You are on page 1of 32
FRANCISCO DE OLIVEIRA Coordenador PENELOPE E ULISSES |ASSOCIAGAO PORTUGUESA DE ESTUDOS CLASSICOS INSTITUTO DE ESTUDOS CLASSICOS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA CENTRO DF ESTUDOS CLASSICOS E HUMANISTICOS DA UNTVERSIDABE DE COIaRA COIMBRA 2003 12, 13, 14 18. 19. 20, 21 INDICE DE MATERIAS Francisco 2 OLIvEIRA: Penélope e Ulisses, AvTONIO SoUSA RiBEMRO: Alocugdo no Bneerramenta do Congresso Mafia HELENA Da RocHa Persia: A teia de Penélope. Joi BOARDMAN: Odysseus Travels: Real and Mythological Geography. JUAN ANTONIO Lopez Penez: Notas sobre la Penélope de la Odisea, Disrer LOHMANN: Untypical Typical Scenes; the Love Affirs of Ulysses Mania Leowoe SANTA BARBARA: Asticia versus virtude: Ulisses ¢ Ajax e asarmas de Aquiles ‘A. BaGonvo: Ulisse nell” Aiace enelFilttete di Sofocle 'Nuwo Siaoes RODRIGUES: Ulisses © Gilgames, LLuls M.G, Cunquetta: Ulisses na Eneida Haws-Joackibt GLUcKLICH: Penelope ~ a Roman heroine? What makes Penelope faithful? ‘Vasco ManTAS: Penélope e Ulisses na Lusiténia, Reva Marnioro: © Ulises de Dante na cultura italiana do sée. XX. Tanacio Ropricuez ALEAGEME: Imagen de Penélope en la. poesia espariola ANTONIO MANUEL DE ANDRADE Moniz: O mito ulisseico da fundagto de Lisboa na Literatura Renascentista Portugues. J. A. SrauRADO & CaniPos: Presenga invisivel, Observagies sobre a ausncia de Penélope na Ulisseia de G. Pereira de Castro Manta Tenxerea ANACLETO: Regressos e errncias estéticas: Ulises na literatura francesa do final do séc. XVI Gaorteis Catia: Behos du mythe odysséique dans fa culture roumaine Cantos Reis: Ea de Queirds ¢ 0 motive do regress. Abltio HeRWANDEZ CarDoso: Ulisses, de James Joyce, ou a adisscia de um Brieofew : Mania ELEFTHERIA GiarRakou: Homer and Modern Greek Literature Homer's and Seferis’ Odysseus B ~ or 107 120 14s 167 197 213 27 287 259 269 283 203 435 2, 23 4, 25, 26, 7. 29, 30, 31 22 436 Prono Senta: poema fica de Konstandinos Cavatis PASCAL THIERCY: Ulisses € Pénélope em Naissonce de l'Odvssve de lean Giono, Manta AraREciDa RiBeiRo: Nem tanto a Ulisses nem tanto a Penélope: a sobrevivéneia do mito em Clarice Lispecto. . ‘ConcerciON Lorez Ropricuz: Penélope en La tejedora de suehon. de Antonio Buero Vallejo, Joti BuLWER: Penelope in Modem English Poctey ANA ELIAS PINHERO: Ulisses e Penélope em A Filha de Homera de Robert Graves, Cinwen Soares: A tein de Ulisses: 4 cancdo de Tréia de Colleen McCullough, Jose Rinsito FERREIRA: Penélope © Ulisses na poesia portuguesa ‘ontemporinea:Fiama e Nuno hice Manta De FAtiMa SousA E SLA: A Aventura de Ulisses: uma Historia para Criangas, ‘ALBERTO PRIETO: Penélope en el cine ADRIANO MILO ConDEIRo: Penélope € Ulisses nos itineririos do ‘maravithoso mundo da Literatura infanto-Juvenl 3I7 31 38 349 393 407 4 a3 O ULISSES DE DANTE E A SUA PRESENCA NA CULTURA ITALIANA DO SEC. XX RITA MARNOTO Universidade de Coimbra ‘Um dos episédios de toda a titeratura escrita em lingua italiana, ou mesmo da literatura mundial, que suscitou um maior nimero de interpretagdes ¢ de leituras criticas, sera, sem divida, 0 episédio de Ulisses, que figura no vigésimo sexto canto do Inferno, na Commedia de Dante Alighieri’. Essa dimensio pragmética ilustra bem a genial singularidade da construgao dantesca. Se o Ulisses de Dante atraiu sucessivas geragdes de criticos, estimulando um debate de ideias caracterizado por uma notéria fluidez.e por uma acentuada viveza, tal facto s6 poderd ser cabalmente entendido em virtude da requintada capacidade problematizante que the & propria. No seu cerne, encontra- se um notavel trabalho de reelaboragao da precedente tradigao literiria, em fungdo do qual a modelizagao da imagem de um Ulisses que nauffaga nas aguas ocednicas traz. 4 tona as profundezas do humano, para as projectar, através dos séculos, até ao tempo em quie vivemos’. ~~ T Ni resntra nos objectivos deste trabalho, nem seria compativel com os seus limites, a apresentagio dessa bibliografia. Vd, 0 elenco de itens, acompanhad por comentitios riticos, oligido por Enzo Esposito, Bibliografa anata deg sri su Dante, 1950-1970, Firenze, Ol, 1990, v2. 685-66. Ao longo do presente texto, irdo sendo feitasremissdes pontunis para estudos de relevanteimportinca. no ambito da sua conceptualizagio, Todas as citagdes da Commedia tém por eferéncia a edigho, La Commedia secondo l'antica vulgata, A cura di Giorgio Petrocchi, Milano, Mondadori 1966.67, 4 v, Quanto aos motivos da adopgo do titulo Commedia, em detrimento daquele que & mais correnterenteuilzado em Portugal. Divina commedia, vd. Rita Mamoto, "Cames, Laura e a Barbora eserava” [1997]: Estados de literatura portuguesa, Viseu, Faculdade de Levas da Universidade Catslica Portuguesa, 1999, p82. * Sobre a projecgto da imagem de Ulisses, sto fundamentais os estudos de Conjunto elaborados por R. B. Matig, Odvsseus. Studie zu antiken Stofen in der ‘modernen Literatur, besonders im Drama, St. Gallen, Plugverlag Thal, 1949; W. B, 167 tb Comecemos por apresentar 0 enquadramento ¢ a estrutura do canto. Dante, guiado por Virgilio, atravessa 0 oitavo cfrculo do Inferno, que é designado através de um neologismo, Malebolge’. Esse circulo encontra-se subdividido em dez bolge, que constituem outras tantas reentrincias. No vigésimo sexto canto do Inferno, os viajantes pelo reino dos mortos chegam & oitava bolgia, onde descontam penas ‘0s maus conselheiros, que induziram outrem a cometer fraudes, Entre eles se conta Ulisses. Nos seus versos iniciais, fica contida uma invectiva, contra Florenga, através da qual é duramente criticada a corrupco que mina a cidade [//26.1-12]. Concluida a diatribe, as duas personagens vao reflectindo e dialogando acerca do que thes é dado observar [/nf.26.13- 84], Finalmente, Ulisses toma a palavra, para narrar, em discurso directo, o desentace das suas aventuras [Jnf26.85-142] A estrutura do canto & sustide pelo entrelagamento de niicleos ‘temiticos que se respondem em sucessio. A forma como € apresentada a bolgia dos fraudulentos segue um zoom que procede por aproxima- Gio, através de um movimento que se destaca, no contexto da Comme- dia, em virtude da inusitada