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ey a aaa HISTORIA DO PROGRESSO RONALD WRIGHT UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO Tradugiio de CAROLINA ARAUJO EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO * SAO PAULO 2007 CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Wright, Ronald, 1948- W935b Uma breve histéria do progresso / Ronald Wright; tradugao de Carolina Aratjo. - Rio de Janeiro: Record, 2007. Tradugdo de: A short history of progress Inclui bibliografia ISBN 978-85-01-07381-5 1. Progresso = Hist6ria. 2. Civilizagao - Histdria. 3. Degradagao ambiental. I. Titulo. CDD - 303.4409 06-3543 CDU —- 316.422.4 Titulo original em inglés: A SHORT HISTORY OF PROGRESS. Copyright © Ronald Wright, 2004 Publicado mediante acordo com Canongate Books Ltd, Edinburgh. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugio, armazenamento ou transmissdo de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizacio por escrito. Proibida a venda desta edi¢io em Portugal e resto da Europa. Direitos exclusivos de publicagio em lingua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literéria desta tradugdo Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-07381-5 "By PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL afi. Caixa Postal 23.052 7 Rio de Janeiro, RI - 20922-970 prrona APILIADA Para minha mae, Shirley Phyllis Wright Had muito tempo... Ninguém dilacerava o solo com arados ou loteava a terra ou varria 9 mar com remos submersos — a costa era o fim do mundo. O astuta natureza humana, vitima de suas invengées, desastrosamente criativa, por que isolar cidades com muralhas elevadas? Por que se armar para a guerra? ‘Ovidio, Amores, livro 3 AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos a Bernie Lucht e John Fraser pelo seu apoio. A Martha Sharpe da Anansie a Philip Coulter da CBC por sua cuidadosa edicao e por suas titeis sugestées. ARichard Outram, Farley Mowat, Brian Brett e Jonathan Bennett pela gentileza de ler o manuscrito e pelos muitos comentarios valiosos. E, como sempre, 4 minha esposa, Janice Boddy, pela sua leitura rigorosa e pelos astutos comentarios. SUMARIO . As perguntas de Gauguin . A grande experiéncia . O paraiso dos tolos . Projetos de piramides Arevolta das ferramentas Notas Bibliografia indice 13 43 71 99 129 159 215. 227 AS PERGUNTAS DE GAUGUIN O PINTOR E ESCRITOR FRANCES Paul Gauguin — que, pelo que se conta, era louco, mau e perigoso — sofria grave- mente de vertigem cosmolégica provocada pela obra de Darwin e de outros cientistas vitorianos. Na década de 1890, Gauguin fugiu de Paris, da famf- lia e da carreira de corretor de agées para pintar (e se dei- tar com) meninas nativas dos trépicos. Como é comum as almas perturbadas, ele nao pdde escapar tao facilmen- te de si mesmo, apesar dos grandes esforcos feitos com 0 auxilio da bebida e do 6pio. No fundo da sua inquietude estava um desejo de descobrir o que ele chamava de “sel- vagem” — o homem (ea mulher) primordial, a humani- dade em estado cru, a fugidia esséncia da nossa espécie. Essa busca levou-o, por fim, ao Taiti e a outras ilhas dos mares do sul, onde vestigios de um mundo intacto— um mundo, aos seus olhos, anterior 4 decadéncia — subsis- tiam sob a cruz e o bleu-blanc-rouge. 14 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO Em 1897, um correio maritimo aportou no Taiti tra- zendo terriveis noticias. A filha predileta de Gauguin, Ali- ne, morrera repentinamente de pneumonia. Depois de meses de doenga, pobreza e um desespero suicida, 0 ar- tista canalizou o seu pesar em uma vasta producdo de pinturas — algo que, em sua concepcao, mais se aproxi- mava de um mural do que de uma tela! — na qual, como tinha acontecido na era vitoriana, ele procurava novas respostas para 0 enigma da existéncia. Com ousadia, ele escreveu 0 titulo da imagem: trés perguntas aparentemen- te infantis, simples, embora profundas. “D’Ou Vernions Nous? Que Sommes Nous? Ov Allons Nous?” De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? A obra é um vasto panorama de figuras enigmaticas em meio a um cendrio que poderia tanto ser os bosques de um Taiti pagado quanto os jardins de um Eden sem lei: devotos e deuses; gatos, passaros, um bode que descansa; um {idolo enorme com uma expressao serena e as Mos algadas ao céu, aparentemente apontando para o além; uma figura central colhendo um fruto; uma Eva, a mae da humanidade, que nao é uma inocente voluptuosa como as outras mulheres da obra de Gauguin, mas, sim, uma bru- xa enrugada de olhar penetrante inspirada por uma mti- mia peruana. Uma outra figura volta-se com espanto para um jovem casal humano que, como escreveu 0 artista, “ousava pensar sobre o seu destino”? A terceira pergunta — Para onde vamos? — € 0 tema a que quero me dedicar neste livro. Ela parece irrespon- divel. Quem pode predizer o percurso humano ao longo do tempo? Mas eu penso que podemos respondé-la, em li- nhas gerais, ao respondermos primeiramente as outras AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 1s duas questées. Se virmos claramente 0 que somos € o que fizemos, podemos reconhecer o comportamento humano que persiste através dos tempos e das culturas. Sabé-lo pode nos revelar o que provavelmente faremos, para onde provavelmente iremos depois daqui. Anossa civilizacdo, que abrange a maior parte de seus predecessores, é um grande navio movendo-se rapidamen- te em direcdo ao futuro. Ele viaja mais rapido, vai mais longe € est4 mais sobrecarregado do que todos os outros antes dele. Nés podemos ndo ser capazes de prever todos os obstaculos e riscos, mas, ao prestarmos atengéo ao rumo da bissola e ao seu avanco, ao compreender o seu proje- to, os seus dispositivos de seguranga e as habilidades da tripulacdéo, podemos, penso eu, tragar um percurso pru- dente entre os estreitos e os recifes que assomam adiante. Creio que devernas fazer isso sem demora, porque ha naufragios as nossas costas. A nau na qual agora estamos embarcados n4o é apenas a maior de todos os tempos, ela € a tinica que restou. O futuro de tudo que realizamos desde a evolucdo de nossa inteligéncia dependera da sa- bedoria de nossas agdes ao longo dos préximos anos. Tal como todas as criaturas, os seres humanos conquistaram o seu lugar no mundo até aqui por meio de tentativas e erros; diferentemente das outras criaturas, a nossa pre- senca € hoje tao colossal que o erro tornou-se um luxo que nao podemos mais sustentar. O mundo tornou-se peque- no demais para nos perdoar de qualquer grande erro. Apesar de certos acontecimentos do seculo XX, a maior parte das pessoas na tradic¢ao cultural ocidental ainda acre- dita no ideal vitoriano de progresso, uma crenga sucinta- 16 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO mente definida pelo historiador Sidney Pollard, em 1968, como “o pressuposto de que exista um padrao de mudan- ¢ana histéria da humanidade... que consista em mudangas irreversiveis em uma tnica diregdo e que essa direcao seja o aprimoramento”.’ O préprio surgimento na Terra de cria- turas que possam esbocar um tal pensamento sugere que 0 progresso é uma lei da natureza: o mamifero é mais ve- loz do que 0 réptil, o macaco € mais astuto que 0 touroeo homem € 0 mais inteligente de todos. A nossa cultura tec- nolégica mede o progresso humano pela tecnologia: 0 porrete é melhor do que o punho, 0 arco é melhor do que o porrete, a bala é melhor do que o arco. Chegamos a essa crenca por razGes empiricas: porque assim se deu. Pollard nota que a idéia de progresso material é muito recente —“significativa apenas nos tiltimos trezentos anos mais ou menos”* — e coincide intimamente com o sur- gimento da ciéncia e da industria e com o correspondente declinio das crengas tradicionais.* Nao mais nos dedica- mos a pensar sobre o progresso moral — uma preocupagdo primordial nos tempos anteriores —, a nao ser para su- por que ele caminhe de maos dadas com 0 progresso material. Pessoas civilizadas, tendemos a pensar, nao ape- nas cheiram melhor, mas também se comportam melhor do que os barbaros ou selvagens. Essa nogao teve muitos problemas para se sustentar no tribunal da histéria, e eu voltarei a ela no préximo capitulo, quando a questao sera 0 que significa “civilizagdo”. Nossa fé pratica no progresso se ramificou e se crista- lizou em uma ideologia — uma religiao secular que, tal como as religides que o progresso desafiou, é cega diante de certas falhas nas suas credenciais. O progresso, por- AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 17 tanto, tornou-se um “mito” no sentido antropoldgico. Por mito eu nao entendo uma crenga fragil ou inverfdica. Mitos bem-sucedidos sao poderosos e, no mais das vezes, parcialmente verdadeiros. Como escrevi em outra ocasiao: “O mito é uma organizacao do passado, seja real ou ima- ginado, em modelos que reforgam os mais profundos va- lores e aspiragées de uma cultura.., Os mitos sdo tao repletos de significado que nés vivemos e morremos por eles. Eles sao os mapas pelos quais as culturas navegam ao longo do tempo.” O mito do progresso por vezes também nos foi muito util — ao menos aqueles de nés sentados as melhores mesas — e pode continuar a sé-lo. No entanto, pretendo argumentar neste livro que ele também se tornou perigo- so. O progresso tem uma légica interna que pode ultra- passar a razao e nos levar a catastrofe. Uma sedutora trilha de sucessos pode terminar em uma armadilha. Tomemos as armas por exemplo. Desde que os chine- ses inventaram a pélvora, houve grandes progressos na producdo