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Cultura, natureza e ambiente Passos para uma ecologia da vida Tim Ingold Como antropélogo social cujos interesses etnogrificos residem nas regides do cireulo polar drtico, eu gostaria de comecar com uma observagdo feita a partir de minhas experiéncias de campo com caribus na Finlandia. Na perseguigo a um caribu, existe sempre um momento critico, em cujo pice o animal toma-se consciente de sua presenga. Ele, enti, faz algo estranho. Ao invés de sair correndo, permanece parado, vira a cabega em sua direglo e fixa 0 olhar diretamente em sua face. Bidlogos costumam explicar esse comportamento como uma manobra adapiativa para se livrar da predago de lobos. Quando o caribu para, lobo que entéo 0 persegue pira também, ambos respiram fundo, buscando energias para o ultimo momento, fase decisiva da cacada, na qual o caribu sai em desabalada e o lobo corre no seu encalgo. Devido ao fato de que é 0 caribu quem toma a iniciativa para quebrar o impasse, ele adquire uma pequena vantagem e, de fato; um caribu saudével pode, normalmente, escapar de uum lobo. Mas a titica do caribu, que lhe confere tamanha vantagem em relagio a lobos, torna- © peculiarmente vulnervel no encontro com cagadores equipados com armas de fogo ¢ projéteis. Quando o animal se vira para observar 0 cagador, isso propicia 20 homem a ‘oportunidade perfeita para mirar ¢ atirar. Para lobos, caribus so féceis de serem encontrados, ois andam em rebanhos, mas dificeis de serem mortos; para homens, 20 contrério, caribus slo dificeis de serem encontrados, mas uma vez estabelecido 0 contato, eles so muitos fiiceis de serem abatidos. (Ingold 1980: 53,67). Agora, 0 povo Cree, cagadores nativos do nordeste canadense, tém uma diferente explicagio sobre o porqué caribus — estes veados selvagens so chamados caribus na América do Norte — so ficeis de serem abatidos. Eles dizem que os animais se oferecem, intencionalmente ¢ com um espirito de boa-vontade ou mesmo amor em relago ao cagador. A substincia corpérea do caribu ndo ¢ tomada, mas sim ofertada, E é no momento do encontro, quando o animal pra ¢ observa 0 cagador nos olhos, que 2 oferenda é feita. Como muitos outros povos cagadores a0 redor do mundo, os Cree tragam um paralelo entre a perseguiga0. dos animais ¢ a sedugdo de jovens mulheres ¢ relacionam o abate ao intercurso sexual. Sob este ponto de vista, a morte aparece niio como o fim da vida, mas como um ato eritico para a sua regeneracdio. Ciéncia e Conhecimento Indigena Aqui, portanto, temos duas assertivas — uma proveniente das ciéncias biolégicas, outra dos povos indigenas — sobre 0 que acontece quando seres humanos encontram veados selvagens ou caribus. Minha questo inicial é: como podemos entender a relago entre essas duas perspectivas? Biélogos da vida selvagem tendem a reagir a hist6rias nativas sobre animais se oferecendo a cagadores com uma mistura de cinismo ¢ incredulidade. A visio cinica consistira cm que tais historias apresentam uma maneira facil de evadir questdes éticas énvolvendo cagadas ¢ matangas que causam ansiedade a pessoas oriundas das sociedades ocidentais. Assim, para os cagadores, seria mais conveniente transferir a responsabilidade da morte dos animais para os préprios caribus. O que os cientistas ocidentais acham dificil de engolir é que todo mundo deve ser ludibriado por desculpas inusitadas deste tipo. O fato que importa, na verdade, é que os caribus estiio sendo cagados e mortos. Pode uma pessoa inteligente pensar, com seriedade, que os animais esto, de fato, oferecendo-se a cagadores de acordo com o que ¢ contado nes historias dos Cree? Os populares que esto criando tais hist6rias sZo loucos, perdidos em uma neblina de superstic&o irrecional, falando em alegorias, | ‘ou simplesmente estio fazendo piadas? Qualquer que seja a resposta, a cigncia insiste que ||, historias so histérias e, como tal, no tém nenhuma influéncia sobre 0 que, de fato, acontecé !