participagio emocional do poeta nos acontecimentos contados. A dificuldade com que Dante, auxiliado pelo seu guia, sobe a agreste escarpa donde contempla os penitentes, pre- rnuncia a dotorosa impressdo inspirada pelo quadro que se apresenta perante 05 seus olhos (Jnf26,19-24): Allor mi dolsi, ¢ ora mi ridogtio ‘quando drizzo la mente a cid ch’io vidi, «pit lo “ngegno affreno ch'i* non soglio, perché non corra che virti nol guidi; si che, se stella bona o miglior cosa rm’ha dato ‘I ben, ch’io stessi nol m’invidi Através da introducdo de uma nota bucdlica, imagina entio ser 0 agricultor que, chegada a noite, contempla uma paisagem campestre Stanford, The Ubases Theme, A Study tn the Adoptabity of the Hero. Oxford, Blackwell, [1954] 1968: Piero Boitani, L'ombra di Ulisse. Figure di wn mit. Miao, 1? Mulino, 1992. Pelo que diz espeto as artes plsticas, destaquem-se W. B. Stanford 1 J, V, Luce, The Quest for Usses. London, Phaidon, 1974, e Marco Loran, mito di Ulisse nella pita a resco del Cinguecento italiano. Con la claborazone di Orieta Pines, Milano, Jac, 1996 "Logo in infemo’deto Malebolge” (hy/18.1). Traduzido & tet, © ‘ocibulo quer dizer *malditas bolas” 168 repleta de pirilampos, tantas so as chamas que se acumulam na bolgia [Unf.26.25-33]. Ao observar 0 seu intenso lume, compara-se ao profeta Eliseu, quando vé o carro de seu pai, Elias, elevar-se pelos ares [Unf26.34-42]. Chegado a esse ponto, a surpresa experimentada pelo peregrino do Além é tal, que quase cai [Jnf:26.43-45], E entdo que Virgilio intervém, com as suas dilucidagdes, instaurando-se, assim, 0 clima dialégico caracteristico das paginas da Commedia (Inf 26.46-84]. Conforme vai explicando, em cada uma das labaredas arde uma alma Penitente, Entre 0 fulgor que acompanha a elevagio de Elias aos Céus, € que representa a Sua glorificagao, as chamas da oitava bolgia, perdi- 0 © castigo dos conselheiros fraudulentos, e as estrelas do outro hemistério que serdo contempladas por Ulisses (Jnf26.127-29], sim- bolo do ardor de conhecimento, gera-se, pois, um forte efeito de para- lelismo contrastivo. Na lingua de fogo que atrai a atengao de Dante, por ter duas pontas, encontram-se, juntos, Ulisses Diomedes. Virgilio pSe em relevo trés dos seus pecados, a preparagdo do estratagema do cavalo de Troia, a persuasio de Aquiles a participar na guerra onde perdeu a vida, para grande dor de sua esposa, Deidamia, e 0 roubo da estitua sacra de Palas, que fazia de Troia uma cidade inexpugnavel. Mas, & medida que o foco narrativo se vai aproximando, mais vivo se mostra 0 entusiasmo de Dante, que priega e ripriega 0 seu mestre (Inf. 2664-69): i posson dentro da quelle faville parlar”, diss’io, “maestro, assai ten priego € riptiego, che "| priego vaglia mille, ‘che non mi facci de Vattender niego fin che la flamma cornuta qua vegna; vedi che del disio ver" let mi piego!" Na verdade, seré Virgilio a solicitar a Ulisses que conte como acabou os seus dias [Jnf26.79-84]. O Rei de itaca da inicio, entio, ao relato das suas aventuras, tomando como terminus a quo a largada do dominio de Circe — "[...] "Quando / mi diparti” da Circe [...]" Unf26,90-91]. Nem a dogura de seu dilecto filho, Telémaco, nem a Feveréncia devida a seu idoso pai, Laertes, nem 0 amor consagrado pelo matriménio que o ligou a sua esposa, Penélope, se sobrepuseram a nsia de conhecer mundo. Aventura-se, Mediterraneo fora, passa pela Espanha, por Marrocos, pela Sardenha, ultrapassa as Colunas de Hercules, deixa Sevilha & direita, Ceuta & esquerda, e convence os seus companheiros a prosseguirem viagem. As palavras utilizadas para os 169 persuadir, registadas num discurso directo encaixado, constituem a chamada "orazion picciola” [Jnf.26.122} "0 frat, diss, "che per cento milia perigli siete giunti a Poccidente, ‘a questa tanto picciola vigilia de’ nostri sensi ch’ del rimanente ‘non vogliate negar "esperienza, di retro al sol, del mondo sanza gente, Considerate la vostra semenza: fatti non foste a viver come bruti, rma per seguir virtute e canoscen: (Unf 26.112-20) Eneias, forgado a abandonar Trdia, leva a cabo uma viagem pelo Mediterraneo que o conduz até ao Lacio, onde espalha "[...] il gentil seme" [nf 26.60], conforme fora anteriormente referido, Tam- bém o itaco apela a "semenza" dos Gregos, mas com uma audicia intrépida, que visa 0 Oceano. O seu ardor € tdo frenético que os remos se fazem asas — "de" remi facemmo ali al folle volo” [Znf26.125} Passam o equador e, depois de cinco meses de viagem, véem, final- ‘mente, a montanha que representa o Paraiso terrestre (Inf.26.136-42): Noi ci allegrammo, ¢ tosto tornd in pianto, cché de la nova terra un turbo nacque ‘e percosse del legno il primo canto. Tre volte il fé girar con tutte acque: ‘Ja quarta levar la poppa in suso ela prora ire in gid, com’ altrui piacque, infin che "| mar fu sovra noi richiuso, Unf 26.136-42} A hybris do Ulisses dantesco é coroada pela sibita passagem da alegria ao "pianto". Vedado 0 acesso as alturas do monte paradi- siaco, por vontade divina, so as profundezas ocedinicas a engolir os rautas © canto que se iniciara com a inveetiva contra uma Florenga depravada, minada pela sobranceria do animal que bate as suas asas, com prepoténcia, "che per mare ¢ per terra batti l'ali" [Jnf26.2], ter- mina, pois, com a punigio de um Ulises que levou os seus compa- nheiros a fazerem dos remos "[...] ali al folle volo" [/nf26.125]. Ao avistar terra, 0 ftaco sogobra no mar. Entre a condenagao da cidade onde Dante nasceu, contida nos versos iniciais do canto, ¢ a condena- 170 ‘do de Ulisses, situa-se 0 valor modelar do voo de Elias, que se eleva até & Patria celeste [Jnf'26.34-42]. As suas repercussoes sobre 0 poeta da Commedia, que a Ele se compara, fortemente impressionado pelo desastroso rumo de Florenga ¢ pelo triste destino de Ulisses, niio so de somenos. O valor de exemplum de tudo quanto Ihe é dado observar na oitava bolgia levam-no a uma atitude de conteneao, relativamente 4s suas proprias capacidades — "e pi lo ‘ngegno affreno ch’i” non soglio" [/nf.26.21]. Mas a incidéncia individual dessa ligdo ¢ incindivel da abrangéncia em virtude do qual o exemplo do Profeta, que foi seguido por seu filho, Eliseu, assume um valor ecuménico. 