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oe : : “Teorias do Radio - ">| e contextos O diferencial da cegueira: estar além dos limites dos corpos' Rudolf Arnheim xiste uma lei geral de economia na Arte que estabelece que nada deve ser admitido numa obra que nao seja essencial para a sua forma. E claro que existem obras de arte de uma profusao extravagante, amplamente narradas, tao ricas em figuras e imagens como a propria natureza - mas nestes casos esta profusao é um efeito exigido pela criacéo: nao é excessiva e nem carne morta. Nenhum detalhe deve ser adicionado a obra por sua propria existén- cia individual; tudo deve estar em funcao de um efeito perseguido. O enquadramento de uma pintura nado deve ser apenas um limite aci- dental (porque mesmo a maior pintura deve comecar e terminar em algum ponto); todo 0 personagem deve ter um papel numa peca de teatro; na composicao musical nenhum instrumento deveria ter uma funcao apenas complementar. E justamente este carater indispensa- vel de cada uma de suas partes que torna a obra de arte diferente da realidade. Mas a economia na arte nao caracteriza apenas a sua criacao; ha também uma economia na sua fruicao. E claro que ha um certo tipo insuportavel de critico, que ao se deparar com uma obra de arte, usa a sua ‘imaginacao’: vé unicamente nela 0 critério para julga-la, e avalia o trabalho de acordo com o grau em que este ‘excita’ ou nado a imaginacao. De certo, toda obra de arte deveria ‘ir além de si mesma’, tao longe quanto num caso particular qualquer se retrata algo universal ~no destino de um homem o destino do género humano; na dinamica de um movimento de sinfonia, a batalha do forte contra o fraco — mas 0 consumidor desta arte nao tem de forma alguma o direito de suple- mentar a obra cm si mesma ou enitav Ue descuusiderar as limitacoes ‘Traducdo de Eduardo Meditsch a partir da versdo inglesa de Margaret Ludwig e Herbert Head (“In Praise of Blindness: Emancipation from the Body” in Radio, London, Faber & Faber, 1936), confrontada com a versdo espanhola de Manuel Figueras Blanch (“Elogio de la ceguera: liberacién de los cuerpos” in Estética Radiofonica, Barcelona, Gustavo Gili, 1980) «a essenciais da representacao. Faz melhor ao se restringir estritamente ao que 0 artista lhe oferece, pois deve respeitar as escolhas feitas em um arco de possibilidades — este é um elemento essencial da compo- sicdo artistica - e nao complementa-las por sua propria frivolidade imaginativa. Esta adverténcia é especialmente necessaria para a compreen- sao da nova forma de arte criada pelo radio, e para que este uso do meio evolua, superando o senso comum, numa direcao mais promis- sora. Aarte radiofonica parece sensorialmente deficiente e incomple- ta diante das outras artes - porque ela nao conta com o nosso sentido mais importante, que € a visao. Nos filmes mudos a falta da fala € menos notada, pelo fato de que a visdo fornece por si s6 uma imagem bem mais compreensiva do mundo. Uma pintura certamente nao nos faz pensar que estamos surdos, pois ela aparece, ainda que numa extensdo menor do que o filme, como um pedaco da realidade. Ela € uma representacao muito distante do mundo material, o que faz com que nao apliquemos os standards da situacdo natural para interpreta- la. Por outro lado, no radio, 0 pecado da omissao € muito mais expli- cito. O olho sozinho da uma imagem bastante completa do mundo, mas 0 ouvido sozinho fornece uma imagem incompleta. Portanto, tor- na-se uma grande tentacao para 0 ouvinte ‘completar’ com sua pr6- pria imaginacao 0 que esta ‘faltando’ tao claramente na transmissao radiofonica. E, no entanto, nada lhe falta! Pois a esséncia do radio consiste justamente em oferecer a totalidade somente por meio sonoro. Nao no sentido exterior, de incompletude, segunda a visao naturalista, mas fornecendo a esséncia de um evento, uma idéia, uma representacao. Todo o essencial esta 14 - e neste sentido um om programa de radio é completo. Pode-se discutir se 0 mundo sonoro € rico o suficiente para nos fornecer representagées auténticas da vida, mas se concor- darmos com isso, mesmo com reservas, nado pode restar nenhuma duvida de que o visual deve ser deixado de lado, e que nao deve nem mesmo ser contrabandeado através do poder de imaginacao visual do ouvinte. As estatuas nao precisam ser pintadas na cor da pele, e um programa de radio também nao precisa se fazer visivel. O artista de radio deve desenvolver a maestria de limitar-se ao audivel. O que mede 0 seu talento € a capacidade de produzir 0 efeito desejado apenas com os elementos sonoros, ¢ nao a possibidade de inspirar os ouvintes a complementarem a falta de imagem adicionan- do vida ou realismo. Pelo contrario: se a obra demanda tal suplemen- taco é porque € ruim, nao alcancou seus objetivos por seus proprios meios, teve um efeito incompleto. 