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A cultura e a literatura para além dos ismos Rosana Cristina Zanelatto Santos* Se uma vez, por um feliz acaso, uma centelha de vida, alegria e espf- tito se desenvolve em meio a massa do vulgo, devemos reconhecé-lo, ao invés de ficar sempre repetindo o quanto 0 vulgo é vulgar (Friedrich SCHLEGEL). Comegamos a tecer estas consideragdes lendo o poema Retra- to do artista quando coisa, de Manoel de Barros: [...] borboletas /j4 trocam as drvores por mim. / Insetos me desempe- nham. / J4 posso amar as moscas como a mim mesmo. / Os siléncios me praticam. / De tarde um dom de latas velhas se atraca /em meu olho / mas eu tenho predomfnio por Ifrios. / Plantas desejam a minha boca para crescer / por de cima, / Sou livre para 0 desfrute das aves. / Dou meiguice aos urubus. / Sapos desejam ser-me. /Quero cristianizar as Aguas. / Jé enxergo 0 cheiro do sol (BARROS, 1998, p. 11). —___ *Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de Sao Paulo (U' Professora do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. E-mail: rezaneL@terra.com,bt 13 Escritos sobre identidade e 0 regional SP). Travessias e limites * faceis & intiteis, agrupadas ao lance de um jogar de dados, sendo poténcia criadora que passou a0 lado tituindo-se desde entao e para sem. Siio palavras aparentemente banais, (poética) melodicamente, entrelacadas pela forga de ume do vulgo € chamou-o para si, cons! pre como arte (poética). . a concepgao de Martin Heidegger sobre Poesia: A Poesia (dit retanto, qualquer vaga fantasia, imagi- nagao por capricho, ou simples representagao no plano irreal. Enquanto projeto jluminado sobre a desocultagao, © que a Bossa instala e faz eno trago da forma (in den Riss der Gestalt ¢ introduzir antecipadame! inden oaberto, que ela permite acontecer para que, no interior do ente, o aberto possa conduzi-lo 8 harmonia e a luz (HEIDEGGER, 1997, p. 233). Tomemos 1e Dichtung) nao é, ent Em meio a concep¢ao heideggeriana, observamos a presenga fir- me da luminosidade: ela é 0 que abre, 0 que faz acontecer 0 projeto potti- co, desvelando novas percepgdes de mundo e que nao sao necessaria- mente irreais OU irracionais. A Poesia , pois, luminosa, € a linguagem postica, diversamente da linguagem Cotidiana, nao esta a servi¢o da falag3o do mundo e do entendimento diario; ela nao € a expressao daquilo que deve apenas comunicar e ser comunicado. As palavras poéticas nomeiam como que pela primeira vez as coisas, projetando luz sobre 0 que esté oculto, revelando, ainda que imperfeitamente (e sempre parcialmente, por deficiéncia da propria palavra e do proprio ser humano), “L...] 0 ente para o seu ser, partindo dele [mesmo]” (HEIDEGGER, 1997, p. 233). Dirdo os defensores do utilitarismo lingiifstico que a luminosidade vital e nomeadora da Poesia € uma balela criada por poetas € por alguns poetas-fildsofos para ndo serem banidos da cidade... Cremos as au dia a conosco essa perspectiva da necessida- endendo que t me a palavras poéticas, soubemos negocié-la compre- esia, bem como a Arte, [Jom - situa-s 0 se sabe hé muito tempo e como se esquece periodicamente, eee r6pria além da distingdo entre o verdadeiro € 0 fals0: is is } ’a nomeada exista ou nao, é sem pertinéncia para 0 escrilor Aditi: oe ace a oe dessa distorgdo da linguagem € que a palavra Pottica se desqualifica enquanto ato de eomunicagio [cotidianol Com a ica nada sendo el 14 Série Lincuene.. propria. Pode-se dize em que c ic s 5 8 f 7 n consigo mesma, ¢ ¢ essa intracomunicagao no € hada mais que ada Mais que O pray i PLSprO Principio da forma E perceptivel a forte c: aU estruturalista presente na 20 MesMo tempo, & ssertivaa de Jean Dubois. No entanto, r) o valor de represent ‘ordar (¢ 10 da realidade empfrica que ainda (e em ser “colado”) n: rechagi persiste em “cola do-nos ao jogo de esconde: 0 texto poético / liter alavras poéticas, lev: achar um referente concreto, material para rio. interpreti Em entrevista concedida ao jornalista Dante Filho, do jornal cam- po-grandense Correio do Estado, 0 escritor Wilson Bueno disse: no Pafs um perverso neo-naturalismo na literatura brasilei quest0es filoséfi ea prosa brasile: s tumultudrios Gra em detrimento da profundidade e das grandes que sempre nortearam a prosa, de um modo geral, em particular. Creio que no desejo de refletir os no do inicio do terceiro milénio, muita gente tem se equivocado ao querer copiar literalmente a realidade, esquecendo-se das fungdes estéticas da obra de arte, principalmente na literatura (2004, p. 5a). Também Manoel de Barros disse coisa semelhante aos ditos de Dubois e de Bueno, mas a seu modo, poeticamente: O que eu gostaria de fazer € um livro sobre Foi 0 que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Linas Cartas exemplares organi- zadas por Duda Machado. Ali se vé que o nada de Flaubert niio seri o nada existencial, o nada metaffsico. Ele queria 0 livro que nao tem quase tema e se sustente pelo estilo, Mas o nada de meu livro é 0 nada mesmo. K coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silencio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada por pedras, 0 parafuso de veludo, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas destiteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora (BARROS, 2001, p. 7). ente somente pelo seu estilo, Ele Barros procura © livro que se su busca a palavra que se sustente por si propria e que nilo se ancore na reali- dade empirica, nos referentes materiais existentes para além dela mesma. andar sem poesia?”, ja Sempre houve poetas, 1 € demais lembrar “Poesia no compra sapato, mas como €screveu e cantou o poeta Emmanuel Marinho. €m geral aqueles “dificeis de serem lidos” (nunca dade eoregional «15. 1m na defe. wy que se color Jo uma performance de se embrenhar ng io os Poe lic que nds lemos os livros € : sa do nada estilo” da palavea pod , mantene tachada de margin al, Eles foram © 8 Juta contra a men alidade me rendoldgica aidéia do e COMCLOs 9 capazes irista dos donos do e utili que inclui a sagra solam este is, que, CreMOS, poder e contr politicament éculos XIX e XX. Nio nos Jo dos ditos mitos nacional a consagrag ; Pafs desde 0 tempo dos belewistas dos 5 x om Liicia Santaella, [...] que 0 mais co- custa lembrar, ressado dos argumentos utilizados por es! e antagonismo é 0 alismo das vanguardas é elitista” (1995, p.102- jonalista & imperialista. ra a ocasido e da qual vra de origem grega, ros — trazer para juntamente co mum e ap! de que 0 experim 103). E, para alguns, éanti-nac o bastante witil pal ‘o € semidforo, pala’ composta por seme! signo — & por pho diante, carregar, fazer brotar. O semidforo seria um sinal carregado a frente de algo, a fim de indicar que esse algo possui um significado cujo valor situa-se para além de sua materialidade, funcionando simbo- licamente. O semidforo é uma fonte quase inesgotdvel de sentidos, } sendo capaz de entrelagar 0 visivel e o invisfvel, 0 passado e o futuro, 4 sempre que for necess4rio despertar o sentimento de comunhio, de celebragio e de pertenga em uma coletividade. Existe uma expressa nos a tratar, A expre: jon — sinal, passam somo Saeed a ee Por exemplo, da natureza brasileira is paraiso” (para usar a jd classica expressdo de Sérgio ei de Holanda) funciona como um semiéforo: simbolicamente 4 ou secs cape pntes n’algumas (poucas) paragens deste Pafs fa- ae mad “ . ee ve renconte e de retorno do homem com 0 ae rasil perdido para 2 Basie além-mar porta igus), Noentanto, como eatin one, teza, langa-nos ara fora d lo mund istéria” uni 63), ‘Bs ssa leitura d lo