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PLATONISMO E CRISTIANISMO: IRRECONCIABILIDADE RADICAL OU ELEMENTOS COMUNS? Bento Silva Santos* SINTESE — Neste artigo, 0 autor aborda as afirma- des de Heinrich Dérrie em favor da nao-coneilia- do radical entre a filosofia grega — especialmen- te o platonismo - ¢ 0 cristianismo. Apés expor os pontos centrais da tese de Dorrie, o autor critica a sua argumentagao, no intuito de tomar evidente que o platonismo, longe de ser uma “ficgdo” apologética, ofereceu aos Pais da Igreja os instru- ‘mentos conceituais para entender o credo cristao, ‘This instrumentos conceituais estao profundamen- te ligados aos elementos centrais da ontologia da filosofia de Platao. PALAVRAS-CHAVE - Pensamento de Heinrich Dorrie. Filosofia grega. Pensamento cristo. Pais da Igreja. Recepgio do platonismo. ABSTRACT - In this article the author treats Heinrich Dérrie’s statements for the radical non- conciliation between Greek philosophy - specially Platonism - and Christianity. After exposing the central points of Dérrie's thesis, the author criticizes his argumentation in order to make evident that Platonism, far from being an apologetical “fiction”, offered to the Fathers of the Church the conceptual tools to understand the Christian Creed. Such conceptual tools are deeply elated to the central notions of the ontology of Plato's philosophy. KEY WORDS - Heinrich Dorrie's thought. Greek philosophy. Platonism. Christian thought. Fathers of the Church. Reception of Platonism. Se grande parte dos Padres da Igreja ou dos escritores eclesiasticos tanto da esfera da filosofia helénico-patristica do mundo grego' como no ambito da Patristica latina reflete fundamentalmente uma zecep¢do positiva do Platonismo ao lado de outras atitudes criticas em relagao as formas do pensamento filoséfico* , como com- * Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espitito Santo, E-mail jorgeaugusto@olimpo. com. br. Este attigo desenvolve amplamente minha comunicacéo feita no Encontro Nacianal de Pis-Graduacado em Biosofa - ANPOF (29 de setembto a 03 de outubro de 2002, Sao Paulo-SP) no Grupo de Trabalho (= GT) "Plato e platonismo" Por exemplo, o Pseudo-Dionisio Areopagita procura conciliar, sobretudo em seus tratados “Os nomes Givinos", “Hierarquia Celeste", Cristianismo e Platonismo: cf. J. RICO PAVES, Semejanza a Dios y divinizacién en ol "Corpus Dionysiacum" platonismo y cristianismo en Dionisio el Areopagita. Toledo, Estudio Teolégico San Ildefonso, 2001. Podemos identificar cinco tipos fundamentais da atitude dos cristdos frente & flosofia grega: 1a) Uma atitude de total recusa e de hostilidade; 2a) Uma grande abertura mental ¢ uma assimilagdo das formas do pensamento filos6fico; 3a) Uma atitude extremamente critica, que nao excluia, porém, a ecepgao de certos elementos; 4a) Uma ampla recepgao de formas do pensamento filoséfico, 4s vezes em um espirito de sincretismo; 5a) Uma recepgéo conexa & uma transformagéo. Porto Ale, P. 323-336 VERITAS [vas [na | sotembro 2003 preender ou justificar 0 encontro entre o Platomismo e Cristianismo nos primeiros séculos da era crista°? O que sucedeu quando alguns escritores manifestaram uma grande abertura mental assimilando elementos do platonismo*? Quando, por exem- plo, a ontologia de Platao constitui a base da teologia de Atanasio na obra Discur- sos contra os Arianos, segundo assevera Fy. Ricken, isto significa afirmar que a forma da metafisica platénica nele representava somente algo de acidental ou de meramente extrinseco?® Se os elementos do platonismo foram transformados e nunca foram aceitos no significado que tinham para os platénicos, é legitimo sus- tentar que houve uma desp/atonizagao na medida em que os termos eram utiliza- dos para indicar um antiplatonismo claramente acentuado, isto é, a fé em um 36 Deus, criador do céu e da terra? E metodologicamente aceitavel propor a absoluta oposigao entre filosofia grega, particularmente entre Platonismo e Cristianismo, sob 0 pretexto de que tal encontro na época dos Padres resultou na corrupgao da pureza originaria do Aerigma, cujo fruto seria toda dogmatica da Igreja? Seria pre- ciso, entao, realizar um processo de “deselenizagao” do cristianismo, ou seja, aban- donar esquemas conceituais e principios de natureza filosdfica que a teologia cris- 14 dos primeiros séculos elaborou no encontro com a filosofia grega? Ora, no ambito do debate em torno da “deselenizagao” do cristianismo desde o século XIX, a “legitimidade” do encontro entre mensagem crista e 0 /agos filos6- fico foi assaz contestada, sobretudo por Heinrich Dérrie (1911-1983), conhecido especialista da tradicao platénica da época imperial, o qual propde um antagonis- mo radical entre filosofia grega - especialmente o Platonismo - e Cristianismo. Se nosso conhecimento de platonismo apresenta-se como um fendmeno complexo e diversificado, como pensa H. Dorrie, a expressdo “platonismo cristéo” ou “platonismo dos Padres" revelar-se-ia genérica ou mesmo equivoca®. A proposta interpretative de H. Dérrie, em relagdo a nova tendéncia historiografica, ¢ assaz significativa porque provém de um especialista do pensamento antigo e nao de um tedlogo, proposta esta baseada no conhecimento das fontes, do contexto espi- ritual e, especialmente, das caracteristicas e das formas do pensamento grego com as quais encontrou o Cristianismo. 3 Para um aprofundamento ulterior, cf. E. HOFFMANN, Platonismo e filosofta cristiana. Bologna, Il Mulino, 1967; G. BREDOW, Platonismus im Mittelalter. Bine Einfihrung. Freiburg, Rombach, 1972; E. DES PLACES, Platanismo e tradizione cristiana, Milano, Celuc Libri, 1976; J. MOTSERRAT I TORRENTS DELS PRATS, Zas transtormaciones de! Platonismo, Bellaterra, Publicacions dela Universitat Autonoma de Barcelona, 1987; C. DE VOGEL, A/atonismo e Cristianesimo, Milano, Vita e Pensiero, 1993; W. BEIERWALTES, Platonismus iim Christentum. Frankfurt a. M., Klosternann, 1998; M. SPINELLI, Helenizacao e Recniagéo de sentidas A Biosofia na Eipoca da Expanséo do Cristianismo ~ Séculos Uf It e JV Porto Alegre, Edipucrs, 2002. 