You are on page 1of 108
OS Re) TC eer A GUERRA DA RUA DOS SIAMIPES “. = ” APaginastore 7 CARA LEITORA, CARO LEITOR, Lohip-Hopbatos? Siamipés? Este € um livro que, ja no titulo, nos deixa muito curiosos. O que significam essas pala- vras, afinal? Para descobrir, vocé tera de aceitar participar de uma aven- tura junto com Alex, Rita, Ivan, Anita, Briel, Livia e Antonio. No comeco dessa histéria eles nao sio muito amigos — alias, eles brigam bastante porque nado conseguem dividir, de um jei- to legal, o mesmo espaco. Os Lohip-Hopbatos em a guerra da rua dos siamipés € um romance — género literario o qual, apesar de ter esse nome, nao narra sempre uma histéria de amor — que mostra como € complexa a forma como os adolescentes se relacionam. Tam- bém deixa claro o quanto eles (e vocé, é claro) sao capazes de compreender o que é realmente importante e se unir em prol do bem comum, colocando o coletivo acima dos interesses in- dividuais. Um desafio que vocé, estudante do 62 ou do 72 ano do Ensino Fundamental, tera de enfrentar € que, nesta histéria, ha sete narradores-personagens, cada um com um jeito de apresentar os fatos, pensar e, principalmente, expressar suas ideias, pois tém experiéncias de vida muito diversas. Uma historia divertida, com um toque de mistério, uma boa dose de drama e uma grande oportunidade para refletir sobre a atuacao cidada de jovens adolescentes como vocé, tu- do isso lhe espera nesta obra. Boa leitura! OS LOHIP-HOPBATOS em A GUERRA DA RUA DOS SIAMIPES FLAVIO DE SOUZA OS LOHIP-HOPBATOS em A GUERRA DA RUA DOS SIAMIPES itustracdes de SUPPA APaginasiore / Copyright do texto ® 2018 by Flavio de Souza Copyright das ilustracdes © 2018 by Suppa Grafia atualizada segundo 0 Acorde Ontografico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Preparaclo ANA MARIA, ALVARES Revisio VIVIANE T, MENDES ARLETE ZEBBER Composisao LIAN MIISUNAGA Grafives das piginas 25, 50 ¢ 52: pa. Dados Internacionais de Cacalogaglo na Publicagao (ci) ‘Angélica Icqua c1w-8/7057 Souza, Flavio de (Os Lolip-Hopbatos em a guerta da rua dos siamipes J Flavio de Souza ; ilustragdes de Suppa. — 1! ed. — Puranagud : A Pigina Store, 2018. sex 978-85-54309-01-5, 1. Literaaira infantojuvenil |. Tilo. 1. Suppa 18.0795, indice para catilogo sistemitico 1. Literatura infantojuvenil 028.5 [2018] Todos os direitos desta edigdo reservados a A PAGINA STORE COMERCIO DE LIVROS EIRELI Rua Joao Eugenio, 711 — Loja 44 83203-400 — Paranagua — pa Telefone: (41) 3292-4099 Alex Antonio Para o Riba, a Lila, 0 Le, o Theo, a Ludi, a Lily e a Ceci i Oe oe ad ken < Me Rita Ivan Anita Briel Livia EN mm © 1, A cHEGADA Do Antonio Escrito por Ritandorinha A LEITURA INTERROMPIDA “O Cavaleiro Negro tomou impulso e foi pulando ligeiro de uma telha a outra da cipula abobadada do palacio majestoso, onde o maligno impostor, o sultéo El Aldebara, se escondia e governava, sem boa inten¢éo e com muita injustica. Ia tentan- do nao escorregar, pois as telhas estavam tmidas de chuva, ¢ quebrando algumas pelo caminho, sem nem se importar com a possibilidade de uma queda certamente fatal. O Cavaleiro se movimentava sem ser visto pelos guardas, na sua maioria mer- cenarios sanguindrios, sem alma e armados até os dentes. “Mas, quando o destemido heréi tomou impulso para aden- trar, com um salto, o quarto onde a bela e misteriosa princesa Odete era mantida prisioneira, uma flecha certeira veio zumbin- do do outro lado do palacio, prendendo uma das mangas da ca- misa de tecido peludo do Cavaleiro Negro ao parapeito da janela “Sem poder se esconder ou fugir, ele foi iluminado pelo fo- co brilhante que veio la de dentro, da lampada nada maravilho- sa que a princesa trazia, com a mao tremendo, para perto da ja- nela, querendo saber o que estava causando tanto movimento 1a fora. “Entao, ele se tornou um alvo facil para cento e cinquenta guardas corpulentos e implacaveis, que la de baixo agora po- diam ver o valente ¢ impetuoso herdi. Fles se prepararam para atingi-lo e, certamente, em pouquissimo tempo, o transforma- riam num porco-espinho! “O Cavaleiro Negro olhou para o céu escuro nublado e sem lua, tentando imaginar como seria aquele lugar, pois parecia que, muito em breve, ele estaria de mudanga para la. Sua situa- cao nao poderia ser mais desesperadora.” Eu parei de ler e disse: — A gente sabe que o Cavaleiro Negro nao pode morrer. Qual é a graca de o heroi ficar em perigo mortal todo fim de ca- pitulo? A gente sabe que ele ndo vai nem se machucar. O Alex bufou: — A gente sabe que vai tomar banho todo dia antes do jan- tar, Rita. Mas a gente sempre tem a esperanga de que vai conse- guir fugir e dormir suado e fedido. — Eu acho essa ideia bem nojenta, mas a gente pode deixar pra discutir depois que o capitulo acabar — eu respondi — O capitulo ja acabou, mana — disse o Ivan. — Entio é a minha vez de ler — disse o Alex, pegando 0 livro. Mas ele nao chegou a ler nem uma palavra, porque a Anita saiu da casa dela, com a Livia, carregando um enorme apare- lho de som ligado no tltimo volume. — Essas garotas estao querendo briga! — eu falei, ficando em pé — Por que elas nao vao dancar no quintal da casa delas? — perguntou o Alex, com cara de touro vendo um pano vermelho. Pela cara do Ivan, deu pra ver que ele pensou a mesma coi- sa que eu: que a gente também podia ler no quintal da casa de alguém. Eu nao falei o que pensei, ele também nao falou, mas respondeu: — Desse jeito elas nao atrapalhavam ninguém. — E isso ai! — 0 Alex e eu dissemos ao mesmo tempo, e a gente estava pronto pra primeira batalha do dia. i RATOS E LIQUIDIFICADORES A Anita baixou o volume do som pra que os trés vizinhos ouvissem o que ela ia dizer pra Livia: — Olha so, tem trés ratos debaixo dos ipés. O Alex deu um passo pra frente, e, muito bravo, respondeu provocando: — Quem tem cara de rato € vocé! E pode ir desligando esse som que a gente chegou aqui primeiro. E é bom fazer isso lo- go senao vai ter! Mas as duas vizinhas nao ouviram nem o “quem tem cara de rato”, porque a Anita logo aumentou o volume do aparelho de som pra valer. E a primeira bata- Tha daquele dia da guerra da rua dos siamipés comecou entre a gente, que ja estava debaixo da sombra dos ipés, e as duas que tinham chegado depois, todos falando, gritando, berrando ao mesmo tempo: —Eo seguinte: vocés estao em minoria, entao desliga isso ai, Nita, ou volta com a sua amiguinha pra casa. E é bom fazer isso agora mesmo porque vocés ja atrapa- lharam bem a nossa leitura! — Nao é justo, Alex! Vocés nao sio donos desse terreno! Nem dos ipés! Muito menos da sombra deles! 