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EDITORA HUCITEC “Estouvivendo com AIDS. Um virus me habita, um Fisco me rofida, Dessas coisas devo falar. No por causa da doenca. Nem por causa da morte, da qual nunca saberemos nada—e, portanto,o unico ue resta a fazer & aprender a vivé-la; aprender a Vivéla!, morte, é aprender sumariamente. Estou compelido a falar, assim sendo, daquilo que, em saideoudoensa, me torna. plural de uma época, Ouseja, adita condic3o humana, Afinal, aquestio € sempre a vida. No oposto do seu biolégico.” HERBERT DANIEL € sobre esta metamorfose do homoerotismo em homossexualismo que penso refletir, a partir da elaborag3o do tema na literatura do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Nao sem antes precisar o que entendo por homoerotis- mo. Homoerotismo é um termo usado por Sandor Ferenczi, psicanalista hungaro, contempordneo de Freud, para discutir 0 tema da homossexual- dade. Corrente no século XIX, este termo parece- me preferivel a homossexualismo por vérias razbes." JURANDIR FREIRE COSTA “Arquipélagos de lentejoulas, toucados de penas iridescentes (em cada requebro da coxa trepi dante, as galas de cem flamengos que flutuam no ar tornado um pé rosado), constelagdes de pur- urinas transformando 0 rosto numa méscara a ais, como esses bonecos de Martha Khun. Weber 80 fascinantes quanto horriveis dependendo do Perfil, toda uma alvenaria kitsch, de uma imposta- a delicadeza, de uma estridéncia artficiosa, de- saba sob 0 impacto (¢ preciso dizélo) da morte." [NESTOR PERLONGHER SaiideLoucura 3 direcao de Antonio Lancetti Saitde em Debate 47 diregao de David Capistrano Filho Gastéo Wagner de Souza Filho Emerson Elias Merhy José Ruben de Alcantara Bonfim 2.*EDICAO Série SAUDELOUCURA SatideLoucura 1, Antonio Lancetti etal SaiideLoucura 2, Félix Guattari, Gilles Deleuze et al. Hospital: Dor e Morte como Oficio, Ana Pitta Cinco Ligées sobre a Transferéncia, Gregorio Baremblitt A Muutiplicagao Dramética, Hernan Kesselman e Eduardo Pavlovsky Lacantrogas, Gregorio Baremblitt SaiideLoucura 3, Herbert Daniel, Jurandir Freire Costa et al. Psicologia e Snide: Repensando Priticns, Florianita Coelho Braga Campos (org.) Mario Tommasini Vida e Feitos de um Democrata Radical, Franca Ongaro Basaglia Saiide Mental no Hospital Geral, Neury J. Botega e Paulo Dalgalarrondo Mariual de Saidle Mental, Benedetto Saraceno, Fabrizio Azioli e Gianni Tognoni SaiideLoucura 4, Francois Tosquelles, Enrique Pichon-Riviére, Robert Castel et a Reabilitagao Psicossocial no Brasil, Ana Pitta (org,) Subjetividade: Questdes Contemporiinens, André do Eirado Silva, Claudia Abbés B. Nev SaiideLoucura 5, Gregorio Baremblitt(org,) Assisténcia Social & Cidadania, Antonio Lancetti (org.) eset al ARELACAO DAS DEMAIS OBRAS DA COLECAO “SAUDE EM DEBATE”, DA QUAL FAZ PARTE A Sénte sq LOUCURA", ACHA-SE NO FINAL DO LIVRO. oe SUMARIO 1 Antonio Lancetti APRESENTAGAO 8 Herbert Daniel ANOTACOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS 21 Jurandir Freire Costa OS AMORES QUE NAO SE DEIXAM DIZER 39 Néstor Perlongher O DESAPARECIMENTO DA HOMOSSEXUALIDADE 47 Fabio Caldas de Mesquita AIDS E DROGAS INJETAVEIS | 55 : Lucia Frigério Paulo Tania Maria Santos Vieira CONVIVENCIA COM PORTADORES DE AIDS E pp EPEND DE DROGAS: UMA CLINICA DE SOLIDARIEDADs ENTE 63 Gilles Deleuze DUAS QUESTOES 67 Franco Rotelli ONDE ESTA O.SENHOR? 77 Néstor Perlongher DROGA E EXTASE 91 Dartiu Xavier da Silveira FARMACODEPENDENTES E AIDS: A CLINICA on Claude Olievenstein TOXICOMANIA E AIDS © Direitos de publicacao reservados pela Editora HUCITEC Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601- 042 Sao Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9318 ¢ 543-0653. Vendas: (011)530-4532. Facsimile: (011)530-5938. Email: hucitecemandic.com.br ISBN 85.271.0185-8 Foi feito o Depésito Legal. ANTONIO LANCETTI APRESENTAGAO este terceiro volume de SatideLoucura, Insistindo no modo pluralista e miltiplo desta série, estes textos, sem a hipocrisia e a simplificagao com que habitualmente se evitam tais problemas, levarao 0 leitor 4 problematizacao de experiéncias de excesso, éxtase, morte e vida. E 0 levarao coma felicidade estética com que Herbert Daniel ensina a curar-se das palavras e a erguer-se na saiide civil. Em “Os amores que nao se deixam dizer” poderd o leitor acompanhar ahistorizacao da homossexualidade e sua distincao do homoerotismo que Jurandir Freire Costa trabalhou em investigacao sobre 0 imaginario social ea AIDS. Poderé di-vertir-se nos lampejos de “O desaparecimento da homos- sexualidade”, levado pela pena de Néstor Perlongher. Pessoalmente, intimamente, penso