62 O diferen Arnheim A preponderancia sensorial do visivel sobre 0 audivel é tao gran- de que é muito dificil aceitar 0 mundo sonoro como algo mais que uma complementacao ao visual. No que diz respeito A producdo de radio, ja virou senso comum a idéia expressa pelo doutor von Boeckmann, entao um dos dirigentes da radio alema, num congresso realizado em Cassel em 1929: “...como um resultado desta educacao auditiva, nés conseguimos uma completamente inacreditavel ativacdo e intensificacéo da imaginacao. Através do radio, 0 ouvinte experimenta a cada dia momentos de profunda concen- tracdo gracas a verdadeira onipoténcia da palavra e de sua forca de descricao. Eu sustento que 0 ouvinte treinado nes- ta concentracao vai mais além, na traducdo das impres- sdes auditivas em imagens pictoriais, do que ele faz com o mais naturalista dos palcos. Quando se consegue produ- zir uma impressao auditiva acusticamente correta, entao, senhores, se pode sugerir 0 que se quiser ao ouvinte, ele extraira a imagem requisitada de dentro dela, inclusive numa quarta dimensao.” Como demonstraremos, esta opiniao é exatamente oposta A nos- sa. At€é que ponto 0 ouvinte médio produz imagens visuais suple- mentares ¢ matéria para uma grande pesquisa. Provavelmente, ele 0 faz numa consideravel extensao, porque, como ja dissemos, a situa- cao pouco usual de apenas ouvir compele, pelo menos num primeiro momento, a buscar suplementar este ouvir com impress6es visuais. Mas isso nao significa que esta rara e pouco natural situacdo nao possa se tornar proveitosa, com um valor acrescentado. Nés vamos tentar provar isso. Vista sob 0 ponto de vista radiofonico, deve-se ter claro que a necessidade do ouvinte de imaginar com o olho interior nao deve ser valorizada mas, ao contrario, é um grande obstaculo para uma apreciacéo da natureza real da expressao radiofénica e para as vantagens particulares que sé ela pode oferecer. O radiodrama, ainda que abstrato e irreal, é capaz de criar um mundo inteiro e completo em si mesmo, com 0 material sensorial de que dispde - um mundo em si mesmo que nao parece prejudicado ou dependente de suplementacao por alguma coisa externa como 0 vi- sual — 0 que se torna compreensivel quando se 0 compara com uma transmissao externa ou uma reportagem. O radioteatro é auto-sufici- ente, completo em si mesmo apenas com 0 auditivo: ja a transmissao de uma 6pera, de uma peca de palco, de um espetaculo de danea, de as Teorias do Radio - Textos ¢ conte: uma corrida, uma celebracdo ou um jogo, avaliada pelo som que sai do alto-falante, aparece como sendo apenas uma parte de um enun- ciado mais completo cuja percepcao é negada ao ouvinte. Nao somen- te porque ouve sons emitidos em um espace pouco adequado, 0 que faz com que grande parte dos mesmos se percam por reverberacao, nem tampouco porque as vozes e amuisica sejam ouvidas a distancia, resultando impossivel uma audicao normal, por mais atenta que es- teja; em tais transmissoes, 0 audivel representa apenas uma parte, na fungao destinada a ele na vida real em que funcionam conjunta- mente todos os sentidos, e frequentemente 0 significado total se torna incompreensivel porque o que é essencial nao foi apresentado de uma maneira suficientemente completa que permitisse esquecet tudo 0 que nao fosse som. O vazio actstico, 0 silencio sobre 0 qual 0 som é€ colocado, nao representa um fundo neutro e sem contenido mas, no caso, um inquietante lugar onde se produzem importantes aconteci- mentos, que ficam além da capacidade de compreensao do ouvinte. Dai porque 0 ouvinte, no radiodrama, tenha a sensacao tranqtili- zadora de captar totalmente os acontecimentos, enquanto numa trans- missao radiofonica se sinta como mutilado. Ouve pessoas andando de 14 para ca sem saber o que estao fazendo, ouve o publico dar risa- da sem saber do que €, de repente, ouve aplausos € exclamacgoes sem captar 0 que se passou em cena. Estas infelizes transmiss6es, que desrespeitam todas as leis de forma e de efeito do radio, podem se justificar quando sao uma forma de participar em acontecimentos ‘historicos’, eventos extraordinarios, ou se queira ouvir fatos da reali- dade. O resultado actistico, no entanto, sera sempre pobre — nao so- mente se ouve pouco, Mas também este pouco € ambiguo, sem senti- do e cadtico; mas quando 0 evento em si € suficientemente importan- te para 0 ouvinte (um pronunciamento politico, noticias da cena de wm desastre, ou uma juta de boxe), ele se esforca, mesmo a partir desta pobreza, para sentir-se presente € participante do evento; e se 0 microfone percorre um mercado ou uma fabrica, 0 esforco do ouvinte sera recompensado por fragmentos da mais pura Cor local rompendo ocasionalmente 0 ruido amorfo € incompreensivel. Mas raramente se conseguira uma impressao continua € completa da realidade trans- mitida, por melhor que se saia 0 reporter como 0 cao do cego que guia 0 desamparado ouvinte. Geralmente falta ao reporter este raro talento de narrar de forma coerente e vivida 0 que acontece, num improviso em que submeta as suas palavras ao som ambiente nos momentos certos. Quase sempre temos uma narracao mutilada, o fiasco de quem pode perder horas em frente a maquina de escrever para desenvolver “um. estilo”, mas 64 que naturalmente nao tem nenhum, a nao ser um horroroso e rastei- ro bla-bla-bla adornado com frases mortas e a estupidez usual dos piores jornais. Nao ha nada mais lamentavel quando num movimentado e infor- mal local de trabalho ou de lazer, uma voz espaventada pergunta: “E agora, Senhor Foreman, conte aos ouvintes como a sua empresa faz....” e o desafortunado Foreman, por seu