12 — Agora eu nao tenho nome? Eu sou sé a amiguinha dela, é? Hein, Alex? Hein, Ivan? Hein, Rita? Hein? — Ah, nao! Os liquidificadores podem ir liquidificar em ou- tro lugar, ta? Ouviu, Livia? Ouviu, Anita? — Estou vendo que nao vai dar pra ler aqui hoje. Mas vo- cés também nao vao poder dangar! Se é que da pra chamar de danga o que vocés fazem enquanto escutam musica! DANDO NOME AOS BOYS Antes de continuar a histéria é melhor dar nome aos boys O meu trio, que gosta de ler e jogar debaixo dos ipés, se cha- ma de Os Lobatos, em homenagem ao escritor Monteiro Lobato. O outro trio, que gosta de cantar e dancar de um jeito mui- to estranho debaixo dos ipés, se chama de Os Hip-Hops, por causa do ritmo musical. S6 que os Hip-Hops chamam os Lobatos de “ratos”, por causa daquela expressao “rato de biblioteca”, que é um apelido pra quem gosta muito de ler. E os Lobatos chamam os Hip-Hops de “liquidificadores”, porque acham que o trio danga bem mal e parece que esta s6 se sacudindo feito um liquidificador ligado. Ah, faltou uma explicacao: outro garoto, o Briel, que até aqui ainda nao apareceu na historia, € o terceiro Hip-Hop. O CAMINHAO QUE TROUXE MUDANCAS A Livia e a Anita concordaram com o Alex. Elas estavam 13 mesmo em minoria. A Livia comecou a gritar chamando o com- ponente que faltava: — Briel! Briel! Vem ja aqui! Enquanto isso, a Anita pegou o celular, apertou uma tecla e berrou: — Os Hip-Hops estao sendo ameagados! Vem ja aqui! A batalha daquele dia ia ficar feia. O Alex ja estava furio- so, com os olhos bem arregalados, esbugalhados mesmo, mas falando cada vez mais baixo. A Anita e eu ja estavamos quase histéricas. A Anita falava com uma voz aguda feito a de um sagui agitado; e eu tentava dizer alguma coisa, mas sé saiam solucos, apesar de eu estar fazendo o maior esforco pra nao chorar A Livia estava comegando a ter um daqueles ataques de riso que rolavam quando ela ficava muito nervosa. De novo, todos sussurravam, falavam, gritavam, berravam, ao mesmo tempo: —Eo seguinte: vocés so muito sem nocao, parem de men- tir sendo vai ter! Vocés nao podem chegar aqui com esse som al- to desse jeito, é falta de respeito. Sera que seus pais nao deram nem um pingo de educacao pra vocés, hein? — Quem esta atacando quem? Quem é€ que estava aqui sos- segado até vocés chegarem? Quem? Quem? Quem? — Vocés sabem que nao é justo! Vocés passam o dia aqui! A gente ta cansada de ficar esperando a nossa vez! — Precisa fazer esse escandalo? E pra provocar, nao é? Acho que é! Nao? Entao pra que tanto drama? — Sabem o que os liquidificadores podem fazer? Liquidifi- car em outro lugar! Agora mesmo! O Alex estava pronto pra dizer varias daquelas frases que, i4 depois, ele sempre se arrepende de ter dito. Mas sé ficou com a boca aberta, sem falar nada, porque o Briel saiu correndo do so- brado onde morava, que era um dos primeiros da rua, anun- ciando: — Fle esta chegando! Fle esta virando a esquina! Mais meio minuto e ele vai estar aqui! Os outros quatro garotos e eu ficamos com cara de “quem ¢ ele? e por que ele esta chegando? e chegando pra fazer 0 que aqui?”. O Briel olhou pra gente com cara de “como vocés sao estitpi- dos”, e disse: — Eo caminhao de mudanca que esta chegando, com a fami- lia que vai morar no 21 Nos nos olhamos, demos um berro e saimos em disparada pra trocar de roupa e pentear o cabelo. Os wés meninos correram até o comeco da rua pra ver 0 ca- minhao de mudanga chegando. De tao animados com a novida- de, esqueceram que o menino que ia morar no 21 podia desem- patar a guerra entre os Lobatos e os Hip-Hops. A turma que fi- casse com ele ia ter maioria, € a vitoria seria certa em todas as disputas. Fazia varias semanas que nos, os seis vizinhos, vinhamos recebendo, aos poucos, noticias sobre a familia que ia morar no sobrado numero 21. Desde a Anita, que tinha se mudado pra la quando a gente tinha entre trés e cinco anos, era a primeira vez que chegava um garoto desconhecido. Entao o caminh@o entrou na rua, e a Anita, a Livia e eu vol- tamos correndo pra ver. Eu estava tonta, quase desmaiando de emogao. Parecia que estava chegando um £.1. numa nave espa- cial. Um viajante no tempo, numa capsula. Ou o principe her- deiro do trono da Inglaterra numa carruagem de ouro. “Como sera que é esse Antonio?”, era 0 que estava na mente e nos olhos de todos, e essa pergunta estava prestes a ser res- pondida. NEM TONINHO, NEM TONHAO O caminhao enorme nfo trouxe apenas toda a mudan¢a da familia do Antonio. Trouxe também o préprio garoto, que ia cau- sar tantas mudangas na rua dos siamipés. Nas mudangas, as pessoas sempre vao antes, depois ou logo atras do caminhao, em um ou dois carros, ou de énibus. O An- tonio tinha que fazer diferente, depois eu descobri que ele sem- pre tem que fazer tudo diferente. Veio dentro do caminhao, junto com os carregadores, os méveis, as caixas com roupas e objetos. Foi assim que a gente viu o Antonio pela primeira vez: o motorista abriu a porta de tras do caminhio, ¢ ele estava 14, rin- do, montado numa poltrona como se fosse um caubdi de filme antigo cavalgando um enorme cavalo. Mas eu tive sorte, porque era hora do almoco e em seguida todos foram chamados: — Nitinha! Venha almocar! — Alexaaaaaaaaandre! Almooooo00000¢0! — Livia, o almoco esta na mesa! Nao me faca chamar vocé de novo! — Briel, o almoco esta servido. Venha logo senao a comida vai esfriar e eu ndo vou requentar! — Nitinha! Vocé nao ouviu? Venha almogar! Ja! Agora mes- mo! Imediatamente! 16 Foi cada um pra sua casa, menos eu. O Ivan, meu irmio, al- moca todo dia na casa do Alex; ele acha que a comida de la €a mais gostosa da rua. E pode acreditar nele: o Ivan ja almocou, jantou, tomou café da manha e lanche em quase todas as casas. Ninguém me chamou pra almocar. Eu estou sempre pronta pra esvaziar um prato. O pessoal la de casa sabe que eu vou mesmo sem ser chamada. As vezes demoro e requento eu mes- ma a comida. O pessoal sabe que eu me viro. Por isso, fui a unica a dar as boas-vindas pro Antonio: — Oi, Toninho, tudo bem? Eu sou a Rita. Ele nao parou de sorrir, me abracou e disse: — Nao. Eu fiquei um pouco sem graca e perguntei: — Nao o qué? Ele riu e respondeu: — Toninho nao. Nem Toni, nem Tonhio. Toté nem pensar, 17 que eu nao sou cachorro, Ninho também nao serve, porque eu nao sou casa de passarinho. Eu sou 0 Antonio, Valeu? ELE E UM LOBATO! Posso dizer sem mentir que fui a primeira da rua a ficar ami- ga do Antonio. Ele me contou um monte de coisas sobre ele, sua familia, a casa antiga, a casa nova, 0 papagaio de estimagao. Nem precisei perguntar se ele gostava de ler porque foram chegando caixas e mais caixas de papeldo com “Antonio” escri- to varias vezes nelas, e dentro tinha mais livros do que qualquer outra coisa. Deu pra esperar uns cinco minutos antes de convi- dar o Antonio pra ser um Lobato. Ja tinha se passado algum tempo, quando o Alex veio fazer outro convite — Oi, eu sou o Alex. E 0 seguinte: vem almocar na minha ca- sa, € vem logo senao o lvan vai comer tudo. Vem vocé também, Rita! Quando 0 Antonio foi lavar as maos, na casa do Alex, eu es- tava muito emocionada, e, do mesmo jeito que o Alex faz, eu dis- se pro Ivan comer mais devagar e mas igar mais e beber menos Agua e deixar comida pro dono da casa e pro nosso novo vizi- nho e amigo. E ai falei com a maior satisfacao: — Ele é um Lobato! 