QUESTAO REGIONAL E GESTAO DO
TERRITORIO NO BRASIL
Claudio A. G. Egler*
Professor do Departamento de Geografia da UFRJ
INTRODUCGAO
A Geografia Econémica foi desgastada pela tradigao positi-
vista do primado da natureza e empobrecida pela posterior filia-
¢&o aos designios historicistas das pretensas leis imutaveis da so-
ciedade. Devido a isto, esse ramo particular do conhecimento afei-
to as dimensées territoriais da atividade econémica perdeu signifi-
cativamente posi¢o nos curriculos académicos das universidades
brasileiras.
Entretanto, a Geografia Econémica é a legitima herdeira da
visio espacial dos fatos econémicos. Nascida como Geografia
Comercial na Inglaterra, ela foi um dos instrumentos descritivos
* Professor de Geografia Econémica do Departamento de Geografia da UFRJ,
MSc. em Engenharia de Produgao (COPPE-UFRJ), Dr. em Economia (UNICAMP).208 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
fundamentais da riqueza das nac6es e, desde logo, talvez tenha
sido o ramo das ciéncias geograficas mals preocupado com os pro-
blemas do desenvolvimento regional.
Esse trabalho é uma tentativa de resgatar esta vertente, pro-
curando estabelecer uma ponte entre economia e geografia na
andlise das relacdes entre a crise e a questdo regional no Brasil. E
uma contribui¢4o para 0 debate teérico sobre a dinamica espacial
do capitalismo e um modesto subsidio para a reflexiio sobre os im-
passes que imobilizam a economia brasileira e cuja superacdo
exige uma concep¢o democratica e participativa de gestao do ter-
ritorio nacional.
POLITICA ECONOMICA E QUESTAO REGIONAL:
UMA SINTESE
O enfoque a partir da questao regional, como alternativa para
explicar as origens das desigualdades territoriais na producio e
distribuigéo da renda nacional, é pouco ysual entre os gedégrafos
econémicos. £ comum encontrar referéncias & divistio, quadro ou
estrutura regional, entretanto raramente as disparidades inter-re-
gionais na apropriacao da riqueza sao tratadas como uma questo
territorial, inscrita no espago desde origens da producao mercantil
e constantemente transformada pelo préprio desenvolvimento do
capitalismo.
Uma questo significa uma contratficao presente no seio da
articulagéo Estado-Sociedade Civil, que no caso da questo regio-
nal se expressa historicamente em uma determinada regionaliza-
g4o, enquanto projegao do espago de atuacao do Estado sobre o
territério, e em diversas formas de regionalismos, enquanto ex-
pressao dos ajustes contraditérios — em alguns casos até antag6ni-
cos, quando entao se configura uma questao nacional — deste es-
paco projetado com a sociedade civil territorialmente organizada.QUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 209
Neste aspecto, é necessério concordar com GRAMSCI (1966),
que a questao regional é necessariamente uma questao do Estado,
na medida que sua resolugao passa necessariamente pela compo-
si¢&o do bloco no poder e pelas medidas de politicas puiblicas que
afetam a economia nacional e a distribuic¢do territorial da renda.
CORAGGIO (1987: 81-2) reafirma esta concepcdo e mostra como os
interesses regionais projetam-se em politicas ptiblicas, cuja forma
mais elementar esta presente na relacao capital-provincia, cuja
existéncia material s6 é possivel a partir de uma determinada poli-
tica tributaria e de alocagao do gasto publico no territério.
A politica tributaria é a forma elementar de politica econémi-
ca do Estado moderno. Como mostra WEBER (1923: 305), “trata-se
de um erro admitir-se que os te6ricos e estadistas do mercantilis-
mo hajam confundido a posse de metais preciosos com a riqueza
de um pais. Sabiam muito bem que a capacidade tributaria é o ma-
nancial desta riqueza, e s6 por isso se preocupam de reter em suas
terras o dinheiro que ameacava desaparecer com o comércio”. A
regionalizacao do territério como forma de racionalizar a contabi-
lidade nacional e ampliar a capacidade extrativa do Estado foi um
dos mandamentos da politica mercantilista desde Colbert e, a par-
tir de ent&o, esta aberta uma arena politica onde interesses locali-
zados podem se contrapor ou tentar influenciar a “racionale” do
Estado, seja ele unitario ou federativo.
No entanto, a politica tributaria é apenas o substrato do apa-
rato de politica econémica a disposi¢ao do Estado contempora-
neo. Do ponto de vista da questo regional é importante destacar a
ampliacao de sua capacidade financeira, no sentido schumpeteria-
no de “avangar” recursos para 0 desenvolvimento econdémico, e a
utilizagéo planejada do gasto piblico, nado apenas nas politicas
anticiclicas de cunho keynesiano, mas também como promotor do
crescimento da economia nacional e de correcao das desigualda-
des sociais e territoriais que dele, inevitavelmente, resultam.210 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
Eneste contexto que, em uma das economias ditas mais libe-
rais do planeta: os EUA, 0 planejamento regional foi inicialmente
empregado — no esforco de recuperag4o da economia norte-ame-
ricana dos efeitos da crise de 1929 popularizado como “New Deal”
— através da criago da Tenessee Valey Authority (TVA). A TVA,
devido as resisténcias dos interesses estaduais que a considera-
vam uma ingeréncia da Unido em suas soberanias, transformou-se
em um simbolo do “New Deal” e representou, no apenas a orien-
tagao do investimento puiblico para a area deprimida da bacia do
Tenessee, mas também um esforgo de coordenagao das diversas
agéncias de governo em torno de metas comuns em uma regiado
‘vem delimitada.
