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. WWW.APROPUCSPORG.BR PUBLICAGAO ACADEMICA E INFORMATIVA. TRIMESTRAL DOS PROFESSORES DA PUC-SP E38 aS ae ANO.7 -N? 28 - QUIUBRO A DEZEMBRO DE 2006 & PS ay ie pst oul aubaul Gg EDITORIAL ‘A escnlha do tema dla opressio racial se deu no contexto do debate suscitado pela votaga0 do projeto de Estatuto da Igualdade Racial. Em clime eleitoral, pareceu que. finalmente. seria apravada pela Gamara Federal. 0 projeto contava formalmente com o aval do presidente do Senado, Renan Calheiros, e ja havia pasado nesta Casa. Mas, no momenta da decisdo final, foi atacado por uma intensa campanhados meios de comunicagdo, apoiads por académicos, artistas e juristas. Um manifesto contrdrio & apravayio do Estatuto foi entrague eo Congresse. Oe nada adiantou a manifestagao do movimento favoravel ao Estatuto. que também entregou sum manifesto aos parlamentares. A said diplamética fi adiar, sem data, a votagao. Yerificou-se a montagem de um jogo de cena do lado do gavernn e da Congresso. também muita ilusan por parte daqueles que promoveram o Estatuta da Iualdade Racial. Mas, intependentemente do seu teor e das ilsdes que se despertaram na possbilidade de o Estado cer um passo institucional para paulatinamente reduzir a discriminarao racial.» problema continua de pé. O que queremos coma discusséa sobre a diseriminagdo racial? Oueremos apenas diminuir @ amenizd-l Ou queremas erradicar toda forma de discriminagan? Entendemos que estas indagegies sén de fundo, Muito se discutiu em torna de questdes cama se ha ou no ragas, se hé ou no uma divida histérica do pais com os afrndescendentes, se cabe ou no mover “ages afirmativas" em favor dos negros (e indios), se ainda prevalecem au nia as ‘eorias raciais do século XIX etc. Mas evitaram calocar as perguntas acima ‘Nesta revista, os artigos demonstraram preocupa ga em reveler as raizes da desigualdade e dos preconcetas raviis? Pracuraram se colocar pela extingdo de toda forma de apressto? Cabe aus leitores abservarem. caso achem pertinentes e necessdrias tais questoes. U Estada brasiieira se declera multiracial 2 tem come crime & discriminacéo tia Na entant, persste 2 npessaa racial Nao falta disfarces para acobertar discriminagbes em situagdes como. por exemplo, na selegdo do trabalhadar. na dstribucgn tpn de teabalh, na dferenciagdo soleil, no atendimenta médicohospitaler. na escola, nos trbunois, na alendimento em geral ete. Verificamos que. quanto mais pobres sia os negros - que 6 a grande maioria -, mais acentuada, aberta e violenta é 2 discriminagao, Esta ai por que nia deveros limita as reivindcacbes aos interesses de uma pequena camada de classe médiade alradescendente, que vem seformendo nas titmas décadas U mar de discriminagao nasce e se encantra nas relagtes de propriedade e de trabalho. Enda ‘tem como ser esvaziad com 2 canequinha das politicas governamentais, ‘ho contréro, colaca-seanecessidade de se elimina toda discriminayu. Nao € possveldesvinculer a situagio da populagio negra da classe social 2 que pertenae e muito menas separtel da outa mmotade dapopulagac branca exploradee pobre, Nao se pod ignurar que us antius escravosnegras eonsituram a bace de formagdo da classe operdria no Brasil Pr iso. faz parte dela @ mora dos afrodescendentes. que supertam também 2 upresséo cacil E impossivel abalir @ discriminagan na capitalismo. Trata-se de uma luta histérica contra a opressén racial, que nao se limita ao Brasil. Ela se manifesta inclusive na Africa negra, Ampliamos a visiu para termas consciéncia do significado da lute histérica centra a opresséo racial. Esperamos que este nimero da Revista PUC¥iva cantribua para ampliar a consciéncia e para avangar 0 movimento socal contra toda forma de oprassé. tron Martin de Dlveira EXPEDIENTE A revista PUCviva & uma publicagio académica ¢ informativa trimestral dos professores da PUC-SP, editada pela Apropuc, com tiragem de 2 mil exemplares. DirevoRIA DA ApRoruc PresibeNtE: Priseilla Cornalbas Vice-peesbente: Sandra Gagliardi Sanchez 12 secretArio: Erson Martins de Oliveira 2° sECRETARIO: Maria Beatriz. Costa Abramides 12 TesouReRO: Vict6ria Claire Weischtordt 2» resoureiRa: Carlos Alberto Shimote Martins ‘SuPteNtes; Graciela Deri de Codina; Hamilton Octavio de Souza: Ivan Rodrigues Martin ConsélHO EoIToRIAL: Erson Martins de Oliveira; Hamilton Octavio de Souza; Priscilla Cornalba Eoror Geral Erson Martins de Oliveira Eure pa Revista Eoror: Ricardo Melani (MTPS 26,740) PreparAcio & Revisko: Gabriel Kolyniak EDrrorACAO EletrONICA: Mauro TELES Capa (A PARTIR DE XILOGRAVURA DE LASAR SEGALL) E LUSTRACOES: RICARDO MELANI APROPUC-SP - Rua Bartira, 407 - Perdizes - CEP 0509-000 Fones: 3872-2685, 3865-4914, 3670-8209 apropuc@uol.com.br + www.apropuesp.org.br Normas de Publicado A revista PUCwiva divulga artigos, resenhas ¢ trabalhos de interesse cicntifico © académico que estejam dentto da linha editorial da revista e na pauta da edigao. © Conselho Editorial se reserva diteito de nao publicar as propostas de publica- fo, caso estejam fora das orientagoes editoriais desse periédico. Os cextos devem ser inéditos ¢ as colaboragdes devem ser enviadas com a seguinte formatagio: a) Artigos ~ 11 Jaudas ow 14 mil caracteres; +b) Resenhas ~ 5 laudas ou 7 mil caracteres; €)0s textos devem ser entregues em copia em disquete © ebpia impressa em papel; 41) As propostas de publicagtio devem seguir as normas da ABNT, INDICE POR QUE FESTEJAR ZUMBI, SE SAO TANTOS ZUMBIS POR AQUI? EMANOEL ARAUIO TEMPOS E HISTORIAS SIENCIADOS (MARIA ANTONIETA ANTONACC! NEGRO NO BRASIL HEBER FAGUNDES ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: COMO ENFRENTAR A DISCRIMINACAO? ERSON MARTINS DE OLIVEIRA TESTEMUNHOS DE POETICAS NEGRAS: OF CHOCOLATE A COWPANHIA NEGRA DE REVISTAS NO RO DE JANERO. [NIRLENE NEPOMUCENO (BEBEL) A TERRA E OS DESTERRADOS: O NEGRO EM MOVIMENTO DAGOBERTO