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Fate Hero nao & una blografie Termbéon nao & um ensaio sobre a vida e a obra de wma grande fleciontsta B, nto menos, 0 depotmente praro estes de alguém que a conbeceu bem ao longo datiltina década de sua existoncia ole revimenn-se dias ‘vee dete texto 0 de wgmentios inéitos agora 26 de Olga Borel que obedieniemente ‘os seg, sem coment: los, ras esentrcnbra ele a presenca de Clarice lispecior como pessoa loa, endo apenas como escritora {ste Esbogo, emt cays trae 1 paixdo de Clarice Lispecto Olga Borel, quer ser epenas fll. ‘ves, disse James Joyce Um retrato no & apenas um documento de ‘dentidade;¢ sobretudo a curva de uma emocao Olga Borelli Clarice Uma Invengio a Duas Vores ste € um fro abeolutamente erent ‘Nose trata de ura bloga ato $¢ “he um ens sobre aida 0 x00 {Kretarice Lspector Tampouco do ‘Sepoumesto de ura pesson sabre ot om quem conviveu ao longo de toda (oa dead fste vo completo urabalo ‘Sesenvlvo, com pacene «cari, Gor Olga Borel, quanto organiza ot evton de Clarice Leper. se feabalno comecou com 2 Mao € ‘Garutuagan = sempre obedecendo ¢ fGotesgocs mato cars da pene ‘Clarice - 0 romance postumo, hoje & i 3 ediao, Um Sopro de Via Depots ‘eto pablcag dos contos qe orp Aiea rer 0 02 Demeter marae, revelacors OO cca vax ser, = que se ontaram 2 ‘Rs lumas que esrencu:"Um ins nose "A Bela ex Pera ou A Ferd ‘Grande Dena ago porée, er preciso orders 0 pequenon toxins, a6 aNDacBS, 8 Fapmenios que Clarice prode2i sm ‘ear eque na fram sproveitados por fin Era precio mostra, guamen'c, ome se ae 2089) 08 08 ‘eocedimentos dante da lborasio dot es eros e dante david pe PeULtinenactnopardoete Mgr Rare, Ghdo, nto assure a posura de quer) nil Scare Sante Fifo kK CLARICE LISPECTOR Esboxo para um Possvel Retaio ijamteca grein Serato ebotnamat Eerie in senna ote tr eae svar, pur pao Remi Pd Be ie ie is Rt eS “4. at oe ‘bserva de fora © anaes. Prefers tare! ‘tom su peépen experienc, debears tocar pelo texto de Caice e, 20 mes ‘en, pl presen ost eon ‘© rewultado «que de forma agua, se preiende dfinivo, conform, de re pave esbogo nao, sugere € a ‘Como uma inverio musical, egal por exemple, de Hach, cuss vozes. ‘Avorde Cltice € que interes owvi cmpeiiro lara sor de Olea, ‘sere, elcaa, odeoeate 4 Ge Car sentra as imagens cotdinas de ‘i sempee iaceeves ata apna ‘do texo. A prope Olga exclarece “Foi com ous - ole ndo sou scr pronsionsk peotstoal€ quem te, Felag a sou 20 outro, obigaco de ‘ecrever que, eounindo eter “No fo fil, come Fes no foram o ‘undenagoes de Or Spr Ve ‘ois timos cntos eA Bela ea Fera Fntreguel me a0 terbalho por due "aes prineit, honcar © compromls ‘ssuido comigo mesma de nag dear Infos estes pequenos textos ‘sxgunda, tent sesponder ‘sisitontamente a pergunta que Claris present more, me fer pr esceta og oes es acitand ran pore compan? ‘esponaa agora, som? ——ee Olga Borelli CLARICE LISPECTOR Esboco para um Possivel Retrato D> 161 Oe Bet “event cun ap tnm vance se Es east ln eho eden FiCHA CATALOGRAFICA cabana Canmore. single icon are ra PEE per lyre am pot et / Oa 4 tpi Cle DEO Thule Ao Leitor Ese & um depoimenta onde procurei tornar cexplicita certas caracterisicas pesoais que no di rem respeito a uma biografia, mas a particularida des que conatituem © que se poderia chamar de ‘uuajetéria espiritual’ de Clarice Lispector. & uma Visto sincévica do que seriam as linhas mareantes de sus vida, apreendidae através de epistdios por vezes insignificantes, mas que se constituem em fonce de informacio para aqueles que desejam conhecer um poco mais da sua personalidade, Para exe trabalho contribuiram o¢ fragmentot inéditos de Clarice, como também a numerosa correspondéncia que manteve com as irmis Elisa Lispector ¢ Tania Kauffman A Diva Pestoa de Souza, que colaborow na revisio dos textos, 0 meu agradecimento Olga Borelté a Pedro-e Paulo Curgel Valente “idhos de Clarice, meus amigos. Sumario Por fora © por dentro, 9 Frente 20 ato de escrever, 62 © cotidiane, 89 Algumas cartas, 207 ‘Esta tena, cud bem: ou conn ¢ non te contar ‘uma histéria como naqiela vx que voct me out adormeceu trangilo: Sim? “Assim: era um die Nasci de um choque entre ndo e sim. O que Sot hoje sto milhoes de anos luz £u, que fé fut incan: ddoscente.* Ela powuta a dignidade do silncio. Seu porte altivo era todo contido e moria-se pouco. Quando o faa, era como se estivese procurando uma diregio te seguiri entzo, encaminhava-se diretamente, sem Gesvios, 20 seu objetivo. Para quem pensa, € Wo engragado ter também. um corpo. Tudo me toca — veo demas, ouco ldemais, tudo exige demas de mire 0 cabelo era louro-dourado, muito fino ¢ + dos0, as orellas pequenas. Os olhas tinham 0 brilho taco das misticos, Pareciam perscrucar todos 08 mis tenos da vida: profundes, serenot, fixavam-se mas pessoas como se fossem 05 olhos da consciéncis, Pemquer os agdentara por muite tempo, fal @ Sua n Por Fora ¢ Por Dentro intensidade. O olho esquerde tinha uma expresiio de inquietante expectativa Qs labios, de rebordos bem definides, exam perfeitos ¢ em harmonia com o contorne de rosto, de ‘magas ligeiramente salientes, O nariz. quase imper ceptivel na serenidade meditativa do conjunto, Mas powula narinas que se dilatavam nos rares momen. tes de ‘cera sagrada’, como coseumava definir suas zangas. |A vor soava grave e profiinda, Quando irrtada, swueigie vaacenie, cmt count auroridace, dotada de algo que infundia respeita. Tinha um pequeno efeito de digo: arrastava nos ertes por causa da lingua presa Que esforco eu Jago para sor ou mesma, Luto contra uma maré de mim. ‘A mao esquerda era um milagre de elesincia Muito mével, evelucionava no ar ou contornava os