Apesar desta experiéncia pioneira, 2 conformagao do plane-
jamento regional — enquanto instancia de ajuste entre politicas
publicas € interesses territorializados — 86 adquire expressdo de-
finida no imediato pés-guerra. Seu ambiente de formagao é a
Europa arrasada pelo conflito e suas metas originais sdo a recons-
trucdo e o desenvolvimento com um minimo de eqitidade social e
territorial. O locus original destas concepgdes estava na Comissao
Econémica da Europa da ONU, nas teses de seu Secretario-Geral
Gunnar Myrdal, expressas principalmente no “Estudo Econémico
da Europa de 1954” (ECE: 1955), que continha um capitulo espe-
cial sobre os problemas de desenvolvimento regional e localizagao
industrial, e em seu classico texto sobre “Teoria Econémica e
Regi6es Subdesenvolvidas” (MYRDAL, 1957).
As teses de Myrdal acerca dos efeitos da “causagao circular”
no crescimento econdmico, acentuando as disparidades na distri-
buigdo territorial da renda, séo bastante conhecidas. Sua impor-
tancia tedrica para o rompimento com o imaginario do “cresci-
mento equilibrado” difundido pelos liberais de entao, pode ser
avaliada pela excelente revisao critica das concepgées acerca do
desenvolvimento regional realizado por HOLLAND (1976), dispen-
sando maiores aprofundamentos neste trabalho. Apenas um as-
pecto deve ser ressaltado para os limitados objetivos deste texto,QUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL Qu
que sintetiza sua concepcio acerca das relacées entre politica eco-
ndémica e questao regional. Em suas palavras:
“Se as forcas do mercado nao fossem controladas
por uma politica intervencionista, a produg3o indus-
trial, o comércio, os bancos, os seguros, a navegacao e,
de fato, quase todas as atividades econémicas que, na
economia em desenvolvimento, tendem a proporcionar
remuneracdo bem maior do que a média, e, além disso,
outras atividades como a ciéncia, a arte, a literatura, a
educagao, e a cultura superior se concentrariam em de-
terminadas localidades e regides, deixando o resto do
pais de certo modo estagnado” (MYRDAL, 1957: 43).
De um modo geral, esta “politica intervencionista” constituiu
um instrumento de atuacdo do Estado em diferentes nagdes do
planeta, com diversos niveis de desenvolvimento econémico e so-
cial e distintos sistemas politicos, desde regimes democraticos de
cunho social-democrata até militares autoritarios. Algumas expe-
riéncias, como por exemplo a Cassa per il Mezzogiorno, criada no
imediato pés-guerra para promover o desenvolvimento do Sul da
Italia, foram reproduzidas em varias partes do mundo, servindo de
modelo inclusive para a criacio da Superintendéncia de Desen-
volvimento do Nordeste (SUDENE) no Brasil (CARVALHO, 1979).
A eficdcia desses organismos como instrumento de corre¢gao
das desigualdades regionais e instancia de negociacao politica com
interesses territorializados deve ser avaliada caso a caso. Entretan-
to, desde logo é importante frisar algumas das observacées de HOL-
LAND (1977), resultantes de sua andlise da experiéncia britanica,
acerca da crescente autonomia da grande empresa multilocacional
diante das politicas de promogio do desenvolvimento regional.
As relacées entre Estado, grande empresa e territério encon-
traram em Perroux um de seus mais importantes analistas, nio
apenas pela originalidade de suas concepgées, mas também pelo212 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
efeito que produziram sobre os formuladores de politicas regio-
nais. Mais conhecido através da vulgarizacao de sua concepcao
dos “pélos de crescimento” (PERROUX, 1955), ele foi antes de tudo
o te6rico da economia dominante, cuja definicao partia da consta-
tacao de que o mundo da concorréncia perfeita e do “contrato sem
combate” era irreal.
Utilizando a teoria da concorréncia imperfeita de CHAMBERLIN
(1933) para mostrar que as negociacgGes dependem do “bargainig
power” da grande empresa, Perroux estende esta viséo 4 economia
nacional, que seria composta de “zonas ativas” e de “zonas passi-
vas”, sendo que as primeiras exercem “efeito de dominacao” sobre
as segundas, resultando em uma “dinamica da desigualdade”, que
produz resultados semelhantes as inovacdes schumpeterianas, no
que diz respeito ao rompimento do “circuito estaciondrio” da eco-
nomia e de promogao do desenvolvimento. (PERROUX, 1961: 74)
Na légica da construgao perrouxiana, “o espaco da economia
nacional nao é 0 territério da na¢ao, mas o dominio abrangido
pelos pianos econémicos do governo e dos individuos”, submetido
aum campo de forgas, onde a nacao pode se comportar “ou como
um lugar de passagem destas forgas ou como um conjunto de cen-
tros ou polos de onde emanam ou convergem algumas delas”.(PER-
ROUX, 1961: 114). A concluséo que emana destas formulagées é
uma derivada de facil solugao e suas conseqiiéncias para a politica
econémica, dbvias. No universo da “economia dominante” cabe ao
Estado buscar plasmar, através de “pdlos de crescimento” situa-
dos no interior do espago econémico nacional, as forgas motrizes
que atuam na economia internacional.
A questao regional passa entao a ser um aspecto subordinado
da questo nacional e, embora Perroux procure relativizar o peso
dos nacionalismos, sua teoria fornece um excelente argumento
para a utilizagao do territério nacional como instrumento de afir-
macio do Estado. O melhor exemplo da aplicacao pratica destas
concep¢ées € a criacao da Délégation & l’Aménagement du Ter-QUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 213.
ritoire et & VAction Régionale (DATAR) em 1963 e a implementacao
do V Plano de Desenvolvimento Econémico e Social (1965-70), du-
rante a V Republica de De Gaulle. Em uma apreciacao sumaria:
“O Plano partia do principio que o aménagement
du territoire nao deveria ser visto somente como uma
série de acdes compensatérias, permitindo atenuar os
efeitos da evolucéo espontanea, mas ele deveria ter
seus objetivos e sua dinamica propria; ele deveria cons-
tituir uma politica ativa e néo somente corretiva”
(LAJUGE et al., 1979: 378).