18 2. O BAFAFA Escrito por Curiolivia Oi, vocé ai. Pra comeco de conversa, meu nome é€ Olivia de Oliveira Pereira. Meu nome artistico vai ser Livia Olipe. Mas por enquanto eu nao preciso de nome artistico. Eu queria ter es- colhido ser uma gralha-azul, que é 0 nome de um passarinho do Parana, estado onde meu pai nasceu. Fu nasci em Florianépo- lis... Mas essa historia de nome de passarinho s6 vai aparecer mais pra frente nessa historia... Ih, me enrolei. Melhor come- car de novo. Oi, vocé ai. Antes de mais nada eu quero deixar uma coisa bem clara. Eu gosto de dancar e cantar e ensaiar desfiles de mo- da. Mas isso nao quer dizer que eu nao gosto de ler. Eu adoro. Ea Anita também. A gente sé nao tem vontade de fazer isso de manha, de tarde e de noite. Entao... Ih, me enrolei de novo. La vou eu comegar de novo... Oi, vocé ai que esta lendo. Deixe contar pra vocé: eu nun- ca almocei tao depressa como naquele dia. Mas a Anita bateu o recorde mundial. Em oito minutos ela ja tinha almogado. Tinha trocado de roupa outra vez. E tinha passado na minha casa pra me perguntar: — Vocé me empresta o seu secador? O meu ta zoado. Eu falei: — Vocé lavou o cabelo, Nita? 19 Ela disse: — Nao. Posso lavar aqui? Meu chuveiro também ta zoado. Eu falei: — Desse jeito vocé s6 vai conhecer o Toninho de noite. Ela disse — Que exagerenorme, Livida! Eu disse: — Vocé sabe que eu nao gosto quando vocé me chama de Li- vida. Nao me chama de Livida. Principalmente na frente do To- ninho Ela disse: — Desculpe, amiguimensa, me distrai. Mas € que estou ner- vosa, ansiosa, sei la, até aflita. Nem sei se eu vou conseguir fa- lar alguma coisa de tao emocionada que eu — CHEGA, NITINHA! Eu dei um basta na Anita. Quando ela comeca a contar como esta se sentindo, pode falar sem parar durante meia hora. Ela sé para pra respirar. E bem de vez em quando. Eu preciso sempre falar pra ela que os seres humanos precisam de oxigénio. Dai eu disse: — O seu cabelo ta lindo. Como sempre. Espléndido. Des- lumbrante. Quisera eu ter um cabelo assim. Eu nao exagerei. Eu queria mesmo ter o cabelo da Anita. Quer dizer, cabelo igual ao da Anita. Queria muito. Queria de- mais. Quer dizer, ainda quero. Que menina nao quer ter cabe- lo liso? Bem liso? Muito liso? Escorrido de tao liso? O incrivel € que a Anita queria ter 0 cabelo ondulado co- mo o meu. Quantas vezes eu ouvi a frase: “Por que meu cabelo nao é ruivo e cacheado como o seu?”. Que coisa mais louca, né? Th, me distrai de novo. Voltando. 20 A Anita deu um sorrisenorme, como ela chama um sorri- zao. E falou: — Valeu, amigueterna. Vambora conhecer 0 novo vizinho? Dai a gente foi dar uma ultima olhada no espelho. E o Briel entrou correndo. Suado, de tanta pressa. Dizendo: — Parece até que vocés vao pra uma balada. Eu preciso de reforco la no campo de batalha! Eu falei: — Calma, Briel. A gente ja vai. A Anita disse: — Nao deu tempo de os ratos catarem o Antonio pra tur- ma deles. 21 O Briel falou, nao, ele berrou: — Como é€ que é?! Ele esta almocando na casa do Alex! Eles esto todos almocando na casa do Alex! Se a gente nao fizer al- guma coisa bem rapido vai ser 4 a 3 pra eles o resto da vida! O Briel estava TAO nervoso que os éculos dele estavam emba- cados. Que coisa, né? Por que sera que a maioria dos cientistas usa 6culos? Quer dizer, 0 Briel nao ¢ cientista, mas os pais e os irmaos dele sao... Na verdade, o Briel ja € praticamente um cientista. Ele lé na boa livros dificeis, tipo sobre pa. Ele lé como se estivesse lendo um gibi. Ou as instrugdes de um videogame. Eo nome dele NAo é Gabriel. E Copérnico. Os irmaos que sao todos mais velhos, se chamam Galileu, Euclides e Arqui- medes. Sao nomes de cientistas, né? Acho que, se eu fosse o Briel, preferia me chamar Galileu. Mas nao tenho certeza... Ih! Dessa vez eu dei uma bela viajada, hein? Voltando. Dai aconteceu uma coisa um pouco... nao, aconteceu uma coisa bem engracada. O Briel puxou a gente e nos empurrou até a entrada da minha casa. Quando ele abriu a porta, deu de cara com o Antonio, que falou: — Oi. Eu sou o Antonio. Vocé, vocé ou vocé tem chave de fenda ai? Eu nao sei qual de vocés mora aqui. Mas tanto faz, né? Eu dei uma cotovelada na Anita. Pra ver se ela acordava. Ela estava parada, de boca aberta feito um peixe de aquario. Pare- cia até que ia soltar bolhas. Ou babar. O Briel falou: — Parece até que o Mandrake fez uma daquelas magicas nela. 22 O Antonio disse: — Ou ela olhou pra Medusa olho no olho. Os dois meninos deram risada. Eu dei risada também. Mes- mo sem saber qual era a graca. A Anita continuou paralisada. Eles se cumprimentaram daquele jeito de menino, quan- do quer fazer amizade, mesmo tendo se conhecido uns trés se- gundos antes. Se bem que depois eu descobri que o Antonio é assim Com TODO MUNDO... com as meninas, inclusive... A Anita acordou. E disse — Meu pai tem uma cole¢ao de ferramentas. Esta tudo 14 na garagem. Vocé me ajuda a pegar, Livida? Livia! Eu disse Livia. O nome dela é Olivia, viu, Toninho? — Nao. — Nao? — Nao mesmo. — Nao mesmo 0 qué? — Eu nao sou Toninho. Nem Toni, nem Tonio. Muito menos Toté, Tonho, Tonhao. E Ninho, nem pensar. 