lado, paralisado dos pés a cabe- ca, balbucia lendo um papel: “Bem, para comecar, podemos dizer que...” O primeiro requisito de sucesso neste tipo de reportagem con- siste em captar a vida como ela é; 0 jornalista, com habilidade e sen- sibilidade, deve fazer o entrevistado se sentir 4 vontade; apresentar as suas perguntas de forma natural, como numa conversa, que nada tem a ver com o formalismo de uma redacao escolar ou com um inter- rogatorio, onde quem responde tem a sensacado de que deve jurar apos cada palavra. (Isto, no entanto, sé acontece quando nao ha a preocupacao de que a pessoa questionada diga coisas que devam ser lembradas pelo ouvinte). Se este tipo de reportagem for bem feito, nenhuma objecao deve ser colocada. E verdade que raramente consegue passar uma impres- sao inteiramente satisfatoria da realidade, mas pelo menos leva acon- tecimentos distantes até 0 ouvinte pelo método mais direto que é con- cebivel atualmente, ou seja, recorta-se artificialmente pedacos da re- alidade e através desde isolamento torna-os objeto de uma especial atencdo. Assim aguca os poderes actisticos de observacao, dirigindo a atencao do ouvinte para formas de expressao e contetidos que ele ordinariamente nao nota com seus desatentos ouvidos. O que deve ser realmente condenado no radio é a retransmissao de espetaculos de épera, teatro e cabarés, que poderiam ser melhor produzidos no estudio. Um grave erro é cometido com qualquer obra de arte, por modesta que seja, se 0 audivel é arrancado da totalidade formada pelo visual mais 0 actistico e apresentado sozinho. Mais do que isso, € a maneira mais direta de destruir a unica forma de treinar o ouvinte a concentrar-se no audivel. Pois se o que se apresenta a ele sao transmiss6es que so podem ser plenamente apreciadas através do esforco de completa-las com o que foi suprimido, nao se pode es- perar que no dia seguinte, ouvindo uma peca radiofonica, consiga limitar-se ao mundo sonoro sem um complemento visual. Para o ra- dio ser levado a sério, nao mais como um mero aparelho de transmis- sao, mas como um mundo sonoro diferenciado da realidade por suas proprias leis de expressao, a abolicao dessas retransmissées, que sé se justificam para preencher programacdo, é uma necessidade incontornavel orias do Radio -T Por outro lado, é facil de provar que existem formatos radiofonicos que peremptoriamente nao necessitam de complementagao visual. E facil lembrar varios casos bastante simples. O formato mais singelo, a forma original do radio, é a voz do locutor, ou do cantor, ou 0 som de instrumentos musicais no estudio. Apenas um ser hiper-imaginativo ou uma pessoa descentrada, ouvindo este tipo de programa, poderia sentir a necessidade de imaginar a configuracao espacial do esttidio ou a aparéncia de quem fala ao microfone. O ouvinte normalmente se restringe a recepcao do som puro, que chega a ele através do alto- falante, purgado da materialidade de sua fonte. E significativo que cerias vozes expressivas nao parecam ao ouvinte comum como ‘a VOZ de alguém que nao se pode ver’ e cuja apar€ncia possa ser especula- da, mas antes transmitam a experiéncia de uma personalidade abso- lutamente completa. Isto pode ser particularmente observado com vozes que se tornam familiares ao ouvinte no intercurso dos dias: “o” Jocutor, “o” instrutor de ginastica, sao gente familiar para ele, nao sao vozes familiares de gente desconhecida. O complemento visual nao é imediatamente procurado; a curiosidade pode surgir com um ocasio- nal interesse em “como a pessoa realmente se parece”; entéo, se sua fotografia aparece alguma vez numa revista do radio, a velha familia- ridade pode ficar seriamente abalada. Com uma sensibilidade apurada para a forma, que ainda nao se vé nem nos melhores programas, devera se tomar cuidado para que 0 ouvinte nao receba nenhum efeito actistico nao intencionado nessas performances radiofénicas do tipo mais simples. Se em certas emis- ses 0 co pode produzir uma ilusao de espaco muito uitil, nos estadi- os destinados a conferéncias, programas falados e performances musicais a ressonancia é eliminada, a partir da constatacéo muito apropriada de que a percepcao do espaco nao € essencial e nao preci- sa ocupar a consciéncia do ouvinte. O numero de estimulos sonoros deve ser limitado deliberadamente, de acordo com a lei da economia que ja mencionamos, ao invés de reproduzir fiel e totalmente a situa- cao do estudio. Outro passo na mesma direcao € 0 esforco de descorporizar 0 locu- tor tanto quanto possivel. Nada deveria ser ouvido da sua existencia fisica no esttidio, nem mesmo 0 som dos seus passos. Mesmo a voz, a tinica coisa que sobra dele no esttidio insonorizado onde se esforc¢a para ser silencioso, nao deve ter personalidade nenhuma, nada de peculiar ou pessoal; deve ser apenas distinta, clara e agradavel. A funca&o que cumpre normalmente o locutor de agora nao difere da funcao da pagina impressa, que deve ser limpa, convidativa, facil de ler e nada mais. 66. O mesmo se aplica as apresentacdes musicais. ‘A verdadeira mu- sica’, dizia Goethe no Wilhelm Meister, ‘é s6 para 0 ouvido. Quero ver com quem eu falo, mas quem canta para mim deve permanecer invi- sivel, pois suas formas nao devem me atrair nem