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Bi vamos nés nos encontrar com Alvo, mais uma vee, depois ‘We umasfriascaprichadas de vero, e ber no inicio de um novo iano letivo na escola. © menine chegou, como de habito,confante fseguro com a rotina com a qual estava acostumado ede que tan to gostava, Brincou com os amigo, inspecionou sua nova sala, contou as novidades das férias para os colegas,e logo osinal tocou.Entraram, todos para ever dona Ribia, a profssora da turma, ue os cumpri mento carinhosamente, um a um. ‘Bem que Alvo notou uma nova disposicio das cadeirasna sala de aula. lids, que estrnho, bem a seu lado hava sobrado um lu garvano.Além de outros mais,em diferentes pares da classe Para le vera situagio, seus melhores amigos estavam sen- tados em carceiras dstantes da dele. Que chato! Todo ano a mes- ‘ma confusfo, Mas ele estava to, tio feliz de volta para a escola (que nada ia atrapalhar a algria do reencontro com tantos colegas ‘queridos.Pis lvo era asim: gostava muito da rotina, das cosas acontecendo sempre na mesma ordem e de ser 0 que as pessoas costumam chamar de “metiico”. le acordava sempre no mesmo horéri, tomava café na mesma cadeir,faia obcegas no Cindi dona mesma parte de ts das costas dele, arumava seu estojo ‘exatamente do mesmo jeito, pegava sta mochila ¢alinhava os ‘cadernos os livros na mesma ordem, confers alancheira(e e- ‘lamava com 0s pais quando no via seus alimentos prdiletos Ié dentro), provoeava Clara, que, em geal estavaatrasada pois pre- isava fazer suas duas tangas, entzava no caro, sesentava sempre ‘no mesmo lugar, por fim, se aninhava para iar uma skims s0- ‘neca antes do dia comesar pra valet. (© garoto era, portanto, um verdadeiro metédico, Tinha em método e se apegava cle, Ea escola cumpria um papel funds- ‘mental em sua vida, porque acabava organizando, ainda mais, seu ia. rad que evia seus amigos de sempre e seus profestores que conhecia ti ber, que reconhecia os espagosé familiares, pens va el, fazia tanto tempo. Enfim, Alvo gostava mesmo era de pou- ‘a novidade em sua vida tio ordenad, Controlando tudo era que cle se sentia seguro. ‘Avo ertavaenvolvido nesses pensamentos quando o sina to- ‘ou etodos entraram animados nas suas respectvas salas.Dona Ri- bia, alm de saudar os alunos, perguntar sobre as féias de cada um ‘eexplicar como seriam as aulas eos horitios daqueleperiodoltivo, ‘chamou a atensio de todos para como era importante ineiar un ‘novo ano, pronto para as muita novidades que el trazia consigo, _— Crescer implica conviver com novos desafios — disse ela. '— aprender que moramos num pafs em que existem pessoas que ‘ttm muitos privilégios, como estudar em uma escola bacana, tet ‘uma casa eum quarto sé para si, muitas oportnidades para visjar «estudar.-€outras que no tim tudo iss, ou tém s6 em parte— completou. ‘Alvo, que, como jf sabemos, ra um garoto que gostva de tudo ‘em seu lugar, encasquetou com a fase da professora.Afinal, no ‘uocatia jamais o certo pelo duvidoso. No entanto, naquele dia dona Rubia nao parecia disposta, «a jogar conversa for. E, logo de supetio, comerou a descrever ‘aquilo que chamava de uma “étima e grande novidade’. Ela ex: Plicou por que nosto pas to desigual e como algumas meni ‘nas e meninostinham muito mais chances © oportunidades do {que outros, que certas criangas contavam com menos dinheiro ‘que outras e que frequentavam, muitasvezes, escolas menos ‘equipadase com menos recursos. Eapresentou virios exemplos de “desigualdade social” para a classe. O