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liberalismo Por J. GresHamM Macuen, D.D Professor de Novo Testamento no semindrio norte-americano: Westminster Theological Seminary, Philadelphia EDITORA - Cristianismo e Liberalismo J. Gresham Machen, D, D 1* Edigao — Maio de 2001 Traduzido do original em inglés: Christianity And Liberalism Editado originalmente em 1923 por WM. B, Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Michigan. Salvo indicagao em contrdrio, as citagées biblicas foram extraidas da versio Revista ¢ Atualizada (2 edigao, 1993) de Joto Ferreira de Almeida.® Sociedade Biblica do Brasil. E proibida a reprodugao total ou parcial desta publicagéo, sem autorizagdo por escrito dos editores, exceto citagées em resenhas. Edigao em Portugués: Manoel Sales Canuto mscanuto@uol.com.br ospuritanos@uol.com.br Tradugao: Denise Pereira Meister Revisac E Solano Portela Editoragéo © Capa: Heraldo Almeida heraldodesign@ieg.com.br Editora: Os Puritanos Telefax: (11) 6957-8566 | (11) 6957-3148 {facioligrafica@aol.com www puritanos.com.br Impressio: Facioli Grafica e Editora Lida Rua Canguaretama, 181 — Vila Esperanga CEP 03651-050 — Sao Paulo — SP SOBRE O AUTOR John Gresham Machen (1881-1937) J. G. Machen nasceu em Baltimore em julho de 1881 ¢ foi criado num lar cristéo devotado num alto nfvel cultural, posigao social e pros- peridade. Machen conquistou sua 1# graduacio em Letras na Univer- sidade de Hopkins. Em 1902, ele se matriculou no Semindrio de Princeton onde teve o privilégio de estudar aos pés de B.B. Warfield, Greahardus Vos, Francis Patton e R.D. Wilson. Machen recebeu sua 22 graduacao em Teologia com honras. Sob orientagao do renomado estudioso de grego, Basil L. Gildersleeve, destacou-se nos estudos clds- sicos. No outono de 1905 viajou para estudar na Europa. Estudou nas Universidades alemaes de Maburg e Gottingen com Johannes Weids e Adolf Gulidrer. Machen aceitou a cadeira de Literatura e Exegese do Novo Testa- mento no Seminario de Princeton em 1906 ¢ ensinou até 1929. Foi licenciado em 1913, e accitou a cadeira de professor assistente de Novo Testamento em maio de 1914. Em julho, foi ordenado ministro pelo Presbitério New Brunswick, e, em 3 de maio de 1915, Machen pregou seu sermao de ordenagdo “Histéria e Fé”: “Um Evangelho indepen- dente da histéria é simplesmente uma contradigao de termos”. Machen tomou posigao firme contra a influéncia sutil do libera- lismo na Igreja Presbiteriana ¢ no Seminario de Princeton. No seu livro “Cristianismo e Liberalismo” (1923), Machen prova que libera- lismo e cristianismo histéricos s4o duas religides distintas. A légica de sua oposigao ao liberalismo levou ao inevitavel confronto entre 0 Se- minario de Princeton e a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA). Machen foi melhor conhecido na controvérsia fundamentalista-modernista. Com o fluxo do fundamentalismo e sua el Cristianismo e Liberalismo ortodoxia influenciando a corrente principal da Igreja para longe da ortodoxia biblica, Machen se tornou uma voz firme e opositora. Com a subscrigao Auburn Affirmation, em 9 de janeiro de 19240 ultimo golpe foi dado pela PCUSA. Machen enviou uma comunica- G40 ao Times de New York que apareceu em suas colunas no dia se- guinte denunciando a denominagio (Presbiteriana) por ter tomado uma posico claramente liberal, herética e sacrilega. Machen havia sido levado a posigao de apologeta em Princeton em 1926. Ele lutou para que o Seminério nao seguisse 0 caminho da maioria liberal, e se esforcava de todas as maneiras para que houvesse um ressurgimento da parte conservadora e um retorno A fé reformada. Sua posic4o proeminente como principal voz conservadora fez dele o alvo favorito de ataque dos difamadores “ad nominem” por parte dos liberais aos quais ele se opunha. Em 1926, Machen foi submetido a investigag4o e inocentado. Mas a difamagio por parte dos seus acusa- dores influenciou muitos contra ele. Ele continuou a lutar valente- mente para livrar 0 Semindrio, porém menos de 3 anos mais tarde Princeton teria sua reestruturagdo infame estabelecida. Em 18 de julho de 1829, Machen juntamente com outros profes- sores descontentes de Princenton, incluindo Cornelius Van Til e Oswald T. Allis reuniram-se ¢ estabeleceram 0 alicerce de um novo Seminario que sustentava os padrées reformados que Princeton havia abandona- do. Entre outros professores estavam Paul Wooley, John Murray, Rienki B. Kuiper, e com eles o Seminario Teolégico de Westminster adotou a sua escritura e constituicao na primavera de 1930. Em 25 de setembro daquele ano, Westminster abriu suas portas com uma aula dada pelo professor Dr. Wilson. Em 1934, 0 Supremo Concilio da PCUSA ordenou a Machen a cortar suas relagdes com a Junta de Miss6es Estrangeiras Independen- tes que ele mesmo havia organizado no inicio daquele ano e se tornado seu presidente, afirmando ser ela inconstitucional. A Junta respondeu com um documento de 43 pdginas intitulado: Estudo na Constitui- 40 da PCUSA. A ordem foi que Machen, como presidente, dissolves- ell Sobre o Autor se a Junta sob acusagao de ter quebrado seus votos da ordenagio. Machen apelou. Em 20 de dezembro em Treton - NJ 0 presbitério foi convocado. As acusagGes apresentadas contra Machen foram as seguin- tes: 1) Violagao do voto de ordenagaa; 2) Rejeigao do governo e disci- plina da Igreja Presbiteriana; 3) Desconsideragao e desobediéncia as regras e autoridade legitima da Igreja; 4) Defesa de uma rebelde afron- ta contra a leg{tima autoridade da Igreja; 5) Recusa de cortar suas rela- ges com a Junta Presbiteriana de Miss6es Estrangeiras, conforme or- dem expressa do Supremo Concilio; 6) Falta de zelo e fidelidade em manter a paz da Igreja; 7) Desprezo e rebelido contra seus superiores na Igreja, nos seus legitimos conselhos, ordens e corregdes; 8) Quebra de seus votos e juramentos e 9) Recusa aos seus irmaos no Senhor. O New York Times trouxe a manchete: “Presbitério julga Machen como rebelde”. O julgamento teve lugar em fevereiro ¢ margo de 1935. Machen alegou “inocéncia” para todas as acusag6es. Foi negada a Machen a oportunidade de defesa e declarado “culpado” em 29 de margo sendo suspenso do ministério na Igreja Presbiteriana (PCUSA). O despojamento da Machen dividiu a PCUSA. Para cerca de 1/3 dos seus delegados esta foi a tiltima gota que faltava. Em 27 de junho de 1935, estes membros se encontraram e prepararam um documento chamado Pacto Constitucional de Uniao, num ultimo esforgo para re- formar a Igreja Presbiteriana. O passo decisivo em direcdo a uma nova denominagio foi tomado em 11 de junho de 1936. Machen foi eleito como moderador da convencao. Seu sermao “A Igreja de Deus”, em Atos 20:28, serviu como diapasdo de uma nova Igreja. O nome de Igreja Presbiteriana da América (PCA) foi adotado. A hostilidade da PCUSA se manifestou contra a igreja nascente por meses mais tarde na forma de um processo legal contra o nome escolhido, O nome PCA foi abandonado e a igreja se tornou conhecida como Igreja Presbiteriana Ortodoxa, um nome mais consciente com seu propésito de manter os padrdes histéricos reformados. Machen morreu prematuramente em 1 de janeiro de 1937 de pneumonia em Bismark North Dakota. Suas ultimas palavras foram: ell Cristianismo e Liberalismo “Sou grato pela obediéncia ativa de Cristo sem a qual nao hd esperan- ga. O cristianismo evangélico no mundo ocidental muito deve a Machen e¢ As organizacoes por ele fundadas, por explicarem, com inte- ligéncia e coragem a verdade crista histérica e por sua firmeza em defendé-la. Muitos eruditos evangélicos, basti6es da ortodoxia biblica e defensores da Fé “uma vez dada aos santos”, varios dos quais se en- contram em nosso Brasil, formaram-se nas instituigdes que surgiram como fruto da posicao de coragem de Machen, ou foram influencia- dos e educados com uma alta visio da autoridade e inerrancia da Pala- vra de Deus, pelos livros escritos pela geragdo de tedlogos extraordind- rios que acompanharam Machen, ou da geracao imediatamente seguinte. Ainda hoje em dia, damos gracas a Deus pela vida desse ser- vo e pela forma como o Senhor possibilitou o seu firme alinhamento com as doutrinas chaves da fé crista. Os Editores PrerAcio po Dr. Micraet Horton A Epic4o BRASILEIRA Considerado como a mais eficaz defesa do cristianismo Classico, na assim chamada “controvérsia modernista-fundamentalista”, o livro “Cristianismo e Liberalismo”, de J. Gresham Machen, sugere com ou- sadia que o protestantismo liberal nao era um mero tipo de cristianis- mo diferente, mas totalmente uma outra religido. Essa éa razdo do seu titulo provocativo. Dificilmente poderia se dizer que 0 préprio Machen era a carica- tura de um “fundamentalista”. Filho de uma distinta familia de Baltimore foi educado em algumas das melhores universidades ameri- canas e européias, Partilhou com Karl Barth e Rudolf Bulrmann, entre outros, do prestigio de ter sido aluno do tedlogo liberal Wilhelm Herrman. Machen