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2 edie 3+ edigdo: 2004 4 edigdo: 2006 ‘5 edigdo: 2008 6 edigdo: 2011 Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Introdugao ao Brasil. Um banquete no trépico, | / Lourengo Dantas Mota (organizador.) ~ So Paulo : Editora Senae Sao Paulo, 1999. Varios autores. Bibliogra ISBN 978-85-7359-765-3 __ |. Brasil ~ Livros - Resenhas 2. Escritores brasileiros ~ Livros ¢ leitura 3. Livros selecionados ~ Brasil 1. Mota, Lourengo Dantas, 1944-. 99-4253, CDD-028.10981 294253 CD D-028. 10981 indices para catilogo sistematico: 1. Brasil : Historia : Livros classicos : Resenhas : Citneias da informagio 028.10981 2. Resenhas: Livros clissicos : Brasil : Historia : Ciéncias da informagio 028.10981 a Digitalizado com CamScanner CAPISTRANO DE ABREU Capitulos de historia colonial Ronaldo Vainfas Digitalizado com CamScanner TRAGOS BIOGRAFICOS Capistrano nasceu em 1853, filho de Jerénimo Honério de Abreu ¢ de Antonia Vieira de Abreu, na entao provincia do Ceara, Nasceu em Colominjuba, termo de Maranguape, interior dessa provincia, ¢ ali passou a infancia, fazen- do curso primario em escola de provincia. Mais tarde continuou os estudos em Pernambuco, estudou francés ¢ inglés, mas niio chegou a ingressar na Facul- dade de Direito do Recife, ficando sem diploma superior. Tinha pouco mais de vinte anos quando resolveu mudar para a corte, em 1875, e quase nenhuma experiéncia profissional, embora fosse um leitor vo- raz de tudo o que Ihe vinha as maos ¢ tenha publicado alguns artigos na im- prensa cearense. Logo que chegou 4 corte, Capistrano conseguiu modesto emprego na Livraria Garnier e pouco depois uma vaga de professor no Colé- gio Aquino, lecionando francés e portugués. Em 1879, comegou a trabalhar na imprensa como redator da Gazeta de Noticias, dedicando-se a textos de critica literdria ¢ de histéria da literatura, ao mesmo tempo em que ingressou no quadro de funcionarios da Biblioteca Nacional. Faria sua verdadeira estreia como historiador em 1883, concorrendo a catedra de Corografia e Histéria do Brasil do Imperial Colégio D. Pedro II, antes ocupada por Goncalves Dias. Concorreu com a tese “O descobrimento do Brasil”, texto que viria a ser classico. Ingressou em 1887 no Instituto His- torico e Geogrfico Brasileiro mas continuou lecionando no Pedro II até 1899, de onde saiu em razdo de uma reforma de ensino que acabou com sua catedra. A partir de entao, viveria do trabalho de jornalista e mesmo da pesquisa histd- rica, apoiado sobretudo financeiramente por Paulo Prado, seu grande admira- dor, discipulo e editor, O SONHO DE UMA “NOVA HISTORIA” DO BRASIL Capistrano teve, assim, uma formagio tipicamente autodidata. Apren- deu inglés e francés, depois aprenderia alemio, italiano, latim, holandés ¢ mesmo Jinguas indigenas, assunto que o apaixonava.' Leu por conta propria ' A partir de 1909 passou a estudarsistematicamente o “bacaeri", Lingua de indios habitantes no Norte do Brasil (ele que também estudava 0 tupi e a lingua j8 dos caritis), vindo a publicar Ra-trachucnicku. A lingua dos caxinaués do rio Ibuau, afluente do Muru (Rio de Janeiro: Prefeitura de Taruacu, 1914). ais estudos afastariam Capistrano do trabalho de reedigdo de Capitulos de histéria colonial. 173 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL Herbert Spencer, interessando-se pelo darwinismo social em voga no final do século XIX. Interessou-se também pela filosofia positivista de Augusto Comte ¢ admirava a obra histérica do francés Taine (1828-1862) ¢ do inglés Henry Buckle (1821-1862). Mas 0 que mais 0 encantava era a escola histérica alema, a escola metédica de critica documental celebrizada por Leopold von Ranke, as correntes alemas de histéria natural, economia e sociedade. A geografia era rea de estudos particularmente cara a Capistrano, que, entre outros feitos, descobriria ¢ traduziria do alemao 0 livro de J. E. Wappoeus, Handbuch der Geographie und Statistik des Kaserreiches Brasilien (Leipzig, 1871), publi- cando-o com 0 titulo de A geografia fisica do Brasil, em 1884. Na verdade, o interesse de Capistrano pelas relagdes entre historia e ge- ografia e sua convicgdio de que as sociedades eram profundamente marcadas pela cultura ¢ pelo meio geografico estariam presentes no futuro Capitulos de histéria colonial, obra classica de nossa historiografia que nos cabe aqui apre- sentar ao leitor. Conta-nos José Honério Rodrigues que o sonho de escrever uma “nova histéria” do Brasil era muito antigo em Capistrano. Pelo menos foi o que disse a Paulo Prado, em carta de 1924, quase no fim da vida, revelando que tivera tal ideia havia cinquenta anos.? Uma “nova histéria” do Brasil, portanto, eis 0 que Capistrano pretendia escrever, e, se nao foi aos 21 anos, sé-lo-ia mais tarde, em meio a seus estudos e quando preparou a reedigao critica da grande obra de histéria brasileira até entio escrita, a Histéria geral do Brasil, de Francisco Adolpho de Varnhagen, publicada originalmente em cinco volumes, de 1854 a 1857. O sonho amadureceu ali pelos anos 1890, pelo que se vé na carta que escreveu ao bario do Rio Branco, contando que desejava escrever uma histé- ria diferente, “dizer algumas coisas novas”, quebrar os “quadros de ferro de Varnhagen”, introduzir assuntos até entio pouco estudados, por vezes desco- nhecidos: as bandeiras, as minas, as estradas, a criagdio do gado.’ Capistrano j4 ensaiara os primeiros passos em 1889, quando publicou Caminhos antigos ¢ povoamento do Brasil. Mas 0 projeto era mais ambicioso: fazer uma grande histéria do Brasil diferente da de Varnhagen, Por qué? O que Carta a Paulo Prado em 20 de maio de 1924, Apud José Hondrio Rodrigues, “Explicagdo”, texto introdutério a Capitulos de histéria colonial (6% edigdo. Rio de Janeiro: Civilizagdo Brasileira, 1976), p.Xl. > Carta ao bario do Rio Branco em 17 de abril de 1890, ibid.,p. XI. i” = Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS, incomodava tanto a Capistrano na portentosa Histéria geral do Brasil, base do ensino da “historia patria”? Incomodava-o antes de tudo 0 estilo, a escrita fria e insensivel do viscon- de de Porto Seguro, titulo que 0 imperador concederia a nosso primeiro gran- de historiador, premiando-o por sua contribuigdo 4 meméria da nagao. Capistrano admirava a erudigéo de Varnhagen, mas detestava seu texto, de que varias vezes se queixou em sua vasta correspondéncia, e almejava escrever uma histéria viva e vivaz. Incomodava-o também a cronologia rigida de Varnhagen, a histéria do Brasil comegando em 1500 ¢ acompanhando, pari passu, os fatos oficiais até a chegada da “corte joanina” ao Brasil. E nisso chegamos ao ponto central. Capistrano rejeitava o carter “oficial” da historia feita por Varnhagen, histéria empenhada em sustentar a coeréncia do império desde as origens coloniais, sua unidade territorial, a exceléncia da dinastia de Braganga, E temos aqui que fazer um breve paréntesis, comentar um pouco a obra de Varnhagen, para que possamos compreender o dnimo de Capistrano em seu Capitulos de historia colonial. Escrevendo no meado do século XIX, Varnhagen, paulista de Sorocaba e filho de alemies, se empenharia em cons- truir uma histéria do Brasil 4 feicao dos interesses imperiais da elite dominan- te. Elite centralizadora ¢ escravocrata, vale dizer, que lograra éxito na conservagiio do império, superando a abdicagiio de D. Pedro I, a crise regencial, as rebelides espoucadas de norte a sul do pais nos anos 1830. A mesma elite que arquitetara o “Golpe da Maioridade”, entronizando D, Pedro II pelo bem da unidade imperial.* Na Historia de Varnhagen, louva-se a colonizagao portuguesa, sua obra expansionista, seu impeto civilizat6rio; e louva-se mais a dinastia de Braganga —aque pertencia D. Pedro II — que a de Avis. uma historia elitista, laudatoria dos “vencedores”, que despreza o indio, mal fala do negro, e desconfia sem- pre das rebelides, desqualificando-as, Nao pode passar sem registro o fato de Varnhagen ter escrito uma Histé- ria geral do Brasil muito distinta da proposta de Karl von Martius, 0 natura- lista alemao que, em 1844, ganhara 0 concurso promovido pelo recém-criado Instituto Histérico e Geografico Brasileiro sobre “Como se deve escrever a histéria do Brasil”, Von Martius ganhara o prémio propondo que o nticleo de * CF. Ilmar R. de Matos, Tempo Saguarema (Sio Paulo: Hucitee, 1987); Lilia Sehwarez, Nas barbas do imperador: D. Pedro II, um monarea nos trépicos (So Paulo: Companhia das Letras, 1998). 175 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL uma histéria do Brasil deveria ser a “fusio das trés ragas” — 9 branco portu- gués, 0 indio, o negro afticano —,° proposta muito inovadora para uma época em que 0 trifico negreiro estava no auge e o indio estava quase exterminado, ao menos no litoral. Nao é 0 caso aqui de examinar 0 texto de Von Martius, suas motivagdes, as misteriosas raz6es que Ihe valeram o laurel. O fato é que Varnhagen nio seguiu esse plano na célebre e classica Histéria geral do Brasil, apesar de ser obra de maxima crudigio, rica na reconstituigdo de fatos entéio pouco conhe- cidos, e até mesmo cuidadosa nas informagdes etnograficas sobre os indios. Capistrano reconhecia, como ja disse, os méritos de Varnhagen, mas deplorava sua falta de sensibilidade em relagiio a vida social, as diversidades regionais, ao povo. Capistrano se preocupava com 0 povo, ausente em Varnhagen. Dizia: “o povo durante trés séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado”.® Queixou-se de Varnhagen até no seu “necrolégio”, que fez em 1878, criticando-o, quando menos, por sua “falta de espirito plastico ¢ simpa- tico”.” A composicAo bos C4P/TULOS Rival de Varnhagen, Capistrano foi porém, paradoxalmente, um segui- dor do visconde de Porto Seguro em varios aspectos. A propria ideia de fazer uma “nova histéria” do Brasil comegou a germinar em Capistrano, de fato, nao em sonho, mas a propésito de uma reedigao critica de Varnhagen, isto é,0 projeto de fazer alentadas introdugdes a cada um dos volumes da Histéria geral do Brasil. Assim surgiram alguns “Capitulos”, ou 0 esbogo deles, parte dos quais publicados, em versio simplificada, a partir de 1905, na revista Kosmos do Rio de Janeiro, sob o titulo de “Historia patria”. E foi por esse ano que os Capitulos comegaram a tomar forma, meio de improviso e por causa de circunstancias algo fortuitas. Refiro-me 4 iniciativa Sobre o tema, ver Manuel Salgado Guimaries, “Nagao e civilizagdo nos trépicos: 0 Instituto Histrico € Geogrifico Brasileiro e o projeto de uma histéria nacional”, em Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, 1 1, 1988, pp. 5-37; Liicia M. P. Guimaries, “Debaixo da protegdo de Sua Majestade Imperi Instituto Historico e Geogrifico Brasileiro (1838-1889)", em Revista do Instituto Histirico e Geogri- ico Brasileiro, Rio de Janeiro, nt 388, 1995, Carta a Joao Liicio de Azevedo em 16 de julho de 1920. Apud J. H. Rodrigues, op. cit., pp. XXXI- -XXXIL Apud