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MARSHALL BERMAN Prof. Fernando C. Alma Santos Coordanador Enceuharts oo Proauc3o Mocantca TUDO QUE E SOLIDO DESMANCHA NO AR A AVENTURA DA MODERNIDADE Tradugao: CARLOS FELIPE MOISES ANA MARIA L. IORIATTI Consultor desta edigao: FRANCISCO FOOT HARDMAN 23 reimpresséo BS Cooraanacior © tice ge ¥ - * CONTANHIA Das Leas Dados do Catalogucho na Publicagso (CIP) Internacional Yernany Warshatl, 1940~ | 'fLigo. derenncha ro a Fvafshall Bevaso [eeadacto Carl Paste’ aus Letras, 1985. ism 6: 1, Clvitieagié anders ~ sétulo 19 2. Givitizacio Indices pare estélage siatemation: Wetdeia 909.91 Sela 909.82. Celtiea fiterieia 201,95 7 : SEeule 19 + Civilizapio + Winedeia 909.81 5; Sézule 20 : Civillzegio : Historie 909.82 Copyright©1982 Marshall Berman Publicado originalmente por Simon and Schuster 1 Nao € permitida a venda em Portugal” Titulo original: Al! that is Solid Melts into Air Tradugdo: Carlos Felipe Moisés (Prefacio, Introdugao, Capitulos 1, He 111) ‘Ana Maria L. loriatti (Capitulos IV € V) e Marcelo Macca (Notas) Capa: Joao Baptista da Costa Aguiar A partir de ilustragao de Kasimir Malevich “Composicao Suprematista”? Revisio técnica : i Carlos Felipe Moisés ¢ Joito Roberto Martins Indice remissivo: Carlos Tomio Kurata Revisao: Marcia Copola Carlos Tomio Kurata Sylvia Corréa 1987 _ Editora Schwarez Ltda. eI a Rua Barra Funda, 296 A 01152 — Sao Paulo — SP Fones: (Oil) 825-5286 e 67-9161 at 1 SaMkes aw a Fe = super oo gael INDICE DS (a adeeb letataelotetetd a + 13 Introdug&io: Modernidadé — Ontem, Hoje e Amanha L I. Il. seen 1S O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento ...... 37 Primeira Metamorfose: O Sonhador . seveer 42 Segunda Metamorfose: O Amador .. 6 lteha Terceira Metamorfose: O Fomentador . --+ 60 Epilogo; Uma Era Faustica e Pseudofaustica . ace Tudo o que é Sélido Desmancha no Ar: Marx, Modernismo e Modernizacao . 85 1. A Visdo Diluidora e sua Dialética ..........4.04. 89 2. Autodestruigaio Inovadora 97 3. Nudez: O Homem Desacomodado . . 103 4, A Metamorfose dos Valores . nee . 108 5. APerdadoHalo .......... eee ee Concluséo: A Cultura e as Contradigdes do Capitalismo .... 117 Baudelaire: O Modernismo nas Ruas 127 1. Modernismo Pastoral e Antipastoral ......... peels 32. 2. O Heroismo da Vida Moderna . 3. A Familia de Othos ........ 4. O Lodacal de Macadame .:... . S. O Século XX: O Haloe a Rodovia ........... sevvesees 159 \ IV. Petersburgo: O Modernismo do Subdesenvolvimento ...3.., 167 1. A Cidade Reale Irreal +» 17k “A Geometria Surgiu”: A’Cidade nos Pantanos . . i71 “O Cayaleiro de Bronze” de Puchkin: O Funcionario ¢ €o Czar .. . 175 Petersburgo sob Nicolau Paliicio x Projeto Gogol: A Rua Real e Surreal Palavras e Sapatos: O Jovem Dostoievski ... 2. A Década de 1860 — O Novo Homem na Rua . Chernyshevski: A Rua como Fronteira . ++ 205 O Homem do Subterraneo na Rua . « 209 Petersburgo.x Paris: Duas Tend@ncias do Modernismo né nas Tuas ...... senenes O Projeto Politico see 7 Epilogo: O Palacio de Cristal, Fato e Simbolo' .. 3. O Século XX: Ascenso e Queda da Cidade . 1905: Mais Luz, Mais Sombras ....... Petersburgo de Bieli: Passaporte para a Sombra ... Mandelstam: A Palavra Abengoada sem Sentido . Conclusio: O Projeto de Petersburgo +. 188 - 198 203 | i V. Na Floresta dos Simbolos: Algumas Notas sobre 0 Moder- nismo em Nova Iorque ............... Sets lafalactcctoslelaa +) 271 1. Robert Moses: O Mundo da Via Expressa 2. A Década de 60: Um Grito naRua JIntrodugao MODERNIDADE ONTEM, HOJE E AMANHA \\Existe um tipo de experiéncia vital — experiéncia de tempo e espago, de si mesmio.e dos outros, das possibilidades e perigos da vida — que é compartithada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiéncias como “‘modernidade". Ser moderno é encontrar-se em um ‘ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformagao e transformagao das coisas em redor — mas ao mesmo tempo ameaca destruir tudo o que temos, tudo 0 que sabemos, tudo 0 que somos, A experiéncia ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geograficas e raciais, de clas- see nacionalidade, de religido e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade pa- radoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num tur- bilhao de permanente desintegragao e-mudanga, de luta e contradi¢do, de ambigilidade e anguistia.‘Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sdlido desmancha no ar”. As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhdo estdo aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as tiltimas, a passar por isso; tal sentimento engendrou indmeros mitos nostalgicos de um pré-moderno Paraiso Perdido. Na verdade, contudo, um grande e sempre crescente numero de pessoas vem caminhando através desse turbilhdo ha cerca de quinhentos anos. Embora muitas delas tenham provavelmente expe- rimentado a modernidade como uma ameaga radical a toda sua his- téria e tradigdes, a modernidade, no curso de cinco sécuto, desenvolveu uma rica hist6ria e uma variedade de tradigdes proprias. Minha inten- gio é explorar e mapear essas tradigdes, a fim de compreender de que modo elas podem’ nutrir e enriquecer nossa propria modernidade e -como podem empobrecer ou obscurecer 0 nosso senso do que seja ou possa ser a modernidade. 15 O turbilhio da vida moderna tem. sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas’ viéngias fisicas, com a mudanga da nossa'imagem do universo-e do lugar que ocupamos nele; a industria- lizagio da produgao, que transforma conhecimento cientifico em tec- nologia, cria novos ambientes humanos e destr6i os antigos, acelera 0 proprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal.explostio demogréfica, que penaliza milhdes de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos ca- minhos do mundo em direg&o a novas vidas; rapido ¢ muitas vezes catastr6fico crescimento urbano; sistemas de comunicacio de massa, dinamicos em seu. desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados individuos e sociedades; Estados na- cionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e ge- ridos, que lutam com obstinagao para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nagées, desafiando seus governantes politicos ou econémicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo emanipulando todas as pessoas e instituigdes, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expan- sao. No século XX, os processos sociais que dao vida a esse turbilhao, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vém a chamar-se ‘mo dernizagao”. Este livro é um estudo sobre a diafética da modernizacao e do modernismo. Na esperanga de ter algum controle sobre algo tao vasto quanto a historia da modernidade, decidi dividi-la em trés fases. Na primeira fase, do inicio'do “século XVI até 0 fim do século XVIII, as pessoas est&o apenas comecando a experimentar a vida moderna; mal fazem idéia do que as atingiu. Elas tateiam, desesperadamente mas em estado -de semicegueira, no encalgo de um vocabuldério adequado; tém pouco ou nenhum senso de um ptiblico ou comunidade moderna, dentro da qual seus julgamentos e esperangas pudessem ser compartilhados. Nossa segunda fase comega com a grande onda revolucionaria de 1790. Com a Revolug&o Francesa e suas reverberagdes, ganha vida, de ma- neira abrupta e dramatica, um grande e moderno piiblico. Esse ptiblico partilha o sentimento de viver em uma eta revoluciondria, uma era que desencadeia explosivas convulsdes em todos os niveis de vida pessoal, social e politica. Ao mesmo tempo, o piiblico moderno do século XIX ainda se lembra do que é viver, material ¢ espiritualmente, em um mundo que nao chega a ser moderno por inteiro. E dessa profunda dicotomia, dessa sensaco de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de modernismo e modernizagaio. No século XX, nossa terceira e Ultima fase, o processo de modernizacio se expande a ponto de abarcar virtualmente 0 mundo todo, e a cul- tura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares 16 ‘ triunfos na arte e no pensamento. Por outro lado, 4 medida que.se expande, 0 ptiblico moderno se multiplica em uma multidio de frag- mentos, que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais; a idéia de modernidade, concebida em inémeros e fragmentarios cami- nhos, perde muito de sua nitidez, ressondncia e profundidade e perde * sua capacidade de organizar e dar sentido a vida das pessoas. Em con- seqiiéncia disso, encontramo-nos hoje em meio a uma era moderna que perdeu contato com as raizes de sua propria modernidade. Se existe uma voz moderna, arquetipica, na primeira fase da modernidade, antes das revolugdes francesa e americana, essa & a voz. de Jean-Jacques Rousseau Rousseau 60 primeiro’a usar a palavra mo- derniste no sentido em que os séculos XIX ¢ XX a usardo; e ele 6 a matriz, de algumas das mais vitais tradigées modernas, do devaneio nostalgico 4 auto-especulagao psicanalitica e 4 democracia participa- tiva. Rousseau era, como se sabe, um homem profundamente.pertur- bado. Muito de sua angiistia decorre das condigdes peculiares de uma vida dificil; mas parte dela deriva de sua aguda sensibilidade as condi- des sociais que comegavam a moldar a vida. de milhées de pessoas. . Rousseau aturdiu seus contemporneos proclamando que a sociedade “européia estava “A beira do abismé’’, no limite das mais explosivas conturbagdes revolucionarias. Ele experimentou a vida cotidiana nessa sociedade — especialmente em Faris, sua capital — como um rede- * moinho, le tourbillon social.! Como era, para o individuo, mover-se € viver em meio ao redemoinho? * Na sua romantica novela A Nova Heloisa, 0 jovem heréi, Saint- Preux, realiza um movimento exploratério. — um movimento arque- tipico para milhdes de joverts nas épocas seguintes — do campo para a cidade. Saint-Preux escreve 4.sua amada, Julie, das profundezas do tourbillon social, tentando transmitir-Ihe suas fantasias e apreensdes, Ele experimenta a vida metropolitana como:‘uma permanente colis&o de grupos e conluios, um continuo fluxo e refluxo de opinides confliti- vas. (...) Todos se colocam freqiientemente em contradi¢ao consigo mesmos”, e “tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo”. Este é um mundo em que “‘o bom, 0 mau, o belo, © feio, a verdade, a virtude, tém uma existéncia apenas local e limi- tada”. Uma infinidade de novas experiéncias se oferecem, mas quem quer que pretenda desfrut-las “precisa ser mais flexivel que Alcibia- des, pronto a mudar seus principios diante da platéia, a fim de reajus- tar seu espirito a cada passo’’. Apés alguns meses nesse meio, eu comeco a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, cu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, ne- 17 nhuma toca o meu coracao, embora todas juntas perturbem meus sen- timentos, de modo a fazer que-eu esquega o que sou e qual meu lugar. Ele reafirma sua intengdo de manter-se fiel ao primeiro amor, n&o obstante receie, como ele mesmo o diz: “Eu nao sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte’’. Sonha desesperadamente com algo sdlido a que se apegar, mas “eu vejo apenas fantasmas que rondam meus olhos e desaparecem assim que os tento agarrar”.’\Essa atmos- fera — de agitagdo e turbuléncia, aturdimento psiquico e embriaguez, expansio das possibilidades de experiéncia e destruigio das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansdo e autodesordem, “fantasmas na rua e na alma — é a atmosfera que dé origem A sensi- bilidade moderna, Se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar identificar os timbres e ritmos peculiareXda modernidade do século XIX, a primeira coisa que observaremos sera a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinamica, na qual tem lugar a experiéncia moderna: Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fabricas automati- zadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolificas cidades que cresceram do’dia para a noite, quase sempre com aterradoras conse- giiéncias para o ser humano; jornais didrios, telégrafos, telefones ¢ outros instrumentos de media, que se comunicam em escada cada vez maior; Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados mul- tinacionais de capital; movimentos sociais de massa, que lutam contra essas modernizagées de cima para baixo, contando sé com seus pré- prios meios de modernizaciio de baixo para cima;_um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansdo, capaz de um estarrecedor desperdicio e devastagao, capat de tudo exceto solidez ¢ estabilidade, Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixio, e se esforcam por fazé-lo ruir ou explord-lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente a vontade em meio a isso tudo, sensiveis as novas possibilidades, positives ainda em suas. negagdes radicais, jocosos ¢ irdnicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade. Pode-se ter uma idéia da complexidade e riqueza do modernismo do século XIX, assim como das unidades que alimentam sud multipli- cidade, prestando atengao a duas de suas vozes mais distintas: Nietzs- che, que é geralmente aceito como fonte de muitos dos modernismos do nosso tempo, e Marx, que nao é comumente associado a qualquer modernismo. Primeiro, Marx, falando um inglés desajeitado, mas convincente, em Londres, em 1856. ‘As assim chamadas revolugdes de 1848 foram apenas incidentes despreziveis”’, ele comeya, ‘pequenas fraturas e fis- 18 suras na‘crista seca da sociedade européia. Mas denunciaram o abismo. Sob a superficie aparentemente s6lida, deixaram entrever oceanos de matéria liquida, que apenas aguardam a expansao para transformar em fragmentos continentes inteiros de rocha dura.” As classes diri- gentes do movimento reaciondrio de 1850, dizem ao mundo que tudo esta s6lido outra vez; porém nao esta claro se eles proprios acreditam nisso-De fato, diz Marx, ‘“‘a atmosfera sob a qual viventos pesa varias toneladas sobre cada um de nds — mas vocés o sentem?”. Um dos propésitos mais firmes de Marx foi fazer 0 povo “‘sentir’’; eis por que suas idéias sao expressas através de imagens tao intensas e extravagan- tes — abismos, terremotos, erupgdes vulcanicas, pressao de forcas gra- vitacionais —, imagens que continuarao a ecoar na arte € no pensa- mento modernista do nosso. tempo. Marx continua: ‘‘Ha um fato elo- qiiente, caracteristico ‘deste nosso'século XIX, um fato que nenhuma facgao ousa negar’’s,O fato basico da vida moderna, conforme a vé Marx, é que essa vida é radicalmente contraditéria na sua base: De um lado, tiveram acesso a vida forcas industriais e cientificas que nenhuma época anterior, na hist6ria da humanidade, chegara a suspei- tar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadéncia que ul- trapassam em muito os horrores dos iltimos tempos do Império Ro- mano\Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrario, © maquinério, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeigoar 0 trabalho humano, s6 faz, como se observa, sacrificd-lo e sobrecar- regi-lo. As mais avangadas fontes de satide, gracas a uma misteriosa distorgao, tornaram-se fontes de pentiria. As conquistas da arte pare- cem ter sido conseguidas com a perda do carater. Na mesma instincia em que a humanidade domina a natureza, 0 homem parece escravizar- se a outros homens ou a sua propria infamia. Até a pura fuz da ciéncia parece incapaz. de brilhar sen&o no escuro pano de fundo da igtiorancia. ‘Todas.as nossas invengSes e progressos parecem dotar de vida intelectual as forgas materiais, estupidificando a vida humana ao nivel da fora material. + . ji Tais misérias e mistérios instilam desespero na mente dos moder- nos. Alguns pensariam em “livrar-se das artes modernas para livrar-se dos conflitos modernos”’; outros tentario conciliar progresso industrial € retrocesso neofeudal e neo-absolutista em politica. Marx, porém, proclama o carter paradigmatico da {é modernista: “Quanto a nés, nfo nos deixamos confundir pelo espirito mesquinho que continua a marcar todas essas contradigdes: Sabemos que para obter um bom re- sultado (...) as forgas de vanguarda da sociedade devem ser governadas pelos homens de vanguarda, e esses so os operarios. Eles sio uma invengao dos tempos modernos, tanto quanto o préprio maquinario", % 19 Logo, a classe dos “novos homens”, homens que séo legitimamente modernos, conseguira absolver as contradigdes da modernidade, supe- Tar as pressdes esmagadoras, os terremotos, as misteriosas distorgdes, os abismos sociais e pessoais, eni cujo interior todos os homens e mu- theres modernos sao forgados a viver. Tendo dito isso, Marx se torna repentinamente animado e conecta sua visio do futuro com a do pas- sado — com 0 folclore inglés, com Shakespeare: “Nos signos que des- norteiam’a classe média, a aristocracia e os pobres profetas do retro- cesso, nds reconhecemos nosso bravo camarada Robin Goodfellow, a velha toupeira que pode trabalhar a terra com rapidez, aquele valioso pioneiro — a Revolugo”. Os escritos de Marx sto famosos pelos seus fechos. Mas, se 0 virmos como um modernista, perceberemos o impulso dialético que subjaz ao seu pensamento, animando-o, um impulso de final em aber- to, que se move contra a corrente de seus proprios conceitos e desejos. Assim, no Manifesto, vemos que a dinamica revolucionaria destinada a destronar a burguesia brota dos mais profundos anelos e necessidades dessa mesma burguesia: ; A burguesia nao pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produgao, ¢ com eles as relacdes de produgio, e com eles todas as relagies sociais. (...) Revolugio ininterrupta da produgao, continua perturbagao de todas as relagdes sociais, intermindvel incer- teza e agitago, distinguem a era burguesa de todas as anteriores. Esta é provavelmente a visio definitiva do ambiente moderno, esse ambiente que desencadeou uma espantosa pletora de movimentos modernistas, dos tempos de Marx até o nosso tempo. A visio se des- dobra: 7 . Todas as relagies fixas, enrijecidas, com seu travo de antigtiidade e ve- neraveis preconceitos ¢ opiniées, foram banidas; todas as novas relagbes se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo 0 que é solido desmancha no ar, tudo 0 que é sagrado é profanado, ¢ os homens finalmente so levados a enfrentar (...) as verdadeiras condigoes de suas Vidas e suas relagdes com seus companheiros humanos.4 Assim, o impulso dialético da modernidade se volta ironicamente contra seus primitivos agentes, a burguesia. Mas talvez nao pare al: com efeito, todos‘os movimentos modernos acabam por se aprisionar em semelhante ambiéncia — incluindo 0 proprio Marx. Suponhamos, como Marx o faz, que as formas burguesas se decomponham e que um movimento. comunista atinja o poder: 0 que poder impedir que essa 20 nova forma social conhega o mesmo destino