4 Em outras palavras: tratar-se-ia de uma recep¢ao meramente formal e exterior do Platonismo sob 0 aspecto de imagens e metéforas no sentido de uma “ficgéo” apologética ou, ao contritio, os Padres se serviram de determinados elementos teoréticos (ontologia e metafisica) do Platonismo para a elaboragao da teologia cristA? 5 Cf. FR RICKEN, Zur Rezeption der platonischen Ontologie bei Eusebios von Kaisareta, Areios und Athanasios, Thealogie und Philosophie 53 (1978) 321-352. “ ® Acerca da ambigitidade da expressao "platonismo cristao”, cf. E. VON IVANKA, Platonismo Cristiano. Recezione e trasformazione de! Platonismo nella Pacristica. Milano, Vita e Pensiero, 1992, 78s. 324 O objetivo das paginas que se seguem consiste em examinar criticamente a proposta de H. Dérrie consignada em publicagdes que vao de 1955 até 1981”, enu- merando as fragilidades e os pressupostos de argumentacao, a fim de evidenciar que o Platonismo, longe de ser uma “ficgao" apologetica, ofereceu aos Padres dos primeiros séculos os instrumentos conceituais para compreender e articular o cre- do cristao® para os homens de todos os tempos. O tema em questao Platonismo e Cristianismo: irreconciabilidade radical ou elementos comuns? se desdobrara em trés partes, a saber: 1*) A “ruptura” da tra- digdo platénica; 2%) O Platonismo cristo como “ficgao” apologética; 3*) Recepgao “formal” e “exterior” do Platonismo no Cristianismo?? 1 A “ruptura” da tradigao platonica A pergunta com a qual H. Dorrie abre o seu ensaio acerca das analises entre Platonismo e Cristianismo nos primeiros séculos da era crista ¢ a seguinte: O que foi o Platonismo da Antigtiidade tardia?. Em outras palavras: o Neoplatonismo dos séculos III e IV se enraiza nos sistemas da primeira geragao dos alunos de Platao, como, por exemplo, em Espéusipo de Atenas, Xendcrates de Calcedénia, Euclides Platénico, Hermodoro de Siracusa ou é estranho a esfera de interpretagdo que os discipulos diretos de Platao deram de seu pensamento? Para colocar a questao da possibilidade e das modalidades da recepgao e da transformagao do “platonismo” através da teologia crista dos Padres, quer do ponto de vista historico, quer do ponto de vista teorético, faz-se necessario esclarecer as caracteristicas daquele movimento filosdfico e espiritual que, com um termo talvez um pouco ambiguo, definimos P/atonismo, Existe um problema historiogrdfico complexo que pode ser formulado da seguinte maneira: por tras do termo “platonismo” ha um emaranha- do de motivos e de doutrinas que remontam diretamente a Platao, que de algum modo foram conservados e transmitidos pela tradigao platonica? Ou o platonismo com 0 qual o Cristianismo confrontou-se durante os primeiros séculos da sua his- toria tinha elaborado posigées filoséficas profundamente diversas daquelas de Platao? E, neste caso, tais posigdes eram compativeis com a doutrina crista e IRRIE, Was ist spatantiker Platonismus? Uberlegungen zur Grenzziehung zwischen Platonismus und Christentum, Theologische Rundischau % (1972) 285-302 {retomado em Platdnica Minora. Miinchen, Wilhelm F Verlag, 1976, 508-523). 8 Desde ja deve-se esclarecer que o processo de helenizago do Cristianismo ou de ontologizagao da cristologia é nao algo de posterior, que se teria se sobreposto a pureza originaria do Aerigma cristo, mas trata-se de um processo ja canonizaa dentio do Novo Testamento mediante a passagem da cristologia a comunidade palestinense primitiva a cristologia do judaismo helenistico e desta a cristologia da comunidade helenistica dos gentios. A propésito, of A. FYRIGOS, Aiasafia Patristica Birantina, Dalle arigini dell’era cristiana alle lotte iconcclastiche. Roma, PUG, 1995, 24-27. 9 Para a recepgdo critica da tese de H. Dorrie, cf. E.R MEWERING, Wie platanisiarten Christen? Zur Grenzziehung zwischen Platonismus, kirchlichem Credo und patristischer Tehologie, Vigiliae Christianae 28 (1974) 15-28; FR. RICKEN, Zu Rezeption der platonischen Ontologie... (nota 6); M. RITTER, Platonismus und Christentum in der Spatantike, Theologische Rundschau 49 (1984) 33-56. 326 podiam, portanto, ser recebidas pelos tedlogos cristaos? Em suma: como se apre- senta a Moldura helenistica do Platonismo imperial em relagéo ao pensamento de Platao tal como estava consignado na obra de seus primeiros intérpretes!? A partir do século XIX, porém, a continuidade da Tradigao platénica foi questio- nada no sentido de que Platao é separado completamente da exegese que sobre ele havia sido dado a tradigao platénica, embora saibamos que os “Platénicos” sempre se apresentaram como os continuadores e os fiéis intérpretes do pensa- mento de Platéo"!. Ora, hoje a historiografia filoséfica distingue trés modos de re- cepgao e transformagao do platonismo sob os termos “platonismo", “meédio- platonismo” e “neoplatonismo””, Sob o nome “platonismo” tem-se em vista indi- car a filosofia de Platao e da sua escola, isto 6, os fildsofos que se situam entre o século IV e a primeira metade do século I a.C.1°. A Academia platénica tinha a forma de uma congregagao religiosa consagrada a Apolo e as musas. Aproxi- madamente um século depois da morte do fundador (348 a.C.), a Escola enve- redou para o ceticismo sob a direcao de Arciselau (século III). O “médio-platonismo" é a forma de platonismo que nasce depois da morte de Antioco de Ascalona (filo- sofia académico eclético do século I a.C.) e que se desenvolve até os inicios do século III d.c. # precisamente a este platonismo do “meio” que se reme- tem os Padres da Igreja para elaborarem racionalmente a mensagem evangé- 0 Acerca da produgao de H. DORRIE sobre a tradigao platénica da época imperial, of. também a publi- cacao postuma: Die geschichtlichen Warzeln des Platonismus. Bausteine 1-35: Text, Ubersetat, Kommentar (ed, A. DORRIE). Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1987; Idem, Der ‘ellenistische Rahmen des kaiserzeitlichen Pleconismus. B. 36-72 (ed. M, BALTES, A. DORRIE & F. MANN). Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1990; Idem, Der Platanismus im 2. und 3. Jahrhundert nach Christus. B. 73-100 (ed. M. BALTES). Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1993; Idem, Die philasophische Lehre des Platanismus. Platonisahe Physik fim antiken Versténdnis) Il B. 125-150 (ed. M. BALTES), Stuttgart-Bad Cannstatt-Frommann-Holzboog, 1998; IDEM, Die philaso- phische Lebre des Platonismus. Von der “Seele” als der Ursache aller sinnvalien Abléufe. v. 1: B. 151- 168; v. 2: B. 169-181 (ed. M. BALTES). Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 2002. 1 CE PLOTINO, Bnéadas Vi, 8. 12 Cf B MERLAN, Dal Platonismo al Neoplatonismo. Milano, Vita Pensiero, 1994. Contrariamente a interpretagao de H. Dértie acerca da incompatibilidade entre Platonsimo e Cristianismo nos primei- 103 séculos da era crist, o autor sustenta a tese segundo a qual o neoplatonismo se enraiza na antiga Academia, ou seja, no Ambito da interpretago que os primeiros discipulos de Platao deram de seu pensamento. Consectientemente, se houve continuidade na tradigéo interpretativa dos esori- tos de Plato, podemos dizer que os Padres da Igreja se serviram da substdnoia do Platonismo em matéria de ontologia e metafisica para a elaboragao a doutrina crista, Os fundamentos essenciais do platonismo, que serao retomados e transformados posteriormente pelos platénicos sob 0 nivel antoldgico-metafisico, sho os seguintes: 1) a admissdo da existéncia de dois planos da realidade e do ser, 0 inteligivel e o sensivel (essa é a conquista essencial da que 0 préprio Plato chamou de “segunda navegacéo” [Sevtepos rot): expressfo utilizada para indicar 0 proceso de pensamento que Jevou 4 descoberta do supra-sensivel, das \déias). Plato distingue no Fédon “duas espécies de seres" (Sto ¢18n tov bvtuv: 79 a-d), Os dois planos da realidade sao descri- tos como “de um lado, 0 visivel; de outro lado, o invisivel - 16 ev dpatdv, 16 B88: dedi; 2) 0 explicito reconhecimento do fato de que o inteligivel ¢ a “verdadeira causa" do sensivel (o sens vel nao 6 capaz de explicar a si proprio) 326 lica™, Os médio-platénicos, apelando a figura do fundador, apresentam doutri- nas que foram elaboradas durante os primeiros tempos do Império™. O “neoplatonismo”!* 6 o repensamento do platonismo, iniciado nos primeiros anos do século III d.C., na escola de Alexandria de Aménio Sacas, sistematicamente fundado na escola de Roma de Plotino e desenvolvido posteriormente em diversas escolas e tendéncias até o século VI d.C’”. Esta tripartigao do “platonismo” é um indicio da profunda diferenga entre as posigées filosdficas sustentadas no ambito do platonismo imperial e as doutrinas origindrias de Platao. Segundo H. Dorrie, de Platao ao platonismo nao houve nenhuma continuida- de; o platonismo nasce somente mais tarde a partir do primeiro século a.C. e re- presenta uma fase da tradigao platénica que ja se afastara amplamente de Platao. Assim, com 0 termo “platonismo" deve-se entender um fenémeno filoséfico aut6- nomo, A ruptura entre Platao e o platonismo teve como causa dois eventos funda- mentais: - em primeiro lugar, a tendéncia cética que a Academia tinha assumido com Arcesilau (315-240 a.C.), sexto sucessor de Platao'®. Com efeito, Arcesilau concentrou o seu ensinamento na negagao critica de tudo quanto até se tinha afirmado; a elaboragdo sistematica da tradicao, realizada particular- mente por Xendécrates de Calcedénia (339-315 a.C.}, terceiro sucessor de Platao, a base das chamadas “doutrinas nao-escritas” de Platao, é, por- tanto, abandonada. Platao, ao contrario, 6 considerado como a principal testemunha da oxic: como acontece ja em Sécrates, assim Platao nao formulou nenhum dogma, na medida em que estava convencido da impo- téncia de toda dogmatica positiva; — em segundo lugar, quando, a partir do século J a.C., se observa um vigoro- so renascimento da filosofia platénica, isto acontece soh condicGes assaz Eis as figuras mais representativas do médio-platonismo: Plutarco de Queronéia (60-120d.C.); Numénio de Apaméia (século If d.C.), Maximo de Tiro (século Il d.C.), Albino de Esmima (século Il d.C.), Herodes Atigo e Celso (século II d.C.). E sempre a partir desses autores, ¢ nao de uma leitura direta dos escritos de Platao, como sempre se julgou, que deriva a maioria das citagdes platénicas presentes nos autores cristaos. Este “fundus” médio-platénico contém do Ziimeu a importante passagem 27 a- 52b, as passagens centrais do Banquete, do Redro, do Féelon, a imagem do sol da Repiiblica, a passa- gem de Zeeceto, 176 a-b, que se tomou o Jocus classicus da dhioton¢ G4 e, enfim, algumas passagens das Cartas (particularmente, da segunda, da sexta ¢ da s¢tima). Cf. J. M. DILLON, The mcale Platonists, A Study of Platonism, 80. C: to a. D. 220, London, Duckworth, 1977; §. LILA, dntreataione 2! Medio platonismo, Roma, Institutum Patristicum Augustinianum, 1992. A propésito, cf. H. DORRIE, Der Platonismus in der Kultur und Geistesgeschichte der triten Kaisercett, em Platonica Minara, 166-210. Cf F ROMANO, 1! neoplatonismo. Roma, Carocci, 1998 Cf. HD. SAFFREY, Recherches sur le néo-platonisme aprés Plotin, Paxis, Vrin, 1990. Sob o influxo de insténcias novas (0 ceticismo pirroniano), Arcesilau deu significado cético, por exem- plo, 20 verdadeiro catalogo de expresses, momentos e passagens dubitativas dos didlogos platdni- cos, que estavam quase sempre de maneira irénica e maieuticamente finalizadas ao encontio da verdade ou, em todo caso, & preparagéo mediada desse encontio. Cf. G. REALE, Histdri2 da Miasafta Antiga 3: Os sistemas da Era Helenistica, $20 Paulo, Loyola, 1994, 420-428. 