JOSE FONSECA © ORFEAO EA INGOMA: PEDAGOGIAS NEGRAS NAS PRIVIEIRAS DECADAS DO BRASIL 8EPUBUCANO HENRY DURANTE REDUZIR PARA QUEME GGIVANILDO MANOEL DA SILVA A FACE NEGRiA DO RIO GRANDE DO SUL ENIO JOSE DA COSTA BRITO FANCIA DO MUSEU AFRO TEPRETACAD Dh ISIGRA, DK ESTETCAE Os EDUCACACHDOS NEGROS ABASLEROS WIZ CARLOS DOS SANTOS CENTRO DE ESTUDOS CULTURAIS AFRICANOS E DA DIASPORA .CAFRO/PUCSP) MARIA ANTONIETA ANTONACCL TRAJETORIAS INTELECTUAIS NEGRAS: AS ROTAS NASCIMENTO ALEX RATTS BEATRIZ NEGRA, MULHER, POBRE E CONSAGRADA DAGOBERTO JOSE FONSECA EDUCACAQ INFANTIL: CONSTRUGAO DE UMA EDUCACAQ ANTFRACISTA LUCIMAR ROSA DIAS AUNHA DE COR NA LITERATUR DE CHARLES CHESNUTT ‘ORISON MARDEN BANDEIRA DE MELO JUNIOR DUBLE DE OGLIM SIDINHA DA SILVA ANEKO “TESES SOBRE QU TAO NEGRAY POR QUE FESTEJAR ZUMBI, SE SAO TANTOS ZUMBIS POR AQUI? Emanoel Araujo Bravo! Dia 20 de Novembro é 0 Dia a, dedicado também a Zambi dos Palmares, que resistin bravamen- te com seu pove formada de negros, indios e da Consciéncia Ni mamelucos na Serra da Barriga, em Alagoas, no século XVIL Bravo! Hoje celebramos o Zumbi dos Palmares, mas celcbramos 0 Zumbi morto pelos canhées do paulista Domingos Jorge Velho, que reduziu em cinzas 0 Quilombo dos Palmares, aquele reduto de vitimas cla dao ¢ das atrocidades dos aristocratas do aciicar do Nordeste Brasileiro. Bravo! Dia 20 € 0 Dia da Conscién: cia Negra — mas consciéncia de quem? Dos negros? Dos indios? Dos mulatos? Dos bran- do Museu Afro Brasil cos? Dos cristios? Dos afro-descendentes? De quem? Serf esse [ aquela forma pat dade brasileira passar adiante a resolucao dos problemas criados pelos préprios donos da terra € do poder, na sua formaggo social in- da Consciéncia Negra ica e hipdcrita da socie- juista ¢ excludence? Mas, afinal, por que festejar Zumbi ¢ néo lutar pel trabalho, ea cotas nas universidades, no cabar com o trabalha escravo vi gente ainda hoje? Zumbi? Zumbi foi Cartola, na sua genialidade musical, envolto na mais bran- ca miséria das casas sem reboco, de tijalo aparente, PUC VIVA REVISTA POR QUE FESTEJAR ZUMBI... Zambi? Zumbi foi Milcon Santos, o grande doutor da Sorbonne, posto de lado pela USP, Universidade de Sao Paulo. Zumbi? Voram Joio Candido, Luis Gama, Teodoro Sampaio, Clementina de Je- sus, Pixinguinha, Carolina Maria de Jesus, 0 beato José Lourengo, Henrique Dias, Grande Otelo, Mae Senhora, Dona Menininha do Gantois, lya Olga do Alaqueto, André Rebou- gas, José da Patrocinio, Paulo Colina, Estevao Silva, Rafael Pinto Bandeira, Juliano Moreira, Benjamin de Oliveira, Solano Tiindade, Guer- reira Ramos, Arthur Timéteo, Joao Timéteo, Heitor dos Prazeres, Antonio Francisco Lisboa, Cruze Souza, Manuel Querino, Paula Brico. Zumbi séo todos os negtos, indios, mulatos, brancos, ctistéos e afro-descenden- tes das periferias do Brasil, das terras invadi- das pela velha ganincia que sempre domi- nou este pais. Zumbi sio ‘inca os que hoje ainda lucam pela liberdade: Mestre Didi, Nené 5 dle Vila Matilde, Leci Brandio, Elza Soares, Zevé Mota, Ruth de Souza, Nelson Sargen- to, Oswaldo de Camargo, Sebastifo Arcanjo, Vicentinho, Joaquim Barbosa, Mie Filhinha, Rappin Hood, Jéferson. D. Zambi sto todas as criangas, a maior parte delas negras, que usam oul nas ruas de Sao Paulo, envoltas em trapos de dar vergonha a qualquer cidadao civilizado do mundo Zumbi? Dia da Consciéncia Negta? Ora, tenham yergonha da exclusio, simbé- lica € concreta, que se criow ¢ que sustenta o Brasil! Qu serd que a célebre fase proferida pelo Padre Antonio Vieira, juscificando a ssidade de se destruir o Quilombo dos Palmares, permanece? “O Brasil tem sere corpo na Aruérica ¢ sua aina na Afiica.. Sem Angola nda hd ne- gros, E sein negros néio he Pernambuco..." ® PUC VIVA REVISTA. Prof. da PUC-SP e Coordenadora do CECAFRO - PUC-SP A expanséo da modemidade iluminista, com 0 pensamento cientifico ¢ 0 conhecimen- to lecrado sob a égide da formagio do Estado- nagio na Europa marcou profundamente 0 Ocidence e suas formas de olhar outros tem- pos, es filtros culcurais condicionaram leituras ¢ lite- os, povos c culuras, As lentes de seus raturas, crengas € compos a suas concepebes de movimento, progresso, civilizagao ¢ historia, Expressando este dominio nos modos de pensar e interagir socialmente, Hegel, em 1830, na publicagao de sua Filosofia da Fisté- tie, considerou que a “Africa no é uma parte histérica do mundo. Nao tem movimentos, progressos a mostias (...) nds os vemos hoje em 174) dia como sempre foram” (Elegel, 1995: As Africas ao sul do Sahara foram atribuidos caracteres a-histéricos, sendo representados a regio ¢ seus povos pela auséncia frente aos paradigmas eurocentristas: sem cédigos de escrita, sem arte, sem cultura, sem histéria e pelo “nto ser do escravo” Chama atencio que, em documento produzido em 1823, por ‘Thomas Clarkson, para apresentar & Camara dos Comuns argu: mentos conteirios ao tréfico negrciro, con forme interes s entio emergentes entre in. gleses, denunciou os “gemidos dos afiicanos por causa do eifico homicida”. Com base em pesquisas de relato de viagens de Mungo Parke (escocés que realizou uma das primeiras vingens as Africas no comego do século XIX) PUC VIVA. REVISTA TEMPOS E HISTORIAS SILENCIADOS ¢ do Livro de Evidéncias (publicado por or- dem do Parlamento Inglés com depoimentos de muicos que estiveram em Africa), recha- gou noticias que vinham e continuam “sendo espalhadas em piiblico no sentido de serem os afticanos criaturas dourea espécie © que tendo a Aftica sido deseoberta ha uns pou- cos de centos anos, os seus habitantes nao. tem feito, como outros povos, progressos ne- nhuns em civilizagdo”. "Témese, assim, fortes indicios que formas de desmoralizar e de- sumanizar os afticanos, como de barbarizar suas formas de poder, costumes ¢ tradigdes eram recorrentes na Europa, na construgio de senso comum em torno de primitivisme € isolamento- dos