de seu predecessor, des- manchando no ar moderno? Marx cogitou dessa questao e sugeriu al- gumas respostas, que exploraremos mais adiante. Porém, uma das vir- tudes especificas do modernismo € que ele deixa suas interrogagdes ecoando no ar, muito tempo depois que os proprios interrogadores, suas respostas, abandonaram a cena. Se nos adiantarmos um quarto de século, até Nietzsche, na dé- cada de 1880, encontraremos outros preconceitos, devogdes e esperan- gas; no entanto, encontraremos também umia voz e um sentimento, em relagdo @ vida moderna, surpreendentemente similares. Para Nietzs- che, assim como para Marx, as correntes da histéria moderna eram irOnicas e dialéticas: os ideais cristdos da integridade da alma e a aspi- ragGo a verdade levaram a implodir o proprio Cristianismo. O resul- tado constituiu os eventos que Nietzsche chamou de ‘‘a morte de Deus” e “‘o advento do niilismo”’. A moderna humanidade se vé em meio.a uma enorme auséncia e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundaficia de possibilidades. Em Além do Bem e do Mal, de Nietzsche (1882), encontramos uma explanagao em que, tal como em Marx, tudo est impregnado do seu contrario: Nesses pontos limiares da histéria exibem-se — justapostos quando nfo emaranhados um no outro — uma espécie de tempo tropical de rivali- dade e desenvolvimento, magnifico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, de outro lado, um poderoso impulso de destruigdo e autodesiruigao, resuitante de egoismos violentamente opos- 1 tos, que explodem e batalham por sole luz, incapazes de encontrar qual- quer limitagao, qualquer empecilho, qualquer consideragao dentro da moralidade ao seu dispor. (...) Nada a nao ser novos “‘porqués”, ne- nhuma férmula comunitaria; um novo conluio de incompreensao e des- respeito miituo; decadéncia, vicio, e os mais superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o génio da raga jorrando solto sobre a cornucépia de bem e mal; uma fatidica simultaneidade de primavera e outono. (...) Outra vez o perigo se mostra, mae da moralidade — grande perigo — mas desta vez deslocado sobre o individuo, sobre o mais pré- ximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho de alguém, sobre o cora- ao de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da i vontade de alguém. Em tempos como esses, “‘o individuo ousa individualizar-se”. De outro lado, esse ousado individuo precisa desesperadamente “de um conjunto de leis proprias, precisa de habilidades e asticias, necessArias A autopreservagao, 4 auto-imposiciio, 4 auto-afirmagao, a autoliberta- gio”. As possibilidades so ao’ mesmo tempo gloriosas ¢ deplordveis. ‘ “Nossos instintos podem agora voltar atras em todas as direcSes; nés 21 eee ee proprios somos uma espécie de caos.” O sentido que 0 homem mo- derno possui de si mesmo e da histéria “vem a ser na verdade um instinto apto a tudo, um gosto e uma disposicao por tudo”. Muitas estradas se descortinam a partir desse'ponto. Como fario homens ¢ mulheres modernos para encontrar os recursos que permitam competir em igualdade de condigdes diante desse “tudo” Nietzsche observa que hd uma grande quantidade de mesquinhos ¢ intrometidos cuja solugéo para o caos da vida moderna 6 tentar deixar de Viver: para eles “tor- nar-se mediocre é a tinica moralidade que faz sentido”’. Outro tipo de mentalidade moderna se dedica A parédia do pas- sado: esse “precisa da histéria porque a vé como uma espécie de guar- da-roupa onde todas as fantasias esto guardadas. Ele repara que ne- nhuma realmente lhe serve” — nem primitiva, nem clissica, nem me- dieval, nem oriental — ‘‘e nto continua tentando”, incapaz de acei- taro fato de que o homem moderno “jamais se mostraré bem trajado”, porque nenhum papel social nos tempos modernos é para ele um figu- rino perfeito. A prépria posigiio de Nietzsche em relagdo aos perigos da modernidade consiste em abarcar tudo com alegria‘Nos modernos, nés semibarbaros. Nés s6 atingimos nossa bem-aventuranga quando estamos realmente em perigo. O tnico estimulo que efetivamente nos comove € 0 infinito, o incomensurével”, Mesmo assim, Nietzsche nao ‘almeja viver para sempre ém meio a esse perigo. ‘To fervorosamente quanto Marx, ele deposita sua {é em uma nova espécie de homem — “0 homem do amanhie do dia depois de amanha” — que, “‘colocando- se em oposi¢o ao seu hoje”, tera coragem ¢ imaginagio para “‘criar no- vos valores”, de que 0 homem e a mulher modernos necessitam para abrir seu caminho através dos perigosos infinitos em que vivem,/ Notavel e peculiar na voz que Marx e Nietzsche compartilham nao és6 0 seu ritmo afogueado, sua vibrante energia, sua riqueza ima- ginativa, mas também sua rapida e brusca mudanga de tom e inflexio, sua prontidao em voltar-se contra si mesma, questionar e negar tudo 0 que foi dito, transformar.a si mesma em um largo espectro de vozes harmdnicas ou dissonantes e distender-se para além de sua capacidade na direco de um espectro sempre cada vez mais aniplo, na tentativa de expressar e agarrar um mundo onde tudo esta impregnado de seu con- trario, uth mundo onde “tudo 0 que é solido desmancha no ar". Essa yor ressoa 40 mesmo tempo como autodescoberta e autotripiidio, como auto-satisfagaio e auto-incerteza. E uma voz que conhece a dor e 0 ter- ror, mas acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Graves peri- gos est@o em toda parte e podem eclodir a qualquer momento, porém nem 0 ferimento mais, profundo pode deter 0 fluxo e refluxo de sua energia. IrGnica e contradit6ria, polifSnica e dialética, essa voz denun- cia a vida moderna em nome’ dos valores que a propria modernidade 22 criou, na esperanga — nao raro desesperancada —>de que as moderni- dades do amanha e do dia depois de amanhi possam curar os ferimentos _ gue afligem o homem e a mulher modernos de‘hoje. Todos os grandes modernistas do século XIX — espiritos heterogéneos como Maix'e “Kierkegaard, Whitman e Ibsen, Baudelaire, Melville, Carlyle, Stirner, Rimbaud, Strindberg, Dostoievski e muitos mais — falam nesse ritmo ‘e nesse diapasao, +O que aconteceu, no século XX, ao modernismo do século XIX? De varios modos, prosperou e cresceu para além de suas proprias espe- rangas selvagens. Na pintura e na escultura, na poesia e no romance, no teatro e na danga, na arquitetura e no design, em todo um setor.de media elétrénica e em um vasto conjunto de disciplinas cientificas que nem sequer existiam um século atrés, nosso século produziu uma as- sombrosa quantidade de obras ¢ idéias da*mais alta qualidade.