327 particulares: em margo de 86 a.C., de fato, o exército de Silas invade Ate- nas e a Academia é destruida. Quando, pouco tempo depois, Antioco de Ascalona fundou a “quinta Academia”, isto acontece em um outro lugar. Mas 0 elemento importante é que, juntamente com os edificios, foi destruida seguramente a rica biblioteca da Academia, e com esta a heranca doutrinal e cientifica da tradigao platénica. Certamente, a leitura dos didlogos platé- nicos estava amplamente espalhada na época helenistica, como demons- tra a descoberta de importantes papiros do segundo e primeiro séculos a.C.; todavia, nao eram os escritos de Platéo que constituiam a auténtica heranga filoséfica. A partir da época helenistica, de fato, a atividade filoso- fica est estreitamente ligada a pertenga a uma escola e a sua tradigao interpretativa. Mas com a destruigao da biblioteca da Academia é justa- mente a interpretagao e o desenvolvimento da doutrina platénica dada dentro da escola, particularmente em numerosos escritos de Xendcrates de Calcedénica ¢ Pélemon de Atenas (315-270 a.C.), que se tinham perdi- do. Deste modo, precisamente nos anos em que, em torno do século1 a.C., é possivel observar um forte renascimento do platonismo, a heranga doutrinal da tradigao platénica nao era mais disponivel. Este renascimento se verifica sem nenhuma referéncia & tradigao. Segundo H. Dérrie, isto permite explicar porque Antioco de Ascalona, que poe fim ao periodo cético da Academia para realizar 0 seu projeto de “retornar aos antigos”, tenha assumido como auténticas testemunhas das doutrinas da Acade- mia, de um lado - Aristételes e Teofrasto - e, de outro lado - os estdicos. E claro que Antfoco nao podia realizar o seu propdsito de uma reconstrugéo da doutrina da Academia de modo direto; a tradigao doutrinal do platonismo ndo lhe era aces- sivel: a rica biblioteca, com cujo auxilio teriam se podido reconstruir os "dogmata” da Antiga Academia, nao mais existia. O elemento decisivo para 0 renascimento do platonismo foi, segundo H. Darrie, a descoberta do 7imeu platénico, uma descoberta que acontece fora da escola, entre os estratos mais baixos da cultura literaria, nos “circulos de profanos” (“Laienkreisen”), ou seja, que nao eram filésofos de profissao. Aqui o didlogo pla- ténico nao sé é descoberto, mas toma-se uma leitura filosofica quase de moda. O porqué isto acontece precisamente neste periodo e com tal intensidade nao é pos- s{vel explica-lo de modo completo. E certo, porém, observa H. Dorrie, que no ulti- mo século antes de Cristo intervém uma profunda mudanga na situagao espiritual do helenismo tardio. A filosofia estdica que por muito tempo havia explicado o universo, e com isso o homem e a Deus, de maneira imanentistica e materialistica, no era mais suficiente para os homens de entao, nem era capaz de responder as exigéncias religiosas e espirituais que estavam emergindo com forga’®; por isso, 0 ® Na era helenistica, os filéscfos sao substancialmente morelistas. 0 helenismo perde o sentido da transcendéncia, do metatisico, do espiritual e nao, portanto, pensa sendo com categorias imanentistas, ficisistas e materialistas, Epicuro e os esticos rejeitam de modo categérico as conquistas de “Se- gunda Navegagao”. 328 Timeu retornou ao centro da atengao: do didlogo platénico, de fato, que em sua parte central (de 27 a em diante) podia ser interpretado e foi efetivamente inter- pretado como um escrito de revelag4o, podia-se extrair 0 fato de que 0 mundo foi criado por criador transcendente a base de um modelo eterno e supra-sensivel. Mas as afirmagées sobre a Alma cosmica constitufam o ponto central auténtico desta leitura do 7imew. a Alma césmica, de fato, podia ser interpretada como a instancia que traduz o transcendente dentro do mundo e exercita 0 governo sobre o mesmo. Este interesse pelo Logos e pela Alma césmica permanece o elemento central da teologia médio-platénica e neoplaténica. Todavia, o impulso que trouxera a vida o platonismo ja durante a primeira geragao (65-35 a.C.) tinha abandonado a sua diregao originaria. O renascimento do platonismo era um dos diversos objetivos em que se expressara aquele novo sentido religioso do helenismo tardio que devia, em seguida, alimentar também a gnose e o cristianismo. Mas, diferentemente das miltiplas correntes oriundas da nova situagao espiritual, o platonismo apdés uma fase muito breve e descontrolada (ou podemos dizer “revolucionaria”) colocou a si mesmo sob um controle funda- mental. De um movimento de profanos, esse se torna rapidamente um movimento de escola fortemente conservador e amplamente fechado e dogmatico. Na interpretagao de H. Dérrie, ao longo do primeiro século a.C., 0 platonismo se torna um movimento de escola fundado em um sistema doutrinal fortemente fechado e dogmatico; a subiilitas e a Ge.votng se tornam os tragos caracteristicos que conferem a escola um carater fortemente elitista e quase esotérico; o vearepitew, isto é, a pesquisa do “novo”, torna-se a acusagao mais grave: procurar 0 novo, de fato, significaria colocar em jogo a legitimagao que confere a pertenga a escola. O platonismo, ja como se apresenta em Filon de Alexandria (30/20 a.C. -50/65 d.C.) e em duas breves narragGes em Séneca, 6 de um acabamento quase monumental. As controvérsias dizem respeito, fundamentalmente, aos particula- tes. Em Filon de Alexandria, por exemplo, teriamos, segundo H. Dérrie, somente a utilizagao “apologética” da linguagem e das formas de pensamento da cultura helenistica