povos do continence negro. Significativamente, cento € nove anos apés as imprecisdes e negligéncias de Hegel em relagao a Aftica, em 1963, no limiar das independéncias de paises afticanos, Sit ‘Tre- vor-Hoper, frente a um auditério em Lon- dres repleto de interessados em Africa, dee negou mais uma vez o direito & histdria e a0 passado para os afticanos, reafirmando ‘ede haver uma bistiria da Africa subsaariana, mas séo-somente @ histéria dos europens no conti- nente, porgue o resto eva escuridao, e a eseuri- dao nao é mazéria da historia.” ntrecanto, priticas adminiscrativas de mettpoles européias, como a de Portu- gal em relagéo 20 govern de Luanda, des- de 1906, promovendo Questiondrios acerca de usos e costumes gentilices da provincia de Angola, realizava inventarios sobre comércio, ceriménias, crengas, vestudrio, habitagdes, linguas, instrumentos musicais ¢ “tadigoes orais em relacdo a sua histétia”?. Recortendo a diferentes registros tex- ‘tuais, imagéticos ¢ sonoros, como narrativas, memiérias ¢ performances de afticanos, rorna- se possivel contestar discursos, imagindrios, priticas ¢ ideologias dos chamados “tempos modernos’, que negatam historicidade ’s Africas negras, como culturas, formas de ser © resistir de afticanos escravizados no Brasil Concentrando atengies ¢ desenvalvendo lei- tutas na contra-mao de pressupostos domi- nantes, € possivel acompanhar afticanos da digspora para além da condicéo de merca- PUC VIVA, dorias traficadas e tangidas ao trabalho es- cravo, ainda que passados séculos. E possivel reyer tanto a aparente imobilismo histérico a que foram destinados, como ultrapassar imperativos nas relagdes de senhores versus escraves. Na petspectiva do conflituoso pro- cesso de escravizacio de afticanos no Brasil, evidenciando que transgrediram, de mlti- plos modos, 0 “ser escravo", 0 universo dos folhetos de literatura oral no Nordeste pro- duziu, além de epopéias de lucas’, imagens que narram rebeldias & condigao escrava. No mural de Lénio Braga, na rodovidria de Fei- ra de Santana (BA), sob o latente corpo corpo de letra, voz e imagem constituinte da literacura oral de folhetos, este artista gravou, em 1967, um painel de culturas populares norclestinas" Neste, pintou em azulejos a xilogravu- ra de Lucas Evangelista ou Lucas de Feira, alricano fugido da Fazenda Saco do Limao, na primeira metade do XIX. Como “figu- ra controversa” ~ cangaceiro salteador para uns, “para outros um negro que se recusava a viver como escravo” —, juntau-se a outros fugitives para roubar ¢ distribuir “cabras, cabritos, galinhas”®. Morto em 1849, apés delagao de outro afticano fugitive, que assim obteve perdao de seus “crimes”, a experiéncia vivida por Lucas Evangelisea ¢ narrada, entre ‘outros textos, no ABC de Lucas, retoma lu tas cotidianas em torno da escravizagio de africanos no Nevo Mundo. A imagética de seu corpo s 0 nosso olhat, conforme a figuragio deste “Drago da Maldade” (ver figura acima) nsibiliza pelas brechas que abre REVISTA, TEMPOS E HISTORIAS SILENCIADOS Com instrumentos de seu oficio de ferreiro nas maos, em jogos de revelar ¢ es- conder imagens, Lucas de Feira foi represen- tadoem corpo de animal hibrido: rabo de es- corpiio, animal do mato que espreita e acaca de tocaia, de improyiso; corpo de serpente, que sobrevive interligando terra e aguas ca- bega de arara ou papagaio, aves falances que rmemorizam ¢ repetem palavrass interrogan- do. Para além de seu aspecto fisico, importa pensar nas simbologias transmitidas por este corpo dé escravo fugide & morto, acompa- nhando zonas claras e escuras da imagem em que, na contraposi¢ao de corpo negro, ga- nham destaque os sombreados esfumagados de quem, tomando a palavra, forja o fogo da inconformidade em luta pela preservacao de transparentes asas de liberdade. Transfigu- rado em dragio — “Dragéo da Maldade” -, Lucas de Feira encarnou lutas de africanos alizados conflitos, re- em desiguais ¢ crimi forcando a insubmissio a relagoes escravagis- tas ¢ reiterando confiitos no faver-se de afti- canos 6m trabalhadores escravizados contra suas formas de submissao, ontem « hoje, nos Brasis, Américas ¢ Africas. Importa retes, a partir desta imagem, a cosmogonia de culturas afticanas que nao “fasiaram 0 mundo em reino Iumano, vege- tal, animal e mineral’, seguindo teflexdes de Hampathé Ba; como cambém esti subjacente cdo dos quatro ele- mencos fundamentais de culturas humanas ~ agua, terra, fogo © ar. Fm ancestrais culeuras SRcsaaars at's vebReaenn Sor Rama nesta assumida configuragéo de dragio advém ‘de palavras de fog, entunciands)o poder da ha xilogravura a articu palavra em matrizes culturais de povos cons- tituidos em tradigSes de oralidade, No exerci cio de scus falares, afticanos em diéspora no Brasil expressaram sua humanizaco, preser- vando transparentes asas de liberdade. Em outras petspectivas, 0 cronista folclorista Camara Cascudo, por seus estu- dos, comentarios ¢ consideragées, constitui-se em importante referéncia para aproximagées Aquelas lutas para evidenciar a falta de funda- mentos nas avaliagoes ¢ conclusdes dos cha- mados “iluministas” dos cempos modernos Seu livro Made in Africa, resultado de viagem a Africa em 1963, para estudar ha- bitos alimentares, constitui fonte fundamen- tal para refiutar construcdes ideoldgicas da modernidade européia, como. para acompa- nharmos rotas € citcuitos que atravessaram as Afticas ¢ que estabcleceram conexdes en- tre Brasil ¢ Africa, “demonserendo influéncias reefprocas, prolongamentes, incerdependéncias, contemporaneidade motivadora nos dois lados do Atlintico edo Indico.” Em sua forma peculiar de cronista, que tudo anota sem desprezar coisas mi- fidas € aparenemente irrelevantes (Ben- jamin, 198 guardam porencial para descobrimentos de 3), os textos de Cascudo Africas em Brasis impregnados por matri- zes de universos culturais africanos. Escrito para