2 Ao construir a personagem de Ulisses, Dante niio traz para pri- rmeiro plano nem o combatente da Guerra de Troia, nem o herdi que regressa a ftaca. Aliés, o primeiro € alvo de condenagao, tendo em conta os meios fraudulentos de que se serviu [/n£26.58-63}, a0 passo que a consisténcia do segundo ¢ pura e simplesmente negads pela pro- pria voz da fictionis persona dantesca — Ulisses nao regressou a itaca Unf.26.90-99]. O viandante grego é duramente punido na Bolgia que tio de perto suscita a comparticipagao subjectiva do poeta, sem que to pouco merega entrar no Limbo, derradeira morada da "[..) bella scola" [Inf4.94] de Homero e do préprio Virgilio, onde também so acolhidos Electra, Heitor, Eneias, Julio César, Camila e Pentesileia, além de tantas outras figuras da cultura antiga‘, Nesse contexto, a and- lise das fontes manejadas poderd constituir um contributo fundamental, no sentido do apuramento das coordenadas literirias ¢ eivilizacionais em cujo ambito 0 autor da Commedia se move. O facto de os auctores no serem ainda, para Dante, um ponto de referéncia sujeito a indaga- ‘10 filoldgica, de forma a ser perspectivado em todas as suas implica- ges diacrénicus, faz da sua ligo um campo que a inventio converte em fértil e genial "|..] alimento della sua creazione fantastica", para utilizar as palavras de Guido Martellott* * A sua punigdo no se deve ao facto de terem pecado, decorrendo antes da impossibilidade de terem venerado o verdadeito Deus, como nota Virgilio: "Or vo" che sappi, innanzi che pit andi, /ch’ei non peccaro; e s'eli hanno mereedi, / non basta, Perché non ebber battesmo, / ch’é porta de la fede che tu eredi;/¢ se” furon dinanzi al cristianesimo, / non adorar debitamente a Dio: / di questi eotai son ia medesmo,” nf 33-39). * Observa, justamente, Guido Marelloti que “{..] Dante non era un flologo [..-]¢ nenpure un biblofilo: lo stadioso non riceve da lui quegli ati di eu € largo invece il Petrarca peril quale acquisto di un nuovo libro, i chiarimento di un dubbio im E dado por descontado o facto de Dante nio saber grego®. A bar- reira linguistica impediu 0 acesso da cultura medieval, por via directa, ‘aos poemas homéricos’. Como tal, a questo coloca-se relativamente fas fontes mediadoras através das quais teria conhecido a mitica figura de Ulises, Dai se podera inferir com que tipo de imagem se teria confrontado, de forma a melhor perscrutar 0 sentido profundo do trabalho de modelizagio empreendido. Nesse mbito, ha a considerar dois grandes bloces literérios, a tradigio medieval e a antiguidade latina. E possivel que o autor da Commedia conhecesse algumas ver- ssdes da histéria de Ulisses que circulavam na Idade Média’. A hipotese de que tivesse lido uma das mais famosas obras consagradas aos feitos filologico e storico segnavano una data solenne, da registrare pit 0 meno espli- Citamente nei propri seit, Di Dante non sappiamo neppute se ebbe una propria biblioteca; enon avviene ma, o quasi mai, che nee sue opere si fermi acorrexgere un Suo precedente errore di letra. In real i test classic non lo interessano ins, nello Sforno ui intenderli, di collocarii in una pid precisa conoscenza dell'antichitd, di ‘emendarne da macchie fa tradizione; esi lo interessano solo in quanto gli trasmettono fee 0 suggeriscono immagini a sostegno delle sue argomentazioni o alimento della sua creazione fantastca” ("Dante e i classic" [1965], Dante ¢ Boccaccio e altri Scvittor! dall'Umanesimo al Romanticismo. Con una premessa ai Umberto Bosco, Firenze, Olschk 1983, p. 20). Sobre a formagao intelectual de Dante ¢ o seu contexto florentino, vd. Rita Mamato, 4 "Vita nova" de Dante Alighieri, Deus, 0 amor © a ppalaora, Lisboa, Colibri, 2001. cap. ‘Ch Guido Marellotti, "Dante e Omero" [1970}, Dante « Boccaccio e altri scrittri dall Umanesimo al Romanticismo, pp. 61-68, onde sto também enumerados & testudadgs os passos onde Dante se refer a Homer. 3 A instituigho do ensino do grego, na Europa ocidental, ocorren em 1360, quando Leondio Pilato inicion a sua leecionagao na Universidade de Florenga. Eram Skudados textos de Homero, na sequéncia da grande curiosidade que movia os impulsionadores. da iniciativa, Petrarca ¢ Boccaccio. Ao fim de dois anos, Pilato Interrompey, porém, 0 seu magistério, que no teve eontinuidade imediata. Sobre a {questo do helenismo, no contexto humanista, vd. Rita Marnoto, "Plutareo, O regresso Sena itiieas" deras do Congresso Plularco Educador da Europa. Coordenador: Tosé Ribeiro Fereeita, Coimbra, Instituto de Estudos Clssicns, 2002, em particular, 293-301 "A indagagdo acerca da cultura de Dante depara-se com um véu dificilmente penetrivel, sempre que se pretendam obter informagaes precisas acerca das franjas do eon horizonte. Pelo que diz respeito &snarraivas medievais acerca da Guerra de Tebi. ‘a opinioes dividemvse. A conviegdo de quantas sustém o sew desconhecimento é ‘mblematizada pelo cepticismo de Bruno Nardi, segundo 0 qual Dante nunca teria ido Sr obras consagradas a esse tema que ciculavam nes séculos X11 e XItl "La tragedia Gi Ulisse" [1937], Dante e fa cultura medievale. [1942] Nuova edizione a cura di Paolo Mazzantini, intodzione di Tullio Gregory, Roma. Bath, Laterza, 1985, 125-34) 12 de Alexandre, a Alessandreide de Gautier de Chatillon, defendida por Availe, nao colheu, porém, relevante apoio critico’. Mais frequente- ‘mente, costumam ser recordados, com ponderada cautela, 0 Roman de Troie de Benoit de Sainte-Maure e a Historia destructionis Troiae de Guido detle Colonne. Quanto ao primeiro, trata-se de um longo poema escrito em langue d’oll, que remonta a meados do século XII. Benoit retoma dois relatos da Guerra de Tréia de inspirago homérica, o Ephemeris belli Troiani de Dictys de Creta ¢ 0 De excidio Troiae historiae de Dares da Frigia'’. O Roman de Troie foi depois objecto de iniimeras reelaboragdes, muitas das quais em prosa, que no tardaram a ser conhecidas na Itilia setentrional''. Com efeito, no De vulgari eloguentia, para ilustrar a superioridade, no dominio da prosa, da literatura escrita em