\ ro mundo natural. aaa ane “Kantropologos estio inclinados a adotar outra abordagem. Ao serem informados de que ‘\W® 0 sucesso da cagada depende do ato de oferenda ¢ favor dos animais, a primeira pre = : & jk?” Go amtropdlago é néo julgar a veracidade da proposigfo, mas entender o que cla significa, y Genizo do contexto no qual ela é elaborada. Por isso, pode ser facilmente mostrado que a idéia de animals se oferecendo a cagadores, mesmo parecendo estranha do ponto de vista das cineias ocidentais, fiz perfeito sentido se partirmos da premissa (como os Cree o fazem) de que todo mundo —e niio apenas o mundo dos seres humanos ~ esti saturado com poderes de ago ¢ intencionalidade. Na cosmologia Cree, os antropélogos concluem, que as relagdes com | enimais sio modeladas a partir das relagées constituidas no interior das comunidades ‘bumanas, por isso as cagadas so concebidas como um momento de didlogo interpessoal em | desenvolvimento. (Tanner 1979:137-8, veja Gudeman 1986:148-9, ¢ capitulo trés pp.48-52). Isso no quer dizer que as explicagbes bioldgicas sobre o impasse entre cagador e caribu no] momento do encontro, como parte de um mecanismo inato de resposta mecénica constituido | para lidar com a predag3o por lobos, é sem interesse. Para os antropélogos, no entanto, a | explicagdo do comportamento dos caribus ndo ihes diz respeito. O ponto a se ter em mente | consiste em mostrar como a experiéncia direta dos encontros de tais cagadores com animais € | revestida de forma ¢ significado dentro de padrdes recebidos de imagens e proposigdes que,_/ ~ na linguagem entropolégica, denominados “cultura”. ‘Tendo em vista o que expus até agora, apesar das perspectivas dos bidlogos da vida selvagem e dos antropélogos culturais parecerem incompativeis, elas so, na verdade, perfeitamente complementares e, mesmo, revelam um ponto de observagio comum, mas praticamente insustentavel. Se © bidlogo afirma estudar a natureza orginica “como ela é”, antropélogo, por sua vez, estuda as diferentes maneiras pelas quais 6s element do mundo sujeit conhecida, pelo menos na literatura antropolégica, é entre as chamadas proposig6es ética ¢ Zmica, Derivado do contraste lingitistico entre fonética e fonémica, a primeira se propde a “oferecer uma descrig&o neutra, isenta de valores sobre o mundo fisico ao passo que a iiltima enfoca os significados culturais especificos com os quais as pessoas revestem o mundo fisico, Existem dois pontos que eu gostaria de abordar a respeito dessas distingdes.~1 Primeiramente, sugerir que os seres humanos habitam mundos discursivos de significados culturalmente construidos implica que eles j4 deram 0 passo fora da natureza dentro da qual todas as demais vidas das outras criaturas estio confinadas. Os cacadores Cree, acredita-se, narram e interpretam suas experiéncias de encontros com animais em termos do seu sistema” de crengas cosmolégicas. O caribu, porém, ndo o faz. Mas, ¢ este € 0 segundo ponto, compreender este sistema como uma cosmologia requer que nés, observadores, sigamos adiante, agora fora do universo da cultura dentro da qual as vidas dos outros seres umanos esto, como € dito, confinadas. O que o antropélogo chama de cosmologia €, para as pessoas, ‘© mundo da vida. Somente a partir nto de observacio além da cultura € possivel, observar_0_conhecimento Cree il somente a partir deste ponto vantajoso, 6 independentemente de qualquer preconceito cultural. ‘Eu, agora, preciso ser claro sobre o porqué da ciéncia natural e a antropologia cultural convergirem para um vértice em comum. A afirmagSo antropolégica do relativismo 2 perceptual — que pessoas oriundas de diferentes universos eulturais pereeber a realidade de Hifereutes maneiras, na medida em que processam as mesmas informagSes sobre experiéncias fm temnos de padrées alternativos de crengas ou esquemas representacionais - nfo invalida, pelo contriro, reforga a assertive des ciéncias naturais quanto & apresentaglo de um ponto de tista, pautado em autoridade, sobre © modo como a natureza funciona. Ambas as proposigdes ~ ‘ melodias, a naturea estaria tentando se comunicar conosco, tentando nos enviar mensagens codificadas em padres sonoros? O ponto de vista Janicek era praticamente o oposto. Consistia em que deveriamos parar de acreditar que os sons da fala seriam apenas vefculos de comunicagio simbélica, como se seryissem meramente para dar forma externa a certos | estados interiores como crengas, proposigées ou emogtes. Por que 0 som, Jandcek escreve, | “cresce a partir de nosso ser... Ndo hd som que possa ser posto aparte da drvore da vida” | (1989:88,99, énfases do autor). % ixem-me colocar isso de outra forma. As ondas, Jandeek afirma, gritam e choram. /océ grita de édio, o grito é 0 seu édio, ele niio é 0 veiculo que transporta 0 seu ddio. 0 som niio é separado de seu estado