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ccna . JMATERIAL EXCH Teiivesdade viidade de Bras. a DE PROFESSORS, aa (BIBLIOTECES yy. L A lenta via brasileira para a democratizagao: 1974-1985* Thomas E. Skidmore Pano de fundo. 0 retorno do autoritarismo brasileiro: 1964-1974 Em margo de 1964 uma coalizao entre conspiradores mili- tares ¢ civis depos o presidente Jodo Goulart ¢ abriu um novo capitulo na hist6ria do autoritarismo brasileiro"*. Seu precedente mais claro foi novembro de 1937, quando o presidente Getilio Vargas suspendeu a elei¢Zo que iria escolher seu sucessor. Var- 488 rio um regime autoritétio semicorporativista (0 Estado Novo) amplamente sustentado nos militares. Em 1945 0 pré- prio Vargas foi deposto pelos militares, ¢ 0 Brasil adotou um sistema competitive multipartidério. A reversio ao autorita- rismo em 1964 foi novamente obta dos militares, que decidiram dar continuidade ao sistema presidencial, mas sob a tutela mi- litar. © presidente seria um general designado pelas corporagdes + Teadugho de Ana Tava Pinheira ++ Agradego 0 apoio financeiro do. programa da “Fulbright” do “Faculty Reseach Abroad Fellowship” da Universidade de Wisconsin Graduate School Research Committee, e do "Nave Fund” da Universidacs 4de Wisconsin. Pelos comentarios proveitosos e eriticas sou grato a Bolivar Tamounier, Peter Evans, Pedro Malan e Fernando Henrique Cardoso 27 de oficiais militares para eleigio pelo Congresso (mais tarde am- pliado para tum Colégio Bleitoral) para um mandato determinado. ‘A experiéncia do novo autoritarismo no Brasil suscitou mui- tas andlises de esttdiosos, incluindo um volume da conferéncia de 1971 em “Yale” sobre Authoritarian Brazil Um dos traba- Thos mais influentes foi o de Juan Linz, que sugeriu que “o caso brasileiro representa uma situaefo autoritéria mais que um regime autoritério”? Linz considerava improvével que gover- no militar brasileiro institucionalizasse um novo sistema compa- ravel & Espanha ce Franco, Ele via como mais provavel, ou melhor, um regime instével. A hist6ria subseqiiente confirmou a anélise de Linz. Este trabalho oferece uma avaliagio esque- mitica de como 0 governo militar, a partir de 1974, afastou-se dda regra arbitréria e lentamente caminhou em diregéo a um sis- tema competitivo multipartidério com a restauragio do estado de direitos © primeito presidente militar apés 0 golpe de 1964 foi o general Humberto de Alencar Castelo Branco. De 1964 8/1967 Castelo’ Branco enfrentou a tarefa ingrata de conduzir um pro- sgrama de estabilizagéo econdmica. Sua equipe econémica redu- iu drasticamente o indice inflacionério e renegociou com su- cesso a divida externa, mas fracassou na recuperagdo do cres- cimento econmico. Ao mesmo tempo, o governo Castelo Bran- co enfrentou uma grande pressdo da “linha-dura” militar que queria suspender as eleicdes e as garentias constitucionais pare facilitar os expurgos e procedimentos arbitrérios. Castelo Branco ‘conseguiu conter os “linha-dura” por meio de concess6es (pro- ongando o seu mandato por,um ano, essumindo poderes excep- cionais por meio de “Atos Institucionais"). Expurgos foram efe- tuados na burocracia, entre os militares, nas universidades € sindicatos. Ao mesmo tempo, o presidente e seus assessores-cha- ve trabalhavam numa nova constituicdo, a fim de permitir que © préximo presidente pudesse assumir o poder num regime cons- titucional “normal”. (© constitucionalismo parecia predominar quando o general Artur da Costa © Silva assumiu o poder em 1967/0 compro- misso do novo presidente, de “humanizar” a “Revolugdo” mi 28 i | | | | | | | 1 litar de 1964 parecia um bom prességio. Na esfera econdmica, as novidades nao poderiam ser melhores. O Brasil comesou uma explosio do crescimento econdmico cuja média foi um extraor- dinério 11% ao ano de 1968/1974. Na politica, entretanto, 0 cendrio era menos feliz. A estrutura frégil da consfituigio de 1967 no podia conviver com a radicalizagae politica crescente. Em 1968 houve enormes demonstragdes estudantis ¢ duas im- portantes greves no setor industrial.