica respon- dia corretamente, aerescendo as bonificagdes em meses decorrentes da resoluedo correta de itens soltos de idades mais avangadas. Apés estes primordios, os testes se popularizam. sobretudo com a vinda da Primeira Guerra Mundial, na qual © exército americano desen- volveu uma série de haterias de testes (Army Alpha e Army Beta) para sclegao de soldados, introduzindo, inclusive, os testes de aplicagae coleti- va (até 0 momento, os testes cram todos de aplicagao individual). Finda a guerra, a indtistria e as instituigdes em geral iniciaram o uso macico dos testes. No campo das aptiddes, contudo, foi Thurstone (1938, 1941) quem 2 den impulso inovador.a estas técnicas com o uso da anilise fatorial, da qual foi um expoente tedrico, ¢ sua bateria Primary Mental Abilities, que incentivou o aparecimento de uma pléiade de outras baterias (DAT, GATB, TEA, WISC, WAIS). A area da personalidade nfo ficou atrds. Testes € inventérios de personalidade surgiam as devenas (MMPI, 16PF, EPPS, POI, CPI, CEP, EPI), além de instrumentais menos objetivos, os ditos testes projetivos (TAT, CAT, Rosenzweig, Szondi, Rorschach, HTP). Estava, enfim, instalada a tecnocracia dos testes e da Psicometria. CAP{TULO 2 Teoria da Medida A Psicometria assume ¢ modelo quantitativista em Psicologia. Nos manuais de metodologia cientifica, particularmente nas direas das ciGnci psicossociais, este tema vem tratado muito esporidica e superficialmente. Fala-se quase exclusivamente de um tema muito debatido, ou seja, as esca- jas de niimeros: nominal, ordinal, de intervalo e de razao. Inclusive sem demonstrar como tais escalas surgem. A problemitica da medida em cigncias © bem mais complexa do que isto. Para oferecer uma visio mais coerente, abrangente ¢ racional a esta temitica, o presente capitulo procura dar ¢ ex- piicitar os fundamentos epistemolégicos de medida em ciéncias (empiricas), bem como explicitar os tipos e niveis possiveis que ela pode assumir. 1 - Introdugiio: Ciéncia e Matemitica ‘A medida em ciéneias psicossociais, notadamente na Psicologia, deveria ser chamada puramente de Psicometria similarmente ao que ocor- re em Areas afins, onde se fala de sociometria, econometria. politicome- tia, ete. Psicometria. contudo, tem sido abusivamente utilizada dentro de um contexto muito restrito, referindo-se a testes psicoldgicos e escalas psicométricas. De qualquer forma, a Psicometria ou medida em Psicologia se insere dentro da teoria da medida em geral que, por sua vez, desenvolve uma discussio epistemolégica em tomo da utilizagZo do simbolo mate- miatico (0 nimero) no estudo cientifico dos fendmenos naturais. Trata-se, portanto, de uma sobreposigéo. ou melhor, de uma interface, entre siste~ mas te6ricos de saber diferentes, tendo a teoria da medida a fungao de justificar e explicar o sentido que tal interface possui. A matemitica ¢ a ciéncia empitica so sistemas teéricos' (ou de conhecimento) muito distintos ¢, em termos estruturais, no siio comenst- raveis. Na verdade, os dois sistemas t@m objetos ¢ metodologias préprias, distintas irreversiveis entre si. Pode-se discernir esta distingao, atentando 1. Uma discussie epistemolgica mais detalhada sobre sistemas de saber se encontra em Pas- quali, L. (org.), Delincamente de Pesquisa em Cisncia, 23 para a tabela 2-1, Observa-se que, em nenhum momento ou sob nenkum crilério, os dois sistemas se assemelham estromralmente. A cigncia tem como referente ou objeto os fendmenos da realidade, ao passo que a ma- temética estuda como seu objeto o simbolo numérico (que 6 um conceito & néio uma reatidade empirica e nem uta propriedade desta realidade — Fre- ge, 1884); a metodologia da ciéncia é a observagio sistemidtica e a da ma- temiatica é a dedugio; o