\O sé- culo XX talvez seja o periodo mais brilhante ¢ criativo da historia da humanidade, quando menos porque sua energia criatiya se espalhou por todas as partes do mundo, O brilho e a profundidade da vida mo- derna — vida que pulsa na obra de Grass, Garefa Marquez, Fuentes, Cunningham, Nevelson, Di Suvero, Kanzo Tange, Fassbinder, Herzog, Sembene, Robert Wilson, Philip Glass, Richard’ Foreman, Twyla Tharp, Maxine Hong Kingston e tantos mais que nos rodeiam — cer- tamente nos dio fortes motivos de orgulho,-em um mundo onde ha tanto de que se envergonhar e tanto que temer.’Ainda assim, parece- me, n&o sabemos como usar nosso modernismo; nés perdemos ou rom- Pemos a conexdo entre, nossa cultura e’nossas vidas,Jackson Pollock imaginou suas pinturas gotejantes como florestas onde os espectadores podiam perder-se (e, é claro, achar-se) a si mesmos; mas no geral nés esquecemos a arte de nos pormos a nés mesmos na pintura, de nos reconhecermos como participantes e protagonistas da arte e do pensa- mento de nossa época.,Nosso século fomentou uma espetacular arte moderna; porém, nés, ee que esquecemos como apreender a vida moderna de que essa arte brota. O pensamento moderno, desde Marx e Nietzsche, cresceu e se desenvolveu, de varios modos; nao obstante, nosso pensamento acerca da modernidade parece ter estagnado e regre- dido. Se prestarmos atengao Aquilo que escritores e pensadores do sé- culo XX afirmam sobre a modernidade e os compararmos Aqueles de um século atrs, encontraremos um radical achatamento de perspec- tiva e'uma diminuico do especiro imaginativo\ Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida mo- derna, Iutando desesperados contra suas ambigiiidades e contradigdes: sua auto-ironia e suas tensdes intimas constituiam as fontes primarias 23 de.seu poder criativo. Seus sucessores do século XX resvalatam para longe, na diresao de rigidas polarizagdes e totalizages achatadas. A modernidade ou é vista com um entusiastno cego e acritico ou é conde- nada segundo uma atitude de distanciamento e indiferenca neo-olim- pica; em qualquer caso, & sempre concebida como um monolito fe- chado, que nao pode ser moldado ou transformado pelo homem mo- derno. Visdes abertas da vida moderna foram suiplantadas por visdes fechadas: Isto e Aquilo substituidos por Isto ou Aquilo. As polarizagdes basicas se manifestam exatamente no inicio do no¥so século. Eis ai os futuristas italianos, defensores apaixonados da modernidade, nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial: “Camaradas, nés afirmamos que 0 triunfante progresso da ciéncia torna inevitaveis as transformagdes da humanidadeé, transformagdes que esto cavando um abismo entre aqueles déceis escravos da tradi¢Zo enés, livres modernos, que acreditamos no radiante esplendor do nosso futuroy’.® Aindo ha ambigitidades: “‘tradigdo” — todas as tradigdes da humanidade atiradas no mesmo saco — se iguala simplesmente a décil escravidao, e\modernidade se iguala a liberdade; caminhos unilateral- mente fechados. ““Peguem suas picaretas, seus machados, seus marte- los e ponham abaixo, ponham abaixo as veneraveis cidades, impiedo- samente! Vamos! Ateiem fogo nas estantes das bibliotecas! Desviem os canais de irrigagio para inundar os museus! (...) Deixem que eles ve- nham, os alegres incendidrios com seus dedos em brasa! Aqui esto eles! Aqui esto eles!” Agora, Marx e Nietzsche podiam também rego- zijar-se na moderna destruig&o das estruturas tradicionais;\mas eles sabiam bem dos altos custos humanos desse progresso, e sabiam.que a modernidade tinha uri longo caminho a percorrer antes que suas feri- das pudessem cicatrizary Nés cantaremos as grandes multiddes excitadas pelo trabalho, pelo pra- zer € pela sublevaco; n6s cantaremos as marés multicoloridas e polif6- nicas da revolugdo nas capitais modernas; nés cantaremos o fervor no- tumno dos arsenais ¢ dos estaleiros regplandecendo sob violentas luas elé- tricas; gulosas estagdes ferrovidrias que devoram serpentes emplumadas de fumo; fabricas suspensas nas nuvens pelos cordéis enrolados de suas fumagas; nuvens que cavalgam os trios como ginastas gigantescos, bri- Ihando ao sol com uma cintilagao de facas; vapores aventureiros (...) locomotivas de peito proeminente (...) ¢ a luz insinuante dos aeroplanos (ete.).7 Setenta anos depois, ainda podemos sentir-nos tocados pela verve € 0 entusiasmo juvenil dos-futuristas, pelo seu.désejo de fundir suas energias com a tecnologia moderna e criatr um mundo novo, Mas tanto desse mundo foi posto de lado! Podemos i lo até naquela maravi- 24 mee da Produgio Ihosa metéfora das “marés multicoloridas e polifOnicas da revolugao”. ‘\Constitui uma verdadeira expansdo da sensibilidade humana essa apti- dao a experimentar o fendmeno da sublevacao politica em termos esté- ticos (musicais, pict6ricos)/Por outro lado, 0 que acontece a todas as pessoas que foram tragadas nessas marés? Sua experiéncia nao esta registrada na imagem futurista.\Ao que tudo indica, algumas das mais importantes variedades de sentithentos humanos yao ganhando novas cores 4 medida que as maquinas vio sendo criadas; De fato, como se lé nam texto futurista posterior, “‘nés intentamos a criagdo de uma espé- cie ndo-humana, na qual o sofrimento moral, a bondade do coragio, a afeigio e o amor, esses venenos corrosivos da energia vital, bloquea- dores da nossa poderosa eletricidade corpérea, serao abolidos”.