Foi o auge da afirmacao nacional francesa e da regionaliza-
40 como forma de tratar a questo regional. A profunda crise eco-
némica que se inicia na década de 70 vai interromper esta trajeté-
ria e forcar a emergéncia de novas formas de tratamento para a
questdo regional nas economias industrializadas. No caso francés
isto significou uma profunda reforma politica que aumentou a au-
tonomia politico-administrativa e financeira das entidades regio-
nais, dotando-as de capacidade de gestao sobre os principais ins-
trumentos de politica econémica que afetam o territério sobre sua
jurisdigao.
Na América Latina, a concep¢4o perrouxiana dos pdlos de
crescimento encontrou terreno fértil no planejamento do periodo
autoritario posterior 4 Revolugao Cubana. A polarizacao foi o ins-
trumento preferencial para promover a integrag4o econémica dos
mercados nacionais em varios pafses latino-americanos. Para CO-
RAGGIO (1973: 64) este processo foi inevitavel, pois:
“Nés sustentamos que, dentro da estrutura sécio-
politica atual, a polarizagao e a tendéncia para a unifi-
cacao dos mercados, longe de ser uma op¢ao que pode-
mos adotar ou ndo, é uma tendéncia clara do sistema214 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
capitalista mundial, uma tendéncia que esté influindo
sobre os paises da América Latina de forma peculiar.”
No Brasil, a partir da crise de 1973, a estratégia governamen-
tal se tomou mais seletiva, atuando nao mais numa escala macro-
regional e sim sub-regional, através da implantag4o de pélos de
crescimento. Poucos foram os pafses do mundo que levaram tao
longe as idéias de Perroux como o Brasil. Sob a perspectiva da
acumulacdo capitalista, a ideologia dos pélos de desenvolvimento
mostrou-se 0 modelo mais adequado para a organizago do territé-
rio proposta pelo estado autoritario, uma vez que envolvia a cria-
¢ao de locais privilegiados, capazes de interligar os circuitos na-
cionais e internacionais de fluxos financeiros e de mercadorias
(EGLER, 1988).
Esta inexorabilidade da légica da polarizacdo afastou o pla-
nejamento regional de suas determinacées sociais e politica privi-
legiando o papel da regionalizac4o como instrumento de ordena-
cao do territ6rio (BOISIER, 1979). O resultado foi o progressivo es-
vaziamento da regiao, enquanto categoria de andlise e interven-
¢4o, em grande parte devido a auséncia “de uma teoria explicita do
Estado ea falha para distinguir entre relacées politicas e econdmi-
cas”. (MARKUSEN, 1981: 98)
CONCORRENCIA, DINAMICA REGIONAL E
INTEGRACAO TERRITORIAL
Uma alternativa para tratar a questao regional é buscé-la de-
finir no quadro da integrac&o territorial, que manifesta a sintese
concreta dos processos de divisao técnica e social do trabalho, de
concentracao produtiva e de centralizacao financeira no territ6-
rio. Desde logo é importante advertir que 0 conceito de territério é
distinto de uma visdo puramente espacial, como o fazem os mem-QUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 215,
bros da “regional science” de fundamento neoclassico. O conceito
de territério pressupGe a existéncia de relagGes de poder, sejam
elas definidas por relacées juridicas, politicas ou econdémicas.
Nesse sentido é uma mediacao légica distinta do conceito de espa-
G0, que representa um nivel elevado de abstracao, ou de regiao,
que manifesta uma das formas materiais de expressdo da territo-
rialidade, como o é, por exemplo, a nagao.
Do ponto de vista da dinamica regional, vista aqui como mo-
tor do processo de integracao, é importante ressaltar e discutir
dois niveis analiticos fundamentais e interligados. O primeiro é 0
das relacGes cidade e campo, que embora sejam tratadas conjunta-
mente nos fundamentos do pensamento econdmico, perderam
grande parte de seu poder analitico ao serem divididas em “ramos”
distintos do conhecimento, como a economia rural e agricola e,
seu quase reverso, a economia urbana e industrial.
Aqui vale um contraponto: muito tem sido atribuido a geo-
grafia acerca da imprecisao do conceito de regio, como um ente
natural e histérico; entretanto, desde a sua origem, enquanto con-
ceito geografico, Vidal de la Blache afirmava, no inicio do século,
que “cidades e estradas sao as grandes iniciadoras de unidade, elas
criam a solidariedade das areas”. Neste sentido, a regiao 6, antes
de tudo, um conceito-sintese das relagées entre cidade e campo,
definindo-as e particularizando-as em um conjunto mais amplo,
que pode ser tanto a economia nacional como a internacional.
Admitindo isto, é importante, desde logo, afastar qualquer
viés fisiocrata acerca do processo de formacao das regides. No ca-
pitalismo, as regides ndo se formam a partir da captura do exce-
dente agricola, como alguns ingénuos podem fazer crer. Nova-
mente a geografia nos ensina que a “regiao nao criou a sua capital,
6a cidade que forjou sua regido” e “a industria e o banco, mais do
que simples instrumentos desta construgao, sao 0 verdadeiro cére-
bro dela” (KAYSER, 1964: 286). Toda regiao possui um centro que a
estrutura, e a manifestacdo mais concreta dos niveis de integragéo216 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
territorial em uma determinada regiéo € a consolidacao de sua
rede urbana. Na verdade, pode-se ir além disso: o préprio estagio
de desenvolvimento da rede urbana revela os niveis de integragio
produtiva e financeira de uma regio.
E importante frisar que nesta estrutura nao existe nada que
leve a um pretenso equilfbrio interno ou externo, como algumas
formulacoes neoclassicas da “regional science” tentam difundir.
Embora alguns modelos descritivos e dedutivos tenham sido for-
mulados a partir de situacdes de equilibrio, como é 0 exemplo da
célebre “teoria dos lugares centrais” de CHRISTALLER (1933), seu
poder explicativo é bastante limitado e estatico, sendo incapaz de
ax conta das diversas situagdes no tempo & NO Vspage.