critério de verdade para a cigncia é teste empiri- CO, a0 passo que para a matematica é a consisténcia interna do argument Tabela 2-1. Enfoque epistemolégico em ciéncia ¢ matematica ————————— Sistema Teé- Objet Ad Met Ver Certeza— Critério de rico de__dologia dade Verdade Ciencia(em-— Fend- Epi Observa- ato Relati-_ Teste Empirico pitica) menos rica @ va naturais Controle Matematica Sim- Trams Dedugdo~Teo- — Abso- —Consistéacia bolo cen- remalufa’ interna numé- dental do argumento rico Assim, a primeira afirmagdo, no contexto da teoria da medida, consiste em dizer que o sistema cientifico do conhecimento nfo tem nada a ver com a matemitica e vice-versa, falando-se em termos das estruturas epistemoldgicas dos dois saberes, O mesmo tipo de argumentagio pode ser feito da ciéncia com relagdo aos outros sistemas de saber (filosofia, teologia, etc.), 2— A natureza da medida Apesar dessa distancia epistemoldgica entre ciéncia e matenuitica, a primeira se apercebeu das vantagens considerdveis que ela pode obter a0 se utilizar a linguagem da matemdtica para descrever 0 seu objeto préprio de estudo. Na verdade, se 0 modelo matemético nao dita ¢ nem funda- menta 0 conhecimento cientifico, parece que € 0 uso deste modelo que vem possibilitando distinguir niveis de progresso no conhecimento cienti- fico. Esta afirmagdo, pelo menos, aparece claramente demonstrada na ciéncia da Fisica que, com o uso do modelo matemitico, péde passar de uum estigio pré-cientifico & fisica modema. Além disso, “Os instrumentos 24 ¢ técnicas de medida propiciam a ponte mais itil entre os mundos do dia a dia do Ieigo e dos especialistas em ciéncia” (Klein, 1974: 24). © uso do niimero na descrigao dos fendmenos naturais constitui o ubieto da teoria da medida. Esta teoria esta razoavelmente axiomatizada semente nas ciéneias fisieas, aparecendo ainda lacunar nas ciéncias psi- cossociais, onde, alids. ainda se discute a viabilidade epistemoldgica da propria medida. A natureza da medida implica em alguns problemas basicos, dentre os quais trés devem ser mencionados (Luce & Suppes. 1986; Suppes & Zin- nes, 1963; Camphell, 1928, 1938): a representagio, a unicidade e 0 erro. O problema da representagéo ou 0 isomorfismo © problema central da medida consiste em justificar a legitimidade de se passar de procedimentos e operagdes empiricos (a observagio) para uma representagao numérica destes procedimentos. E justificdvel designar ou expressar objetos ou fenémenos naturais através de nimeros? Sim, se nesta designagiio se preservarem tanto as propriedades estruturais do nu- mero quanto as caracteristicas prdprias dos atributos dos fendmenos empi- ricos, Trata-se do tgorema da representagao, isto ¢, representar com mime- ros (objeto da matemética) as propriedades dos fendmenos naturais (ob- jeto da ciéncia). 2.20 problema da unicidade da representagéo A questio envolvida aqui € a seguinte: serd que o niimero é a tinica ou a melhor representagio das propriedades dos objetos naturais para fins de conhecé-los pelo homem? Evidentemente, vocé vé que a resposta a esta pergunta gera imediatamente guerra, particularmente entre cientistas da rea psicossocial. Entretanto, os defensores da medida em ciéncia respon- dem afirmativamente a pergunta, sem pestanejar, Mesmo assim, alertam que esta representagdo, ainda que sendo 4 melhor, apresenta niveis diferentes cle qualidade ou preciso, dependende do tipo de caracteristica dos objetos que se esid focalizando. Assim, para 0 caso do peso, o mimero representa excelente informago (a saber, o quilograma), enquanto no caso da inteli- géncia, ele j4 € menos preciso (o QI, por exemplo, ou um escore num teste X). Esta problematica da unicidade da representagao ¢ de seus niveis gera os niveis da escala de medida, ou seja, define se a escala obtida seré ordi- nal, intervalar, ete,, como veremos. 