objetos com prazer. No trabalho, gil e decidida, parecia procurar suprir as deficitacias da outta, dura, com gestes mal controlados, de dedos queima. doo, retorcidos, cin yrofwudas ciattlzes. Um la, adormeceu furando: acordou no mein das chamas ¢ fentou apayar o fogo com as mos, Queimou-se iravemente. Sofrew muito durante longo tempo Cumprimencava 2s vezes com a mao esquerda. ‘Talvex por pudor. receosa de constranger as pessoas. ditigia-se a elas com economia de gestos. Alguns de seus manutertos eram quase egiveis. Assinava com bastante difculdade, mas utilzava ambas as miot para datilograter Nao quero a complactncia da desordem, Ese sou liquide como € liquide o informe, antes BR sou gotas de mercirio do termbmetro quebrado — guido metal que se faz circulo cheio de sie igual a st mesmo no centro e na superficie, prata que tomba endo derrama, liquides ser umidade Era profundamente ferinina, exigis ¢ seni boas maneiras. Bem cuidada no vestir, vaidosa, mas sem tofistcagao, A meu modo feminine, também fui moleque de Nunea sala sem estar maquilada ¢ trajada as vezes com algum requinte: turbante, xale, vérios colares € grandes brineos. O branco, 0 preto € 0 ‘vermelho exam uma constante em seu gutrds-roupa, ‘© batom geralmente era de tom rubro forte: 0 time! negro, celocade com sutileza, aumentava a obl ‘bidade feria resaltar 0 verde maritimo dos olhos. Indiseutivelmente era mulher interessante, de tragos nobres e, talve inatingivel, Sonhaca tambim que era carregada em triunfo elu iwuicidav ~ surverue por ete ser ela reesma * Quanto a afetividade, acredicava que, quando tom homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a unigo ¢ sempre renovada, pouco im: porcande brigas e desentendimentor. seduas pessoas nunca sk0 permanentemente ‘kuais€ 50 pode criar, no mesmo bar, novos amo- ras. Fud amada por alguns ¢ conhero « paisdo, O3 deseios ¢ a: baixdes morrem quando séo satifeitos. A contade ¢ mortal Eu, que entendo 0 corto. E suas erutis exigdncias. Serre conheet 0 corpo: es 13 euridéo com sibitas estrelas. Merguiha-se no escuro se tras ac ume mancheia excorrente de espelhos I auidos. Faco grande exferco para nao ter 0 piar das Jentimentes: 0 de que nada vale nade. F até o pracer @ destmportante. Portanto, me ocupo das coisas Prazer no fundo 0 de se coca Ambicionava viver numa voragem de felicida Ge, como se Tose sonho. Teimora, acreditara, po: vim, m2 wis de todos os dias. Quore pintar wma tela brance, Como se fast E @ coisa mais difcil do mundo. A nudes. O ndmero zero. Como atingiles? SA chegendo, suponko, 20 niacleo ultimo da pessoa. Estou tentando abrir wm tinel na rocha bruta Ev sei, ei que € penoso, Mas qual é« busce que em sf mesina nde traga sua pena? ‘Se uma pesoa se perguncar durante mefa hora « palowra ‘eu osca Peston se éiquece quiem é, Outras podem salouguecer. & mais seguro nto fazer jomais perguntas — porque nunca se atinge a dmego de ima resbosta E poraue a resposta (vaz er si vulra perguca (0 que & que eu sou? Defini-la & diffeil. Contra a nocio de mito, de intelectual, coloco aqui a minha visio dela: era uma dona-de-casa que escrevia romances € comtos. ‘Dois atribuios imediatamente vislveis: integr dade ¢ intensidade, Uma intensidade que fluia dela fe para ela refluia, Procutava arsiosamente, 16, onde fo ser se relaciona com 0 absoluto, © seu centro de orca — e essa convergencia 2 consumia ¢ fasia softer. Sempre tentou de alguma maneira solidari- arte e comoreender 9 softimento do outro, coisa u ‘que acomtecia na medida da necessidade de quem a recebia, © problema social a angustiava Sabia 9 quanto dolam as coisas © quanto custava a solidi. ‘Sto muitos 0s ‘misterlos’ que avs olhos de alguns fa tansformaram em mito, Simplesmente, porém, fem Clarice ndo aparecia qualquer mistério. Ela des Cobrie intaitivamente 9 miscério da vida ¢ do ser fhumano; em compensagao, era capac de disimlar = Bunda tenho enredo. Sou inopinadanente frog mentdria, Sou cos poucos. Minha hictbria & ver Sempre viei com o meu individual perige. 0 indict dual de cada pessoa nde significa e massa Quando a conheci, exava perplesa com a mal tidao de coisas que exigem explicacao ¢ exibem sua nenagem sem deixarem qualquer indicio do seu ignificade. Contiauou assim até morrer. Eu me wso como forma d® conhecimento. ‘Minka vida comeca pelo meio como eu sempre ‘comego pelo meio, af v0io meia. Defois 0 princiixo saparecerd ow nao. E mts de outubro. ‘Ovono este com um sol em ocaso. No que precede 0 azontecimento — él que ex ico. Eshoro viver sempre és vésperas. Endo no dea, 10 presente 36 existe quando ole & lembranca e 56 existe quando tai ser C itive Q beita de compreender 0 tempo, ev senti aque sim. Mes loge em sezuida ao leve wslumbre, toe lima especie de medo de penetrar sem nenkuma Vogica na maténia que me pareceu de sibito sagrada: ‘Nao esauecer: hoje € agora. Resioam os tambo- 6 res anuaiciando 0 sem-comeco e 0 sem:fim. Abrem-se a contina:. Eu sinto que a realidade & tridimensio nal. Por que? Nao consigo explicar. O que sinto é no sem-tempo e na sem-espaco. 