semiéforo F Sociedade . nos foi possivel autoritéria, gracas ao texto re Sociedade autoritaria, de M f . larilena Chaus (2000, p. 11-14). — Unguagens Na condigéo de habitantes desse pafs-jardim do Eden por Marilena Chauf, viventes de pito por natureza”, devemos nos comportar como Adio ¢ Eva antes cnune to um lugar abengoado por Deus € bor da queda: Tt inconscientes e, por vezes, incdmodos de um processo criativo ao espeitadores das normas, folgazes € cordatos, protayonis- tas modo de fantoches, orientados para a consecugio de objetivos indivi- duais (os de quem nos manipula e dissimu’ a manipulagao por de- os semidforos) e no coletivos (Cf SANTAELLA, 1995, p. 110). ae: tras di O tupy or not tupy oswaldiano talvez fosse o mote para que jardim e para que, além nos rebeldssemos contra os guardides do pafs-j de garantirmos nossa presenca neste espago, conquistassemos condi- des universais, sob bases hist6rico-culturais, e nao pitorescas, de (so- bre) vivéncia. Serfamos entao habitantes do mundo e no apenas de um paraiso tropical que se esvai lenta e tristemente, sob os auspicios dos discursos oficiais. Para ilustrar a presenga do discurso oficial em meio as discussdes sobre cultura e arte, utilizaremos a seguir trechos de falas do ainda ministro da Cultura, Gilberto Gil, proferidas no dia 14 de maio de 2003, lucidamente (e nado em estado de torpor ufanista) analisadas pelo historiador da arte Jorge Col! H4 passagens no discurso do ministro Gilberto Gil, que parecem provir de falas oficiais nos tempos do Estado Novo. ‘Apesar de todos os tragos culturais distintos e distintivos [...], somos igual- mente brasileiros’. Fraternos do Oiapoque ao Chuf. O clima € 0 de elogiiéncia parnasiana: ‘[Acreditamos na] grandeza do povo bra- sileiro, por ter sido capaz, ao longo de 500 anos de existéncia, sob 0 fogo da adversidade e 0 afago de uma moldura natural paradisfaca, de construir uma civilizagdo exuberante, vigorosa € criativa, que a cada dia conquista e fascina outros povos que se debatem nos seus impasses em busca de solugées para conflitos politico-soci- ais’. Numa vi ravel as nagdes. Mais uma vez, a Europa, e quem mais seja, se curva ante o Brasil (2003, p. 23). Lembramo-nos também de um artigo da articulista da Folha de S. Paulo, Barbara Gancia, quando do ano do Brasil na Franca — 2005. Entre exposicdes, desfiles de moda, feiras de livros, entrega de prémi- 0S a “autoridades”, tudo mostrando a exuberAncia e a criatividade bra- Travessios ¢ limites * Escritos sobre identidade e 0 regional 17 conteceram em outubro de 2005, os disttirbios que mob ‘Or e voltasse seu olhar para os imigra ae ii silei i . a a ara qu 7 m toda a Franga p: '° . se essidades. Gancia escreveu que finalmente 0 ano do Bra suas nect a Sil p, i a a ‘a face... Franga estava mostrando a sua verdadeir: Para além dos discursos oficiais, 0 eritico literario Luiz C ara s . Osta Lima faz uma questdo, cuja resposta muito nos interessa: Ha alguma coisa a fazer contra isso? Um ponto de partidg ie - ‘abive seria o reexame da questao da literatura nacional. Afinal, quando nos dedicamos & literatura, nosso foco Principal ¢ , literatura ou seu qualificativo, ser ela desta ou daquela Nacionalidade) O conceito de nacional [e também o de regional] nao tem limites) Ninguém cogita a nacionalidade do saber cientifico. A extensdo do conceito de nacionalidade & literatura e a cultura em geral era explicdvel no contexto do século 19. Manté-la, nos dias que correm, significa reduzir a literatura, no melhor dos casos, a docu. mento do cotidiano (2006, p. 6). Macaqueamos a defesa do politicamente correto num Pais que nunca teve respeito por si mesmo e que ainda hoje (ao menos nos discursos oficiais) defende um nacionalismo de verve romantica, pito- resca e bairrista que esconde uma “xenofobia interesseira”, Transportemos agora a questdo até aqui tratada para Mato Grosso do Sul. Seria, por exemplo, politicamente correto afirmar que € preciso preservar a musica regional (?) sul-mato-grossense e seus ‘ ritmos (2): a polca, o vaneirdo, - linhade raciocinio, também seria Teproducio de animais e de aves cas das cidades de Mato Grosso © chamamé, etc., etc., etc. Nessa politicamente correto afirmar quea tipicas do Pantanal nas vias publi- do Sul, serve para embelezar mais ainda espagos “bonitos por natureza” €, quem sabe, para despertar NaS Pessoas o interesse pela defesa das coisas desse lugar e para a OO 2 A expresso entre aspas é de autoria de Di acerca da polémica sobre 0 Contemporanea da USP (2001 18 écio Pignatari, sendo proferida em artigo Projeto do prédio que abrigaré 0 Museu de Arte P.11), Série Linguogens defesa de um novo nome ee esse lugar, mais afeito as suas quali- dades de “paraiso natural”, Ambas as assertivas por nés proferidas (aqui ironicamente) pa- recem-nos uma estratégica regionaldide que visa a obscurecer uma questio de (pro) fundo interesse: a discussio da dificuldade de forma- gio de um ptiblico que reconhega a obra de arte como obra de arte e nada mais. Que a obra s6 é de arte porque foi criada pelo artista e sé pode ser compreendida em meio e por meio de seu processo de cria- gdo e nao como fruto exclusivo de uma realidade externa ao seu cria- dor artistico. A verdade € necessdria enquanto nao-verdade, [...] na medida em que a ela pertence o dominio de origem do ainda- nao (des) coberto (des Um-Entborgenen) no sentido da ocultagao. Na des-ocultagao (n&o-ocultacdo), como verdade, permanece, ao mes- mo tempo, outro ‘des’ (’nao’) (das andere ‘Un’) de uma dupla inter- dicdo. A verdade permanece como tal na oposigiio da claridade e da dupla reserva. A verdade é 0 combate, no curso do qual, ede um modo proprio, € conquistado o aberto no qual se apresenta, e de onde se retira, tudo o que se manifesta e se afasta enquanto ente. Seja quando e como esse combate ecloda e aconte¢a, através dele os adversarios — luz e obscuridade — devem se separar. Assim € conquistado 0 aberto do espago de combate (HEIDEGGER, 1997, p. 223-224). Essa “clareira” aberta pelo combate faz entrar a luz do verossi- mil, daquilo que é sem ter sido empiricamente, daquilo que se imita por pré-sentido e nao por compulsao visual, tatil, olfativa ou auditiva. > Nao 6 demais lembrarmos que logo apés a primeira assungao de José Orcfrio Miranda dos Santos, o Zeca do PT, ao governo de Mato Grosso do Sul isso foi em 1999 -uma das primeiras propostas veiculadas por seu staff foi a mudanga do nome do Estado, que passaria a chamar-se Estado do Pantanal. Além disso, houve, em Dourados, segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, a publicagdo de uma série de artigos por parte de um vereador do PT defendendo a presenga dos “bichinhos” nas vias piblicas do Estado, dizendo como seria t4o gratificante para as pessoas marcarem seus compromissos de trabalho ou de lazer nao na rua tal, mas na esquina do orelhao da onga, em frente a rotat6ria da familia de capivaras... ional 19 Trovessios ¢ limites + Escritos sobre identidade e 0 regi ja Sa a avassala A proposta € que nos afastemos da sanha ‘A ae de uy Ca duz, ao modo hipematy,, orci oes discursos oficid s) que he an produtos a atures vem a realidade tentando impine! de uma técnic © Piblic, ando de fato sao obras C& a Feprodut, de arte quan a mostra sOmente o que ie poe i al acaba’ muito m: tomamos como exemplo trecho do attigg inddstria fonografica brasil e em série, como obras (por vezes, interessa. Mais uma veZ, i e Jorge Coli, quando ele s' -_ ' ° nddstria fonografica] promove apenas aquilo que the inter, assim, Mozart ou Beethoven. Diante da pobreza ~ Beethoven