e, particularmente, da filosofia platénica, nao comportando, porém, nenhuma recepgao de contetidos estranhos a propria teologia mosaica. Esta imo- bilidade que age como que petrificada é um trago que caracteriza o platonismo imperial desde 0 inicio”. Associada a esta tese da “ruptura” da tradigéo platénica encontra-se a con- cepgao do Platonismo como ‘classicismo arcaizante”, elemento caracteristico da Na interpretagdo de H. Démrie, nao existiria nenhum “Platonismo” real mas meramente formal em Filon de Alexandria. Na realidade, julgamos que, em algumas de suas nogdes, tais como 0 mundo Inteligivel (K6ojos, vor\té<) e 0 Lagos, Filon nao esta de fato distante da concepgao platonica. O que se pode dizer é que, a0 explicar “Maisés", Milan estava pensando em conformidade com a metafisica laténica, e considerava 0 homem de um modo que pode ser compreendido $6 a partir da conoepgéo platénica, segundo a qual um homem-em-si eterno e ideal foi criado em uma ardem celeste camo mo- delo para o homem terrestre que & compasto de alma e corpo. A propésito, ct. R. RADICE, Alatonismo e creazionismo in Fione di Alessandria. Milano, Vita e Pensicro, 1989. 329 nova situagao espiritual que surgiu do helenismo tardio. Neste o Platonismo age como um elemento fortemente conservador, cujo lema era: “veteres sequi”. Eis como H. Dérrie caracteriza a situagao espiritual dos primeiros séculos da época imperial: Nos primeiros séculos da época imperial pode-se observar esta forte antitese: de um lado, a presenca de forgas que parecem exigir uma religiao de salvacao e, de outro lado, um classicismo arcaizante que procura conservar 0 patrim@nio cultural recebido, e isto néo por preguica, mas 4 base da convicgao de que tudo aquilo que é importante, e também aquilo que tem uma eficacia salvifica, foi dito desde ha muito tempo pelos sabios da época origind- tia. O platonismo juntou-se decisivamente a esta segunda diregdo. Este contribuiu para a renovagao classicistica dos grandes modelos justamente mediante o seu remeter-se a Platao e tornou-se a sustentagao da atitude de fundo conservador*. Por tras deste postulado de “seguir os antigos” subjaz a convicgéo de que somente em uma época origindria, que remonta para além de Plato, isto é, aos antigos tedlogos, 0 Logos, no qual se encontra toda verdade e todo saber, revelou- se em toda a sua plenitude. Esta revelagdo origindria encontrou o seu cume em Platao, 0 mpdtoc evpeTyg, 0 filésofo mais antigo e o unico tedlogo de cujos escritos se possui 0 texto E neste sentido que o platonismo atribui a Platao toda a verdade absoluta, que aparece eternamente valida de modo vinculante. O que Platdo ensi- nou pode certamente ser explicado por outros, mas nao pode ser enriquecido nem completado em sua esséncia enquanto é eternamente verdadeiro. Este “classicismo arcaizante" da escola plat6nica representa, na interpretagdo de H. Dérrie, um dos tragos fundamentais através dos quais platonismo e cristianismo se contrap6em: enquanto o Cristianismo se refere agao salvifica de Cristo como sendo um fato histérico, 0 Platonismo se remete ao fato de que dispée de um saber originario que jamais foi modificado. De fato, neste saber nada ha que possa ser modificado, uma vez que a verdade é imutavelmente unica e idéntica. Deste modo, o platonismo assume em relacao ao Cristianismo, bem como no que tange as outras religides de revelacao, a mesma posigdo negativa: nada ha que possa e deva ser revelado; a verdade nao tem planos de desenvolvimento. Esta mostrou-se aos grandes ho- mens, aos sdébios da época originaria, do mesmo modo de como se mostra hoje. Nao depende da vontade de Deus 0 fato de que a verdade ora se mostre e ora se esconda, mas depende da fraqueza do homem, precisamente de seu intelecto, 0 fato de que nem todos sao capazes de conhecer a verdade do mesmo modo. O platonismo tornou-se 0 representante e 0 mantenedor dos antigos valores da tradigéo, segundo H. Dérrie, com a Metafisica do Logos, auténtico fundamento espiritual de todos os aspectos do platonismo que surgiram até os primeiros sécu- los do Cristianismo. Este fundamento espiritual do platonismo imperial consistia no fato de que, partindo de uma filosofia do Logos, soube recolher a explicagao dos fenémenos da natureza, os valores da cultura - a €yxuxMog nondela - e a reli- 2H. DORRIE, Die Bmeverung des Platonismus im Ersten Jalrhundet vor Christus, em Platonice mino- 74, 182. 330 giao em uma unidade imponente, que culminava no plano metafisico. $6 no ambi- to da Metafisica do Logos, toda questao particular adquire, seja do ponto de vista objetivo, seja do ponto de vista subjetivo, um significado teoldgico e religioso. Objetivamente, porque todo conhecimento cientifico, toda aquisigdo cultural, toda interpretagao de um antigo dito ou de um rito obscuro, torna-se uma revelacao divina; subjetivamente, porque o fildsofo 6 capaz de decifrar o Logos escondido no mundo da natureza e no mundo do espirito em virtude do logos que esta nele presente, sobre o qual se fundamenta o seu parentesco - syggeneia - com 0 Divi- no; toda atividade cognoscitiva tem, portanto, também um significado religioso enquanto permite atingir 0 duotwats bed. Ora, se o cristianismo desejasse entrar no mundo do platonismo - que era nao somente um sistema filoséfico-religioso, mas também uma poténcia cultural altamente atual - e anunciar com éxito sua propria mensagem, deveria expulsar o platonismo daquele terreno do qual emana- va a sua forga. E justamente o chamado “platonismo cristéo” que, segundo H. Darrie, emerge como a “ficgéo" criada pelos tedlogos cristaos do terceiro e quarto séculos para desempenhar esta tarefa. 