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Pierre Clastres A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO (INVESTIGACOES DE ANTROPOLOGIA POLITICA) rnovtaxe0/r0RT0 | Que forga impelia o jovem Mandan? Concerteza que nio se tratava de nenhuma pulsio masoquista, mas pelo con- ‘trério do desejo da fidelidade & lei, da vontade de ser, nem mais nem menos, 0 igual dos outros iniciados. ‘Toda a lei, diziamos, é escrita, Aqui esté como se recons- titui, de uma certa mancira, a tripla alianga jé reconhecida: corpo, eserita, lei. As cicatrizes desenhadas sobre 0 corpo so 0 texto inserito da lei primitiva, so, nesse sentido, uma escrita sobre 0 corpo. As sociedades primitivas sio, néo se eansam de 0 dizer os autores do Anti-Bdipo, sociedades do testemunho, E nesta medida, as sociedades primitivas sio com efeito sociedades sem escrita, ma medida em que @ escrita representa, antes do mais, a lei separada, longinqua, despética, a lei do Estado que os ¢o-detidos de Martchenko escrevem sobre © seu corpo, E, precisamente, nunca seré demais sublinhar que para conjurar essa lei, lei fundadora e garante da Wesigualdade, 6 contra a lei de Estado que se coloca a lei primitiva. As sociedades arcaicas, sociedades da marea, a0 sociedades sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre 0 corpo, igual sobre todos os corpos, enuneia: tu nao terds 0 desejo do poder, tu ndo terés 0 desejo da submisséo. E essa lei ndo separada nfo pode encontrar para se inscrever seno um espago nfo separado: o préprio corpo. Profundidade edmirével dos Selvagens, que de wntemdo sabiam tudo isso, ¢ velavam, a prego de uma terrivel cruel- dade, por impedir o advento de uma crucldade ainda mais terrivel: a lei escrita sobre 0 corpo é uma recordagio ines- quecivel *, * Bstudo infclsimente publicado em L/Homme XIII (3), 1978. CAPITULO XI A SOCIEDADE CONTRA 0 ESTADO As sociedades primitivas séo sociedades sem Estado: este julzo de facto, em si préprio exacto, dissimula na verdade uma opinido, um juizo de valor que impede A partida a pos- sibilidade de constituir uma antropologia politica como cién- cia rigorosa, O que de facto é enunciado & que as sociedades primitivas esto privadas de alguma coisa —o Estado —que Ihes 6, como para qualquer outra sociedade—a nossa por exemplo—necessiria. Estas sociedades sio pois incompletas Blas nfo sio completamente verdadeiras sociedades —elas no sho policiadas —, subsistem na experiéneia talver dolorose de uma caréncia—caréncia do Estado—que elas tentariam, sempre em vio, preencher, De um modo mais ou menos confuso, 6 claramente isto que dizem as crénicas dos viajantes ou os trabathos dos investigadores: nfo se pode pensar a sociedade sem o Estado, 0 Estado € 0 destino de toda a sociedade, De- tecta-se nessa perspectiva uma fixagio etnocentrista tanto mais sélida quanto é, 3 mais das vezes, inconsciente. A refe- réneia imediata, espontdnea, é se niio o que melhor se conhece, pelo menos o que é mais familiar. Com efeito, eada um de nés traz, em si, interiorizada como a £6 do erente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado, Como conceber entio & propria existéncia das sociedades primitivas, sendo como espé- cies enjeitadas da historia universal, sobrevivéncias anacré- nicas de um estédio longinquo h4 j4 muito ultrapassado por toda a parte? Reconhece-se aqui 0 outro rosto do etnocen- trismo, a conviego complementar de que a historia tem um tmnico sentido, que toda a sociedade esta condenada a envolver- -se nessa historia e a percorrer-lhe as etapas que, desde a selvajaria, conduzem até A civilizagio, Todos os povos policia- dos foram selvagenss, esereve Raynal, Mas @ constatagio de uma evolugio evidente nfo fundamenta de modo algum uma doutrina que, ligando arbitrariaiente o estado de civilizacéo & civilimedo do Estado, designa este ultimo como fim neces- stirio destinado a’ qualquer sociedade. Podemos pois pergun- tar-nos 0 que conservou