0 tempo no futuro jt asso. E faccinante lerabrare, De repente a pasiado 6 ena coisa que ainda vai acontecer, #8 que 38 2e breve tudo 0 que vai acontecer. Lembrar-se: és dues horas da menhi desci do avito para eccala om Manaus ¢ debois de novo subir. Na base aérea estenquet atont- lo: 6 que respiraea lé no era normal, por Deus devia ser algum 6leo goumento, Eu nao conseguta respirar ¢ atravesrando mou potto ume brute mao Jorcnea @ encostar 0 estdmago nas mina: coztas. Era 0 sétino elemento: 0 calor que se interbunke enize mine a dgua salvadora. Bu sb sei viver as coisas quando jas vivi Nao set viver, 6 sei ler brar-me. Nao fazer nada é uma grande ocupurto. E como estar no cormos. O tidio prolonga 0 tempo. ‘Sem falar que no tédio se temt tempo de purarnente iver apenas vicor. O tempo & sentido das horas « dda uida. Para senti-lo, 6 precso se ounifcar no nada Ou nde ¢ tédio? Talces soja a vasia meditacto que ‘parece coma frece sém balevras nem sequer apenas rmentalizade. Eo silencio. Hé um siltncio interior ‘que leva ao tstase tdo puro que prescinde de devin: dades. Eu conhero 0 seguinte: ester pena do nada. Jo revultado de uma longa © penoie abrendi zagem. ‘Agora, enfimn, on nio adoro, Eu sou 0 que be ‘10 ndo pede adoragao. Nada comegou ¢ nada torminaré. Inclusive ndo existe a palavra ‘serabre’ pots ela se refere @ tempo" ¢ ‘tempo' 16 extite em nds referindo'se a uma coisa se tramgfarmer om ouica (A essa transformacae cha: ” nanos tempo.) Mas 0 tempo em si ndo & O tempo fio indefintvel. Ex me coloco bom depressa no fempo, antes de morrer. A vida € mutto répida, ‘quando 40 v2 se chegou ao fire. E ainda for cime Jomos obrigadat a amar a Deus. sua slio ft conseataci de iberdade maior wae ston Faria ©. que queria qe Teer tae uu er feched, amare eau yon, Dara eelaraoes, asande emo teuspenste, « w dcave fxogrtor. Quan semen mostavrse ences, Sosa stent convidava as psoas paras viskarem iAchavase peguizorn © impaciente,Irigneis inate sata com filha, com oF igor € Com os bichos madas at alegiian ¢ as wnera, suns € (a tere deamores, OF qUE a. cone sae pena aber ve fo ema. maler tam malt ftnumente Koo nao 2 mpedia de mk SUS ive ine ane era trie cox asco, sto Tecate ses, sem 0 fer ave, # ote een corence Ge energia — 0 vida — got ae pea a conige Tinks edo 0 1 sete risa e sempre novo, para cual sete saat cambem da nese consante Qe ore tado © ave € wt. Tina, em remo, ra demonccide « da more. A preceupasto ee Mameonhedido babvow sea vida c & m8 revorente em 3 obra. = Bu rio sei resumir minke filsofia de vada em baleerot 18 Vide £ © dosejo de continuar vivendo e viva & aquela coisa que vai morrer. A vida seree 6 para se smorrer dela A extrema felicidade se parece tanto com a infelicicade. Ambas sto tao dramations, Ambas sto a vide. Minha saleagde esté no segredo, E tudo 0 quo eu falo & pera der nada No meu nacleo secreto eu rowpiro. E minha respiresde € 26 0 que ou tonhe. Galo-me. Porque nado set qual ¢ 0 meu segredo. Contame 0 teu, ensina-me robre o secrete ds cada um de nos. Nao ¢ segredo difamante. £ apenas esse ito: segrodo, Endo tom formulas. Vieer, afinal do contas, § ontro dots nades antes do nascimento e depoii a morte Por que vivo? £ porque vivo. Por que vives! £ porque vives. 13:0 explica tudo? Nao, porque o tudo € tudo por ser tudo. Eu nd sabia ¢ ainda ndo ser vtver. 0 que me atormenta & que tudo ¢ ‘por enquan- We) nada Sempra Hen 9 enews sonke ter virine vidas. Numa eu seria so mae, em outra vida ev 50 crereveria, om outra ou 16 amava. Aeho que a gente luta tento fara producir uma obra de arte so pare sobreviver. Por que serd qu @ [gents luta tonto pare poder produsir uma obra do arte? — Acho que € para sobreviver. ‘Bu procuro aleangar alguma coisa que nto set 0 ‘que é, Algumas pessoas acham que a procura dura 0 tempo de ume vida. O ser humana nunca descobriré @ mister, . 10 Voltar atras, desdizer 0 que viv ‘As vezes 0 que nes salve @ elma so os vicios (No mundo me sinto tonta como se tivesse gitado muitas vexes em torno de min ¢ caisse em wirlice no Chao. E por cause do seguinte: que se imagine um rosso aicionario com 0 significado de todas as pale Gras, mas que eta: néo estivessem postas em order lfabctica, e de repente no xe encontraise wn m ou tum ae pare acker a palavra ‘ardente’ 50 or acai. Tudo esta tls Vein seis Mar come procurar #arkar? Encontta-se apenas 9 que se acha ¢ nao 0 que se ‘procure. Agora estou comparando minha vida com ‘sve diciontri calsidoseépico: +6 acho nela sentides 0.0 acaso me der, Sei que hd emi mim c era torno de, ‘mim significades. Maz como ach&-lost Como 970 ‘uré-los! Quero saber.0 me sindnimo ¢ nem mesmo @ palovra que teria 0 meu sindnimo eu néo oso dprocurar. Ea vida @ curta demais para ex ler todo 0 (grosso dicionsrio @ fim de for acaso descobrir a palawre salvadors. : Me justificar mais do que.a vida? No mundo das Goisas, quando sei que ela: x20 acabar, comeco & Fruéles Tenho medo de estar vio 0 mundo inteivo teme a fr0pria vida. A morte fa cotia que nao é nowa, Masa vida, a vida é, 0 eu morro de medo de respirar. Que inpaciénecia com a proprie vita. Tenko que ter pocitncia para salver a vide ‘Até a cola morte tem um instante em que ela rrorthere os ras da vida. Eu soube gue uma for nice € caper de carrogar um volume cem veres maior do que 0 seu proprio peso. E eu que nd fagiento a ala de meu préprio pero. 0 Quase todas as vides sto pequenas. O que aler: 52 ura vide é a vida interior, so 0s pensamontos, ‘40 as sensu¢des, sao as esperangas indteis. A espe ranca vale na hore mesma em que & esperance, quase prescindindo de sux realtapao. Esperanca é ‘coma 0 girassel que & fea se vira em direcdo ao sol ‘Max nao € a toa: virarse pura o sol é um ato de realizacto de fé. 0 que alatea a vida de uma pessoa sto 01 sonhos imposstveis. Os desejos irreaiztocis, E sio tao fortes exsas esterancas e desejos que @ pessoa tas quende O8 ald de rave hada fora ¢ cel tnatingivel. Peraue a flor tem perfume nao & para quer, ¢ para nada: é ur darse de graca. Como a experanca A esperance visa a propria esberanca, A ‘esperanca ¢ um acontecimento em sé Nao mato porque ndo quero perder minha vida. Mas tembém porque quero me banat na retide voniade de matar. Retida, sim, ¢ por iso ‘mermo mais volenta — son obrigada a ter como sé meu 9 gosto supremo de querer