langue d’oil, Dante recorda as narrativas de matéria troiana’’, Quanto ao segundo, encontramo-nos perante a tradu- io latina, em prosa, do proprio Roman de Troie de Benoit de Sainte- Maure, completada em 1287. Alguns criticos identifica 0 seu autor com o juiz de Messina, que foi poeta da corte de Frederico Il, Guido delle Colonne. ‘Ao longo da Idade Média, circulavam duas fundamentais ima- ‘gens valorativas de Ulisses, uma, de indole positiva e extracgio humi- Tis, que foi prevalentemente transmitida pela cultura eclesiastica:; outra, de sinal inverso, com cunho erudito, sobremaneira divulgada nos * d’Areo Silvio Avalle, "L'ultimo viaggio di Ulisse” {1966}, Dal mito alla lexteratura¢ ritorno. Milano. Il Saggiatore, 1990, p 209-33 "4 recente descoberta de fragmentos de um original grego, do século ow th, Pertencentes 20 Ephemeris belli Troiant,reforgaa conviegao de que o texto latino que dees circulava na Idade Média correspondia & tradugio elaborada por Licio Sétimo, no século IV: vd, Marie-Paule Loicg-Berger, "Pour une lecture du roman grec: son intérétpluril, ses prolongements": Folia Electronica Classica, 1, 2001 [Low Neuve} cénous zt toly Glow wav bx éxetvou xeraaouévav, Gove oi dxiBavov enoiet 1 mhdoua) [-]"/"On ne surat sétooner de ce que le podte a congu le réit du voyage d'Ulsse de tlle ‘manidre que la plus grande partie des aventues nrrées se ste a del des Colonnes Hercule, dans la Mer Atiantige, oi la fiction potique restalt proche des dongs de histoire et ne squat pas, de ce fit, de parte incroyable.” (Stabon, Geographie ‘Texte abi et raduit par Frangois Lassere, aris, Les Bells Letres, 1966, 3-9, *'in Lusitania promunturium est quod Arabrim ali ali lisiponense dicunt ..1 Bi oppidum Olisipone Uli condita." {C. Juli Solin Colectnee rerum snemorabilum item reensvit Th. Mommesen, Edto akera ex edtione anni 1895 uci opeexpressa, Brolin apud Weidmannos 1958, 23.1 5-8). * *Sinus intersunt, et est in proximo Salaca, in altro Visippo et Tag ostium, amis gemmas surumque generanis”(Pomponius Mela Chorogrephie, Texte dbl, traduit eannote par A. Silberman, Pas, Lex Belles Letres, 988,18) ® "Olisipone ile oppidum ab Ulixe conditum ferunt, ex culus nomine romontorium, quod maria terasque distingui.” (Marianas Capella. Edit James Willis, Leipzig, Teubner, 1983, De up. 6 629) ” *Olisipona ab Viixe est conte et nuncupata quo loo, siuthistriographi dium, caclum terra et marin distinguiur a veris” (San Isdoro de. Sevilla, Etimologies. Edicin bling, texto latino, version expla, nota ¢ indices por lost 177 viagem de Ulisses & fundago de Lisboa. Também Técito o considera fundador da cidade de Asberg, no Norte da Alemanha™. E nesse con- texto que, no plano do imagindrio, a figura do aventureiro errante, movido por uma curiosidade insacidvel, se vai sobrepondo a do heréi da Guerra de Troia. Por sua vez, Tibulo admite as duas versdes dessas andangas, ou seja, que o ftaco tenha percorrido terras conhecidas, ou que, de outra forma, se tenha aventurado por um novo mundo ignoto, de acordo com ‘uma opinitio cuja origem nao especifica””. Mas é Séneca a confrontar- se, verdadeiramente, com essas duas perspectivas, & de um Ulisses que se bateu contra as intempéries da natureza, nos limites do Mediter- Fineo, ¢ a de um Ulises cujos anseios de modo algum poderiam ser satisfeitos nos confins desse mar: Quaeris, Vlixes ubi erraverit, potius quam efficias, ne nos semper ferremus? Non uacat audire, utrum inter Italiam et Siciliam iactatus sit ‘an extra notum nobis orbem, — neque enim potuit in tam angusto error ‘esse tam longus: — tempestates nos anim cotidie iactant et nequitia in ‘omnia Viixis mala impelit. Non deest forma, quae sollicitet oculos, nnon hostis; hine monstra effera et humano cuore gaudentia, hine insidiosa blandimenta aurium, hine nauftagia et tot warietates malorum. Hoc me doce, quomodo patriam amem, quomodo uxorem, quomodo patrem, quomodo ad haec tam honesta uel naufragus nauigem.”° Se Séneca representa um ponto de viragem fundamental, no quadro da interpretagao do mito de Ulisses, é por nao Ihe interessar saber, primordialmente, qual o efectivo rumo do vigjante, Mais do que isso, importa, em seu entender, ser capaz de perserutar o significado existencial da sua erriincia, dele tirando a melhor lig interior. Oroz Reta / Manuel A. Marcos Casquero, Maid, La Editri 151,70), * *Ceterum et Vixen quidam opinantur longo ila et fabuioso ertore in hune Oceanum delatum adisse Germanise terras, Asciburgiumaue, quod in ripa Rheni situm hodieque incolitur, ab ilo constitutum nominatumque” (Tacite, La Germanie, ‘Texte abl ct traduit par Jacques Perret, Paris, Les Belles Lettres, 1949, 3), ® "Atque haec seu nosras inter sunt cognita terra, / fabuie sive nouum dedit his exoribus orbem, / sit labor illus, tua dum facundia maior.” (Tibulle et les aviewrs du ‘corpus ibullianur. Texte établi et traduit par Max Ponchont, Paris, Les Belles Lettres, [1926] 1989, Pan. Mes. 79-81). Revordem-se, além disso, os v.52-53 da ‘mesma clegia, onde fica contida uma alusdo & viagem atlintica de Ulises: “ile per ‘ignotas audax errauerit ures, / ua mars extremis tellus includitur undis™ ® Lowres & Lucilius. Texte éabli par Frangois Préchae et traduit par Hen Noblot, Paris, Les Belles Leties, (1957) 1989, 88.7, Catoica S. A., 1983, 178 Apesar de muitas interrogagOes subsistirem, relativamente 20 efectivo conhecimento que Dante possuiria da obra de alguns dos auto- res citados, ha dois textos que ndo suscitam dividas. Um deles € o das epistolas de Séneca a Lucilio, outro 0 do famoso comentario de Sérvio 4 Eneida, Ao explicar 0 sentido do verso, "dicitur et tenebrosa palus Acheronte refuso" (En. 6.107], Sérvio observa, sibilinamente, que também para Homero 0 reino dos mortos ficava em Itélia, embora se pense que Ulisses tenha estado no extremo do Oceano ~ "quanquam fingatur in extrema Oceani parte Ulysses fuisse"™' Entretanto, com a passagem dos séculos, 0 lugar situado no extremo.do Oceano, habitado pelos mortos, onde Ulisses aportou, foi ganhando contornos cada vez mais pormenorizados™, Chegados a esse ponto de chameira, sera possivel conceber a conjungdio de