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Copyright © by Editora Mediagdo 2002 nina pane nahn peer rac a pica em avrg expe do Eine Coordenagao Editorial: Jussara Hoffmann: Revisdo de Texto: Rosa Suzana Ferreira Preparagao dos originais: Tanny Chiu Pereira Capa: Roberta Martins Mustragao da capa: Cliudia Regina da Silva Moraes Editoragao: Novak Multimedia FR25¢ Franco, Marcia E. Wilke Compreendendoa infaincia/Marcia E. Wilke. Por- to Alegre: Mediacao, 2002. (Cadernos de Educacao Infantil; 11) 80p. il, 1. Educagio infantil 2. Infancia - Familia - Escola 2. Psicologia infantil - Educagao 1. Titulo II. Série CDU: 373.2 159.922.7:37 Catalogacao: Aglaé Castilho Oliva. CRBIO/814 Faga seu pedido diretamente a: Editora Ay. Taquara, 386/908 Bairro Petrépolis Mediagio CEP 90460-210 Porto Alegre / RS Fone $1 33308105 Fax 51 3061 8864 www.editoramediacao.com.br editora. mediacao@terra.com.br Printed in Brazil/Impresso no Brasil COMPREENDENDO A INFANCIA A vida nao existe em funcao de nenhuma eta- pa, idade ou periodo: a vida deve ser plena em todo o tempo. O tempo pleno é o tempo presente: passado e futuro s6 contam se forem presentes com seu peso, seu fogo, sua esperan- ¢a, sua garra. (Euclides Redin, 1994, p.53) Para tentarmos compreender a crianga, precisa- mos, inicialmente, pensar sobre o que ela 6. Como ja vimos, nao é facil definir e, muito menos, é possivel entender um conceito sociohistérico deslocado de sua realidade.* Muitas vezes, pensamos em “crianca” como oposi- gao ao adulto. Oposicao estabelecida pela falta de idade ou de maturidade. Quando pensamos na crianca desta forma, a concebemos como um ser inacabado e incom- *Parao Estatuto da Crianea edo Adolescente (Lein 8.069 /90, Art.2°)erianga 6a pessoa com até doze anos de idade incompletos. 30 Compreendendo a infancia como uma condigao da crianga pleto, que precisa evoluir, educar-se para se tornar com- pleto como o adulto. Para Perrotti, “esta visao adultocéntrica do que seja uma crianca é redutora. Nela, a crianga é apenas um ‘vir-a- ser’, um ‘futuro adulto’, Este, por sua vez, nao é jamais al- guém em transformacao constante”. Ressalta ainda que “a ~ crianga nao é um simples organismo em mudanga, nao é apenas uma quantidade de anos, um dado etario, mas algo bem mais complexo e completo” (1990, p-12). Sendo a infancia uma construcao histérica e social, é improprio ou inadequado supor a existéncia de uma populacao infantil homogénea, pois o processo histori- co nos faz perceber diferentes populagées infantis com processos desiguais de socializacao. Certamente, sao muitas as definigdes que encontra- remos para infancia, pois, sendo um conceito histérico, este dependera do contexto em que se estiver inserido. Solange Souza destaca que “a nogao de infancia nao é natural, mas profundamente historica e cultural”. Des- se modo, para essa autora, “cada €poca ira proferir 0 discurso que revela seus ideais e expectativas em rela- cao as criancas” (2000, p.91). O que é ser crianga nos dias de hoje? Como situar a infancia nesse contexto? Considero importante tentar explicitar melhor o que caracteriza “crianga” e “infancia”. Como e por que, em alguns momentos, falamos de crianga e, em outros, fa- lamos de infancia, como se fossem sindnimos. Barbosa, ao falar de criancas e de infancias (no plu- ral), aponta as idéias de Sarmento ¢ Pinto (1997) sobre a importancia da definigao e da delimitacao desses con- Marcia Elisabete Wilke Franco 31 ceitos, Esses autores diferenciam essas duas categorias da seguinte forma: “(...) criangas existiram desde sem- pre, desde 0 primeiro ser humano, e a infancia como construgao social (...) existe desde os séculos XVII e XVIII” (2000, p.101). Para Postman (1994), a infancia é um artefato social, e € s6 no primeiro ano de vida que pode ser considerada uma categoria biolégica. Ele coloca que nao devemos con- fundir, de inicio, fatos