de explosivos: das bombinhas ao canhao, do petardo a4 cdpsula de alta explosividade. Precisamente quando os grandes explosivos estavam alcancgando 0 es- tdgio da perfeicdo, 0 progresso encontrou no 4tomo uma explosdo infinitamente maior. Mas quando a explosdo que detonamos pode destruir o nosso mundo, é de se pensar que tenhamos tido progresso em demasia. Muitos dos cientistas que criaram a bomba atémica reconheceram essa questdo na década de 1940, dizendo aos politicos ¢ a outros que as novas armas deveriam ser destruidas. “O poder desencadeado pelo 4tomo mudou tudo, exceto o nosso modo de pensar”, escreveu Albert 18 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO Einstein, “e com isso somos inadvertidamente levados a catdstrofes sem paralelo.” Alguns anos mais tarde, 0 pre- sidente Kennedy diria que, “se a humanidade nao colo- car um fim a guerra, a guerra pord um fim 4 humanidade”. Quando eu era crianga, na década de 1950, a sombra de um progresso excessivo na artilharia — de Hiroshima, Nagasaki e outras ilhas dissipadas no Pacifico —ja paira- va sobre o mundo. Agora ela completa sessenta anos de assombro em nossas vidas, e tanto ja foi dito sobre o tema que eu nao preciso acrescentar mais nada,” O meu argu- mento aqui é que a tecnologia armamentista foi apenas a primeira das areas do progresso humano a chegar a um impasse causado pela ameaga de destruir o planeta no qual ela foi desenvolvida. Naquele tempo, essa armadilha do progresso foi vista como uma aberragao. Em todos 0s outros campos, incluin- do os da energia nuclear e dos pesticidas quimicos, a crenca geral no progresso restava inabalavel. Os antincios comer- ciais da década de 1950 mostravam uma sorridente “Sra. 1970”, que, tendo comprado determinada marca de aspi- rador de p6, desfrutava o futuro antecipadamente. O au- tomével de cada ano parecia ser diferente do modelo do ano anterior (especialmente quando ndo era). “Maior! Mais amplo! Mais resistente!”, cantavam as meninas em um jingle, e os fabricantes de automéveis eram os gran- des entusiastas, naquele tempo tanto quanto hoje, da ven- da do maior como o melhor. Enquanto isso, no que ficou conhecido como Terceiro Mundo — aquela tapegaria em frangalhos de culturas nao-ocidentais, vista como uma reliquia do “atraso” dividida pelas superpoténcias —, os camponeses se livravam das pragas com generosas bafo- AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 19 radas de DDT. Em ambas as suas vers6es, a capitalistaea comunista, a grande promessa da modernidade era 0 pro- gresso sem limite e sem fim. O colapso da Unido Soviética levou muitos a concluir que realmente havia apenas um caminho para o progres- so. Em 1992, Francis Fukuyama, antigo funciondrio do Departamento de Estado norte-americano, declarou que o capitalismo e a democracia eram o “fim” da hist6ria — nado apenas o seu destino, mas o seu objetivo.’ Alguns criticos ainda apontaram que o capitalismo e a democra- cia ndéo andam necessariamente de mos dadas, citando a Alemanha nazista, a China moderna e 0 arquipélago de tiranias exploradoras espalhado por todo o mundo. Nao obstante, o triunfalismo ingénuo de Fukuyama reforgou uma crenca, principalmente na politica direitista, de que aqueles que nao escolheram o verdadeiro caminho do. avango devem ser forgados a fazé-lo para o seu préprio bem — se necessario, pela forga. Nesse aspecto ¢ no interesse pessoal que ele disfarga, a atual ideologia do progresso muito se assemelha aos projetos missionarios dos impérios passados, sejam eles o do Isla do século VIL, o da Espanha do século XVI ou o da Gra-Bretanha do século XIX. Desde o fim da Guerra Fria, temos mantido o génio nuclear na praia, mas ainda nao comegamos a enfid-lo de volta na garrafa. Mesmo assim, estamos ocupados em de- sencadear outras forcas poderosas — a cibernética, a biotecnologia e a nanotecnologia—, das quais esperamos que se revelem boas ferramentas, mas cujas conseqtién- cias nao podemos prever. 20 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO Aameaca mais imediata, no entanto, pode ser algo tao glamoroso quanto o nosso préprio lixo. Assim como a maior parte dos problemas da tecnologia, a poluigéo é uma questdo de escala. A biosfera poderia ter sido capaz de tolerar nossos velhos amigos poluidores, 0 carvao e 0 pe- tréleo, se nés os tivéssemos queimado gradualmente. Porém, até quando ela poderd suportar um fervor de con- sumo tao frenético, que faz com que 0 lado escuro do nosso planeta brilhe como uma brasa incandescente na noite do espaco? Alexander Pope disse, de maneira um tanto esnobe, que pouco aprendizado é algo perigoso; Thomas Huxley mais tarde perguntou: “Onde esté o homem que tem 0 suficiente para estar livre do perigo?”® A tecnologia vicia. O progresso material cria problemas que s4o0 — ou apa- rentam ser — solucionaveis apenas por um progresso maior. Mais uma vez 0 mal aqui esta na escala: um bom explosivo pode ser Gtil, um explosivo melhor pode acabar com o mundo. Até aqui falei de tais problemas como se eles fossem puramente modernos, como se surgissem das tecnologias industriais. Mas se o progresso forte o suficiente para des- truir o mundo é de fato moderno, o mal da escala, que transforma beneffcios em armadilha, nos aflige desde a Idade da Pedra. Esse mal vive em nds e aflora toda vez que levamos vantagem sobre a natureza, desestabilizando o equilfbrio entre a astticia e a imprudéncia, entre a ne- cessidade e a cobica. Os cagadores paleoliticos que aprenderam a matar dois mamutes de uma vez obtiveram progresso. Aqueles que aprenderam a matar duzentos — ao conduzir todo o AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 21 rebanho para um precipicio— obtiveram demais. Eles vi- veram esplendidamente por um tempo, depois morreram de fome. Muitas das grandes ruinas que hoje decoram os de- sertos e as florestas da Terra sio monumentos as armadi- lhas do progresso, lapides de civilizagées que se tornaram vitimas de seu préprio sucesso. Nos destinos de tais socie- dades — outrora poderosas, complexas e brilhantes — estado as mais instrutivas ligdes para nds préprios. As suas ruinas sao naufragios que marcam os bancos de areia na rota do progresso, ou — para usar uma analogia mais mo- derna — sao avides que cafram, cujas caixas-pretas podem nos revelar o que houve de errado. Neste livro eu preten- do examinar algumas dessas caixas, na esperanga de que possamos evitar a repeticado de erros passados em relagaéo ao plano de véo, a escolha da tripulagao e ao projeto inicial. Naturalmente, as particularidades da nossa civilizagao diferem das de anteriores, mas nao tanto quanto gostaria- mos de pensar. Todas as culturas, passadas e presentes, sao dinamicas; mesmo as que se desenvolveram mais len- tamente se mostraram, a longo prazo, em progressao. Se, por um lado, os fatos de cada caso diferem entre si, por outro, os modelos ao longo do tempo sdo espantosamente — e estimulantemente — similares. Deveriamos nos es- pantar pela previsibilidade de nossos erros, mas também nos animar, porque esse préprio fato torna-os titeis para a compreensao daquilo com que nos defrontamos hoje. Asemelhanga de Gauguin, freqiientemente preferimos pensar no passado longinquo como algo inocente e intacto, um tempo de tranqiiilidade e plenitude anterior 4 expul- s4o do paraiso. As palavras “Eden” e “paraiso” aparecem 22 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO com proeminéncia nos titulos de livros populares sobre antropologia e hist6ria. Para alguns, o Eden era um mun- do pré-agricola, a era da cagada e da colheita, para outros, ele era o mundo pré-colombiano, as Américas antes do homem brancoe, para muitos, ele era o mundo pré-indus- trial, a grande imobilidade anterior a maquina. Com certe- za houve tempos bons e ruins para se viver. Mas a verdade € que os seres humanos conquistaram a sua expulsao do Eden e o fizeram repetidas vezes ao desonrar 0 seu pr6- prio ninho. Se quisermos viver em um parafso terrestre, cabe a nés molda-lo, compartilha-lo e dele cuidar. Ao ponderar sobre a sua primeira pergunta — De onde viemos? —, Gauguin talvez concordasse com G. K. Chesterton, que observou: “O homem é uma excegao, seja ele o que for... Se nao é verdade que um ser divino caiu, entao podemos apenas dizer que um dos animais enlou- queceu completamente.”’° Agora sabemos tao mais sobre 0 processo de enlouquecimento de um macaco ao longo de cinco milhdes de anos que é dificil, hoje, recapturar o choque sentido em todo o mundo quando as implicagées da teoria evolucionista se tornaram claras pela primeira vez. Aoescrever em 1600, Shakespeare fez com que Hamlet exclamasse: “Que obra de arte 6 um homem! Tao nobre pela razao! Tao infinito pela capacidade!... Em agéo como se assemelha a um anjo! Em apreensdo como se asseme- lha a um deus!”"” A sua platéia teria compartilhado esse misto de maravilha, escarnio e ironia de Hamlet frente a natureza humana, porém muito poucos duvidariam, se é que alguém o faria, de que ela foi feita tal como narrou a AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 23 Biblia: “E Deus disse, fagamos o homem a nossa imagem e semelhanga.” Eles estavam preparados para desconsiderar os pon- tos teolégicos polémicos introduzidos pelo sexo, pela raga e pela cor. Deus era negro ou louro? Ele tinha umbigo? E o que dizer do resto de seus atributos fisicos? Tais coisas nao suportam uma reflexéo muito apurada. Nossa afini- dade com os macacos, que parece tao ébvia agora, era insuspeitada; os macacos eram vistos (quando vistos, uma vez que eram raros na Europa naquele tempo) como pa- rédias do homem, nao como primos ou possfveis ante- passados. Se alguma vez as pessoas de 1600 chegassem a pensar sobre isso, a maior parte acreditaria que o que nés agora chamamos de método cientifico simplesmente abriria as portas e iluminaria o grande mecanismo elaborado pela Providéncia, porque Deus julgou conveniente permitir aos homens compartilhar a admiracao pelo Seu trabalho. As idéias inc6modas de Galileu sobre a estrutura dos céus, nao comprovadas e€ nao assimiladas, foram uma bomba que nao explodiu (Hamlet ainda defende um universo pré- copernicano, um “grande firmamento suspenso”). O choque inevitavel entre a fé nas escrituras e a evidéncia empirica mal era conjecturado. A maior parte das verda- deiras grandes surpresas —a idade da Terra, a origem dos animais e do homem, a forma e o tamanho dos céus — ainda demoraria muito. A maioria das pessoas de 1600 estava muito mais preocupada com os padres e as bruxas do que com os filésofos da natureza, embora as fronteiras que distinguiam esses trés fossem em geral ténues. 