me distrair.” A visao do musico que toca o instrumento nao acrescenta nada a musica que toca, s6 perturba a percepcao de suas caracteristicas. Em primeiro lugar, porque assistindo os movimentos do misico, se tema impres- sao de que é a figura humana, e nao a musica, a atrac¢ao principal do espetaculo. A musica tem 0 efeito apenas de chamar a atencao para a figura humana e para 0 seu instrumento. Em segundo lugar, os mo- vimentos do mtsico muitas vezes nao correspondem a linha melédi- ca: os deslocamentos da vara dos trombones, por exemplo, nada tem a ver com 0s sons que produzem; os violoncelos e contrabaixos exi- gem que os musicos baixem as maos para tocar sons mais altos. E, em terceiro, mas 0 mais importante, a orquestra sentada no palco é inativa e estatica, enquanto a musica é caracterizada pelo movimento no tempo. Aqui, portanto, aparece a mais fundamental contradicao entre o fendmeno auditivo e o visual. Nossos olhos nos mostram uma dispo- sicao dos musicos no palco que so ocasionalmente coincide com a musica tocada (uma vez que os violinos, colocados a frente, nem sem- pre servem de guia). Os muisicos estao sempre a vista, mesmo quando estao sem tocar. O que da uma impressao de confortavel repouso alternado com 0 ato de tocar. As pessoas educadas musicalmente podem muito bem ignorar esta contradicao entre o que véem e 0 que ouvem. Elas ouvem tranqitilamen- te mesmo quando enxergam os musicos ao mesmo tempo. Mas elas também, talvez mais do que ninguém, terao uma nova e excitan- te experiéncia musical quando ouvirem cegamente a musica pela primeira vez, principalmente através do radio. Esta nova experiéncia se deve, principalmente, ao fato de que a musica surge entao do nada. Nao ha ninguém sentado com seu instrumento esperando a hora de tocar. Nenhuma disparidade entre os cinquenta homens sentados, desde os violinos na frente até a percussao ld atras, e a nica modes- ta flauta que talvez tenha que iniciar a peca musical totalmente so- zinha. O som da flauta tremula agora, tao pequeno e perdido na vastidao do nada, como era a intencéo do compositor ao escrever um solo para abrir a sua obra. A flauta toca, € ndo soa mais como parte isolada de um grupo de homens ‘em atitude de tocar’ cuja aparéncia nao muda nunca; de uma maneira muito excitante, tudo que é estatico foi bani- do da apresentacao. Se percebe melhor o tempo passar; nada que Teo acabou de ocorrer permanece presente no momento seguinte; apenas o curso da linha melodica segue existindo, toda a acao é puro movi- mento. A flauta esta so e de repente se junta a ela o oboé, também surgindo do nada, inesperadamente ganhando vida, no momento exato em que o compositor 0 previu, sem estar ‘em pausa’, antecipadamen- te preparado. Entao, gradualmente, vai se construindo a peca musi- cal. Quem nao tem nada a interpretar desaparece completamente da cena, simplesmente nao existe. Se o tempo da peca é lento, entao 0 mundo inteiro é lento, se se trata de um allegro, existe apenas 0 mo- vimento rapido, nada de homens sentados ou interrompendo a agao no meio dele. E muito dificil descrever este tipo de experiéncia em palavras, por isso talvez até agora nunca tenha sido descrito de maneira satisfatoria. E dificil descrever como, para 0 ouvinte cego, o instrumento guia se coloca de fato na linha de frente, em vez de estar localizado num local fortuito e nwma posicao estacionaria no estrado da orquestra. So- mente desta maneira a jncessante alteracao do corpo sonoro, 2 troca de lideranca, 0 aumento e diminuicdo do numero de instrumentos em acdo a cada instante, realmente penetram nos sentidos. O contraste entre o violoncelo e a flauta se deve agora apenas as diferencas entre os sons profundos, quentes e graves do primeiro, ¢ os altos, agudos e claros da segunda: ja nao interessa que eles tenham algo similar, que estejam sendo produzidos por dois individuos do género humano. O violoncelo e a flauta, situam-se muito perto um do outro na organiza- cao espacial da orquestra, mas quando interpretados juntos, pare- cem isolados. Para 0 ouvinte cego, a distancia tonal nao € contraditada pela distancia espacial dos musicos no palco. Nao ha movimentos preparatérios dos mtisicos para entrar em cena nem um numero cons- tante de instrumentos: ssomente ha 0 que o compositor imaginou para dominar cada momento. Nada existe que nao tenha uma funcao to- nal: a musica se torna todo poderosa. A musica se move essencialmente em trés dimensdes: tempo, di- namica e tom. O tom tem uma marca totalmente espacial. “O aumen- to da nitidez acustica”, observa 0 psicdlogo Von. Hornbostel, “nao tem apenas 0 efeito de tornar mais nitido um fenomeno estatico, como 0 que se da iluminando uma superficie colorida, mas também o de tor- nar mais alto, como 0 movimento para cima de uma coisa visivel”. oO efeito de movimento e sua direcao sao tao convincentes que a maioria das linguas usa termos como “crescente” e “decrescente”, “alto” e “bai- xo” para descrever 0 tom. Esta altura € profundidade espacial, no entanto, nao tem nada a ver com 0 espaco real no qual vemos a mu- sica sendo produzida; nao na correspondéncia, antes contradicao entre eles. Em conseqiiéncia, a sua forga maxima sé é aleancada quando o espaco em que 0 corpo