25 23-0 problema do erro A observagao dos fenémenos empiricos é sempre sujeita a erros devidos tanto ao instrumental de observagdo (0s sentidos e suas extensdes através de instrumentos tecnolégicos), quanto a diferengas individuais do observader, além de erros aleatdrios, sem causas identificdveis. Assim. tipicamente toda e qualquer medida vem acompanhada de erros e, por consequéncia, o némero que descreve um fendmeno empirico deve vir acompanhado de algum indicador do erro provavel, o qual serd analisado dentro de teorias estatisticas para determinar se 0 valor encontrado ¢ que descreve © atribulo empirico esté dentro des limites de aceitabilidade de medida. Note que © mimero matcmitico é um conceito univeco, sem a minima variabilidade de interpretagdo, os nimeros so conceitos pontuais, onde um niimero nfo apresenta nenhuma intersegao com o préximo. As- m, 1 € somente 1, 2 € somente 2, etc., coisa que no ocorre quando o mimero € utilizado para descrever (representar) fendmenos naturais, por- que aqui 0 némero | pode ser mais ou menos | e, assim, pode ter interse- com o 2, ete. Acontece que, na medida dos fendmenos naturais, 0 mi- mero se adultera un pouco, perdendo sua identidade pontual e absolula, para se tomar um intervalo em vez de ser um ponto sem dimensdes. O fato de o niimero, na medida, se tornar um intervalo diz que ele ja tem variabi- lidade (variancia) e isto é 0 erro. Se vocé chamar o mimero da matematica como niimero matematico, o ntimero da medida vocé chamaria de nimero estatistico. Aquele & um ponto, enquanto este € um intervalo. Desta forma. em matemitica 0 mimero esta sempre solitério, inconfundivel, enquanto na medida ele vem sempre acompanhado de um “cio de guarda”, a vari- Ancia, que indica o erro. Voltaremos a este ponto mais adiante, Concluindo: O uso do aimero na deserigio dos fendmenos natu- rais (isto & a medida) somente se justifica se se puder responder afirmati- vamente as duas questées seguintes: 1 —F legitimo utilizar © mimero para descrever os fendmenos da cigncia? 2—E util, vantajoso, utilizar o nimero para descrever os fendme- nos da ciéncia? © restante deste capitulo procura responder e fundamentar a res- posta afirmativa a essas duas questées. 3~ A base axiomatica da medida Esta parte visa fundamentar a legitimidade epistemolgica da me- Jida em ciéncias, isto é, a legitimidade do uso do nimero como descritot Je fendmenos naturais. Ha legitimidade no uso de muimero na descrigao dos fenémenos saturais Se, € somente se, as propriedades estruturais, tanto do nimero quanto dos fendmenos naturais, forem salvaguardadas neste procedimento. lao &, deverd haver isomorfismo estrito (relagdo de 1 para 1) entre pro- priedades do nimero e aspectos dos atributos da realidade empitica. Sao propriedades basicas do sistema numérico: a identidade, a or- Jem e a aditividade. A medida deve resguardar, pelo menos, as duas pri- mnciras destas propriedades: de preferéncia, as trés. Para melhor enquadrar a Psicometria ¢ a medida em geral em cién- cias psicossociais, a base axiomatica da medida ser tratada dentro das cién- ius fisicus, fazendo em seguida as ressalvas ¢ corregdes necessarias para 0 caso da medida em ciéncias psicossociais e, em especial, da Psicologia. Jf -Axiomas do sistema numérico Stevens (1951) representaria o sistema numérico como 1a Figura 2-1 Positive imteiros | negativo racionais zero Nameros reais comipion § Positive fraciondrios | hepativo Nimeros eer Complexes icracionais $ aleébrico transcendental Outros nameros simples Némeros imagindrios Figura 2-1. O sistema numérico ar Estes varios tipos de mimeros