que s6 com poténcia estética é possivel aprender a “viver com AIDS", nesta época tao feia que impde medo moral e preconceito nas relagdes com qualquer fenémeno de vida e de morte. A seguir, Fabio Caldas de Mesquita apresenta um panorama epide- miol6gico mundial e os resultados de pesquisa realizada em Santos. Esta cidade registra a maior incidéncia de aidéticos por habitante no Brasil (dado duvidoso, ja que nao ha certeza de que em outros lugares se opere com 0 zelo da Vigilancia Epidemioldgica da Secretaria de Higiene e Saude da Prefeitura de Santos). Em Santos, onde 51% das transmissées do virus ocorrem por via endovenosa, 0 autor do capitulo e o secretario de Higiene )\ IDS, SEXUALIDADE e DROGAS sao os temas pelos quais transita 2. APRESENTACAO e Saude, David Capistrano da Costa Filho, foram Proces mente por iniciar campanha preventiva de troca de aa iudig adotou uma politica solidéria, como mostra o texto de Lucia F, ag Onde te e Tania Maria Santos Vieira, responsdveis pelo Centro de A, "BEtig Pauly riedade ao Paciente de AIDS; nesta casa, moradores, neta e Solig,. naisconstruiram um tecido microssocial que suporta, emcrise ‘ a issig. desfiliados, capturados pelo buraconegro dacocainacestipmati, eNte, AIDS, que, em dificil convivéncia, elevam notoriamente ° ae usudrios efetivandoatitudes preventivas. De fato, muitos moi Vital tituiram a roda de “pico” pela intensa atividade grupal. A segunda parte do livro inicia-se com um texto que G publicou originalmente na revista Recherche, e que afirma aii uma causalidade tinica na experiéncia da droga e que trata droga” no que diz respeito as velocidades e ao investimento “sistema-percepcao” nos aspectos moleculares e suicidérios, “Onde esta o senhor?” relaciona a énfase da droga coma mi pobreza e a riqueza relacional. Franco Rotelli incita a seduzir, mais quea droga, a quem cuida de toxicodependentes, e contribui parauma legislagg descriminalizadora. “Drogas e éxtase” é um estudo erudito sobre as diversas mManeiras antropoldgicas de experienciar 0 “sair de si”. Dartiu Xavier da Silveira, diretor do Programa de Orientacao e As. i sisténcia aos Dependentes, da Escola Paulista de Medicina, imerso na clinica, fala dos que nao podem nao consumir drogas, de seu imaginérioe da androginia, a partir de trés elementos: a substancia psicoativa, o indi- viduo e o contexto sociocultural. Por fim, Claude Olievenstein, em texto inédito enviado especialmente para SatideLoucura, focaliza as aporias com as quais se defronta o problema da droga perante o crescimento da epidemia do HIV, o risco da medica- lizagao, a necessidade de nao institucionalizar, em prol de uma ética clinica e preventiva. Enquanto envio estes textos para a grafica, depois de ter transitado por eles ecom eles, percebo que convivo de outro modo coma AIDS, quejanao me relaciono da mesma formacomas drogas — é estaa vontade plural que desejo compartilhar e fazer circular. adores sue illes Del, eure lexisténcia de © “conjunty de desejony idia, com A Sao Paulo, dezembro de 1991. HERBERT DANIEL ANOTACOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS # fenda Dessas coisas devo falar. Nao por causa da doenca. Nem mesmo por causa da morte, da qual nunca saberemos nada — e, portan- to,0 Unico que resta a fazer 6 aprender a vivé-la; aprender a vivé-la, mortel, é aprender sumariamente. Estou compelido a falar, assim sendo, daquilo que, em satide ou doenga, me torna o plural de uma época, ou seja, a dita condicao humana. Afinal, a questo é sempre a vida. No oposto do seu biologico. E stou vivendo com AIDS. Um virus me habita, um risco me.ronda. Ando em passeio numa fenda estreita. Posso escorregar, resvalar, Passar, cair, nao sei bem o que diga, pois nao sei que brecha se abre, nem de onde para onde. Morrer, sim, a fenda pode ser a boca dela, cadela ou meramente coisa com boca. Sons grotescos. De vez em quando sinto um arrepio. Ja sei que nao é nada como se eu soubesse que vou morrer (sempre soube, conclui, atordoado). Isto nao altera o animo de ninguém, O que _, aprendi é que sou mortal, o que é diferente de intuir que m ~~) ‘Aprendi fragilidades, magnitudes, arregalamentos e arrepi ‘sido cada vez mais amigaveis. Surgem como uma iluminagao na vulgari- “dade do medo cotidiano, ou do sentimento fatalista. Nao 6 como estar 1 ido num poco sem fundo, numa caixa sem saida, EB como estar diante ino. Tudo esta aberto, mas fechadamente aberto. Inexoravelmente infinito. A finittide, Rupturas acontecem inesperadamente, quando penso na dor fisica, por exemplo, ou na necessidade de adiar algum prazer, para i um dia. 4 ~~ HERBERT