matar ¢ 0 gosta de viver sob ¢ extrema tensio de arco-efleche rele sados. E que néo disparem. Mas disporam para dentro. E enti — axtase = Voct acha que a vida & boa? £ bom ser, Mas 56 iso Sempre conservou @ meame temperamente me ditativo e concentrade. Nao era de fazer ‘pos Calada, dlzia que de fato "6 entendia ¢ 99 podia ser ‘entendida telepaticamence.” Ex tenho medo de ser quem eu sou. a Ha wm silencio toral dentro de mim. Assusto: me. Coma explicar que esse silencio ¢ aquele que chamo de 0 Desconhecide, Tenke medo Dele. Nao ‘porque pudeste Ele infantilmente me castigar (cast gar € coisa de homens). Bum made que vem do que sme ullrapossa, E que € cu tambem. Porque £ grande minha grandeza Fea cendvel ¢ de uma aeresividade timida, ‘+ Possei 6 minha vida tentando corrigtr 0s erros | que cometi na minha ansia de acertar Ao tentar Corrigtt um erro, eu cometia outro. Sow uma culpa: dda tnocente Maternal para com of outros. Consigo mesma, rude, exigente, mergulheda numa espécie de auto: be pecpitua, em ue se investizava severamente tomo se duvidasse ora di pr6pria identidade ora da fintencia real da munda qué a cercava, Era imprwvicval « intuiiva, feta & sentia con: cretamente mais do que peasava abstratamente Gontudo, pensar, para ela, era sem esforco. Ditici cera obter silencio, Arsiava colocarse no ratio onde tudo acontece, sobretudo a percepcao da plenitude. Tnsone com muita freqiéncia, inimeras madruxedas ‘elefonare para os amiges, com quem se confessava angustiada e tensa, Quand» ndo consizo dormir, dou a noite por encerrada, esquente café ¢ tomo, Bu estou sempre facompleta 8 Lembro de seu pudor com relagio & publicida de ffeil ¢ A mitfieagio. Exzanhava 0 fato de ter se tornado famesa, de ser conhecida por muitos. E,-em ageral, negavacse a discutir 0 conteiido de suas ebras. Come fosso subir, senda aceitando antes a mé nha misiria humana? A popularideds sempre a afstou muito, Dees swradava-the a bajulagao. AMigla-se com tudo que a ‘expuaciee. Sempre que isto acontecia em excess, cvitava euldadosamente encontrar qualquer pessoa € ‘cava sem escrever por lango tempo, Infelicmehte nto'pude ir $40 Paulo par motivo inesperado te forca maior. Mas peco a alguén que leja alto 0 mee depotmente sobre meus livros. E que refiro néo felar tobre minha obra porque néo son uma entendida dele. Quando escrovem sobre ele coteas muito bonites, lio tudo com interes res peito, mas fico espantada com a relativa imporian: cia que me dee. Excrevo simplesmente. Como quem vive. Por tive todas as were: que fui tentada a deixar de escre ter, no consegui, Nao tenho voeagdo pura o suict- dia Um jornalisie me porguntow Por quo 6 que woed escreve? Eniao eu the perguntel: Por que voce bebe dgua? A honestidede € muiias vexes uma dor. Este ano esta havendo mutt mouimento em tomo de mim, Deus sebe por qud, pois eu née sei 4 1) A Coloquio Letras! me pedi wm conto: 2) a revise lverdria argentine Crisis, considerada talves @ ‘melhor da América Latina, me pediu wma entrevs 1a; 3) Manchete me enirevidou; #) um jornal de S30 Paulo me entrevisiou; 5) Bogota? me convidou; 6) eitudantes da Faculdade de Comunicagdo de Sao Paulo extao rodando wm fitme sem carater comercial baseado num romance mau, Uma Aprendizagem; 7) 4 TY Gloto progremou pera janeiro que vem um ‘especial adaptado de wn conto meu); wma revista me convidou pura eu fazer une seccao critica de lioros (nde aceiie! porque nda sow erica, « porque queria exiter a ‘badalecao' de meu nome ficar regu leymente em foce); 8) fui convidada a ir & cidade pawlista de Marta para wm debate com universita- rios; 9) muita gente desconhecida me telefon, ainda rmaxs do que antes, para conversar e as vezes se confessar; 10) vou ser consdada pelo profesior © certtico Alfonso Romano de Sant Anna para concer- err com es alunos da PUG sobre minke experiéncia fem relacéo a criacto; 11) fui rebresentante brasileira nur listo de contos de vérios escritores da América Latina: acho que deviam entrevistar os escritores rows, fad newio ows que tem muito u daer; 12) Hilin Corsézar me mandou um recade dizendo que ‘ostarie de me conhecer; 13) sairam vtrias traducbes de livros meus (mas ganhe pouce); 14) Marfva Pera no seu show indivedual dix frases minhas tiredas de ‘Agua Viva; 15) duat rewsitas brasiloiras publicaram ‘contes meus, sem falar que no fam do ano passado Benedito Nunes eseroveu um lero me snterpretando, | Reatteaie pote va Oct Fes Anne " 2 so me deica um pouco perplexa. Seré que estou ne modal E por que as pessoas se queixam de rio me entender e agora parecem me entendert Una das coisas que me detzam infelix é ese historia de monstro sogrado: os outros me temem a toa, ¢ a gente termina se temendo asi propria. A verdade # que algumas pessoas criaram. um mito er. tana de mii, 0 que me atrapalha muito: afasia as pessoas ¢ eu ico soxinha. Mas voce sabe que sou de Fepte writs es blog. ive tie a alrite chi plea. O sucesso quase me faz mal: encarei 0 sucesso como uma inde. Mesmo o sucesso quendo pe ‘queno, coma 0 que tenho as vezes, me perturba 0 uci intern. Assim, sempre se recusou a ser “importante. Eo Se ew fosse Jamesa: teria minha vida tarticular fnvadida, © ndo poderia mais escrever. O autor que tenha medo de popularidade, se néo seré derrotado pelo eriunfo, ‘Nunca conviveu com os exfticos, Nao agradecia ot elogios, a fim de deiné-los livres para falar mal, se quisessem, de seus livros. Também, por nenhum ‘meio, nunca se defendeu quando a atseavam. Se, porém, alguém dizia, pensando Ihe agrader, ‘voce nlo precisa mais eacrever, voce j6 fax porte da liveratura brasileira", encolerizava-se. ‘Mas que inferno, ¢ eu lé desejo entrar em alguina literatura de mundo? O futuro ja € passado, iia me interessa mais. Ou esiéo pensando que ew ‘screxo para criar algume notoriedade? 