sonoro esta contido é abolido. Ocorre 0 mesmo com a alternacdo entre sons fortes e suaves, os quais num momento enchem com sua forca o espaco actsstico até transbordar, para no momento seguinte deixa-lo completamente va- zio outra vez. Entao o ouvinte cego escala as alturas com a melodia, salta nas profundezas, é carregado sobre os abismos por um contra- movimento; num momento ele se sente num emocionante e comove- dor campo de forcas, em seguida esta s6 no vazio, com um timido Jamento. Num certo momento o espaco esta repleto de vozes e tudo se move em formacgao, em seguida é ocupado pela discordia de sons simultaneos que nao se entendem, para por fim se encontrarem num fluxo de perfeita harmonia. Assim se pode entender o quao fundamental e importante é a con- tradicao entre este espaco sonoro, com todas as suas possibilidades, € 0 espaco concreto em que os sons sao produzidos, um espaco que permanece sempre cheio ou vazio, onde ha mais ou menos movimen- to e interrup¢ao, que é organizado ou desorganizado, harménico ou desarmonico, mas que é, acima de tudo, estatico, constante e nao temporal. A partir disso, algumas consideracées interessantes podem ser feitas em relacao as qualidades espaciais da musica transmitida pelo radio. A pessoa que assiste a um concerto é mais ou menos conscien- te da acustica da sala do teatro, a partir da reflexao das ondas sono- ras em suas paredes; ela também ouve os sons dos varios instrumen- tos vindos de diferentes distancias e direcées, a partir de suas posi- goes na orquestra. Mas para ela, essas impressdes sao apenas com- plementos actisticos menores de sua percepcao visual da sala de con- certo. Ela vé 0 espaco, entao nao nota o fato de que também 0 ouve; ela vé os musicos em varios lugares e a varias distancias, e em conse- quéncia nao se surpreende por ouvir de acordo com isso. Ela certa- mente notaria se desaparecessem estas impressées actistico-espaci- ais, provavelmente isso lhe causaria inquietacdo. Com o ouvinte de radio, as coisas se passam de forma diferente. Ele nao vé o esttidio e, em conseqtiéncia, de inicio, no minimo, tem uma impressao positiva ao sentir 0 espaco a partir da ressonancia, e entao ‘inclui’ for¢osamente esta sensacdo espacial na sua impressdo da mtsica. Mais do que isso, ele nao vé musicos sentados a varias distancias e em varias direcGes, e em conseqiiéncia as diferentes dis- tancias de onde os sons provéem podem se tornar para ele fatores essenciais da musica, ou lhe dar a oportunidade de conceber uma sala de concertos ‘na imaginacao’. Mas ambas as possibilidades sao indesejaveis. A partir da contradicao entre 0 espaco real e 0 espaco sonoro de que falamos antes, nenhuma sala de concertos deveria ser imagina- da, e este tipo de fantasia nao apenas nao tem cabimento numa apre- sentacdo musical como até a pode prejudicar. Pois nem a ressonan- cia espacial nem a percepcao das distancias sao tomadas em consi- deracao como fatores da composicao musical. Além disso, a resso- nancia é um fator sonoro muito pouco especifico, geral e constante, que em consequéncia € facilmente apagado da consciéncia numa es- cuta prolongada, o que nao permite criar wma ilusaéo duradoura da sala de transmissao e portanto tambem nao atrapalha muito. De qual- quer forma, as paredes do estiidio nao deveriam ter ressonancia per- ceptivel, deveriam refletir o som apenas o suficiente para The dar bri- Iho e plenitude. Abolindo as nocées do espago real, a consciéncia subjetiva do espaco acustico pode se soltar livremente. Quanto mais abstrata for a musica em relacéo ao meio concreto da fonte sonora, mais propriamente o ouvinte sera envolvido por ela na recepcao. — sem dtvida impréprio que os instrumentos sejam percebidos jndividualmente por sua posicao na sala, quando a flauta é ouvida na frente e a percussdo atras. Nao deveria haver wm fator constante de delimitacao, como a ressonancia das paredes do esttdio, mas a ca- racteristica bem especifica da manifestacao sonora de cada instru- mento, de que tomamos consciéncia com a entrada de cada um em cena. Novamente, o ouvinte estaria sentindo-se fortemente induzido a imaginar visualmente 0 espaco real ‘ausente’, ou poderia considerar importante o que so acidentalmente se destaca: a flauta em primeiro plano aparece musicalmente ‘em primeiro plano’ e mais importante que a percussao, a qual por acaso, ou por razoes meramente fisicas, é colocada mais atras. Neste aspecto, a produgao de radio ainda erra freqiientemente. Entre um solo e o acompanhamento a distancia espacial € quase sem- pre consideravel. E especialmente nas apresentacoes de orquestras, ocorre frequentemente que os instrumentos sejam colocados de ma- neira absurda, sem coeréncia com a musica, s6 pelo fato fonético de que alguns soam melhor ou mais claramente do que outros mais per- to ou mais longe do microfone. Nisso, provavelmente, 0 problema s6 sera solucionado com 0 uso simultaneo de varios tipos e poténcias de microfone. O mesmo se pode prever em relacao as apresentacées de coral, oratérios e apresentacoes de opera. Vamos passar da musica para a palavra falada, ou seja, para a producao radiofonica da acao dramatica, e aqui também nos pergun- tar o que € essencial e 0 que é supérfluo. No