* As- sim, os jovens futuristas lancaram-se ardentemente a si mesmos na- quilo que eles chamavam “guerfa, a tinica higiene do mundo”, em 1914. Em dois anos, dois dos seus espiritos mais criativos — o pintor- escultor Umberto Boccioni e'0 arquiteto Antonio Sant’Elia — seriam mortos pelas mAquinas que eles amavam. Os outros sobreviveram para se tornarem instrumentos culturais de Mussolini, pulverizados pela mio negra do futuro: . Os futuristas levaram a celebrago da tecnologia moderna a um extremo grotesco e autodestrutivo, garantia de que suas extravagancias jamais se repetiriam. \Mas o-seu acritico hamoro com as mAquinas, combinado com o profundo distanciamento do povo, ressurgiria em formas menos bizarras, no entanto mais longevas. Deparamos com essa espécie de modernismo, apés a Primeira Guerra Mundial, nas formas refinadas da “‘mAquina estética”, as tecnocraticas pastorais de Bau- J haus, Gropius e Mies van der Rohe, Le Corbusier e Léger, 0 Ballet Mécanique. Vemo-lo de novo, apés outra guerra mundial, na alta tec- nologia espacejada das raps6dias‘de Buckminster Fuller e Marshall McLuhan e no Choque do Futuro, de Alvin Toffler. Em Understanding Media, de McLuhan, publicado em 1964, lemos: © computador, em poucas palavras, promete através da tecnologia a possibilidade pentecostal de entendimento e unidade universais. O pré- ximo passo légico parece ser (...) ultrapassar as linguagens em favor de uma generalizada consciéncia césmica. (...) A condig&d da “auséncia de peso” que, segundo os biologistas, representaré a imortalidade fisica, deve ser posta em paralelo com a condigio da‘quséncia, da fala, que poderd significar a perpetuidade da paze harmonia coletiva.9 | Esse modernismo sustenta os modelos de modernizagao que cientistas sociais norte-americanos do pés-guerra — nfo raro trabalhando para generosas jnstituigdes governamentais subsidiadas por fundages — 25 5 desenvolveram a fim de exportar para o Terceiro Mundo. Eis aqui, como exemplo, uma espécie de hino a fabrica moderna, do psicdlogo social Alex Inkeles: Uma fabrica gerida por administragio moderna e princfpios seguros nas relagdes pessoais dard a seus trabalhadores um exemplo de comporta- mento racional, equilibrio emocional, comunicagio aberta e respeito pelas opinides, os sentimentos ¢ a dignidade do trabalhador, o que pode ser um poderoso exemplo dos principios e praticas da vida moderna.” Os futuristas poderiam execrar a baixa intensidade dessa prosa, mas certamente se deliciariam com a visio de uma fabrica como um ser humano exemplar, que homens e mulheres deveriam tomar como mo- delo para suas vidas. O ensaio de Inkeles se intitula “A Modernizacio do Homem” e foi concebido para realcar a importancia do desejo hu- mano e da iniciativa na vida moderna. Porém, jo problema, como o problema de todos os modernismos na tradigdo futurista, € que, com espléndido maquin4rio e sistemas mec&nicos desémpenhando os papéis principais — tal como a fabrica é 0 protagonista no trecho citado —, resta muito pouco para o homem moderno executar, além de apertar um botio. Se nos movermos para 0 pélo oposto do pensamento do século XX, que declara um enfatico “Nao!” 4 vida moderna, encontraremos uma visio surpreendentemente semethante do que seja a vida. No des- fecho de A Etica Protestante e o Espirito do Capitalismo, escrito em 1904, Max Weber afirma que todo d,“‘poderoso cosmo da moderna ordem'econdmica’’ é como “um cércere de ferro”. Essa ordem inexo- ravel, capitalista, legalista e burocratica ‘determina a vida dos indivi- duos que nasceram dentro desse mecanismo (...) com uma forga irre? sistivel’’. Essa ordem ‘‘determina o destino do homem, até que a Ultima tonelada de carvao féssil seja consumida”. Agora, Marx e Nietzsche — e Tocqueville e Carlyle e Mill e Kierkegaard e. todos os demais grandes criticos do século XIX — chegam a compreender como a tecnologia moderna e.a orgapizac&o social condicionaram o destino do homem. Porém \todos. eles acreditavam que os homens modernos tinham -a capacidade nao s6 de compreender esse destino, mas também de, tendo-o compreendido; combaté-lo,:Assim, mesmo em meio a um pre- sente tio desafortunado, eles poderiam imaginar uma brecha para o futuro. Os criticos da modernidade, no século XX, carecem quase in- teiramente dessa empatia com e fé em seus camaradas, homens e mu- Iheres modernos. Segundo Weber, seus contemporaneos nao passam de “especialistas sem espitito, sensualistas sem corag4o; e essa nuli- dade caiu na armadilha de julgar que atingiu um nivel de desenvolvi- 26 mento jamais sonhado antes pela espécie humana”’."' Portanto, no sd a sociedade moderna é um cArcere, como as pessoas que af vivem foram moldadas por suas barras; somos seres sem espirito, sem coracao, sem identidade séxual ou pessoal — quase podiamos dizer: sem ser. Aqui, como nas formas futuristas e tecnopastorais do modernisnio} o homem moderno como sujeito — como um ser vivente capaz de res- posta, julgamento e agao sobre omundo —desapareceu./fronicamente, 08 criticos do “‘cArcere de ferro”, no século XX, adotam a perspectiva do carcereiro: comé\os confinados so desprovidos do sentimento inte- rior de liberdade e dignidade, o carcere nao é uma pris&o, apenas for- nece a uma raca de intiteis 0 vazio que eles imploram e de que’ ne- cessitam.*.” ; \ Weber depositava pouquissima fé no povo e menos ainda em suas classes dominantes, aristocraticas ou burguesas, burocraticas ou revo- luciondrias. Por isso, sua perspectiva politica, pelo menos nos xiltimos anos de vida, foi um liberalismo sob permanente ameaca. Todavia, assim que o seu ceticismo e visio critica foram postos & margem do seu distanciamento e desrespeito pelos homens e mulheres modernos, 0 resultado foi uma politica muito mais a direita do que a do proprio Weber.Muitos pensadores do século XX passaram a ver as coisas deste modo: as massas pululantes, que nos pressionam no dia-a-dia e na vida do Estado, no tém sensibilidade, espiritualidade ou dignidade como as nossas; nao € absurdo, pois, que esses “homens-massa” (ou “ho- meni ocos”) tenham nfo apenas o direito de governar-se a si mesmos, mas também, através de sua massa majoritéria, 0 poder de nos gover- nar? Nas idéias e nas posturas intelectutais de Ortega, Spengler, Maur- ras, T. S. Eliot e’Allen Tate, vemos a perspectiva neo-olimpica de We- ber apropriada, distorcida e amplificada pelos modernos mandarins e candidatos a aristocratas da direita do século XX. : Mais surpreendente e mais perturbadora é a extensio que essa perspectiva atingiu entre alguns dos democratas participativos da re- cente Nova Esquerda: Porém, foi isso 0 que aconteceu, ao menos por algum tempo, no fim da década de 1960, quando o ensaio de Herbert (*) Uma perspectiva mais dialética pode ser encontrada nos tiltimos ensaios de Weber, como “Politica como Vocagio” e “Ciéncia como Vocagao" (lin: De Max Weber. Trad. e org. Hans Gerth © C. Wright Mills. Oxford, 1946). Georg Simmel, contemporaneo e amigo de Weber, insinia, mas nao chega a desenvolver, aquilo que estaria provavelmente mais proximo de uma teoria dialética da modernidade, no século XX. Veja-se, por exemplo, “O Conilito na Cultura Moderna”, "A Metropole © a Vida Mental” e “Expansto de Grupo e Desenvolvimento da Individualidade” (In: Sobre Indivi- * dualidade e Formas Sociais. Org-Donald Levine. University of Chicago, 1971). Em Simmel — e mais tarde em seus jovens seguidores Georg Lukées, T, W. Adorno e Walter Benjamin —, visio dialética e rofundidade estio sempre imbricadas, nio raro no mesmo pardgrafo, com um monolitico desespero cultural. . 