6 Havia nela falta de ongulho. Ni se comsiderava inteligence, apenas sensivel. Dizia'se ignorante de mais para cer intelectual. Nao era Titerata. Nao vii no meio de livros, tampouco de flores ¢ aves, como pessoas que nio 2 conheciam outaram dizer. Ficava agradavelmente espantada quando a consideravam ‘engragada e Ihe revelavam que ‘morriam’ de rir com certas coisas que ela dizia. E contava: Ja me doserom que v yaw me sales € ure bone -zargatiada Mesmo quando alegre, em festas, por exemplo, hhavia sempre por parte dela e 2 despeito dela, um certo afastsmento. Quem a observasse encio, terin a mpresiao de alguem em intensa conversa consigo Humorismo & uma dav coivas mait vériat do mundo, & eu que imagine fazer musica de brinca- diva Mosirava iso facil quando provocada, Mas a da tinha de ser inceligence © bem contads. A ironia, delicada, extrermamente sutl, transparecia janto em conversis infor tanto em seus textos, Minha energia € alegre Tomo cuidado para ndo dar curto-cireuito, Abominava a rotina © 08 afazeres domésticos causavam-the tédio. Tem que haver sino: na minha eda! Multidéo de sinos reboande marauilias no ace do er; assim: Ihadaliol badalada! 2 ses sentimentos, ao entanto, deixavam:na de- samparada, sem um ponto de referencia em relacio fos outros. O nko cumprir os rituals estabelecidos = inguietava Embora desempenhasse as FungBer de dona-de casa admiravelmente — havia uma organizac20 me tédica nos seus afazeres, que se repetiam na mesma seqléncia durante sete dias consecutivs —, fatiga vo-se © impacientava.te por ter de exerctsios. Mas hnunca se negou a enfrenté-los. As vezes, porém, cafe fem tio prafundo abatimento que se refugiava’ num hhotel a fim de quebrar a rocina Parecia entao criar ratzes em plena bruma, uma bbruma nascida das coisas que tina dentro de [Bu entro mo sona como numa iniciagao, Como que sua sensacao era a de estar terrivel mente ocordada. E pensox em panico: irei ficar cordada para 0 resto de minha vida?! Porque tinka a imprendo de que nunca — nunca mais tia dor Eu durmo logo, logo que me deito s6 por medo da insonia. Sb considero meu sono enquanto durmo TEnigmética, severa, secreta, dura como uma guerra santa — entret no sono para sonhar com a cerdadsira wila, Que é um misierio de vida, uma flor. Uma flor que nada espera de nada, Nao espe rar nada também & um modo de viver. Assim, antes de catr na pétala do sono, revi menteimente as cadeires empoleiradas umas nas outras. Fora um dia fgual aos outros. Acordowse ¢ are die. Mil eres nesse dia se sentir frustrada, Varias vezes sentinia algum bem iter, pelo mene: uma ex se sentiria pase sempre herdida. Inameras vezes entraria em labirintos sem 38 saber como sair — enfin, era mais un dia como outro qualauer. E de madrugada. Estow pola fronte com um dia inteiramente wazio, Mas estou pronta para me acon: tecer. Um dia vario de fotos me dé opertunidade de ‘aparecer para mim mesma. Ak, y4 sei: vow ligar 0 phdio cme ouvir os outros tocando misiea E iso ‘mesmo: misica € tao importante para mim que, quando a ouco, & como se eu fosse 0 intérprete Tenho através dos outros wna voz belisima. E nao existe ningudmn que me toque melhor « flauta-doce. ‘Seu dia passava-se mais ou menos assim: acor ava entre trés e cinco da manhi. Levantavasse folocava um robe de chambre bem usado (quanto ‘mais velho mais confortivel). ia 8 copa. onde sempre havia uma garrafa térmica com cafe, Tomava ums afcara acompanhada de biscoitos ¢ quo, acendia Fro, passava para a sala, onde se recostava com Ulises, seu cio de estimacio, 2 seus pés. Tao denso era o silencio nessa hora que © facalido de uma fagulha de cigarro fazia o animal retesar as orelhas atentamente. la Ievara setonta¢ trés anos de tdade pare que num domingo, preciamente as quatro ¢ trinta ¢ cinco da tarde, apoiasse 0 quetxo no punko cerrado da mao ¢ final como se falasse alto 0 seu pense mento disvere a seguiate: E. A uida € isto mesmo. E 45 wn grande fildsojo a teria compreendio, E se mats the pergunassem sobre 0 que fosi responder "Pensar. Hi tanto tempo penso que até jd perdi o praser do penser 9 Depois, a madrugada ia tomando a sala mais clara, as coisas se deixando ver mais nltidamente Na seme obscuridade as casas broncas adorme- cides, Bow, limpada acera, a vigiar. Fas casas semi: ‘acordam, dormentes. Enguia'se entio, come cm sobressalto, levava ‘"gesto seu habitual ~ pen Sagende, © entrava S272 uN poueo, unsal ‘num verdadeito frenesi: roupas, meias. sapatos. bol sa, maquilages Quero saber se pode ume pessoa determinar assim: hoje oni ser um dia importante na muinka vida £ concentrar-se twuto que 0 sol viria de sc ‘alma e as galéxias rodopiariam lentas ¢ mucas. Nao € jogo de palavras ¢ sim @ werdude: 0 estado de estar eloria cesturna me hipnotiar « dur ‘mo de olhos abertos ‘Quando safa, voltava exausta: sentava-se. acen: din um cigarzo ¢ vevia tudo o que tina feito, fexia contas, aerescentava novas atividsdes em sua aren: a, Uma cosa, porém, aunea anotou: eserever. Quase tudo nao é verdade ~ & apenas hipdtese de trabatho. (Os rituais eram as minkas muletas de alejuda Mas ie que rorola’ joger pare longe de mim, e se perderam no espaco infintto de Deus, as mules Morri de medo de cair e nunca mait poder mo {evantar. Como viver sem os rtuats da vida? Sem os habitos! Enido, de dontro do meu modo, surgiv-me uma mulher de 6 sobre as duas temas, € esta 30 mulher era cu ~ et sorinke: E foi sinha que dei 01 brimeiros passos. Trémala de medo diante de minha fousadia ¢ solidao, Entdo resolvt criar em mim a puder. E uma certa luz de