J, H, Rodrigues, ibid., p. XXXV, 176 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS. do Centro Industrial do Brasil, que, em 1905, foi incumbido pelo ministro da | Indistria, Viagdio ¢ Obras Publicas, Lauro Muller, de elaborar uma obra com informagdes sobre todas as induistrias exploradas no pais, fazendo-a preceder de um estudo histérico, no qual participaria Capistrano de Abreu. Dai surgiuo texto “Nogdes de histéria do Brasil até 1800”, publicado em O Brasil. Suas riquezas naturais. Suas indiistrias, Foi a base dos Capitulos que, depois de mil atropelos, seria publicado 4 parte, em separata, em 1907, Capistrano sofreu para concluir os Capitulos. Fora-lhe encomendado ampliar o texto até 0 periodo republicano. Mas Capistrano no passou de 1800, Jevando meses para concluir o livro, sempre insatisfeito com os resultados, queixando-se de tudo e de todos. “Sou verdadeiramente um galé”, escreveu a Studart. “Sinto necessidade de passar uma semana fora do Rio, na Gavea, em Petropolis [...] Por maior esforgo acho que esta semana ainda nao terminarei [...] Ficarei doente se néo me livrar de semelhante amofinagio.”* Publicou o livro em 1907, mas logo pensou em reescrevé-lo para uma segunda edigao, tarefa que jamais conseguiu realizar. As demais edigdes da obra foram todas postumas. Atrasos e improvisos a parte, Capitulos de histéria colonial é livto-cha- ve de nossa historiografia, considerado por alguns, como José Honério Rodrigues, “obra-prima da historiografia brasileira”. E opiniio justa? ENTRE A TRADIGAO E A RADICALIDADE Antes de tudo, é o caso de dizer que Capistrano, que tanto criticava Varnhagen por inimeras imperfeigdes da Histéria geral, tampouco seguiu 0 plano de Von Martius, para quem a historia do Brasil devia ser escrita elegen- doa “fusdio das trés ragas” como problematica central, A bem da verdade, ele no parece ter jamais se interessado por esse problema como niicleo de uma historia do Brasil, e os Capitulos sio muito acanhados no tratamento do tema da miscigenago, como veremos, Ha, porém, importantes inovagdes na estrutura da obra, em seu temario que, seguramente, ndo obedece a uma ldgica de “historia oficial”, partindo do descobrimento, seguindo os fatos institucionais, os governos, as invasdes, até a chegada da corte de D, Joao, em 1808, ou A prépria independéncia, B verda- * Carta a Studart em 28 de novembro de 1906, ibid, p. XX. m7 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL de que Capistrano nao deixa de adotar certa ordem cronolégica a partir do | terceiro capitulo, “Descobridores”, e vai sumariando, em alguns capitulos, os fatos ou processos marcantes dos séculos XVI a XVIII, a exemplo do regime de capitanias hereditarias, das invasdes francesas do século XVI, das holande- sas do XVII, dos tratados de limites entre portugueses ¢ espanhéis. Mas, entre 8 recortes que diriamos convencionais de alguns capitulos, ha outros verda- deiramente monogrificos, como no caso do classico “O sertao” e no do ilti- mo deles, “Trés séculos depois”. A ambiguidade entre 0 convencional ¢ 0 inovador que se percebe na arquitetura da obra, isto é, 0 compromisso de tratar dos “grandes fatos” e ao mesmo tempo mergulhar em assuntos desconhecidos, reaparece de varios modos na narrativa dos onze capitulos. Vale comenté-los. “Antecedentes indigenas”, titulo do primeiro capitulo, trata fundamen- talmente da natureza brasilica, a comprovar a paixdio de Capistrano pela geo- grafia. Ele localiza o Brasil, descreve em linhas gerais as caracteristicas tegionais, as serras, planaltos, serrados, baixadas, caatingas, rios, com desta- que para 0 Sao Francisco que seria por ele considerado o rio da unidade naci- onal. Descreve o clima, menciona a flora, comenta a fauna, “muito rica em insetos, répteis, aves, peixes e pequenos quadnipedes”. Ocupa-se dos indios em menos de duas paginas, um pouco sobre os tupis, outro tanto sobre os que falavam “linguas travadas”: jés, cariris, os tremembés das praias do Ceara. Nos pardgrafos finais do capitulo, dispde-se a discutir se, por causa do meio geografico, o indio era ou nao indolente. E afirma: Indolente o indigena era, sem diivida, mas também era capaz de grandes esforgos, Podia dar muito de si. O principal efeito dos fatores antropogeogriicos foi dis- pensar a cooperagio [...] A mesma auséneia de cooperagdo, a mesma incapacidade de agiio incorporada e inteligente, limitada apenas pela divisio do trabalho e suas consequéncias, parece terem os indigenas legado a seus sucessores.? Trata-se, pois, de uma abertura inovadora da historia do Brasil, pois re- conhece que ela comegava com os indios ¢ destaca as diversidades geogrifi- cas do territ6rio como fatores condicionantes de nossa histéria. Mas a outra face da moeda é a descrigdo superficialissima das culturas indigenas que aqui habitavam — descri¢fo muito inferior, na verdade, A que fizera Varnhagen @ ” Capitulos, cit, p. 12, 178 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS. propésito dos tupinambas em capitulo de mesmo titulo —, sem falar na reitera- cho de certos esteredtipos sobre a preguiga dos indios, O capitulo II ja traz como novidade o proprio titulo, “Fatores exéticos”, sobretudo se considerarmos que 0 “exdtico”, no caso, é primeiramente Portu- gal. Se Varnhagen concebia a historia do Brasil como continuagao da historia portuguesa, Capistrano vé, nos portugueses, estrangeiros. Portugués “estra- nho ao continente”, ao qual se juntaria 0 negro, “também alienigena”, vale dizer. E