mental e despachado como uma mensagem na garrafa ferns mo ocean Go som in espera de que algun a ravoba, Os ete do pio lo | reverberagies de nosso proprio ser quando ele se projeto para o ambiente. Maurice Merleau- Ponty, no seu Fenomelogia da Percepedo, entendeu precisamente este aspecto em sua observagao de que o grito “ndo me faz pensar sobre o dio, ele j4 6 0 6dio” (1962: 184, énfase do autor). E se as pessoas imprimem 0 seu proprio ser nas melodias da fala, entiio as ondas colocam sua esséncia naquilo que designamos como os atos de espumar e quebrar & beira mar, © as aves também imprimem o ser ao seu infindivel grasnar. Para pegar ainda outra observago de Jandcek, o som - qualquer tipo de som, qualquer tipo de miisica ~“é alguma wa : ; coisa por meio da qual aprendemos a verdade da vida” (1989:89). Ef por isso que 08 povos aborigines cantam suas cane6es ao Sonho, cangées que dlo forma a scatimecios que eles nutrem pelo seu proprio pais. Conclusio: em diresio a uma ecologia dos sentidos Eu no esqueci os cagadores Cree e os cari gostaria agora de retornar a eles. O cagador, deixem-me faz8-lo de duas maneiras. Primeiro, ele é detectar aquelas sutis pistas no ambi entio, ele pode “dizer” onde os teferentes a suas cagadas e de seus encontros coisas neste segundo sentido, ele no mai do que aconteceu, som das ondas. almeja criar contato olho~ } ~, - se seu proprio animal — um sentimento sabi acht Perfetamente 0 tipo de conhecimento que as pessoas tm sobre © seu propsia ambiente que eu venho tentando é conhecimento de um tipo formal, autorizado, transmissivel fora dos contextos de sua ip icagdo pratica. Pelo contrario, ele é baseado em Senfimentos, consistindo em habilidades, sensagGes ¢ orientagtes que as pessows desenvolvem furans ~ dependem também dessas eapacidades e habilidades da monua Torre nus s Fede nos: E por isso que a perspectiva soberana da razio abstrata, sobre a qual a chncia ocidental proclama sua autoridade, € praticamente insustentavel uma inteligéncia que fosse completamente apariada das condigées de vida n0 mundo no poderia pensar os pensamentos ate que ela pensa. E também por isso que racionalizar logicamente a partir de postulados a priori nunca seré suficiente para constrair um sistema de ética que, de fato, funcione. Porque todos aqueles julgamentos que nao tém base na intuigo, por mais justificados que possam ser ex nivel de logica “fria”, nfo seriam capazes de trazer consigo nenhuma forya pritica ou motivacional. Onde a légica da razo étice, que parte desses postulados a priori, nos leva a resultados contra-intuitives, antes de rejeitar nossas intuig6es, mudamos os prinefpios, de forma a que eles gerem resultados que melhor se conformem a0 que nés sentimos como certo. Entendimento intuitivo, em poueas palavras, ndo ¢ contrario a ciéncia ou a étice, nem cle apeta para instintos em detrimento da raziio, ou supostamente G4 Enfase aos imperativos da natureza humana. Pelo contrézio, ele repousa sobre habilidades perceptuais que afloram, para cada e todo ser, através de um processo de desenvolvimento em um ambiente historicamente especifico. Essas habilidades, sustento, nos fornecem a base necesséria para qualquer tipo de sistema cientifico ou ético que isia tratar o ambiente como um objeto de interesse. A ecologia dos sentidos, neste caso, € ao mesmo tempo, pré-objetiva e pré-ética. Nao tenho desejo de desvalorizar os projetos tanto da ciéncia natural quanto da ética do meio-ambiente; de fato, elas so mais necessérias do que nunca. Meu argumento é que no podemos perder de vista suas fundagdes pré-objetivas ¢ pré-éticas. Meu maior objetivo foi langar luz a tais fondamentos. E o que essas escavagées dentro da formagao do conhecimento tém revelado indo é uma cincia alterativa, “indigena” ao invés de ocidentalizada, mas algo mais andlogo a ‘uma poética do habitar. E dentro dos parimetros de tal poética, acredito, que as narrativas dos Cree sobre animais se oferecendo a cagadores, histérias aborigines de ancestrais que ‘emergem de olhos de agua, 2s tentativas de Janécek de inscrever os sons da natureza € os esforgos de meu pai de me introduzir as plantas ¢ aos fumgos do campo, podem ser entendidas. INGOLD, Tim. The perception of the Environement. Essays on livelihood, dwelling and skill. London and new York: Routledge, 2000. Tradugo de Silvio Carvalho

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