duas tradigdes culturais, uma, de origem paga, que diz respeito as ilhas dos bem-aventurados, e outra, Tigada a0 cristianismo, que situa, também cla, 0 Paraiso, no seio das aguas. E desse ponto de intersecefio que decorre, a nivel macro-estrutural, a ordenago do universo da Conme- dia33. Mas nao se esquera, além disso, que, num outro plano, @ pre- senga de fontes biblicas no episédio de Ulisses decorre igualmente de uma cosmovisao sinerética™. ‘lids, as lendas e as crengas acerca da navegagio atlintica sus- citavam 0 maior interesse, na epoca em que Dante viveu. Durante os ‘limos séculos da Idade Média, encontrava-se extremamente difun- dida a lenda de S. Brando, o Santo itlandés que se fez ao mar, em busca do Paraiso terrestre. Foi também enorme o impacto da expedigio levada a cabo pelos dois irmaos genoveses, Ugolino e Vadino Vivaldi, 3 Virgili_Maronis Opera, Masri Servii Honotati granumatii in eadem commentari[.,Parsis, Ex Officina Roberti Stephani, 1532, p.402, ™ Conform oilusira Claudiano: "Est locus extremum pandit qua Gallia litas / ‘Oceani praetentus aquis,ubi ferur Ulixes/ sanguine libato populum movisse silentem, J illic umbrarum ten stridore volantum / Aebilis auditur questus: simulacra colon: / pallida defunctasque vident migrare figurs.” (Claudian. With an english translation by Maurice Plamaer, Cambridge, Mass, Harvard Univesity Press, {1922} 1956, Contra Ruf 1123-28), CE. Erich Auerbach, "Strutura della Commedia” {1929}, Studi sw Dante Prefazione di Dante Della Terza, Milano, Feltrneli, p.91-122; e Jur M. Lotman / Boris A, Uspenski, Tipolagia della cultura. Milano, Bompiani, 1975. 3 Que envolve, em particular, a histrie de Blias e de seu ftho Eliseu, bem como a simbologia das linguas de fogo, em conformidade com 0 livro dos Reis € 0s Uhetos dos Apéstolos; v4, Paola Rigo, “Tra maligno e sanguigno” [1989], Memoria classica e memoria biblica im Dante. Firenze, Oischki, 1994, p48-54; © Andreas Koblit, ll canto di Ulisse ag acchi det commentatori contemporaneie delle indagini moderne”: Leteratura Hallana Antico, 2, 2001, p.61-91 179 que largaram de Itia'em 1291, com o objectivo de circum-navegarem a Africa, para nunca mais voltarem’’. A geografia do globo terrestre estava prestes a mudar radicalmente a sua fisionomia, Daqui se pode deduzir, pois, que Dante no deixaria de conhe- cer, pelo menos, os mais divulgados textos acerca da errdncia ocednica de Ulisses. De outra forma, se nada se sabe quanto as suas impresses, pelo que diz respeito as crengas medievais e A viagem dos Vivaldi, com certeza que nao as ignorava, E, todavia, duas questdes persistem. A primeira decorre das observacdes registadas por Benvenuto da Imola, comentador trecen- tista da Commedia: Est autem hic ultimo toto animo advertendum quod illud quod Auctor hhic scribit de morte Ulixis, non habet verum neque secundum bistoricam veritatem neque secundum poeticam fictionem Homeri vel alterius poetae. Dixerunt ergo aliqui, et famosi, quod Dantes non vidit Homerum et quod expresse erravit, Veruntamen quid quid dicarur nulla persuasione possum adduci ad credendum quod Auctor ignorave- rit illud quod sciunt et pueri et jgnari; ideo dico quod haec potius ‘Auctor industria finxit: et licut sibi fingere de novo, sicut als poetis propter aliquod propositum ostendendum. Videtur enim ex fictione ista velle concludere quod vir magnanimus, animosus, qualis fuit Ulixes, non parcit vitae periculo vel labori, ut possit habere experientiam Em seu entender, o desfecho do episédio € pura criagdo do poeta. Fino e sagaz hermenéuta de Dante, Benvenuto no admite que 0 autor da Commedia desconhecesse 0 regresso de Ulisses a itaca, con- forme € narrado na Odisseia, pois até as criangas ¢ os ignorantes sabiam como terminava a histéria. Na verdade, face ao conjunto de fontes que refere um périplo ocednico, conforme hoje 0 conkecemos, podemos afirmar que também nao desconheceria a versio que asseve- ava as suas andangas pelo Atlantico. Como tal, o comentirio revela tuma acuidade muito particular, quando recorda que todas as interroga- 96es que relanga s6 no seio do universo ficcional tém consistén ‘Nese dimbito, a epistols de Séneca constitui uma referéncia de extremo relevo, tratando-se de um texto essencial da cultura do tempo de Dante que admite as duas vertentes da histéria, para se situar a um % Vd. Ignazio Baldelli, "Dante ¢ Ulisse”: Lestere Kaliane, $0, 3, 1998, 358-73, que postula © impacto que esse scontecimento histrica teria ido sabre Dante, 2, 9365, 180 nivel superior de abstracgii, ao valorizar as suas ressonéncias interio- res, Se 0 autor da Commedia conhecia ambas as tradiges, a primazia concedida a uma delas assume, entio, um alto significado. Apesar disso, nunca se deve perder de vista o facto de a expedigao de Ulisses do ser, em nenhuma das verstes, a sua ditima viagem. Dai decorre uma segunda questo. ‘No canto do Jnferno, quando Virgilio apostrofa a chama em que ardem Ulisses © Diomedes, sabe bem a qual dos dois se dirige, conhecendo, de antemdo, o teor da histéria cuja narragdo Ihe solicita (inf. 26.79-84): "O voi che siete due dentro ad un foco, s'io meritai di voi mentre ch’io vissi, s*io meritai di voi assai o poco quando nel mondo Ii alti versi criss rnon vi movete; ma I “un di voi diea dove, per lui, perduto a morrir giss.” Virgilio sabe que Ulisses morreu, perdido pelas suas andangas —"L...] perduto a morrir gissi". De outra forma, é dado a entender que ‘© Dante-personagem no sabe 0 desfecho da sua expedigo, em con- formidade com 0 modelo dialdgico tipico dos versos da Commedia”, Mas talvez o Dante-poeta tivesse bem presente na sua meméria a profecia de Circe, quando predisse aos nautas rotas arriscadas, um itinerdrio infinito e os perigos de um mar tempestuoso (Met. 14.438-39): Ancipitesque uias et iter Titania uastum Dixerat et saeui restare pericula ponti Talvez recordasse que, como Calipso bem notou, os sinais que Ulisses desenhara na areia, representando a cidade, os acampamentos & ‘o nome de tantos herdis valorosos, foram levados pelo mar: Pluraque pingebat,subitus cum Pergama fluctus abstulit et Rhesi cum duce castra suo; tum dea “quas" inquit "fides tibi credis ituro, perdiderint undae nomina quanta, uides?””