drama, a alma humana deve estar caracterizada, nado através de uma mera descricdo, mas através da representacao de eventos fisicos e psicologicos. Mas habi- tos fisicos e peculiaridades nem sempre sAo tao essenciais nesta ca- racterizagao. Se um homem acalenta fortes sentimentos paternais, isto provavelmente sera importante para a configuracdo de seu per- sonagem. Mas o fato de criar coelhos em suas horas vagas, ou de sempre carregar com ele o relogio de ouro de seu pai que ganhou de heranca, podem ser importantes ou nao, de acordo com o ponto de vista e o estilo da obra. O teatro naturalista, como o cinema de hoje, costuma definir livre- mente as suas figuras com uma profusao de detalhes com 0 objetivo de representar a vida real. Mas na eterna flutuacdo entre a arte vi- sual e a arte verbal que caracteriza a historia do teatro, existe por outro lado um estilo diferente, o qual se caracteriza por purificar ra- dicalmente 0 cendrio e a acao dos detalhes realistas, e mesmo dispen- sar completamente o cenario, 0 vestiario, a iluminacao e a pantomi- ma (até a expressividade da fala) ou por interpretar 0 contetdo inte- Jectual da obra através de meios tao pouco naturalistas como formas, cores e musica. O radio se inclina muito mais para este tipo estilizado de arte verbal abstrata do que o teatro, embora também nao deva ser natura- lista. O ator no palco até pode — se quiser representar ‘o homem’ e nao ‘um certo homem qualquer’ — vestir-se todo de preto, da forma mais neutra possivel, mas nao conseguira abolir a vestimenta; ela é ainda uma vestimenta com suas caracteristicas, por mais que seja estilizada. Uma vez que exista 0 palco onde a atuacao se da e é observada pelo olho do espectador, este tipo de simplificacao geralmente é percebida como uma estilizacao consciente e bastante obvia. Mas no radio a abolicao do visual nao é um corte artificial, mas uma conseqtiéncia natural das condigées técnicas. O visual, se for para ser feito, deve ser penosamente construido na imaginacdao. As- sim, € possivel deixar de fora, de forma quase totalmente livre, tudo aquilo que nao for necessario para a acao dramatica. E possivel estar perto da natureza e ao mesmo tempo daquilo que realmente interessa de fato. Estas consideragées nos conduzem a uma conclusao animadora: a de que a esséncia do som tem muito mais a ver com a acdo drama- tica do que o visual. E esta a questao, e aqui destacamos um ponto essencial para a arte radiofonica. O essencial no que esta acontecen- do num certo momento n4o € tanto a existéncia de um inativo ‘algo sendo’, mas justamente o que muda neste algo, ou seja, acontece. O Teorias de Radio - Textos e con’ di mundo visual nos proporciona uma boa imagem do aconti por exemplo através do movimento dos bracos, dos musculos etc,, mas ao mesmo tempo nos fornece muitas informagoes inalterado ‘sendo’. Ele nos mostra um homem que subitamente o seu punho com furia, que € 0 que acontece no momento, mostra também sua barba por fazer ha varios dias e o quadra esta pendurado na parede ha vinte anos. No auditivo, por outro quase nada do que é estatico nos é oferecido. O tic-tac de um por exemplo, é estatico como a forma ou a cor de um objeto, grande maioria dos sons implica num acontecimento real e mo taneo. O melhor exemplo disso é a voz humana. Ela é siléncio q nao ha atividade; quando nada esta acontecendo. Se ela fala, € mostrar que algo esta em andamento. A acao, portanto, faz parte esséncia do som, e um evento sera melhor compreendido pelo o1 do que uma situacao. Mas este é 0 verdadeiro sentido do dramat drama é 0 desenrolar de acontecimentos no tempo: ele se faz de at e deve incluir o estatico apenas na proporcdo minima necessaria a compreensao do evento. No radio se faz isso com mais facilidade do que no palco. A barba o quadro podem ser importantes para se compreender o homem agi tando seu punho, mas também podem nao ser. Muito do que € colo- cado em frente aos olhos no palco ou na tela se justifica para com- pletar uma cena dando-lhe naturalidade, e nao para agregar signifi- cado, e portanto nao faria falta. No radio, pelo contrario, a condicao natural é simplesmente aquela em que tudo falta. Ele comeca num fundo vazio de siléncio. Quase tudo o que é estatico esta ausente; a existéncia s6 se cria pela acao acustica prevista no argumento da obra. A matematica moderna introduziu a nogao de “definic¢ao implici- ta”. Ela se aplica aos axiomas que nao podem ser definidos a nao ser pelas fungdes que cumprem em teoremas mais elevados. Ou seja, define as coisas por sua atividade. Este procedimento também tem boa aplicacao na estética. Uma pessoa atuando num drama é delineada por nada mais do que a sua atuacdo. Ela nao € uma pessoa completa, no sentido naturalista externo a acao, que teria, entre outros atribu- tos e acdes, aqueles necessitados pelo drama; nada nela existe que nao tenha uma funcdo no drama. Portanto, ela é ‘implicitamente’ de- finida por nada mais do que as suas acées (fisicas e espirituais). O drama radiofonico é particularmente talhado para preencher este dificil requisito, porque utiliza um material de representacao que expressa a sua esséncia pela acao. A dificuldade de representacao no radio nado esta em dispensar o