a propdsito desse encontro Capistrano ensaia algumas notas sobre a mescla cultural — e nem tanto racial — que marcaria nossa historia: “O negro trouxe uma nota alegre ao lado do portugués taciturno ¢ do indio sorumbitico. As suas dangas lascivas, toleradas a principio, tornaram-se instituigdio nacio- nal”. O capitulo III se atém ao descobrimento, assunto que Capistrano estuda- ra para a tese da catedra do Pedro II nos anos 1880. E capitulo que reconstitui, em linhas gerais, a expansio ultramarina portuguesa, a viagem de Pedro Alva- res Cabral, os primeiros contatos. Nao deixa de inquictar a superficialidade do capitulo comparado a tese anterior sobre O descobrimento do Brasil. Nenhu- ma énfase na intencionalidade do descobrimento, tese de que Capistrano era expoente; nenhuma discussio maior sobre se navegadores de outras partes estiveram no Brasil antes de Cabral, como Diego de Lepe e Vicente Pinzén. Capistrano bem conhecia a anterioridade desses navegadores e soubera inter- pretar com inteligéncia esse fato ao dizer que, “sociologicamente falando, os descobridores do Brasil foram os portugueses, pois neles inicia-se a nossa historia, por eles se continua por séculos [...]”.!' Mas nesse capitulo dos Capi- tulos, Capistrano é s6 descritivo. Termina-o comentando os primeiros tempos. “Pau-brasil, papagaios, es- ‘cravos, mestigos condensam a obra das primeiras décadas”, assim afirma 0 autor, Dé boa pista sobre as ambivaléncias de naufragos e degredados dos anos iniciais, lembrando que uns “sucumbiram ao meio” e viraram até antro- pofagos, e outros “insurgiram-se contra ele ¢ impuseram sua vontade”, auxili- ando a futura colonizagao. Eno deixa de ensaiar novo passo na analise da miscigenagio, rastreando as motivagdes de indias e portugueses nesse encontro que foi também sexual. Quanto as indias, diz que se ofereceram aos portugueses para terem filhos Ibid, p18. "Capistrano de Abreu, O descobrimento do Brasil (Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1929), p. 69. 179 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL “pertencentes a raca superior”, dado que entre os nativos 0 parentesco s6 con- tava pelo lado paterno — hipétese bastante discutivel, a meu ver. Quanto aos portugueses, que prefere chamar entio de “alienigenas”, sugere que influiu“a escassez, se nfo auséncia de mulheres de seu sangue” — ideia que a historiografia posterior repetiria A farta, O quarto capitulo, “Primeiros conflitos”, é dos mais curtos, mas muito inteligente ¢ original. Langa 0 foco na verdadeira competicao entre franceses ¢ portugueses, logo nas primeiras décadas do século XVI. E avanga muito em relacio a historiografia brasileira da época, Varnhagen a frente, ao questionar 0 direito portugués as terras brasilicas. Dimensiona os conflitos como disputa luso-francesa pela futura colénia, os episédios da nau Pelerine, a tomada da fortaleza francesa em Pernambuco, frisando que “durante anos ficou indeciso se 0 Brasil ficaria pertencendo aos Perd [portugueses] ou aos Mair [france- ses]"."? E nisso, ao usar os nomes com que os indigenas do litoral tratavam portugueses e franceses, Capistrano articula a disputa europeia no Brasil com as rivalidades entre grupos indigenas, tupinambis ¢ tupiniquins — ambos de fala tupi —, porém lutando em lados opostos. Nesse breve capitulo vé-se jé 0 Capistrano inovador e audacioso, navegando na contracorrente da historiografia tradicional. No capitulo V, “Capitanias hereditdrias”, Capistrano procura mostrar 0 4nimo e os meios utilizados por Portugal para controlar efetivamente o litoral brasileiro. E 0 regime de donatarias ou capitanias, “organizagao feudal”, que, se aparentemente fragilizava a autoridade monarquica na Colénia, poderia ga- rantir a ocupagio lusitana na regio. Poderia garantir — disse eu -, porque nos mostra Capistrano o fracasso de varias delas, umas abandonadas em face dos assaltos indigenas, outras nem sequer ocupadas, quase todas desprotegidas. Excegdes que confirmam a regra: Sao Vicente, nticleo da ocupagdio da banda sul do Brasil; e Pernambuco, base da economia agucareira nos primérdios do século XVI. O caso da Bahia ilustra bem os desacertos que marcaram essa primeira fase da ocupagio territorial e dele Capistrano se ocupa com mestria nesse capitulo, Ressalta que a Bahia tinha tudo para dar certo — como alias ocorreria depois de 1549, O donatério Francisco Pereira Coutinho recebeu capitania com largos recursos naturais: “baia vasta como um mediterrdneo”, rios nume- Tosos para moverem engenhos, matas virgens, terrenos bons para 0 pastoreio, " Capitulos, cit, p.31. 180 «i Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS posiglio geografica vantajosa no centro das outras capitanias. Se era pobre em pau-brasil, também ficava livre dos franceses e, por conseguinte, era menos fustigada pelos tupinambas, sempre incitados pelos entrelopos. “Por que nao foi avante, com tudo isso, Francisco Pereira Coutinho?”, pergunta-se Capistrano. donatério nao soube dominar sua propria gente, “nem se impés a indiada das adjacéncias”, Acabou fugindo para Porto Seguro, apds uma série de esca- ramugas, ¢, “cansado ¢ velho”, estava a ponto de desistir. A aparente aquietagao da Bahia fé-lo retornar na esperanga de retomar 0 povoamento, mas, tio logo desembarcou, caiu prisioneiro dos tupinambas. Ele, Francisco Pereira Coutinho, que antes havia mandado matar “um dos cabecilhas” dos indios. Resultado: “[...] foi ritualmente sacrificado por um irmio do finado, de cinco anos, tio pequeno que foi preciso segurarem-lhe a massa do sacrificio [...]”