estava também convencido de que o liberalismo estava tendo sucesso nao por causa da sua melhor erudi¢ao, mas preci- samente porque a lideranga protestante estava vendendo barato o seu capital intelectual em troca do sentimentalismo. Ao ser questionado se era “fundamentalista”, Machen preferiu o rétulo descritivo de “Refor- mado”. A sua identificago profunda nao foi somente com os mais altos canones da erudiga0; Machen nao foi, também, dispensacionalista, que eraa visdo teoldgica que,nos tiltimos dias, dominou o movimento fundamentalista. Como professor de Novo Testamento do Semindrio Teoldgico de Princeton, Machen escreveu doutas defesas da teologia de Paulo e da concep¢ao virginal do nosso Senhor. Por fim, Machen e Harry Emer- son Fosdick, famoso e infame pregador modernista de Nova Iorque, foram postos frente a frente num debate. Em uma colegdo das suas populares palestras Machen explicou as raz6es fundamentais da luta “Vv Cristianismo e Liberalismo que definiu o seu ministério. Ele escreveu: “antes, quando se apresen- tavam aos homens documentos perfeitamente claros como o Credo Apostélico, a Confissdo de Fé de Westminster ou 0 Novo Testamento, eles ou os aceitavam ou os renegavam. Agora eles deixaram de negé- los, meramente os ‘interpretam’. Cada geracgao, dizem eles, tem que interpretar a Biblia ou o credo ao seu préprio modo”. Experimente esse mesmo método com a tabuada de multiplicar ou com a metodologia de pesquisa histérica. Sem negar completamente que a Declaragao da Independéncia dos Estado Unidos foi esbogada na ci- dade de Filadélfia, alguém poderia dizer: “(...) contudo interpretamos que isso quer dizer que ela foi adotada em Sao Francisco” (J Gresham Machen, O Deus Transcendente [God Transcendent], 46, ed. Ned B Stonehouse, Edinburgo, Banner of Truth Trust, 1986). Entretanto, é com o livro Cristianismo e Liberalismo (1923) que Machen verdadeiramente tem sucesso. Mesmo sendo extremamente acess{vel, por seu estilo popular, foi aplaudido por muitos estudiosos cristéos que lutavam com as suas préprias dtividas. Até mesmo dois famosos comentaristas seculares daqueles dias, Walter Lippmann e H. L. Mencken, acrescentaram suas préprias apreciagdes. Conforme ob- serva D. G. Hart, Lippmann aplaudiu a “aguda percepgao”, a “énfa- se”, ea “inteligéncia” do livro. Para Lippmann, Machen havia proporcionado uma “defesa vi- gosa e vigorosa” do protestantismo tradicional, “o melhor argumen- to popular” jd produzido por fundamentalistas ou liberais numa dé- cada de inquietaco religiosa. Mencken nao ficou menos impressio- nado. Aos leitores do periddico American Mercury ele apresentou a pessoa, a quem mais tarde conferiria o titulo de “Doutor Fundamentalista’, como “homem de grande conhecimento e digni- dade, ex-aluno de universidades européias, autor de varios e valiosos livros, (...) e membro de diversas sociedades de sdbios ilustres” (D. G. Hart, Defending the Faith: | Gresham Machen and the Crisis of Conservative Protestantism in America, 3, Baltimore and London, The John Hopkins University Press, 1944). °VI Prefacio do Dr. Michael Horton Ainda hoje, eruditos seculares acham persuasivos os argumentos de Machen. Harold Bloom em seu livro de 1992 intitulado The American Religion: The Emergence of the Post-Christian Nation (Nova Torque: Simon and Schuster), considerou Machen de uma “formida- vel” intelectualidade. Professor da Universidade de Yale e proemi- nente crftico literdrio na América do Norte, que também se auto classifica de “pagao”, Bloom nao obstante confessa: “fiz tao-somente a minha leitura desse [Cristianismo e Liberalismo], com desagrado e desconforto mas com crescente admiragao a contragosto pela mente de Machen. Jamais encontrei um argumento mais forte para que 0 cristianismo institucional devesse considerar o liberalismo cultural como um inimigo da fé” (Harold Bloom, The American Religion, 228, citado acima). E claro que muitas coisas mudaram desde 1923. O otimismo ea fé na humanidade que impulsionou 0 liberalismo foi 4 faléncia, jun- tamente com o mercado de capitais; a “guerra para pér fim a todas as guerras” (a justificativa do presidente americano Woodrow Wilson para entrar na Primeira Guerra Mundial) foi seguida rapidamente por uma segunda guerra mundial. Além disso, hd diferengas entre o cristianismo nos Estados Unidos e o cristianismo no Brasil. Contu- do, como demonstra esta edigao, as diferengas de tempo e de lugar nao alteram substancialmente a importancia dos argumentos desse livro. Hoje ha muitos que professam um credo no qual verdadeira- mente nio acreditam. Eles querem “experimentar Deus” 4 parte de conhecer a Deus. Anseiam por uma espiritualidade pragmatica e sub- jetiva que acham util para consertar os seus problemas, mas tém pouca consciéncia de que enfrentam, diante de Deus, um problema muito maior — algo, diante do que, tudo mais empalidece. Até mesmo muitos dos que hoje se proclamam “evangélicos” ou “conservadores” dentro de nossos arraiais, mui freqiientemente apoiam-se em seus sentimentos, experiéncias e transformaces morais e no concentram a sua atengao em Cristo, crucificado pelos nossos pecados e ressurreto para a nossa justificacao. © VII Cristianismo e Liberalismo O liberalismo representa a fé na humanidade, ao passo que 0 cris- tianismo representa a fé em Deus. O primeiro é ndo-sobrenatural, o tiltimo é absolutamente sobrenatural. Um é a religifio da moralidade pessoal ¢ social, 0 outro, contudo, é a religiao do socorto divino. En- quanto um tropega sobre a “rocha de escdndalo” o outro defende a singularidade de Jesus Cristo. Um é inimigo da doutrina, ao passo que © outro se gloria nas verdades imutdveis que repousam no préprio cardter ¢ autoridade de Deus. E claro que poderfamos seguir adiante contrastando 0 cristianismo com o liberalismo. Mas por que razao o farfamos quando temos nesse volume uma apresentagao tao superior? Leia, anote, aprenda ¢ medite intimamente neste importante livro que é tao contemporaneo hoje quanto o foi em 1923. Michael Horton + VOI SUMARIO PREFACIO A EDICAO EM INGLES ... I — Introdugéo TT — DOULA eeecesecesecetetetetseesesesssesescesseesssesseesseatiesenee TTT = Deus € 0 Home vrcccessessssvessesvecsessssenssseessseessseess 61 IV—A Biblia.. V— Cristo... VI — Salvagai a VIL — A Lgr eft vessessesssssessteseesessiseessessnsessesnsessessssess 155 INDICE GERAL cssssssssssesssssssssesssssesssssscsssseessiessssssesseees 177 PrerAcio A Epicdo Em INGLES Em 3 de novembro de 1921, 0 autor deste livro fez uma palestra a Associagaio de Presbiteros da cidade de Chester, nos Estados Unidos. Ela foi, subseqiientemente, publicada no The Princeton Theological Review, vol. XX, 1922, ps. 93-117, sob o titulo “Liberalism or Christianity”. O interesse com 0 qual a palestra publicada foi recebida encorajou o autor a desenvolver uma apresentagdo mais extensa do mesmo assunto. Por cortesia do The Princeton Theological Review, a palestra tem sido usada livremente e pode ser considerada como o nticleo do presente livro. Um reconhecimento grato é também devido ao editor do The Presbyterian pela permissao bondosa quanto ao uso de varios artigos breves que foram publicados naquele jornal. As prin- cipais divis6es do assunto foram originalmente sugeridas ao autor em uma conversa que teve em 1921 com o Rev. Paul Martin de Princeton, que, no entanto, nfo foi consultado quanto ao método de tratamento dessas questées. ell Caprruto I Introdugio O propédsito deste livro nao é decidir a questao religiosa dos dias de hoje, mas meramente apresentd-la da forma mais precisa e clara possivel, a fim de que 0 leitor possa ser auxiliado a decidir por si mes- mo. Apresentar uma questao com profundidade nao é, de forma algu- ma, algo popular nos nossos dias; hd muitos que preferem lutar suas baralhas intelectuais no que o Dr. Francis L. Patton tem competente- mente chamado de “condi¢do de pouca visibilidade”.' A definigao cla- ra de termos, em assuntos religiosos, que apresentam corajosamente as implicag6es légicas das visdes religiosas, é considerada por muitas pes- soas como um procedimento herege. Serd que nao vai desencorajar as ofertas missiondrias? Ser4 que nao vai diminuir 0 nosso progresso de consolidaco, € mostrar um crescimento estat{stico deficiente da de- nominagao? Mas é imposstvel concordarmos com estas pessoas. A luz, as vezes, pode parecer ser uma intrusa impertinente, mas é sempre benéfica no final. O tipo de religido que regozija-se no som piedoso das frases tradicionais, a despeito de seus significados, ou recua nos assuntos “controversos,” nunca ird se levantar no meio dos choques da vida. Na esfera da religido, assim como em outras esferas, as coisas sobre as quais os homens concordam podem ser aquelas que menos valem sustentar; as coisas realmente importantes s4o aquelas sobre as quais os homens lutarao. Na esfera da religiao, especificamente, o tempo presente ¢é um tem- po de conflito; a grande religiao redentora, que