evidenciar a unidade “Brasil n°Af Africa no Brasil” (Cascudo, 2001), sett liveo ae contém abordagens ¢ observagées de grande atualidade, adensando ¢ diversificando apro- ximagées das duas margens atlinticas para além das formuladas por Pierre Verger, Ro- ger Bastide, Gilberto Freyre e outros, Nos rastros de alimentos afiicanos, Cascudo mapeou roms ¢ circuitos que atra- vessaram as Afticas e que fizeram parte da di- aspora de povos africanos no Novo Mundo, trazendo significativas contribuigdes para es- tudar contatos e incorporagées entre poves e culturas constituidas a partir da formaciio do Aslintico Sul, abalando reducionismos de diferentes nacurezas em representagoes. das Afticas negras. Centrando-se na banana, “o mais po- pular dos voctbulos afticano no Brasil”, acom- panhou seu itinerério como expediciondrio em missao de descoberta de um continente velado, E revelou: A banana nfo é nativa do continen- te afticano, sendo recebida da India através da Africa Oriental ou pelo Sudao, descida do Egito e vinda pe- los caminhos do Niger e do Zaire para as demais regides do poente, do Camerum 4 Unido Africana. PUC VIVA REVISTA TEMPOS E HISTORIAS SILENCIADOS E pasando da Contra-Costa do Atlantico, pelas Rodésias para An- gola, quando a Guiné a teria pelas vias das populagées ao longo dos grandes rios do oeste negro, No rumo da banana para o Brasil, acrescentou que o “grande exttrepasto entre Congo e Portugal era a tha de Sao Tome”, de onde a banana chegou ao Brasil, Descle 1569 ha registro de bananciras de Sao Tomé na Bahia, “comperindo com as pacovas nativas.” Como base alimentar de africanos no Brasil, que preferiam as bananas de sua terra, assim nomeadas a partir da Guin, ja que eram co- nhecidas por denominag6es locais em ourras regides, Cuscudo ainda coneluiu que esta fru- ta se impés como al e ‘ficou sendo banana, essencialmente no Brasil, Dagni é que o nome se espathou ¢ nao da Africa do século XVI.” Nessa simples trajetéria da banana entre india, Afti- ca, Brasil, articulow caminhos ¢ caravanas de muitos tempos e espacos, revendo perspecti- vas de isolamento da Africa. Voltado para a “normalidade africana’, para 0 que populares povos bantos comem em scus cotidianes, ano- tagoes de C: Africae Brasil para além do trifico de escravos cou de recartes do continente negro. uudo evidenciaram lagos entre Entre outros enfoques, Cascudo concentrou-se em “autos populares brasi- leiros, de inspiracdto negra’, captando en- erclagamentos cultur termos de “motivas, cenas, sketches swcessivos encadeando enredo dramédtico, intercalado de bailados, cantas nnissoncs e mesmo elementos convergentes em histéricos” constituintes de reminiscéncias ntre as chama- de Congos ou Congada. das “herangas” africanas, nossas avengbes voltam-se para “as vozes infaliveis” pelo Brasil inteiro, norte, centro ¢ sul. Vocali- dades inerences a performances corporais, festas, dangas ¢ instrumentos musicais. In- gredientes para alimentar ~ de memérias, tradicées e crencas ~ eorpos escravizados que sobreviveram reinventando suas prati- cas e representagées culturais, Ne costumes ¢ tradigées africanas no Brasil, perspectiva de atualizagéo de PUC VIVA, 9 mesmo sem pensar em continuas negocia- ges entre senhores ¢ escravos, Cascudo re- gistrou autorizagées de administradores da metrépole ¢ da colénia para o exercicio de priticas culeurais proibidas em Portugal & em suas possessées afticanas. Em ambiente brasileiro, 0 poder portugues “eva compreen- sivo e tolerante para os escravos consentindo- Thes as trovejantes noites de batugue, os bai los, formakmente proibides pelas Ordenagées do Reino.” Dai inventariar raizes africanas em nosso patriménio cultural, como “was dangas gindsticas do bambeld, coco-de-roda, zambé, no jogo de capoeira vinda de Ango- Lae ampliada no Brasil, nos cantos ¢, para o sertéo, no ‘desafio’ que ce nacionalizou, pro- funda ¢ medularmente,” Reafirmando ques- tes sinalizadas nas pelejas orais, este elenco ladico amplia 0 campo de argumentagées para pensarmos nos significados politicos ¢ estéticos de festas, dancas € ritmos que, plasticamente, configuram corpos ¢ rituais como monumentos histéricos na transmis- sdio de teadigoes, crengas, valores. Por diferentes caminhos, narrativas orais € visuais evidenciam que meméria ¢ corpo constituem-se indissociavelmente en- tre povos tributitios de matrizes de oralida- de. Suas tradigaes, memorizadas em presen- ca de conpos, materializam-se em diferentes géneros nio-verbais de narratividade ineren- tes 4 constituigéo de corpas enquanto arqui- vos vivos capazes de emitir “vozes do corpo”, prolongadas em artefacos de suas culturas materiais. Gestos, instrumentos sonoros, ritmos, aderecos, vestes, nutrientes, medica- mentos, inscrigées ¢ outras expressdes corpé- reas perenizam rumores de culturas larentes em dobras da dominance civilizacéo ociden- tal ctista. “Trabalho algueimico da historia: ele transforma 0 fisico em social: (..) ela produc imagens de sociedade com pedagos de corpos” (CERTEAU, 1996: 256). Em relagio a memérias corporais, re- latos de Made in Affica veferem-se a dangas suas proibigées na metrépole, como o lun- du, ‘tao insistentemente bailado gue o rei D. Manoel o proibiu, aa lado do Batuque da Cha- ranga.” A época em que “esta dadiva coreo- REVISTA TEMPOS E HISTORIAS SILENCIADOS grafica ¢ melédica de Angola” apareceu no Brasil, “nfo ser possivel apurar.” Mas, para melhor sentirmos circuitos AfricarBrasil, em dinimicas de adaptacées, rejeigées ¢ incor- poragoes de gestos ¢ sencidos que conjugam, priticas culturais de d pagas e relacdes suas andlises do lundu no Brasil. iferent histéricas, sto si rempos, es: nificativas Derramou-se o Lundu pelo Brasil ¢ a meméria bailarina nacionalizara-o sem recordar os bamboleios inici is em Luanda ¢, com variantes ¢ acrés- cimos no dinamismo das ancas, do Zaire ao Cunene, nio exilando C: binda