23 Dai eu disse: — Ea gente chama vocé do que? — Antonio. E o meu nome. — TA bom. Antonio. Eu sou o Briel, ela é a Anita e ela é a Olivia, — Pode me chamar de Livia se vocé quiser. — Ta bom, eu chamo. Oi, Livia. = OLs. Eu fiquei pra 14 de contente. Porque o Briel ficou com um pouco de citime de mim. Bem pouco. Nao deu nem pra perce- ber. Mas eu sei. Ele ficou, sim. Ih! Antes que eu comece a viajar de novo, vamos pro final desta parte da histéria. Fui com a Anita buscar as chaves de fenda. Na garagem da casa dela. Ela queria correr pro banheiro pra lavar o cabelo, mas eu nao deixei. Ela concordou porque eu lembrei que o secador dela estava zoado. E o chuveiro também. Enquanto isso o Antonio e o Briel trocaram varias ideias. Dai a Anita e eu voltamos com as chaves de fenda. A essa al- tura parecia que eles se conheciam desde que tinham nascido Dai o Briel convidou o Antonio pra fazer parte dos Hip-Hops. E ele aceitou! viroria! Dai a gente foi com o Antonio pra casa dele. Uma das tias dele estava colocando os lustres. Era ela que precisava das cha- ves de fenda. O pai do Antonio nao estava la. E que o pai dele morreu faz Muito tempo. Mas depois a gente conversa sobre es- se assunto, ta bom? m4 Dai a gente foi conhecer o quarto do Antonio... E, eu sei que comecei a por bastante “dai”. E que quando eu fico nervosa acontece isso. Podia acontecer coisa pior, nao podia? Tipo o Ivan. Quando ele fica estressado, desmaia. Com os olhos ABER- tos. Fica parecendo que ele morreu. E bem esquisito. Aflitivo. Assustador. Ja vi isso acontecer varias vezes. Ainda nao deu pra me acostumar. lh! Voltando. Dai a gente chegou no quarto do nosso Hip-Hop. E os ratos estavam 14. Os trés. Com mais cara de rato de biblioteca que nunca. Os trés estavam examinando os livros do Antonio. Um por um. E ele tinha pilhas de livros O que aconteceu depois foi uma gritaria, um rebu, um bafa- fa. O Alex disse pra gente: — O que vocés estao fazendo aqui? Eu falei: — O que vocts esto fazendo aqui? A Rita disse: — O que vocé acha que a gente ta fazendo, Livia? Fritando bolinho? O Briel falou: — Nao! Vocés invadiram a casa de um cara que € muito educado pra mandar vocés embora! O Antonio tentou falar: — Espera ai... Galera A Anita comecou: — Eu sei que vocés também tém que ter o direito de serem amigos do Toninho, nao, do Antonio! Mas, sei 4, ele também tem que ter o direito de nao ser amigo de vocés, certo? Nao € justo... O Ivan interrompeu: — Quem disse que ele nao quer ser nosso amigo? Nosso nao. Meu, da Rita e do Alex? A Rita gritou — E isso mesmo, Briel! E nao adianta fazer essa cara! O Briel gritou de volta: — Cara do qué? A Rita respondeu: — Cara de “vocé ta falando uma besteira muito grande”! Foi a minha vez de gritar: — E vocé ta mesmo falando uma besteira, Rita! E completei: — Euma besteira sew grande! 26 O Alex tentou organizar a discussio: — Vocés nao acham que a gente nao devia fazer isso na ca- sa de um cara que a gente acabou de conhecer? Mas, pra variar, todo mundo comegou a falar, gritar, berrar bem alto e ao mesmo tempo: — Pra mim ele ja é um velho amigo! — Pra mim Tame! — Parece que eu conheco o Antonio desde a Idade da Pedra! — E muito facil acabar com essa discussao. E s6 contar pra eles o que aconteceu la na casa da Livida! Livia! — Eu acho melhor a gente falar um de cada vez. — Nao, senhor! E muito melhor a gente falar um de cada vez — E muito simples: 0 Antonio ja é um Lobato e vocés es- tao em minoria! — E s6 contar que o Antonio aceitou o convite pra ser um Hip-Hop! — O nosso trio agora é um quarteto! — O que foi que ela disse? — O que foi que tte disse? — O que foi que ela pisse? — O Antonio é um Lobato! — O Antonio é um Hip-Hop! — Para de mentir! — Vocés nao acreditam? — Pergunta pra ele! —E verdade, Antonio? — © qué? Eu nao entendi nada do que vocés falaram —E verdade que vocé quis ser um rato? — Rato? 27 — Um Lobato. — E verdade, sim. — Mas vocé concordou em ser um Hip-Hop! — Concordei, ué. — Ja vi tudo! Vocé € um espiao! — Nao, ele é um contraespiao! — Ele € os dois! — Vocé nao pode ser das duas turmas ao mesmo tempo! — Deixa eu explicar: eu nao sabia disso. — Vocé ia ter dupla identidade! — Que absurddximo, carinhesquisito! — Eu nao sabia que tinha que escolher. — Como nao? — Vocé nao pode torcer pro Palmeiras e pro Corinthians ao mesmo tempo! — Ou pro Santos e pro Sao Paulo! — Ou pro Flamengo e pro Vasco! — Ou pro Inter e pro Grémio! — Ou pro Cruzeiro e pro Atlético! — Entdo é melhor eu nao ser de turma nenhuma, né? — E, sei la, mas dos Lobatos vocé nao é mais, mesmo! — Nem dos Hip-Hops! — Vocé devia ter vergonha de ser um... — Mercenario! — E isso mesmo! — Tchau! — E, tchau e até nunca mais! — Nunquissima! — Adeus! Adids! Goodbye! 28 3. Onde, 0 aué, QUANDO, QUEM Escrito por Colibriel Antes de continuar a historia, acho que a gente precisa dar uma organizada nessa bagunca. Sem querer criticar ninguém, faltam descrigdes, explicacdes e apresentacgoes. Do jeito que a histéria foi contada até aqui, parece que todo mundo do mundo todo conhece a rua onde a gente mora e quem mora nela. ONDE A NOSSA RUA O nome da rua dos siamipés é rua Professor Chiquinho de Souza. E uma rua sem saida, de um quarteirao, com quatro so- brados de um lado e quatro do outro. No fim dela tem um terreno vazio, mas nao baldio. Um ter- reno baldio nao tem construcées, plantagées, nem qualquer ou- tro uso, ¢ 0 nosso é usado pra muitas atividades de varios ti- pos. Nele cabem trés sobrados do tamanho dos da nossa rua. Bem no meio dele, perto do muro, tem duas arvores. Sao dois ipés, um roxo e outro amarelo, que ja podem ser vistos desde a entrada da rua. A gente chama esses ipés de Chris e Flora. Eu vou deixar o Alex explicar por que eles tém esses nomes na parte que ele vai escrever, senao vou ouvir recla- macées 0 resto da vida. Do lado de 14 do muro no fundo no terreno, tem um bar- ranco e uma rua la embaixo, mas bem la embaixo mesmo. Se 29 alguém cair do muro pro lado do barranco, tem pouca chance de sobreviver. E uma queda de mais de quinze metros de altu- ra! Mas isso nunca aconteceu, porque o muro é alto e tem uma grade em cima. Foi nisso que eu pensei quando estava pendurado, quase caindo de um dos galhos mais finos de um dos ipés, na parte da copa que fica pra 14 do muro... Bom, mas esse acontecimen- to faz parte de um trecho da historia que vai ser contado mais pra frente. De um dos galhos do Chris e da Flora da pra ver o que exis- te do lado de 14 do muro. Tem um pedacao da cidade. La de ci- ma a gente tem a nocao de que, se podemos ver ruas e ruas, com casas e casas cheias de pessoas e mais pessoas, la de baixo eles também podem ver a copa dos nossos ipés Na frente de cada casa da rua também tem uma Arvore, e nenhuma delas é um ipé. Sao quatro tipos de arvore que cor- rem perigo de sumir do mapa do Brasil e do mundo. Acho que quem plantou sabia o que estava fazendo. De cada lado tem uma imbuia, uma canelinha, um caiapid e um marmelinho. A dona Ella, a antiga dona de todos os sobrados, que mo- ra no nitmero 12, 0 primeiro da rua a direita, ja quis derrubar todas essas oito arvores. Ela acha que elas fazem muita sujeira, deixando as calcadas ¢ a rua cheias de folhas. $6 que nao con- seguiu, porque se a dona Ella acha que é