os ‘iltimos povos ainda selvagens. Por tris das formulacdes modernas, o velho evolucio- nismo mantém-se, de facto; intacto, Mais subtil pelo facto de se dissimular na linguagem’ da antropologia, e néo mais da filosofia, ele aflora no entanto ao nivel das categorias que se querem cientifieas. Jé nos apercebemos de que, quase sem- pre, as’ sociedades areaicas ‘so’ determinadas. na negativa, sob ag inarcas da caréncia: ‘soviedades ‘sem Estado, socieda- des sem eserita, sociedades sem histéria. & da mesma ordem a determinagio destas sociedades no plano econémico: socie- dades' de economia de subsisténcia, Se com isso queremos signifiear que @s sociedades primitivas’ ignoram a economia de mereado onde se escoam os excedentes produzidos, nao dizemos estritamente nada, contentamo-nos em revelar mais uma caréneia, ¢ sempre por referéncia 20 nosso proprio mundo: estas sociedades que existem sem Estado, sem escrita, sem his- ‘téria, existem’ igualmente sem‘mereado. Mas, poderia objectar ‘© bom senso, para que servé um mercado se nfo hé excedente? Ora; a ideia de economia de subsisténcia oculta em sia afirma- cdo implicita de que, se aS sociedades primitivas nfo produ zem excedentes, & porque sio incapazes de o fazer, inteira- mente ocupadas que estariam a produzir o minimo necessirio & sobrevivéncia, & subsisténcia, Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos Selvagens. 'E, para explicar essa incapacidade das. sociedades primitivas de se subtrairem & estagnacéo da 184 sua vida diéria, a essa alienagdo permanente na procura de ali- mentos, invoca-se 0 sub-equipamento téenico, a inferioridade teenolégica. O que se passa na realidade? Se entendermos por tée- nica 0 conjunto de procedimentos de que se dotam os homens, no para se assegurar do dominio absoluto da natureza (e isto nfo vale senfio para o nosso mundo e 0 seu demente projecto cartesiano de que apenas se comecam a medir as consequéncias ecolégicas), mas pare assegurar um dominio do meio natural adaptado ¢ relativo ds suas necessidades, entio nio podemos mais falar de inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram wma capacidade de satisfazer as suas necessidades pelo menos igual Aquela de que se orgulha a sociedade industrial e téeniea. O que quer dizer que todo 0 grupo humano chega, forcasamente, a exercer o minimo neces- sério de dominio sobre 0 meio que ocupa. Até ao presente, nio temos conhecimento de nenhuma sociedade que se tivesse estabelecido, excepto por obrigacio e violéncia exterior, num. espaco natural impossivel de dominar: ow desaparece, ow muda de territério. O que surpreende entre os Esquimés ou os Australianos & justamente @ riqueza, a imaginacio e a delicadeza da actividade técnica, 0 poder de invencio e de efi- cAcia que o€ utensilios utilizados por esses povos demonstram. Aliés basta dar uma volta pelos museus etnogréficos: o rigor de fabrieacio dos instrumentos da vida quotidiana faz quase de cada instrumento uma obra de arte, Nao hé. pois hierarquia no campo da técnica, nio h4 portanto tecnologia superior nem inferior; no se pode medir um equipamento tecnolégico senfio em funcdo da sua eapacidade de satisfazer, num dado meio, as necessidades da sociedade, E, deste ponto de vista, nfo parece de modo algum que es sociedades primitivas se tenham mostrado incapazes de aceder aos meios para realizar esse fim. Evidentemente que esse poder de inovacio técnica de ‘que dio provas as sociedades primitivas se vai desenvolvendo no tempo. Nada dado de imediato, hi sempre o paciente tra- ‘balho de observaeio e de investigaedo, a longa sucesso dos 185 SSS EET ensaios, erros, falhangos © sucessos. Os pré-historiadores en- sinam-nos o niimero de milénios que foram precisos aos homens do paleolitico para substituir os grosseiros bifaces do prin- cfpio pelas admiréveis laminas do solutrense. De um outro ponto de vista, damo-nos conta de que a descoberta da agri- cultura e a