na pritica do saracoreio. “Tio minuciosa descrigéo da historici- dade movimento do lundu em crajetdria pelas Africas ¢ Brasis esbarra nos siléncios ¢ na rigidez da modernidade em relagio & Afti- cae seus vibrances habitantes. A escrita poé- tica de Camara Cascudo acompanhou o tit- mo do Lundu, sugerindo provaveis exercicios ctnogrificos de dangas com “dancarinas gue agitane indecentemente os quadris’, conforme Diciondrio da Lingua Portuguesa, de Morais Silva, “texhor de engenho e dono de escravas ¢ escravos” em Recife (Cascudo, 2001: 57) Definigées dessa natureza_permitem avaliar exercicios de controle sobre corpos e instrumentos musicais em diferentes mo- mentos, mesmo porque, no Brasil do século XIX, o lundu era dangado em festas até de “bodas ¢ batizados”. Sendo alvo de referén- cias por parte de viajantes estrangeiros, como Rugendas, Ribeyrolles, Spix e Martius, tal insisténcia sugere 0 potencial que scu ritmo e danga de de identidades, preservagio ¢ tansmissio de costumes ¢ tradicées via movimentos, conf guragio espacial dos dancarinos ¢ mesmo de sensibilidades corporalmente memorizadas. sm ter assumido na constituigio Chama atengio que, inicialmente, “teria apenas o ritmo”, dangado ae som de zabumba “Pelo XIX o Liundue possti mefodias ca- sacteristicas quando anteriormente er x ritino,” rab ‘Ao final dk di lo século XIX, “Esse lun- umbigadas I ¢ pimenta para a patulgia devora, Mas a vol- ta de 1880 ja nao era mais bailado muito conhecido ¢ sim cangao, no- tada por Silvio Romero. Voi essa a forma sobrevivente, O alivio de Romero em relagio & so- brevivéncia do “undw cantado, a cangio do indie, que ganbou popularidade no plano da simpatia’, & exemplar de amb gitidades das elites brasileiras diante de hibitos, crencas ¢ modas de ser afticanos, A profundidade des- tes desencontros entre grupos culcuralmen- te distintos pode ser avaliada numa incisiva afirmativa de Silvio Romero, em 1907, em tom categdrico: “E impossivel falar a homens que dangam” (Romero, 1979: 37). Cabe ter presente que, nas memsrias de Equiano, feito prisioneiro por traficantes de escravos em sua aldeia ibo, no interior da Nigéria, em 1745, depois barizado Gusta- wus Vassa, lembrando dias de festas, jibilo ¢ bailes, com dancas de homens, mulheres e criancas, chegow a expressar: “Somos quate tema nagao de dancarinos, misicas ¢ poetas”’. G reconhecimento da presenga aftica- na, de suas crengas ¢ saberes, praticas ¢ habicos culturais, na continua constituigio de nossos patriménios, oscilaram entre intolerancias, desqualificagdes, purificagies, folclorizacso de suas express6es, em exercicios para promover perspectivas apaziguadoras ¢ legados tranqiii lizadores, como ocorreu com. o Lundu. Bani- do como ritmo e danga, foi integrado ao pan- teao da histéria nacional em fungio de seus apartes isolados para “nossa mitsica” Mais do que outros escritores de sua Epoca, Cimara Cascudo expresso incémo dos € estranhamentos de elites brasileiras, pactuadas com idedrios modemistas euro- peus, frente a crengas ¢ costumes da “escra~ varia’ africana, Formas renitentes ¢ ar sula- doras de identidad: negras, em termos de modos de ser, viver, estar ¢ fazer parte do mundo visi ¢ invisivel de culcuras de ma- riz s afticanas foram maquindas, fancasiadas ou perseguidas em rermos de “afticanismos”, que deveriam ser extirpados, mestigados ¢ domesticado: PUC VIVA REVISTA 10 TEMPOS E HISTORIAS SILENCIADOS Como se situam essas elites hoje, fren- te A forte © marcante presenga e contribuicio de afro-ascendentes em nosso patrimdnio tangjvel ¢ sensivel? Esta questio articula-se, visceralmes te, a outras, trazidas por pesquisas ¢ refle- xOes recentes, como as de Simon Battestine, em Everinera © texto: contribwigdo afticana (1997), ao apontar para a presenga hiscorica clinguistica de noventa si entre povos ¢ cultaras afticanas. Provocando uma *mutasio de paradigms”, redefinindo o istemas de escritura proprio quadro no qual 6 pensamento racio- nal ocidental movimenta-se, traz ao campo episcemolégico mudancas até entio insuspei- tas, exigindo retomo eritico sobre nogbes € conceitos fundamentais, os quais resultaram em formas de poder exchidentes ¢ violentas no contexto da civilizagio ocidental crista. Com suas cvidéncias, colocou o mundo oci- dencal em confronte com trés nogées: -a Aftica nfo é por exceléncia, o con- tinente da oralidade ¢ de “povos sem escrita”; ~ mentesconscientes dos efeitos desasteo- sos da proje. Jo sobre a Africa de estru- Notas Ck. Garcia Zithio, Paulo, Usp.2006. 2 2 4 5 tturas intelectuais, econdmicas ¢ politicas do Ocidente precisam rever particulatis- mos attibuidos aos afticanos; - corna-se imperativo rejeitar 0 axio- ma segundo o qual a auséncia de escrita equivale 4 auséncia de civi- lizagdo © cultura, para assimilar o principio de que se far necessirio pesquisar modos de expressio, co- municagao ¢ preservacio de memé- vias particulares da Africa Isso no somente muda formas de compreensio de realidades afticanas, como impoe descobrir sistemas de significagio lin- gilistica que permitam rever os prdprios con- ceitos de escritura e de texto. io por acaso, os grandes nartadores da historia da diéspora negra ¢ da saga de afticanos no Brasil sio os blocos ¢ escolas de samba, Sob ritmo e instramentos de pereus- sto nacional zados, corpos negros performd- ticos desfilam em espacos ¢ tempos regrados soba légica de tres dias de Folias carnava- lescas ao ano, E viva nosso colorido Brasil africano, sempre a espera on na esperanga de que “pro ano que vem sai melhor”. # ‘Henrique Galvéo:pritica politica ¢ literatura colonia”, dissertagio de Mestrado, Historia, Ct.o folhero O Rabicho da Geralda,cantoria de tradigie oral que percerrau o nordeste ¢ centro-ceste de Brasil PEREIRA, Rubens."Painel do vasto sertio",in revista Légua & mela, n. [.julbo 2002, Feira de Santana, pp. 124/128, Reporcagem "A. tina feira' Jornal