2 O platonismo cristéo como “ficgao” apologética Se os autores cristaos sempre reconheceram 0 antagonismo do Platonismo com 6 Cristianismo, por que a persisténcia em procurar assimilar o patriménio platéni- co, mesmo modificando-o substancialmente? A resposta dada a esta questao apa- rece em um artigo de 1981 intitulado “Die andere Theologie””, no qual H. Dorrie ainda outra vez mostra que o Platonismo e o Cristianismo nao podiam absoluta- mente confundir-se ou combinar-se, e que de fato a fé crista nao foi realmente influenciada pelo pensamento platénico; a aceitagao da linguagem e das imagens platénicas nada mais era do que um meio para remover uma dificuldade para os intelectuais. A doutrina crista foi concebida desde o inicio, na opinido de H. Dérrie, como uma forma de anti-Platomismo. Segundo H. Dorrie, a célebre questao acerca da relagdo entre a tradigao filos6- fica grega e o cristianismo foi abordada com preconceitos e unilateralidades que podemos constatar em duas diregdes; de um lado, desde o século XVIII comegou- se a falar de “platonismo” dos tedlogos cristaos da época nicena como expressao de uma tendéncia que via na relagao entre filosofia grega e cristianismo uma de- formagéo da simplicidade e da pureza originarias do cristianismo; de outro lado, ao contrario, fala-se freqiientemente de uma “recepgdo” positiva dos conteudos do patriménio platénico por parte dos autores cristaos. Dai surgiu a expressao “platonismo cristéo”. Na base de ambas as teses esconde-se uma falta de compre- ens4o da situagao historico-espiritual na qual o cristianismo iniciou 0 exercicio de sua agdo nos primeiros séculos da sua histéria. Esta situagdo se caracteriza pelo 2 Cf. H. DORRIE, Die andere Theologie. Wie stellen die inlihchristlichen Theologie des 2-4. Jahthunderts Jhren Lesern die “Griechische Weisheit” (= den Platonismus) dar? Theologie und Philosophie 56 (1981) 1-46. 331 nascimento de uma nova época que devia diferenciar-se de modo profundo daque- la precedente tanto no pensamento como nas formas de vida. O “novo” que se afirmava cada vez mais nao se impés através da destruigao das antigas formas ja mortas. As formas exteriores da cultura helenistica permanecem intactas, sendo até mesmo restauradas: mas nao sao agora senao uma casca vazia que é preenchi- da com uma substancia e uma vida totalmente diferentes. Assim, o platonismo do qual 0 cristianismo se serviu, nada mais era uma forma cultural do helenismo cuja substancia ja pertencia ao passado, mas restava ainda o invdlucro sob o aspecto de imagens e metaforas que nao chegavam a esséncia do pensamento platénico. Portanto, no contexto da situagao historico-espiritual dos primeiros séculos da era crista, as multiplas modalidades da pseudometamorfose em ato permitiram aos tedlogos cristaos utilizar habilmente os antigos instrumentos e as antigas for- mas culturais do pensamento Grego para que a Boa Nova fosse compreendia e difundida entre os seus contempor4neos, O platonismo era precisamente um dos instrumentos do quais o cristianismo se serviu para difundir o Evangelho, sem que, porém, tal instrumental modificasse a substancia de seu anuncio. Assim, por exemplo, as Aetractationes, nas quais o velho Agostinho “corrige ponto por ponto a sua precedente propensao ao platonismo”, representam o fim do chamado ‘platonismo cristao’; de fato, como ficgao apologética, este tinha desempenhado a sua fungaéo de conquistar os pagaos cultos para o cristianismo; agora, portanto, poderia ser totalmente rejeitado’, 3 Recepgao “formal” e “exterior” do platonismo no cristianismo? As paginas anteriores procuraram expor de modo mais detalhado o pensa- mento de H. Dorrie acerca da suposta incompatibilidade entre Platonismo e Cri: tianismo. Para criticar os pontos-chave da interpretagao de H. Dorrie, convém pri- meiramente recordar sob forma de alguns pontos centrais a esséncia de seu pen- samento para, em seguida, destacar os elementos frageis e, portanto, limitados de sua tese. Esta pode ser enquadrada em cinco pontos, a saber: A. Nao é possivel existir um dialogo entre Platonismo e Cristianismo a luz de fundamentos de carater teorético e teolégico, porque o Platonismo emergiu so- mente a partir do século I a.C. como ruptura radical com a tradigao platénica pre- cedente. O Platonismo da época imperial é substancialmente um “credo” religioso fundado em “dogmata” totalmente inconciliaveis com a doutrina crista. Neste sen- tido, o Platonismo da Antigiiidade tardia, sendo inseparavelmente teologra e reli- giéo, 6 nao apenas filosofia racional, nao pode ser acolhido pelo Cristianismo. B. Segundo a hipdtese desenvolvida por H. Dérrie, desvalorizariamos o platonismo se o considerassemos somente como uma filosofia, pois tratava-se ao mesmo tempo de uma reviq7o. Uma vez aceito este fato, torna-se possivel colocar a questo assaz debatida das relagdes entre Platonismo e Cristianismo. gE por esta H DORRIE, Die andere Thealogie, 40-42. 332 razao que o Cristianismo n&o podia de fato receber o platonismo: nao podia assu- mir em si uma religiéo de género completamente diverso, dado que o Platonismo era um “credo” religioso fundado em dogmata radicalmente irreconciliaveis com a doutrina crista. Quais sao, portanto, esses dogmata? Os “dogmata” da “religiao” platénica inconcilia-veis com o Cristianismo sao os seguintes: em primeiro lugar, o platonismo imperial apresenta uma estrutura hierérquica de planos do ser no inte- stor do divino. tal estrutura culmina em um Principio supremo impessoal e si-tuado acima do ser, o qual produz ulteriores e impessoais planos do divino ou hipéstases, nos quais a perfeicaéo do Principio primeiro se reflete de modo progressivamente limitado. Uma dessas hipdstases (0 Demiurgo) cria 0 mundo, o qual, porém, néo tem nenhum inicio temporal. Em segundo lugar, o Platonismo acredita em uma revelacéo origindria e imutével do Logos, que exclui a necessidade de uma agdo salvifica de Deus na