DANIEL cumprir um qualquer compromisso. Af se um esclarecimento brutal sobre a mortalidade. Penso q descarga um significado da vida. Cada vez menos a que eu esperava dela. Cada vez mais me Parece um: esperanca. passaa descarga de adre Meaprendo ¢ ae Vida se Parece g ada a fonte incang, ae le # cura e salvacdo Todo tecido de tormentos e convites me envolve localizar o terror ou a ndusea, Estar seguro de que es: imaginar 0 que seria nao ser doente. A doenga cria, que nao me da certeza de que, se ela nao existisse, coisa que seria mais laboriosa, em matéria de vida. Sei uma coisa ardua, talvez mais trabalhosa enquanto tal, e s6 isto mesmo. Cheguei a conclus \ fundamental tratamento é sentir-me cidadao da minha poi NUM casulo on, tou doente ja porém, uma ca ide Sej Me faz : TaPaca eu estaria fazendg a que estou fazendy do que viver a Propria doenca que meu Primeiro e ca. Pouco me importa, em geral, as tecnicalidadeés terap elas sejam significativas. Como cidadao avalio, cos mais competentes do que eu (médicos e trilhas terapéuticas. Nao me jogo, como ve; falsa e cruel da cura magica, que leva a se submeter a tratamentos mente mais consumptivos do que os resulta Somos seres curdveis. E acreditamos nisto. somos capazes de atravessar os mais comp! absolutamente irremissiveis. Depois de dez anos de epidemia, parece que agora a grande noticia, substitui a inicial — e terrorista — que di diante da epidemia de AIDS, a grande no erapéuticas, embora com outros cidadaos, téenj- profissionais de satide) minhas jo tantos fazendo, na esperanca segura- dos diretos da Prdpria doenga, Entao, na busca de uma cura, licados labirintos, muitas vezes que izia que o mundo ia sucumbir ticia € a da CURA. Esperemos todos. Ela viré. Seguramente, em préximos anos. Lenta, gradual, transfor- mando a AIDS (a doenga) no que ela se torna dia a dia: uma doenga crénica, de longa evolucio, de tratamentos complexos, miltiplos e variados. AIDS éuma doenca tratavel. A epidemia é evitavel. Coma AIDS, em todasassuas dimens6es, podemos VIVER. Mitologia por mitologia, a fantasia de fazer da AIDS a formula aids = morte, inventou também que a CURA DA AIDS era uma espécie de SALVAGAO. Nao é. A AIDS nao é uma perdicao. Sua cura nao é uma salvacao, nem um milagre. E um tratamento. Uma cura. ~ ANOTACOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS = 5 Evolugdes das supersticdes, tio caras a nosso século de desenganos, envolveram 0 soropositivo, doente ou nao — este eleito pela época como o morto preferencial de nossos dias — numa teia assombrosa chamada ditadura da terapéutica. Estar sujeito as regras estritas dessa ditadura consiste numa espécie de abdicagao a cidadania. f um dos avatares da morte civil. Ea morte civil é a pior doenca gerada pela epidemia insuflada pela epidemia do HIV. #aids e AIDS Cada dia mais tenho certeza da doenga, embora ela nao se manifesteem episddios muito espetaculares, Ela esta se arrastando lentamente, cozi- nhando suas bruxarias lentas. Comigo é assim; com outros, nao. Cada caso éum caso. Sei que estou doente, veja este cansaco que me consome, como se fosse uma origem de um vulcao que me sugasse para dentro a forca e soprasse uma nausea sulfurosa permanente. Seide um meu corpo que muda e desloca.O meu corpo, que afinal nao se alheia. E meu sim, minha praca do prazer, com suas dores, seus limites novos, seu modus operandi, seu modus vivendi. Afinal, é corpo. Ecomo todo e qualquer outro, um corpo de baile. Nao da ultima festa. A primeirissima danca. Todos os corpos de baile so primeiras atrac6es. (Minha literatura teme, as vezes, 0 desabuso febril com que costumo costurar meus enredos sobre o meu préprio e o meu proximo mundg: mas desta vez aqui as coisas serao assim, fluidas, imediatas, porque AO VIVO. Estou ao vivo! Meu dia- a-dia. Adia que isto ainda é roquenrol.) Tenho tido alguma, pouca e impermanente, necessidade de um afasta- mento, de um pouco de siléncio, para melhor entender minha doenga. Acho que assim nao perco no cotidiano a capacidade de ver o pequenoeoterrivel. Empenho-me em nao esquecer de organizar o que maior e mais relevante é revelador: meu estado de cidadao diante do Estado. Muitos caminhos estao sendo abertos, se nao nos deixamos cegar pela massa de clichés que a aids gera cotidianamente, a partir de um conven- cionalismo. Aqui escrevi aids, toda a palavra em mintiscula. E como me refiro as complexas construgdes da epidemia, para diferenciar da AIDS, uma doenga caracterizada pela infeccao pelo HIV associada a infeccdes oportunistas mais ou menos graves. Acontece que foi langado, ha mais ou menos uma década, um movi- 6 HERBERT DANIEL mento perpétuo, com forca prépria, movido a estatisti risco”, adjetivos seguros, “aidéticos”, “promiscuos”, “termi Buy, ses frias e tabus quentissimos. Este movimento §era seug ‘ae as ee enorme semente totipotente. Tudo 6 mentira. E Nao temos ie Co, tn, j mentos para inventar sementes novas. 