verdade nasceu er mins (Nit sei dizer quel sre 0 verdade. Bra apenas luz de ido, apenas, mais para mim mesma suportdeel ‘Mas senti que a minha espécie vai ser extinta. O que eu quero ¢ nda sei bem o que é — ndo é enconindvel no mundo excessicamente sonoro © pul: lance Contrastes: apesar de incapaz de um ato de violéncia, 35 oastia a filmes fortes. Os de crime texerciam atracio muito grande sobre ela. Dizia que sgontava tanto de cinema que se pudesse ira todos o: dias, Apreciaya o romance policial. Principalmente (0 de Georges Simenon. Eu infeliemente nao sou’ grande lettora. Nao tenho pacitncia de ler fisea0 ‘Quando em 1976 recebeu o premio pelo conju w de vlvas da Fundegse Cultural do Ditrite Fade. ral ficou contentisima. Nao 0 esperava. Mas, em feguida, fer questio de declarar: achava injusto ganhar tanto dinkeiro (aa época, 70 mil cruzct: fos) quando milhes de eriangas passavam foe. Ae ser questionada por que ndo fain uma oagdo a essas crianges, respondeu que nio a fazia porque sabia que os adultos ficariam com 0 di heito. Mas quem cow ew, meu Deus, pare mudar as 3 No sala de seu aparamento —sombria € nada exracriinaria — havia algo que sobressaltava a pele. alzo que continha uma intimidade envohente € familiar avi um olhar do ambiente da sala pare mim Sentia esse athar como conforto miserieso, Ali, a gente procurava sentar nas beiradus das cadeiras ¢ sarpreendia.se a evitar @ toque das jarcas ‘e flores €a deber com cautela tH Cope MaKua. Ta paredes, muitos quadeos, inclusive seus retrates, fe: tos por De Chirico, Ismailoviteh, Carlos Sear, foos fem virias idades, mostrando sempre a mesma Fis: rnomia, os mesmcs tragos. Este 6 um castelo de pedra macica. Mes sua ‘aura é um nimbo de aluareda lug love Como a jancla dave para os fundos de outros apartamentos, rio via nimeuém e sentia-se ‘legal ‘mente’ desconbecida. Era um refigio, Agradego a Deus eer wine cuss, wi quarts, wee cama, ex. Nolo que do lado (casa, refigio contra 0 ‘muurido) fui aftrtanco mina protecao acé atingir 0 vértice: eu ‘Eu’ 9 meu ultimo refugio. & ta, mele, inclu sive, que encontro a imagem dos ouires. Tembér ‘porque, destrocade, reduzi-me aum eu, Sb eu é que me recebo. ‘Acendia un incenso, uma vela, colocava_ um disco na vittela: em geral Bach, Beethoven, Stra vinski ou Debus. Sentava-se, acomodava a miqui a no colo ¢ datilografava diligentemente uma tra se dugio ou pressemuia um conte interrompide dias antes, Nesies momentos & ctlacho era feb, nada nem ninguém quebrava o eneantamento, Nunca vacilava numa frase, a “inspiragde" vinba num fmpe to avascalador ¢ as folhas em branco eram preenchi clas com sofrexuidio: parecia que, com 0 movimento clas mos, tentava aleancar a vertiginosa rapider co seu pensamento Minka acto 6 a das bolaerat As sexes intertompia tudo ¢ ficavs horas merge Thada em meditacdo. Por outro lado, também sentia necesiidade de uma disciplina exterior, que The faci Titasse 6 cumprimento da rotina inevitavel (© presente se justificeva porque havia urn furu ro. Sempre a eterna perpunta: ¢ agora? e depois? Ficava horas embevecida no que iia fazer no dia seguinte, Era com euforia que falaya em via io ¢ Naval. Sem tens. locos, compras de anivers rminava quando falara no futuro pre tei Perspectivus 1. Nite perur prasinaiticaomente ne futuro 2 $6 atrevessar @ ponte quando cheear a hora 2. Paulatinamente feser 0 lira sem presse 4 Apatzonarse pelo lero 5. Aprofundar as frares, renovi-las 6 O autor fala, em ver de Deus; outra es curidio. 7. $6 Angeles fala em Deus. 5. Nao deixar personne me dando des ordees. 4 Perera de Um So de Vt. betes 17 pele Ear Noe 38 9. Ser trangitila consigo mesma. 40. Nao achar que ume siuardo & irromedit vel 11, Eo todas as frases um climas. Cada um vive atordoadamente a propria vida. E se a esse algubnt forte porguntado em que ponto da vida estavt, responderia numa mistura de sen- Saydo de tapa-na-care ¢ descaso ¢ desafora o impa- cidncia; "O que? minha vida? E ew (a set ~Sentia extrema necestidade de disciplinar as atividades do dia-edia, Talver isso posta ser visto ‘como a contrapartida do outro lado de sua vida: © vvario em que s¢ instalava, ma busca de um sentido ‘que justifiasse ¢ explicasie os minimos gestos, que transfigureme a banalidade dos acontecimentos mid ddos de que sua exisiéncia cotidiana era feita B assim que se pode falar de uma cerca i mensio mistica presente em alguns textos seus, Sem ‘qualquer vineulacao religiosa explicit, dava a im pressio de serapre se achar em estado de questiona- ‘mento: Deus, morte, matéria, espiivo, eram objeto de interragagdee, de perplexidades, que ner nae conversas ela deixava de expressar. Em suas “desco- bertas) — sempre anctadas — procurava nunca dis- sociar os extremos: bem e mal, amore 6dio, divino € igbslico, Tiaha horror a0 maniquelsmo: preferia sofrer no émago de perguntas sem resposta a impor ‘um dogme que anulasse eu contearin E impossvel chegar 2 uma definicao de suas crengas relisiosss, pois as tnka. O que fica € 0 nitido tracado de sea itinerdrio espiritual, cujo me: thor sestemunho € 0 seu Texto. Fit 0 que era mais wrgente: wna prece. 