histéria e de uma nova revelagéo. De fato, a divindade, em sua providéncia, revelou desde os tempos originarios tudo o que era necessario aos homens para a sua salvacao, fornecendo-lhes assim a capacidade (duvnami") de apreender 0 Logos universal e também de realizar 0 logos que possuem em si mes- mos. Conseqiientemente, é somente a atividade cognoscitiva (a atividade filosdti- ca, enquanto realizagéo do logos) que conduz o homem & salvagéo. Deste modo permanece excluido da salvagéo aquele que, em raz&o de sua conduta nesta ou naquela vida precedente, nao é capaz de praticar a filosofia. O pecado, portanto, é essencialmente uma falta que se resolve no plano racional. Os conceitos cristaos de pecado original, de redengaéo e de graga so neste contexto totalmente inaplicaveis. Enfim, séo pontos essenciais do Platonismo: a doutrina da transmigracéo das almas e, portanto, 0 conceito de uma imortalidade supra-indivi- dual da alma do homent*. C. Uma vez admitido o carater inaceitavel dos “dogmata” da teologia platéni- ca para a doutrina crista, a Igreja os rejeitou na elaboragao dos dogmas a maneira de um antiplatonsimo: Da cristologia e da doutrina do Esptrito Santo foi eliminada a representagao do Filho e do Espirito como pertencentes a uma esfera inferior. Da acao salvifica de Cristo, e nao partir de uma revelagao originaria, é fundada a obra do Logos que salva. Nao a alma que conhece, mas, sim, a alma que cré esta segura de retornar ao Pai; nao 0 conhecimento fundado no Jogos do Nous, mas ¢ 0 ato paradoxal da graga que realiza a salvaga0”®, Conseqiientemente, todo aparato doutrinal elaborado pelo Cristianismo ao lon- go do quarto e quinto séculos foi concebido com fungées e tendéncias antiplaténicas. Assim, para respaldar a tese de que, do ponto de vista teoldgico, um didlogo entre Platonsimo e Cristianismo de jure nao podia suceder-se, pode- mos mencionar, entre outros, 0 caso da “ressurreigdo da carne" do credo cristao. Este artigo de fé se volta com forga extraordinaria contra o nucleo fundamental do % Cf H.DORRIE, La doctrine ae /’dme de Plotin a Préclus, Revue de Théologie et de Philosophie 23 (1973) 117-132. % HDORRIE, Mas ist spatantiker.... 522. 333 Platonismo, isto 6, contra a sua doutrina de um Logos césmico através do qual 0 mundo teria sido ordenado desde os tempos originarios de um modo perfeito e imutavel. D. No existiria tampouco, do ponto de vista histérico, isto é, de /actu, ne- nhum didlogo entre Platonismo e Cristianismo. Os tedlogos cristéos dos primeiros séculos nAo teriam acolhido a ess€ncia do pensamento platénica, uma vez que estavam conscientes da oposigdo insuperdvel entre doutrina crista e a teologia platénica. Quem porventura nao se abstivesse da recepgéo da substancia do Platonismo, sucumbiria inevitavelmente em Aevesia. Eo caso, por exemplo, da he- resia subordinacionista no 4mbito trinitario: do ponto de vista filos6fico, esta parte da doutrina platénico-neoplaténica da estrutura hierarquica do divino. Portanto, “quem procura o Platonismo cristéo pode encontré-lo somente junto aos heréti- cos*®, Sem que seja possivel admitir historicamente uma recepgao dos conteudos do pensamento platénico-neoplaténico por parte da doutrina crista, os tedlogos cristéos receberam do Platonismo somente os aspectos formais, ou seja, a grama- tica, a retérica e o amplo cortejo de imagens, de metaforas e de citagdes proprias da tradigéo platénica*’. Quando os dogmas ou contetidos do pensamento platéni- co encontraram, ao contrario, um “acolhimento” no cristianismo, sucedeu uma cri- tica estrutural de tais dogmas, de sorte que, por exemplo, em Atandsio e Gregorio de Nissa, foram transformados em sentido claramente antip/aténico®. E. Um vez admitido o que acaba de ser exposto, segue, conseqiientemente, a tese de que o chamado “Platonismo cristéo” encontrado nos Padres do terceiro e do quarto séculos nada mais é do que uma “ficgaéo” apologética colocada em ato para conduzir os pagdos cultos até o Cristianismo. Até aqui expomos 0 pensamento essencial de H. Dérrie acerca da incompati- Dilidade entre Platonismo e Cristianismo. Devemos, por fim, esbogar uma critica aos pontos-chave de sua concep¢ao. Na interpretagao acima apresentada podem ser evidenciadas diversas criticas”, das quais destacaremos apenas trés: % “Wer christichen Platonismus sucht, kann ihn nur bei Haretiken finden” (H. DORRIE, Gregors Thealogie auf dem Hintergrunde der neuplatonischen Metaphysik, em AA. VV. Gregor von Nyssa und die Philsophie, busg. von H, DORRIE, M. ALTENBURGER & U. SCHRAMM. Leiden, Brill, 1976, 27). 2 0 caso de Mario Vitorino desmente a pretensa incompatibilidade radical entre cristianismo e platonismo no Ambito trinitério: nele encontramos a primeira tentativa de fundamentar filosofica- mente de modo sistemético a doutrina da Trindade, defendendo explicitamente a doutrina ortodoxa da Aomoousias contra a heresia de Ario com a elaboragao de uma doutrina trinitéria cuja estrutura filoséfica 6 fundamentalmente neoplaténica, Cf. R HADOT, Porfirio @ Vitzonino, Milano, Vita e Pensiero, 1993, Quanto a tese de H, Dorrie acerca da filosofia de Gregério de Nissa, que teria se revestido somente de uma “color Platonicus” para combater o adlvers4rio no mesmo plano e com as mesmas armas, hoje deve ser redimensionada 4 luz da obra de E. PEROLI, // Platonismo e /‘antropologra filosofica di Gregorio di Nissa. Con particolare riferimento agit intlusst di Platone, Plotino e Porfirio. Milano, Vita e Pensiero, 1993. A propésito de Gregirio de Nissa, cf. W. VOLKER, Gregorio af Missa filasofo mistico. Milano, Vita e Pensiero, 1993; M. SPINELLI, Helenizagdo e Reaniagdo de sentidos..., 329-367. ® Criticas de ordem teorética, hermenéutica e historica podem ser encontradas nos estudos de E, P MEWERING, FR. RICKEN, M. RITTER e C. DE VOGEL (cf. supra, notas 4 ¢ 10). 