." O capitulo VI, “Capitanias da coroa”, prossegue, com a matéria do ante- rior — os mecanismos de controle portugués -, examinando a instituigaio do governo geral; a escolha da Bahia, transformada em capitania régia para sede da governanca; os primeiros governadores. Entram em cena os jesuitas, que vieram com Tomé de Sousa em 1549, e o projeto missiondrio. Voltam 4 cena 0s franceses, agora fustigando 0 Rio de Janeiro, e novamente os conflitos em que 0s nativos de lingua tupi se dividem no auxilio aos beligerantes europeus. Capistrano retorna ao problema do fracasso das capitanias hereditarias, analisando-o no conjunto. Frisa que, como eram capitais fundamentalmente privados os atuantes na empresa de exploracio, tendiam logo a se retirar no caso de dificuldades, ao que se conjugava a fragilidade da justiga, a auséncia de governo, a pirataria ~ dbices cronicos naquele tempo. Dai a opgio de D. Joo III pela instalago do governo geral na capitania devoluta com a morte de Francisco Pereira Coutinho. Um esforgo de centralizagiio para conter as “anar- quias intestinas”, para combater a pirataria francesa na costa e, enfim, para “pacificar” os indios. O autor examina tudo isso, os primeiros governos, as guerras de pacificagdo, os conflitos com os franceses. Nesse tiltimo ponto, destaca-se a narrativa da presenga francesa no Rio de Janeiro, a expedigao comandada por Nicolau Durand de Villegaignon, de- pois pelo sobrinho Bois Le Comte, a fundagio da cidade do Rio de Janeiro por Estacio de S4, sua morte, a Confederagiio dos Tamoios ‘8 € Outros comba- tes, dos quais saiu vitorioso, celebrizariam 0 governo de Mem de SA, “homem de toga, desembargador da Casa da Suplicagio”, sem falar no apoio dado a Ibid, p43, 181 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL. Manuel da Nébrega para o estabelecimento das primeiras missdes inacianas no Brasil. E nessa altura do livro que Capistrano dedica alguma atengio a face religiosa da colonizagao portuguesa, Examina as ideias de Nébrega, sua con- vicgao de que os indios cram educaveis, sobretudo as criangas, dado que adul- tos e velhos pareciam mais apegados aos costumes gentios, as “bebedeiras, causa de tantas desordens”, a antropofagia, “de significagao ritual repugnante aos ocidentais”, a poligamia.'* Examina, em seguida, 0 avango das missdes pelo litoral, sobretudo apés 1558, ¢ seu relativo éxito, niio obstante as pres- sdes escravizadoras ¢ as doengas que, de fato, dizimaram boa parte da popula cao indigena posta em contato direto com a colonizagio. O capitulo VII, “Franceses ¢ espanhdis”, trata na realidade de mais as- suntos do que 0 titulo sugere. Dos espanhdis, quase nada, exceto o registro da ascens’io dos Habsburgo de Espanha ao trono portugués ¢ as “consequéncias favordveis” para o Brasil que Capistrano localiza justamente a partir de 1580: ‘os comegos da expansio territorial rumo 4 bacia do Prata, no Sul, ¢ rumo ao Amazonas, no Norte. Dos franceses, sempre presentes nas costas brasilicas — ¢ no livro de Capistrano -, 0 capitulo trata de La Ravardiére, no Maranhio, ¢ dos conflitos com os portugueses. Depois, a expansiio lusitana rumo ao norte, 0 Rio Grande, o proprio Maranhio, o Amazonas. Capistrano adentra, entio, 0 século XVII. Mas o melhor do capitulo vem nas paginas finais, meio de improviso, ¢ jamais se poderia suspeitar que Capistrano disso tratasse em capitulo chama- do “Franceses e espanhois”. A certa altura, diz.a seco Capistrano: “Agora um rapido lancear do pais, ai pelos anos 1618 [...]” — prelidio de um breve mas interessante balango da sociedade colonial cerca de cem anos depois do des- cobrimento, Capistrano comega por reconstituir a estratificagio social, identifican- do, na base, os escravos, “filhos da terra ou afticanos”; acima deles, os portu- gueses sem terra que atuavam como mestres de agiicar, feitores, oficiais mecanicos, gente que vivia de salario; em seguida, os lavradores mais modes- tos, produtores de mantimentos ou criadores de gado; no topo, os senhores de engenho, “titulo a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido [ diria o célebre jesuita Antonil, no qual se baseia Capistrano para falar do mun- do dos engenhos ¢ da economia agucareira colonial no século XVIL. " bid., p. 50, 182 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS © momento de falarmos do Capistrano pesquisador, do Capistrano descobridor de fontes capitais da historia colonial, Porque foi Capistrano quem descobriu os Didlogos das grandezas do Brasil, de Ambrosio Fernandes Brandio, obra escrita em 1618 que muito nos conta sobre a sociedade agucareira de Pernambuco. Foi também ele quem descobriu a Histéria do Brasil, de frei Vicente do Salvador, escrita em 1627, 0 primeiro livro com esse titulo. E foi quem descobriu Andreoni, o Antonil, autor de Cultura e opuléncia do Brasil por suas drogas ¢ minas, publicado em 1711 ¢ depois retirado de circulagio por ordem régia. Seria ainda Capistrano a descobrir a Primeira visitagéo do ‘Santo Oficio ao Brasil, trasladando ¢ publicando as confissdes ¢ denunciagées da Bahia, de 1591 a 1593. Rastreador de arquivos portugueses ¢ descobridor de fontes inéditas, Capistrano possuia conhecimentos e subsidios para empreender uma andlise da sociedade colonial no limiar dos seiscentos. Esbogou-a, sem diivida, mas por que 0 teria feito no final de um capitulo intitulado “Franceses e espa- nhdis"? Por que nfio um capitulo & parte? Talvez pelo improviso com que compos os Capitulos, talvez pela hesitago em fazer “sociologia histérica” e com isso quebrar certa ordem cronolégica que, apesar das inovagdes, procu- rou seguir na exposigo das matérias. De todo modo, o esboso de interpretagio que faz nesse capitulo nio mau. Capta tenses importantissimas ao dizer que “a desafeicao entre as trés ragas e respectivos mestigos lavrava dentro de cada raga”. E antecipa mesmo certas conclusdes do ultimo capitulo, este, sim, analitico por exceléncia: “Em suma, dominavam forcas dissolventes, centrifugas, no organismo social; ape- nas se percebiam as diferengas; ndo havia consciéncia de unidade, mas de multiplicidade”.'