dona da rua, os ipés eas outras arvores também tém dono. Ja, ja eu conto quem € 0 dono das arvores da rua Professor Chiquinho de Souza. A rua por onde se chega a nossa também € sem saida e termina logo depois da entrada da nossa. Pra lé do quintal das casas da esquerda tem a continuacao daquele barranco com queda livre de quinze metros. Por isso, a nossa rua € como se 30 fosse particular. E como se fosse uma vila. Mas qualquer pessoa tem o direito de entrar la na hora que quiser. A rua dos siami- pés € publica. O Antonio vai fazer uma planta da rua por aqui. Vai ficar mais facil de ver quem mora onde 31 O QUE Os SIAMIPES O que quer dizer a palavra “siamipés”? Ea mistura de “siameses” e “ipés”, Por que eles sao chamados de siameses? Siameses sao irmaos gémeos que nascem com 0 corpo gruda- do um no outro, Isso acontece muito raramente. As vezes € pos- sivel fazer uma operacao pra separar os dois, outras vezes é impossivel. Mas por que esses irmaos gémeos grudados s4o chamados de siameses? Sido € 0 antigo nome de um pais chamado Tailandia, que fi- cana Asia. Existiram dois irmaos gémeos grudados que ficaram muito famosos porque se exibiam em circos. Eles tinham nasci- do no Siao, e por isso eram chamados de irmaos siameses. Por causa da fama deles, outros irmaos gémeos grudados come- caram a ser chamados de siameses. Outro nome pra siameses é xif6pagos. Os dois ipés do terreno vazio, um amarelo e outro roxo, nasceram bem junto um do outro, e conforme foram crescen- do foram ficando com os troncos entrelacados, e quando vira- ram arvores ficaram parecendo uma s6, com uma metade da copa que dava flores amarelas ¢ a outra que dava flores roxas QUANDO Esta historia aconteceu durante as [érias de julho, quando a gente tem o dia inteiro livre e pode dormir e acordar mais tarde 32 Essa também € a época em que a Flora e o Chris ficam cheios de flores e deixam o chao do centro do terreno com um tipo de tapete amarelo e roxo. QUEM 1 — Os MorADORES, CASA POR CASA O Antonio vai fazer um retrato de todo mundo da rua pra ficar mais facil de saber quem é quem. A minha parte € com palavras. Comecando pelo primeiro sobrado do lado direito Casa 12 E onde mora a dona Ella. Ela era dona de @ todos os sobrados da rua, mas agora é dona s6 do nimero 12, do 32, onde mora a familia da Livia, e do 21, que ficou vazio por mais de um ano e onde vive agora a familia do Antonio. Mesmo nao sendo mais a dona da rua inteira, ela se comporta como se fosse. A gente nfo sabe a idade da dona Ella. Pode ser entre quarenta e oitenta anos. Ela esta sempre com bastante maquiagem, a qualquer hora do dia, mesmo de manhazinha. Fla é vitiva, e nunca ninguém a viu vestida com roupas que nao fossem pretas. Muitas vezes ela usa lencgo na cabega, ou um agasalho com capuz, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Por isso ela 33 é parecidissima com a madrasta da Branca de Neve, do dese- nho animado, na versao bruxa velha, banguela, feia e corcunda. Tem algumas pessoas da rua que acham que ela é mesmo uma bruxa. Eu nao sou uma delas. Acho sé que a dona Ella € uma pessoa muito solitaria, entediada, neurética, infeliz e ma Casa 22 E a casa da familia dos irmaos Rita e Ivan. Ela € um ano e alguns meses mais velha que ele. Os dois sao morenos de olhos verdes. Eles vivem lendo e jogando todo tipo de jogo. A Rita escreve um monte, todo dia. Se ela nao for escritora, roteirista ou jornalista quando for adulta, vai ter uma profi a0 em que a pessoa precisa saber escrever bem. Além de ter talen- to, ela gosta de escrever. Adora. Ela acha que fala melhor com palavras escritas. O Ivan tem talento e gosto por outra arte: a musica. Ele sa- be tocar varios instrumentos e aprendeu tudo sozinho. Mas nao foi a toa: o pai e a mae dele e da Rita séo musicos. A mae to- ca violino e o pai, um instrumento bem comprido e bonito cha- mado oboé. Acho que a musica passou deles pro Ivan pelo leite materno, pelo sangue, pelo pna. Além dos quatro, no 22 mora também a dona Norma, avo da mae deles. Ela tem varios apelidos: a Rita e o Ivan chamam a bisavo de Bibi, o pai a chama de dona No e a mae de Nonna, que é avé em italiano. Casa 32 No nimero 32 mora a Livia. Ela é ruiva, mas seu cabelo é mais cor de cenoura que vermelho. A Livia tem a pele bem clara, quase branca mesmo, feito leite, e € cheia de sardas. 34 Ela tem dois irmaos bem mais novos que ela, um irmao de trés anos e uma irma bebezinha. Eles s4o irmaos da Livia por parte de pai; a mae é a nova mulher dele. Nao sei por que eu nao quis escrever a palavra “madrasta”, acho que € porque a gente sempre pensa nas madrastas das histérias antigas, que sao sempre vilas, e a dona Beré nao podia ser mais do bem. A Livia nasceu em Florianépolis, mas morou bastante tempo em Curitiba, de onde so o pai e a mae dela. A mie é bailarina e ainda mora la. A Livia nao quer ser bailarina “quando crescer”, apesar de adorar dancar Ela quer passar o resto da vida s6 praticando es- portes, e a meta dela é ganhar uma medalha de ouro nas Olim- piadas. Ou duas, ou trés, ou seis... Casa 42 Ninguém imagina que a Anita ¢ filha wnica, porque filha uni- ca nao tem irma, e a Livia nado poderia ser mais irma da Anita, nem se elas fossem irmas de verdade. Os pais delas combinaram de abrir uma passagem no mu- ro do quintal, entre uma casa e a outra, pras duas poderem se ver mais facilmente. O préximo passo vai ser abrir uma porta entre a sala de uma casa e a sala da outra, pras duas meninas nao terem nem que passar pelo quintal pra se encontrar. Mesmo se vendo o tempo todo, elas ainda se falam varias ve- zes por dia pelo telefone e pela internet. Tem um carinha que mora na rua que é apaixonado pela Anita, mas ela nunca percebeu. Muita gente acha que ela é japonesa, ou nissei, ou sansei, que € como se chama quem é¢ filho ou neto de japoneses. Na 35 verdade, os pais da Anita vieram das Filipinas quando ela ain- da estava na barriga da mae. As Filipinas séo um pais localizado num arquipélago, que é um conjunto de ilhas, que fica pra baixo do Japao e de Taiwan e pra cima da Malasia, da Indonésia e da Australia. As ilhas tém esse nome porque foram invadidas pela Espanha, e o rei espa- nhol da época se chamava Filipe. La se fala filipino. Bom, mas é melhor eu passar pro proximo assunto sendo vao comecar a me criticar. Eles acham que tenho mania de querer saber tu- do sobre todos os lugares, e uma mania pior ainda, a de que- rer contar tudo que eu sei sobre todos os lugares. Nao sei por que eles acham isso... Quando era pequena, a Anita passava o dia vestida com uma fantasia de bailarina e, quando deixavam, até dormia fantasiada — acho que ela achava que tinha mais chance de sonhar que estava dancando num palco. Quando fazia ca- lor, ela usava biquini por baixo da fantasia; quando estava frio, vestia a fantasia por cima do moletom, mas nos pés dela s6 entravam sapatilhas. Teve um dia que foi muito engracado. A familia dela ia a um casamento, e seu pai ficou igualzinho a um daqueles maestros de orquestra. A dona Corazon parecia que ia desfilar e concor- rer a um prémio de miss-sei-la-o-qué — a Anita € bonita por- que puxou a mae. Quem disse que a Anita queria por um vestido daqueles de boneca, um lago na cabeca e sapatos de couro brilhante? Seus pais tiveram de sair correndo atrds dela pela rua, porque a Ani- ta fugiu do 42, correu dando gritinhos agudos até 0 come¢o da rua, desviou, driblou o pai, driblou a mae, correu pro terreno vazio e subiu nos siamipés. 