24 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO Partindo da definigdo biblica do homem e do princf- pio do senso comum de que é preciso ser para conhecer, Hamlet acredita saber 0 que é 0 ser humano, e boa parte dos ocidentais continuou acreditando, por mais duzentos anos, saber 0 que era. O mal-estar causado pela divida racional em relagao ao nosso principio sé surgiu no sécu- lo XIX, quando os gedélogos perceberam que a cronologia da Biblia nao dava conta da antiguidade que eles consta- tavam nas rochas, nos fésseis e nos sedimentos, Algumas civilizagdes, notadamente a civilizagao maia e a hindu, su- punham que o tempo era vasto ou infinito, a nossa, ao contrario, sempre teve uma nocdo reduzida da sua esca- la. “O pobre mundo tem quase seis mil anos de idade”, suspira Rosalinda em Como gostais,!* uma tipica estimati- va derivada da era do patriarcado, das “genealogias” e de outros indicios no Antigo Testamento. Meio século depois do suspiro de Rosalinda, o arcebispo Ussher de Armagh e seu contemporaneo John Lightfoot tomaram para si a tarefa de determinar 0 momento exato da Criagao. “O homem foi criado pela Trindade”, declarou Lightfoot, “em 23 de outubro de 4004 a.C., as nove horas da manha.”” Essa precisao era novidade, mas a idéia de uma Terra jovem sempre foi essencial a visdo judaico-crista do tem- po como teleol6gico — uma breve viagem, sem retorno, da Criacd4o ao Juizo Final, de Addo ao Apocalipse. Newton e outros pensadores comecaram a dar voz a dtividas sobre esses fundamentos teéricos, mas eles nao dispunham de nenhuma evidéncia concreta ou de meios para testar as suas idéias. Foi assim que, na década de 1830, enquanto ojovem Charles Darwin navegava pelo mundo a bordo do Beagie, Charles Lyell publicou o seu Principles of Geology, AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 25 argumentando que a Terra se transformava gradualmen- te, por processos ainda em atividade e que, portanto, po- deria ser tao velha quanto Newton propusera — cerca de dez vezes a idade conferida pela Biblia.* Sob o reinado da rainha Vitéria, a Terra envelheceu rapidamente — muitos milhées de anos em décadas—, 0 suficiente para abrir espaco para o mecanismo evolucio- nista de Darwin e para a crescente colegao de lagartos gi- gantes e fésseis de homens da caverna descobertos em todo o mundo e expostos na regiao de South Kensington € no Palacio de Cristal.'* Em 1863, Lyell publicou um livro chamado Geological Evidences of the Antiquity of Man, e,em 1871 (12 anos depois de seu A origem das espécies), Darwin publicou A origem do homem. As suas idéias eram popularizadas por divul- gadores entusidsticos, sobretudo por Thomas Huxley, fa- moso por declarar, em um debate sobre a evolucdo com 0 bispo Wilberforce, que preferiria reconhecer um macaco como o seu bisavé do que ser um padre que nao se impor- ta com a verdade.!* A exclamagao de Hamlet tornou-se, portanto, uma questao: o que exatamente ¢é um homem? Tal como criangas que chegam a uma idade em que nao mais se satisfazem com a versao de que uma cegonha as trouxe ao mundo, um publico recentemente educado co- megou a duvidar da antiga mitologia. Enquanto Gauguin pintava a sua obra-prima no final do século, as duas primeiras perguntas que formulara obtinham respostas concretas. A sua compatriota Madame Curie e outros que trabalhavam com radioatividade des- cobriam naquele momento os registros cronolégicos da natureza: elementos nas rochas que se destrufam em um 26 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO ritmo mensuravel. Em 1907, os naturalistas Boltwood e Rutherford puderam mostrar que a idade da Terra deveria ser calculada nao em milhées, mas em bilhdes de anos.'” A arqueologia mostrou que o género Homo era um retar- datdério, mesmo entre os mamiferos, e que ganhou forma muito tempo depois de os primeiros porcos, gatos e ele- fantes comegarem a caminhar sobre a Terra (ou, no caso das baleias, desistirem de andar e resolverem nadar). “O Homem”, escreveu H. G. Wells, “é um mero emergente.””'* O que era extraordindrio no desenvolvimento huma- no — aquele ponto importante que nos separava das ou- tras criaturas — era que nds “alavancavamos” a evolucao natural pelo desenvolvimento de culturas transmissiveis de uma gerac4o a outra por meio do discurso. “A palavra humana”, escreveu Northrop Frye em um outro contex- to, “é o poder que ordena o nosso caos.”’ O efeito desse poder nao tinha precedentes e permitia ferramentas com- plexas, armas e comportamentos minuciosamente plane- jados, Até mesmo a mais simples tecnologia teve enormes conseqtiéncias. O vestudrio bdsico e o abrigo construfdo, por exemplo, abriram-nos as portas de todos os climas, dos trépicos a tundra. Ultrapassamos os ambientes que nos geraram e comecamos a gerar a nds mesos. Embora tenhamos nos tornado as cobaias de nossos préprios projetos, é importante ter em mente que nao ti- nhamos a menor idéia desse processo, muito menos de suas conseqiiéncias, até as tiltimas seis ou sete de nossas 100 mil geragées. Fizemos tudo isso como sondmbulos. A natureza pés alguns macacos no laboratério da evolugao, ligou as luzes e nos deixou 14, brincando com um supri- mento sempre crescente de ingredientes e processos. AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 27 O efeito que se reflete em nés e no mundo, desde entao, s6 faz acummular. Listemos alguns dos passos que nos se- param dos primeiros tempos: as pedras polidas, as peles de animais, os titeis pedagos de osso ou madeira, o fogo descontrolado, o fogo dominado, as sementes para 0 plan- tio, as casas, as vilas, a ceramica, as cidades, os metais, as rodas, os explosivos. O que mais surpreende é, sem dtivida, a aceleracao, a progressdo desgovernada da mudanga — ou, colocando de outro modo, o colapso do tempo. Da pri- meira pedra lascada ao primeiro ferro fundido foram ne- cessdrios aproximadamente trés milhdes de anos; do primeiro ferro 4 bomba de hidrogénio, apenas trés mil. A Idade da Pedra, ou Era Paleolitica, estendeu-se do sur- gimento dos hominideos produtores de ferramentas, hd cerca de trés milhdes de anos, até o derretimento da Ulti- ma Era Glacial, ha cerca de 12 mil anos. Ela abrange mais de 99,5% da existéncia humana. Durante a maior parte desse tempo, o ritmo da mudanga era tao lento que tradi- ¢Ges culturais inteiras (reveladas principalmente por meio de seus conjuntos de ferramentas de pedra) se repetiam, geracdo apdés geragdo, quase que identicamente durante longos perfodos de tempo. Poderia levar 100 mil anos para que um novo estilo ou técnica fosse desenvolvido; poste- riormente, quando a cultura comegou a se ramificar e a se alimentar de si prépria, apenas 10 mil; ainda depois, apenas milénios ou séculos. A mudanga cultural implica a mudanga fisica e vice-versa, em um circulo sempre rea- limentado. Hoje em dia alcangamos uma tal marcha que as prati- cas e Os Costumes que aprendemos na infancia ja se tor- 28 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO naram obsoletos ao completarmos trinta anos, e s40 pou- cas aS pessoas com mais de cingiienta anos que conse- guem, mesmo tentando, manter-se em dia com a sua cultura — seja em termos de idioma, de atitudes, de gos- to ou de tecnologia. Mas eu ja estou me antecipando a histéria. A maior parte das pessoas que vivia na Idade da Pedra nao seria, de modo algum, capaz de perceber qual- quer mudanga cultural. O mundo humano em que 0s in- dividuos eram inseridos ao nascer era 0 mesmo que eles deixavam ao morrer, Havia, obviamente, variagao de even- tos — festas, fome, triunfos e desastres locais —, porém, os padrées internos de cada sociedade certamente pare- ciam imutdveis. Havia apenas um modo de se fazer as coi- sas, uma Unica mitologia, um nico vocabulario, um grupo de histérias; as coisas eram exatamente do modo que eram. E possivel imaginar excegdes ao que acabo de dizer. A geracao que viu o primeiro uso do fogo, por exemplo, pro- vavelmente teve consciéncia de que o seu mundo mudara. Mas nés nao podemos nos certificar da velocidade segun- doa qual mesmo essa descoberta prometéica se desenvol- veu. B bem possfvel que o fogo tenha sido usado, quando disponivel em incéndios naturais ou em vulcdes, muito tempo antes de ele ser mantido. Depois disso, ele foi man- tido por um longo tempo antes que alguém aprendesse como ele poderia ser feito. Alguns devem lembrar-se do filme de 1981, A guerra do fogo, no qual a