seriam. subversivos. Portanto Mozatt ¢ -se, mais & mais, inatingfveis pata grande mien te pais. Aqui, todos sofrem 0 seqilestro das formas musicais complexas, seqiiestro muitas vezes ccuaee em nome, ‘nacional’ e do ‘popular’. Qualquer um que queira escapar do mere, buscando gravagoes vindas de outros pa. do fonogrifico brasileiro, a ses e de outras culturas, sabe 0 quanto as taxas de importacao gj. pesadas € proibitivas. ‘A mesma coisa ocorre para fitas de video ¢ DVD. Para maior alegria do nacionalismo cultu ral € dessas prosperas inddstrias, assim protegidas (2003, P- 23). Ela [ai sa. Nao edita, sical, Mozart © Beethoven tornam dos que vivem nes! E neste ponto que reside a urgéncia da discusséo das questies artisticas e culturais no Brasil: recorrendo & tradigdo. Sim, & tradigio ao modo explicitado por Jonathan Ree, na esteira do pensamento de Martin Heidegger: Herdar uma tradigdo nao é o mesmo que celebré-la; na verdade, € antes © oposto. Vocé se apossa de uma heranga quando assume 0 controle delae lhe dé uma nova abertura para o futuro, no quando simplesmen te segue atrés dela guiando-se pelo passado (2000, p. 21). E també is os ém tomando por empréstimo o trabalho de Hannah Arendt jesmo t Burckhardt. cbse ma, Arendt, em uma referéncia ao historiador Jat damentais: i. ini Mace tradigdo s6 & sentida em seus acordes fur despertar : no a € os finais. Analogamente, é como se somenté 0 lesencarnar d; : eee: ; ‘aS Coisas tivéssemos a justa medida & sua importancia, Ai ia. Ainda se ‘gundo Aj 4 . entemente a existéncia d, rendt, os homens assumiram cons" i a tradica ; ocidental, somente em di adi¢ao e de sua autoridade no pensamet® adotou a cultura eo Nas Ocasides: no perfodo romano quand? Pens: ano, : 20 Série ss. ‘amento grego classico como a propria jo romana, € NO periodo romintico, durante 0 século XIX. an 7 fic ans , quando inicialmente glorificou a tradi¢ao para a seguir, discuti-ta, marcando o inicio de seus acordes finais (Cf ARENDT, 1979, p. 44) A modernidade romantica questionou a tradigio e a confianca Uc os homens depositavam nela, tentando substituf-la pelos on vanguardistas e por novos Preceitos, aparentemente dissonantes e anor- mais, mas que 0 tedrico alemio Hugo Friedrich bem interpretou como tendo seus “preltidios” j4 na segunda metade do século XVII, demons- trando-o por meio da anélise das obras de Rousseau e de Diderot (Cf FRIEDRICH, 1991, p. 15-27). A pretensao & desqualificagio da tradigdo acabou sendo a porta de entrada para idéias caéticas e para governos totalitdrios, que fize- ram brotar a barbdrie, a perplexidade e a desconfianga entre os ho- mens. Aparentemente isso significou o fim da tradigdo, mas nao o fim dos conceitos tradicionais. E é nos acordes finais da tradigdo que o homem, tomado por um sentimento catértico, distancia-se da meméria dos acordes iniciais, e 4 medida que a tradigdo deixa de ser fora viva, “[...] ela pode mesmo revelar toda forga coerciva somente depois de vindo seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela” (ARENDT, 1979, p. 53). Quem capitaneia essa coergao em geral sao homens que deferr- deram o novo, conheceram a experiéncia do novo, e por isso, querem representar o novo, porém, paradoxalmente, tentam afastar essa experi- @ncia da coletividade, recorrendo a distorgdes da tradi¢ao, obscurecen- do-ae “fechando” o campo aberto e luminoso da cultura € da arte. Esses homens, por interesses individuais e/ou corporativistas, implicita ou explicitamente participes de projetos ideol6gicos do Estado no qual atuam, s4o contrarios ou pelo menos se colocam na defensiva, contra a tradigao metamorfoseada em obra de arte. A obra de arte que sempre é uma estreante em meio as tradigdes mais sacralizadas: Fui morar numa penséo na rua do Catete. / A dona era vitiva e buligosa/ E