sempre foi conhecida como Cristianismo, est4 lutando contra um tipo totalmente diverso ‘nels L. Patton, na introdugio ao livro de William Hallock Johnson, The Christian Faith Under Mudern Searchlights, (LOUGI, p.7. °13 Cristianismo e Liberalismo de crenga religiosa que é simplesmente a forma de pensar mais destrutiva da fé cristé — porque faz uso da terminologia crista tradicional. Esta religido nao redentora moderna é chamada de “modernismo” ou “libe- ralismo”. Ambos os rétulos sao insatisfatérios; 0 ultimo, em particular, pede um esclarecimento, O movimento designado como “liberalis- mo” é considerado como “liberal” apenas por seus amigos; aos seus oponentes, ele parece abrigar uma ignordncia estreita de muitos fatos relevantes. Na realidade, o movimento € tao variado em suas manifes- tagdes que uma pessoa pode quase se desesperar para encontrar algum nome comum que se aplique a todas as suas formas. Mas, mesmo sen- do multiplas as formas nas quais o movimento aparece, a raiz do mo- vimento é uma; as muitas variedades da religiao liberal moderna sao arraigadas no naturalismo — isto é, na negacao de qualquer entrada do poder criativo de Deus (distinguindo-se este do curso ordindrio da natureza) em conex4o com a origem do cristianismo. A palavra “natu- ralismo” é usada aqui em um sentido um tanto diferente do seu signi- ficado filoséfico. Neste sentido nfo filoséfico, descreve com exatidao satisfatéria a raiz real daquilo que ¢ chamado, mesmo sendo uma de- gradacao de uma palavra originalmente nobre, de religiao “liberal”. A ascensio deste liberalismo naturalista moderno nao aconteceu por acaso, mas foi ocasionada por importantes mudangas que aconte- ceram recentemente nas condigées de vida. Os uiltimos cem anos tes- temunharam o inicio de uma nova era na histéria humana que pode ser, até um certo ponto, lamentada, mas certamente n4o ignorada pelo mais obstinado tradicionalismo. A mudanga ndo é algo que se encon- tra sob a superficie e pode ser visivel apenas ao olho perspicaz; ao con- trdrio, ela forga sua presenga a atengdo do homem comum em cente- nas de pontos. As invengdes modernas ¢ a industrializagéo que tem sido construfda sobre elas, nos tem dado, em muitos aspectos, um novo mundo para viver; nao podemos nos remover deste mundo mais do que podemos escapar da atmosfera que respiramos. Tais mudangas nas condi¢6es materiais da vida, entretanto, no se encontram sozinhas; elas tém sido produzidas pelas mudangas pode- 14 Introdugdo yosas na mente humana que, por sua vez, provocam outras mudangas espirituais. O mundo industrial de hoje nao tem sido produzido por forcas cegas da natureza , mas pela atividade consciente do espfrito humano; tem sido produzido pelas realizagdes da ciéncia. O cardter fora de série da histéria recente é uma ampliacao enorme do conheci- mento humano que tem andando de mos dadas com tamanho aper- feigoamento do instrumento de investigagao que dificilmente qual- quer limite pode ser determinado ao progresso futuro no dominio material. A aplicagao dos métodos cientificos modernos é quase t4o vasta quanto o universo no qual vivemos. Embora os feitos mais palpdveis estejam na esfera da fisica e da quimica, a esfera da vida humana nao pode ser isolada do resto. Com as outras ciéncias que tem surgido temos, por exemplo, uma ciéncia moderna de histéria, que, junto com a psicologia, sociologia e outras semelhantes, reivindica, mesmo que nao meteca, total igualdade coma suas ciéncias irmas. Nenhum depar- tamento de conhecimento pode manter seu isolamento da cobica moderna da conquista cientifica; tratados de inviolabilidade, embora consagrados por todas as sangoes da tradicao antiga, tém sido langados brutalmente ao vento. Em uma época como esta, é dbvio que cada heranga do passado deve ser objeto de um ctiticismo agudo; e, na realidade, algumas con- vicgdes da raga humana tém-se desfeito em pedagos neste teste. De fato, a dependéncia de qualquer instituigd0 no passado ¢ agora, as ve- zes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presung’o nao em favor da mesma, mas contra. Tantas convicg6es tiveram de ser aban- donadas que os homens, de vez em quando, chegam a crer que todas clas devem passar. Se tal atitude for justificdvel, entao nenhuma instituigao ¢ encara- da com uma presungio hostil mais forte do que a instituigao da reli- gido crista, visto que nenhuma outra instituigao tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela. Nao estamos agora investigando se tal posigao é sébia ou historicamente o15 Cristianismo e Liberalismo justificdvel; de qualquer maneira, 0 prdprio fato é simples — 0 Cristia- nismo, durante muitos séculos, tem consistentemente apelado para a verdade das suas alegacées. Ele nao apela mera e nem mesmo primari- amente para a experiéncia corrente, mas para certos livros antigos, sendo que o mais recente deles foi escrito ha cerca de mil e novecentos anos. Nao é de surpreender que este apelo esteja sendo criticado nos dias de hoje; visto que os escritores dos livros em questao foram, sem dtivida, homens de sua prdpria época cuja percepgéo do mundo material, julgadas pelos padrdes modernos, devem ter sido do tipo mais rude e elementar. Inevitavelmente surge a questo se as opinies de tais ho- mens podem ser normativas para os homens do presente; em outras palavras, se a religiao do primeiro século pode manter-se sempre na companhia da ciéncia do século XX. Qualquer que seja a resposta dada a essa questo, ela apresenta um problema sério para a igreja moderna. Na verdade, as vezes, tentativas sao feitas para fazer com que a resposta seja mais facil do que parece ser a primeira vista. A religiao, diz-se, é tao inteiramente separada da cién- cia que nao ha possibilidade das duas, corretamente definidas, entra- rem em conflito. Esta tentativa de separagdo, como esperamos que as prdéximas pdginas possam mostrar, é aberta as mais sérias objegGes. Mas o que deve ser observado agora é que até mesmo se a separagdo fosse justificavel, ela nao poderia ser efetuada sem esforgo; a remogao do problema da religido e da prépria ciéncia constitui-se em um pro- blema. Porque, correta ou erroneamente, a religiéo durante os séculos tem, na verdade, se conectado a uma multidao de convicgées, especi- almente na esfera da histéria, que podem ser objetos de investigagao cientifica; assim como investigadores cientificos, por sua vez, ds vezes tem se prendido, mais de uma vez, correta ou erroneamente, a conclu- s6es que violam 0 dominio mais intimo da filosofia e da religido. Por exemplo, se qualquer cristao simples de cem anos atr4s, ou mesmo de hoje, fosse questionado sobre em que se tornaria sua religiao se a histé- ria provasse indubitavelmente que nenhum homem chamado Jesus viveu e€ morreu no primeiro século de nossa era, ele iria indu- °16 Introdugdo bitavelmente responder que sua religiao se dissolveria. Apesar disso, a investigagao dos eventos do primeiro século na Judéia, assim como na Itdlia e na Grécia, pertence a esfera da histéria cientifica. Em outras palavras, nosso cristao simples, correta ou erroneamente, de forma s4- bia ou nao, na realidade fez a conex4o de sua religido, de uma forma que lhe parece indissoltivel, as convicgGes sobre as quais a ciéncia tam- bém tem o direito de falar. Entdo, se estas conviccSes, ostensivamente religiosas, que pertencem A esfera da ciéncia, nao sao realmente religi- osas, a propria demonstragao do fato nao é uma tarefa insignificante. Mesmo se o problema da ciéncia e da religido reduzir-se & questao de desembaragar a religido do crescimento pseudo cientffico, a seriedade do problema nao é, através disso, reduzida. Independentemente do ponto de vista, ent&o, esse problema é a preocupagdo mais séria da igreja — Qual é a relagao entre Cristianismo e cultura moderna; 0 Cris- tianismo pode ser mantido em uma era cientifica? E este problema que o liberalismo moderno tenta resolver. Ad- mitindo que as objegées cientificas podem surgir contra as particulari- dades da religiao crista — contra as doutrinas cristas da pessoa de Cristo e da redengao através da sua morte e ressurrei¢do — o tedlogo liberal busca resgatar alguns dos principios gerais da religido, dos quais as particularidades especificas sao tidas como meros simbolos tempordri- 0s, € considera esses princ{pios como se constituindo “na esséncia do Cristianismo”. No entanto, o questionamento é valido se este método de defesa é realmente eficaz no final; porque depois do apologista abandonar suas defesas externas ao inimigo e se retirar para alguma fortaleza interna, cle provavelmente iré descobrir que 0 inimigo o persegue até dentro = 5 A permissibilidade, ent4o, nunca alcangar4 sucesso em evitar 0 conflito 17 Cristianismo e Liberalismo intelectual. Na batalha intelectual dos dias de hoje nao pode haver “paz sem vitéria”; um ou outro lado deve vencer. Na verdade, no entanto, pode parecer que a figura que tem sido usada esteja completamente