figura agil de Rae Dawn Chong corre de um lado para 0 outro coberto por uma fina camada de lama e cinzas. O filme se baseou em um romance publicado em 1911 pelo escritor belga J. H. Rosny.” O titulo original de Rosny era La guerre du feu eo AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 29 livro, mais do que o filme, explora a competicao mortal entre varios grupos humanos para monopolizar o fogo de modo muito semelhante aquele no qual as nagGes moder- nas tentam monopolizar as armas nucleares. Ao longo de centenas de séculos, nos quais os nossos ancestrais pre- servavam a chama, mas nao conseguiam produzi-la, ex- tinguir a fogueira de seus rivais durante o inverno da Era Glacial era um ato de assassinato em massa. O primeiro dominio sobre o fogo é dificil de ser data- do. Tudo o que sabemos é que as pessoas dele se utiliza- vam ha pelo menos meio milhdo de anos, possivelmente 0 dobro disso.?! Esse foi o momento do Homo erectus, 0 “homem ereto”, que era muito semelhante a nds do pes- cogo para baixo, mas apresentava uma caixa craniana com apenas dois tercos da capacidade moderna. Os antropélo- gos ainda discutem sobre o momento da primeira apari- ao do Homo erectus e quando ele e ela foram suplantados, o que é, em suma, uma quest4o de definicado do estagio evolutivo. Os académicos se dividem ainda mais quando © assunto é o grau da capacidade do erectus de pensar e falar. Os macacos modernos, cujos cérebros s4o muito me- nores do que o do erectus, usam ferramentas simples, tém um amplo conhecimento de plantas medicinais e sao ca- pazes de se reconhecer em um espelho. Estudos que utili- zam linguagem nao-verbal (simbolos de computador, linguagem de sinais etc.) mostram que os macacos podem empregar um vocabulario de muitas centenas de “pala- vras”, embora haja discordancia sobre o significado dessa habilidade em relagaéo 4 comunicagéo dos macacos selva- gens. Esté claro que diferentes grupos da mesma espécie 30 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO —por exemplo, chimpanzés, em partes separadas da Afri- ca —tém habitos e tradigées diferentes, transmitidos aos mais novos tal como nos grupos humanos. Em suma, os macacos tém o germe da cultura. O mesmo acontece com outras criaturas inteligentes, como as baleias, os elefantes € certos pdssaros, porém nenhuma espécie, a excecao da humana, alcangou o ponto em que a cultura se torna o principal condutor de uma onda evolutiva, ultrapassan- do limitagdes ambientais e fisicas. As linhagens do homem e do macaco se separaram ha cerca de cinco milhées de anos e, como mencionei, os ho- minideos produtores de ferramentas elementares de pe- dra apareceram cerca de dois milhées de anos mais tarde. Seria, portanto, ingénuo subestimar as habilidades do Homo erectus, que, hd meio milhao de anos, ao aquecer seus pés calejados em uma fogueira, representava 0 marco de nove décimos ja percorridos no caminho que vai do ma- caco ancestral até nés. Com o dominio do fogo, surgiu o primeiro pico no grdfico das estatfsticas humanas. O fogo tornava a vida muito mais facil em muitos ambientes; ele mantinha as cavernas aquecidas e os grandes predadores afastados. O cozimento e a defumacao aumentaram imen- samente a provisdo confidvel de comida. A queima da vegetacdo rasteira ampliou as terras rocadas destinadas a caga. Agora se reconhece que muitas das paisagens, supos- tamente selvagens, habitadas ao longo dos tempos his- t6ricos por cagadores e colhedores — as pradarias norte-americanas e os desertos australianos, por exemplo — foram geradas pela queimada deliberada”“O homem”, escreveu 0 grande antropélogo e escritor Loren Eiseley, “é AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 31 ele mesmo uma chama. Ele queimou todo o mundo ani- male se apropriou de seus vastos estoques de proteina.”” O ultimo grande ponto de acordo entre os especialis- tas 6 que o Homo erectus se originou na Africa, a terra dos primeiros hominfdeos, e viveu, durante aproximadamente um milhdo de anos, em varias zonas temperadas e tropi- cais do “antigo mundo”, a massa de terra contigua da Eurasia. Isso nao significa que o “homem ereto” ocupas- se densamente essa 4rea, mesmo depois de ter dominado o fogo. Provavelmente, pouco menos de 100 mil pessoas, dispersas em bandos familiares, era tudo 0 que se encon- trava entre o fracasso evolutivo e os seis bilhGes que nés somos aqui hoje.* Depois do Homo erectus, o caminho evolutivo torna-se barrento, pisoteado pelas tribos rivais de antropdlogos até transformar-se em um lamagal. Um grupo, o da hipétese “multirregional”, vé 0 Homo erectus se desenvolvendo por combinacGes, por meio da difusdo genética, até a huma- nidade moderna, em todos os lugares que lhe aconteceu de estar presente, algo também conhecido como a misci- genac¢ao com estranhos, Essa visdo parece ajustar-se bem as diversas descobertas de fésseis, contudo é menos com- pativel com algumas interpretagoes de DNA. Um outro grupo —a escola da “monogénese africana” — vé a maior parte das mudangas evolutivas ocorrendo naquele conti- nente e posteriormente irrompendo pelo resto do mun- do.” Nessa segunda perspectiva, ondas sucessivas de novos seres humanos mais aperfeigoados eliminam ou, de certa forma, neutralizam os seus predecessores sempre que os encontram, até que todos os inferiores desaparecam. Essa teoria implica que cada nova onda de homens afri- 32 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO canos foi uma espécie a parte, incapaz de se reproduzir com outros descendentes do género anterior — 0 que pode ser plausfvel, caso tipos diferentes tenham se desenvolvi- do sem contato por longos perfodos, mas que é menos pro- vavel em espagos de tempo mais breves.”* O debate sobre o caminho do progresso humane torna-se mais acalorado quando chegamos aos nossos controver- sos primos, os neandertais. Eles viveram principalmente na Europa e no noroeste da Asia em tempos bem recentes — dentro do tltimo vinte avos da jornada humana. Um Gauguin neandertal, descongelado pelo derretimento de uma geleira hoje, poderia acordar e perguntar: “Quem éramos? De onde viemos? Para onde fomos?” As respos- tas dependeriam daquele de quem ele se aproximasse. Os especialistas nado conseguem concordar sequer sobre o seu nome cientifico. Arredondando os ntimeros, os neandertais apareceram ha cerca de 130 mil anos e desapareceram cerca de 100 mil anos depois. A data de “chegada” é menos certa do que a de partida, mas parece que eles evoluiram mais ou menos simultaneamente aos primeiros exemplos do que se pemsou ser o nosso género moderno — em geral cha- mado de cro-magnon, nome retirado de uma caverna na bela regiéo da Dordonha, no sul da Franga, onde o regis- tro de fésseis humanos € 0 mais rico do mundo. Desde que foram identificados pela primeira vez, os neandertais foram a base do que eu chamo de “paleorra- cismo”, ridicularizados nos esteredtipos de homens da caverna de desenhos animados, uma raga subumana, encurvada e manca. H. G. Wells chamou-os de “povo hor- AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 33 roroso” e fez conjecturas indelicadas sobre a sua provavel aparéncia: “Uma fronte extremamente cabeluda, feia, de uma estranheza repulsiva, seu semblante de besouro, seu pescoco de macaco e sua estatura inferior.”*” Muitos ar- gumentaram que os neandertais eram canibais, o que poderia ser verdade, uma vez que nés também o somos — os humanos posteriores tém um amplo registro de ca- nibalismo chegando até os tempos modernos.”* O primeiro esqueleto neandertal foi desencavado em 1856 de uma caverna em um vale perto de Diisseldorf, na Alemanha. O lugar recebera seu nome em homenagem ao compositor Joachim Neumann, que, de maneira bem pre- tensiosa, havia adotado a tradugao grega de seu sobre- nome, “Neander”. Em inglés, Neanderthal é apenas “Newmandale”, o vale do novo homem. Um nome bem apropriado: um novo homem de fato veio a luz naquele vale, um novo homem de, pelo menos, 30 mil anos de idade. Nao que a antigiiidade do homem de Neandertal tenha sido imediatamente reconhecida. Os franceses, ao notar a espessura do cranio, tenderam a pensar que per- tencia a um alemAo. Os alemaes disseram que provavel- mente era de um eslavo, um mercendrio cossaco que havia se embrenhado na caverna e morrido.” Porém, apenas trés anos depois, em 1859, duas coisas importantes acontece- ram: Darwin publicou A origem das espécies e Charles Lyell, ao visitar os cascalhos do rio Somme (local que menos de 60 anos depois se tornaria um infame abatedoure huma- no), identificou algumas pedras lascadas como armas da Era Glacial. Ao reconhecerem que o homem de Neandertal nao era um cossaco, os cientistas da época o escalaram para o 34 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO papel, recentemente inventado, de “elo perdido” —aquela criatura imaginéria flutuando em algum lugar no meio da pagina evolutiva entre 0 macaco e nés. O novo homem tornou-se 0 homem certo no momento certo, aquele que, “em seu soturno siléncio e mistério, demonstraria... 0 im- pensavel: que os seres humanos eram animais”.»