® O govemo reagiu com me- dicas policiais que se tornaram altamente repressivas, especial mente porque em geral os “linha-dura” comandavam as forcas de seguranga. Em dezembro de 1968, os militares enfureceram- se em virtude de um voto do Congresso que protegia um deputado ‘a quem desejavam processar. O presidente decretou o Ato Ins- titucional n.° 5 (AT-5), que autorizava a suspensao dos direitos civis normais, tais como o habeas-corpus, justificando a medida pela necessidade de proteger @ seguranga nacional, Ao con. trério de seus precedentes, esse novo ato néo trazia a data de ‘vencimento, Depois que o presidente Costa e Silva morreu de um der- rane cerebral em 1969," seu sucessor, designado apés intenso debate entre as corporacées militares, foi o general Emilio Gar- qastazu Médici, que permaneceu no governo até 1974.5 A pre- sidéncia de Médici foi a mais autoritéria desde 1964. Apesar do fato de se fazer eleigées,° e do Congresto continuar funcio- nando (com a suspenséo de 1969 a 1971, quebrada apenas pa- ra ratificar a sucesso de Médici no comego de 1970), 0 Brasil estava sob 0 contole das forgas de seguranga, que travavam uma batatha com vérios pequenos movimentos ce guerrilha. Mesmo depois que as guerrilhas foram liquidadas tem misericérdia, os procedimentos arbitrérios e as préticas ditatoriais continu ram2* Assim mesmo, o presidente Médici conquistou uma leg timidade parcial de facto junto aos membros das classes média ¢ ata, em razo dos indices recorde de crescimento econémico € do estabelecimento da “lei e da ordem”. (Os anos Médici terminaram com 0 governo aparentemente ais forte do que em qualquer outra época desde 1964. A amea- ga armada da esquerda fora liquidada — 0s guerrilheiros esta- 2 ‘yam ne priséo, no exilio ou mortos. A economia expandia-sc, com um indice de crescimento em 1973 de 14%, o mais alto de qualquer ano desde 1928. O Brasil parecia ser 0 modelo para aqueles que buscavam 0 segredo do crescimento econdmico no. Terceiro Mundo, Nao obstante esse aparente sucesso, mudangas. importantes estavam em gestagao. ‘Um grupo de oficiais militares vinha defendendo, jf hé algum tempo, a necessidade de retomar ao estado de dircito. Eles se identificavam bastante com o antigo presidente Castelo Branco (morto num acidente aéteo apenas alguns meses apds deixar o cargo em 1967) e sua intengao original declarada de retornar to logo quanto possivel a0 governo constitucional, Destacando-se nesse grupo, o general Golbery do Couto ¢ Silva, chefe da Casa Civil de Castelo © membro-chave da “Sorbonne” militar, desejava modernizar o Brasil rapidamente. Golbery ha- via lutado contra a designagao de Costa e Silva como sucessor de Castelo Rranco, e desde sua saida do governo em 1967 pla. nejava um retorno ao poder. Golbery tinha um aliado, igual- ‘mente importante, no general Ernesto Geisel, que era um can- didato de consenso das Forgas Armadas para suceder Médici. de dentro? A sucesso presidencial de 1973-74 aconteceu de maneira. ‘mais calma do que qualquer outra desde 1964, Durante 1973 a opiniio militar convergiu para o nome de Emesto Geisel, o: Presicente da Petrobrée, quo tinha a virtude adicional de cor irmao do ministro do Exército. O Colégio Eleitoral seguiu pon- ‘tualmente as instrugGes, ¢ em janeiro de 1974 elegeu o presidente Geise! com 400 dos 503 votos. A derrota considerével do MDB num corpo altamente manipulado era, em pequena parte, com- pensada pela esperanca de que 0 novo presidente desejasse (c realmente pudesse) diminuir a repressio. No fim de fevereiro Geisei anunciou seu ministério, para cujos postos-chave foram nomeados tecnocratas. Delfim Netto foi substituido na Fazenda por Métio Simonsen, outro professor de economia com estreitas 30 ligagSes com So Paulo. Delfim foi mandado para fora do Bra sil como embaixador da Franca, em parte para manter sua per sonalidade formidavel to longe quanto possivel dos novos exe- cutivos da politica. A Secretaria do Planejamento permaneceu ras mios de Joo Paulo dos Reis Velloso, o economista do Nor- deste, que provou ser o tecnocrata de maior longevidade.