Correio da Bahia, 17/11/2002, p. 3/6 ‘Gustavus Yassa, Los Viajes de Equiano. La Habana, Editorial rte y Literacura, 2002, p7. PUC VIVA REVISTA NEGRO NO BRASIL Heber Fagundes* Ex-Coordenador da Sede Nacional da Educatro 1. Da colonia & republica: a do negro se perpetua £ impossivel encendera situagao da po- pulagio negra sem antes erasarmos sua trajets- ria, Segundo © historiador Jacob Gorender’ a escravidio € o trafico de seres humanos t am inicio em 1443, com os portugueses, que trai aas ilhas do Adan- tico ¢ pata a Europa, Anos depois, cavam negros da Africa ‘a pratica foi oficializada pelo Papa Nicolau, por meio da bula papal. O papa, attibuido de seu poder apostélico em 1492, autorizou o Rei de Poreu- gala captuur coos 08 pagios, sarmacenos ¢ an tictistos do continente afficano e, logo depois, estenden esses poderes ao Rei da Espanha. A partir desse momento, iniciowse e perpetuou- se, por mais de quatrocentos anos, a exploracéo fisica, sexual ¢ intelectual de um povo que his- toricamente far parte do berco dla civilizagio, Antes de serem seqiiestrados © trazidos para Inglaterra, Portugal, Brasil ¢ tantos outros pal- se, 0s negros, em stias aldcias, vikas, condados ¢ principados, exam reis, principes, sacerdotes, sm contar que, ainda no consinente africano, muito antes dos portugueses chez rom, cles ji desenvolviam a técnica da pecutcia edo artesanato, ¢ foram eles os primeiros a do- minarem aarte do foge e do ferro, Ao longo desses anos de servidio, os negtos foram proibidos de cultuarem seus deuses, de viverem ao lade de suas familias, praticarem suas culturas e, sem ddivida, una Plante do Movimento Negro, Aeualmente,€ consultor de policieas piblicas ¢ agdes afirmachas da Educafro © consultor de dlversidade racial no mercado de crabalho. Também & ropresentante da Educafro no pacto da valorizagao da diversi« dade da cidade de Sio Paulo. Formagio em Administragio de Empresas pola Universidade Sio Francisco (SP) e graduado ‘em Matemitiea on USP-IME, na modalidade de eseudante especial PUC VIVA. REVISTA NEGRO NO BRASIL os olhos da ética, da das mais graves violagdes moral edos bons costumes, sem tirar a relevan- cia das dema serhumano, Essa é uma das mais crudis vielae ‘ges que um pave pode softer. Nesse periodo, 05 negros foram submetidos as vontades ¢ aos desejos de outras pessoas, “dos senhores”, que foi a violagio da liberdade do por sua ver tinha n como principio a negagio do homem negro, : Os “senhores” haviam r cebide como cultura religiosa a idéia de que 2 submissio desses povos era uma forma de purgar seus pecados e dé-los.o direlto ao reino de Deus, visto serem pagios. No Brasil, esse processo teve inicio por volta de 1530, com a economia do agticar, ¢ se estendeu até 1888, Nesse perfodo, muitas vidas foram desperdicadas para a construeio dessa nagio. Na segunda metade do século XIX, a economia agucareira passou por deca- déncia devido ao processo de industrializagao do pais, Com isso, a princesa Isabel, pressiona- da pelos abolicionistas ¢ por alguns senhores que nio possuiam mais condigdes de manter os escravos em cativeito, decidiu promulgar a famosa “Lei Aurea’, Essa lei, na verdade, foi um dos marcos da exclusia do negro no Brasil. Antes dela, outras foram criadas para afirmar a excluséo do negro no Brasil, como a “lei do ventre livre”, que libertava os flhos dos eseravos que nascessem a partir daquela data, separando-os de seus pais ¢ do lastto familiar, ca lei do “sexagenirio”, que joga mercé os negros que tivessem alcancado a idade de ses- senta anos, entre outras, Antes dessas supostas libertagses, vé- rios negros se revoltaram contra a situacio em que viviam, Comecaram entio uma for- ma de articulagéo ¢ organizagao chamada de quilombo, simbolo de luta ¢ resisténcia do povo negro que teve como principal lider Zumbi dos Palmares. Voltando a0 processo de exclusio do povo negro, podemos dizer que declarar aboli € dar apenas meia liber a escravida dade aos escraves. A aboligio deu aos escra- vos uma liberdade mais reérica do que real Reti ndo-os das senzalas, em troca da ilusé: carta de alforri i jogando-os no mundo brancos sem indenizagées © sem qual- quer tipo de politica afirmativa. Os negros nada mais possuiam, a nao set o direito de perambular pelas fazendas ¢ eidacles 4 procu- rade emprego. © que fazer entio, sem teto, sem protegao, sem dinheiro, sem emprego, sem profissio, sem nada? As terras agricolas de ficil acesso tinham sido aproptiada nas areas urbanas, o excedente populacional causava um sétio problema social. Segundo Alencar em sua obra A Histéria da Socie- dade Brasileira (1986)*, a Lei n° 601/1850 (chamada Lei de Terras) impedia o acesso as cerras devolutas, a nao ser através da compra. Essa lei foi editada por presso da burguesia, temerosa de que os escravos viessem a traba- Ihar para sie adquirissem terras livres que o pais possufa, conduzindo a uma escassez de méa-de-obra ou até mesmo a formacio de uma classe média negra Abandonados & prépria sorte, os al- forriados, como forga de trabalho, eram tro- cados pelos imigrantes mais “qualificados” profissionalmente. A. suposea inferioridade racial, aliada a maus costumes, primitivismo cultural ¢ paganismo, era usada para desa- credirar o negro e descarti-lo como forga de trabalho. Tais mecanismos serviam também para assegurar algumas posicdes ja ocupadas pelos brancos, preservando seus privilégios Todos esses farores contribuiam para que os nnegros nao fossem incorporados do de trabalho, ou entao para que se con- ae merca- tentassem com as atividades bragais, mais humilhantes ¢ de menor representatividade petainte a saetedade: Pace a esses faros, que marcaram nossa historia, podemos afirmar que a atual situa- ho do negro no Brasil permanece a mesma. “Temos de levar em consideragio, porém, que esse processo de servidao ¢ exclusio softeu modificagées em suas formas ¢ métodos ao