° Pressu- pés-se que tivesse pouco ou nenhum poder de fala, que corresse como um babufno e que caminhasse sobre a par- te externa de seus pés. Mas, 4 medida que mais ossos eram desencavados e analisados, essa visdo nao conseguiu se sustentar. Dos esqueletos mais “simiescos” foi descober- to que sofriam de artrite, eram individuos seriamente deficientes que haviam evidentemente sido sustentados por sua comunidade durante anos. Também veio a tona a evidéncia de que aquele “povo horroroso” nao apenas se preocupava com os seus doentes, mas também enterrava OS seus mortos com ritos religiosos — com flores, ocre e chifres de animais —; era o primeiro povo na Terra de que se soube que fizesse isso. E por tiltimo, mas nado menos importante, o cérebro neandertal revelou-se maior do que 0 nosso. Talvez o Homo neandertalensis nao fosse, ao final das contas, tao bruto assim. Talvez ele devesse ser promo- vido a uma subespécie do homem moderno: Homo sapiens neandertalensis e, se assim fosse, as duas variantes pode- riam, por definigdo, mesclar-se.*! Antes de que ambos comecassem a se rivalizar na Eu- ropa, Os cro-magnons viviam ao sul do Mediterraneo e os neandertais ao norte. Naquela época, tal como hoje, 0 Oriente Médio era uma encruzilhada. Pontos de habita- 40 naquela regiao turbulenta mostram ocupagao tanto de neandertais quanto de cro-magnons, a comegar por AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 35 volta de 100 mil anos atras. Nao podemos dizer se chega- ram a viver ali exatamente ao mesmo tempo, nem sequer se compartilharam a Terra Santa de maneira harmonio- sa. Muito provavelmente o seu acordo era um tipo de alternancia de turnos, segundo o qual os neandertais se moviam da Europa para o sul durante perfodos especial- mente frios da Era Glacial e os cro-magnons se moviam da Africa para o norte sempre que o clima esquentava. O que € mais interessante é que a cultura material dos dois grupos, tal como é mostrada por seus artefatos, foi idén- tica ao longo de um periodo de mais de 50 mil anos. Os arquedlogos encontram dificuldades em responder se uma determinada caverna era ocupada por neandertais ou por cro-magnons caso um osso humano nao seja encontrado junto as ferramentas. Tomo isso como uma forte evidén- cia de que os dois grupos tinham capacidades mentais e lingttisticas muito semelhantes e que nenhum deles era mais primitivo ou “menos evoluido”. Nenhuma carne, pele ou cabelo neandertal veio a luz até hoje, de modo que nao podemos dizer se esses indivi- duos eram morenos ou louros, cabeludos como Esai ou imberbes como Jacé. Também nado sabemos muito sobre a aparéncia externa dos cro-magnons, embora os estudos genéticos sugiram que a maior parte dos modernos euro- peus descenda deles.** Conhecemos esses povos apenas através de seus ossos. Ambos tinham mais ou menos a mesma altura, algo entre 1,50 a 1,85 metro, com a usual variagdo entre os sexos. No entanto um deles era estru- turado para a forca, enquanto 0 outro era para a velocida- de. O neandertal era troncudo e musculoso, como um halterofilista ou um lutador profissional. O cro-magnon 36 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO era mais fragil e delicado, com uma figura mais pr6xima do atleta do que do fisicultor. B dificil saber até que ponto essas eram diferengas inatas ou o quanto refletiam o ha- bitat e o estilo de vida. Em 1939, o antropélogo Carleton Coon realizou uma interessante reconstrugdo de um neandertal, fazendo-o asseado, barbeado e vestido de ter- no, gravata e chapéu. Aquele homem, notou Coon, pode- ria passar despercebido no metré de Nova York. Como sugerem essas analogias, a variagao entre os es- queletos neandertal e cro-magnon nao escapa muito a gama dos humanos modernos. Colocados lado a lado, os restos mortais de Arnold Schwarzenegger e Woody Allen podem apresentar um contraste semelhante. O cranio, contudo, é uma outra quest4o. O chamado neandertal clas- sico (um termo impréprio devido a sua auto-referéncia, baseada nos exemplos mais proeminentes) tinha um cra- nio longo e baixo, com sulcos profundos nas sobrancelhas e uma saliéncia éssea ao longo da nuca, 0 “coque” nean- dertal. O maxilar era robusto, com dentes fortes e um queixo arredondado, o nariz era largo e presumivelmente chato. A primeira vista, a figura parece arcaica, muito se- melhante a arquitetura do Homo erectus. Porém — como ja foi notado — o cérebro neandertal era em média maior do que o do cro-magnon. O passageiro do metré de Coon tinha um cranio robusto, mas nao necessariamente uma cabeca robusta. Isso me leva a concluir que as caracteristicas supos- tamente arcaicas do neandertal eram na verdade uma camada superficial de adaptagGes ao clima frio em uma es- trutura essencialmente ligada ao homem moderno.” As frontes altas dos povos modernos podem se resfriar a ponto AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 37 de danificar o cérebro, ao passo que o ar gelado pode con- gelar os pulmGes. O cérebro neandertal era protegido pe- las sobrancelhas macigas e pela arcada baixa, conquanto espagosa, O ar que entrava nos pulmées do neandertal era aquecido pelo seu nariz largo e todo o rosto tinha uma me- thor irrigagdo sangiiinea. Pessoas atarracadas e musculo- sas nao perdem calor corpéreo tao rapidamente quanto as pessoas esguias, Sinais de adaptagGes similares (ao me- nos quanto a forma do corpo) podem ser vistos dentre os esquimés, os andinos e os himalaios modernos —e isso depois de apenas alguns milhares de anos de convivéncia com 0 frio intenso, pouco se comparado com os 100 mil anos durantes os quais os neandertais europeus consegui- ram sobreviver na linha de frente da Era Glacial. Tudo parecia ir muito bem para eles até que os cro- magnons comecgaram a sair do Oriente Médio em diregado ao norte e ao oeste, ha cerca de 40 mil anos. Até entao, o frio havia sido o grande aliado dos neandertais, sempre, como o inverno russo, rechagando os invasores. Mas des- sa vez Os cro-magnons vieram para ficar. A invasao pare- ce ter coincidido com a instabilidade climatica ligada a mudangas sGbitas nas correntes ocednicas, 0 que causou © congelamento e 0 degelo do Atlantico norte em uma alternancia de periodos muito curtos, que podem ter sido de apenas uma década.™ Tais mudangas abruptas — tao graves quanto as piores previsdes que temos hoje em re- lacg4o ao aquecimento global — teriam devastado as co- munidades animais e vegetais das quais dependiam os neandertais. Sabemos que eles se alimentavam muito de carne de cagas grandes obtidas por meio de emboscadas —as fraturas nos seus ossos sao similares as apresentadas 38 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO por caubéis de rodeio, mostrando o quanto se aproxima- vam da vitima para mata-la. Sabemos também que nao eram habitualmente némades, que ocupavam as mesmas cavernas e vales durante todo o ano. Os seres humanos em geral séo conhecidos como uma “espécie predadora”, que floresce em ambientes fragmentados; no entanto, desses dois grupos, os neandertais eram os mais enraiza- dos. Os cro-magnons eram a erva daninha. A mudanga climatica tornaria a vida diffcil para todos, naturalmente; porém, as condigées instaveis seriam a gota d’Agua para os fisicamente menos especializados, mais fracos no con- fronto préximo, porém mais 4geis. Durante a infancia, lembro de ter visto uma charge — creio ter sido na revista Punch — que mostrava trés ou qua- tro pequenas criangas neandertais diante de um penhas- co atormentando o pai: “Papai, papai! Podemos ir jogar pedras nos cro-magnons hoje?” Por cerca de dez milénios, de 40 mil a 30 mil anos atras, os tiltimos neandertais e os primeiros cro-magnons provavelmente jogaram pedras uns nos outros, para nao falar das fogueiras apagadas, da caga roubada e talvez das mulheres e criangas seqiiestra- das. Ao final dessa batalha inimaginavelmente longa, a Europa e todo o mundo passaram a pertencer ao nosso gé- nero € 0 neandertal “classico” desapareceu para sempre. Mas 0 que de fato aconteceu? Sera que a linhagem nean- dertal foi dizimada? Ou sera que foi assimilada em um certo nivel? Aluta de 10 mil anos foi tao gradual que ela pode quase no ter sido perceptivel — uma guerra intermitente, in- conclusa, com territérios perdidos e ganhosem um ritmo de uns poucos quilémetros por toda uma vida. Nao obstante, AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 39 como em todas as guerras, surgiram inovagdes. Novas fer- ramentas e armas apareceram, novos vestuarios e rituais, os primérdios das pinturas rupestres (uma forma de arte que alcangaria o seu dpice durante o ultimo grande mo- mento da Era Glacial, depois que os neandertais classicos ja tinham desaparecido). Também sabemos que 0 conta- to cultural influenciou os dois lados. Sitios neandertais tardios na Franga indicam mudangas e adaptagdes a um ritmo jamais visto antes.> Aquela altura, perto do fim, as implicagées da guerra devem ter se tornado horrivelmente claras. Parece que 0s tltimos grupos de neandertais ocu- param as montanhas do norte da Espanha e da Iugoslé- via, compelidos, como os apaches, a terrenos cada vez mais aridos. Se o quadro que esbocei sobre a guerra guarda qual- quer fidedignidade, entao nos confrontamos com algumas conclusées desagradaveis. E isso o que faz do debate so- bre os neandertais algo tao emotivo: n4o se trata apenas de povos antigos, mas de nés mesmos. Se chegamos a conclusdo que os neandertais desapareceram por terem chegado a um ponto final evolutivo, podemos meramen- te dar de ombros e acusar a selegdo natural pelo seu des- tino. Porém, se eles eram de fato uma variante ou uma raga do homem moderno, entdo temos que admitir que a sua morte pode ter sido o primeiro genocidio. Ou pior, ndo 0 primeiro — mas simplesmente 0 primeiro do qual res- taram evidéncias. Disso pode se concluir que somos des- cendentes de um milh4o de anos de vitérias impiedosas, geneticamente predispostos, pelos pecados de nossos pais, a fazer tudo novamente do mesmo modo. Como escreveu 0 antropdélogo Milford Wolpoff sobre esse perfodo: “Nao 40 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO se pode imaginar uma populacdéo humana substituindo outra a nao ser por meio da violéncia.”