0 os, ist, | Inventaram AIDS e aids. Palavras terriveis, Capazes do pronunciadas no local (do poder) exato, produzirem Patologiasan~ Seton, sas. E duro curar-se das palavras, Pronunciada, a palavra a Sombr,, Desinventar seus efeitos: é hoje talvez a maior fungao da educa ei informacao sobre a epidemia do HIV. doenga como todas as outras. No entanto, a aids é a sindrome dos nossos dias, Tem nossos dias, para evitar inclusive que dias e aids sejam an; letras, para escrever tempos outros. Leio grandes autores para aprender verdades sobre 0 86 para saber que o tinico paraiso real é 0 que perdemos. Isto Significg que a vida enganou todas as nossas promessas; tudo que deixou em nog an pegadas e memirias sao enganos do desejo, falsificacoes do Prazer. Ah, 9 prazer. Como o personagem do TEMPO PERDIDO, eu Gostaria de gozay indefinidamente, nao desistir desse gozo que me faca'chegar a encontr, | Tempo, o Tempo em si, em sua capacidade de ser fluxo, de ser o lado do oposto da cronologia. Nunca perdemos, mas fomos enganados. Os séculos Se caracterizam pelas promessas que destroem. Nosso século desmentiu todas’ as suas promessas, uma atrds das outras. Somos um século de esperancas esfacela- _das, porque composto de vitrais onde lemos esperancas loucas e estilhaca- das. Nenhumaesperanca, nao para nés. Ha esperanca para o tempo em que adesmontagem da alienacao seja a condicao de trabalho de quem trabalha, isto é, de quem associando a imaginacao e a memoria pode criar um objeto que se chama de arte e que é 0 filho do sonho coma intuigao. cas, “ Feit, Oo Reduzira epidemiaao que ela g da - Uy a 10s que Tenomea, agraMas, Out Paraiso Perdido aro del # aids — a da pronuncia imposta Reconheci que estava com AIDS num momento de espanto, diante de um médico que nao estava Preparado nem para oseu Proprio espanto, nem __ Para a minha desolacao. Depois dos usuais rituais que coagulam a relagao _ médico/paciente, aquele siléncio demorado em que 0 doutor dé a volta 8 HERBERT DANIEL uma “outra infecgao” que me teria levado a revelado, pulmonar. Eu sabia do que ele estava falando, como sab; sabia do que eu sabia. Jogo de empurra. Cavalheiresca langas. Conservaévamos nossas areas de manobra. Imediatamente, pensei que acabara de receber uma espéi tado que me dava dois anos de vida. Era o tempo que lia nas entao, o tempo que me sobrava. Achei incrivelmente POuco, dois anos depois, acho o tempo curto demais. Mesmo se maior, nao teria sido menor o assombro de uma finitu if proxima no calendario. Os dias sao sempre muito longos, minutos aah ser parentes fisicos da eternidade, j4 os anos e os séculos Pi “a extrema rapidez. — Entao, o senhor viu mesmo o Pneumocystis? — Vi—merespondeu ele, com o ar bigodudoe irrem com um tom de quem diz todas as frases silentes sobre Acreditei, sim, que ele vira (e, na verdade, que conhecia ha pouco de textos escritos e que agora escrevia um texto no meu pulmao fatigado. Por que duvidar? O médico tinha Pudor de falar g nome da “outra infeccao” — a do HIV, a AIDS — e insistia que eu deveria fazer, depois decomegadaa medicagao, os outros testes —Nofalouno Elisa nem no Western Blot. Tudo bem, era um codigo que eu entendia, Sentia-me um pouco cinico, pois fingia nao estar sabendo do que ele estava falando, Eum pouco humilhado, numa leve suspeita de que ele poderia supor que eu nao soubesse do que ele estava falando. Eu estava murado no saber médico. Bu tinha esta “aids”, Pert A comunicagao durou quarenta segundos, ele me pediu um cheque de quarenta mil cruzados (1989), e eu tive de sair até a sala de espera e pedir a Claudio nosso talao, porque normalmente eu nao carrego nenhum e ele tem sempre todo este tipo de documentagao no bolso. Pedi ocheque, lancei- The um olhar de“deu zebra”, entrei, assineio cheque, e dizia algumas coisas Parceladas ao médico, do tipo: acontece que fiquei muito tenso, um pouco desequilibrado, o senhor compreende, afinal nao é todo dia... Impassivel- mente, ele me demonstrava que compreendia, fosse me desequilibrar em outros lugares que Semocionado, Este foio primeiro momento em que percebio valor da palavra emitida: Fa Preumo«: r Oci Ha que ele fay te ‘Mente, tercavame 10s le . es. EStatisticas le / Mesmo h, vie 0 tem 0 Fosse ide com ¢ assam com, uma ediaval, tudo ditg oO irremediave} nao vira!) o