supérfluo estatico mas, ao contrario, em incluir 0 que é necessariamente estatico na acdo mesma. O melhor e mais simples exemplo disso é 0 personagem humano. Sob este termo, no momento incluiremos tudo, todas as influéncias da disposicao, experiéncia, educacao, profissao, idade, etc, os quais determinam a condicao psiquica de uma pessoa. Apenas essa condi- co psicoldgica é que torna compreensiveis as falas da pessoa, e deve, em conseqiiéncia disto, estar incluida no drama sonoro. Isso se con- segue muito facilmente pelo tom de voz e pelo jeito de falar, os quais, obviamente, sao determinados por um lado pelas exigéncias do mo- mento (excitacao, cuidado, tristeza), mas também, por outro lado, pelo habito. A diferenca entre mimica e fisionomia, entre a expressao facial momentanea e a permanente, também ocorre na voz. Ao ouvir- mos o modo de falar de uma pessoa timida, ignorante ou jovem, dis- tinguimos na sua atuacdo momentanea também a sua base perma- nente. Esta é a melhor solucao que se pode imaginar para o eterno desafio dramatico de expor a base permanente para a acdo através da propria acéo — para a famosa e notéria ‘exposicao’. Se limitarmos a caracterizacao dos personagens de uma peca radiofonica ao essencial, ocorrera que os varios personagens apare- cerao com varios graus de ‘completude’. Um personagem principal geralmente sera distinguido com um maior numero de detalhes do que um outro secundario, que aparecera apenas ocasionalmente como extra. Frequentemente estes personagens nao necessitam nenhuma caracterizacao. Obviamente se ouve se é um homem ou uma mulher, tanto quanto um tipo caracteristico de voz, mas nenhuma conexéo precisa ser feita entre isso e a figura humana que lhe da origem. O personagem é — uma definicdo implicita! - caracterizado por nada mais do que a voz que faz tal pergunta ou langa tal grito. Este gradual aumento da riqueza da caracterizacao, desde a com- pletamente abstrata voz que diz ‘os cavalos estao encilhados’, e entao retorna para a escuridao, para o totalmente desenhado personagem de primeiro plano, é um dos mais sofisticados recursos da arte dra- matica radiofonica, porque coloca a ‘existéncia’ em relacdéo muito cla- ra com a fungao artistica: 0 ser s6 existe enquanto tem uma funcao, e se a sua funcéo € pequena, a sua existéncia também 0 €. Este princi- pio da arte - que é também um principio moral - € observado no radio muito mais radicalmente do que no palco, onde as figuras secundari as aparecem junto ao protagonista muito mais tempo do que o neces- sario, por raz6es de naturalidade. Também a quantidade de tempo que um personagem qualquer ocupa no desenrolar de um drama tera uma relacao muito mais pré- xima com a sua funcao na histéria na peca radiofonica. Nao ha nin- dio - Textos e contextos guém ocioso ocupando graciosamente o tempo em frente aos olhos espectador, cada um precisa existir somente enquanto atua e fala: personagem principal por um tempo consideravel, os secunda: quase sempre por poucos segundos. O momento em que a figura se torna ativa € o momento de sua entrada real. Uma voz de homem pode ser ouvida subitamente, e se pode presumir disso que ele estava presente ha algum tempo em siléncio. Do ponto de vista da acao, ele pode ser considerado como estando presente sem sobrecarregar © curso dos acontecimentos com uma existéncia sem funcao. Ele existe apenas enquanto esta em cena, sem a necessidade de criacdo de ‘en- tradas’ e ‘saidas’ com motivos que os justifiquem. O numero de perso- nagens numa cena pode variar, mesmo quando a situacao se man= ~ém mais ou menos constante. Por exemplo: podemos ter dez pessoas fechadas a sete chaves numa situagdo, de modo que este numero ndo diminua nem aumente. Se apenas alguns deles participam da conversa, os outros, na maior parte do tempo, ficam submersos na consciéncia do ouvinte. Cabe ao yoteirista manté-los vivos nesta cons- ciéncia, de modo a que 0 ouvinte nao tenha uma falsa impressao da situacdo, pensando que s6 ha quatro pessoas 1A, enquanto o que deve ter em mente é uma cena com dez pessoas, das quais apenas quatro falam. Pelo sentido da cena, se distingue se wm determinado perso- nagem, ainda que nao atue nem fale, deve permanecer na conscién- cia do ouvinte ou se deve submergir, mesmo que nao tenha uma sai- da explicita. Um cadaver, por exemplo, pode ser mantido de forma constante no primeiro plano da consciéncia do ouvinte, durante toda uma longa cena de uma peca, embora nao emita nenhum som — pode ser importante nao deixar a sua presenca ser esquecida (Julio César na fala de Marco Antonio), enquanto que um outro participante pas- sivo da mesma cena, ainda que vivo, possa ser esquecido sem ne- nhum problema assim que termina de dizer a sua fala. Num didlogo radiofonico, so existe acusticamente quem esta com a palavra. Por esta razao € dificil que o ouvinte lembre que se trata de um dialogo quando apenas um dos participantes fala por muito tem- po. O outro, que parou de falar, certamente permanece por alguns segundos na consciéncia do ouvinte, mas em seguida some, 0 que provoca um choque s¢ ele reaparece subitamente na conversa mais adiante, como se tivesse caido do céu naquele instante. O mondlogo funciona bem no radio, mas a fala longa