36 E quem é que conseguia tirar a Anita la de cima? Nao adian- tou o Podindo ir dar bronca. Nao adiantou a dona Corazén cho- rar de solucar. Nao adiantou o seu Emilio prometer um, dois, trés presentes. Quem resolveu a parada foi a Livia, que subiu nos siamipés e falou baixinho um monte de coisas, e a Anita desceu e aca- bou indo pro casamento, mas levando a amiga junto. Nao que a Livia quisesse, mas o seu Emilio prometeu um, dois, trés pre- sentes pras duas. Chega. Se eu for ficar contando historias de cada um dos moradores da nossa rua, nao vou acabar nunca; mas essa foi boa pra que quem for ler esta histéria fique sabendo quem foi o primeiro que teve a ideia de subir nos siamipés. Quer dizer, a primeira. Ai, desde que a Anita fugiu correndo feito uma jaguatirica de seus pais e subiu pelos galhos da Flora e do Chris feito um chimpanzé e ficou 1a feito um bicho-preguica, sem que eles pudessem pega-la, a temporada de escalada nos ipés nun- ca terminou. Casa 41 Na casa que fica ao lado do terreno vazio, do lado esquerdo de quem entra na rua, mora a familia do Alex. O nome dele é Alexandre Magno Augusto, fora os sobrenomes. Nao sei por que ele nao gosta do nome completo, eu bem que ia gostar de ter no- me de imperador em vez de nome de cientista. A familia do Alex é de Madagascar, aquela ilha enorme no lado direito da Africa, la embaixo. Mas, ele nem tinha nascido ainda, seus pais e sua irma, que é bem mais velha, se mudaram pra Mogambique. 37 Em Mocambique se fala portugués porque esse pais foi in- vadido por Portugal e s6 deixou de ser colonia quase cem anos depois de o Brasil se libertar. Eles falam com um sotaque bem parecido com o dos portugueses; se bem que, quando a gen- te entra nesse assunto, o seu Alcino, 0 pai do Alex, sempre diz: “Que sotaque? Eu nao tenho sotaque. Quem tem sao vocés!” A dona Ella também € estrangeira, ela nasceu na Escécia, que fica na parte de cima da mesma ilha onde esta a Inglaterra, e onde os homens as vezes usam aquelas saias de la xadrez. O marido dela era inglés e trabalhava no consulado. O Alex e a familia dele tém a pele cor de chocolate, como a maioria dos africanos. A irma dele, que se chama Fatima, ja se casou e foi morar em outra cidade Ele € um génio da matematica, e nunca teve problema com essa matéria, que costuma ser a mais dificil pra muita gente. Ele é 0 professor particular de matematica de todos da rua, in- clusive dos que sao do trio rival. Em casos de emergéncia nao faz diferenca se vocé é um Lobato ou um Hip-Hop. 38 Casa 31 Nesse sobrado moram o sr e a sra. Gomes. Talvez eles sejam portugueses. Talvez o sr. Gomes tenha trabalhado no consula- do de Portugal. Talvez eles tenham filhos, que ndo moram mais com eles. Osr easra. Gomes tém entre setenta e 120 anos. Talvez um seja mais velho que o outro. Quem sabe, talvez eles nem sejam casados, talvez sejam irmaos Ou talvez eles sejam alienigenas. Talvez fantasmas que as- sombram a propria residéncia. Talvez sejam seres humanos que gostam de viver sem contato com o mundo, além de estarem um com o outro, s6 os dois, escondidos de tudo e de todos. Talvez seja porque ninguém pode jurar que os viu. Nin- guém tipo pessoas normais. A dona Ella provavelmente viu, conheceu, conviveu, conversou com eles. Ninguém normal sa- be como eles se alimentam, porque ninguém viu uma sé en- trega de supermercado, mercearia ou padaria. Ninguém viu o sr. € a sra. Gomes, juntos ou separados. Ninguém sabe o nome deles, além de pessoas anormais como a dona Ella, que nunca contou nada deles para ninguém. Tem gente que acha que eles sao zumbis, mortos-vivos enfei- ticados por Ella, a abominavel. As janelas do 31 estao sempre tapadas por cortinas de pano grosso escuro. Se alguém de me- nos de doze anos e que mora nesta rua disser que nunca teve pesadelos com o sr. e a sra. Gomes, esta mentindo. Casa 21 No 21 morava um casal, o seu Paulo e a dona Paula, que nao tinham filhos. Parece que a mulher nao podia ter. Ou talvez fos- se 0 marido que nao podia 39 Eles tinham um cachorro chamado Lorenzo, que era tratado como um bebezinho. Até carrinho de bebé ele tinha, pra nao se cansar. Um dia ele sumiu e nunca mais foi achado. Todo mun- do que conheceu o casal e o Lorenzo tem certeza de que 0 cio detestava ser tratado como um ser humano indeleso e bobo e, por isso, fugiu de casa Os “pais” do Lorenzo ficaram tio tristes que se mudaram de volta pra Sao Vicente, de onde eles eram. Essa cidade fica na mesma ilha que a cidade de Santos, a ilha de Sao Vicente, e foi uma das primeiras do Brasil. Nao sei pra que serve saber isso, mas € interessante, né? A casa nao deixava os dois moradores do 21 se esquece- rem do amado “filhinho” desaparecido. A minha mae tentou fazer os Paulos mudarem de ideia e nao voltarem pra cidade deles, perguntando se aquelas lembrangas nao eram boas. A do- na Paula disse que eram, mas por isso mesmo faziam os dois sentirem mais saudade ainda do Lorenzo. Entao os Paulos se foram e a casa ficou vazia durante un ano e meio, mais ou menos. Foi entéo que o Antonio veio mo- rar no segundo sobrado do lado esquerdo de quem entra na tua Professor Chiquinho de Souza, com uma tia chamada Iara e uma amiga dela, chamada Isabel. E claro que o Antonio nao podia chamar as duas de um jeito normal. Pra ele, elas sio a Tiara e a Tisabel. Os pais do Antonio morreram quando ele era pequeno, e essa tia e a amiga dela passaram a ser pra ele, desde entao, duas maes, dois pais, duas tias e duas amigas. O Antonio tem cabelo e olhos castanhos. Ele nao quer ser chamado por nenhum apelido: nao quer ser chamado de mais nada além de Antonio. As suas roupas, mesmo as mais 40 novas, tém furos, rasgos, riscos de