sociais com idéias sociais. Para ele, a idéia de infancia é uma das grandes invengdes da renas- cenga. Talvez a mais humanitaria. Afirma que a infancia, como estrutura social e como condi¢aéo psicolégica, surgiu por volta do século dezesseis. Cambi resume muito bem as idéias de Ariés sobre a auséncia do sentimento de infancia nesse século: As criangas, na Idade Média, tém um papel social minimo, sendo, muitas vezes, consideradas no mesmo nivel que os animais (sobretuda pela altissima mortalidade infantil, que impedia um forte investimento afetivo desde o nascimento), mas nao na sua especificidade psicolégica e fisi- ca, a tal ponto que sao geralmente representadas como “pequenos homens”, tanto na vestimenta quando na participacao na vida social. Até os seus brinquedos sao os mesmos dos adultos e s6 com a Epoca Moderna é que se ird delineando uma separacao. (1999, p.176) Como podemos ver, a idéia de infancia nao existiu sempre e nem da mesma forma. Sénia Kramer (1995, p-19) destaca que a infancia ; 32. Compreendendo a infancia como uma condi¢So da crianca aparece com a sociedade capitalista urbano-in- dustrial na medida em que mudam a inser¢ao e o papel social da crianga na comunidade. Se, na sociedade feudal, a crianca exercia um pa- pel produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o periodo de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para atuagao futura. Este conceito de infancia” €, pois, determinado historicamente pela mo- dificagdo de formas de organizagao da sacie- dade. Hoje, encontramos o adulto organizando a forma de ser da crianca conforme a sua visdo, a sua maneira de ser. O que ele acredita que vai ser bom para o seu filho é 0 que prevalece (0 que nem sempre € 0 mais indi- cado para a crianga). Pode-se dizer que se aliena e cons- trdi-se a infancia em fungao do outro. Vale lembrar que a hist6éria da infancia sempre foi marcada pela marginalidade social, cultural, econémica e educativa. Zabalza (1999, p.16) destaca que “as criangas tiveram que viver sempre em um mundo que nao era seu, que nao foi feito para o seu tamanho. Integrar-se no mundo era algo que se conseguia somente na pds-infancia e ape- nas se fossem cumpridas certas condicGes”. Desse modo, como fala Rocha, “o direito de compartilhar o mundoadulto representa, de fato, a propria auséncia de direitos da crian- ga, sobretudo da crianca pobre” (1999, p.10). Uma outra questao importante é a presenga signifi- cativa de responsabilidades que as criangas passaram a adquirir nos Ultimos tempos. Ja nao tém tempo para, sim- Marcia Elisabete Wilke Franco 33 plesmente, serem criangas, pois as aulas de balé, inglés, natacao, futebol, computacao, assim como a necessida- de precoce da insercéo no mundo dos adultos acaba transformando essas criangas em pequenos adultos. No Brasil, a insergao precoce da crianca no mundo do traba- Iho nao € novidade, tendo suas infancias furtadas, pas- sando a ocupar uma posigao adversa ao mundo infantil. Armadilhas culturais: vestimentas, brinquedos, programas infantis Uma das armadilhas culturais 4 infancia se refere a questao de suas vestimentas. Na tiltima década, a indus- tria de roupas infantis sofreu muitas mudangas. E flagran- te que as criancas vestem, hoje, roupas praticamente iguais as dos adultos e adolescentes. Na verdade, esse processo de homogeneizacao ocorreu em relacao a todas as idades Parece que algumas roupas tornaram-se comuns a todos. Além de aspectos semelhantes de “adultizagao” das criancas, que levaria ao “desaparecimento da infancia”, Postman destaca a questao das jogos infantis. Para ele, estes sao uma espécie ameagada, assim como a pr6pria infancia. (...) “o jogo infantil tornou-se uma preocupa- cao dos adultos, tornou-se profissionalizado, nao é mais um mundo separado do mundo dos adultos” (1994, p-144). O autor diz que estes deixam de ser praticados apenas por