* E no final do capitulo que compreendemos melhor por que Capistrano entroniza os “espanhdis” no titulo — espanhéis que haviam, eles proprios, se entronizado em Portugal ~ ¢ as raz6es de considerar que 0 dominio espanhol foi “favoravel” ao Brasil, i porque foi nesse periodo que se acelerou a expan- stio rumo ao interior € ao Amazonas, como ja indiquei, e porque foi nele que se deu “a eliminagdo completa dos franceses”.'* Nessa altura, Capistrano se trai, vendo na eliminagdo completa dos franceses — de resto, iluséria -, um triunfo para o Brasil; quando o era para Portugal, se tanto, ja que nem mesmo 4 metr6pole lusitana gozava entiio de autonomia politica. "* Dbid. p. 70. "Ibid. p, 72 183 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL Mas, se no capitulo VII Capistrano vé vantagens na dominagdo espanho- la sobre Portugal, no VIII dedica-se a examinar“‘o reverso da medalha”, istoé, as desvantagens. E 0 capitulo sobre as “Guerras flamengas”, no qual trata das invasdes holandesas, da dominag%io de Pernambuco ¢ adjacéncias pela Com- panhia das indias Ocidentais, das guerras de resisténcia e das guerras de ex- pulsio, sobretudo a Insurreigo Pernambucana de 1645 a 1654. E se ja no capitulo VII Capistrano de certo modo celebrava a eliminagao dos franceses, de olho no futuro Brasil ~ ¢ no Brasil colonizado por Portugal -, no capitulo sobre as “Guerras flamengas” assume de vez 0 esboco de “brasilidade” pre- sente nos insurretos, como que a repetir Varnhagen. O Varnhagen da Histéria das lutas com os holandeses no Brasil ¢ o Varnhagen da Histéria geral, que via na colonizagio portuguesa o cimento da futura unidade imperial: “Vence- dores dos flamengos, que haviam vencido os espanhéis, algum tempo senho- tes de Portugal, os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, ¢ um povo de herdis. Nessa convicgo os confirmaram os testemunhos do reconhe- cimento oficial [...]”.” Nao tenho divida em dizer que, por vezes, Capistrano se aproximava mais de Varnhagen, nos seus Capitulos, do que desejaria ou supunha fazer. Mas nem por isso os Capitulos mudam de tom, nem Capistrano desiste de fazer uma “outra histéria do Brasil”, menos oficial, critica e jamais lauda- t6ria da “obra colonizadora” dos portugueses. Pelo contririo, a originalidade do livro atinge seu auge no capitulo IX, “O sertio”, e isso logo na primeira frase: “A invasio flamenga constitui mero epis6dio da ocupagio da costa. Deixa-a na sombra a todos os respeitos 0 povoamento do sertio, iniciado em épocas diversas, de pontos apartados, até formar-se uma corrente interior, mais volumosa ¢ mais fertilizante que o ténue fio litorneo”."* Frase belissima, que pe o litoral na “sombra” e langa 0 foco nas entra- nhas da América portuguesa, no “Sertiio”, Sertio que Capistrano utiliza no como sin6nimo da caatinga drida, como se pensa hoje, mas conforme se usava na época, ou seja, palavra alusiva ao interior, As terras indomaveis, ds partes ainda nao conquistadas ou, quando menos, niio densamente ocupadas. E poe-se 0 autor a esmiugar as jornadas de expansio bandeirante a partir de Sao Vicente, rumo ao sul ow a oeste, alargando as fronteiras do antigo Tratado de Tordesilhas, ¢ novamente a expansiio para o norte, a ocupagao do " Ibid, p.96, " Ibid. p.98. 184 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS scu Ceari, Maranhiio, Paré, Amazonas, fi capitulo inspirador de muitos livros importantes de nossa historiografia, como 0 Vida e morte do bandeirante, de Alcantara Machado (1929), ou mesmo da face digamos “paulista” da obra de Sérgio Buarque, o Sérgio Buarque de Mongdes ou de Caminhos e fronteiras. Trata-se de capitulo téo importante que, como lembra Stuart Schwartz, houve quem visse no livro de Capistrano uma versio brasileira do que fora 0 The Frontier in American History, livro clissico de Frederick Jackson Turner, pu- blicado em 1893, que elege a expansao da fronteira como tema-chave da his- toria dos Estados Unidos. Trata-se, de todo modo, de capitulo central para se compreender a origi- nalidade da visdo de Capistrano de Abreu sobre a historia do Brasil no tempo colonial. Nele se encontra a expansio territorial para todos os quadrantes, expansio que, no centro, levaria 4 descoberta do ouro e a construgao de uma sociedade colonial muito diferente da litordnea, a sociedade das gerais: Minas Gerais. Expanso que, noutras partes, por influéncia do meio e dos povos, resultaria em sociedades também especificas: varios Brasis, ao invés de um Brasil s6. Prudente, fiel 4 cronologia e, malgré lui méme, fiel aos fatos institucionais, Capistrano retorna, no capitulo X, a histéria oficial. £0 capitulo “Formagao de limites”, no qual examina as revisdes do Tratado de Tordesilhas provocadas pela expansdo bandeirante para o sul, oeste, norte, das