Jongo dos iltimos 118 anos. E so essas for- mas ¢ métodos que vamos focat 2. A situacdo do negro hojeno mercado trabalho © Processo de exclusio do negro no mercado de trabalho brasileiro vem se arras- tando desde o inicio da colénia. No entanco, PUC VIVA REVISTA 13 NEGRO NO BRASIL sua evidéncia documental se deu quando 0 governo brasileiro patrocinou a imigracéo ceuropéia na segunda metade do século XIX. Nesse momento, a populagao negra alfortia- da era de aproximadamente 90%. E ji estava em vigor a lei Eusébio de Queiroz, que de- terminava proibigio do trafico de escravos. Entéo, 0 que tinhamos era uma populagio negra a disposigao do processo de industria- lizacéo, que estava em pleno vapor, tanto-no Brasil como em outros paises do mundo. Po- réms @ que vimos foi & substituigao de um povo que outrora construira essa nagio por uma elite falida, predominantemente bran- ca, vinda de virias partes de Buropa, princi palmente da Itélia e de Portugal. A alegagio de tal atitude governamental era de que os negros nao possuiam experiéncia ¢ nem qua- lidade para assumir os pastos de trabalho. As perguntas que ficam séo: naqucle momento, alguém poderia dizer que possufa alguma ex- petigncia em trabalhos que acabavam de ser crindlos? Ser que essa alegacio néo se perpe- tua até os dias de hoje? © métito tio presen- te hoje em nossa sociedade nao foi o princi pal motivo para a consolidagao do negro em locais de trabalho de menor prestigio? Essas perguntas sio respondidas com a Pesquisa Mensal de Emprego — PME", realizada pelo IBGE no més de navembro de 2006. Os dados da pesquisa revelam. qui setembro de 2006, entre os empregados com carteira assinada no setor privado (os que possuem maior protecdo legal e melhores re- muneragées), 59,7% sio brancos ¢ 39,8%, negros (aqui representados por pretos ¢ par- dos), Outro dado que evidencia o descalabro social € 0 rendimento médio entre negros € brancos. A pesquisa destacou que os negros recebem, em meédia, R$ 660,45, Esse valor representava 31,19% do rendimento auferido pelos brancos, que ¢ de R$ 1.29219, Essa desigualdade entre negros ¢ brancos persiste, mesmo nas comparacées dentro do mesmo agrupamento de atividade, ou de posicso ocupacional ¢ até mesmo com a faixa de es- colaridade. Em algums negros recebem 36,9% dos rendimentos em relagdo ao dos brancos. Veja o quadro a baixo ¢ compare as regides pesquisadas: regides do Brasil, os Rendimento médio real habitualmente recebido no trabalho principal segundo a cor ou raca - setembro de 2006 Tcl —-Resife—Salvader rete Be Sio Paulo Porto Alege PretaPah d) CaaS AUTOS CCS CCAD Bana @) 129,19 104693 17™9.9B__ 1249.95 129337 136,30 __1062,95 Ram (Vi iil —«sG =i CS CSO CL FONTE IBGE, Coordenago de Trabalho e Rendimente, Pesquisa Mensal de Emprego. © que também podemos perceber nesta pesquisa é que existe um fosso ainda maior quan- do analisamos esses daclos por grupos de atividade ¢ posigao ocupada, Vejamos a tabela abaixo: Rendimento médio real habitualmente recebidono trabalho principal segundo a cor ou raca para a populacéo ocupada masculina, com 18 a 49 anos de idade e 11 anos ou mais de estudo PobiPatde — Branee SEES ‘Grpanents ie Reale ‘eat v258 19317298 Conatnntio 76337 156511286 Conia wna 136928 = ase Sevres pemae donpsens 108646 20653 ans Bitragio, até, eae publica we isstge 37 Sererce doméstees 5a R4I6 307 Sauassen ens) 1680993 Perigio r= Or papa rape g com Setebs n oor pte e544 1636.45 0 Enajng sma canine ro ator Fev ew 138505 one cone pa gaze 1aes 253 FONTE IBGE, Coordenagio de Trabalho e Rendiments, Pesquisa Mensal de Emprego. PUC VIVA REVISTA, NEGRO NO BRASIL Como podemos entender que um tra- balhador branco da area da construgéo, com qualificagdes e grau de instragio iguais as de um negro, possa ter mais do que 0 dobro de rendimentos, ou para set mais preciso, 105,6% a mais do que um trabalhador ne- gto? Isso € um atentado a Deus! Por outro lado, uma coisa écertal Esses dudos derrubam por completo a tese de que os brancos esto mais bem empregados, em maior niimero ¢ recebem o dabro do que os negros devido ao grau de instrugie, ou seja, aos anos a mais deestude. Apés essa pesquisa, posigdes desse tipo se tornam insustentaveis. Existe ainda uma lacuna muito grande na relacao entre brancas ¢ negros quando confrontamos os dados entre as mulheres © os homens. Segundo a pesquisa, as mulheres brancas ganham, em média, R$ 1.046,48; jd as mulheres negras, RS 932,65, quase a metade, Esa exclusio fica mais latente quando comparames os rendimentos dos homens beancos com os rendimentos das mulheres negras, que chegam a sen em algumas regides, trés veves maiores. Essa é a realidade do Brasil em que vivemos € que, para o mundo, € uma democracia racial Como diz Sueli Carneiro! num artigo escrito para o manual “Q compromisso das empresas com igualdade racial”, do instituto Echos, “O Brasil foi capaz de construir 0 mito da democracia racial, agora deve ser capaz de desconstrué-lo”, Para isso, & preciso que a sociedade brasileira passe por uma profunda transformagio investir na eqiiidade, desconstruindo. essa desigualdade gerada por muitos anos. Ou sécio-racial ¢ comece a te Temos essa situagdo agora, au tercmos um colapse sécio-racial no Brasil... 