Estas observagdes podem ser ampliadas para a maioria das
“teorias” de crescimento regional, desde aquelas de fundamento
keynesiano, como a “teoria da base de exportacdo”, como também
aquelas de viés schumpeteriano como a concepgao perrouxiana
do “crescimento desequilibrado”. Nao estd entre os objetivos
deste trabalho dar conta do debate hist6rico acerca da dinamica
regional, apenas é importante frisar que boa parte das componen-
tes fundamentais desta dinamica repousam nas relagdes que se es-
tabelecem entre cidades e entre elas e 0 campo. Isto é particular-
mente importante na andlise do processo contemporaneo de rees-
truturacdo econémica, onde novos padrées de integra¢4o produti-
va e financeira estao redefinindo a estrutura das relacdes cidade e
campo e contribuindo para a reelabora¢4o do desenho das redes
urbanas regionais nas economias avangadas.
O segundo nivel a ser trabalhado é 0 das relagdes entre cen-
tro e periferia, que neste texto sera assumido em suas dimensdes
originais, isto é, como resultante da divisao territorial do trabalho,
da concentrac4o produtiva e da centralizacao financeira durante o
processo de formacao do “mercado intemo” para o capitalismo.
Segundo LENIN (1899: 550), este processo “oferece dois aspectos, a
saber: o desenvolvimento do capitalismo em profundidade, querQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 217
dizer, um maior crescimento da agricultura capitalista e da indés-
tria capitalista em um territério dado, determinado e fechado, e
seu desenvolvimento em extensio, quer dizer, a propagacdo da es-
fera de dominio do capitalismo a novos territérios”. Isto significa,
em poucas palavras, que as relacdes centro-periferia séo, desde a
origem, um processo dindmico de aprofundamento vertical e ex-
pansao horizontal das forgas produtivas e das relacdes de produ-
go capitalistas.
Isto foi percebido claramente por PREBISCH (1949) em sua
analise sincrénica da economia mundial do pés-guerra, onde cor-
retamente pés énfase na desigual velocidade de incorporagdo do
progresso técnico nas diversas porcées das economias capitalis-
tas, que resultavam em diferentes niveis de produtividade e, con-
seqiientemente, na deterioragao dos termos de intercdmbio entre
centro e periferia. E importante, desde logo, afastar as concepgdes
neo-ricardianas da existéncia de “trocas desiguais” devido as dife-
rentes quantidades ou remuneracées do trabalho entre centro e
periferia.
AYDALOT (1976) parte da nogdo de progresso técnico para
analisar a dinamica regional das economias capitalistas. Para ele,
“se se considera que as implicagdes do nivel tecnologico sao es-
senciais, mais do que 0 nivel de investimentos, as transferéncias
de excedente apareceréo menos importantes que as escolhas es-
paciais das técnicas (...). Mais do que isso, sua visdo do imperialis-
mo esta definida “pela aptidao do capitalismo de impor uma divi-
sao interespacial do trabalho tal que certos espacos tendem a se
especializar nos produtos que possuem uma forte dose de conhe-
cimento, enquanto outros se especializarfio nas producdes que
exigem conhecimentos inferiores-(...) Assim, a conclusdo é sim-
ples: “Os espacos nao se diferenciam mais sobre a base de seu es-
toque de capital, mas em func4o das aptiddes produtivas de sua
forga de trabalho, e de sua aptiddo em conceber bens novos e pro-
cessos técnicos mais avangados”.218 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS:
Em sua forma geral, a concep¢ao de Aydalot assemelha-se 4
visao do ciclo do produto de VERNON (1966) embora reforce o
papel da qualificagao da forga de trabalho como elemento de dife-
renciacao no espaco econémico. Isto permite com que ponha én-
fase na mobilidade do trabalho e na transmiss&o interespacial das
técnicas como elementos fundamentais de integracao territorial.
Em sua visdo, para que haja desenvolvimento, “o trabalho caracte-
rizado de maneira qualitativa e dinamica (aptidao para a progres-
so) tornou-se a variavel estratégica”. Em sintese, a dindmica re-
gional para este autor pode ser resumida assim:
“Nas relagdes entre dois espacos quaisquer, h4
sempre uma parcela de autonomia e uma parcela de in-
tegracdo. No correr do tempo, ao longo de um processo
secular, se produz um alargamento espacial das rela-
Ges entre os espagos de modo que os espacos ante-
riormente aut6nomos se aproximam (reduc¢ao dos cus-
tos das mobilidades, reducdo das ‘distancias’ entre es-
pacos, desenvolvimento das informagGes, do conheci-
mento interespacial). Assim, em dinamica de longo pe-
riodo, dois espacos quaisquer passam, um vis-a-vis 0
outro, de um estado de autonomia a um estado caracte-
rizado pelas relagdes cada vez mais intensas, embora
os mecanismos da mobilidade continuem os mes-
mos”(AYDALOT, 1976: 15-20).
Aydalot pée énfase na “distribuicdo desigual das técnicas”,
porém nao expe quais os fatores que a explicam, exceto um de-
senvolvimento origindrio, também desigual. Neste sentido, a mo-
bilidade das atividades produtivas seria um fator de homogeneiza-
ao, a longo prazo, do espaco econémico através da difuséo da
técnica pelas suas diferentes parcelas. Neste mundo construido
pela solidariedade nao existe espago para a concorréncia, assim éQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 219
facil perceber a raiz de sua critica aos autores marxistas que anali-
sam o desenvolvimento do capitalismo através de seus padrées de
concorréncia (mercantil, concorrencial e monopolista), pois para
ele “nao é 0 capitalismo que se transforma, mas 0 quadro espacial
que se amplia” (Op. cit., p. 18), o que sem dtivida constitui uma cu-
riosa forma de “determinismo espacial” da dinamica das econo-
mias capitalistas.