equivocada; pode parecer que 0 que o tedlogo liberal tem retido, apds abandonar ao inimigo uma doutrina crista apds outra, nao seja o cristianismo de forma alguma, mas uma religido tao inteiramente diferente do cristianismo que pertence a uma categoria distinta. Além disso, pode parecer que os temores do ho- mem moderno quanto ao Cristianismo nao tenham qualquer funda- mento, ¢ que, ao abandonar os muros da cidade de Deus preparados para a batalha, ele tenha fugido, em um panico desnecessdrio, para as planicies abertas de uma religido natural vazia, s6 para ser presa facil do inimigo que est4 sempre armando emboscadas lA. Temos, entdo, duas linhas de criticismo com relagdo A tentativa liberal de reconciliar a ciéncia ¢ 0 cristianismo. O liberalismo moder- no pode ser criticado (1) com base no fato de que é no cristo e (2) com base no fato de que ¢ nao cientifico. Nos preocuparemos aqui principalmente com a primeira linha de criticismo; nosso interesse é mostrar que, a despeito do uso liberal de fraseologia tradicional, o liberalismo moderno nao apenas é uma religido diferente do cristia- nismo, mas também pertence a uma classe totalmente diferente de religiéo. Mas, ao mostrar que a tentativa liberal de resgatar o cristianis- mo ¢ falsa, nao estamos mostrando que nao hé um modo de resgatd-lo de forma alguma. Pelo contrdrio, mesmo neste pequeno livro, talvez aparentemente de forma casual, veremos que nao € 0 cristianismo do Novo Testamento que est4 em conflito com a ciéncia, mas 0 suposto cristianismo da Igreja liberal moderna, e que a cidade real de Deus, e esta cidade apenas, tem defesas que s4o capazes de impedir os assaltos da incredulidade moderna. No entanto, nossa preocupaco imediata é © outro lado do problema; nossa principal preocupagao, exatamente agora, é mostrar que a tentativa liberal de reconciliar o cristianismo com a ciéncia moderna tem realmente abdicado de tudo o que é pecu- liar ao cristianismo e, assim, 0 que permanece é, em esséncia, apenas 18 Introdugao aquele mesmo tipo indefinido de aspiraco religiosa que havia no mun- do antes do cristianismo entrar em cena. Ao tentar remover do cristi- anismo tudo o que possivelmente poderia ser objetado em nome da ciéncia, ao tentar subornar o inimigo através das concess6es que este mais deseja, o apologista realmente abandona o que comegou a defen- der, Aqui, como em muitos outros departamentos da vida, parece que as coisas que 4s vezes so tidas como as mais dificeis de defender tam- bém sdo aquelas que mais valem a pena defender. Ao manter que 0 liberalismo na igreja moderna representa um retorno a uma forma nao crista e sub-crista de vida religiosa, estamos preocupados em nfo sermos mal entendidos. A designagéo “Nao cris- t4o”, nessa conexio é, as vezes, tomada como um termo pejorativo. Nao queremos dizer isto de forma alguma. Sécrates nao era um cris- t4o; porém, compartilhamos completamente do respeito com que es- tes nomes sao considerados. Eles elevam-se imensuravelmente acima da medida comum dos homens; se aquele que é 0 menor no Reino dos Céus é maior do que eles, certamente ¢ maior nao por qualquer supe- tioridade inerente, mas pela virtude de um privilégio nao merecido que deve fazé-lo humilde em vez de orgulhoso. No entanto, nao devemos permitir que tais consideragées obscu- regam a importancia vital do problema em questo. Se uma condi¢ao pudesse ser concebida na qual a pregacao da igreja devesse ser contro- lada pelo liberalismo, o que em muitas regides tem se tornado prepon- derante, entdo, cremos, 0 Cristianismo teria finalmente se extinguido da terra e o evangelho teria exalado pela tiltima vez. Se é assim, segue- se que a investigagdo com a qual estamos agora preocupados é sem duvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar. Muito mais importante do que todas as questées relacionadas os métodos de pregagao € a questao basica sobre o que deve ser pregado. Sem duvida, muitos irdo desistir impacientes da investigacéo — ou seja, todos aqueles que j4 tiraram suas conclusdes sobre a questao de tal forma que nao podem nem mesmo conceber a idéia de que ela possa ser aberta novamente. Alguns desses podem ser, por exemplo, os pietistas, °19 Cristianismo e Liberalismo dos quais ainda existem muitos. Eles dizem “qual é a necessidade de se argumentar em defesa da Biblia? Ela nao é a Palavra de Deus, ¢ nao carrega em si uma certeza imediata da sua verdade que sé poderia ser obscurecida pela defesa? Se a ciéncia entra em contradi¢ggo com a Biblia, ento pior para a ciéncia!” Temos o maior respeito por estas pessoas por- que cremos que elas esto certas no ponto principal; elas alcangaram, através de um caminho facil e direto, uma convicgdo que para outros homens sé é alcangada através do esforgo intelectual. Mas nao podemos racionalmente esperar que eles estejam interessados no que temosa dizer. Uma outra categoria de pessoas desinteressadas é muito mais nu- merosa. Ela consiste daqueles que chegaram a conclusées dia- metralmente opostas as nossas, sobre essa questo. Para esses, este pe- queno livro, se algum dia chegar em suas mfos, serd arremessado & distancia, pois se trataria simplesmente de mais uma tentativa de defe- sa de uma posicao j4 desesperadamente perdida. Existem ainda indivi- duos, eles dirdo, que créem que a terra é achatada; ha também indivi- duos que defendem o cristianismo da igreja, milagres, a doutrina da expiacao, etc.. Em todas essas situacdes, alguém dir4, o fendmeno é interessante como um exemplo curioso de atraso no desenvolvimento, mas no é nada além disso. No entanto, este fechamento da questo, quer seja reconhecido ou nao, é, em sua forma presente, baseado em uma vis4o muito imper- feita da situacdo; a sua base é uma estimativa inteiramente cxagerada dos alcances da ciéncia moderna. A investigacao cientifica, como ja foi observado, certamente tem alcangado muito; cla, em muitos aspectos, tem produzido um novo mundo. Mas existe um outro lado da figura que no deve ser ignorado. De um certo modo, 0 mundo moderno representa um aprimoramento enorme com relagio ao mundo no qual nossos ancestrais viveram; mas, em outros aspectos, ele exibe um la- mentdvel declinio. O aprimoramento mostra-se nas condigées fisicas de vida, mas, no dom{nio espiritual, hd uma perda correspondente. A perda é mais clara, talvez, no dominio da arte. A despeito da revolucao poderosa que tem sido produzida nas condigées externas da vida, ne- *20 Introdugio nhum grande poeta vive agora para celebrar a mudanga; a humanida- de subitamente emudeceu. Idos, também, esto os grande pintores, muisicos e escultores. A arte que ainda subsiste ¢ grandemente imitativa, e quando nao ¢ imitativa, normalmente é bizarra. Até mesmo a apreci- acao das glérias do passado est4 gradualmente sendo perdida sob a influéncia de uma educagio utilitdria que se preocupa apenas com a produgao do bem estar fisico. O “Esbogo da Histéria” (“Outline of History”) de H. G. Wells, com sua negligéncia desdenhosa de todas as mais altas areas da vida humana, é um livro perfeitamente moderno. Este declinio sem precedentes na literatura e arte é apenas uma manifestacao de um fenémeno maior de longo alcance; é apenas um exemplo do estreitamento na rea da personalidade que tem aconteci- do no mundo moderno. O desenvolvimento total da sociedade mo- derna tem tendido poderosamente em diregao a limitagéo do dominio da liberdade para o homem individual. A tendéncia é mais claramente vista no socialismo; um estado socialista significaria a redugdo ao mi- nimo da esfera da escolha individual. Trabalho e recreagao, sob um governo socialista, seriam ambos prescritos e a liberdade individual estaria perdida. Mas a mesma tendéncia se exibe hoje até mesmo nas comunidades onde 0 nome do socialismo é mais abominado. Quando a maioria determina que um certo regime é benéfico, este regime sem mais hesitacao é brutalmente forgado sobre o individuo. Parece que os legisladores modernos nunca se apercebem que embora o “bem estar social” seja bom, o bem estar forgado pode ser ruim. Em outras pala- vras, 0 utilitarismo estd sendo posto em pratica de acordo com suas conclusées ldgicas; no interesse do bem estar fisico, os grandes princi- pios da liberdade esto sendo implacavelmente arremessados ao vento. O resultado é um empobrecimento sem paralelo da vida humana. A personalidade sé pode ser desenvolvida no dominio da escolha indi- vidual. E este dom{nio, no estado moderno, est4 sendo devagar, mas constantemente reduzido. A tendéncia esta se fazendo sentir especial- mente na esfera da educagao. O objeto da educagao, suposto agora, éa produgao da maior felicidade para a maioria. Mas a maior felicidade °21 Cristianismo e Liberalismo para a maioria, supde-se também, sé pode ser definida pela vontade da maioria. Conseqiientemente, as caracterfsticas individuais na educa- Gao, diz-se, devem ser evitadas, e a escolha de escolas deve ser tirada do proprio pai e colocada