domestieaeio das plantas so quase contempo- raneas na América e no Mundo Antigo, E é forcoso eonstatar que os Amerindios, a esse respeito, no ficam nada atris, muito pelo contrério, na arte de seleccionar e de diferenciar as miltiplas variedades de plantas titeis, ‘Detenhamo-nos por um instante mo interesse funesto que induziu os Indios a querer instrumentos metilieos, Com ‘feito, ole esta directamente ligado A questo da economia ‘nas sociedades primitivas, mas de modo algum da maneira que se poderia julgar. Essas sociedades estariam, diz-se, condenadas & economia de subsisténcia por causa da sua inferioridade tecnolégica. Este argumento ndo é fundamentado, como aca- bamos de ver, nem de direito nem de facto. Nem de dircito, porque néo hé escala abstracta em que medir as «intensida- des» teonolégicas: 0 equipamento téenico de uma sociedade no 6 comparavel directamente ao de uma sociedade diferente, ‘¢ niio serve de nada contrapor a espingarda 20 arco. Nem de facto, dado que a arqueologia, a etnografia, a botiniea, ete. ‘demonstram-nos precisamente a capacidade de rentabilidade ¢ de eficécia das teenologias selvagens. Portanto, se as soci¢- dades primitivas repousam sobre uma economia de subsis- téncia, no ¢ por falta de habilidade téeniea, Esta aqui a ver dadeira questi: 2 economia dessas sociedades seré, realmente uma economia de subsisténeia? Se dermos um sentido as pala- vras, se por economia de subsistémeia néo nos contentarmos ‘com entender economia sem mercado e sem excedentes —o que seria um simples truismo, # pura constatagio da diferenca —, entio afirmamos com efeito que este tipo de economia per- mite & sociedade que sustenta subsistir epenas, afirmamos que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade 186 das suas forcas produtivas com vista a fornecer aos seus membros o minimo necessério & subsisténcia, Aloja-se ai um preconesito tenaz, curiosamente coexten- sivo & aldeia contradit6ria ¢ néo menos corrente de que 0 Sel- vagem 6 preguigoso. Se na nossa linguagem popular dizemos «trabathar como um negro», na América do Sul, em contra- partida. diz-se epreguicoso como um Indio», Entao, das duas uma: ou o homem das sociedades primitives, americanas ¢ ‘outras, vive em economia de subsisténcia ¢ passa a maior parte do seu tempo 4 procura de elimento; ou entio néo vive em economia: de subsisténcla e pode pois permitir-se lazeres protongados fumando na sua cama de rede, Foi isso 0 que ‘espantou, sem diivida, os primeiros observadores europeus dos Indios do Brasil. Foi grande a sua reprovagio so cons- tatarem que rapazolas cheios de saide preferiam adornar-s2 como mulheres com pinturas ¢ pumas, em lugar de transpirar nas suas hortas, Gentes que ignoravam que & preciso ganhar © pio com o sor do seu rosto. Isso era demasiado, ¢ no durou muito: rapidamente os Indios foram postos a traba- Thar, e por isso pereceram. Com efeito, dois axiomas pare- cem guiar a marcha da civilizaco ocidental, desde a sua aurora: 0 primeiro estipwla que a verdadeira sociedade se desenvolve & sombre protectora do Estado; © segundo enuncia ‘um imperativo categérico: & preciso trabalhar. ‘Os Indios no consagravam efectivamente senfio poueo tempo Aquilo a que se chama trabalho, E no morriam de fome, no entanto, As erénicas da época so undnimes em desere- ver a bela aparéneia dos adultos, a boa saiide das numerosas eriangas, a abundincia e a variedade dos recursos alimentares, Por conseguinte, a economia de subsisténcia que era a das tri- bos indias no implicava de modo algum a procura angustiada, a tempo inteiro, de alimento. Portanto, uma economia de sub- sisténeia é compativel com uma considerfvel limitagio do tempo consagrado as actividades produtivas. Veja-se 0 caso das tribos sul-americanas de agricultores, os Tupi-Guarani por ‘exemplo, cuja indoléncia tanto irritava os franceses ¢ 05 portu- 187 2 SSS SSS nl gueses. A vida econémica desses Indios fundava-se principal- mente sobre a agricultura, acessoriamente sobre a caga, a pesca ea recoleceao, Uma mesma horta era utilizada durante quatro seis anos eonsecutivos. Depols era abandonada, por causa do esgotamento do solo ou, 0 que parece mais verosimil, por causa da invasio desse espaco por uma vegetacio parasitaria dificil de eliminar. 