3t Eu sd rezo porgue polactas me sustenten. Eu sé rez0 porque « palazra me maraziiha ‘Quem rese, reea pana si préprio chamiande-se de outro nome A chama da vela. O foro me Jaz azar, Tonho socreia adorecdo paga de flama vor Imeihe e emarela A vida sera msuportavel sem 0 ronho. E que ds veres ndo.se tem mesmo maic nade e 50 restam os brandos e profundos somos que mais barecem wma prece A realizacio esié no préprio ato de apenas sonar. E preciva ter muita coragem para ir ao Sundo dda vide Porque no fundo da vida nade acontece ao hhomem, ele s6 contempla. Nem sequer fenst 20 que contempla. Quando eu fico sem nekurea palaura no pencamento # sem imegem wirual interna — 9 Chamo iso de meditar. O silencio € tal que nem 0 Pensamento pena ‘Um modo de cair em extase. Se ew lei iso wes vores om soguida caio em Belaze. Deve-se ter contacto com o"Desconhecido sem uma palacra, nom sequer palavra apenas menial assim como um mudo Yale’ com a intenstiade do other = Questionando-a certa ver sobre o ‘querer acre ditar’, argumentei: para cada caréncia deve existe 0 que a satisfaga, Se exstem os pés, exiate 0 caminbar; se existe 2 fore, existe alimento; se existe um sexo, existe a relaglo com © outro sexo. Enzo se nega gua a quem tem sede. Para 0 oavido existe 0 som, para os olhos existe 0 que ver. Mas se existe 0 vazio, © que & que The responde? Até para a necetsidade oentia exise 0 vicio. Mas o que preenche 0 vazio? O em-nada? Sera resposta Iutar ¢ buscar? Buscar @ aut e como? A arte é a busca de uma reatidade souhade Cada vide tem sua arte. Entdo quer dizer que é no Dascar que se repleta © eazio. Mas existe ue fsto sempre renoveda: quando a burce encontra, nasce outro wnzio, ‘Ponto e sei que-vow ao encontro do que extile deniro de mim, vou a esse encontro nua ¢ descalea ¢ om pidos wnzias, 2 mercd de mim mesina. So ek. ‘due encarno Deus, posso me plendficar. Plenificar na pebeone 4 ‘Soe necessidade que eu tenho me justifica. Que seria de mim se eu ndo precisasse? Que sera de met ‘corpo se na0 houvesse 0 auto da fome? Que seria de ‘nm se nao houresse 0 futuro? Que seria de mim se feu nao precisasse de Deust 'Sé a falta me justifica ume Busca jemats aten- aida Mas enquanto isso, hoje hoje. ‘Méaha necenidade ms informe Senti de repente wma solidao alts quel en que se quer inventer Deus € ndo se constque, ‘30 me engunando que exite Dous & que consigo visor, So nf fave 2 JE inexblicével pelo Desconke- ido, 0 dasespero me destruiria. Bu fingo que existe ‘Deus! pare agentor o ineeplicdve! através do inex: blicavel ‘Estou devermade, frégil, abandonada — ¢ ht ‘esperanca. Esperance em qui? No encodeamento organica de um absurdo se encaiear em outro absur- ido, este preso por um elo forte a mais outro absurde ‘até cheger co Absurdo: wm Deus. Mas nio evitit tum Deus seria inventar @ hipotese absurda de suo imexistencia. E tudo é causade for outra causa, A primeira — como & que apareceu? "De vepente, ex vi que ndo estave Wore. Engra dada s condicionada Patka com veemincia ise: pinta 86 me: eu no creio em Deus e mio creio nos homens Senté que 05 grithoes que me prendiam estavem Soltes enfim ¢ toda alegre eu estara soe nue. Era tuna solidde gloriosa ¢ de uitéria o ora ume nudes de tilkima libertacdo. "Po! entdo que pensei om Deus. E aceitei-0. Mas como mulher Wore. A nudes, porém, nto desepare Ceo, eu née quis mais acimular sobre minha pele: finica-vestimenta nenhume pressdo. Meu drama ¢ ‘que cou lere TTaleer so Se poste ucvedias completamente no ‘que niio se pode ver. Dentro de min hé 0 irreco- ‘ahecfvel ‘Quore saber o que acontece quando no acon: tece nada. Qual € 0 oposto de acontecer? Sei que ndo E ‘no-acontecer' Acho que vem o indixvel 0 pai, Pai de Todos, divia que o ditado “coda tem por sie Dous para todos" eutaza errado, Que era ‘asim: “Cada um por si # Deus por ninguém”. Pois hake galaxias nfinitamente pera esse Deus cxidar. ‘A id€ia de Deus fascinava-a, portanto. Sentia-O como forca avassaladora que trazia consigo 0 bem nis tambeun Uesayeru + terer. Cristo, na perfaigto de sua palavra, asustavava ‘Quando, um dia, The perguaei ~ 0 que & Deus? — respondew por escrito: ~ Deus significa o aleance do si-mesmo fara 0 sem. matiria. Deus significa 0 encoxtro de si-macime com 2 proprio mistério de si Mas o estado de aicese pode diver sem Deus:-€ quando mais perto me acko do Deus renegedo. ‘Deus sinafica 9 epuramento do sono, significa @ capocidade de uma prrsca de se liar do peso do Siemesmo, Minha abstracao de mim € Dews, Que a Deus 36 € compresnsieel se a gente descobrit que Ele ‘tensa em termos de miléntos em matéria de tembo ow mesmo de infinito, Quanto a pessoas, Ele talver sé aja 0 nosso protitibe ¢ ndo cada um de nis que é uma repetieao do protbtibo Talvez no caiba a Ele nos procurar. Cabe @ cada um de n6s soruer dele ume mitericbrdia que Niele € fmpessoal e matendtica. Nos tems 0 poder dde trancformar essa misericbrdia em alma nossa. Ele criow o tipo ¢ nos largou com ele ‘Deus’ 0 que 0 diviondrio ndo explica Deus dificutta demais o nose amor por Ele. Como pedo Tose tudo nos 6 tirado? Um Deus que me faz triste — devo amar esse Deus que talvex ndo passe de unt ‘deus’ To & nade. Tenko que amar 0 Nada. E dificl esse didlogo de surdos. Como te amar, Deus, se ficeste de mim um simpler ‘ito Também nao sou nade Tua & com letra: maiisenla NADA. A Tus dor deve ser grande deraais ¢ Tua solidto — bem, Tua soliddo eu nao tnoeje. Mas pelo que sinto de solidao final, smagino a Tua, Tea la na terre dew err do, Simplermente néo furcionou. Que fazer entio? Send que Deus tambern résa? 0 que pede be? Que eco eu? Peco a pelawra, A palaura dite. A sinica alacra bor que se espera. Eu, condenade a vive. Eu charmo Deus porque néo sei 0 que chamar nem como chamar. Deus ndo & 0 princfbio e nao € 0 fim. E sempre 2 meio, Deus ndo pense, age direta ‘monte. Deus € uma forma de ser? E a abstracito @ue se materialica na natureca do que existe? Peniar & um ato Sentir € um Jato Os dos juntos — sow ew que escrevo 6 que estou excrevendo, Deus 6 0 mundo © natural € 0 maior mistério cue existe. Nada & mats soltirio qus fazer wm chi para si mesma. Hoje preparo de leve um cha para mim. O chd termina sendo agasetho. Eu ¢ bebo ¢ ele me 6 Sendo-me ele, entdo