prazer, e passam a ser, muitas vezes, com- petitivos. A midia, sem diivida, é uma das responsaveis por algumas dessas armadilhas a infancia. O sistema capi- 34 Compreendendo a infancia como uma condigao da crianga talista em que se vive também contribui, pois 0 consu- mo €o que vale e tem valor, E é esse mesmo sistema que se beneficia com 0 consumo da crianga no mercado. Estamos vivendo num mundo dominado pelo poder econdmico. Este suplantou o poder politico e a cultura, E, quando buscamos entender o ugar da crianca na cul- tura, suplantada pelo poder econémico, vemos que a crianca de hoje é diferente da de ontem. Sem dtivida a crianca da atual fase do capitalismo nao é igual 4 do capitalismo mercantil, pois a crianca cresce em relagdo constante com o ambiente sociocultural. Esta havendo o “desaparecimento da infancia”? Se o conceito de infancia é histérico, em cada €poca deveria existir uma idéia clara sobre a crianea e a infan- cia. O fato de nao haver diferenciagdo da crianca e do adulto, hoje, nao deixa de ser uma descaracterizacao do que € uma crianga? Estaria desaparecendo a infancia? Hoje, vivemos os dois extremos. A infancia em des- taque, porque nunca se falou tanto em direitos da crian- ¢a, mas também vivemos situacdes de descaso e violén- cia infantil por demais. FE angustiante pensar que ainda muito pouco se faz por elas. A declaracao dos direitos da crianga, em 1959, procura resgatar e fazer cumprir os seus direitos. A Convencao Internacional sobre Direitos da Infancia (1989) discute os diferentes compromissos que a sociedade deveria assumir com respeito a infancia. Ao mesmo tempo, vivemos um tempo em que a in- fancia nos surpreende e até nos amedronta. Ela ocupa a Marcia Elisabete Wilke Franco 35 midia, ocupa os noticidrios. Filmes como Central do Bra- sil, de Walter Sales Junior e a Invengado da infancia, de Liliana Sulzbach, procuram denunciar as formas de vida de algumas criangas, assim como as fotos de Sebastiao Salgado, que percorrem 0 mundo mostrando as condi- gdes de vida das criancas e de suas familias. Liicia Prado (1999, p.61) diz que corremos 0 risco de, vergonhosamente acostumados com essas imagens, ficarmos anestesiados. “Imagens de crianga sem direito 4 infancia passam a ser tao freqiientes que acabamos por esquecer o que signifi- ca, 0 que deve ser, 0 que é a infancia”. A forma como se esta mostrando a crianga 6, sem diivida, chocante. Nao precisamos assistir a filmes, a programas de televisao ou olhar coletaneas de fotos para nos depararmos com situagGes angustiantes. Basta ob- servarmos nas ruas a realidade nua, desvelada 4 nossa frente. Muitas cenas para olharmos sem nada a fazer, por vezes insensiveis, pois, de tao freqiientes, parecem normais. Miguel Arroyo destaca que: “criangas e adolescentes assaltam e chocam nosso imagindrio e nossa sensibilidade pedagégica. Flores tao tenras e com tantos espinhos, tao cedo! Como nao perguntarmos onde foi a ternura e a cor de nossa infancia? Somos nés seus pedagogos e conduto- res ou ha outros condutores nos tortuosos caminhos ¢ be- cos da cidade?” (in Veiga, 1999, p.8). Afinal, o que é especifico da crianga ou da infancia? O que as caracterizam? Podemos pensar na crianga como um ser em desenvolvimento, que tem suas limitagées, suas possibilidades, condicionadas historicamente. Mas também podemos pensé-la apenas do ponto de vista do 36 Compreendendo a infancia como uma condigao da crianca desenvolvimento, analisando-a segundo fatores biol6é- gicos, fisioldgicos e sociais. Penso que 0 fundamental na concepgao de crianga, nao € a sua idade, do ponto de vista biolégico ou outro, mas as relacdes sociais que vive, que acabam por con- formar a maioria das suas caracteristicas, como seus brin- quedos, suas roupas, seu jeito de viver, o que deve estu- dar, em que escola deve ser educada.

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