0 grosso do trabalho, efectuado pelos homens, eonsistia em desbravar, com o machado de pedra e pelo fogo, a superficie necessiria, Esta tarefa, realizada no fim da esta- gio das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agricola — plantar, sachar, eolher—em conformidade com a divisio sexual do trabalho, era assumido pelas mulheres. Dai resulta portanto esta engragada conclusio: os homens, isto é, metade da popu- lacéo, trabalhavam cerca de dois meses de quatro em quatro anos! Quanto ao resto do tempo, votavam-no a ocupagées sentidas néo como obrigacéo mas como prazer: caga, pesca; festas e beberetes; finalmente, a satisfazer o seu gosto apai- xonado pela guerra. Ora estes dados massivos, qualitativos, impressionistas, encontram uma confirmacio incontestivel nas investigagSes recentes, das quais algumas ainda em curso, de cardeter rigo- rosamente demonstrativo, dado que elas medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de subsisténcia. Quer se trate de cagadores némadas do deserto do Kalahari, ou de agricultores sedentarios amerindios, as cifras obtidas reve. Jam uma reparticio média do tempo de trabalho diério inferior a quatro horas por dia. J. Lizot, instalado hi varios anos entre os Indios Yanomami da Amazénia venezue- lana, estabeleceu cronometricamente que a duracio média do tempo consagrado diariamente ao trabalho polos adultos, tendo em conta todas as actividades, mal ultrapassa trés horas. Nés proprios no chegamos a efectuar medidas and- logas entre 08 Guayaki, cacadores némadas da floresta para: guaiana, Mas podemos assegurar que os Indios, homens ¢ mulheres, passavam pelo menos metade do dia numa ociosi- 188 dade quase completa, dado que caga € colecta se realizavam, € nio todos os dias, entre as seis ¢ as onze horas da manha mais ou menos, E provavel que estudes semelhantes, leva- dos a cabo entre as ditimas populagées primitivas, chegas- sem, tendo em conta as diferengas ecolégicas, a resultados semelhantes, Hisnos pois bem longe do miserabilismo que envolve a ideia de economia de subsisténcie, Nao sé o homem das sociedades primitivas nio é obrigado a essa existéncia ani- mal que seria a procura permanente para assegurar a sobre- vivéneia, como inclusivamente esse resultado é obtido pelo prego de um tempo de actividade notavelmente reduzido, Isso significa que as sociedades primitivas dispdem, se o desejarem, de todo o tempo necessério para aumentar a produgio dos bens materiais. 0 bom-senso pergunta entio: porque 6 que os homens dessas sociedades quereriam tra- ‘balhar e produzir mais, quando trés ou quatro horas quo- tidianas de actividade pacffica bastam para assegurar as necessidades do grupo? Para que Ihes serviria isso? Para que serviriam os excedentes acumulados? Qual seria o seu destino? E sempre pela forea que ox homens trabalham para além das suas necessidades, E precisamente essa forea esti ausente do mundo primitive, a auséncia dessa forca externa define a propria natureza das sociedades primitivas, Doravante pode- mos admitir, para qualificar 2 organizacio econémica destas sociedades, a expressio de economia de subsisténcia, desde que se entenda por isso, no a implicagio de uma curén cia, de uma incapacidade, inerentes a esse tipo de socie- dade e 2 sua tecnologia, mas pelo contrério a recusa de um ezcesso infitil, a yontade de adequar a actividade pro- dutiva & satisfacdo das suas necessidades, E nada mais. ‘Tanto mais que, vendo as coisas mais de perto, hé ofectiva- mente produgio de excedentes nas sociedades primitivas: = quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, tabaco, algodao, ete.) ultrapassa