™ Havia rumores de que 0 novo governo planejava acabar ‘com as injusticas sociais do passado. Melhor distribuigao de ren- da era a preocupacao principal: entre 1960 e 1970 os dez por cento mais ricos da populagdo tinham aumentado sua parcela de renda de 40% para 47%, enquanto a parcela dos cingiienta Por cenjo mais pobres tinha caido de 17% para 15%. Um novo Ministério do Bem-Estar Social iria consolidar os mal coordens- dos programas de bemestar criados pelos governos passados. Uma distribuigéo mais justa da rend requeria um alto crescimento continuo, para que ninguém perdesse em termos ab- solutes. © choque do prego do petréleo da OPEP, em 1975, entretanto, mostrou que o Brasil, que importava 80% de seu ppetréleo, tinha poucas opedes: cortar da importagio os nio-de- rivados de petréleo, usar suas reservas de divisas, ou tomar emprestado mais capital externo. Cortar nas importagées dimi- nuiria 0 ritmo do crescimento, ¢ a recessio mundial causada pe- lo choque do prego do petréleo impedia um aumento nos Iucros com exportagdo. A nica maneira de absorver 0 aumento do rego © manter o crescimento era usar as reservas ou fazer em- préstimos externos, © Brasil fez ambas as coisas, duplicando sua divida externa somente em 1974 (de 6,2 bilhdes de délares para 119 bilhdes de délares).!* Sustentado por empréstimos estrangeiros, 0 governo Geisel decidiu manter os enormes projetos de investimento estatal que havia herdado (a reptesa de Itaipu, o projeto de ago da Agomi- nas, etc.), enquanto ele préprio realizava um conjunto de novos projetos dispendiosos de investimento para aumentar a capaci- dade interna de bens de capital e matérias-primas bésicas. Em resumo, 0 novo governo aceitou um desafio até mesmo maior do que o que seus predecessores tinham tentado, e num clima ternacional muito menos favorével. 3 Pl (© general Golbery do Couto e Silva tinha agora voltado a0 poder, retomando a posigio que mantivera com Castelo Bran- co — chefe da Casa Civil do’ presidente, Gulbery © Gcisel ha- viam trabalhado juntos no governo de Castelo Branco, ¢ desde 1967 estavam manobrando para reconquistar 0 poder pa- ra aqueles que eles consideravam como os “revolucionérios au- ténticos”. ‘As expectativas do povo em relagao do novo governo, ¢s- pecialmente entre a elite, concentravam-se na esperanga de que ‘© governo Geisel conseguisse manter 0 aparato repressivo sob controle, acabando especialmente com a tortura. No fim de fe- vereiro, Geisel alimentou essa esperangas encontrando-se com 0 cardeal Arns de Sao Paulo, um critico incansdvel da violago dos direitos humanos pelo governo. Emissérios da Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foram encorajados pelas conversas com o general Golbery, que parecia genuiinamente sus- cetfvel a um retorno a0 estado de direito. O otimismo cresceu ‘quando Geisel expressou sua esperanga de uma redemocratiza- gio gradual, comegando com uma descompressao, embora ele tenha também claramente advertido que a “seguranga” nacional era indispensével para garantir 0 desenvolvimento.4# Ficava claro, desde o inicio, que qualquer movimento em diregfo & redemocratizagéo e a um retorno ao estado de direito dependeria da habilidade do presidente de mobilizar apoios den- tro das corporagdes dos oficiais das trés armas, especialmente do Exército. Os “linha-dura” poderiam se opor ¢ talvez mesmo sabo- tar qualquer liberalizacao. Havia especula¢ao para saber até que ponto o presidente de fato controlava o aparato de seguranca. Um incidente no Nordeste ilustrou o problema. Pouco depois da posse de Geisel, 0 comando do Quarto Exército em Recife pren- deu Carlos Garcia, um respeitado jornalista que chefiava a su- cursal, no Recife, do jornal O Estado de S. Paulo, Ap6s interto- gat6rio e tortura, Garcia foi solto. Era a esse tipo de tratamento brutal, tipico da era Médici, que a oposicdo esperava que Gei sel pudesse dar um fim. Os proprietérios do jornal, que tinham sido corajosos no ataque a0 governo militar, protestaram vigo- rosamente contra os maus tratos a seu repérter, a quem munca foi apresentada nenhuma acusagdo judicial. No fim de maio, os censores federais langaram um staque os meios de comunicacao,"* reagindo, em parte, & critica mais agressiva da oposigdo. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fexpressou sua pteocupagdo sobre o fracasso do governo em es- larecer 0 caso das pessoas desaparecidas que, acteditava-se, ha- viam sido presas pelas forcas de seguranca.%* Em julho, o MDB solicitou formalmente que o ministro da justia, Armando Falco, explicasse 0 paradeiro de pessoas tidas como presas pelo go- verno. Em agosto a OAB acelerou sua campanha, com sua convengo nacional no Rio devotada inteiramente a0 tema “O advogado e 0s cireitos humanos”* Em outubre, dois novos incidentes mostravam que a libera- lizagio estava bestante préxima, A pristo e tortura, pelo Quarto Exército no Recife, de Fred Moris, um cidadao americano e an- tigo missionério metodista, criou uma crise nas relagées Br Estados Unidos € reforgou o interesse americano na liberaliza- sao brasileira."® Os “linha-dura” também exibiram sua forra no caso de Francisco Pinto, um proeminente deputado radical do MDB da Bahia, que foi destituido de sua cedeira no Congresso € teve seus direitos politicos cassados. A causa foi um discurso na rédio em margo, denunciando o presidente chileno Pinochet, quando este veio participar da posse de Geisel Novembro de 1974: O choque du derrota eleitoral Todas essas lutas entre o governo e seus criticos acabaram por se tornar uma pequena introdusdo as eleigées de novembro de 1974, 0 teste cleitoral mais importante do Brasil na década, 4 nivel federal, desde a “Revolugio". O governo Geisel recebera de seu predecessor um legado eleitoral contraditério. Enquanto os governandores eram eleitos indiretamente pelos legislativos estaduais, que erem facilmente manipulados por Brasilia, as eli- es para o Congresso eram diretas. O regime Médici resolver, em 1970, o problema de tais ameacas através de intimidagio ma- 33 ciga do eleitorado ¢ da perseguigio & oposicio. Mas o que acon- teceria se as eleigées fossem relativamente livres? (© primeiro teste de Geisel nfo apresentou problemas. A ARENA venceu a cleisio indirete para governadores em outu- pro de 1974, sem surpresas, jé que era a ARENA que contro- lava todas as insténcias legislativas que fizeram a eleigio, Ainda assim, a vitéria pode ter desorientado os estrategistas politicos no palécio presidencial, que subestimaram a amplitude e a pro- fundidade da oposigao eleitoral. Os Ifderes arenistas esperavam confiantemente a vitbria nas eleigdes do Congress, ¢ até 0 inicio de outubro poucos observadores politicos bem informados te- riam apostado contra eles. Mas o clima politico mudou rapida- mente no final de outubro. Para surpresa de todos, 0 governo decidiu permitir 0 acesso relativamente livre de todos os can- didatos & televisio. O eleitorado comesou entio a se perguntar se 0 seu voto poderia fazer diferenga. Talvez 0 MDB de fato representasse uma alternativa real. Talvez 0 presidente estivesse preparedo para cooperar com a oposi¢ao. Durante alguns meses, © MDB tinha demonstrado estar mais de acordo com as inten- ges de liberalizagio do presidente do que 0 priprio partido do governo. A tiltima quinzena antes do dia da cleigéo trouxe uma torrente de entusiasmo para a oposigao, Os resultados da eleigdo surpreenderam a todos,** inclusive os estrategistas mais otimistas do MDB. O MDB tinha quase dobrado sua representacéo na Cémara dos Depulados (0 ntimero total de cadeiras tinha crescido de 310 para 364) elevando-se de 87 para 165. A ARENA caiu de 223 para 199. Os sesultados no Senedo foram igualmente draméticos. A delegaglo do MDB sumentou de 7 para 20, enquanto a. ARENA caiu de 59 para 46. Enquanto a ARENA vencera por uma pequena margem no total de votos para deputados federais, o MDB venceu no total de yotos para senador, que era o melhor indicador da opini nacional. Além disso, o MDB ganhou o controle das assembléias estaduais nos estados-chave, onde 0 eleitorado urbano era cru- cial: Séo Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro (incluindo ‘cidade do Rio), Parané, Acre e Amazonas, Até entiéo, 0 MDB 54 controlava apenas a Assembléia Legislativa no grande Rio de Ja- (que pertencia ainda ao Estado da Guanabara). © que essa vitéria da oposicdo significava? O MDB cen- trou sua campanha em trés temas: justiga social (denunciando @ tendéncia de uma distribuigdo de renda cada vez mais desigual), liberdades civis (as violagdes dos direitos humanos que tanto preocupavam a critica da elite) e desnacionalizagio (denuncian- do penetragdo estrangeira na economia brasileira).