27 Marcuse, O homem unidimensional, tornou-se 0 paradigma dominante de certo pensatnento-critico\,De acordo com esse paradigma, tanto Marx como Fretid séo obsoletos: nao s6 lutas de Glasses e Iutas so- ciais, mas também contflitos e contradigdes psicolégicos foram aboli- dos pelo Estado de “administragio total”. As massas nao tém ego, nem id, suas almas sao carentes de tensdo interior ¢ dinamismo; suas idéias, suas necessidades, até seus dramas “‘ndo so deles mesmos"’; suas vidas interiores sao “inteiramente administradas”, programadas para pro- duzir exatamente aqueles desejos que o sistema social pode satisfazer, nada além disso.:“‘O povo se auto-realiza no seu conforto; encontra sua alma em seus automéveis, seus conjuntos estereofénicos, suas casas, suas cozinhas equipadas." !? : Isso veio a ser um refrao familiar no século XX, partilhado por aqueles que amam e por aqueles que odeiam o mundo moderno:\a, modernidade é constituida por suas maquinas, das quais os homens e mulheres modernos nao passam de reprodugSes mecfnicas. Mas isso é apenas uma caricatura da tradigio moderna do século XIX, em cuja érbita Marcuse declarou mover-se, a tradi¢do critica de Hegel e Marx. Invocar esses pensadores rejeitando sua visio da histéria como ativi- dade incansével,, contradicio dindmica, luta.e progresso dialéticos é reter pouca coisa além dos seus nomes. Assim}imesmo que os jovens radicais dos anos 60 lutassem por mudangas que poderiam tornar 0 povo em redor capaz de controlar suas vidas, o paradigma “unidimen- sional” proclamava que nenhuma mudanga era possivel e que, de fato, esse povo nem sequer estava viva. Dois caminhos se abriram a partir daf, Um deles foi a pesquisa em torno de uma vanguarda que estivesse inteiramente “fora” da sociedade moderna: ‘‘o substrato dos proscritos ce marginais, os explorados e perseguidos por outras ragas e outras co- res, os-desempregados e os inempregaveis”.!? Esses grupos, seja nos guetos e prises da América, seja no Terceiro Mundo, podiam quali- ficar-se como vanguarda revoluciondria, porqué\supostamente nao ha- . viam sido tocados pelo beijo da morte-da modernidade. Tal pesquisa se vé condenada certamente & futilidade; ninguén no mundo contempo- raneo é ou pode ser “marginal”. Para os radicais que compreenderam isso, ainda que tomassem a sério o paradigma unidimensional, a vinica valvula de escape foi a futilidade e o desespero.. \A volatil atmosfera dos anos 60 gerou um amplo e vital corpus de pensamento e controvérsias sobre o sentido ultimo da modernidade. Muito do que houve de mais interessante nesse pensamento girou em torno da natureza do modernismo:-O modernismo nos anos 60 pode ser grosseiramente dividido em trés tendéncias, com base em sua atitude’ diante da vida moderna como um todo: afirmativo, negativo € ausente.” Essa divisio parece simplista, mas as atitudes recentes diarite da mo- 28 tte dernidade tendem de fato a ser mais grosseiras ¢ mais simples, menos to sutis e menos dialéticas do que aquelas de um século atrés. i “O primeiro desses modernismos, aquele que se esforca por ausen- hie tar-se da vida modernay foi proclamado mais veementemente por Ro- m . land Barthes, em literatura, e Clement Greenberg, nas artes visuais. Ss, Greenberg \yfirmou que a.tinica preocupacao legitima da arte moder- as nista efa com a propria arte; mais ainda, que o tinico foco adequado 7 para um artista, em qualquer forma ou género, era a natureza e 0 limite desse género: o meio a mensagem; Logo, por exemplo, o tinico ‘a tema admissivel para um pintor modernista era a planura da superficie s (canvas ete:), onde a pintura ocorre,porque “somente a planura é tnica e exclusiva em termos de arte”. O modernismo, ento, se forna'a Bs , > procura de uma arte-objeto pura, auto-referida. E assim foi,a ade- quada relaga6 entre arte moderna e vida moderna veio a ser a auséncia de qualquer relacao. Barthes coloca essa auséncia debaixo de uma luz positiva, até mesmo herdica: 0 escritor moderno “volta as costas para a socjedade e confronta o mundo dos objetos, recusando-se a caminhar ‘ através de quaisquer- das formas da Historia ou da vida social”’.* O ‘modernismo aparece, desse modo, como uma grande tentativa de liber- tar os artistas modernos das impurezas e vulgaridades da vida mo- derna,/Muitos artistas e escritores — e, mais ainda, criticos de arte e literatura — so gratos a esse miodernismo por estabelecer a autonomia ¢ a dignidade de suas atividades. Mas poucos artistas e escritores mo- dernos pactuaram com esse modernismo por muito tempo\uma arte desprovida de sentimentos pessoais e de Felagdes sociais esté condenada a parecer Arida e sem vida, emi pouco tempo./A liberdade que ela. per- | mite é a liberdade belamente configurada e perfetamente selada... da tumba. 7 7 \A0 Jado disso tivemos a visio de um modernismo como intermi- navel, permanente revolugdo contra a totalidade da existéncia mo- 7 derna: foi “uma tradicao de destruir a tradig’io(Harold Rosenberg),”* 2 + uma “cultura de conibate’” (Lionel Trilling),!” uma “cultura de nega- - ¢a0” (Renato Poggioli).'* Foi dito da obra de arte moderna que ela deve 1 “molestar-nos com agressiva absurdidade” (Leo Sfeinberg)."