que chamou mais a atengto do menino foi ela dizer que exstiam garota e gatos {que nfo tinham como formar uma biblioteca em suas casas — ‘e uma das coisas que Alvo mais gostava de fazer era comprar seus prdprios livros ecadernos novos eencapi-tos com euidado. [Essar criangas também tinham menos lips de cor, borrachas, ‘compassos eréguas em seus estojos; menos dinheiro para per correro Brasil e até ir para o exterior com os pais ou frequentar ppasseios com a turma; menos professores para as aulasgerais,¢ também para as classes de musica, idiomas, esportes e natagio, atividades que a escola do garoto oferecia, ‘Dona Rubia, prém, fex muita questio de destacar que essa5, ‘no eram,“dejeito nenhum criangas menos intelgentes espertas ‘0a preparadas,Elas stim uma vida sem tantas facilidades como ‘essas quenés estamos acostumados ater eatéachamos normal”. (© que Alvo no tinha notado, talvex por conta dos habitos ‘eda prépria vida del, tio organizada, era que, em sa escola, ‘todos os alunos alunastinham um estilo de vida parecido: che ‘gavam no porto do colégio com seus earros de sitima geragio, viviam em casas ou em apartamentos espagosos e alguns até ‘tinham outras casas no campo ou na praia. Os Neves também ‘tinham uma “easa de veraneio”, que ¢ 0nome que se dia essas segundas casas usadas 56 nos momentos de férias ou de descan so pelas familias de mais posses. 'EntZo, enquanto eu e meus amigos temos duas casas, tem pessoas quendo possem nenhuma. fissomermo?" refletivele, do alto de sua meninice. Pensou, mas, como sempre faia quan do ficava muito incomodado com uma situag, logo exquecee. E justo o Alvo, que adorava fazer perguntas, como jé sabemos, ficou dessa vex estranhamente quiet. Seus eolegas também, Ninguém conseguia entender diteto 0 que viria dal. Sétinham 4 certeza de que algo ia acontecer.E dona Rubia foi dre: disse ‘que, poranto, a dregdo da escola havi decidido, junto dos paise dos professores, que agora existriam alunos bolsistasna escola ainda mais uma coisa de que ele nunca tinha ouvido falar: que algumas criangas entrariam po Jares nas atvidades das classes. Antes que ela pudesseexplicar melhor, Avo, que gostava de preservar sua normalidade, ficou ‘otas" eseriam alunos regu: logo matutando: “Cotas? © que seria essa histéria de cotas?”. Ble conhecia“contas"; ou sj, fazia contas na aula de matemstics, Mas peo jeito da conversa da professra,ndo ers nada disso, Ele, «que no era bobo, sabia muito bem ques resposta nfo seria asim to féci, “Caramba’, excamou para si mesma. “Comesar o ano com tantasdividas no pode serum bom sna. ‘Alvo lembros, enti, que certo dia se pai havia the contado, ‘enquanto iam juntos para a escola, ue comprara “uma cota" em ‘uma propriedade, eque i construiiam, no futuro, uma casa no ‘campo. A familia do seu Neves, que jétinha uma casa na praia, passariaos fins de sems «drvores com frutas,*Seriam isto cota”, refletu ele, “Ter uma partedo todo reservada a alguém? Uma pessoa? Uma fai ade nverno num sti cheio de animais Sobre esa histria de alguns pais de alunos no terem dinhei- +o para arcar com as despesas da escola, ele se lembrou de que, alguns dias antes dona Branca tinh flado de algo parecido, El, {que era dentsta,contou que tha pacientes que pagavam pelas consultas e outros que nio pagavam, mas que ela fazia questio de atender. “Os que podem atcar, pagam’, disse ela, “os que nido podem, dou um jito de judar” “Ora ess", pensou o garoto, bem ‘que ele deveria ter prestado mais atencio quando seus pais Ihe