nas maos do estado. O estado, entdo, exerce sua autoridade através dos instrumentos ao seu alcance e, a0 mesmo tem- po, conseqiientemente, a crianca ¢ colocada sob o controle de especi- alistas psicoldgicos, eles mesmos sem o menor conhecimento dos mais altos dominios da vida humana, e estes prosseguem impedindo que aqueles que estao sob seus cuidados adquiram tal conhecimento. Este resultado est4 sendo um pouco adiado na América através do rema- nescente do individualismo Anglo-Saxénico, mas os sinais dos tempos s&o todos contrarios 4 manutengao desta posigao equilibrada; a liber- dade é certamente apoiada apenas por uma estabilidade precéria quando seus princfpios fundamentais s4o perdidos. Por um tempo pareceu que © utilitarismo que entrou em voga na metade do século XIX, seria apenas uma quest4o puramente académica, sem influéncia na vida di- dria. Mas esta aparéncia provou ser uma ilusao. A tendéncia dominan- te, mesmo em um pafs como a América que antigamente se orgulhava da sua liberdade com relagdo ao regulamento burocrdtico dos detalhes da vida, ¢ em dire¢do a um utilitarismo ins{pido no qual todas as mais altas aspiragSes devem se perder. As manifestagées desta tendéncia podem facilmente ser vistas. No estado de Nebraska, por exemplo, uma lei est4 agora em vigor e, de acordo com a mesma, nenhuma instrugdo em qualquer escola no esta- do, publica ou privada, deve ser dada por intermédio de uma lingua a nfo ser o inglés, e nenhuma lingua exceto o inglés deve ser estudada, mesmo como lingua, até que a crianga passe no exame diante do supe- rintendente de educagao do municfpio, mostrando que passou na oi- tava série.” Em outras palavras, nenhuma lingua estrangeira, aparente- mente nem mesmo o latim ou grego, deve ser estudada até que a cri- anga esteja muito velha para aprendé-la bem. E deste modo que o 2 Ver Laws, Resolutions ¢ Memorials passados pelo Poder Legislativo do Estado de Nebraska na Trigé- sima Sétima Sesséo, 1919, Capiculo 249, p. 1019. °22 Introdugao coletivismo moderno lida com um tipo de estudo que é absolutamen- te essencial para todo o avanco mental genuino, As mentes das pessoas de Nebraska, e de quaisquer outros estados onde leis similares prevale- cem,? devem ser mantidas pelo poder do estado em uma condicio permanente de desenvolvimento detido. Pode parecer que, com estas leis, o obscurantismo tenha atingido a maior profundidade possfvel neste abismo. Mas este abismo é ainda mais profundo. No estado de Oregon, no Dia das Eleigées em 1922, uma lei foi passada através de um plebiscito e, de acordo com a mes- ma, requer-se que todas as criangas no estado freqiientem escolas pu- blicas. As escolas cristas e privadas, pelo menos nos nfveis elementares essenciais, foram extintas. Estas leis, que, se a indole presente das pes- soas prevalecerem provavelmente logo irdo se estender muito além dos limites de um estado,‘ significam, naturalmente, a destruicao definiti va de toda educagio real. Quando se considera o que as escolas publi- cas da América j& demonstram, em muitos lugares — seu materialis- mo, seu desencorajamento quanto a qualquer esforgo intelectual sus- tentado e seu encorajamento quanto as modas pseudo cientificas peri- gosas da psicologia experimental — sé se pode ficar atemorizado dian- te do pensamento de uma nago na qual nao hd fuga de um sistema que mata a alma. Mas 0 principio destas leis e sua tendéncia definitiva s4o muito piores do que os resultados imediatos.* O sistema ptiblico, cm si mesmo, é de fato um enorme beneficio & raga. Mas € benéfico > Compare, por exemplo, Legislative Acts da General Assembly of Ohio, Vol. cviii, 1919, ps. 614s. ¢ Acts and Joint Resolutions da General Assembly of Iowa, 1919, Capitulo 198, p. 219. + Em Michigan, uma nota similar aquela passada agora em Oregon, recentemente recebeu um voto enorme em um plebiscito, ¢ diz-se que continua pelo menos uma expressio agitada na mesma direcéo geval +O principio mal ¢ visto com clateza especial na chamada “Lusk Laws” no estado de New York. Uma delas refere-se aos professores nas escolas piiblicas. A outra prové que “Nenhuma pessoa, firma, corporagio ou sociedade deve conducir, manter ou operar qualquer escola, instituto, departamento ou curso de instrugdo em quaisquer que sejam as matérias sem fazer um requerimento ¢ ser-lhe concedido uma licenga pela universidade do estado de New York para assim conduzir, manter ou operat tal insti- tuto, escola, departamento ou curso.” Prové além que “Uma escola, instituto, departamento ou curso licenciados como provido nesta seg, devem ser sujeitos & visita pelos oficiais e empregados da univer- sidade do estado de New York.” Ver Laws of the State of New York, 1921, Vol. II, Capitulo 667, ps. 2049-2051. Esta lei é tio amplamente redigida que nao poderia ser forgada nem mesmo por todo 223 Cristianismo e Liberalismo apenas se mantido sadio a cada momento através da possibilidade ab- solutamente livre da competicao das escolas privadas. Um sistema ptiblico de escola, se isto significar a provisto de educagao gratuita para aqueles que a desejarem, é uma realizacao notdvel e benéfica dos tempos modernos; mas quando se torna um monopilio, é o instru- mento mais perfeito de tirania que ja foi inventado. A liberdade de pensamento na Idade Média foi combatida pela Inquisicao, mas 0 método moderno é muito mais eficaz. Coloque a vida de criancas em seus anos formativos, a despeito das conviccdes de seus pais, sob 0 controle intimo de especialistas designados pelo estado, force-as a fre- qiientarem escolas onde as mais altas aspiragdes da humanidade sio esmagadas e onde a mente ¢ preenchida com 0 materialismo do dia, ser4 dificil ver quanto até mesmo o remanescente de liberdade pode subsistir. Tal tirania, sustentada como é por uma técnica perversa usa- da como instrumento para destruir as mentes humanas, certamente é muito mais perigosa do que as tiranias brutas do passado que, a des- peito de suas armas de fogo e espadas, pelo menos permitiam que o pensamento fosse livre. A verdade € que o paternalismo materialista dos dias de hoje, se deixado ao seu curso natural, rapidamente ird fazer da América uma gtande “Avenida,” onde a aventura espiritual ser desencorajada e a democracia considerada algo que consiste na redugao de toda a huma- nidade as proporgées do mais estreito e menos dotado dos cidadaos. Deus conceda que haja uma reacao e que os grande princfpios da berdade anglo-saxénica possam ser redescobertos antes que seja muito tarde! Mas qualquer que seja a solugao encontrada para os problemas 0 exército alemao em sua eficiéncia pré guerta ou por toda o sistema de expionagem do Cuar. A medida cexata da aplicagio é deixada 4 sabedoria dos oficiais, ¢ os cidadios sio colocados em constante perigo daquela interferéncia intolerdvel na vida privada que uma aplicagio real da provisio sobre “cursos de instrugio em quaisquer que sejam as matérias” poderia significar. Uma das isengies é, em principio, particularmente ruim. "Nem deve tal licenga ser requerida,” a lei prové, “por escolas, agora ou no futuro, estabelecidas ¢ mantidas por uma denominagio religiosa ou seita bem reconhecida como tal quando esta segio entrar em vigor.” Uma pessoa pode certamente se regozijar quanto & existéncia livre das igrejas, no presente, dada a ameaga envelvida na lei, Mas, em prinelpio, a limitagio da isensio as igrejas existentes realmente vai contra a idéia fundamental de liberdade religiosas porque levanta uma distingdo entre celigides estabelecidas ¢ aquelas que nao sio estabelecidas, Sempre houve tolerancia, 024 Introdugéio educacionais e sociais de nosso préprio pais, uma condigao lamentdvel deve ser detectada no mundo em geral. Nao se pode negar que gran- des homens sao poucos ou nao existentes e que tem havido uma redu- fo da drea da vida pessoal. A melhoria material tem andado de maos dadas com o declfnio espiritual. Esta condigao do mundo deve causar a escolha entre o modernis- mo e 0 tradicionalismo, entre o liberalismo e conservadorismo, a se- rem abordados sem qualquer um dos preconceitos muitas vezes mos- trado. Na visao dos lamentdveis defeitos da vida moderna, um tipo de religido certamente nao deveria ser recomendado simplesmente por- que é moderno, ou condenado porque é antiquado. Ao contrario, a condigao da humanidade é tal que uma pessoa pode muito bem per- guntar o que fez os homens das geragées passadas tao grandes e os homens da geragao presente tao pequenos. No meio de todas as reali- zagdes materiais da vida moderna, pode-se muito bem questionar se ao ganhar o mundo todo nao perdemos a nossa prépria alma. Estamos condenados para sempre a viver a vida sérdida do utilitarismo? Ou ha algum segredo perdido que, se redescoberto, pode restaurar & humani- dade algo das glérias do passado? Este segredo, 0 escritor deste pequeno livro descobriu na religiao cristé. Mas, com certeza, a religiao cristé que falamos nao é a religiao da igreja