Do ponto de vista da concorréncia intercapitalista, uma das
sinteses mais elaboradas da dinamica regional no capitalismo foi
aquela realizada por HOLLAND (1976). Partindo da critica da visio
neoclassica de equilibrio no espaco econémico, argumentando
sobre as teorias de crescimento polarizado de Myrdal e Perroux,
Holland utiliza a teoria da concorréncia oligopélica de SYLOS-LABI-
NI (1964) para ensaiar uma sintese entre os aspectos micro e
macro da dindmica regional através da defini¢do do setor mesoe-
condémico. Para ele
“o grau de competicao desigual entre grandes e peque-
nas firmas é tao expressivo nas principais economias
capitalistas que desqualifica toda a teoria regional fun-
dada em modelos microeconémicos competitivos e
suas sinteses em teorias macroeconémicas. O que
emergiu na pratica leva a um novo setor mesoeconémi-
co entre o nivel macro de teoria e politica e o nivel
micro das pequenas firmas competitivas” (HOLLAND
1976: 138).
O efeito regional da concorréncia entre firmas meso e mi-
croeconémicas depende diretaménte da distribui¢ado espacial das
firmas e, em teoria, poderia se afirmar que
“algumas regides poderiam ganhar, a curto e médio
prazos, se elas conseguissem manter tanto a matriz,220 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
como as plantas subsididrias de uma companhia me-
soeconémica que é capaz de proteger ou aumentar sua
parcela no mercado nacional através de aumentos de
escala, inovagées ou taticas de formacdo de precos
interfirmas” (Op. cit., p. 139).
No entanto, Holland parte do exemplo dos EUA para mostrar
que as grandes firmas nem sempre contribuem para integrar as re-
gides de um mesmo mercado doméstico, pois “quando companhia
atingem lucros extraordindrios devido a uma posicgaéo dominante
no mercado nacional, elas preferem localizar novas plantas em
economias mais desenvolvidas e com mercados que crescem mais
rapidamente do que em regides menos desenvolvidas de sua pré-
pria economia” (Op. cit., p. 140). Isto se deve ao fato de que, em
outros mercados, o grau de competicao oligopdlica pode ser mais
baixo ou que existem brechas a serem ocupadas, 0 que pode con-
ferir lucros extraordindrios as empresas que atingirem posicdes
pioneiras em outras parcelas do mercado mundial.
A mesoeconomia, enquanto categoria analitica, 6 uma solu-
cdo simplificadora para a amplitude da concorréncia em sua di-
mensao territorial. Entretanto, apesar disso e do dualismo que em-
prega ao discutir seu papel na dinamica das regides mais desenvol-
vidas vis-4-vis 4s menos desenvolvidas, Holland avanga no sentido
de territorializar as estruturas de mercado nas economias capita-
listas, mostrando como, em um sistema crescentemente interna-
cionalizado, a légica do investimento privilegia os territérios eco-
némicos que possam garantir vantagens competitivas 4s grandes
empresas que neles se instalam.
No sentido de avancar na compreensio do carter destes ter-
ritérios econ6micos, que apresentam a capacidade dinamica de
atrair novos investimentos, STORPER (1991: 14) mostra que os com-
plexos territoriais, onde existe aglomeracgéo industrial, “sio o
modo geografico pelo qual as economias externas de escala nosQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 221
sistemas produtivos sdo realizadas pelas firmas” Para ele existe
uma forte relacéo entre as economias de aglomeragao — e tam-
bém de urbanizacao — e o surgimento e desenvolvimento de
novas indistrias. Citando o exemplo do Silicon Valley nos EUA,
Storper afirma que “as cidades e regides industriais emergem
quando a divisdo social do trabalho se desenvolve no interior do
sistema produtivo, e ndo simplesmente porque estas cidades for-
neciam insumos e infra-estrutura para as firmas industriais”.
Esta é uma questao central quando se analisa capitalismos
tardios e periféricos, pois muito da histéria e da geografia da
América Latina parte do pressuposto de que a indistria nasceu
como continuacdo do circuito mercantil-exportador através do
processo de substituicdo de importacgdes. Como veremos adiante,
isto é apenas uma observacao superficial, pois a industrializagio
brasileira desdobra-se do circuito mercantil pela légica da acumu-
lac&o e da valorizagao de capitais, e nao pela mera conquista de fa-
tias domésticas do mercado mundial. Isto é fundamental para que
se compreenda que a formacado de um complexo territorial das di-
mensées de Sao Paulo nao representa apenas uma expressdo geo-
grafica de economias de aglomeragao, mas também — e principal-
mente — uma fonte de crescimento da produtividade industrial,
isto 6, de acumulacdo de capital no sentido clssico. Para STORPER
(2991: 16):
“A dinamica da industrializagao esta fortemente
associada & urbanizacao, porque as inovagGes técnicas
no curso do desenvolvimento dos setores lideres so
freqiientemente conseguidos no interior de complexos
urbano-industriais (...) A complexidade das relacées
interfirmas, combinada com as estruturas do mercado
de trabalho dos centros territoriais de crescimento, ga-
rante que o centro territorial sera 0 foco de inovacées
tecnoldgicas em produtos e processos.”222 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
Nao se trata apenas da urbanizac4o enquanto processo geral,
pois a légica da divisdo territorial e da concorréncia no interior do
conjunto dos setores produtivos dominantes faz com que as cida-
des se organizem hierarquicamente em uma rede urbana, enquanto
expressao da integrac4o territorial do mercado nacional. Storper
associa a configuracao da rede urbana ao padrao de industrializa-
go definido pelo conjunto dos setores dominantes, visto como
aqueles que empregam grande nimero de trabalhadores, possuem
altas taxas de crescimento do produto e/ou do emprego, disp6em
de grandes efeitos propulsores nos setores a jusante e produzem
bens de capital ou bens de consumo de massa. Assim, segundo este
autor pode-se distinguir quatro fases distintas, que coincidem gros-
so modo com os ciclos de inovacio de Schumpeter.