surgiram em épocas histéricas dife- rentes, segundo as necessidades dos estudiosos e as da vida prdtica. Inici- almente s6 havia os ntimeros inteiros, que se mostravam suficientes para a contagem de objetos discrelos; razdo pela qual também sdo chamados de mdmeros naturais (cf. Klein, 1974). Com cles se podia fazer as operagdes de soma e de multiplicagdo. Eles néo davam sempre certo, especialmente quando se queria subtrair um némero maior de um ndmero menor. Esta limitagio do sistema de inteiros fer com que o sistema fosse estendido para ineluir nimeros negativos e o zero. Com a divisio, o sistema de intei- Tos se mostraya ainda mais limitado, o que forcou a adogdo de numeros fracionarios, Este conjunto de niimeros (inteiros positives, negativos, zero € fragées) constitui o sistema de mimeros racionais, dado que qualquer mimero deste sistema pode ser expresso em termos de razdo entre dois mimeros inteiros. Excetuada a divisio por zero, todas as aperagies sfio possiveis dentro deste sistema numérico, Contudo, certas operagdcs ma- tematicas nao eram vidiveis dentro do sistema, como, por exempio, a raiz quadrada de 2, Inventaram-se, entdo, os ntimeros irracionais, e assim se fechou 0 circulo dos nuimeros reais, suficientes para permitir qualquer sorte de medida da realidade, até o presente, A matematica é um saber baseado em puras convengdes: assim, tanto © seu objeto (0 némero) quanto suas regras siio convencionadas. No inicio do século XX, 05 fildsofos e matematicos Whitehead & Russell (1910-1913; 1965) elencaram nada menos que 27 axiomas on regras do jogo da matemética, apresentadas em seu livro Principia Mathematica. Destes axiomas, trés grandes conjuntos so importantes para o caso da medida. Trata-se dos axiomas que definem as propriedades numéricas de identidade, ordem e aditividade, 1) Mdentidade. Esta propriedade define 0 conceito de igualdade, isto é, que um niimero € idéntico a si mesmo e somente a si mesmo. Ela apresenta (rés axiomas (postulados aceitos ¢ néo provados) que expressam a relagio de IGUAL A ( —reflexividade: a = a ou a # b, Nuimeros sdo idénticos ou sao di- ferentes; — simetria: se a = b, entao b be b=c,entio a =c, Duas coisas iguais a (0 iguais entre si. ~ transitividade: se uma tercei 28 2) Ordem, Esta propriedade se bascia na desigualdade dos mime- ros, Todo numero é diferente do outro. Essa desigualdade nao é somente de qualidade, mas ela se caracteriza em termos de magnitude, isto é, um numero odo € somente diferente do outro, mas um é maior que o outro. Alids, cles so diferentes precisamente porque um 6 maior que 0 outro. Assim, excetuado 0 caso de igualdade, os nimeros podem ser colocados numa sequéncia invaridvel ao longo de uma escala linear: sequéncia mo- notnica crescente. Também apresenta (rés axiomas, que expressam NAO IGUAL A ou MATOR QUE (>): — assimetria: s¢ a > b, entdo b # a. A ordem dos termos nao pode. ser invertida; —transitividade: se. a> be b>, entio a > c —conectividade: ou a > b ou b> a; — um quarto axioma € 0 de ordem-denso: néimeros racionais siio tais que entre dois ndmeros inteiros quaisquer ha sempre um ntimero racional; o intervalo entre dois inteiros niio é vazio. 3) Aditividade. Os mimeros podem ser somados, isto & podem ser conatenados de modo que a soma de dois ntimeros, excetuado o zero, produz um outro niimero diferente deles préprios. Isto é, as quatro operagées (soma, subtragdo, multiplicagao e divisdo — as tr@s Gltimas so reduttveis & primeira) podem ser aplicadas aos mimeros. Dois axiomas se destacam: — comutatividade: a + b = b+ a. A ordem dos termos no altera 0 resultado da adi¢ao; — associatividade: (a + b) +c é igual aa + (b +c). A ordem de as- sociagiio ou de combinagao dos termos nao afeta o resultado. Nota: As quatro operagées bisicas dos mtimeros (soma, subtragdo, multiplicagao, divisio) se reduzem a soma, Veja: Soma; 34255 Subtracio: 3-2=34(2) Multipli 3x2=2424 2 (tres vezes 02) Divisao: 422='2414 44% (quatro veres 4). 