moderna liberal, e sim a mensagem da graga divina, quase esquecida agora assim como na Idade Média, mas destinada a brotar mais uma vez no bom tempo de Deus, em uma nova Reforma, e trazer luze liberdade 4 humanidade. Como é 0 caso de qualquer definicao, o «jue esta mensagem é, pode se tornar claro apenas através da exclusao, do contraste. Ao apresentarmos o liberalismo corrente, agora quase dominante na igreja, contra o cristianismo, nao estamos animados apenas pela polémica ou imbuidos de um espirito meramente negati- vo. Por outro lado, ao mostrarmos 0 que 0 cristianismo nao é, espera- mos ser capazes de mostrar o que o cristianismo é, a fim de que os homens possam ser conduzidos a voltarem-se dos elementos pobres ¢ tracos ea refugiarem-se novamente na graca de Deus. 25 Caprruto IT Doutrina O liberalismo moderno na igreja, qualquer que seja o julgamento que fizermos sobre 0 mesmo, nao é mais meramente um assunto acadé- mico. Nao € mais simplesmente um assunto relegado aos semindrios teoldgicos ou universidades. Pelo contrario, seu ataque aos fundamen- tos da fé crista est4 sendo conduzido vigorosamente através de “licdes” de Escola Dominical, do pulpito, e da imprensa religiosa. Se este ataque fosse injustificado, o remédio nao seria encontrado, como algumas pes- soas devotas tem sugerido — na aboligao dos semindrios teoldgicos ou no abandono da teologia cientifica, mas preferivelmente em uma busca mais séria da verdade e em uma devogao mais leal a ela quando fosse encontrada. No entanto, nos semindrios teoldgicos ¢ universidades as raizes do grande tema sao mais claramente vistas que no mundo em geral; entre os estudantes, 0 uso tranqililizador das frases tradicionais & freqiientemente abandonado, e os advogados de uma nova religizo nao esto preocupados, como acontece na igreja em geral, em manter uma aparéncia que se harmonize com o passado. Estamos convencidos que esta franqueza deve ser estendida as pessoas como um todo. Nao existe maior exagero, hoje, do que aquele desejo colocado em prdtica, por mestres religiosos, de “evitar fender”. Freqitentemente, este desejo tem chegado perigosamente préximo 4 desonestidade; o mestre religioso, cm seu intimo, é bem ciente do radicalismo das suas visGes, mas nao deseja abdicar do seu lugar na atmosfera santificada da igreja ao falar claramente tudo o que vai em sua mente. Contra esta politica de supres- so ou encobrimento, nossas simpatias estdo totalmente com aqueles homens, radicais ou conservadores, que tém uma paix4o pela luz. Cristianismo e Liberalismo Quando todas as frases tradicionais foram desmanteladas, qual serd, basicamente, o verdadeiro significado da presente revolta contra os fundamentos da f€ crista? Em resumo, quais sio mesmo os ensinamentos do liberalismo moderno contra os ensinos do Cristia- nismo? Logo no infcio encontramos uma objecao. Ouvimos dizer que os “ensinamentos nao sao importantes; a exposi¢ao dos ensinamentos do liberalismo e do Cristianismo, conseqitentemente, nado podem esti- mular interesse nos dias de hoje; os credos sio meramente a expresso da mudanga de uma experiéncia crista singular, e visto que apenas expressam esta experiéncia, todos sao igualmente bons. Os ensinamentos do liberalismo, por esta razdo, podem ser removidos dos ensinamentos do Cristianismo histérico na medida do possivel, porém os dois podem, no fundo, ser iguais.” Este € 0 modo no qual freqiientemente se expressa a hostilidade moderna a questo da “doutrina.” Mas a objecio é realmente feita & doutrina como tal ou, antes, a uma doutrina espectfica, em favor de outra qualquer ? Indubitavelmente, em muitas formas de liberalismo, €a ultima alternativa que se aplica. Existem doutrinas do liberalismo moderno, que sdo tao teimosa e intolerantemente sustentadas como quaisquer doutrinas que encontram lugar nos credos histéricos. Gomi Zz & ° Zz e 8 Bh 3 & 3 g 3 3 8 a & s 2 9 gia, o pregador, muitas vezes, simplesmente faz objegao a um sistema de teologia em favor de outro. E a imunidade desejada quanto & con- trovérsia teolégica nao foi ainda alcangada. Algumas vezes, no entanto, a objegdo moderna a doutrina é mais seriamente pretendida. E, quer seja bem fundamentada ou nao, o sig- nificado real deveria, pelo menos, ser encarado. Este significado é perfeitamente claro. A objegao envolve um ceti- cismo completo, Se todos os credos sao igualmente verdadeiros, en- *28 Doutrina (Bo, visto que s4o contraditérios uns aos outros, s40 todos igualmente falsos ou, pelo menos, igualmente incertos. Conseqiientemente, esta- mos nos entregando a um mero jogo de palavras. Dizer que todos os credos sao igualmente verdadeiros ¢ que esto baseados na experiéncia é simplesmente retroceder ao agnosticismo que hd cinqiienta anos foi considerado como 0 inimigo mais fatal da igreja. O inimigo nao se tornou realmente um amigo s6 porque foi recebido dentro do acam- pamento. A concepcao de credo do Cristianismo é muito diferente. De acordo com a concepgao crista, um credo nao é uma mera expres- sao da experiéncia crista, mas, pelo contrério, é um exposigdo dos fatos sobre os quais a experiéncia é baseada. Alguém poderd dizer que o Cristianismo é vida e nao doutrina. Essa afirmagao, ouvida com freqiiéncia, tem a aparéncia de santidade. Mas é radicalmente falsa, e para detectar sua falsidade nao é necessdrio ser cristao. Porque dizer que o “Cristianismo é vida” é fazer uma afir- magao na esfera da histéria. A afirmagao nao repousa na esfera dos ideais; é muito diferente de dizer que o Cristianismo deve ser vida, ou que a religiao ideal é vida. A afirmagao de que o Cristianismo é vida cst sujeita & investigagao histérica exatamente como a afirmagao de que o Império Romano sob Nero era uma democracia livre. Possivel- mente, o Império Romano sob Nero teria sido melhor se tivesse sido uma democracia livre, mas a questo histérica é simplesmente se, na verdade, foi uma democracia livre ou nao. O Cristianismo é um fend- «cno histérico, assim como o Império Romano, o Reino da Priissia, ou os Estados Unidos da América. E, como um fenédmeno histérico, deve ser investigado com base na evidéncia histérica. Entao, é verdade que 0 Cristianismo nao é doutrina, mas vida? A «esto 86 pode ser estabelecida através de um exame do princfpio do Cristianismo. O reconhecimento do fato nao envolve qualquer aceita- gio da f€ crist4; é meramente uma questao de bom senso e de honesti- dade, No Contrato Social de qualquer empresa se colocam os objeti- vos sociais daquele empreendimento. Talvez existam objetivos mais desejaveis do que aqueles, mas se os diretores usarem 0 nome e os 229 Cristianismo e Liberalismo recursos da empresa para perseguirem os outros objetos, estarao exce- dendo a autoridade que lhes foi concedida pela corporacio. Assim acontece com o Cristianismo. E perfeitamente concebfvel que os ini- ciadores do movimento cristao nao tivessem o direito de legislar para as geracdes subseqiientes; mas, de qualquer modo, eles tinham um direito inalienavel de legislar para todas as geracées que escolhessem carregat 0 nome de “cristas.” £ concebivel que o Cristianismo possa, agora, ter de ser abandonado e substituido por outra religido; mas, de qualquer modo, a quest4o quanto o que é 0 Cristianismo sé pode ser determinada por um exame do seu inicio. Este inicio do Cristianismo constitui um fendmeno histérico cla- ramente definido. O movimento cristao originou-se poucos dias de- pois da morte de Jesus de Nazaré. fi duvidoso que qualquer coisa pre- cedente a morte de Jesus possa ser chamada de Cristianismo. De qual- quer modo, se o Cristianismo existia antes do evento, era apenas um Cristianismo em um estdgio preliminar. O nome originou-se apdés a morte de Jesus, e a propria idéia era também algo novo. Evidentemen- te houve um importante novo injcio entre os discfpulos de Jesus em Jerusalém depois da crucificag4o. Neste tempo deve ser colocado o inicio do notdvel movimento que se espalhou de Jerusalém para o mun- do gentilico — o movimento que é chamado de Cristianismo. Muita informagao histérica especifica foi preservada, sobre os pri- meiros estdgios deste movimento, nas Epistolas de Paulo, que séo con- sideradas por todos os historiadores sérios como produtos genuinos da primeira gerac&o crista. O escritor das Epistolas esteve em comunica- Gao direta com os amigos intimos de Jesus que comecaram 0 movi- mento crist4o em Jerusalém e, nas Epistolas, ele deixa abundantemen- te claro qual era o cardter fundamental do movimento. Mas se um fato é claro, baseado nesta evidéncia, é 0 de que 0 movi- mento cristo, no seu inicio, no era apenas um modo de vida no sentido moderno, mas um modo de vida baseado em uma mensagem. Ele nao foi baseado em meros sentimentos, em um mero programa de trabalho, mas em um relato de fatos. Em outras palavras, ele foi baseado em doutrina. °30 Doutrina Certamente, em considerag4o ao préprio Paulo, nao deveria ha- ver debate; Paulo certamente ndo era indiferente 