“A idade téxtil do capitalismo no infcio do século
19, a era do carvao-aco-indtstria pesada na virada
deste século, ou 0 periodo de produ¢do em massa do-
minado pelos automéveis e bens de consumo duraveis
nas décadas que se estendem entre 1920 e 1960. Agora,
nds estamos entrando em um perfodo por novas indtis-
trias, como a eletrénica, e novos setores de servigos
como 0s servigos de apoio a produ¢ao” (Op. cit., p. 17).
E importante observar que Storper procura relacionar os pa-
drées de integracao, expressos fundamentalmente nos complexos
territeriais e na rede urbana, as diferentes fases do capitalismo in-
dustrial. Com isto, abre a possibilidade de que anova configuraca4o
produtiva que emerge da crise e a reestruturagaéo da economia
mundial na década de 70 venham a alterar a distribuicao territorial
do investimento, inclusive nos paises de capitalismo tardio e peri-
férico, no processo que RICHARDSON (1980) denomina de “reversio
da polarizacao”, isto €, a tendéncia a uma maior dispersio espacial
do investimento, revertendo os mecanismos concentradores queQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 223,
caracterizaria o periodo de substituicao de importagées em dire-
cdo a formas territoriais dispersas fundadas na producao flexivel
(DROULERS, 1990).
CRISE, QUESTAO REGIONAL E GESTAO
DO TERRITORIO
A crise do padrao de acumulagdo, que vigorou na economia
mundial desde o imediato pés-guerra até o inicio dos anos 70, atin-
giu nacées e regides de modo desigual. Enquanto crise da hegemo-
nia norte-americana, ela se manifestou em fraturas irreversiveis
No espaco monetério supranacional fundado no délar, enquanto
moeda internacional, forgando a reajustes drasticos na politica
monetaria e cambial dos Estados nacionais.
Enquanto crise do padrao de concorréncia intercapitalista,
elase manifestou no acirramento do conflito entre grandes blocos
de capital, deflagrando um processo de fus6es e incorporagées de
empresas multinacionais que alterou significativamente o planis-
fério mundial da propriedade do capital. Por final, enquanto crise
do padrao tecnolégico fundado na inesgotabilidade dos recursos
naturais e na inexorabilidade das economias de escala, enquanto
fatores bdsicos para a producéo competitiva em qualquer parte do
planeta, ela levou 4 obsolescéncia de antigas regiées industriais
consolidadas e forgou a reestruturacao produtiva das economias
nacionais.
A crise e a reestruturagdo econémica afetou diretamente as
relacdes Estado-regiao, colocando a questao regional em um novo
patamar, onde o processo de globalizacao da economia mundial €
acompanhado pela fragmentacao politica em interesses localiza-
dos (BECKER, 1985). Estas relagdes que estavam profundamente
marcadas pela capacidade de regionalizago do Estado-nagao fo-
ram profundamente alteradas pela emergéncia de novas formas de224 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
regionalismo, que, em alguns casos extremados, ameagam a pr6-
pria integridade da economia nacional.
Isto pode ser atribuido a varios motivos. Em primeiro lugar,
a reducdo do ritmo de crescimento das economias nacionais e a
generalizac4o de formas de subcontratac4o entre empresas permi-
tem uma vasta gama de operacées cont4beis que levaram a uma
substancial perda da capacidade extrativa do Estado, concomitan-
temente com o aumento do desemprego nas atividades e regides
tradicionais. Como conseqiiéncia deste duplo movimento, houve
um crescimento desproporcional dos encargos sociais a um limite
que inviabiliza qualquer politica territorial de distribuigdo da
renda com base nos instrumentos fiscais classicos, acentuando,
por outro lado, os conflitos distributivos regionais.
Em segundo lugar, embora o desenvolvimento de novos ma-
teriais e a flexibilizagao dos processos produtivos tenha contribui-
do para reduzir a velocidade do processo de concentragao espa-
cial da atividade industrial, ainda é prematuro para assumir inte-
gralmente as teses de MARKUSEN (1985), acerca da falibilidade do
principio da “causagao circular” de Myrdal. A experiéncia recente
nao permite conclusées definitivas acerca da tendéncia espacial
das economias capitalistas avangadas, existem evidéncias de que
a desconcentragao da producg&o, quando ocorre, nao é acompa-
nhada pela descentralizacao da gestao financeira e estratégica das
empresas, que se baseia cada vez mais em redes telematicas para
ampliar sua drea de atuacao e reduzir o tempo de decisao.
Por outro lado, o papel do Estado nao pode ser desprezado
na criagdo de novas localizagées industriais vinculadas as chama-
das “novas tecnologias”. Seja nas economias liberais, como os
EUA, onde os gastos militares tiveram papel decisivo na formacao
do “Silicon Valey”, na Calif6mia, ou da “Route 128”, nos arredores
de Boston. Nas economias reguladas, como a Franga, onde a poli-
tica dos “technopoles” (pélos tecnolégicos), como Sophia-Anti-
polis, recebeu forte suporte de 6rgdos ptiblicos, empresas estataisQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 225
e garantia de mercado civil e militar. Seja também nas economias
de “capitalismo organizado” (TAVARES, 1990), como 0 Japao, onde
a politica das “technopolis” (cidades tecnolégicas), como Tsuku-
ba, constitui um elemento importante de reestruturagao produtiva
ede negociacao com as comunidades territorialmente localizadas.
A dimensio territorial do desenvolvimento econémico tende
ase alterar com a difusao de métodos flexiveis de produgao. HAR-
VEY (1989: 159-160) mostra o papel do acesso ao conhecimento
técnico-cientifico 4s novas formas de produgdo como instrumen-
tos fundamentais da concorréncia intercapitalista. SCOTT e STOR-
PER (1992: 13) distinguem a configuracao das regides onde predo-
minam as economias de escala daquelas onde a flexibilidade e as
economias de escopo ou amplitude sao dominantes.