\Esse mo- v dernismo busca a violenta destruigao de todos os nossos valores ¢ se preocupa muito pouco em reconstruir os mundos que poe abaixo/ Tal imagem ganhou forga e credibilidade A medida que a mentalidade dos anos 60 evoluiu e que o clima politico atingiu seu apogeu: em alguns L circulos, “‘modernismo” tornou-se palavra-cédigo para todas as forcas E em revolta.” Isso obviamente mostra uma parte da verdade, mas deixa muita coisa de ladoy Deixa de lado 4 grande epopéia da construgao, uma fora crucial do modernismo, de Carlyle e Marx a Tatlin e Calder, Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, Mark di Suvero e Robert Smith- Cum “on 29 2 son.Deixa de lado toda a forga afirmativa e positiva em relagio a vida, que nos grandes modernistas vem’ sempre entrelagada com a subleva- S4o ea revoltay'a alegria erética, a beleza natural e a ternura humana em D. H. Lawrence, sempre aprisionadas.em abraco mortal com seu tancor e desespero niilistas; as figuras de Guernica, de Picasso, lutando Por manter viva a propria vida, enquanto emitem o seu grito agudo de morte; o triunfante coro final de Um Amor Supremo, de Coltrane; Aliosha Karamazov beijando e abragando a terra, em meio ao caos e 4 angustia; Molly Bloom trazendo o arquetipico livro modernista a um final com “sim eu disse sim eu farei Sim”. Existe ainda outro aspecto nessa idéia de modernismo como nada além de perturbagao: ela implica‘um modelo ideal de sociedade mo- derna isento de perturbagdes. Com isso, pée de lado “‘o permanente distiirbio das relagdes sociais, a interminavel incerteza e agitagao” que a0 longo de duzentos anos tém sido os fatos basicos da vida moderna. Quando os estudantes. da Universidade Coltimbia se rebelaram em 1968, alguns dos seus professores conservadores descreveram & aco como “modernismo nas ruas”. E de supor que essas ruas s6 poderiam ser calmas e ordeiras — em pleno coragdo de Manhattan! — se a cul- tura moderna pudesse ter sido de algum modo mantida fora delas, confinada as salas de aula e As bibliotecas da universidade e aos museus de arte moderna.”! Tivessem os professores aprendido suas proprias li- ses e poderiam lembrar quanto de modernismo — Baudelaire, Boc- cioni, Joyce, Maiakovski, Léger e outros — se nutriu da verdadeira per- turbacao das ruas modernas, transformando seus ruidos e dissonancia em beleza ¢ verdade. Ironicamente, a imagem radical do modernismo “ como pura subversao ajudou a alimentar a fantasia neoconseryadora de um mundo impermeével a subversio modernista. “O modernismo foi 0 grande sedutor”’, escreve Daniel Bell em As Contradigdes Culturais do Capitalismo. “O movimentg moderno subverte a unidade da cultura”, » “estilhaga a ‘cosmologia racional’ que subjaz & burguesa visto de um ‘mundo ordenado segundo bem-comportadas relagdes espaco-tempo” etc.” Se a serpente modernista pudesse ser expelida do éden moderno, espago, tempo e cosmo poderiam reordenar-se. Ai entao, presume-se, uma idade de ouro tecnopastoral surgiria, ¢ homens e mulheres pode- riam aninhar-sé apaziguados, para todo o sempre. ; \. A visio afirmativa do modernismo foi desenvolvida nos anos 60) Por um grupo heterogéneo de escritores, que reunia John Cage, Law: rence Alloway, Marshall McLuhan, Leslie Fiedler, Susan Sontag, Ri- chard Poirier, Robert Venturi. Coincidiu vagamente com a aparigao da Pop-art no inicio da década. Seus temas dominantes eram que nos devemos “despertar para a verdadeira vida que vivemos"’ (Cage) e “‘cru- zar a fronteira, eliminar a distancia” (Fiedler). Isto significou eli- minar as fronteiras entre a “arte” eas demais atividades humanas, como o entretenimento comercializado, a tecnologia industrial, a moda © o design, a politica/Também encorajou escritores, pintores, danga-, rinos, compositores.e cineastas a romper os limites de suas especiali-’ zagées € trabalhar juntos em produgées ¢ performances interdiscipli- nares, que poderiam criar formas de arte mais ricas e ‘polivalentes. \Para modernistas desse tipo, que As vezes se autodesignam “pés- modernistas’, 0 modernismo da forma pura e 0 modernismo da pura reyolta eram’ ambos muito estreitos, muito auto-indulgentes, muito castradores do espirito moderno}, Seu ideal era cada um abrir-se 4 imensa variedade e riqueza de coisas, materiais e ideais, que 0 mundo moderno inesgotavelmente oferece, Eles insuflaram ar novo e alegria em um ambiente cultural que, a partir da década de 50, vinha-se tor- nando insuportavelmente solene, rigido e fechado. Esse modernismo pop recriou a abertura para o mundo, a generosidade de visao de al- guns dos grandes modernistas do passadé. — Baudelaire, Whitman, Apollinaire, Maiakovski, William Carlos Williams. Mas, se esse mo- dernismo encontrou sua empatia imaginativa, nunca aprendeu a recap- turar seu lado critico. Quando um espirito criativo como John Cage aceitou a subyengao do x4 do Ira e€ montou espetaculos modernistas a poucas milhas de onde prisioneiros politicos gemiam e, morriam, a fa- Iha de imaginago moral nao foi apenas suaXO problema estava em que © modernismo pop nunca desenvolvei uma perspectiva critica que pudesse esclarecer até que ponto devia caminhar essa abertura para o mundo moderno e até que ponto o artista moderno tem a obrigagdo de - ver e denunciar os limites dos poderes deste mundo.*/ (*) A propésito do niilismo pop, em sua forma mais descontraida, considere-se o humor negro dosse mondlogo do arquiteto Philip Johnson, ao ser entrevistado por Susdn Sontag para a BBC, em 1968: : SONTAG: Eu acho, eu acho que em Nova Torque o seu senso estético se desenvolve de uma forma curiosa, bem mais moderna do que em qualquer outra parte. ‘Quando vocé vivencia -moralmente as coisas, isso provoca uri estado de continua indignaco e horror, mas (eles tiem), quando se tem uma espécie muito moderna de... JOHNSON: Voré acredita que o seriso de moral pode mudar, pelo fato de que no podemos usar a moral para julgar esta cidade, porque nio podemos suporté-la? E que estamos mu: dando todo 0 nosso sistema moral para adapti-lo ao fato de que vivemos de‘uma maricira Fidicula? SONTAG: Bem, eu acho que estamos tomando consciéncia dos limites de, da experiéncia moral das coisas. Eu acho que é possivel ser estético. JOHNSON: Para simplesmente degustar as coisas como elas so — 0 que vemos é uma beleza inteiramente diferente da que (Lewis) Mumford pode ver.» SONTAG: Bem, eu acho, eu julgo por mim mesma que agora eu vejo as coisas de uma ma- neiradividida, ao mesmo tempo morale. JOHNSON: Que beneficio traz.a vocé acreditar em coisas boas? SONTAG: Porque eu... 31 ~\ i l

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