caneta esferografica, man- chas ou remendos, ou tudo isso e mais respingos de tinta e outros materiais. Ele esta sempre usando cola, caneta hidrografica, giz, la- pis de cera e de cor, guache, nanquim, tinta de parede, tinta acrilica, tinta em spray. Quando esta pensando, conversan- do, fazendo nada, o Antonio fica desenhando e rabiscando quase sem parar. Parece que as maos dele nao podem ficar paradas. O ultimo da nossa turma a chegar na rua dos siamipés € simpatico, super do bem, as vezes generoso, as vezes bem egoista, convencido e um pouco mandao — ou bastante, de- pendendo do dia. Eu nunca conheci alguém tao seguro, com tanta facilidade pra se entender com 0s outros, pra ficar ami- go, pra chefiar. Casa 11 (O Briel, descrito pela Ritandorinha) Eu nao me sinto a vontade pra falar de mim mesmo, e mesmo se me sentisse, acho que ia $6 me criticar. Pra receber pelo menos um elogio, eu pedi pra Rita fazer a minha descri- cao. Por que eu escolhi alguém do grupo rival? Acho que es- sa pergunta ja esta respondida: ela é a melhor escritora da rua, incluindo os adultos. Eu acho que se for pra ser zoado, que eu seja zoado em grande estilo. A casa 11 é a primeira do lado esquerdo. Nela moram o Briel, seus pais e seus trés irmaos, que sao mais velhos. A jane- la do quarto dele fica bem na esquina da nossa rua com a Be- loque Hugo, e por isso ele pode ver tudo que acontece nessa 41 outra rua, da qual a nossa é uma travessa, e na rua dos siami- pés também. O Briel é 0 cacula de uma familia de cientistas. Vive rodea- do de livros, dicionarios, enciclopédias, revistas cientilicas, ar- quivos de recortes de jornal, computadores, varios computado- res, lousas e giz Ele se comporta como se fosse bem mais velho do que ¢. E ai, quando esta jogando algum jogo de cartas, tabuleiro ou rec, ou videogame, ou de computador, ou batalha-naval ou forca ou jogo da velha, ele € com-ple-ta-men-te in-fan-til! O Copé, como os irmaos o chamam, tem olhos pretos feito jabuticaba, e 0 cabelo loiro feito uma espiga de milho Ele é timido, ainda mais quando esta perto de adultos, mas defende suas ideias como se a vida dele dependesse disso. As vezes parece nao ter muitos sentimentos, ou quase nenhum, e por isso no se importa com os dos outros. Faz as criticas mais duras na boa, porque acha que todas as pessoas querem sem- pre saber a verdade sobre todas as coisas. S6 que qualquer amigo, parente ou vizinho pode contar com ele. Sempre. Se for preciso, ele sai correndo no meio da ma- drugada pra acudir alguém que precisa de ajuda 2 — Os Trios PEQUENOS E GRANDES Os dois primeiros trios se formaram quando a Livia, a Anita e o Ivan, os menores, eram levados pra brincar no par- quinho que fica dois quarteirdes pra baixo da nossa rua; e€ a Rita, o Alex e eu ja podiamos brincar no terreno vazio. Mas foi a Anita, nessa época, que um dia olhou pra Flora e pro Chris e batizou a dupla de siamipés. 42 MENINAS E MENINOS Depois a diferenca de idade foi ficando cada vez menos importante e aconteceu o que sempre acontece: as meninas comecaram a brincar de casinha num lado do terreno, e os meninos comec¢aram a jogar bola no outro. Durante um bom tempo um trio mal olhava pro outro, parecia que os outros nem. existiam. Lopatos & Hip-Hops Ai, ndo se sabe bem quando, a Livia comecou a jogar bola com os meninos, e eu comecei a brincar de teatro com a Anita ea Rita, e depois de os seis ficarem um tempo bem misturados, os mais barulhentos formaram um trio e os mais silenciosos formaram outro. 3 — OUTROS PERSONAGENS DA NOSSA RUA GuarDA ZEPA, O DONO DOS IPES Ele se chama José Paulo da Silva Souza, at mas ele mesmo se apresenta como guarda Zepa. Mas, pra nos, quando a gente fala dele, ele € 0 Podinao. Porque é 0 que ele mais fala pra galera: “Pode nao!”. Se a gente nao fizesse tudo que o guarda Zepa proibe, nao iamos nem andar pelas calcadas nem chegar perto das arvores da rua, muito menos da Flora e do Chris. O Podinao é 0 guarda-noturno da nossa rua. Ele € pago por quase todos os moradores. Quase todos, porque o sr. € a sta. Gomes nao pagam. A dona Ella 43 também nao paga, mas ela se comporta como se ele fosse em- pregado particular dela. O guarda Zepa tem uma cabine onde pode se sentar e se abrigar do frio e da chuva, logo na entrada da rua, junto da ca- sa 11. De noite ele anda pela rua, apitando de hora em hora A gente sempre sabe quando sao duas da manha, ou trés, ou quatro, porque exatamente quando o ponteiro dos minutos chega no doze se ouve o apito. O seu Zepa com certeza tem mais de sessenta anos, mas ele pode ter pra la de setenta. Ninguém sabe 0 niimero exato, pro- vavelmente nem ele mesmo. O que se sabe é que ele era fun- ciondrio publico da prefeitura, trabalhava em um parque, se aposentou faz pelo menos cinco anos e talvez seja um zumbi. Eu sei que essa ultima palavra do paragrafo de cima foi pe- sada, mas é que um ser humano precisa dormir, certo? No ca- so do Podindo, a resposta é “errado”. E um ser humano preci- sa se alimentar, certo? A resposta pra essa pergunta também é “errado”. O que acontece é que ele passa a noite inteira acordado, ou acordando de hora em hora pra apitar. E de dia ele fica na ca- bine dele ou no terreno vazio cuidando das plantas. O Ivan acha que ele é 0 Caipora, ou um irmao ou primo dele. O Curu- pira a gente sabe que o guarda Zepa nao é, porque ele nao tem os pés virados pra tras. Mas uma criatura que passa a maior parte do tempo cuidando das plantas e defendendo-as com muita braveza pode muito bem ser uma criatura sobrenatural. A lista do guarda Zepa de coisas que a gente nao pode fa- zer € imensa, mas 0 principal crime que alguém pode cometer na rua dos siamipés é subir num galho da Flora ou do Chris. Cortar um galho, mesmo pequeno e¢ fininho, nem passa pela 44 cabeca de ninguém. Escrever 0 nome com canivete no tronco nunca ninguém pensou em fazer, nem em sonho. Mas tem uma coisa que faz 0 Podindo mexer a boca de um jeito um pouco parecido com um sorriso: fazer desenhos com as flores amarelas e roxas caidas no chao. $6 que 0 sorriso pode virar carranca se alguém balancar um galho pra cair mais flores, ou tentar tirar uma fotografia da Flora e do Chris, ou, 0 que é pior, uma foto das duas arvores com o seu Zepa na frente. Esse € um dos principais motivos de a gente achar que ele € mesmo o Caipora, que é wm personagem do folclore indige- na: tem uma historia de os indios nao gostarem de ser fotogra- fados, porque eles acham que a cémera vai engolir o espirito deles, nao tem? Nao estou falando de todas as tribos, mas tem alguns indios que acreditam nisso, nao tem? Doutor ALOGENIO PIMENTA, O DONO DO TERRENO VAZIO Toda historia tem um vilao. Pelo menos as boas historias. Pode ver, oy quando uma histéria € muito boa, 2 com certeza tem pelo menos um herdi e um vilao. Esta historia tem trés vildes, e o pior deles é 0 doutor Pimenta, que ¢ mentiroso, desonesto, irresponsavel, esttpido, bogal, farsante e mau, muito mau! Esse patife causou varios desmaios, muita choradeira, alguns ossos quebra- dos, um machucado de cinco pontos e uma cicatriz, uma separacao e uma morte. 