Isto significa que, embora os centros de decisaéo permane-
cam fortemente centralizados nas cidades mundiais, as atividades
produtivas podem ser desconcentradas, desde que hajam cone-
x6es faceis entre as unidades produtivas e os centros de gest&o e
exista a disponibilidade de trabalho qualificado e uma base técni-
ca adequada as operagées industriais. Estudos de campo realiza-
dos no Vale do Paraiba, entre as duas grandes metrépoles nacio-
nais do Rio de Janeiro e Sao Paulo, bem como nas suas ramifica-
gées no Sul de Minas Gerais, mostraram que existem bolsées de
trabalho especializado e qualificado formados por formas pretéri-
tas de industrializacéo — como € 0 caso do Vale do Sapucai (MG),
que sediava antigas indistrias do complexo metal-mecanico, in-
clusive ligadas ao setor militar como a fabrica de armas de Itajubé
— que fornecem mao-de-obra e base técnica para as novas fabri-
cas do segmento eletro-eletrénico @ mecAnico que esto se implan-
tando recentemente na regiado (BECKER e EGLER, 1989).
F importante que se frize que este processo nao ocorre uni-
camente por fatores espontaneos, ou seja, pela atuagao das “livres
forgas do mercado”. As andlises realizadas em estudos comparati-226 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
vos entre o Brasil e a Franca mostraram que o Estado desempe-
nhou papel determinante na afirmacao dos centros de produ¢ao
com maior densidade tecnolégica nestes dois paises, seja no seg-
mento aeroespacial como ocorre em Toulouse e Sao José dos
Campos, ou eletro-eletrénica e informatica como em Grenoble e
Campinas. Mais do que isto, nao se trata, na visdo corriqueira do
Estado, como o poder centralizado no nivel mais elevado da estru-
tura juridica nacional, mas sim de uma aco conjunta das diversas
esferas de poder que envolve desde 6rgaos federais até entidades
municipais ou comunais (BECKER € EGLER, 1991).
Essa talvez seja a principal observacdo acerca da reestrutu-
rac¢&o produtiva e as novas condigées de operagiio do Estado. Nao
é mais possivel que as fronteiras de acumulacado sejam abertas
apenas pelos investimentos concentrados em grandes projetos, é
necessdria uma intensa cooperacdo entre as diversas esferas de
poder para criar campos de atracéo para o investimento produti-
vo, garantindo desde as obras de infra-estrutura até a formacao e
qualificacaéo da forga de trabalho. Isto nao é possivel sem uma
forte participacao e efetivo envolvimento das autoridades locais e
regionais, 0 que coloca a questao do federalismo em outro pata-
mar, ultrapassando os limites dos ajustes politicos para fincar rai-
zes no terreno da economia.
E somente sob este referencial que é possivel analisar as pro-
postas atuais de politicas publicas que afetam o mercado domésti-
co brasileiro a partir das estruturas produtivas regionais. As refor-
mas constitucionais na distribuigao dos recursos ptiblicos altera-
ram significativamente a parcela atribufda a cada esfera de poder,
bem como criaram os chamados fundos regionais para o Norte,
Nordeste e Centro-Oeste com recursos fixados por determinacao
constitucional. Entretanto, se estao previstas na Carta Magna de
1988 as atribuigdes da Unido no que diz respeito ao desenvolvi-
mento regional (Cap. V, Art. 43), o mesmo nao pode ser estendidoQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 227
completamente as esferas estadual e municipal, que apresentam
situacdes muito diferenciadas no que diz respeito as suas respecti-
vas politicas territoriais.
Isto pode ser observado claramente quando se analisa as
propostas de implantac4o das Zonas de Processamento de Expor-
tacdes (ZPE), preferencialmente localizadas nos estados nordesti-
nos. Criadas em 1988, suspensas em 1990 com o Plano Collor Ie
retomadas em 1992, ainda no mandato deste ex-presidente, as
ZPEs ainda nao entraram em operacao e, talvez, jamais venham a
fazé-lo plenamente. As criticas contundentes a sua extemporalida-
de e ao papel de redutor do mercado doméstico, através do instru-
mento da extraterritorialidade e da reducdo da restri¢ao cambial
(SERRA, 1988), nao foram suficientes para afastar definitivamente
este instrumento de politica territorial do cendrio brasileiro.
No caso nordestino, o tinico fator que poderia constituir-se
como vantagem locacional para a implantagao das ZPEs seria a
disponibilidade de farta mao-de-obra barata e de baixa qualifica-
¢&o que seria utilizada em atividades rotineiras em unidades de
montagem padronizada, no estilo das “maquiladoras”. No entanto,
situagdes como esta est4o presentes em varios paises da América
Latina, principalmente no México e Caribe, com posicdes geogra-
ficas mais vantajosas do que o Brasil para competir como “plata-
formas de exportag4o” para o mercado norte-americano. Mais do
que isso, aparentemente o que o capital internacional esta buscan-
do nestas “c4psulas produtivas” é trabalho rotineiro submetido a
rigorosa disciplina e com fortes restricdes a sindicalizagdo (TSU-
CHIYA, 1978), o que, convenha-se, é o padrao de Cingapura e nao de
uma nacfo que aspira o minimo de justi¢a social com democracia.
Partindo do pressuposto de que as ZPEs ndo serao instru-
mentos significativos de atragao de capitais internacionais, pelos
motivos apontados acima, bem como de que o mercado nacional
sera preservado da concorréncia danosa das firmas que nelas ve-228 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
nham a se instalar, o inico motivo que pode justificar sua implan-
taco esta na possibilidade das empresas ja presentes no mercado
doméstico operarem no mercado mundial sem restrigdes cambiais
e tarifarias, o que significa na verdade concentrar os incentivos e
subsidios fiscais e crediticios ja existentes para a exportacao, com
o acréscimo da liberdade cambial, em um conjunto de pontos pri-
vilegiados no territorio nacional (EGLER, 1989).