agente, aauce mas que preferia que eu : a al nao naquele gabinete de t | ANOTACOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS 9 adoecemos com as palavras, temos delas sintomas, retiramos da definitiva seta lancada pela boca estratégias muito ricas. Foi também um instan-teem que comecei a decidir que na fala eu criaria as armaduras para a fungao de desconstruir a aids que me envolvia e depois envolveria mais e sempre. Claudio queria que saissemos logo daquele corredor apinhado, tomas- semos um elevador e féssemos para a rua. Eu, com as bussolas todas aideticadas, protestei: — Puxa, acabo de saber que tenho dois anos de vida e vocé quer que eu tome um elevador? — Est certo que vocé tem dois anos de vida, mas vocé nao vai querer passé-los todos nesse corredor de elevadores, vai? Rimos. Tinha légica e tinha humor. Tinha, sobretudo, a pertinéncia da vida. Chegados a frente do edificio, tinhamos que tomar algumas posturas relativas 4 vida nova que supGnhamos comegava daquele momento em diante. Claudio aconselhou-me ir beber 4gua num bar. Eu disse que nao ia entrar num bar para pedir agua mineral com gas e comecar a chorar. Eu achava que devia chorar, parecia-mea indicacao préxima parao meu papel. Notamos, imediatamente, a partir de atos vulgares, que.a crise poderia ser muitoconfusa, muito patética. Resolvemos nao tomar 4gua nenhuma e nos encaminhar para o mar.O mar. A muita 4gua de todos os consolos, 0 planeta crespo. # amor (como sempre) primeiro Sentamo-nos num banco de praia e houve um pequeno momento de uma proposta que era — e se a gente morresse junto? As declaracées de amor de Claudio sao sempre primeiras e unicas. Eu comecei a dizer que ninguém morreu, nao vamos nos precipitar nisto. (Ninguém morreu, cantouna minha cabeca de uma forma docemente obcecada Luis Melodia e eu pensei que ele, Melodia; era de fato o quinto Beatle, s6 que nao esteve presente no lugar exato, tanto faz, ninguém morreu, hoje o dia esta tao quente, abre mais meu a-pe-ti-te, ninguém morreu.) Nossa conversa terminou num longo planejar de coisas para serem vividas em conjunto nos proximos tempos Havia, também, oconvite do tempo, Os verdes, os garotos e suas pernas 10 HERBERT DANIEL e peitos, a transitoriedade da areia, a modulacao do ven 7 oceano, a delicia dos convites sexuais e sensuais, A Sente com, “dade g, planejar, paraa vida que poderia ser agora pros tempos futurog Siow log, a juntar muito, vamos existir até o fim, se é que o fim chega assin te entender. A vida tem que ser algo que quando termine mereca ~ Vang. racao, Esta é a vida que nos desejamos ali, para nés e Para todos OMemg, Voltamos para casa progamando: voltamos Progamando . al viagens em variegados espacos, algumas falas cumulativas quenos eis dezenove anos ficaram ainda pela metade. Tudo se encaixava, fim morte proxima. Tinhamos um problema: como contar Para os out Depois de muitas hipéteses, a tinica razoavel: o melhor Método foi co, re. Nossa primeira noite foi s6 nossa, abragamos-nos, choramos, dis, se era para ser, que fosse da melhor forma para os dois. O cor, 0s amigos, mesmo os que o tinham frdagil e safenado, nosso. Ai, comecei a receber centenas de sugesties terapéuticas, Neusa, que trabalha conosco ha mais de dez anos, insistia que meu caso decorria, segundo consulta inequivoca que fizera aos orix4s, de mau-olhado e dey. me ervas para eliminé-lo. Usei, mas continuei com os outros medicaments oficiais. Posso dizer que as benzeduras nao alteraramo quadro clinico, mas fizeram-me bem aos arredores da alma, pois havia um movimento de. amor que obturava inquietagoes da solidao. Jas alopatias receitadas fizeram-me considerdvel mal. Enormes efeitos colaterais. Nao acredito em nenhum charlatanismo e tenho horror das Picareta- j gens. No entanto, respeito toda forma de curandeirismo, sobretudo quando movida pela solidariedade. Nao que curem. Mas aliviam, como todo ato de __ amor pode aliviar. tO, a fide Inclusive a SeMos gue CAO de todo, suportou, Como ¢ # noite da ronda da morte Sento-me na cama, acordando no meio de um sonho pastoso que ainda enlameia com um suor onde se mistram um calor denso, estranha- te glacial, e uma anestesia fria e escorregadia. Nao sei o nome da dor, ei as partes do corpo, estranhamo-nos, eu e minha pele e ossos. Chego me disparatado, gordo e esquelético — tudo que é carne é excess — um esquematico caroco de incémodo primordial. Estou mal no ANOTAGOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS. 11 meio dacama, sinto-me mal no meio do Corpo, no meio do mundo sou um estar indevido e dubitativo. Ao meu lado, Claudio dorme com um certo infantilismo