*° Nao, nao se pode — especialmente na terra manchada de sangue da Euro- pa, entre os pressdgios de uma dissolugae final da Idade da Pedra e o massacre do rio Somme. Noesteio da Segunda Guerra Mundial, William Golding analisou 0 genocidio antigo em seu extraordindrio roman- ce Os herdeiros. Com uma auddcia maravilhosa, Golding le- va 0 leitor ao interior das mentes de um grupo anénimo de seres humanos primordiais. A epigrafe do livro, de Wells, invoca os neandertais, embora as especificidades antropolégicas se encaixem melhor em estagios muito an- teriores da humanidade. Os personagens de Golding sao habitantes de florestas, gentis, ingénuos e simiescos. Eles nao comem carne, a excegao dos restos deixados por gran- des predadores, sao verbalmente pobres, usam tanto a telepatia quanto a linguagem, dominam o fogo, mas pou- cas armas, e nunca suspeitaram que houvesse alguém mais no mundo além deles mesmos. Contudo, pouco importam os anacronismos de Gol- ding: seus personagens podem ndo se encaixar em qual- quer grupo particular de ossos de um passado real, mas Tepresentam muitos deles. Ao longo de uns poucos dias de primavera, os habitantes da floresta sdo invadidos pela primeira vez por um povo como nés, que, com barcos, fogueiras, arcos, vozes roucas, desmatamento por ataca- do e orgias embriagadas, desconcerta e fascina os “demé- nios da floresta”, mesmo ao mata-los um por um. Ao final, apenas um recém-nascido sobrevive, mantido por uma mulher que, tendo perdido o préprio filho, usa-o para dre- nar 0 leite dos seios. Os invasores entaéo avangam no inte- AS PERGUNTAS DE GAUGUIN 41 rior do novo territério € o seu lider planeja mais assassina- tos — assassinatos agora entre eles mesmos — enquanto afia uma arma, “um ponto contra a escuridao do mundo”, Golding nao tinha dtividas de que os impiedosos eram os vencedores da pré-histéria, mas uma outra questao le- vantada por ele ainda esta sem resposta: Corre algum san- gue neandertal nos seres humanos modernos? Qual é a probabilidade de que, durante 10 mil anos de interacao, nao tenha havido sexo, mesmo que ndo consentido? E se houve sexo, houve criangas? Os estudos sobre o DNA dos neandertais ainda sao inconclusivos.” Todavia, 0 esqueleto de uma crianga encontrada recentemente em Portugal sugere com énfase a miscigenacao, o mesmo acontecendo como alguns ossos da Croacia e de alguns pontos dos Balcas.*> Eu também tenho evidéncias pessoais de que os genes neandertais ainda estao em nés. Alguns povos modernos tém sulcos reveladores em suas cabecas.” Por acaso eu tenho um — uma protuberdncia ao longo da parte traseira do cranio que parece e dé a impressdo de um coque nean- dertal. Assim, até que novas descobertas sejam feitas para solucionar a questao, prefiro acreditar que o sangue neandertal ainda flui, por mais té@nue que seja, na época dos cro-magnons.” Apesar dos muitos detalhes de nossos ancestrais que ain- da aguardam por serem lapidados, o século XX respondeu amplamente as primeiras duas perguntas de Gauguin. Nao ha espago para a diivida racional quanto ao fato de ser- mos macacos e de, nao importando qual tenha sidoa nossa trajetéria exata ao longo do tempo, sermos, em tltima 42 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO anilise, provenientes da Africa. Mas, diferentemente dos outros macacos, nés tramamos, e estamos mais do que nunca tramando, o nosso destino. Ja ha muito tempo nao hd algo como aquele bom selvagem do Iluminismo que Gauguin tanto buscava, o homem natural. Tal como aque- les neandertais com artrite, que eram cuidados por suas familias, nao podemos viver sem as nossas culturas. En- contramo-nos com o realizador da “obra de arte” de que falava Hamlet — somos nés. I A GRANDE EXPERIENCIA ALGUEM MUITO AFEITO a absurdos légicos certa vez defi- niu os especialistas como “pessoas que sabem cada vez mais sobre cada vez menos, até saberem tudo sobre nada”. Muitos animais sao altamente especializados, os seus cor- pos s4o adaptados a nichos ecolégicos e modos de vida especificos. A especializagao traz recompensas a curto prazo, mas pode levar, a longo prazo, a um ponto final evolutivo. Quando as presas do tigre dentes-de-sabre mor- reram, ele também morreu. O animal humano moderno — 0 nosso ser fisico — é um generalista. Nao temos presas, garras ou veneno em nossos corpos. Em vez disso, elaboramos ferramentas e ar- mas — facas, langas e dardos envenenados. Invencées ele- mentares, tais como © vestudrio para aquecimento e a embarcagao simples, nos permitiram percorrer todo o pla- neta antes do final da tiltima Era Glacial.! A nossa especia- lizagdo é o cérebro. A flexibilidade das interagées do cérebro com a natureza, por meio da cultura, tem sidoa cha- 44 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO- ve de nosso sucesso. As culturas sao capazes de se adap- tar muito mais rapidamente do que os genes a novas amea- Gas e necessidades. Porém, como sugeri no capitulo anterior, hé ainda um risco. Conforme as culturas se tornam mais elaboradas e as tecnologias mais poderosas, essas especializagdes po- dem se tornar um fardo — vulneraveis e, em casos extre- mos, mortais. A bomba atémica, uma progressdo légica do arco e da bala, tornou-se a primeira tecnologia a amea- gar todas as espécies de extingao. Isso é o que chamo de uma “armadilha do progresso”. No entanto, tecnologias muito mais simples também seduziram e arruinaram so- ciedades no passado, até mesmo na Idade da Pedra. No capitulo anterior, retomei as trés perguntas propos- tas por Paul Gauguin em sua grande pintura de 1897 intitulada “De onde viernos? O que somos? Para onde vamos?” . De um ponto de vista pratico, a antropologia respondeu as duas primeiras: sabemos agora que somos os descen- dentes remotos dos macacos que viveram na Africa hd cerca de cinco milhdes de anos. Os macacos modernos, que também descendem do mesmo tronco, sao parentes, nado ancestrais. A nossa principal diferenga em relagdo aos chimpanzés e aos gorilas é que, ao longo dos tltimos trés milhGes de anos, temos sido moldados cada vez menos pela natureza e cada vez mais pela cultura, em suma, nos tornamos criaturas experimentais a partir de nossa pré- pria realizagdo. Essa experiéncia nunca foi tentada anteriormente e noés, Os seus autores inadvertidos, nunca chegamos a con- trola-la. A experiéncia agora avanga muito rapidamente e em uma escala colossal. Desde 0 inicio do século XIX, a A GRANDE EXPERIENCIA 45 populagéo mundial se multiplicou por quatro e a sua eco- nomia —uma inexata unidade de medida da carga huma- na sobre a natureza — por mais de quarenta. Alcangamos um estaégio em que temos que trazer a experiéncia de vol- ta ao controle racional e nos resguardar contra perigos presentes e potenciais. Isso depende inteiramente de nés. Se fracassarmos — se explodirmos ou degradarmos a bios- fera de modo a que ela nado possa mais nos sustentar —, a natureza nos sera indiferente e concluiré que foi diverti- do, durante um certo periodo, deixar os macacos contro- larem o laboratério, mas que, por fim, isso se tornou uma ma idéia. NOs ja causamos tantas extingdes que o nosso dominio sobre a Terra ha de parecer, em um registro féssil, algo como. o impacto de um asterdide. Até aqui, somos apenas um pequeno asterdide em comparacao com aquele que exter- minou os dinossauros.? Porém, se as extingdes prossegui- rem por muito mais tempo, ou se nds liberarmos as armas de destruigao em massa — refiro-me aquelas verdadeiras, mantidas em enormes reservas pelas grandes poténcias —, entao a préxima camada de fésseis com certeza revelara um hiato ainda maior na vida deste planeta, Sugeri no capitulo anterior que a pré-histéria, assim como a Histéria, nos conta que os povos gentis nao ven- ceram e que, na melhor das hipéteses, somos os herdei- ros de muitas vitérias impiedosas e, na pior delas, somos os herdeiros do genocidio. Podemos muito bem ser os des- cendentes de seres humanos que constantemente extermi- navam 0s seus rivais humanos — culminando na suspeita morte de nossos primos neandertais hd cerca de 30 mil anos. Qualquer que seja a verdade desse acontecimento, 46 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO ele marca o comego do alto periodo paleolitico — a Uulti- ma e a mais breve das trés divis6es da Antiga Idade da Pedra, cuja duracao representa cerca de um centésimo do todo. Neste capitulo pretendo analisar o que podemos de- duzir dessa primeira armadilha do progresso — a perfei- cao da caga, que pés fim a Antiga Idade da Pedra —e como a fuga dessa armadilha, por meio da invengao da agricul- tura, levou 4 nossa maior experiéncia: a civilizagéo mundial. Temos, portanto, que fazer urgentemente a se- guinte pergunta: sera que a prépria civilizagéo pode ser uma outra armadilha, muito maior? A Antiga Idade da Pedra comegou por volta de trés milhGes de anos atrds, com as primeiras ferramentas grosseiras produzidas pelas primeiras feras grosseiras que davam os primeiros passos em direcaéo 4 humanidade, ¢ terminou apenas 12 mil anos depois, quando as grandes camadas de gelo se retiraram pela Ultima vez para os pélos ¢€ as cor- dilheiras, onde desde entéo aguardam por uma préxima mudanga climAtica, Em termos geoldégicos, trés milhdes de anos sdo apenas um piscar de olhos, um minuto em comparacéo com um dia inteiro de vida