re- Jatavam o dia a dia de seus respectivostrabalhos. De toda manei- essa histria de cotasna escola ainda peemanecia um mistéro, ‘Como é queso tudo funcionava? Foi essa a pergunta que ele fez paraa professora,quelogorespondeu com uma propostaparatoda a sala, El gostara que cada aluno olhasse a0 redor erepa ‘como a classe era muito “parecida e homogénea”, disse ela, sendo ‘que 0 Brasil, 20 contréro,é muito dversoe plural nas pestons que ‘formam. ‘Aisim que o meninoencafifow. Ele sabia muito bem que plural «era sindnimo de tudo o que é mais do que um, 0 oposto de singu- Tar, Atéaquele momento ele hava sido capaz de entender. Mas por que seri que ele e os colegas nfo eram plurais? Dona Rabia pre- tenda dizer que os alunos da escola eram apenas singulares? Es. ram “homogéneos” como? Na classe hava loirs, morenos e até ruivos. guns tinham dass casas, outros 6 uma. Alguns tinham pais separados, outros ndo. Algunstinham eachorros e gator, ot {ros nfo. Alguns moravam em apartamentos, outros em casas. “Se somos todos iguas, que sera, nto, dverso entre n6s?", pensou De ato as ois andavarn mudadas dois maisdois no parecia resultar em quatro, o que deiava garot sempre muito angusts- do, como, lis, ji saber, fri pate de sua personalidad, (© que Alvo nao sabia era que aquela no era uma “novida ‘de", como havia imaginado.Fazia tempo que os pais, a directo ‘005 professores estavam empenhados em mudar o perfil da es: cola A ideia era que, por mais que essa fosse uma escola part- cularepaga, ela precsaria se engajar numa proposta maiscida i.e inclusiva — “antiracista”,conforme explicava a diretora, ‘no sentido de contar com alunos vindos de diferentes realida- des sociaiseculeurais. Os novos cologas também néo possuiam Luajetérias homogineas, como os atuas estudantes. Por isso, 0 projeto havia sido batizado com onnome “Somos todos diferen- tes", para mostrar que, visto de fora, cada um denés 6 diferente docutro. ‘Alvo também ndo sabia que esse projeto pretendia inser a ‘escola do garoto, um “colégiode elite’ dizia a professora, numa politica mais ampla denominada “reparagio", Ou seja, era pre- cso reparar, no sentido de consertar mesmo, as injusticas do ppassado edo presente. Dona Rubia ainda mencionou um tal de “movimento negro” de que Alvo nunca tinha sequer ovvido fa- lar, Era um grupo de pessoas negras (assim ele entendev) que, desde 1978, lutava, junto com diversas insttuigdes, para que © ‘Brasil tvesse mais igualdade “na educagio, nas oportunida- des de emprego, na sade e em tudo 0 mais” resumiu para si ‘mesmo omenino, que nfo era muito bom na légiea do etcetera ul “Uma escola sozinha ndo vai mudar esse panorama. Masse cada escola firesse a sua parte, € se, sobretudo, nosso pals ti- ‘vesse uma educagio pablica de qualidade e universal”, di profestors, “wudo seria muitissimo melhor.” Esse era, portanto, tum sentido coletivo de aslo a despeit de sr realizado indivi- dualmentee por cada escola. “Se quisermos combater a desigualdade”,insistia el, “pre cisamos ser mais propositivs, no sentido de propor mesmo, cada um do seu lug. Em tempo: Alvo nem ao menos tinha sido informado de que seus pais também estavam muito implicados nesse procesto Othando para tris, retrospectivamente, quem sabe eles até ti vessem dado algumas pstas ou conversado sobre o tema. Mas 0 ‘menino era assim mesmo: 6 lembrava ou prestava atenglo na aquilo que ele julgava importante, Enquanto Alvo continuava assim, reflexivo, dona Ribia, 20 ‘menos na opiniso do menino, resolvew complica ainda