que me causa inveja e ternura: ninguém deveria dormir num momento como este, e ao mesmo tempo Claudio dorme esgotado, depois de ter passado horas tentando ajudar-me a enfrentar a febre. Ele sempre dorme como se no mundo nao houvesse farpas ou culpas. Entrega-se. Eu, por causas outras, arranho-me com os cacos das pontas dos dedos das unhas rofdas; agito-me como se houvesse uma solucdo e nao me tivesse empenhado a sério. Movo-meno meio do algodao ensopado; todo ar parece mole. Tudo me resiste e nao sei ceder, j4 que minhas articulacdes sao conjugacoes de ferimentos cristalizados, ferimensos, sou um muitos machucados. Procuro as marcas de tamanha derrocada do corpo: sim, este agora é 0 estagio fi- nal, o prefacio do nada, depois é capitular e chegar ao epilogo. Nada se identifica, sou aquilo de sempre, ha aqui e ali uma rea de sofrimento, s6 visualizado no tato grosso da mao. Meus dedos estao ainda vivendo um pesadelo, como seas maos estivessem inchadissimas e tentassem manusear uma agulha finfssima num trabalho de fino lavor. O corpo continua o que digo “o mesmo”, € no entanto cheio de novos membros sem nome, que seriam quase estranhos se nao doessem de uma maneira corriqueiramente cordial e inteligivel. Todo 0 rosto apaziguado de Claudio, com sua barba por fazer: minha paisagem de tantos anos, agora de olhos fechados, possui a continuidade que perdino meu enredo de mim. O toque nao doi. Claudio nao doi. Etalvez a minha parte mais perenemente igual a si mesma, pelo menos. Na desaba- lada desintegracao de minhas outras partes, e das partes de mim que me continuavam, 0 que eu chamava de mundo, constato um sono banal de Claudio, sua respiracao cadenciada numa misica organica sobre a qual nao tenho controle, no descontrole da desarmonia que me habita integralmente. Ja que Claudio nao d6i, invade-me uma jubilosa perturbacdo um tanto egoista. E'comigo, s6 comigo. O mundo nao vai acabar. Esta constatacao, chegada como alivio, imediatamente se transforma num Ppanico entumes- cente, numa espécie de sentimento de injustica sem possibilidade de recurso, £ porque o alivio me encheu de minha paixao por Claudio, ela Tenasce, como toda paixao, que s6 0 é porque é nascente, é brotamento vel. Minha paixao circunscreveu de forma massacrante a dor em 12 HERBERT DANIEL mime me deu o limite da minha morte. Estou morrendo, E; Vou ficar sem 0 Claudio, e dai sem mundo. Paixdes, todos ©s meus 0, me mordem, sem piedade, arrancam pedacos de mim, arrastam Mores postas pelos cantos do meu mal-estar, ou seja, do meu estarno mundo ts prazer é participio passado, toda emogao é disfarce de Pperdae Bras Nao é a primeira vez que vejo uma injustica contra a qual nada = fazer. Jé vi muitas, praticamente sé vi injusticas. O mundo tem sido ig Mas pelo menos a indignacao me ajudava a suportar a impossibilidade . \ nao ter armas para reagir. Agora, descubro que a indignacao ataca minha dor, soma e acrescenta, nao é um canal de extravasao: 6 UM aguilhig dangando no crescimento da prépria injustiga. Meus recursos usuais mostram-se falhos, O mundo agora € outro, E porque estou morrendo. iy Sim, entendo que estou morrendo. A morte é isto mesmo, Aprendo, numinstante escuroe rigido, quenaocabe revolta nem paixao, também nag cabe consentimento nem conformismo. Agora € 0 avesso. O vazio eo inverso do vazio. Deito-me, encolho, introverto. Descubro as vésperas. Sim, a aura do prazer. O alivio. A capacidade de ir resumindo tudo de mim a mim, desfazendo as peliculas que desenham fronteiras. Tudo é sair Para dentro, entrar para fora. Agora, estouna iminéncia de descobrir algumas Tespostas. Nao todas as respostas. Algumas que estavam tocaiadas. As grandes, as enormes, as irrespondiveis, estas ja estao respondidas porque nao tém mais importancia nenhuma. S6 tinham importancia porque havia alguém que era capaz de formula-las. Somos isto, a capacidade de formular perguntas sem respostas, para tranqiiilizar nossa incapacidade fundamental.deser- ‘mos achados. Agora, nao pergunto mais, porque nao sou mais agente " dessas dividas vitais e esquematicas. Agora sao as outras questées. AS _ afirmativas, as que sao puras respostas. Tudo comega a ficar espantosamente claro. Ha uma ironia — sim, rtal! — no fato de ser tudo dbvio. O unico mistério é a absoluta Paréncia. _ Estou perdendo o medo. Tudo se passava como se fosse medo. Agora, coisas escorregam com uma ponta de curiosidade prazerosa. Ondas rgéticas saem de mim, a partir do meu peito para a frente, a partir da 2 inutos? nuca para cima. De que é mesmo que tinha medo ha poucos minutos eau ee Stou Perden ie el ANOTAGOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS. 13 De que mesmo que eu tive medo a vida inteira? pisto. Estou morrendo. Entao, MOTTO. No fundo da calma, um pequeno turbilhdo revira seu olho. Uma area jeturvaca0 perturbao grande branco que se ordenava. Estou morrendo de ‘IDS, Jembra-me 0 redemoinho, com seu chicote de sustos. Nova onda de r yedo arrepia a instével permanéncia que se torna enrugada. i Neste exato instante, nado sei mais a diferenca entre AIDS e morte. gorrio, dizendo-me que nao hanenhuma diferenca entre uma coisa e outra. Porcausa disto, subitamentealarmo-me, torno-medenovo uma inquietacado racional. Comecamanascer perguntas aguilhoantes, deste tipo de pergunta que tira 0 sono, que grasna e range’ Entao, de tudo que aprendi nos ultimos tempos, a tinica coisa que sei mesmo € que 0 Novo nome da morte é esta sigla oca, barbara e dissonante? sinto-me perfeitamente enganado, encontro um lado na injustiga que ¢ 0 tradicional, que € aquele onde um injusto, mesmo que nao seja uma pessoa ou coisa, onde a fonte da injustica é identificavel e provavelmente vencivel. Rola uma rebeliao que faz voltar a dor inteira, que torna miseravel 0 corpo, estou aos farrapos, mas rebrilhando numa armadura contra alguma coisa que me parece ser muito bem conhecida. " Nao é a morte. Nem a doenga AIDS. E a aids. Estou deixando, até agora, que falem em mim. Nao vou deixar. Eu falo... aids... Agora falo. Faco um comentario, em voz alta. Rouca, minha voz parece ter perdido a maleabilidade. Comego a discursar. Rebento o-sono de Claudio que estremunhado nao entende quase nada da catilinaria que ent6o sentado na cama. Claudio acorda e eu reclamo do mal-estar. E preciso fazer alguma coisa, nao estou nada bem, estou ruim, parece que vou até morrer, mas nao é AIDS nao; € preconceito! Comeco a reclamar, rabugento, irritado. Ah, nao, tao pensando o qué? Alguém faga alguma coisa, assim nao fico, acho isto um absurdo, uma escamoteacao, nao é possivel que nao tomem providéncias. Tenho ins- piracdo para um comicio. Portanto, fago um comicio. Claudio se perturba com tamanha exaltacao, aconselha posigdes na cama e chads ecomprimidos. Rio. De verdade, comeco a rir, com uns esgares que nao se parecem com nenhum riso, mas é uma auténtica gargalhada. Sinto-me ridiculo, tenho nocao de ser patético. 14 HERBERT DANIEL Digo a Claudio que isto de AIDS nao é nada disto, Clau, cenho, mas nao me pede maiores esclarecimentos. Faco uma a a motivos. Claudio pacientemente empurra para mim renee de meus pulsos, consulta o termémetro. Explico-lhe que antes ios, °Sfre, doesse mais, quando a gente fica muito doente. A dor @ tensa que suportavel. Parte mais E a parte que da para comentar. Ao vivo. E acrescento que ag o nome de um romance que vou escrever um dia. Rufdos imei Avida é uma farsa barulhenta. Nada tem quea justifique. E na 6 do que promete. Por isso mesmo é uma mentira adorAvel, Uma aimee inverso do disfarce. Uma invencio. A ser falada. Ao vivo 5#0 Pelo dio f, # dor A primeira armadilha é imaginar que a experiéncia da AIDS € pura mente a experiéncia de uma dor fisica. Deixemos de lado ador fisica, Aaa fisica para a qual servisse o lengo de Desdémona, nao faria do lenco senao um mero acessério de uma cena banal. Tentemos trazer olencocomo: objeto da dor moral que penetra na luta politica e poética da tragédia. Um negro com dor de dente arrastando um lengo sobre uma dor de dente pode ser inquietante, mas um negro que carrega 0 lenco da desconfianca e do desespero, elimina a dor fisica para compor 0 personagem tragico de Desdémona. Desdizer o melodrama para captar as movimentacées da tragédia. Viver com AIDS é inserir-se na tragédia da época. Nada acontece comigo. Acontece conosco. Humanidade hoje. Somos todos os sujeitos de uma dor maior. Fagamos por merecer esta historia que herdamos. # efeitos colaterais num pais de vencidos Toda doenca grave supoe terapias graves, intervencoes mais oumends brutais, remédios com efeitos colaterais devastadores. Por que deve set assim, pode-se discutir. A AIDS nao fica atras. O fato de ser considerada uma doenca “incuravel e mortal” justifica dois tipos de atitudes extremas: 1. nada resta a fazer (que é a atitude covarde, mesquinha, que muitas ee orienta até mesmo politicas governamentais); 2. tudo deve set feito, 6 qualquer maneira (para matar o virus alguns segundos antes de matal paciente...). ANOTAGOES A MARGEM DO VIVER COM AIDS 15 Bom, é preciso usar muitos critérios para suavizar esses extremismos. ‘A orientagao segura é garantir que o primeiro elemento da luta contra a AIDS, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, é 0 absoluto