4 doutrina; pelo con- trdtio, doutrina era a propria base da sua vida. E verdade que sua devo- 40 & doutrina nao o fez incapaz de possuir uma tolerancia magnani- ma. Um exemplo notdvel desta tolerancia é encontrado durante sua prisao em Roma, como atesta a Epistola aos Filipenses. Aparentemen- te, certos mestres cristéos em Roma estavam enciumados por causa da grandeza de Paulo. Enquanto Paulo esteve em liberdade, eles haviam sido obrigados a assumirem um segundo lugar; mas agora que Paulo estava preso, se apoderaram da supremacia. Eles buscavam causar afli- ¢40 a Paulo em seus vinculos; pregavam a Cristo por inveja e rivalida- de. Resumindo, os pregadores rivais fizeram da pregacao do evangelho um meio de gratificago da ambi¢ao pessoal baixa; isto parece ter sido um negécio tao desprezivel quanto poderia ser concebido. Mas Paulo no se perturbou. “Uma vez que Cristo, de qualquer modo, est4 sendo pregado,” ele disse, “quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo, sim, sempre me regozijarei” (Fp 1.18). O modo no qual a pregagao estava sendo conduzida estava errado, mas a men- sagem, em si mesma, era verdadeira; e Paulo estava muito mais inte- ressado no contetido da mensagem do que no modo da sua apresenta- cao. E impossivel conceber uma posigao de tolerancia mais admirdvel. Mas a tolerancia de Paulo nfo era indiscriminada. Ele nao mos- trou tolerancia, por exemplo, na Galdcia. L4, também, havia pregado- res tivais. Mas Paulo nfo teve tolerancia com eles. “Mas”, disse ele, “ainda que nés ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vd além do que vos temos pregado, seja andtema” (GI 1.8). Qual é a razao para a diferenga na atitude do apéstolo nos dois casos? Qual é a razdo para a ampla tolerancia em Roma, e os violentos andtemas na Galdcia? A resposta é perfeitamente clara. Em Roma, Paulo foi tole- rante porque Ié 0 contetido da mensagem que estava sendo proclama- da pelos mestres rivais era verdadeiro; na Galdcia ele foi intolerante porque o contetido da mensagem rival era falso. Em nenhum dos dois casos as personalidades tiveram algo a ver com a atitude de Paulo. Nao o31 Urisnanismo e Liberalismo hd duvida alguma de que os motivos dos judaizantes na Galacia esta- yam longe de serem puros ¢, de uma forma incidental, Paulo apontaa impureza. Mas isto nfo foi a base da sua oposigao. Nao ha ditvida de que os judaizantes estavam longe da perfei¢ao, mas a oposigao de Pau- lo a eles teria sido exatamente a mesma se todos eles fossem anjos do céu. Sua oposi¢ao foi completamente fundamentada na falsidade do seu ensino; eles estavam substituindo o verdadeiro evangelho por um falso evangelho que nao era evangelho de forma alguma. Nunca ocor- reu a Paulo que um evangelho podia ser verdadeiro para uma pessoa e nao para outra; a ferrugem do pragmatismo nunca havia atacado sua alma. Paulo estava seguro da verdade objetiva da mensagem do evan- gelho e a devogao a esta verdade foi a grande paixao de sua vida. O Cristianismo para Paulo nfo era apenas vida, mas também doutrina e, logicamente, doutrina vinha em primeiro lugar.’ Mas qual era a diferenga entre o ensino de Paulo e 0 ensino dos judaizantes? O que foi que levantou a estupenda polémica da Episto- la aos Gélatas? Para a igreja moderna, a diferenga pateceria ser uma mera sutileza teoldgica. Os judaizantes concordavam perfeitamente com Paulo em muitas coisas. Eles criam que Jesus era o Messias; nao hd sombra de evidéncia de que eles fizessem objegao & visdo sublime de Paulo da pessoa de Cristo. Sem a menor duvida, eles criam que Jesus havia realmente ressuscitado de entre os mortos. Além disso, criam que a fé em Cristo era necessdria para a salvagdo. Mas 0 proble- ma era que eles criam que algo mais era também necessdrio; criam que o que Cristo havia feito deveria ser completado pelo préprio es- forgo do crente em manter a Lei. A partir do ponto de vista moder- no, a diferenga pareceria muito pequena. Paulo, assim como os judaizantes, cria que a manutengo da lei de Deus, em seu mais pro- fundo entendimento, estava inseparavelmente conectada 2 fé. A dife- “1 Ver, do autor, The Origin of paul religion (A Origem da Religifo de Paulo}, 1921, p. 168,Nio se defende que doutrina para Paulo vinha temporariamente antes de vida, mas apenas que vinha logicamente em primeiro lugar. Aqui deve ser encontrada a tesposta para a objego que o Dr, Lyman Abbott levan- tou contra a afirmativa colocada no livro The Origin of paul’ religion. Ver a revista The Outlook, vol. 132, 1922, ps. 104s. *32 Doutrina renga relacionava-se apenas 4 ordem Iégica — nem mesmo, talvez, temporal — dos trés passos. Paulo dizia que o homem (1) primeiro cré em Cristo, (2) entao € justificado diante de Deus, (3) entao ime- diatamente passa a manter a Lei de Deus. Os judaizantes diziam que o homem (1) cré em Cristo e (2) mantém a Lei de Deus da melhor forma posstvel e, entao (3) é justificado. A diferenca pareceria aos cristaos “praticos” modernos como sendo uma questao altamente su- tile intangfvel, dificilmente digna de consideracao na visdo da medi- da ampla de concordancia no dominio pratico. Que espléndida lim- peza das cidades gentilicas teria sido se os judaizantes tivessem obtido sucesso em estender a elas a observacao da Lei Mosaica, incluindo até mesmo a infeliz observancia cerimonial! Com certeza Paulo deveria ter se unido aos mestres que concordavam em quase tudo com ele; certamente ele deveria ter aplicado a eles 0 grande princfpio da uni- dade crista. Na realidade, no entanto, Paulo nao fez nada disto; e s6 porque ele (e outros) nao fizeram nada disto € que a igreja Crista existe nos dias de hoje. Paulo via com muita clareza que a diferenga entre os judaizantes e si mesmo era a diferenca entre dois tipos inteiramente distintos de religido; era a diferenga entre uma religido de mérito e uma religiao de graca. Se Cristo prové apenas uma parte da nossa sal- vago, levando-nos a prover o resto, entdo ainda estamos sem esperan- ¢a sob 0 fardo do pecado. Porque nao importa quao pequeno seja o desfiladeiro que deve ser atravessado antes da salvacio ser alcancada, a consciéncia despertada vé claramente que a nossa tentativa miserdvel de bondade é insuficiente até mesmo para transpor o desfiladeiro. A alma culpada entra novamente em uma avaliagéo sem esperanga com Deus, para determinar se temos realmente feito a nossa parte. E, as- sim, gememos novamente sob a velha escravidao da lei. Paulo via cla- ramente que esta tentativa de completar a obra de Cristo através de nosso préprio mérito era a prépria esséncia da incredulidade; Cristo fard tudo ou nada, ¢ a nica esperanca € nos atirarmos sem reservas na sua misericérdia e confiarmos nele para tudo. *33 Cristianismo e Liberalismo Paulo, com certeza, estava certo. A diferenga que o separava dos judaizantes nao foi uma mera sutileza teolégica, mas relacionava-se a0 proprio coragao e ao cerne da religiéo de Cristo. Como diz 0 hino “Tal como estou sem nenhuma defesa, mas que o Teu sangue foi derrama- do por mim” *™ — era isso que Paulo estava defendendo na Galdcia; este hino nunca teria sido escrito se os judaizantes tivessem vencido. E sem 0 conceito expresso neste hino, nao ha Cristianismo. Com certeza, entao, Paulo nao estava advogando uma religiao sem dogmas; acima de qualquer outra coisa, ele estava interessado na ver- dade objetiva e universal da sua mensagem. Isto, provavelmente, sera admitido por historiadores sérios, nao importa quais sejam as suas ati- tudes com relacao a religido de Paulo. Algumas vezes, de fato, o prega- dor liberal moderno procura produzir uma impressao oposta citando palavras de Paulo fora do seu contexto, as quais ele interpreta de uma forma t4o distante quanto possivel do sentido original. A verdade é que € dificil abrir m&o de Paulo. O liberal moderno deseja produzir sobre as mentes dos cristaos simples (e sobre sua prépria mente) a impressdo de algum tipo de continuidade entre o liberalismo moder- no e 0 pensamento e vida do grande Apéstolo. Mas esta impressao é totalmente ilusdria, Patlomnaorestavalinteressadoimeramente\nosiprin- cfpios éticos de Jesus; ele nao estava interessado simplesmente nos prin- cipios gerais da religido ou da ética. Pelo contrdrio, ele estava interessa- do na obra redentora de Cristo ¢ no seu efeito sobre nds. Seu principal interesse era a doutrina crista, e nZo apenas nos pressupostos da dou- trina crista, mas no seu cerne. Se o Cristianismo deve se tornar inde- pendence de doutrina, entao 0 “Paulinismo” deve ser removido da raiz e das ramificagdes do Cristianismo. Mas, e daf? Alguns homens nao temem a conclusao. Se o “Paulinismo” deve ser removido, dizem, podemos avangar sem ele. Serd que ao introduzir um elemento doutrindrio na vida da igreja, Paulo nao estiva apenas pervertendo um Cristianismo primitivo que era tao ¥T Esta é a traducao literal do hino, originalmente em inglés, Tal! Como stow (Despreendimento), 2.217 do Hindrio Novo Cantico, Ed. Cultura