29 3.2 — Axtomas da medida Como a medida consisie na atribuigao de niimeros as propriedades das coisas segundo certas regras, ela deve garuntir que as operagdes empi- ricas salvem os axiomas dos ntimeros. A medida que salva todos esses axiomas € a mais sofisticada possivel c, por isso, rara (escala de razio). A maioria das medidas, a0 menos em ciéncias psicossociais, se dio por sa- tisfeitas se puderem salvar, pelo menos, os axiomas de ordem. Se somente os axiomas de identidade forem salvos (escala nominal), a operagao pro- priamente ndo chega a ser medida, mas trata-se apenas de classificacio, pois a tinica caracteristica do mimero salva € a sua identidade; isto é, 0 niimero utilizado para uma operacio empirica deve ser diferente do de uma outra operagdo. Para tanto, aliés, 0 mimero é utilizado tio somente como numeral, a saber, uin rabisco diferente de outro, que poderia ser substinuido por qualquer outro sinal ou rabisco (desde que diferentes entre si) sem a menor consequéneia para a medida. O mimero neste caso serve apenas de etiqueta para uma classe de coisas. A medida realmente aconte- ce quando se salvam, pelo menos, os axiomas de ordem dos nimeros. En- tao fica a pergunta: é possfvel se demonstrar a existéncia de ordem de magnitude nos atributos das coisas, isto 6, as coisas tém dimensdes? (en- tendidas estas como atributos mensurdveis, propriedades empiricas pos- suidoras de magnitude). Como resposta a esta questéo, poder-se-ia sim- plesmente assumir que sim: os atributos empiticos tém magnitude, como 0 senso comum nos parece dizer quotidianamente quando fala de ‘mais do que’, ‘maior que’ € expressées similares. Contudo, esta ndo parece ser uma base suficientemente segura para findamentar uma teoria da medida E preciso, entdo, demonstrar empiricamente que tal ocorréncia existe na realidade das coisas. Nas cignvias fisicas esta questio parece resolvida, mas nas ciéncias psicossociais ainda suscita avirradas controvérsias. Antes de oferecer uma tentativa de demonstragdo eaperimental de axiomas da medida, note 0 comentério a seguir. Comentério: Os niimeros, pelo menos os compleaos, diferem entre si em termos de magnitude e nfo em termos de qualidade. Assim, 0 2 néo € qualitativamente diferente do 1; ele é diferente quantitativamente, Quer dizer que todos os numeros sao da mesma qualidade ou natureza, isto é, sio todos da qualidade de quantidade ou de magnitude; cles diferem cm ordem, porque um é maior que 0 outro. Repare que os fendmenos naturais, por outro lado, diferem entre si também qualitativamente: a cor é uma qualidade diferente da do peso, que ¢ diferente da do comprimente, etc. 30 Estas diferengas sdo de qualidade, pois se trata de aspectos, qualidades, caracteristicas, atributes [...] diversos e distintos de um mesmo objeto na- tural, O isomoformismo defendido na medida é entre as propriedades do numero (sobretudo de ordem e aditividade) com estas mesma proprieda- ues de cada atributo de um objeto natural e nao com o préprio objeto natu- ral. De fato, os diferentes atributos de um mesmo abjeto nao diferem em termos de quantidade e sim de qualidade. Entretanto, um mesmo atributo de um objeto natural pode variar em diferentes momentos ou situagdes ou objelos-individuos ¢ esta variagao é que é definida em termos de magnitu- de. purtanto mensurivel (donde a medida: esta é de atributos individuais de objetos € nic dos prépries objetos). Assim, por exemplo, da rosa eu posso falar de diferentes qualidades, tais como