*° Os Iide- res do MDB argumentavam que sua vit6ria provava que o elei- torado endossava suas posicées. No minimo, todos concordavam, as eleig6es mostravam uma inesperada falta de apoio & “Revo: lugdo”. A redugdo do cresciments econémico a partir de 1974 teve seu papel. Mas ndo havia divida de que os eleitores esta- vam mandando um recado so governo: eles queriam uma mu- danga. O Planalto nfo poderia mais nutrir qualquer esperanga sobre a habilidade da ARENA de vencer eleig6es relativamente livres. “Descompressdo” para onde? ‘A idéia de uma liberalizagdo liderada pelo governo era ago ra bastante complicada. O governo Geisel esperava fazer uma abertura gradual e cuidadosamente controlada. Agora sua pré- pria legitimidade estava ameacada. O choque entre governo ¢ ‘oposigéo — que se esperava silenciar — estava acentuado, Ha- via um perigo de vitérias do MDB nas eleigSes diretas para go- vernador marcadas para 1978. Mesmo se as eleigdes indiretas fossem mantidas, o controle oposicionista das assembléias legis- lativas em Estados-chave traziam o perigo de uma quase certa derrota do governo. No fim de dezembro, os assessores de Geisel enfrentavam um panorama politico bem menos controlado do que aquele que eles haviam herdado. O dilema para os moderados no go- verno militar colocava-se de uma maneita nova: como encon- trar politicos civis que fossem ao mesmo tempo atraentes a0 leitorado ¢ aceitaveis aos militares da “linha-dura”? 35 © presidente Geisel agiu rapidamente para assegurar que os resultados daquela eleicdo fossem respeitados. Ble se forts Tecia pelo fato de que a oposigao nao controlava nenhum poder executivo. Além disso, o Congresso tinha estado muito tempo alijado do peder para tomar qualquer iniciativa. Uma nova fameaca do MDB, entretanto, era a sua possibilidade — porque agora ele detinha mais que um tergo das cadeitas da Camara dos Deputados — de bloquear as emendas constitucionsis. Em 1975 0 debate sobre direitos humanos continuava a ple- no vapor. Em janeiro a censura de O Estado de S. Paulo foi Tiberada a tempo para o centenério do jornal. Essa concessio ‘marcou o fim de uma longa batalha entre os donos do jornal, ‘a familia Mesquita, eo governo militar" Nenhuma das outras ublicagées sujeitas & censura prévia foi removida da lista. O governo havie feito um gesto muito limitado para restabelecer a atmosfera politica. Em fevereiro de 1975, a oposigéo novamente fazia presses ‘a favor dos prisioneiros politicos. O MDB ¢ os ativistas da Tgreja Cat6lica Romana renovavam seus pedidos de esclareci- ‘mento a respsito dos “desaparecidos”. Mas em margo uma ba: tida policial no Partido Comunista, considerado pelos “linha- dura” como sendo o principal elemento no sucesso eleitoral do MDB, acarretou um grande némero de prises ¢ novas acus ges de tortura de detidos. Os criticos da Igreja e do MDB con- tinuavam a protestar contra a tortura © a arbitrariedade da agio policial. © comandante do Terceiro Exército, gereral Oscar Luts da Silva, respondeu & oposico citando o exemplo portugués, em que o protesto, dizia ele, levou diretamente & ameaga do contro- Te comunista, No comego de agosto de 1975. Geisel fez um importante pronunciamento, definindo suas atitudes governamentais em re~ lagdo & liberelizagao. Explicava que qualquer mudanga tinha de ser lenta e segura. Significativamente, ele dava a noticia de que ‘© governo nai tinha intengo de desistir de seus poderes excep- cionais, tais como aqueles contidos no Ato Institucional n° 5. Os oposicioristas mais otimistas esperavam poder de algum modo extinguir aquele ato. Geisel avisou que as presses opo- 36. resem sicionstas talvez gerassem uma “contrapressio”, que ele nfo se permitia ignorar. O sentido estava claro: qualquer nova politica governamental teria que ser 0 produto