tinha uma filha Indiana que dava pancas. / Me abatia. / Ela deixava a porta do banheiro meio aberta/E isso me abatia. / Bu teria 1Seela 3.4 wessias @ limites * Escritos sobre identidade e regional 21 TITER ITI Tron nao afobar, / Precisé Elameensinava: / Precis bem aia. Coy cavalo, Nobremente. / Usar 0 desorgulho dos animais. /Morder cheirar fugir voltar arrodear / lamber beijar cheirar fugit volar 7 : Nobremente, Como os animais. /1sso eu aprendi com minha name! : Mora. njfana, / Ela me ensina com ungientos. / Passava ungtenty wen ungilento pass va ungilento. / Dizia que era um ato religioso foder pe era preciso adomar os desejos com ungilento. / E passava ung ; passava ungiento. /S6 depois que adornava bem ela queria. /Pregava tn fazer amor € uma. eucaristia. / Que era uma comunhao./Ea gente com, gava o Pio dos Anjos (BARROS, 2006, 11) O poema Estreante, de Manoel de Barros, mescla Titos da tragj. gio catélica ao principio erdtico da a oo dois seres: 6, a um 6 tempo, oragiio, bengao € oferta daquilo que € mais caro ao homem _ sua propria vida. Os representantes oficiais do establishment, em suas falas ¢ em suas agoes, ao invés de jluminar as discuss6es coletivas com pro. postas que mostrem como e por que uma identidade e uma cultura se constroem, tornam triviais e banalizam experiéncias cambiantes entre o local eo universal. Vejamos, por exemplo, esculturas como a do indio Guaicuru no Parque das Nagées Indigenas, em Campo Grande, ou 0s / telefones com “motivos” de bichos do Pantanal, espalhados por todoo Estado de Mato Grosso do Sul. ; Somente quando uma presenga/uma existéncia é “espiritual”, estando para além do corpéreo, do material, ela pode ser espacial. A nogio de espacialidade como referente para classificarmos uma pre- senca/uma existéncia nao é suficiente: o lugar geografico e seus habi- tantes revelam-nos 0 excesso, o incomensurdvel que reside em si. Esse lugar, esses habitantes expdem que o mundo da cultura est4 sempre além do “ser brasileiro”, do “ser sul-mato-grossense”, demonstrando quanto 0 nosso auto-centramento nos coloca muito aquém do estranho e da compreens&o desse estranho como possibilidade de inserga0 & Paco-temporal e nado somente material/geografica. A Portanto, € preciso libertar as ongas, os jacarés e os tuivids das Brades da forga coerciva de uma tradig&o que se quer apagar € 4" mais qu iti : : que transmitir algo, oculta a obra de arte em sua perspectiva ™” — da: a de registro cultural aberto para 0 futuro, multifacetada e cun fe 1, fruto de lutas e de labut jnter-relacion’ as de geragdes e geragdes, Que se libertem as ongas, os jacarés e os tuiuitis submetidos a jo semelhante a dos andes de j uma sit , > jardim da Franga, presos nos jardins das residéncias. Parafraseando um dos itens do manifesto da Frente de Libertagdo dos Andes de Jardim da Franga (2001), que os animais do Pantanal deixem de ser ridicularizados em Praga ptiblica e que jam libertados para voltarem ao seu habitat natural. Ou que a historia desses animais e da pr6pria tradigZio acabe como a dos caramujos de Manoel de Barros: OS CARAMUJOS Ha um comportamento de eternidade nos caramujos. / Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um / dia inteiro até chegar ama- nha. / O proprio anoitecer faz parte de haver beleza nos / caramujos. / Eles carregam com paciéncia 0 infcio do mundo. / No geral os caramujos tém uma voz desconformada / por dentro. / Talvez porque tenham a boca trpega. / Suas verdades podem nao ser. / Desde quan- do a infancia nos praticava na beira do rio / nunca mais deixei de saber que esses pequenos / moluscos / ajudam as arvores a crescer./E achei que esta hist6ria s6 caberia no impossfvel. / Mas, nao; ela cabe aqui também (BARROS, 2001, p. 31). 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