em um didlogo funciona mal. Por isso 0 roteirista deve evitar esta forma. O ideal é um dialogo rapi- do, fortemente entrecortado, onde a existéncia actistica dos partici- pantes é€ assegurada continuamente, ainda que pela mais modesta interpelacao. Ou o ouvinte podera ficar pensando, com malici: terminar de falar tanto, este fulano vai se dar conta de que ja nao tem ninguém o escutando’. A forma radical como a existéncia de uma pessoa pode ser simpli- ficada, e o poderoso efeito que isso pode ter no radio, sao exemplificados por uma cena muito bem resolvida: um homem sem trabalho, desespe- rado, ouve através da parede a sua vizinha contando dinheiro. A uni- ca coisa que se ouve da mulher é 0 tilintar de suas moedas; a essén- cia dela esta concentrada com uma grande consisténcia. De sua pes- soa $6 existe este som caracteristico, mondtono, ritmado e extrema- mente sugestivo. Esta restricdo radical ao essencial, é importante ressaltar, nao é resultado de uma simplificagao estilistica, nem de um corte na reali- dade. A omissdo do nao essencial aqui nado pode ser comparada, por exemplo, com o que ocorre no teatro elisabetano. La, quando os per- sonagens atuam fantasiados num palco vazio isto aparece, sé nao como uma discrepancia, pelo menos como uma estilizacéo. No radio, a omissao fornece um eficiente excerto de uma situacao sem nenhu- ma aparéncia de corte cirurgico e sem nenhum efeito de incompletude ou de irrealidade. Desta forma, se pode produzir no radio uma cena completamente natural, com um dialogo coloquial, sem se produzir a sensacao de que esta aproximacdo ao natural esta em contradicao com 0 artificial vazio do cenario da acdo, enquanto que, no palco, quanto mais natural for a cena, mimica ou linguagem, mais se nota a auséncia da decoragao. A cegueira do radio permite um bom uso de velhos truques da técnica de ‘exposicao’. Na literatura ja era utilizado 0 método, que descrevemos acima, de caracterizar os personagens em cena com va- riados graus de completude. Ocasionalmente, num romance, apare- cem argumentos € questées sem que 0 personagem que os apresenta seja caracterizado em detalhes, ou uma acao € descrita sem nenhu- ma mencao a quem esta dela participando. Também na literatura, existem muitos exemplos do narrador dando uma descricao exausti- va de um personagem envolvido numa situac4o particular, sem té-lo apresentado antes: quem e o que esta pessoa pode ser, que idade tem ela e como veio parar na presente situacao. A titulo de exemplo, sele- cionamos fragmentos que exemplificam dois métodos opostos de ex- posicao. O escritor Heinrich Von Kleist, na sua obra Michael Kohlhaas, quase sempre comeca com o que € central e essencial: “Em meados do século XVI, vivia nas proximidades do Havel um tratador de cavalos chamado Michael Kohlhaas, filho Teorias ‘dio - s ¢ cont de um professor, uma das pessoas mais honradas e ao mesmo tempo mais terriveis de sua €poca.” Ja na primeira frase, nos apresenta as particularidades e as ca- racteristicas do heroi. Bem diferente é 0 comeco do Tesouro de Sierra Madre, de Bruno Traven: “A banqueta em que se sentava Dobb estava em péssimo estado. Com uma das pernas faltando e outra torta, sen- tar nela era realmente uma espécie de castigo. Se merecia este castigo, ou se havia sido infligido injustamente a ele, como a maioria dos castigos sao, nao estava importando a Dobb no momento.” Aqui, o narrador inicia a historia em meio a uma situa¢gao concre- tae a descreve em detalhes (a banqueta em que senta 0 personagem), sem dar pistas sobre o tipo de figura que se esconde por tras do nome Dobb. Esta segunda forma de apresentacao € a que se aplica ao drama. Mas nem sempre pode ser utilizada com toda a eficiéncia, pois se a banqueta do senhor Dobb se encontra num palco, nés perceberemos imediatamente uma certa figura humana com toda a sorte de idiossin- crasias. E claro que é possivel haver cenas expositivas onde Dobb € continuamente mencionado, sem se saber ainda quem ele €. Mas a sua aparicao prejudica a fascinante e paradoxal tensao de tomar par- te em acontecimentos e experiéncias que estao acontecendo com quem nado se conhece, com alguém que esta proximo, mas € de fato um estranho. No radio, este efeito é ainda mais forte do que na literatura, por- que na narrativa escrita participamos da cena apenas de forma indi- reta, através da intermediacdo do escritor. Nao somos testemunhas diretas como nos tomamos ao sentarmos em frente do alto-falante e ouvirmos uma pessoa falando sobre alguém de quem nao sabemos nada ainda. O radio torna a pessoa viva e presente diante de nos através de sua voz, ou de alguma outra maneira, sem termos que saber nada a respeito dela. Isto torna a situacao excitante. Em quase todas as cenas de um radiodrama, nao temos idéia a principio sobre quem est4 falando. Gradualmente o mistério é desfei- to, e as figuras se tornam mais claras. Esta caracteristica do meio cego pode ser conscientemente empregada com um efeito mais sutil; a excitacdo da audiéncia aumenta e ao mesmo tempo sua atencao € dirigida de uma maneira muito eficaz (de longe melhor do que a que pode ser obtida entre as distracoes de um palco tri-dimensional cheio

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