terrena. Entre- tanto, em termos humanos, a Antiga Idade da Pedra é um profundo abismo de tempo — mais de 99,5% de nossa existéncia — a partir do qual comecgamos a engatinhar até chegar, ontem mesmo, aos leitos macios da civilizagado. Até mesmo a nossa subespécie moderna, Horno sapiens sapiens, é cerca de dez a vinte vezes mais velha do que a mais antiga civilizagéo. Porém, medida como uma expe- riéncia humana subjetiva — como uma soma de vidas A GRANDE EXPERIENCIA 47 individuais —, mais pessoas viveram a vida civilizada do que qualquer outra.? A civilizagao nao se aprofunda com o passar do tempo, ela se amplia, pois é tanto a causa quan- to o efeito de uma explosdo populacional que ainda nado se estabilizou, Devo deixar bem claro que estou definindo “civiliza- cao” e “cultura” de um modo técnico e antropolégico. Por cultura entendo o todo dos conhecimentos, das crengas e das praticas de uma sociedade qualquer. Cultura é tudo: do vegetarianismo ao canibalismo; Beethoven, Botticelli e piercing; o que se faz no quarto, no banheiro e a igreja que se escolhe (no caso de a cultura permitir a escolha); além de toda a tecnologia, da lasca da pedra a fissura do atomo. As civilizagées so um género especifico de cultu- Ta: sociedades grandes e complexas baseadas na domes- ticagao das plantas, dos animais e dos seres humanos.? As civilizagdes variam em sua composigdo, mas caracteristi- camente elas possuem vilas, cidades, governos, classes sociais e profissdes especializadas. Todas as civilizagdes sao culturas ou conglomerados de culturas, mas nem todas as culturas sao civilizagdes. Os arquedlogos em geral concordam que as primeiras civilizag6ées foram as da Suméria — ao sudeste da Meso- potamia ou no que é hoje o Iraque — e do Egito, tendo ambas surgido por volta de 3000 a.C. JA em 1000 a.C. a civilizago j4 dava a volta ao mundo, notadamente na in- dia, na China, no México, no Peru e em partes da Europa. Dos tempos antigos até hoje, os povos civilizados cré- em comportar-se melhor, ser melhores, do que os chama- dos selvagens. No entanto, os valores morais atrelados a civilizagdo sao ilusérios: na maioria das vezes usados para 48 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO justificar 0 ataque e o dominio sobre outras sociedades menos poderosas. No auge de seu imperialismo, os fran- ceses sustentavam a sua “missdo civilizadora”, ao passo que os ingleses alegavam a “responsabilidade do homem branco” — cujo peso foi aliviado pelas armas automati- cas. Como escreveu Hilaire Belloc, em 1898: “O que quer que acontega, nés temos e eles nao/armas e munigao.” Hoje em dia, Washington proclama conduzir e zelar pelo “mundo civilizado”, uma tradicao da retérica norte-ame- ricana que comecou com a erradicacao e 0 exterminio dos primeiros habitantes dos Estados Unidos.’ O circo romano, os sacrificios astecas, as fogueiras da Inquisic¢ao, os campos de concentracao nazistas — todos foram obras de sociedades altamente civilizadas.* Somente no século XX, pelo menos cem milhées de pessoas, em sua maioria civis, morreram em guerras.’ Os selvagens nunca foram tao fundo. Frente aos portées do Coliseu e do cam- po de concentragao, nao tivemos outra chance a nao ser abandonar a esperanga de que a civilizagao seja, por simes- ma, uma garantia do progresso moral. Quando Mahatma Gandhi veio 4 Inglaterra na déca- da de 1930 para discussdes sobre a autonomia da india, um repérter Ihe perguntou o que pensava da civilizagéo ocidental. Gandhi, que acabara de visitar as favelas de Lon- dres, respondeu: “Penso que essa seria uma Otima idéia.”® Se por vezes pareco muito radical quanto 4 questao da civilizagao, isso é porque, como Gandhi, eu gostaria que ela realizasse a sua promessa e tivesse sucesso nisso. Prefiro viver em uma casa a viver em uma caverna. Gosto de belos ediffcios e bons livros. Gosto de saber que sou um maca- co, que o mundo é redondo, que o sol € uma estrela e que A GRANDE EXPERIENCIA 49 as estrelas sao s6is — um conhecimento ja consensual que Jevou milhares de anos para ser expurgado do “caos e da velha noite”.’ Apesar de todas as suas crueldades, a civi- lizagdo é preciosa, uma experiéncia que vale a pena ser mantida. Mas ela é também precdria: ao subirmos a la- deira do progresso, nos livramos dos suportes anteriores. Nao ha caminho de volta sem catdstrofe. Aqueles que nao gostam da civilizagdo e mal podem esperar que a sua mas- cara arrogante caia devem ter em mente que nao ha ou- tro modo de sustentar a humanidade em um estagio numérico e politico como o nosso atual.!? A Antiga Idade da Pedra parece-nos hoje tao remota que raramente nos dedicamos a pens4-la, exceto talvez ao rirmos de uma caricatura de Gary Larson. Contudo ela ter- minou tao recentemente — um retrocesso de apenas seis vezes 0 perfodo que vai de nds ao nascimento de Cristo e ao Império Romano—, que as grandes mudangas ocorri- das desde que saimos da caverna tém sido todas culturais, nao fisicas. Uma espécie longeva como a nossa nao pode evoluir de maneira significativa em um intervalo de tempo tao curto. Isso significa que, enquanto a cultura e a tecno- logia sao acumulativas, a inteligéncia inata nao o é,"" Tal como o mote da piada do Dr. Johnson, que dizia que muito pode ser feito por um escocés se ele for captu- rado jovem, uma crianga do Paleolitico tardio que fosse arrancada de sua tribo e educada entre nds hoje teria uma chance idéntica 4 nossa de obter um diploma em astrofi- sica ou em ciéncia da computacao. Para usar uma analo- gia computacional, estamos usando um software do século XXI em um hardware cuja ultima atualizagao foi feita ha 50 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO pelo menos 50 mil anos. Isso pode explicar muitas das coisas que vemos no noticidrio. A propria cultura criou esse problema singularmente humano; em parte porque o crescimento cultural anda muito a frente da evolucdo e em parte porque, por um lon- go tempo, a massa acumulada de cultura tem impedido a selegado natural e colocado o destino em nossas maos. “Eu lhe direi o que €é um homem” —, escreveu William. Golding em seu romance de 1956, Pincher Martin, que, embora ambientado durante a Segunda Guerra Mundial, da continuidade 4 reflex4o iniciada em seu romance so- bre a Idade da Pedra, Os herdeiros: “Ele € uma anomalia, um feto expelido, extirpado de seu desenvolvimento na- tural, langado no mundo com uma cobertura de pele des- nuda, sem espaco suficiente para os seus dentes e um. cranio levemente abaulado, como uma bolha. Mas af den- tro a natureza estd preparando um grande pudim...”!* No pudim de Golding se misturam varios ingredien- tes: genialidade e loucura, l6gica e crenga, instinto e aluci- nado, compaixdo e crueldade, amor, ddio, sexo, arte, gandncia — tudo leva a vida e 4 morte. No individuo, a reunido desses elementos é a personalidade; na socieda- de, éa personalidade coletiva chamada de cultura. Como passar do tempo, o pudim da cultura tem crescido cada vez mais. Nesse interim, muitos momentos de fermenta- Gao aconteceram, nos quais ele subitamente crescia, der- ramava e se espalhava por toda a cozinha. O primeiro desses momentos foi o dominio do fogo pelo Homo erectus, algo que pendeu dramaticamente a ba- langa da sobrevivéncia a nosso favor. O momento seguin- te, meio milhdo de anos depois, foi o aperfeigoamento da A GRANDE EXPERIENCIA 51 caga atingida pelos cro-magnons, pouco tempo depois de terem removido os neandertais. Novas armas foram pro- duzidas: mais leves, mais precisas, de maior alcance, mais elegantes e mortais.’? Aderegos de contas, esculturas com ossos, instrumentos musicais e ritos funerais mais elabo- rados se tornaram comuns. Magnifficas pinturas aparece- ram nas paredes das cavernas e nas superficies das rochas, dotadas de um naturalismo vigoroso que ndo se repetiria mais antes do Renascimento. Muitas dessas coisas ja haviam sido feitas em uma escala menor pelos neandertais e pelos primeiros cro- magnons," de modo que essa explosao de arte e tecnologia nado pode (como reivindicam alguns) ser uma evidéncia de que nés tenhamos evoluido, subitamente, em uma nova espécie com novissimos poderes cognitivos. Mas elaé uma evidéncia de um padr4o cultural familiar: o lazer nascido de um aciimulo de comida. Os cagadores e coletores pro- duziam mais do que a mera subsisténcia, proporcionan- do a si pr6prios tempo para pintar as paredes, produzir aderegos e efigies, tocar misica ¢ dedicar-se a rituais reli- giosos. Pela primeira vez, as pessoas estavam ricas. Para estabelecer uma analogia grosseira entre duas eras desconexas, de duracdo e complexidade diferentes, ha certas semelhangas entre esse apocalipse da Antiga Idade da Pedra e o tiltimo meio milénio de “descobertas” e con- quistas ocidentais. Desde 1492 d.C., um tipo de civilizagao — a européia — tem destruido e removido todas as ou- tras, expandindo-se e recriando-se nesse processo como uma forga industrial (uma questao a qual retornarei em um capitulo posterior), Durante o Paleolitico Superior, um 52 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO tipo de ser humano — 0 cro-magnon ou Homo sapiens!