respeito aos direitos humanos da pessoa com o HIV. Esta éa maior e mais eficiente orientacao terapéutica até agora descoberta. Quero alertar que esta afirmagao nao é retérica. Trata-se de uma tecnologia para vencer a AIDS. Infelizmente, esta tecnologia nao faz parte do chamado arsenal de “modernidade” do nosso pais. O abuso aos direitos humanos continuam sendo o nosso remédio cotidiano, para mais facilmente chegarmos a morte civil. Toda droga tem efeitos colaterais indesejados. Como usuario, a tinica droga que conquistou meu coracao e seduziu meu espirito foi a aspirina. Mas ela pouco pode contra o HIV. Portanto, tenho que entrar no campo das drogas pesadas, as legais. Quanto as ilegais — distingao tao complicada de fazer — nao as usei nunca, sempre fui alérgico — 0 que pode ser uma maneira de somatizar minha caretice, leiam como quiserem. No entanto, sou absolutamente partidario da legalizacao e controle estrito de todas as drogas. Por uma questao de cidadania, nao por estratégias de consumo. Enfim, na discussao das drogas pesadas ha um elemento essencial a discutir: o lucro. Ele que atormenta, ele cria a guerra, ele insufla bandidos e policias, ele destr6i toda a ética de tratamento das grandes doencas... Nao lhes vou falar de minha relacéo com as drogas desse mundo. Aqui, pretendo tocar na minha relacao com a droga desses mundos contempo- Taneos. Em resumo, a maneira como a epidemia de AIDS vem sendo tratada no Brasil vai um dia fazer parte do museu da estupidez humana, onde o bestialogico da aids tem inumeras instalagées. A falta de conhecimento ‘especifico sobre a doenca, associada a idéias recebidas de manuais gene- ralistas, mais uma dose de arrogancia, tudo isto matou muita gente. E nao foi de AIDS. Foi sim de uma condenacao a morte civil que atinge soropo- sitivos ou nao, que contamina toda a populacao brasileira. - A auséncia até hoje de uma estratégia nacional integrada de combate a epidemia, substituida por iniciativas deslocadas_e impertinentes, como _campanhas terroristas ou bobinhas na televisao, e mentiras ditas em tom _académico, tem produzido os mais monstruosos efeitos colaterais. Em 16 HERBERT DANIEL suma, 0 pior efeito colateral ¢ a morte civil, a auséncia de direitos 5... vida a a saude. OSk Aico, Segredos da desordem deste pais. Nao ha ninguém, insensivel burocrata do Ministério da Satde que nao . , nem mesmo ome aiba que est, 8 . 5 - estan vésperas de um desastre. Afinal, dir-me-eis, este é um retrato ae Brasil esta convulsionado, atordoado, desbussolado (preciso import, termo, o pais merece). Minha gente, somos um bando de agulhas sine ete eo palheiro foi organizado por economistas e tecnoburocratas. Um ae nao amadureceu processos de transformagées estruturais desenvolye ns mas supremas e elasticas da perplexidade. Poucas certezas Podem a entrevistas: por exemplo, a democracia emergente esta sendo submetida uma plastica violenta. Amputac6es, ablacdes de Orgaos, transplante a membros. A mtsica de fundo imita vendaval e trovoada, para atemorizay coragdes doces. Nao é ventania e corisco. Tudo é um efeito apes cinematografico de sopro nos castelos de papel. Inclusive Papel-moeda Os altimos leques do império sao fabricados com titulos do tesouro, Em papel de rascunho. : Por outro lado, o mundo apodrece onde havia expectativa de muito verde, ou pelo menos de derramamentos de azul. O socialismo, de tanto se garantir real, enfantasmou, babou uma retérica de Estado e criou manhas de aposentado mitémano. Tudo bem, estudantes encaram canhées chine- ses e parte-se o muro (hum, mas havia mais picaretas do que s6 os instrumentos propriamente ditos, ali...). Ha democracias furando 0 cerco, Mas parece-me, ah, e eu queria acreditar diferente, que emerge uma concepcao de democracia de elite, uma ordem social populista que reza no terco da futilidade. Falam em terras da oportunidade, onde era preciso plantar as méveis areias da solidariedade. i A gente tem de enfrentar muitos efeitos colaterais, depois de engolit a mezinha amarga de cada dia. Eu, pelo menos, tenho a desculpa da AIDS e de seus disparates. Minha diarréia de mais de um ano deu-mea nocao de humildade, refletindo sobre os temas grandes do mundo.no privado do meu desencanto. Depois, furtinculos me assaltaram nas 4reas de assentamento. Escrevo de pé. Sinto-me feliz por ter alguma coisa em comum com Marx, modéstia a parte. Uma otite me entope 0 ouvido, ensurdeci um pouco, mas minha falta de talento musical nao me perme te citar Beethoven. Somos todos corpos frageis, cheios de colateralida- ~ ee 5 - tn

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