nao estou mats ta0 56 Hiavia épncas em que, reslvida a ssir da so- liddo, decidia comunicarse com @ mundo exterior Repintava as paredes de branco, colocava folhagens pela sala toda, mandava polir os poucos obietos de Drata, 0 lest, mudava & dispesio dos quadres Faria Tate de convidados. Reticava do aparador os cristais os pratos de poreelana que s6 erem usados fem eeasies epecinis, colocava a melhor toalha de linho e enedmendava’o mais famoso vatapi do Rio (aunca tere boa cosinkeira). Aczndia a haste do defamador de jasmin, eolocava gelo no bale, a savrafa de uinquc, a batida de Banko, © s¢ tortura Nespera dos convidados Eu sou uma atris pare mim mesma Bu finjo que sou ua determinada pesioa mas na realidade no rou nada Diaia nto ter estilo de vida, um modo de ser social como 05 outros. Mas nao descuidava da hospi talidade. Servia of convidador, sorria, ouvia, par cipaya da conversa. Quando, porém, a reunito che: _gava a0 auge © oF convidados fe sentiam mais & von fade, retirava-se discretamente para o quarto. Ali, olhave pela pequena jancla lateral uma ermide branca emergindo do verde exuberante na encosta de-um morro. Era a paz E ansiava ficar 6. Me canso quando de noite vjo « sale cheia de ‘homens e maiheres. Casto de poucos atores em cena. 49 Eu sou ume pessoa que se exgueira da grande ci dade. Eu sou extromamente realista, Mes acontece 0 seguinte: eu adtvinno' a realidade mats do que eu a ajo. E euse men relacionamento de adivinhogio com «1 realidade ~ ¢ magico Eo pensamento? Como é que de wm corbo solida nasce 4 mais woldid das substancias que & 0 lure pensamento? Portanto, ‘pensar’ & wm ato conti nwo de magis A realtdade me parece uma rlusto de otiea Aids eu ndo vivo a realidade, ew senho com ela. B eu a sonho « ela & impalpével Criei em mim uma realidade, De vex em quando mudo de reelidade, Porque sto antes a escolher. Entre uma realidade e outra — eu sonho ume terceiva. A cobra é mais frveal que mex sonko. Como explicar que eu vejo ito acredito? Eu nio rio a verdede: eu a fantasio Sempre que safa 4 nia, fleava afl. Se nfo consemia taxi, andava dois ou uts quartelzdes, pelo meio da rua, 8 procura de um. Nao conseguia fguentar tla de espera em bancos, cinemas, a farava sem ceriménis — © sua oussdia sara. mente ocasionava provestos De volta & coca, apss haver feito © que progra- mara, vestia 0 velho robe de chambre, calgava os chinclos, recostaya-se confortavelmente no. grande sof de couro preto da sala, suspirava, em parle por tearsago, em parte de satisacdo, Noses momentos, mostrava-se tranqiila, em paz coasige e com 0 run: do, Ditia: 6 € bor sair pela alegria de voltar. a Era muito convidada para recepgles, As vanes sofiticadas, 0 que cantrariava seus habiros frugais Ei ocasiges ausim, no bebia nada alcoélico, comia pouco, Em geral, n2o se demoraya muito, levanta » Vauie terenamente e, dizendo:se cansada, pois que sempre acordava as quatro da manha, retiravarse. A vida social a entediava Hvis, porém, periodos de grande dinamismo: punha-se a fater gindstica, exercitava-se numa bici- Cleta exgométrica, passava cremes no rosto, perf nava'se muito, Tomava suco de laranja, de melae fou de morango, dispensando o: refrigerantes. Fsses periodas vinkam acompanhados do desejo de viajar. Examinava eatio cuidedosamente suas financas, com a esperanca de que houvesse folga para um passeio 2 Europa LLigava para agencias de turismo, marcava en: revista, idealizava rocciros e devaneava dias © dias sobre os lugares que visitaria: contemplava paisagens, fouria 0 zumbide dos insetos nas tardes ensolaradas do vero da Italia; ou ficava em éxtase, vendo 2 neve fait € trarsformar coin tons violéceos © que antes tremalava no amarelo-ouro do outono europeu. Via levar-se a tumaga das chamines © ouvia « clniva cain pesadamente nor telhadas ¢ rolar nas pedras da rua Caminhaya delicadamente pelos florides jardins de Roregarten, na Sulga, a caminko do museu com obras de Paul Klee... “Tudo era tie real que, de repence, nada restava para ser visto ou vivido: sobrevinha-Ihe uma inelut tel preguiga ante @ perspectiva de por seus sonhos fem pritica. Exausta, cancelava a viagem. 'Nos dlkimos oito anos de vida, foi duas veres a Europa. Na primeira, permaneceu um més, em visita a quatio pases; na segunda, ficou apenas uma. semana em Parie: quis voltar o logo chegou. 2 {A Girma viager de ava vida levou-a a Recife: 0 “objetivo era'0 reencontro com suas ralzes © suas aperancas. Percorrew af os lugares que viram 0 Iniciar ce sia inquietaclo, de sua ansia de liberdade co desabrochar dos primeiros textos. Sentada. na Praga Maciel Pinheiro, no bairro da Boa olhando 0 pequene sobrade onde morara em crian- a, ouviu maravilhada o velho pregzo do vendedor mbulante de frutas: “O minina voce qué pitom- ba? Sempre se indignou diante co fato ae que havis quem relativizasse sua condigid de brasileira: nas: cera na Rissa, € certo, mas aqui chegara aos dois meses de idade, Queriase brasileira sob todos os aspectos. Sobretudo o literirio. Suponko que & muito tarde agora para eu nas cer chinese, Alits, examinades os dador ¢ compo. nentes, foi impossicel ex ter nascide chinesa Vive no Recife até os daze anos, x tive um cotidiano mazico. Na inflnei ‘Apesor da tristeza que‘via em casa, ocasionada pela pobreza e pela doenca da mae, foi menina des preocupada. Ew era muito alegre ¢escondia de mim a dor de ver minha me assim. Voc? sabe que so relembrando dde uma ves, com toda @ wiolincia, & que a gente termina o que a anflncia sofia nos deu? Suas reminiseéneias aio tinham enredo, ba seavam-sé em percepgBes momentineas, ¢ assumiam. imagens correra. “a

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