do compromjsso entre os pontos de vista politicos rivais dentro dar Forcas Armadas. So- mente se os militares sentissem confianga sobre seguranga na cional, qualquer que fosse a definigéo deles sobre isso, poderia a oposigao ter esperangas de realizar seus objetivos de retorno a0 estado de direito. Ao mesmo tempo, Geisel atacou a infiltra go comunista nos sindicatos ¢ avisou que aquela censura rigo- rosa poderia ser necesséria em vista da campanha subversiva contra o seu governo. Os religiosos estavam entre as poucas pes- soas de oposigéo que podiam efetivamente contestar os conti- nnuos desmentidos do governo sobre tortura e comportamento arbitrério, Em meados de setembro, os padres estavam novamente no ataque, citando os abusos governamentais feitos aos, indios € a tortura dos prisioneiros politicos.** Morte em Sdo Paulo Tais dentincias foram posteriormente obscurecidas pelo ca- so impressionante de Vladimir Herzog, um importante jomalista, diretor de um canal de televisdo nao-comercial bastante respeits do, que operava sob o patrocfnio do governo do Estado de Sao Paulo. Herzog era um’ judeu nascido na Tugoslévia que imigra- ra para o Brasil bem jovem. Em outubro de 1975 ele soube or amigos que as forgas de seguranca do Segundo Exército es- tavam procurando por ele. Num esforgo de cooperaclo, apre- sentou-se voluntariamente ao quartel do Exército. Ele aparente- mente nio tinha nogdo de que a inteligéncia do Segundo Exército © considerava uma ligagfo direta com os conspiradores comu- nistas. No dia seguinte 0 comando do Exército anunciou havia cometido suic{dio em sua cela na prisdo. Sé0 Pa oa estarrecido. Ninguém acreditava na explicagao do suicfdio, Um importante membro da elite da classe média fora subitamente ‘morto, seguramente pela tortura. Os estudantes entraram em sgreve na Universidade de Sao Paulo, e @ OAB publicou uma de- 37 claraggo acusando 0 governo de tortura. O fato de Herzog ser judeu sem davida acrescentava uma reago amedrontada da eli- te paulistena, uma vez que houvera vestigios de anti-semitismo no comportamento passado dos “linha-dura". Quarenta ¢ dois bie pos assinaram uma declarago denunciando a violencia gover: namental. (© cardeal Ams, a despeito do medo da familia de Herzog e de boa parte da elie cultural de Sao Paulo, organizou e pre sidiu um dramético calto ecuménico catélico-judeu por Herzog, na catedral de So Paulo. A policia recorreu a estratagemas mesquinhos para afugentar os participantes, revistando todos os carros que se dirigiam para o centro da cidade. Ainda assim a ceriménia aconteceu — um triunfo menor numa comunidade do- minada pelo medo. © chogue da morte de Herzog foi ainda maior levando-se fem conta que muita gente tinha tido a esperanga de que 0 pre- sidente Geisel estivesse mantendo sob controle o aparato de se- guranga militar. Geisel ordenou uma investigasio imediata da morte do jornalista. Os incrédulos analistas confirmaram suas opinides quando os investigadores militares anumnciaram, no fim de dezembro, que a morte havia sido realmente provocada por suicidio? © estado de cheque permanecia em Sao Paulo. © coman- dante do Segundo Exército, general Ednardo d’Avila Melo, era ‘um “linha-dura” que dera 20 aparato de seguranga local uma cat- ta branca virtual. No final de 1975 muitos pensavam que a des- compressio estava condenada. Ainda em Séo Paulo, outro in- cidente eletrizou o ambiente. No comego de janeiro de 1976 0 Segundo Exército esiava interrogando. Manoel Fiel Filho, um operério ativo no Sindicato dos Metalirgicos. Subitamente os jornais vazaram a informagao de que ele havia morrido. Alguém poderia duvidar que ele morrera sob tortura? O presidente Gei- sel estava Ivido, Ele agora parecia ridiculo por haver defendido general d’Avila no caso de Herzog. Apés cettificar-se dos fatos, demitiu d’Avila e substituiu-o pelo general Dilermando Gomes Monteiro, um conhecido moderado ¢ estreitamente ligado a Geisel. 