quais resultariam vari- 0s tratados luso-espanhdis, sobretudo no século XVIII. O mais importante deles, 0 Tratado de Madri, de 1750, que alinhavou os contornos da territorialidade da América portuguesa, futuro Brasil. Assunto de histéria di- plomitica tradicional — poder-se-ia dizer, com razio —, mas assunto verdadei- ramente capital em nossa historiografia do século XIX, de que Capistrano era herdeiro, embora critico. O IHGB se empenhara muitissimo nas investigagdes sobre o tema, geografica e historicamente, desde a sua criagéio em 1838, no minimo porque nem sequer as fronteiras territoriais do Brasil eram precisa- mente conhecidas na época da independéncia (os mapas haviam retornado a Portugal com o regresso de D, Jofio VI a Lisboa). Capistrano resume o assun- to, expde os fatos e prepara o terreno para o derradeiro capitulo, o melhor de todos. Bo que diz Stuart Schwartz na excelente introdugio da tradugdo dos Capitulas para o inglés: Chapters of Brazil's Colonial History (1500-1800) (Nova York ! Oxford: Oxford University Press, 1997), p. XXVL. 185 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL Capitulo XI: “Trés séculos depois”, balango de nossa histéria entre os “antecedentes indigenas” ¢ 1800. Antes de tudo, a populagio, a estimativa de sua distribuigdo geogrifica. Depois, as caracteristicas de cada regiiio, a bacia amazénica, 0 Sul, o litoral, o centro, os “sertdes de fora ¢ os de dentro”. Tudo isso acompanhado da descricao das atividades econdmicas predominantes em cada espago, a zona de criagdo de gado, com suas diferengas; as 4reas de coleta de drogas; as areas de lavoura tropical; as minas decadentes. As dife- rengas entre os habitantes de cada parte; os contrastes entre mineiros ¢ paulistas; as diferengas entre o mundo da casa-grande ¢ do engenho — no litoral do agi- car ~ ¢ a “civilizagdio do couro” — no mundo da pecuiria. Capistrano ensaia, nesse capitulo, uma analise verdadeiramente etno-histérica: quem comia o qué e onde, se peixe fresco ou farinha de mandioca, carne ou rapadura, ou como dormiam, se em redes ou catres, tudo a servigo de sua tese central de que, is vésperas da independéncia, havia muitos Brasis nos modos de viver sobreviver, no carter, nas incomunicabilidades. Ha miltiplos Brasis nesse capitulo ¢ ha também uma historia da cultura material ¢ uma historia social. “Trés séculos depois” é capitulo que assume 0 que até entio 0 livro so- mente esbocava, quando nao escondia: uma anilise da sociedade. Anilise da estratificagdo social, indicando que entre senhores e escravos havia padres ¢ frades, artesdios ¢ mascates, homens livres pobres e mestigos tocados pela fortuna, Brancos oprimidos pelo convencionalismo, negros oprimidos pela escravidio. “Mulatos, gente indécil e rixenta, podiam ser contidos a interva- los por atos de prepoténcia, mas reassumiam logo a rebeldia originaria” — ¢ nisso vemos uma concessio ao menoscabo da intelectualidade brasileira em face da miscigenac&o, que Capistrano endossa, como se os mulatos fossem originariamente rebeldes por nascerem mestigos. Apesar do menoscabo ~ mais que isso, da concessio ao esterestipo ra- cista —, Capistrano vai além e adentra o cotidiano, os valores coletivos dos Brasis, sempre diferenciados. Rascunha as mentalidades. E, se vé na casa- -grande o modelo do “pai taciturno, mulher submissa, filhos apavorados”, no deixa de vera ansiedade das mulheres casadoiras que, se casassem, manda- riam nos homens: “Casa de Gongalo, em que galinha canta mais que o galo”?! Rastreia, pois, o “matriarcado” que prosperou (e prospera) em muitas regides ou circunstincias do Brasil antigo (ou moderno), apesar do patriarcalismo assente, % Capitulos, p. 204. * Ibid. p, 209. 186 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS Nas paginas finais, Capistrano retoma sua tese central, pois, apesar da relativa dispersiio dos Capitulos, vale insistir em que o livro é livro de tese. A mesma tese esbogada (e escondida) no capitulo “Franceses ¢ espanhéis”, no qual Capistrano analisa a sociedade colonial alinhavada no inicio do século XVII, acentuando o predominio de forgas dissolventes. Segundo Capistrano, trés séculos depois 0 quadro nvio muda, quando nfo se agrava pelo alargamen- to das fronteiras territoriais. Nenhuma forga de coesio, “manifestagées coleti- vvas sempre passageiras”. “Vida social nao existia, porque niio havia sociedade”, nem vestigio de consciéncia sequer “capitanial”, quanto mais “consciéncia nacional”, Nada, portanto, que pudesse rascunhar a independéncia, apesar de uns poucos que liam autores estrangeiros, sabiam da recém-fundada replica norte- -americana e conheciam a “fraqueza lastimavel de Portugal”. Muitos Brasis, portanto, predominio de forgas centrifugas e dissolventes, eis o resultado de trés séculos de colonizagaio. Nao fosse a “comunidade ativa da lingua” — 0 portugués — e a comunidade “passiva da religidio” — catélica—e mal se poderia divisar 0 que era afinal a América portuguesa. Exageros a parte, a obra traz tese nova. E pena que dé pouca atengdio ao que chama de “comunidade passiva da religitio”, um dos poucos elos de liga- Go que Capistrano vé na Colénia—assunto praticamente ignorado pelo autor, como se a espada e a cruz nfo andassem juntas na colonizacao ibérica,” dai o elo que podia fornecer o catolicismo em terras tio dispersas. E pena, também, que tenha excluido dos Capitulos as conjuragdes do século XVIII — excelente campo de observagio para estudar os graus de consciéneia