intensidade de aroma, peso. tamanho, etc. Mas cada uma dessas qualidades pode aparecer com magnitude diferente de aroma, peso, comprimento, etc. (isto é, eu posso medir as magnitudes de cada qualidade). Em termos de seus atributos, qualitativamente diferentes, nao posso dizer que uma rosa é mais rosa que a outa; posso, porém, dizer que uma é mais aromética. mais pesada, etc, gue a outra. CL. a figura 2-2 para facilitar a compreenso. Aroma ——+ Peso ee Tamanho Figura 2-2. Trés qualidades da rosa com siras magnitudes at 3.2.1 — Demonstragao empirica dos axiomas de ordem (Guilford, 1954) Os axiomas de ordem afirmam que, na medida, a ordem dada pelos ntimeros atribuidos aos objetos (transitividade e conectividade) deve ser a mesma obtida pela ordenagio empirica destes mesmos objetos. Existe or- dem (“maior que”) nas propriedades das coisas. Exemplos: Um metal que arranha um outro e ndo pode ser arranhado por este, diz-se que € mais duro, Assim, uma ordem empirica de dureza pode ser estabelecida a partir da ope- ragdo empirica de arranhar. Igualmente, 0 alinhamento de linhas mostra que uma € maior que outra, donde uma ordenacdo de ebjetos em termos de comprimento poder ser montada. Um tom que é dito mais alto gue outro por uma amostra de sujeitos, diz-se que & mais agudo. Assim, uma ordem de altura tonal (pitch) pode ser estabelecida. Idem, se um sujcito resolve corre- tamente maior ntimero de uma série de problemas do que outro, diz-se que & mais inteligente. Assim, pode-se estabelecer uma escala de inteligéncia. As inversdes que ocorrem sao consideradas “erros de medida” ou de observa- go, que devem ser tratados dentro da teoria da consisténcia, a qual visa mostrar que, apesar desses erros, hd consisténcia na medida, 3.2.2 Demonsiraciio empirica dos axiomas de aditividade A demonstrago dos axiomas de aditividade parece ser possivel somente no caso dos atributos extensivos, como massa, comprimento ¢ duragdo temporal, bem como no caso da probabilidade. A aditividade se baseia na ideia de concatenagéio: a combinagio (concatenagie) de dois objetos ou eventos produz um terceiro objeto ou evento com as mesmas propriedades dos dois, mas em grau maior. Assim, tomando-se um abjeto de comprimento ‘x’ (medido em uma unidade de comprimento qualquer, 0 metro, por exemplo), encontrar um outro objeto com o mesmo compri- mento ‘x’, juntando (concatenando) os dois objetos obtém-se um objeto maior ‘z’ com comprimento duas vezes os comprimentos dos objelos in- dividuais. O conceito de concatenagio implica que A com B (A concate- nando B)= A +B. Conelusdo: Fiea, assim, claro e amplamente demonstrado que a medida, isto é, a utilizagdo do mimero para descrever os fenémenos nati- rais, é legitima ¢ adequada. Contndo, da discussao anterior, vocé também percebe que existe medir e medir; ou seja, nem todas as medidas sio iguais, digamos, em qualidade. Esta qualidade depende do grau ou da quantidade de isomorfismo que existe entre as propriedades do nimero e 32 +s propriedades dos fendmenos naturais. Isto quer dizer que hé niveis dife- rentes de correspondéncia entre © niimero e os fendmenos naturais, © que implicard diferentes niveis de medida, como veremos em seguida, 4 - Niveis da medida (Escalas de medida) Dependendo da quantidade de axiomas do niimero que a medida salva. resuitam vérios niveis de medida. conbecides como escalas de medi- sli. Como vimos, so 118s os axiomas biisicos do ntimero: identidade, ordem © aditividade. © diltimo apresenta dois aspectos iifeis para o presente pro- blema: origem e intervalo ou distancia, Quanto mais axiomas do niimero a medida salvaguardar, maior seri o seu nivel, isto é mais se aproximara da

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