* — se multiplicou e se espalhou pelo mundo, matando, re- movendo ou absorvendo todas as outras variantes de ho- mem, penetrando, com isso, em novos mundos nunca dantes pisados por um pé humano, Ha pelo menos 15 mil anos — muito antes do deslo- camento das camadas de gelo — 0 género humano se es- tabeleceu em todos os continentes a excecao da Antartica. Tal como a expansao mundial européia, essa onda pré- histérica de descobertas e migragées teve profundas con- seqiiéncias ecolégicas. Pouco depois de o homem aparecer em terras novas, as presas de grande porte comecgaram a desaparecer. Os mamutes e rinocerontes peludos se refu- giaram ao norte para depois se extinguirem na Europa e na Asia. Um canguru gigante, outros marsupiais e uma tartaruga do tamanho de um Volkswagen desapareceram. da Australia. Camelos, mamutes, bisdes gigantes, pregui- Gas gigantes e cavalos foram dizimados por todas as Amé- ricas.* Um mau cheiro de extingao segue 0 Homo sapiens por todo o mundo. Nem todos os especialistas concordam que 0s nossos ancestrais tenham sido os tnicos culpados. Os nossos de- fensores argumentam que cagamos durante milhées de anos ou mais na Africa, na Asia e na Europa, sem que, com isso, tudo fosse extinto; também que muitas dessas exting6es coincidem com convulsées climaticas e que o fim da Era Glacial pode ter sido algo tao abrupto que os gran- des animais nao foram capazes de se adaptar ou migrar. Essas sdo boas objegdes e seria uma tolice descartd-las por completo. No entanto, a evidéncia contraria aos nossos ancestrais é, penso eu, esmagadoramente maior. Sem A GRANDE EXPERIENCIA 53 dtvida os animais estavam estressados pelo derretimen- to do gelo, mas eles jd tinham sobrevivido anteriormente a muitos aquecimentos semelhantes. Também é verdade que povos anteriores — os Homo erectus, os neandertais e os primeiros Homo sapiens — cagaram animais de grande porte sem ter com isso os exterminado. Porém, os povos do Paleolitico Superior eram mais bem equipados e mui- to mais numerosos do que os seus antecessores, além de matarem em uma escala muito maior.” Alguns dos sitios de seus abatedouros tém tamanho praticamente indus- trial: mil mamutes em um deles, mais de 100 mil cavalos em outro.'® “Os neandertais eram certamente habilido- sos € corajosos na perseguigdo”, escreveu o antropélogo William Howells em 1960, “mas eles nunca deixaram um cemitério tao grande quanto este.”'* Essa moral ecolégica foi ressaltada mais recentemente por Jan Tattersall. “Como nés”, diz ele, “os cro-magnons devem ter tido um lado mais sombrio.””° Em terrenos escarpados, esses cagadores implacaveis levavam rebanhos inteiros para os precipicios, deixando pilhas de animais a apodrecer; uma pratica que continuou ao longo dos tempos histéricos em locais como o Head- Smashed-In Buffalo Jump, em Alberta. Para a sorte dos bisées, os precipicios eram raros nas grandes plantcies. JA para as armas do homem branco nao houve limite, e elas reduziram tanto os biifalos quanto os indios praticamen- te a extingao em poucas décadas do século XIX. “Os reba- nhos corcovados dos biifalos”, escreveu Herman Melville, “hé nao mais do que quarenta anos, espalhavam-se as de- zenas de milhares nas pradarias de Illinois e do Missou- ri... onde agora um cordial corretor Ihe vende terras por 34 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO um délar a polegada.””! Terras a um délar a polegada: isso sim é civilizagao. Cagadores e coletores modernos — os “habitantes das florestas” na Amaz6nia, na Australia, os aborigines, os inuits e os kalaharis — sao sabios administradores de sua ecologia, limitando o seu préprio nGmero e mantendo pru- déncia em relagao a terra.” Freqiientemente se pressupde que os antigos cagadores teriam sido igualmente sabios, porém a evidéncia nado sustenta essa visdo. A cagada pa- leolitica era o modo de vida corrente, realizada nos mais ricos meios ambientes de uma Terra aparentemente sem fronteiras. Pelo que os prédigos restos nos permitem in- ferir, ela foi feita com 0 otimismo de um investidor da bol- sa, que conta que sempre haja uma outra grande matanca do outro lado da colina. Nas tltimas e mais bem docu- mentadas extingdes em massa — 0 desaparecimento de pdssaros nao-voadores e outros animais na Nova Zelandia eem Madagascar — nao ha margem a diividas de que as populagées foram as responsaveis.” O bidlogo australia- no Tim Flannery chamou os seres humanos de “comedores-de-futuro”. Cada exterminio é a morte de uma possibilidade.* Desse modo, dentre as coisas que precisamos saber sobre nés mesmos esta que o periodo do Paleolitico Supe- rior, que pode muito bem ter comegado com um genocidio, terminou com um churrasco de tudo o que se pode matar na vida selvagem, A perfei¢do da caga teve como conseqiién- cia o fim da caga como um modo de vida. A carne facil sig- nificou mais bebés. Mais bebés significou mais cagadores. Mais cagadores significou, mais cedo ou mais tarde, me- nos cacga. A maior parte das grandes migragées humanas A GRANDE EXPERIENCIA 55 pelo mundo nesse perfodo foi provavelmente motivada pela necessidade, por termos exaurido a terra com os nossos banquetes méveis. A arqueologia da Europa Ocidental durante o iltimo milénio do Paleolftico mostra a decadéncia do grandioso estilo de vida dos cro-magnons. As suas pinturas rupestres tornam-se inconstantes e acabam por se interromper. As esculturas e os entalhamentos tornam-se raros. As lami- nas de sflex diminuem cada vez mais em tamanho. Em vez de matar mamutes eles passam a atirar em coelhos. Em um ensaio da década de 1930, chamado “Em prol dos povos canhestros”, o irreverente escritor tcheco Karel Capek observou: “O homem deixou de ser um mero cacador quando passaram a nascer individuos que eram cacado- res ruins.” Tal como alguém certa vez disse acerca da miisica de Wagner, a observacao de Capel é melhor do que ela soa. Os cagadores ao final da Antiga Idade da Pedra certamente ndo eram canhestros, mas eram ruins, porque quebraram a regra numero um de um parasita prudente: Nao mate o seu hospedeiro. Ao levarem a extingdo indmeras espécies, cairam na primeira armadilha do progresso. Alguns de seus descendentes — as sociedades caga- doras e coletoras que sobreviveram até os tempos recen- tes — aprenderiam, na escola dos duros golpes, a se conter. Porém 0 resto de nés encontrou um novo modo de aumen- tar as apostas: a grande mudanga posteriormente conhe- cida como agricultura ou “revolucdo” neolitica. Dentre os cacgadores sempre houve um grande ntimero de nao-cagadores: os coletores — em sua maioria mulheres e criancas, supomos nds, eram responsaveis pelos frutos 56 UMA BREVE HISTORIA DO PROGRESSO e vegetais silvestres da dieta de uma caverna bem admi- nistrada. A sua contribuigdo para o provimento de comida tornou-se cada vez mais importante 4 medida que as pre- sas morriam. Os povos daquele perfodo breve e abrupto conhecido como Mesolitico, ou Idade da Pedra Média, tentaram de tudo: viver em estudrios e pantanos, acampar nas praias, arrancar raizes e ceifar a relva selvagem em busca de pe- quenas sementes, pratica essa com enormes implicagées. Tao ricas eram algumas dessas relvas, e tao laboriosa e intensiva era a sua exploracao, que vilarejos fixos apare- ceram em dreas-chave antes da agricultura.* Os coletores comecaram a notar que as sementes acidentalmente es- palhadas ou incrustadas brotavam no ano seguinte. Eles passaram a influenciar esse resultado ao cultivar e ampliar areas selvagens, plantando as sementes mais produtivas e mais facilmente colhidas. Tais experiéncias levariam, por fim, 4 agricultura em sentido estrito e 4 quase total dependéncia de algumas mondtonas matérias-primas, mas isso se deu muitos mi- lhares de anos depois; no primeiro periodo, os cultores de plantas eram ainda basicamente coletores, que explora- vam uma grande variedade de flora, assim como qualquer caga selvagem ou peixe que Conseguissem encontrar. Em Monte Verde, no Chile, por exemplo, um vilarejo fixo de cabanas de madeira retangulares estabeleceu-se ha cer- ca de 13 mil anos, sustentado pela caga de camelfdeos, pequenos animais e do logo depois mastodonte; porém, os restos ali encontrados incluem muitos vegetais sel- vagens, além de cascas de batatas.** Embora Monte Ver- de seja um dos mais antigos sitios humanos em todas A GRANDE EXPERIENCIA 57 as Américas, ele indica um conhecimento maduro e inti- mo das plantas locais, muitas das quais se tornariam, pos- teriormente, as lavouras fundamentais da civilizagao andina. Assim como 0 actiimulo de pequenas mudangas que nos separou dos outros grandes macacos, a Revolugao Agri- cola foi uma experiéncia inconsciente, gradual demais para que Os seus precursores estivessem cientes dela, e muito menos fossem capazes de prever no que poderia resultar. Porém, em comparacao com todes os outros desenvol- vimentos anteriores, ela aconteceu em uma velocidade vertiginosa. Algo extremamente importante, pelo que isso nos re- vela sobre nés mesmos, é que nao houve uma tinica revo- lugdo, mas muitas. Em todos os continentes, a excegao da Australia, as experiéncias agricolas comegaram pouco tem- po depois de o império do gelo perder o seu dominio.” Livros mais antigos (e alguns mais recentes**) enfatizam a importancia do Oriente Médio ou do Crescente Fértil, que naqueles tempos se estendia da costa do Mediterrd- neo ao platé da Anatélia e as planicies aluviais do Iraque: todas as civilizag6es baseadas no pao derivam os seus prin- cipais produtos dessa Area, que nos deu 0 trigo, a cevada, Os ovinos e Os Caprinos. Hoje é claro que o Oriente Médio foi apenas uma de pelo menos quatro grandes regides do mundo nas quais a agricultura se desenvolveu independentemente e mais ou menos simultaneamente. As outras trés sao o Extremo Oriente, onde 0 arroz eo milho-mitido se tornaram os pro- dutos basicos; a Mesoamérica (0 México e partes vizinhas

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