334, A. Na concepgao de H. Darrie, platonismo e cristianismo sao vistos como duas grandezas estaticas que estéo uma defronte a outra com papéis separados, ao passo que na realidade ambas as correntes se conectam “na mesma pessoa em ‘um unico processo espiritual”, que “faz crescer ambas as componentes, mesmo que de modos assaz diversos, uma sobre a outra e com a outra’™. Este 6 0 caso de Agostinho de Hipona, cujo juizo de valor em relagao filosofia platénica nao pode ser limitado & fase tardia de seu pensamento. Ao lado deste modelo interpretativo = que sustenta a existéncia de uma ruptura entre a etapa neoplaténica e o pensa- mento posterior, notoriamente cristao de Agostinho, como se para ele a “filosofia" fosse tarefa da pura raz4o natural -, ha a teoria que considera a “filosofia" de Agostinho como um empenho de compreenso das verdades reveladas, da fé, atra- vés da doutrina e dos métodos do pensamento neoplaténico*!, isto 6, 0 encontro do pensamento cristéo com o “platonismo” nao foi apenas uma simples recepgao “formal” e “exterior” de imagens, conceitos, metéforas, sem que nenhum conteu- do originério tenha entrado no novo contexto”. A reconstrugdo da histéria da in- terpretacéo contemporénea da relagéo entre Agostinho e a filosofia evidencia a unilateralidade da interpretagéo de H. Dérrie no que tange ao “platonismo cris- téo" de Agostinho*: se, como sustenta este mesmo autor, sd 0 Agostinho marcadamente cristao corrigiu “ponto por ponto a sua precedente propenséo ao platonismo”, entao resulta dificilmente sustentavel a tese de que a filosofia platé- nica tenha sido apenas uma simples “Einkleidung" da substancia crista. B. Nao é aceitavel, portanto, a redugao do encontro do pensamento cristao com a filosofia grega a uma simples recepgao “formal” e “exterior” de imagens, conceitos e metaforas. Quando os tedlogos cristaos refletiam sobre o contetido do Credo, utilizavam formas do pensamento platénico que nao se reduziam a meros “nomes” ou “palavras". A metafisica platénica determinou profundamente a com- preens&o teolégica dos mesmos, como podemos constatar a partir de dois exem- plos: 1°) O problema da imutabilidade de Deus e 2°) o da relagdo entre as trés pessoas da Trindade. No primeiro exemplo, a concep¢ao platénica das Idéias inte- ligiveis como Ser eterno e perfeito foi integrada na nogao crista de Deus, cujo nome © A.M, RITTER, Paconismus und Christentum in der Spdtantite, 37, n. 20. A adesdo originaria a filosofia platénica ou neoplaténica, enquanto capaz de ajudar a compreenséo do significado da “sapientia Christi" ¢ tao grande que Agostinho pode dizer: “nulli quam isti proprius accesserunt”, isto &, os Platénicos: De Civmtate De/ VII, 5; isto nao elimina da mente de Agostinho 0 fato de que o cristianismo seja a “verdadeira e auténtica filosofia". Agostinho nao se limitou, nem tampouco os demais tedlogos cristéos, a “lehren, iiberzeugen, bekehren" (H. DORRIB, Die andere Theologte, 43, n. 124). O encontro do cristianismo com a filosofia grega corresponde a um aprofundamento da {6 e, portanto, para uma elaboragéo de uma “teologia crista" verdadeira e pré- pria. ® § somente neste sentido que se torna compreensivel a teoria da meméria de Agostinho: cf. meu attigo A metafisica da memérta no Livro X das Conlissies de Agostinho, Veritas 41/3 (2002) 365-375. Cf. G. CATAPANO, Lidea di filesotia in Agostino. (Subsidia Mediaevalia). Padova, Il Poligrafo Casa Bditrice, 2000; ef. também os estudos de G. MADEC: Petites études augustiniennes. Pais, Institut @'Etudes Augustiniennes, 1994; Le Diew ’Augustin. Paris, Cerf, 1998; Le Christ de saint Augustin Paris, Desclée, 2001. 335 verdadeiro 6 “Aquele que 6" (Ex 3, 14). Verdade é que tal doutrina platénica cons- titui um obstdculo para a fé em um Deus que age na historia. Todavia, é certo que os tedlogos gregos aceitaram unanimemente a doutrina platénica. No segundo, a questao de admitir diferentes niveis da Divindade era igualmente uma concepgao tipicamente platénica. Todavia, tal concepgao nao era limitada ao Arianismo: es- tava presente também no pensamento teologico dos primeiros Apologistas cris- taos, e de modo inequivoco em Origenes. Deus-Pai é indicado em tais autores como adptdbeoc, 0 Bo¢ e abtoayaBoc, o Filho como 8e6¢ e yo.80c. Esta doutrina Alexandrina prépria do segundo e do terceiro séculos influenciou a teologia alexandrina tardia, e Ario péde encontrar aqui as suas informagdes entre os pri- meiros tedlogos cristaos, Ainda contra a tese de H. Dorrie, podemos dizer que 0 pensamento teolégico de muitos escritores cristaos dos primeiros séculos do cris- tianismo resultaria dificilmente compreensivel se nao o colocassemos no ambito de um confronto incessante com os elementos teoréticos da filosofia grega. No caso, por exemplo, de Gregorio de Nissa, mesmo admitindo a transformagao pro- funda das estruturas conceituais da metafisica grega, nao podemos reduzir o pen- samento recebido a mera superestrutura “acidental” e nem tampouco a uma ex- clusiva “ficgéo" apologética. C. Por fim, a expressao “Platonismo cristao” é perfeitamente legitima e con- serva até hoje o seu significado: indicar o papel desempenhado por determinados motivos filoséficos, platénicos e neoplaténicos, para o desenvolvimento da teolo- gia cristé, certamente dentro de um contexto de pensamento diverso. Se o “platonismo cristao" dos Padres nao somente foi uma simples recepgao de ele- mentos formais, mas também e sobretudo uma “ficgao" apologética, como susten- ta H. Dérrie, a conseqiiéncia desta tese é paradoxal: uma “ficgéo" que enganou néo somente os platénicos que se converteram ao Cristianismo, mas também sé- culos de pensamento cristao, e ainda continua a enganar! 336

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