3. O descaso da populuctio negra com @ sade Aa longo de toda sua histéria, 0 Brasil nao foi capaz de investir em politicas pablicas que visassem 2 saiide de sua populagio mais carente, em especial da populagéo negra, que em sua maioria encontra-se em condigdes su- bamanas. O nivel de renda, o acesso & edu- casio, as condigdes de moradia, 0 excesso de ctabalho e a alimentagio inadequada exercem PUC VIVA, grande influéncia na qualidade de vida das pessoas, ¢ estao ligados, diteta ou indireta- mente, 2 satide ou doenga de uma populagio. ‘Nese caso, a populagio negra éa mais afetada nesses acontecimentos. Quem posstii a menor senda? Tem a menor quantidade de anos de escudos? Mora nos locais petiféticos? Em sua grande maioria, encontra-se desempregada? Sem diivida, os negtos desde sua chegada 20 Brasil foram colocados em segundo ou tercei- 10 plano em nossa sociedade. Sem nenhuma politica publica capaz de amenizar a situaggo €m que se encontravam ¢ se encontram até hoje, essa populagéo mais uma vez encabeca estatisticas, 66 que desta vex nos dbitos, pat doengas que poderiam ser facilmente diag- nosticadas ¢ tratadas. Mesmo com toda essa vulnerabilidade social ¢ biolégica, os negros ainda posswem uma alta propensio para adquirir doencas como anemia falciforme, hipertenséo arte- rial, diaberc, deficiéncia de glicose-6-fosfa- 0, desidrogenase, alcoolismo, toxicomania, desnutrigao, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/ AIDS, DORT/LER, relacionadas ao traba- lho, transtornos mentais, coronariopatias, insuficiéncia renal crdnica, canceres ¢ mio- mas, entre outtos. Todas esas patologias nao demonstram uma fragueza do povo nego, mas sim uma particularidade, A sa- nidade ou enfermidade das pessoas € algo complexo e esti relacionada a vitios fato- res, entre eles a questio de meio ambiente fisico, social, politico e cultural, relacionan- do-se todos com as condigées biolégicas de cada ser humano Estatisticas apontam que a porcen- tagem de mortes por causa de diabetes € 27% mais alta nos negros (pretos € par- dos) se comparados aos brancos. Um tra- balho da pesquisadora Vera Cristina de Souza’ para o servico piblico de satide da cidade de Sto Paulo, com mulheres ne- gtas e brancas, revelou a prevaléncia de miomas em 41,6% nas mulheres negras contra 22,9% nas mulheres brancas, ¢ a reincidéncia dos miomas em 21,9% em negras, contra 6% nas brancas REVISTA NEGRO NO BRASIL A hipertensao arterial é a principal causa de insuficiéncia cardiaca, insuficitncia renal ¢ de morte stibica. Em geral, a pressio arterial € mais alta nos homens é prevalen- te em negras de ambos os sexos, em quem aparece mais cedo, & mais grave ¢ tende a ser mais complicada. Uma em cada dez mulhe- res que engravidam pela primeira vex tem hipertensao Una das doencas genérieas mais co- muns no Brasil, entrecanto pouco conhe da, 6a doengas falciforme, que afeta um em cada mil cidadaos brastleiros, Estimativas da OMS (Organizacao Mundial da Satide) apontam que a cada ano nascem, no pais, cerea de 2.500 criangas portadoras. A desin- formacdo é tio generalizada que, até poucos anos atts, quando esse tipo de doenga pas- sou a ser detectada pelo teste do pezinho, os pais peregrinavam a hospirais ¢ consultérios em busca de respostas sobre os sintomas que 9 filo apresentava. A maioria dos faleémi- cos no Brasil sio aftodescendentes. A Africa éum dos locais de origem da deenga e a bai- xa renda agrava a situagao, pois os tratamen- tos sio caros. Como é herediciria, a doenga falciforme nao tem cura, mas tem contro- le. Os médicos ressaltam a imporcincia do diagndstico precoce ¢ de medidas preventi- vas para minorar as complicagées da doenca, que pode levar & morte. Também temos uma das mais graves doengas do mundo, que éa AIDS. Embora niio exista nenhuma evidéncia cientifica de que pretos ¢ pardos sejam mais suscetiveis ao HIV, entre 2000 e 2004 a porcentagem de homens negros com AIDS passou de 33,4% para 37,2%, ¢ de mulheres negras, de 35,6% para 42.4%. Segundo dados da PNUD% 0 foco de pessoas porradoras do vi- rus efou com a docnga em desenvolvimen- to se dé nos locais mais pobres, onde falea informagio ¢ as condigées de vida sto as piores possiveis. Segundo estatisticas tam- bém da PNUD, entre os 10% da populagao mais pobre do Brasil, 70% sao negros. Com isso, podemos afirmar que essa doenca, se ja nao tiver, tend © maior numero de infecta- dos entre a populagao negra. PUC VIVA, Podemos observar que hi uma série de patologias que sto predominantes ¢ em maior indice no povo negro. Porém, é de ex- trema importincia destacarmos que boa par- te delas setiam evitadas ¢ ou controladas cuso houve sem politicas publicas focadas. Tam- bém podemos dizer que boa parte do que foi construido até agora no campo da saiide da populagio negra no Brasil néo foi realizado nas escolas de satide. Uma parte dessas pes quisas foram realizadas ¢ desenvolvid spe laboratdrios farmacéuticos, que los grandes visam 4 comercializagao dos medicamentos. Outra parte foi um trabalho que vem sendo realizado desde o comego da década de 1990 a muitas maos, gracas a um ndmero redue vido de pesquisadores(as) da érea da sadde, que disponibilizaram dados para pessoas do movimento negro interessadas nessa arca. Ao mesino rempa, temos as pressdes 20 governo brasileito por parte do movimento negro ¢ de alguns pesquuisadores. No que diz respeito 20 governo, vi- vemos uma verdadeira onda de boas inten- oes. Porém, poucas s4o as situacGes em que as propostas saem do papel para a pritica. Para que isso acontega, © governo deve ser capaz de promover algumas iniciativas po- itivas que poderiam dar inicio a uma srans- formag de vista sia: desenvolvimento de uma po- litica nacional para a anemia faleiform 1 nesse quadro, que do nosso ponto criagao de espagos para a participagao de representantes da populacio negra na es- erucura do Ministério da Saiide como um instrumento que viabilize a formulacio de politicas pablicas voleadas para esca popu- lacao; planejamento familiar; cuidados re- dobrados durante o pré-natal, e espaso para entidades do movimento negro no Conse- Iho Nacional de Saiide, entre outras. Se 0 Brasil néo investir na drea da satide, poderemes viver epidemias parecidas com as que acontecem em paises do conti- nente africano, que possuem PIB inferiores aos dos estados do nordeste brasileiro. Um. pais que possui quase 50% de negros (pretos e pardos) em sua populagio nao pode fechar 08 olhos para situagées gritantes como essa. REVISTA

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