* 5° Va_ Gianfranco Contni, ‘Dante come personaggio-pocta della Commedia" 11957], Variant ¢ altra linguisica. Una raccolta di saggi (1938-1968). ‘Torino, Einaudi, 1984, 535-61 “8 p Ovidii Nasonis, Amores. Medicamina facie’ femineae. Ars amatoria, Remedia amoris.Edidit brevigue adnotatione extica instusit B, J. Kenney, Oxonit€ ‘Typographeo Clarendoniano, [1961] 1965, ars 2.139-41 181 Talvez soubesse que Tirésias, 0 adivinho de um Homero que Dante nunca conheceu, antevira uma outra viagem que havia de levar Ulisses por uma terra cujos habitantes nada sabiam sobre a arte da navegagiio. O sinal que lhe da € seguro: orwa 6€ sor épéo uci’ dprdoades Ommdce Kev 51 tor EvuBArwevos ddzos Sitns orn dOnpondAcyov exer «o> ave Sardine duo, kal tote 6h yain ntjEas evfipes Eperpdv” Eva — quando se cruzar com outro viajante, que confunda 0 seu remo com uma alfaia agricola, devera enterra-lo na terra. Depois, fara sacrificios a Poséidon, Tirésias prediz-Ihe também uma morte em idade avangada, quando se encontra junto de um povo afortunado, no mar — Odvatos dé tor e& GAds™. Piero Boitani, no seu brilhante ensaio, nota que a vastidao da incidéncia da figura de Ulisses se deve ao facto de ela ser, desde os primérdios, um signo — "nell’ambito culturale il segno di un’intera episteme"'', Ema. Nas longas e perigosas viagens profeciadas por Circe. Nos nomes que escreve na areia e o mar desfaz, Na inquieta seguranca da palavra de Tirésies. Dante nunca leu Homero. Apesar disso, a sua leitura de Ulisses € uma das mais clarividentes projecgOes da universalidade do nohbtponos®, 3 As interpretagdes que tém vindo a ser feitas do episddio de Ulis- ses encontram-se de perto vinculadas ao significado que é atribuido a © LOdysée. "Possie homérigue”. Texte Ebi et traduit par Vietor Bérard, Paris, Les Belles Lettres, (1924) 1967-68, 3 v., 11.126-29 (*Veun-tu que je te donne lune marque assurée, sans meprise possible? le jour qu'en te croisant un autre voyageur ddemanderait pourquoi, sur ta brillante épaule, estcete pele & grains, c'est la qu'il te faudrait planter ta bonne me") J Gavaros 8 vor ef ddds aid eBinxods udha coios Bhetocran, 88 xé oe nébvn yHipe Uxo ALRApG dpnuevov dubi BE Laol GABiot Eooovean. [..]" / “puis la mer tenverrat la plus douce des tors; tu ne succomberais qu’a "heureuse viillesse, ayant autour de toi des peuples fertunds.. (Od. 11.134-37), A critica especializada tem-se interrogado acerca do significado da expressio "€& ehos", visto poderem-Ihe ser atribuidos dois significados bastante diferentes, longe do mat, ou na mar. *Op. eit, pS, “Avépd por Evvene, Moioa, nohizpaov [. rill tours, Muse, qu'il faut me dite” (Odi.1.) J 'C'est Pomme aux 182 elagio de Dante com a matéria- representada. Uma eventual cumplicidade com 0 nauta que desbrava mares desconhecidos desem- bocaria na apologia da nova cosmoviséo que est prestes a emergir, com os alvores do Renascimento. Todavia, a imputagao, ao autor da Commedia, de uma atitude de simpatia pelo Rei de itaca, ndo ¢ isenta de notas forcadas. O vigésimo sexto canto do inferno dintingue-se, de facto, pela perspectiva emocional que transparece dos seus versos. Mas essa carga fortemente subjectiva ndo deve ser confundida com a ade- so causa do penitente. O peregrino pelo mundo do Além sente-se fortemente impressionado por tudo quanto The é dado observar na oitava bolgia. Nao obstante, Ulisses é condenado a um duro castigo, cuja excepcionalidade e cujo rigor so postos em evidéncia pelo seu isolamento em relagao a outras figuras da Antiguidade. Segundo Michelangelo Picone, Dante pretende destronar aquele Homero consagrado pelas narrativas medievais, em prol de um novo Homero cristo, um Homero refeito por ele préprio, autor da Commedia. Como tal, a condenagao implica também uma atitude de certa forma hostil ao pensamento grego, em nome de uma visio pro- fundamente imbuida por esse idedrio, Dai que retome das paginas de Virgilio a versio do grego ardiloso, que perpetrou enganos e urdiu logros". Na Eneida, Ulisses & apresentado como grande responsivel pela queda de Troia. Se, por um lado, © épico latino seguia as vias rasgadas pelo exemplo de Homero, por outro lado, nao deixaria de sentir a necessidade de se afirmar, relativamente ao grande modelo do heroismo helénico. Além disso, para o orgulho imperial, o menosprezo do Grego era a contraface da exaltagao do heréi que viajou até a0 Licio, Eneias. Dai que Dante veja no estratagema do cavalo de Troia 0 acontecimento que determinow a génese remota do Império — "onde usci de’ Romani il gentil seme" [/nf26.60}*. Ao dirigir-se aos companheiros, na sua “orazion picciola" Un£26.122), Ulisses recorre a argumentos que sio explicitados quer através de uma formulagio negativa, quer através de uma formulagio © "Ik contesto classico del canto di Ulisse": Strumenti Critic 15, 2 (93) 2000 i191, “Cf, Patrizia Grimaldi Pizzomo, “Sie notur Ulixes? Retorica sapienziale © fetorica fraudolenta nel eanto XXVI dell Inferno": Strumenti Critci 14, 3 (80) 1999 357-85, “* Gentil € uma palavra-chave do requintado vocabulério utlizado pelos poetas do dolce stil novo; ef Rita Marnoto, 4 "Vita nova” de Dante Alighier: Deus, o amor @ 2 palavra, cap. 1.4. Nesse contexto, a qualificagio do povo descendemte de Enelas assume o mais ato valor, 183 positiva [Jnj.26.112-20; supra]. Um desses planos discursivos incide sobre a diferenga entre o homem ¢ o animal, partindo da exortagdo a que nao seja rejeitada a oportunidade de ganhar experigneia. Serve-lhe de moldura, gragas a uma habil construgao retérica, 0 prévio engrande- cimento dos perigos vencidos ao longo da navegacao até as Colunas de Heércules‘*, bem como a exortagtio conclusiva a persecugao de "{...] virtute € canoscenza” [Jnf26.120]. Mas essa sede de conhecimento incide sobre o empirico, sem ser acompanhada por uma indagagao de valores de ordem moral ¢ religiosa. A leitura de Luigi Valli, que via em Ulisses um simbolo da humanidade, "[...] che col solo lume della ragione, senza l'aiuto ¢ la predestinazione di Dio, pretende conseguire la verita ultima e