Os 6nus e riscos da reducao do controle cambial séo muito
grandes para a integridade do mercado doméstico e sua adogao
deve ser criteriosamente avaliada. A unica possibilidade em que
seria justificado seu emprego esta em importar processos produti-
vos inteiros, em setores determinados pelas caracteristicas pecu-
liares da estrutura industrial, com a finalidade de praticar uma
forma de engenharia reversa em escala regional. Nestes casos, um
criterioso ajuste deve ser realizado entre o setor publico e o priva-
do, no sentido de que a regiao hospedeira esteja capacitada a ab-
sorver e difundir tecnologia, 0 que significa investimentos n&o
apenas em infra-estrutura e capacidade produtiva, mas principal-
mente em servicos coletivos que garantam a capacitacao técnico-
profissional da mAo-de-obra, o que envolve as diversas esferas de
poder em uma divisao mais equanime dos encargos e atribui¢des
relativas ao desenvolvimento regional.
A Zona Franca de Manaus (ZFM), criada em 1957 e implanta-
da em 1967, nio deve ser confundida com uma ZPE. Embora
ambas estejam sujeitas a regime tarifario especial, a primeira é
uma 4rea industrial e comercial orientada basicamente para 0
mercado doméstico e a segunda destina-se a operar preferencial-
mente no mercado mundial. O modelo da 2FM esta sendo generali-
zado para a regido Norte do pais com a recente criacdo das dreas
de Livre Comércio de Tabatinga, Guajaré-Mirim, Paracaima, Bon-
fim — em areas fronteirigas da Amazénia— e Macap4-Santana, no
estado litoraneo do Amapa. A justificativa para esta generalizagao
de areas tarifarias especiais na Amaz6nia reside em que a dificilQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 229
acessibilidade elimina a necessidade de controle aduaneiro. (BRA-
SIL, 1992: 27). Na verdade, este controle jamais foi efetivo na regio
e tais 4reas somente regularizam uma situacao que ja estava pre-
sente na fronteira amazénica.
Com a promulgacao da Nova Constituic¢ao, a Zona Franca de
Manaus teve o seu prazo de operagdo prorrogado por mais 25
anos, embora isto nao a tenha livrado dos efeitos da politica de li-
berag&o das importagées posta em pratica pelo Governo Collor.
Na verdade, tanto uma zona franca, como uma zona de processa-
mento de exportacGes s6 sao atrativas, do ponto de vista do inves-
timento capitalista, se o restante do mercado doméstico permane-
ce protegido. Sao as barreiras tarifarias e cambiais no mercado do-
méstico que definem o nivel do incentivo implicito nas areas de
livre-comércio. Isto é conhecido desde o mercantilismo, apesar da
retérica neoliberal.
No caso especifico de Manaus, a situag4o é complexa, pois
embora 0 papel comercial tenha sido importante, a partir dos anos
setenta — dadas as mudancas do segmento eletro-eletrénico em
escala mundial, com a introdugao de semicondutores integrados —
aatividade industrial na montagem de produtos eletrénicos de con-
sumo e aparelhos 6ticos passou a concentrar-se fortemente na
Zona Franca. E evidente que isto significou uma distor¢ao na confi-
guracdo da estrutura produtiva do segmento eletro-eletr6nico no
Brasil. Mais do que isso, este processo o distanciou fisica e tecnolo-
gicamente do eixo principal do complexo metal-mec4nico, criando
alguns problemas para sua reestruturacao produtiva. Apesar desta
configuragao peculiar, as exigéncias quanto a indices crescentes de
nacionalizacao e a busca de verticalizagao fizeram com que parcela
significativa da indistria de componentes eletrénicos se deslocas-
se para a regido, a0 mesmo tempo em que intensificavam os fluxos
comerciais com 0 nticleo dinamico da economia nacional.
A prolongada recess&o e 0 avanco japonés e coreano no mer-
cado mundial de eletro-eletrénicos tiveram efeitos devastadores230 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS
ndo apenas no Brasil, mas também em varios paises de economia
avancada. Firmas consolidadas perderam fatias ponderaveis de
seu mercado devido a agressividade da concorréncia em escala in-
temacional. A estratégia das empresas lideres no setor tem sido de
conglomeracao, diversificacéo e rapida expansao das dreas de mer-
cado. No caso brasileiro, dadas as condigGes de formacao e matu-
ragao do ramo eletro-eletrénico e as dificuldades de sua integracio
com a industria automobilistica e de informatica — considerando
aqui inclusive as propostas politicas de reserva do mercado domés-
tico — deve-se ponderar cuidadosamente as medidas de politica
econémica para o setor, j4 que néio envolvem apenas decisées
quanto a competitividade do ramo industrial, mas também a forma
territorial peculiar que assumiu o seu desenvolvimento no Brasil.
E na Figura 1 que podem ser avaliadas as recentes medidas
de elevar o imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre os
eletro-eletrénicos produzidos fora da Zona Franca de Manaus, 0
que constitui uma forma curiosa e invertida de incentivo locacio-
nal. Bem como sua peculiar posi¢o no mercado doméstico diante
da revogacao das medidas que garantiam sua reserva para empre-
sas nacionais de informatica. A enxurrada de pedidos de incenti-
vos para a instalagdo de unidades fabris de computadores e perifé-
ricos em Manaus nao pode ser dissociada de uma definicao mais
precisa acerca da politica industrial para o setor, assim como da
politica territorial de desenvolvimento para a Amazénia. Sao
ambas faces da mesma moeda.
Por final, 0 MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) constitui um
ambicioso projeto de integracao territorial, relativamente inde-
pendente dos planos norte-americanos para a América ao sul do
Equador, que se defronta com sérias dificuldades para sua efetiva
implementacao. O Tratado de Assuncao (1991), firmado pelo Bra-
sil, Argentina, Uruguai e Paraguai, prevé a criacéo de uma unido
aduaneira que progressivamente se ajustaria na consolidagao de
um mercado unificado, nos moldes adotados originalmente peloQUESTAO REGIONAL E GESTAO DO TERRITORIO NO BRASIL 231
Tratado de Roma (1957) para a formac4o do Mercado Comum
Europeu.
O MERCOSUL e as ZPEs brasileiras