38 © mais significative de tudo era 0 fato de que Geisel agira sem 0 assentimento do Alto Comando do Exército, normalmente consultado para uma mudanga (30 importante no comando. Sua habilidade mostrgva o grande poder do presidente dentro das corporagdes do Exército. O efeito mais importante dessas duas mortes nos quariéis do Segundo Exército foi colocar a “linha dura” na defensiva. Os especialistas em seguranca néo podiam ‘mais estar certos de que a autoridade maior fosse dar cobertura a eles em cas0s de protesto piblico contra a tortura © aumento do poder de Geisel entre os militares — como indicava sua capacidade de remover o general Ednardo d’Avila — teve seu preco. Para manter seu apoio, o presidente tinha de demonstrar que ndo suportaria relaxamento no que se refe- risse & corrupgdo © & subversfo civil, que os “linha-dura” sen- tiam como determinantes da “Revolucio de 1964”. Assim, iro- nicamente, a possibilidade de o presidente levar adiante a aber- tura politica dependeria, a curto prazo, da sua capacidade de provar sua autoridade. As realidades constitucionais Desde 0 inicio do governo Geisel, a oposicéo exigia um retorno ao estado de direito, opondo-se & insistencia do presiden- te om reter os poderes arbitrérios promulgacos com 0 AI-5. Néo obstante, entre 1974-1975 ele foi usado em casos relativamente sem importancia, criando a esperanca de que o Ato pudesse sim- plesmente ser colocado de lado por falta de uso, ‘A oposigao foi desiludida no comego de 1976, pouco de- pois da retirada do general Ednardo d’Avila, Durante o ano de 1975, o ministro da Justica tinha se engajado numa caca aos comunistas, os quais, ele supunha, tinham representado o papel principal nas eleig6es do Congresso em novernbro de 1974. Em. margo de 1975, houve processos nos quais os acusados eram condenacos por tentar reconstruir 0 Partido Comunista; outros foram condenados por terem pertencido & guerrilha, como ativis- tas da ALN de Carlos Marighela. Em outusro, 0 porta-voz mi- liter anunciow a pristo de 76 comunistas, dos quais 65 perten- 39 ee ciam & polfcia militar. Em janeiro de 1976, Geisel uso 0 AI-S para cassar os mandatos de dois deputados do Estado de Sao Paulo, Eles foram acusados de terem recebido apoio comunista nas eleigGes anteriores. No fim de margo o mesmo ato foi usado contra dois deputados federais que haviam atacado violentamente © governo os militares. Em resposta, um inflamado congressista do MDB decidiu lutar, Lysiineas Maciel, ministro metodista e Ifder critic do re- gime militar, fez um discurso elogientemente amargo no Con- gresso, fazendo a defesa dos dois deputados que haviam perdido seus mandatos. Ele denunciava que somente a forca havia per- mitido ao governo permanecer no poder. Seu ateque alcangou © gabinete do presidente a tempo de seu nome ser acrescentado a ordem que revogava os mandatos dos dois deputedos. A ordem cchegou a0 Congresso com Lyséneas ainda na tribuna. Insultos graves foram trocados numa feia cena que durou algum tempo. A lideranga do MDB, profundamente frustada, fez uma decla- ragéo atacando 0 governo por recorrer & “violéncia”, Poucos politicos surpreenderam-se quando o machado caiu sob:e esses jovens deputados, que eram publicamente conheci- dos por beirar o limite da tolerancia militar. Ainda assim, 0 fatc de o presidente ter recorrido ao AI-5 contra os congressistas federais de menor importincia sugeria que a esperanca de dié- logo seria nublada pelo poder do presidente de silenciar as Yo- zes politicas que Ihe desagradassem. Outros sinais do nervosismo governamental surgiram no co- ‘mego de abril de 1976, quando a censura federal retirou da televiséo um programa do Ballet Bolshoi. A censura havia re- centemente diminuido, e 0 governo pareceu ento tolo, alvo de piadas sobre a possivel “contaminagio", caso os dangarinos comunistas televisionados circulassem livremente. No fim de junho 0 governo mostrou novamente seu medo do poder dos. meios de comunicago quando conseguiu arrancar do Congres- so uma lei (conhecida como “Lei Falcéo”, nome do ministro da Justiga) restringindo o uso do rédio ¢ da televisdo para as el ‘es municipais de 1976 & difusdo apenas de fotos dos candi datos com resumos falados inécuos sobre cada um. Era uma 40 reagio tardia.4 cathpanha de 1974, quando o MDB wsou com sucesso a televisio