Pultimo bene™”, continua a mostrar, pois, toda a pertinéncia critica. A cosmoviso medieval condenava a curiositas, quando era tomada por si 86, € ndio enquanto instrumento no sentido do alcance de mais aitos valores espirituais. A luz de uma perspectiva epocal, 0 ftaco encarna a subverso de um limite sine qua non. Ao pretender aleangar 0 conhecimento, obstinadamente, ¢ & margem da raga divina, afunda-se nas profundezas. O turbilhdo que provocou 0 nauftégio do seu barco, quando estava as portas do Paraiso terrestre, provém, sintomaticamente, da "[...] nova Terra" [Jnf26,136-42; supra], Para Dante e para o pensamento medieval, virtude, conheci- mento, aperfeigoamento moral e fervor religioso, sao planos que se desdobram uns sobre os outros, em sucesso, Dai que a subjectividade dantesca estabelega um contraponto entre, por um lado, 0 ardor do taco e, por outro lado, a contenso do estro do poeta da Commedia, “ Que, geralmente, costumam ser idenificadss com o estrelto de Gibraltar, tembora Guglielmo Goeni seja de opini8o que, no contexto do canto, 2 expressio designe © ismo de Cadiz ( "I ‘riguardi* di Ercole © "arto passo* di Ulisse" Letterature Italiana Antica, 1, 2000, pp. 43-58). Para uma interpretagao simbélica, em Si, do rumo ocidental dx viagem, vd. Giuliana Carugat, Datla menzogna al silensia La scriteura mistica della "Commedia" di Dame. Bologna, Ii Mulino, 1991, 95-91. © "Ulisse © ta tragedia intelletuale di Dante": Mf Giornale Dancesco, 24 3, 1921,p.230. “ Ulisses nto diz explicitamente, nem o pode dizer, que chegou ao Paraiso. Mas se o sentido das suas palavras ndo susctou qualquer dvida aos comentadores da Commedia, Dante nfo deina de 0 reafimar, no vigésima sétimo canto do Paradiso, aravés de uma elaborada dissertagdo cosmolégiea, quando recorda "[..J il varco 7 folle d'Utisse (..)" [Par. 27.82-83]. Nesse sentido, 0 episbdio actualza uma profunda simbotogia biblica. As linguas de fogo que pousaram sobre os Apostolos, no dia de Pentecostes, quando reesberam o Espirito Santo, e comegaram a falar outras linguas, adquirem uma dimenséo puntiva, 20-desdobrarem-se nas labaredas que castgam os pecadores da oitava bolgic,culpados de terem usado a palavra para fin fraudlentos. 184 que tem por termo intermediario 0 exemplo de Elias [Jnf26.19-42; supra] "Nos tempos primitivos, as pessoas que iam para os Campos Elisios ou para as Ihas dos Bem-aventurados no softiam a morte, hem recebiam culto depois", afirma Maria Helena da Rocha Pereira®” Ora, Ulises pretende aleangar a bem-aventuranga sem prescindir da esséncia mortal, em consondncia com a cultura pag. Outra é a ordem do cosmos dantesco. Na escatologia da Commedia, esse é privilégio exclusivo do eriador dos seus versos. Dante é um peregrino, Ulisses é um explorador — observa jus- tamente Jurij Lotman, no penetrante ensaio que consagrou ao tema, conde analisa o sistema de diferengas ¢ oposigées que interliga as duas figuras”. Nesse sentido, "Ulisse @ originale doppio di Dante”’". Este segue um guia, aquele a sua audécia. O nauta ocednico chega ao Purgatorio, numa viagem em busca de conhecimento, mas afinal ignaro do significado da montanha da qual se aproximou —o que poe em causa 0 valor da sua descoberta. Conforme nota Lotman, a peregri- ago do poeta da Commedia processa-se ao longo de um eixo vertical entre 0 que fica em baixo © 0 que fica no alto, ou seja, entre 0 plano terreno ¢ o da espiritualidade, De outra forma, Ulisses, que desconhece esses valores ideais, move-se na horizontalidade. Quando a montanha que descobre, no seio das aguas, the solicita uma outra compreensto intelectiva, interpde-se uma dimensdo cultural, cuja interpretagdo nao esti ao seu aleance. Lotman identifica as andangas do aventureiro que perserita todos os dominios, & excepgao do moral, com a separagdo entre cigncia € moral, ou entre descoberta ¢ resultado, que ira caracterizar os novos tempos. Alids, essas observagdes situam-se naquela linha de continu. dade que levara Luigi Valli a fazer de Ulisses "{...] il primo uomo del Rinascimento"™”, Todavia, a vinculagao do horizonte conceptual da Personagem de Dante a uma grelha periodolégica deverd ser conside- rada com cautela, Na verdade, tanto a cosmovisto da baixa Idade Média, como a renascentista, integram o conhecimento numa com. plexa estrutura relacional. Para Dante e para o homem medieval, 0 Maria Helena Monteiro da Rocha Pereira, Concepyées helénicas de Jeliedade no Além, Coimbra, 1955, p34, "il viaggio di Ulisse nella Divina commedia di Dante", Testo e contest, Semiotica dell'arte e delta cultura. A cura di Simonetta Silvestron, Bari, La 1980, p98 51h, p96, Op eit p.235, universo desdobra-se através de uma série de paralelismos que con- verge, em sentido piramidal, para Deus, a0 passo que o homem do Renascimento concebe as relagdes especulares que se estabelecem entre 0s varios planos no seu sentido dinamico. Tal como os humanis- tas léem os auctores & luz da doutrina crista, assim os descobridores consideram as suas navegagSes fruto da vontade divina. Por isso, para a mentalidade renascentista, os dominios da moral e da ciéncia, apesar de diferenciados, respondem-se mutuamente. Se 0 Ulisses de Dante niio se conforma com a ordem césmica da Commedia, nao sera tanto Por se encontrar para aquém ou para além dela, mas por se inserir num outro modelo gnosiolégico, Sendo pagio, desconhece o elo que sustém ¢ harmoniza os vérios planos do universo medieval. Daf que nao possa ter acesso ao entendimento da alta montana. Desta feita, Dante, ao distanciar-se da tradigio que conduzia Ulisses de regresso a ftaca, e a0 submeter a versio da sua errancia ocedinica aos designios da inventio, amplia de tal forma o espectro da sua imagem, que, a0 mesmo tempo que propulsiona a sua universaliza- 80, relanga as possibilidades de incidéncia histérica que Ihe sio pré- prias. © vigésimo sexto canto do Inferno salda-se por um feixe de clivagens que projecta uma personage acentuadamente problemati- zante, condenando quer 0 herdi de Trdia, quer o anticherdi errante © autor da Commedia potencia, pois, o lastro significante daquela personagem que Homero ¢ os seus sucessores transmitiram ao mundo ocidental, jé por si, como odeporico — para utilizar um adjectivo ita- liano™, O facto de, na génese da tradig&o literaria italiana, se encontrar a imagem deliberadamente aberta, problematizante e, diriamos, "hodepérica" do Ulisses dantesco, nao serd, com certeza, um factor de somenos importincia, para a compreensio da sua vitatidade na cultura contemporanea, Vejamos. 