Crista °34 Doutrina independente de doutrina como o pregador liberal moderno deseja ? Esta sugestdo é claramente rejeitada pela evidéncia histérica. O problema certamente nao pode ser resolvido de uma forma tao sim- ples. Na realidade, muitas tentativas tem sido feitas para separar drdsticamente a religiao de Paulo da religiéo da igreja primitiva de Jerusalém; muitas tentativas tém sido feitas para mostrar que Paulo introduziu um principio inteiramente novo no movimento cristo ou que até mesmo foi o fundador de uma nova religido.? Mas todas estas tentativas resultaram em fracasso. As préprias epistolas Paulinas ates- tam uma unidade fundamental de princfpios entre Paulo ¢ os compa- nheiros originais de Jesus, ¢ toda a histéria primitiva da igreja se torna ilegivel exceto com base nesta unidade. Com certeza, com relacgao ao caréter fundamentalmente doutrindrio do Cristianismo, Paulo nao foi inovador. O fato aparece em todo o carater do relacionamento de Pau- lo com a igreja de Jerusalém como ¢ atestado pelas epistolas, e aparece também com clareza impressionante na preciosa passagem em 1 Co 15.3-7, onde Paulo resume a tradi¢ao que ele havia recebido da igreja primitiva. O que forma, entdo, o contetido do ensino primitivo? Eo principio geral da paternidade de Deus ou da irmandade do homem? E uma admiragio vaga pelo cardter de Jesus como o que prevalece na igreja moderna? Nada poderia estar mais distante do fato. “Cristo morreu pelos nossos pecados”, disseram os discipulos primitivos, “se- gundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segun- do as Escrituras”, Desde o inicio, o evangelho cristo, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia do relato de algo que havia acontecido. E, desde o inicio, o significado do acontecimen- to foi apresentado; e quando o significado do acontecimento foi apre- sentado, houve, entao, doutrina crista. “Cristo morreu”— isto é hist6- ria; “Cristo morreu pelos nossos pecados”— isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em uniao absolutamente indissolivel, nao ha Cristianismo. 7 Alguns relatos destas tentativas foram fornecidos pelo escritor do presente livro no The Origin of Paul's Religion, 1921. 235 Uristianismo e Liberalismo Entao, é perfeitamente claro que os primeiros missiondrios nao se apresentaram simplesmente com uma exortacio; eles nao disseram: “Jesus de Nazaré viveu uma vida maravilhosa de piedade filial, e nds os convidamos, nossos ouvintes, a se renderem, como nds fizemos, 4 magia daquela vida.” Certamente isto é 0 que os historiadores modernos te- riam esperado que os primeiros missiondrios cristaos dissessem, mas devem admitir que, na realidade, eles nao disseram nada parecido. Apés a catdstrofe da morte de Jesus, os seus primeiros discfpulos pode- riam, possivelmente, ter se engajado em meditacao serena sobre 0 seus ensinamentos. Eles poderiam ter dito a si mesmos que “Nosso Pai que estas nos céus” era um bom modo de se dirigirem a Deus, embora aquele que os havia ensinado aquela oragao estivesse morto. Eles po- deriam ter-se apegado aos principios éticos de Jesus e guardado no coragdo a esperanga vaga de que aquele que havia enunciado tais prin- cipios tinha alguma existéncia pessoal além do timulo. Tais reflexdes podem parecer muito naturais ao homem moderno. Mas para Pedro, Tiago e Joao, elas certamente nunca ocorreram. Jesus havia cultivado neles altas esperangas; estas esperangas foram destrufdas pela Cruz; e as reflexes nos princfpios gerais da religido e da ética eram completa- mente impotentes para restaurarem suas esperangas novamente. Os discipulos de Jesus evidentemente haviam sido muito inferiores ao seu Mestre em todos os modos posstveis; eles nado haviam entendido seu ensino espiritual sublime. Até mesmo na hora da crise solene, haviam discutido sobre a ocupagio dos cargos principais no Reino porvir. Que esperanca havia que tais homens pudessem obter sucesso quando seu Mestre havia falhado? Mesmo enquanto Ele estava com cles, haviam sido impotentes; e agora que Ele havia sido tirado deles, o pequeno poder que podiam ter tido, estava destrufdo.3 Porém, aqueles mesmos homens, fracos e desencorajados, dentro de poucos dias apds a morte de seu Mestre, institufram 0 movimento espiritual mais importante que o mundo ja viu. O que produziu esta mudanga surpreendente? O que transformou os discfpulos fracos e > Compare History and Faith, 1917 (cceditado do Princeton Theological Review de Julho, 915), ps. 10s. ° 36 Doutrina covardes em conquistadores espirituais do mundo? Evidentemente nao foi a simples meméria da vida de Jesus, visto que esta era uma fonte de tristeza em vez de alegria. Obviamente os discipulos de Jesus, dentro dos poucos dias entre a crucificacao e 0 inicio de sua obra em Jerusa- lém, receberam algum novo equipamento para sua tarefa. O que este novo equipamento era, pelo menos o elemento externo e considerdvel nele (para nao dizer do dom que os homens cristos créem ter recebi- do no Pentecostes), é perfeitamente claro. A grande arma com a qual os discipulos de Jesus comegaram a conquistar o mundo no era uma simples compreensao dos principios eternos; era uma mensagem his- térica, um relato de algo que havia acontecido recentemente, era a mensagem, “Ele ressuscitou”.* A mensagem da ressurreig&o nfo estava isolada. Ela estava conectada 4 morte de Jesus, vista agora nao como um fracasso, mas como um ato triunfante da graca divina; estava conectada a todo o aparecimento de Jesus na terra. A vinda de Jesus foi entendida agora como 0 ato de Deus pelo qual os homens eram salvos. A igreja primitiva estava inte- ressada nao apenas no que Jesus havia dito, mas, também, e principal- mente, no que Ele havia feito. O mundo deveria ser redimido através da proclamagao de um evento. E com o evento estava o seu significa- do; e a apresentagao do evento com o seu significado é doutrina. Estes dois elementos esto sempre combinados na mensagem crista. A nar- ragao dos fatos é histéria; a narragdo dos fatos com o significado dos mesmos € doutrina. “Sofreu sob Péncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”— isto ¢ histéria. “Ele me amou e se deu por mim”— isto é doutrina. Assim era o Cristianismo da igreja primitiva. “Entretanto”, pode ser dito, “mesmo se 0 Cristianismo da igreja primitiva fosse dependente da doutrina, nés ainda podemos nos eman- cipar de tal dependéncia; podemos recorrer da igreja primitiva ao proprio Jesus. J4 foi admitido que se a doutrina for abandonada, Paulo deve ser abandonado; agora pode-se admitir que se a doutrina “Compare A Rapid Survey of the Literature and History of New Testament Times, publicado pelo Presbyterian Board of Publication e Sabbath School Wark, Livro Texto do Aluno, ps. 42s. Cristianismo e Liberalismo for abandonada, até mesmo a igreja primitiva de Jerusalém, com sua mensagem de ressurreigao, deve ser abandonada. Mas ainda pode- mos encontrar no préprio Jesus a religido simples, nao doutrindria que desejamos.” Este é 0 significado real do slogan moderno, “De volta a Cristo”, Devemos realmente dar um passo como este? Certamente seria um passo extraordindrio. Uma grande religiao derivou seu poder da mensagem da obra redencora de Cristo; sem esta mensagem, Jesus e seus discipulos teriam sido esquecidos em pouco tempo. A mesma mensagem, com suas implicagGes, tem sido 0 prdprio coragao e alma do movimento cristo por todos os séculos. Porém, agora somos con- vidados a crer que aquilo que deu poder ao Cristianismo por todos os séculos era uma tolice, que os originadores do movimento se equivo- caram radicalmente quanto ao significado da vida e obra de seu Mes- tre, e que foi deixado a nds, modernos, a primeira nogao do erro inici- al. Mesmo se esta visio do caso fosse correta, e mesmo se © préprio Jesus tivesse ensinado uma religiao como o liberalismo moderno, ain- da seria duvidoso que esta religiéo pudesse corretamente ser chamada de Cristianismo; porque o nome cristao foi primeiramente aplicado sé depois que a suposta mudanga decisiva havia acontecido, e é muito duvidoso que um nome que, por dezenove séculos, tem tido uma co- nex4o tao firme com uma religiao, devesse agora, subitamente, ser aplicado a outra. Se os primeiros discipulos de Jesus realmente se afas- taram tao radicalmente de seu Mestre, entdéo a melhor terminologia provavelmente nos levaria a dizer simplesmente que Jesus nao foi o fundador do Cristianismo, mas de uma religiao simples, nado doutri- ndria, hd muito esquecida, mas redescoberta agora pelos homens mo- dernos. Assim mesmo, o contraste entre o liberalismo ¢ 0 Cristianis- mo ainda apareceria. Na realidade, este estado estranho de assuntos nao prevalece de forma alguma. Nao é verdade que ao basearem o Cristianismo em um evento, os discfpulos de Jesus estavam se afastando dos ensinamentos de seu Mestre. Porque, com certeza, 0 préprio Jesus fez 0 mesmo. °38

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