para gerar uma grande vantagem politica nas ais. O presidente Geisel referia-se agora ao MDB como 0 “inimigo”. Os Iideres do MDB estavam divididos em relago ao que responder. ‘A importincia da vit6ria eleitoral do partido oposicionista em 1974 levacia tempo para ser absorvida. Quando isso acon- teceu, 0 governo Geisel encontrava-se hé apenas um ano de sew al, e num cul-de-sac politico. A promessa de “descompresséo” hhavia sido otscurecida pelo medo governamental de derrotas cleitorais, que poderiam minar prematuramente o controle militar do Executivo. A lideranga do MDB decidiu sabiamente mostrar- se moderada ¢ esperar para colher os frutos da vit6ria nas pré- ximas eleigdes em 1978 (Os meses finais de 1978 assistiram ao surgimento de uma forga que os krasileiros hé muito tempo temiam — 0 terrorismo de direita. Em setembro, uma bomba explodiu na sede da Ass0- ciago Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, ¢ no comeyo de outubro houve atentados a bomba e ameagas telefOnicas vi- sando aos padres conhecidos pelas suas criticas ao governo. Um ispo foi seqiiestrado, torturado, ¢ seu carro dinamitado, Um ‘grupo autodenominando-se “Comando de Caga aos Comunistas”, tftulo que soava assustador como o do grupo terrorista argentino ‘AAA, assumis a responsabilidade pela perseguicao 20 bispo. Mas os incidentes nfo se desenrolaram numa grande campanha nessa época, ¢ os responséveis (sem dtvida ligados a policia e a0 Exército) ou foram contidos pelos seus superiores ou decidiram parar. Os acontecimentos politicos mais importantes nese perfo- do vieram das eleigdes municipais de 15 de novembro de 1978. Havia 2 expectativa de a ARENA sairse bem, pelo menos nas regiGes menos desenvolvidas, onde pouca gente ousava disputar contra 0 partido do governo, © que acabou realmente aconte- cendo. Nas éreas urbanas maiores, porém, o MDB demonstrou muita forga, ganhando o controle das Cémaras Manicipais no Rio de Janeiro, Si0 Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Sal- vador, Campinas e Santos. A vit6ria da oposigéo nas cidades 41 mais importantes indicavam um futuro negro para a ARENA. ‘A eleicao teve também seu lado divertido: no Rio, em torno de 150.000 elcitores votaram no “fe preto”, género alimen- ticio da classe trabalhadora cujo desaparecimento cos supermer- cados, um més antes, causara revoltas. Foi mais um sinal de pe- rigo para o regime. Outro atentado 4 Constiuigdo: o “Pacote de abril” No comego de 1977 0 governo Geisel preparou um lance decisivo para lidar com o problema politico criado pelo resul- tado da eleigéo de 1974, O governo perdera seus dois teryos ‘majoritérios no Congresso; havie ainda o ALS, mas 0 poder de legislar por decreto poderia ser usado apenas se o Congresso estivesse reunido. Geisel, assim, fechou 0! Congtesso (em de abril de 1977), usando como pretexto a recusa do MDB de apoiar uma lei governamental para reformar o Judicié- io/Sobre os poderes autoritérios dovAI-5, Geisel anunciou uma série. de’ mudangas;constitucionais maiores, conhecidas.como 0 “Pacote de abril”, todas visando fortalecer a ARENA nas leix es futuras..A_partir dai as emendas.constitucionais necessi- tariam somente da aprovacio majoritérie no Congresso; todos.o5, governadores de Estado e um tergo dos senadores federais se- ram eleitos indiretamente em 1978 por colégios eleltorais (que inclufam as cmaras municipais, onde a ARENA predominava); 0s deputados federais seriam alocados na base da média da po- ‘pulagaio.¢.nio.dos,cleitores, registrados. (como. em 1970.¢ 1974) ¢, finalmente, a lei Faledo de 1976 foi estendida &s eleigdes do ‘Congresso, © MDB protestou.amargamente contra essa nova manipu- ago das regras do jogo politico. Na imprensa eram indmeros (os comentérios contra a aparente traigéo de Geisel 20 seu com- promisso com a liberalizaco. O presidente respondeu marcan- do a reabertura do Congresso:paraA5ide abril. O final de 1977 viu 0 governo Geisel ser severamente tes- tado. Aqueles que duvidavam de seu comprometimento com a beraliza¢o nao encontravam falta de evidéncias. Em junho:Geisel 42

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