mais & 1uagd0. Animou os alunos a narrarem as histérias de seus pa rentes¢,além disso, pediu para que eada um descrevesse a sua or de pele. 0 garoto, que se considerava um especaliata nesse ‘tema, um entendido em cores, logo levantou o brago para ree. ponder orgulhoso: — Meus parentes sio imigrantes. Vieram da iti todos nds temos corde peleecabelos claros! Depois do depoimento de Alvo, visio alunos responderam ‘puma enxurrada. Apés terem ficado quietos por tanto tempo (eucraassim que Ihes pareca), agora queriam falarsobreo que, de fao, conheciam:o passado de seus pais e parentes. Eno & {que muitos dele vinham das mesmas regiSes? ona Rubia pediu, enti, a palavra para explicar 0 sentido de “homogeneo" Homogéneo quer dizer igual, similar, semethante, identi co ou parecido. Agora olhem pars os lados, para a frente para tds. Vocds conseguem vislimbrar alguém que sente que tem uma experigncia “diferente” daquelas que conhecem? Perce: bbam se existom alunos aqui na classe de outras cores, ou até que do vivem exatamente da mesma maneira que voots, qe, ‘bem, moram em boas casas, requentam restaurantes caros,an- dam $6 de caro particular e tém dinheiro para viajar ao exterior nas férias ou para fazer aulas particuares, assim por dian, Endo é que professora delestinha rao? Agora Alvo rep ava que a classe deles, ea escola também, eram assim mesmo: ‘muito homogéneas,conforme explicaradona Rubia. Era chegada ahora de ajudar a mudar aquela stuasio, Era preciso que cs tum fizesse sua pate, disse a professoa. 6 assim teriam mui mais “diversidade na classe” ainda acrescentou animads: Teno certeza de que vocés vio gosta vio aprender muito ‘quando isso acontecer — disse ela, expicando que, nestes casos, ‘ramelhor sentir para aprender”. Me aguardem — disse, meio ‘marota,encerrando a questio, ao menos naquele dia, Foi quase assim. Poi, antes de a aula acabar, dona Rubia pe- jena para contar um pouico sobre a histéria da prépriafa- alia. ra primeira vez que ela fazia aqui, eé preciso confess «que, como todos nds gostamos muito de uma ffoca ou de saber mais sobre a vida alhea, a classe toda se alvorogou. Dona Riba ‘explicou que havia nascido em Fortaleza, e que seus parentes tinham tajetérias variadas: seu pai tinha origem african, sa ‘mie indigena, como tudo naquele comego de aula estava definitivamente ‘stranho, 0 menos para alvo,0 meninologo.comesou anotar que 1 professorando era assim “tio branca” como ele e seus colegas ‘thou para a propria ple, cochichou com o amigo da fente,com- pararam as mis eobservaram mais uma vez dona Rubia, Porque seré que ele nfo tinha se dado conta disso antes? Para falar aver- dade, jamaishavianotado que ocabelo dela cra um pouco distinto ‘dodele, assim comoasroupas que ela usava: muitas vezes com de- ‘senhos geométricoscheio de tonalidades fortes, em amarelo, ve ‘melho, preto. © que estariaacontecendo com ele, que, de repen- te, pasava a perceber tras cores? Seria 0 mundo um pouco (ot ‘muit) mais colorido do que ele imaginava? Ele definitivamente iio estava gostando nada daqulo. (Omenino no sabia dizer exatamente por que, mas sentiu que ‘seu mundo se agtava mais uma vez. Como era muito convencido, ‘num primeiro momento, reagia mal is novidades. Sé depos, com Jum pouco de tempo para acicinar, nha coragem de pensse mais fssie da “sua propria caixinha”. Era o que a mde de Alvo sempre The dia ra preciso uma certa forga para abr mo do conforto ‘das stuages previamente conhecidas. vy

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