sempre o que € necessério 20 consumo do grupo, estando esse suplemento de producio, enten- 139 da-se, inciuido no tempo normal de trabalho, Bese excesso, obtido sem sobretrabalho, é usado, consumido, para fins propriamente politicos, quando das festas, convites, visitas de estrangeiros, ete. A vantagem de um machado metilico sobre um machado de pedra é demasiado evidente pare que nos detenhamos sobre ela: pode-se realizar com 0 pri- meiro talvez dex vezes mais trabalho do que com o se- gando, num mesmo perfodo de tempo; ou entéo fazer o mesmo trabalho em dez vezes menos tempo, KH quando os Indios descobriram a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, desejaram-nos, néo para produzir mais no mesmo tempo, mas para produsir @ mesma coisa num tempo dex vezes mais curto. Foi exactamente o contrario que se produziu, porque com os machados metélicos fize- ram jirupgio no mundo primitivo dos Indios a violéncia, ‘a forea, 0 poder que exereeram sobre os Selvagens os recém- -chegados civilizados. As sociedades primitivas so, como esereveu J. Lizot 2 propésito dos Yanomami, sociedades de recusa do traba- Iho: «O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desin. teresse por um progresso teenolégico auténomo é evidente> *. Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abun- dancia, segundo a justa e feliz expressio de M. Sehlins Se 0 projecto de estabelecer uma antropologia econé- mica das sociedades primitivas como disciplina auténoma tem um sentido, este nio pode advir da simples apreen- so da vida econdmica destas sociedades: ficamos por uma etnologia descritiva, pela descriczo de uma dimensio nao autérioma da vida social primitiva, & pelo contrério quando ‘essa dimenstio do «facto social total» se constitui como esfera auténema que a ideia de uma antropologia econémica apa- ‘rece fumdamentada: quando desaparece a recusa do trabalho, + 5. Lizot, eBeonomle ou Sooleté? Quelques thémea & propos de Vétude dune communauté d’Amérindienss, Journal de Ia Socleté des Américanistes, 9, 1973, pp. 137-175 190 ‘quando ao sentido do lazer se substitui o gosto pela acumu- lagio, quando, numa palavra, aparece no corpo social essa forea externa que evocamos mais acima, essa forga sem a qual os Selvagens nao renunciariam ao lazer € que destréi @ sociedade enquanto sociedade primitiva: essa forga, & 0 poder de obrigar, é a eapacidade de coercdo, & o poder poli- tico. Mas também a antropologia deixa entio de ser econé- mica e perde de algum modo 0 seu objecto no instante em que julga apreendé-lo, a economia torna-se politica, Para o homem das sociedades primitives, a actividade de produgdo é exactamente medida, delimitada, pelas necessi- dades a satisfazer, subentendendo-se que se trata essencial- mente das necessidades energéticas: a produgio assenta na reconstituicao do stock de energia dispendida. Noutros termos, € a vida como natureza que—a excepgio da produgio dos bens consumidos soctalmente ma ccasiéo das festas — estabe- lece e determina a quantidade de tempo consagrada a repro- duzi-la, O que quer dizer que, uma vez assegurada a satisfagio global das necessidades energétieas, nada poderia incitar a sociedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar © seu.tempo num trabalho som destino, uma vez que esse tempo esti disponivel para a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Sob que condigées pode transformar-se essa relagio do homer primitivo com @ actividade da producio? Sob que condicdes Poderé essa actividade consignar um fim diferente da setisfa- Go das necessidades energéticas? # nisso que consis:e colocar a questdo da origem do trabalho como trabalho alienado. ‘Na sociedade primitiva, sociedade por esséncia iguali- téria, os homens sio senhores da sua actividade, senhores da clreulagio dos produtos dessa actividade: no agem senio para si proprios, mesmo quando @ lei de troca dos bens media- tiza a relacdo directa do homem com o seu produto. Tudo se encontra alterado, por conseguinte, quando actividade de produgio é desviada do seu objectivo inicial, quando, em lugar de produzir apenas para si préprio, o homem primitivo produz também para os outros, sem troca e sem reciprocidade. 