gerados na colénia ¢ as perspectivas de futuro que alguns seg- mentos de elite chegaram a cultivar, Esta — mais do que a da religido - é uma lacuna eloquente dos Capitulos, porque toca de perto a tese central de Capistrano. A inguietagao vale sobretudo para a Conjuragao ou Inconfidéncia Mi- neira, especialmente depois que se publicou, em 1902, certa carta de Joaquim Silvério dos Reis — 0 famigerado “traidor” — na Revista do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, Assunto complexo na época, vale dizer, porque, na carta, Silvério dos Reis se jactava dos servigos prestados A coroa e se queixava, de perseguigdes que sofrera. E 1902 no Brasil era tempo de repiiblica havia » Cf. Charles Boxer, igreja e a expansdo ibérica (1140-1770) (Lisboa: EdigBes 70, 1981), 187 Digitalizado com CamScanner CAPITULOS DE HISTORIA COLONIAL pouco fundada, combatida por monarquistas ressentidos, e pronta a adotar Tiradentes como herdi ¢ simbolo, entre outros.” Mas, estranhamente, Capistrano nao considerava a Inconfidéncia um tema importante. “Nunca adquiriu uma arma”, escreveu sobre a Conjuragao alguns anos antes de publicar os Capitulos.* Quanto a Tiradentes, estranhava que fosse to festejado, sendo menos importante que os Mascates ou os revolucio- narios pernambucanos de 1817. E tratando do assunto, em 1915, diria: “Por que, tendo estudado 0 depoimento de Tiradentes ¢ a sentenca da alcada, sou obrigado a repetir a versio corrente e a colocd-la no pantedo? Nunca escrevi nada sobre ele: nos Capitulos, dada a escala, nao entrou porque nio cabia Lars Entenda-se: Capistrano nado embarcou na simbologia da republica, nem tampouco se dispés a ressaltar a singularidade de Silvério dos Reis — apenas “um entre os muito delatores”. Nem os simbolos que a repuiblica “mandava guardar”, nem a nostalgia brigantina, assim era Capistrano, assim foram os Capitulos. Talvez por isso, no fundo, a Inconfidéncia tenha ficado de fora. Embora justificasse e defendesse, aqui ¢ ali, certas opgées ou omissdes da obra, Capistrano nao gostava do préprio livro, tanto é que sempre pensou em corrigi-lo, revisd-lo ¢ aumenta-lo — 0 que nunca fez. Numa carta lapidar ao bardio de Studart, na qual comparava os Capitulos com seu antigo sonho de escrever uma grande histéria do Brasil, confessou: “Quando ainda no Ceara concebi-a, a obra tinha outras dimensées. Cada ano levou consigo um lance ou um andar. A continuar mais tempo, ficaria reduzida a uma cabana de pes- cador. Mesmo agora, acho-lhe uns ares de tapera”.26 Exagero de Capistrano, Capitulos de historia colonial é obra de maxima importancia na historiografia brasileira, por mais que, a luz de critérios atuais, nela encontremos muitas imperfeigdes, seja de concepgdo, seja de interpreta- Gio. Se fosse 0 caso de cleger um grande mérito dos Capitulos, apenas um, diria que simplesmente deslocou 0 foco da histéria do Brasil e repensou 0 proprio objeto. Pois se a histéria do Brasil colonial era até entio, desde Varnhagen, a histéria da colonizagao portuguesa, os Capitulos fizeram da co- ippi de Oliveira, “Os simbolos que a repiblica mandou guardar”, em Estudos Histérices, 12, v.2, Rio de Janeiro, pp. 172-189; José Murilo de Carvalho, 4 formagdo das almas: 0 imaginirio da repiblica no Brasil (So Paulo: Companhia das Letras, 1990). ¥ A Noticia, 16-17 de novembro de 1903, Apud J. H, Rodrigues, op.cit, p. XXXVI. % Carta a Mirio de Alencar em 9 de setembro de 1915, ibidem. % Carta a Studart em 7 de janeiro de 1907, ibid, p. XX. 188 Digitalizado com CamScanner RONALDO VAINFAS Jonia ~ da sociedade colonial — 0 protagonista da historia. Sociedade miltipla ediversificada, com seus contrastes ¢ tensdes. Tem razio, portanto, Fernando Novais no preficio que fez para a primei- racdigio da obra em inglés, por sinal recentissima, ao dizer que os Capitulos de Capistrano foram uma “ponte” entre a primeira historiografia brasileira (a do Instituto Histérico e Geogrifico Brasileiro, novecentista e monarquista) ea terceira geracdo, expressa em Gilberto Freire, Sérgio Buarque e Caio Prado Ir, esta, sim, mais analitica ¢ livre dos marcos institucionais.” Capistrano ¢ os Capitulos comecaram a ser “monumentalizados™™ logo depois da morte do autor. Na reedigao enfim do livro, em 1928, iniciativa de Paulo Prado. Na fundagio da Sociedade Capistrano de Abreu. No proprio livro de Paulo Prado, Retrato do Brasil, incansavel nos tributos a mestre Capistrano, inclusive a seu pessimismo incurdvel. Nas publicagées “oficiais” dos anos 1930 ¢ 1940, tempo de Estado Novo, que sempre puseram Capistrano no pantedo dos historiadores nacionais.” Quanto mais monumento, menos documento, isto é: menos lidos passa- ram a ser os Capitulos pelos estudantes ¢ estudiosos de nossa histéria. Que Capistrano permanega monumento. Mas que fique o convite a releitura ou leitura desse autor rebelde. Desconfiado de esteredtipos, embora caia em al- , guns, e argutamente sensivel a muitos mistérios de nosso passado. ” “Preface”, em Stuart Schwartz, Chapters of Brazil's Colonial History (1500-1800), ct. p. XIV. Sobre essa nocio de “monumento” bascio-me em Jacques Le Goff, “Documento/monumento”, em Enciclopédia Einaudi (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, v.1 (Meméria-Historia), 1984), pp. 95-107. * Cf. Angela de Castro Gomes, Histéria ¢ historiadores: a politica cultural do Estado Novo (Rio de Janeiro: Fundagao Getlio Vargas, 1996), 139 Digitalizado com CamScanner

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