4 Ulisses que Homero, Benoit de Sainte-Maure, ou Guido delle Colonne trazem de volta para itaca é 0 viajante que completa circularmente a sua Viagem, regressando & patria. Cumpre, assim, os seus deveres, no s6 para com a sua familia (0 velho pai, o quetido © italiano parece ser a tniea lingua modems que conservou o adjective adeporico, proveniente do grego 66s, caminhe, e zopela, viagem. Alguns criticos postulam 0 uso do substantive odeparica para designar a literatura de viagemt ef. Domenico Nucera, "I viaggi e ln lettratura": Gnisci / Sinopati / Stella / Trocchi / Pantini / Nucera / Guglieimi / Moll / Neti / Gajeri, introdusione alla leueratra comparata, A cura di Armando Gnisti, Milano, Mondadori, 2002, p.129-30. 186 flho © a dilecta esposa), como também para com o povo que govema, ao retomar 0 poder, fazendo respeitar a boa ordem. Reconhece a Le; pré-estabelecida, impde-a, e & reconhecido como Rei, Esse reconhec, mento mituo assume uma vertente pragmitica, bem ilustiada pelo comum dominio de um eédigo. O guerreiro identifica-se e é identifi cado pela destreza com que maneja o arco, © amante identifica-ce ¢ & ‘dentificado por deter o segredo da construgio do leito. Contudo, Dante nfo da repouso a Ulisses. A sua asticia e intelic stncia so colocadas ao servigo da fraude, induzindo a tripulayao embrenhar-se numa busca sGfrega do desconhecido. A "orazion pic. ciola” [2nf26.122) é, efectivamente, uma obra-prima de retdrica, Avra. yes de uma Tinguagem sonora ¢ empolgante, apresenta uma. Lei impostora, mas dotada de um fantastico poder de atracgio. O ftaco desafia tudo € todos os Outros — os outros companheitos que sedur a companharem-no numa Viagem até no desconhecido, o outro hemisfe, rio desabitado, a outra Lei. O seu itinerério para além das Colunas de Hércules é, portanto, ume fuga para 0 novo. Sulear © Oceano equivale ao alheamnento dog deveres familiares e dos deveres civicos que the tinham sido confados por Homero, Equivale ao distancianciamento daquela, magninima Piedade de que Virgilio dotara Eneias. Mas equivale também a escolha de um itinerério que segue um rumo diverso do que fora tragado Por Estrabio, Solino, Pompénio Mela, Marciano Capel, ou Taito, © Ulisses de Dante nfo quer nem 0 conforto de Penélope, nem a Le; de ftaca. Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, personagens do Inferno cxjo drama inspira a Dante, do mesmo modo, um notério cnvolvimento subjective, trazem nas asas o desejo que nem os retém, nem os impele para fora do ninho — "Quali colombe dal dicto chiamate / con I'ali alzate e ferme al dolce nido" [n/5.82-83]. De outra forma, as suas asas levam-no por um voo louco —- “de” remi facemmo ali al folle volo” [né26.125]*. B, nesse voo, & Penélope e a Lei de itaca sobrepoem-se outros ideais, Ulisses quer ditar outre Let que no é a do seu Reino mediterranico, mas nao é, também, a des varias cidades do Continente europeu cuja fundagio the é atribuida Essa a sua fuga, x. 4 snilise detinada dos antecedentes titeirios © do significado dessa GibrEssHo. na estrutura do canto, foi elaboreda por Guglielmo Gorm, "Le vali at , emblema dantesco"; ¢ Ezio Raimondi, "Per una immagine della Cemuecal O67, Metafora e storia, Sud su Dante « Petrarea. Torino, Einaudh. (1990) 1983, P3137, 187 Escreve Blanchot: Si, dans la foule, Métre est de fuite, c'est que appartenance a la fuite fait de Y'étre une foule, une multiplicité impersonnelle, une non- présence sans sujet: le moi unique que je suls fait place & une indéfinité paradoxalement toujours croissante qui m’entraine et me dissout dans |e fuite. En méme temps, dans la foule fuyante, le moi vide qui s'y defait reste solitaire, sans appui, sans contour, se fuyant en chacun qui fuit, immense solitude de fuite ot personne n’accompagne personne, Et toute parole alors est de fuite, précipite la fuite, ordonne toutes cho- ses la confusion de la fuite, parole qui en vérité ne parle pas, mais {uit celui qui parle et Pentraine a fuir plus rapidement qu'il ne fuit.* "Une foule, une multipficité impersonnelie". Na sua procura de tum outro indefinido, no seu paradoxal e crescente engrandecimento, 0 rodsxponos do Inferno metamorfoseia-se numa multiplicidade dis- persivamente ocednica — "non vogliate negar I'esperfenza, / di retro al sol, del mondo senza gente," {Inf26.116-17]. Consequentemente, 0 herdi ndo pode deixar de se desmoronar, dissolvido na solidio de uma nio-presenga que desconhece pardmetros, ao alienar-se do seu proprio centro. Para utilizar as palavras de Blanchot — foge de si em cada um dos companheiros que foge. Dante, na Commedia, pode atravessar 0 cosmos de um extremo ao outro, pode até resvalar pelas escarpas das bolge. Qualquer que seja © seu guia, quaisquer que sejam as questdes que sé coloque, todas as respostas convergem para a divina ordem do universo, representada pelo supremo simbolo da cdndida rosa. Dante é um peregrino e, como tal, todos os seus anseios se harmonizam em Deus: La question la plus profonde n'est qu'un moment de la question d’ensemble, elle est ce moment od la question crot qu'il est de sa nature d°élaborer une {question ultime, une dersiere question, question de Diew, question de 'ére, (question de Ia difference entre treet Pesan. Nao é essa iltima questfio aquela que se coloca Ulisses, quando se precipita na multiplicidade, O seu imagindrio transcendente des- conhece Deus. © seu univers gnosiolégico é paradoxal. O enunciado da sua "orazion picciola” [Jnf'26.122] apenas € garantido pela propria enunciagio. Como tal, a busca desmedida do Outro, enquanto fuga, ndo pode deixar de desembocar no naufrégio. "{...] Il n'y a pas Maurice Blanchot, L entretien infin. Paris, Gallimard, (1969] 1995, p.29-30. * p18. 188

You might also like