391 soon Namal ge Gbnctas Sones 3 ssmanees B ento que se pode falar de trabalho: quando a regra igua- litéria de troca deixa de constituir 0 da socie- dado, quando a actividade de produgio visa setisfazer as neces- sidades dos outros, quando 4 regra de troca se substitui o terror da divida, Com efeito, é justamente ai que se insereve @ diferenca entre o Selvagem amazénico e 0 Indio do império inca, O primeiro produz pera viver, enquanto que o segundo trabalha, além disso, para fazer viver os outros, agueles que nio trabalham, 0s senhores que thes dizem: € preciso pager © que nos deves, 6 preciso que eternamente reembolses « tua divida para connosco. Quando, na sociedade primitiva, 0 econdmico se deixa referenciar como campo auténamo e definido, quando a acti- vidade de produgio se torna trabalho alienado, contabilizado @ imposto por aqueles que vio gozar dos frutos desse trabalho, a sociedade ja ndo é primitiva, transformou-se numa sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e siibditos, deixou de esconjurar o que se destina a maté-la: o poder ¢ 0 res- peito pelo poder. A divisio maior da sociedade, aquela que fumda todas as outras, incluindo sem divida a divisio do trabalho, 6 a nova disposi¢ao vertical entre @ base eo cume, € 0 grande corte politico entre detentores da forga, quer ele seja guerreira ou religiosa, ¢ sujeitos a essa forea, A rela. ‘cio politica de poder precede ¢ funda a relagéo econémica de ‘exploragdo. Antes de ser econdmica, a alienacio é politica, ‘© poder esté antes do trabalho, 0 econdmico é ume deriva- ¢éo do politico, a emergéncia do Estado determina o apa- recimento das classes, Inacabamento, incompletitude, earéncia: concerteza que mio 6 por ai que se revela a natureza das sociedades primi tivas, Bla impée-se bem mais como positividade, como dominio do meio natural e dominio do projecto social, como vontade livre de nao deixar resvalar para fora do seu ser nada do que poderia alteré-la, corrompé-la ¢ dissolvé-le. © nisso que nos devemos basear: as soviedades primitivas nfo sio em- prides Tetardatirios das sociedades ulteriores, corpos so- 192 ciais de evolugo «normaly interrompida por qualquer doenga [bizarra, elas nfo se encontram no ponto de partida duma légica histérica que conduz directamente a-um fim mar- cado & partida, mas conhecido somente a posteriori, o nosso proprio sistema social. (Se a histéria 6 essa légiva, como poderiam existir ainda sociedades primitivas?), Tudo isso se traduz, no plano da vida econémica, pela recusa das sociedades primitivas em deixar que o-trabalho-e a producto as absorvam, pela decisio de limitar os stocks as necessidades sécio-politicas, pela impossibilidade intrinseca da concorrén- cia—para que serviria, numa sociedade primitiva, ser um rieo entre pobres?—numa palavra, pela interdigdo, nao for- mulada mas suposta, no entanto, da desigualdade. que é que faz com que numa sociedade primitiva a economia nio seja politica? Isso devese, como vimos, 20 facto da economia néo funcionar nela de modo auténomo. Poder-se-ia dizer que, neste sentido, as sociedades primitives sio sociedades sem economia por recuse da economia, Mas deveremos entéo determinar também como auséncia a existéncia do politico nestas sociedades? Ser preciso admitir que, dado que se trata de sociedades «sem lei ¢ sem reis, thes falta © campo do politico? E néo cairiamos assim na rotina clés. sica de um etnocentrismo para quem a caréncia marca a todos os niveis as sociedades diferentes? __Seja pois colocada a questio do politico nas soviedades primitivas, Nao se trata simplesmente de um problema

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