4. O paraiso E INVADIDO Escrito por Patativan Ninguém ficou feliz com o que aconteceu, com o que a gente fez, com o que a gente causou. Mas todos fingiram mui- to bem que estava tudo certo e nada errado. Todos, menos eu Fu vi na hora a besteira que foi o Antonio ser investigado, interrogado, julgado e condenado em tao pouco tempo. A gen- te estendeu um tapete vermelho escrito “seja bem-vindo”, e lo- go em seguida puxou o tapete e virou as costas. As meninas Hip-Hops tentaram fazer cena de nao-estou- -nem-ai-porque-eu-ndo-queria-ser-amiga-dele-mesmo. Teatro malfeito. Drama engracado, comédia sem graga. Coi- sa de pateta orgulhoso. E facil falar dos outros, eu sei. Mas é dificil ficar quieto, sem dizer o que pensa. F cu fiquei. Co- mo sempre. Estava cansado de brigar. Mas pelo menos nao fi- quei disfarcando. Fiquei ligado no Antonio. Olhando pra ver o que ia rolar. Nao fingi que nao fiquei interessado quando ele saiu da ca- sa 21 carregando uma caixa com latas de spray, cartolinas, te- soura, estiletes, canetas, pincéis, rolinhos, potes de tinta de pa- rede misturada com corante, eram muitos potes com muitos tons, de todas as cores. Nao me ofereci pra ajudar, nao pedi pra participar. Mas nao fiz papel de bobo, nao passei perto do terreno vazio de patins, como se andasse ali por acaso. Sao as Hip-Hops de novo. Nao, na verdade nao tem nada de novo, é a mesma palhacada de sempre. Elas sabem que no sabem disfarcar. Por que tentam? Teve um cara que ficou olhando bem de longe, da janela do 46 quarto da primeira casa da direita de quem olha pra entrada da rua. Ele estava de binéculo. Teve outro que foi jogar ténis no paredao do muro do ter- reno, com cara tipo eu-j4-vinha-jogar-aqui-e-nao-vim-s6-pra- -ver-o-que-voceé-ta-fazendo-falou? Teve uma garota que veio com o celular ligado numa radio e foi parar la no terreno sem nem perceber, porque estava dis- traida curtindo o som e quando viu estava 14, ta? Ta, entao ta. E 0 que aconteceu foi: O Podinao vem devagar ali da entrada da rua, caminhando, tum tum tum tum, passo a passo, com aquele jeitao de soldado matador de cangaceiro ou cangaceiro matador de soldado. Ou as duas coisas. Quem est no caminho ouve o guarda reclamando, repetin- do, ruminando tipo mantra de budismo: “Pode nao fazer ra- biscos no muro. Pode nao fazer esses rabiscos com essas tin- tas de lata comprida no muro. Pode nao fazer esses rabiscos pichados com essas tintas de vento de lata comprida no muro. Pode nao. Quando o guarda Zepa chega a outra extremidade da rua, o Antonio ja usou as primeiras mascaras, e a flor que apareceu no muro é tao diferente, interessante, colorida, bonita, viva, ali pintada na parede em 2D, mas com um movimento de abrir as pétalas impressionante. E uma flor sorrindo que faz o senhor José Paulo da Silva Souza ficar parado de boca aberta, mudo, os olhos de aguia es- pantados, as taturanas sobre os olhos levantadas, os dentes de lobo aparecendo: um homem rigoroso, severo, de olhar duro, 47 de repente parece um moco chegando na beira da praia e sendo abracado pela brisa refrescante, morna e salgada, agradavel presente do mar. A Rita fica com as pernas bambas, e, sem fazer muito esforgo, deixa de fingir que nao esta nem ai, ja que estava super a fim de sentar, e 0 sorriso que ilumina o rosto dela vai se abrindo como a flor pintada na parede, que parece também se abrir e sorrir. Eu, que ja estou ali ao lado dele, comecei a ajudar sem falar nada, sem perguntar. O Antonio aponta o spray prateado, eu pego e entrego a lata, o enfermeiro passando o bisturi certo pro cirurgido abrir o muro e revelar um coracao. A Livia e a Anita tem um daqueles ataques de riso que co- mecam de repente e parece que nunca mais vao terminar, 0 espanto, a animacao, a alegria falando alto e vindo feito ondas que vém e explodem e sao encobertas por outra onda, e elas vo explodindo e se encobrindo e vindo uma atras da outra sem parar. O Antonio puxa um lengo do pescogo pra tapar a boca e o nariz cada vez que vai apertar a valvula de uma lata. O Alex exa- mina as mascaras € as maos do Antonio pintando com o spray e aprende. O Antonio oferece um lencgo e em segundos o Alex vira um zorro, um mocinho bandido mandando: maos-ao-alto- €-passa-o-ouro-agora-mesmo-vai-ficar-bom-ao-lado-desse-lilas. O Briel vem correndo do 11, péc squich, poc squich, péc squich; eu nao preciso olhar pra tras pra saber que é ele e seu sapato novo. As lentes do bindculo dele embacaram, mas reve- laram que, sobre a tinta de parede que passaram tantas vezes no muro pra cobrir rabiscos, nomes, palavras, figuras, silhue- tas, desenhos, agora esta nascendo um jardim. Tirei a camiseta e amarrei na cara e pus a mao na massa, 48 passando o rolinho sobre as mascaras com a tinta latex, imi- tando o Antonio. O rolinho gordo de tinta encosta macio na parede e escorrega, € mais facil de controlar do que parece. Em volta das flores vao se formando folhas de muitos verdes que dangam de braco dado com o vento A Rita me imita, ela esté com um agasalho, e, quando ela 0 amarra na cabeca, fica parecendo uma daquelas mulheres ara- bes que néo podem mostrar nada além dos olhos. E das maos dela v4o saindo abelhas, mosquitos, libélulas e outros insetos que fazem o jardim se movimentar ainda mais. O guarda Zepa faz o maior esforco pra voltar a ser soldado ordenado a mandar que parem de fazer 0 que nao pode por- que é proibido. A garganta quer dizer um “pode nao” atras do outro, mas nao vem oxigénio, ele ainda esta sem ar, surpreso, confuso, maravilhado com a magica que o Antonio faz de fazer aparecer do nada um buqué, um canteiro, um jardim inteiro, um paraiso que o Zepa levaria semanas, meses, anos pra capi- nar, plantar, regar, podar, regar, regar, regar. Ele consegue mexer os bracos, aponta um dedo, e a cara diz ‘pode nao!”, mas ninguém escuta nada. O xerife nao desis- te, ele tem uma missao, é pra isso que é pago, e de tanto esfor- co que faz da um jeito de continuar apontando o dedo, tossir, arranhar a garganta e botar pra fora: “Pode nao! Pode nao!”. Acontece que ninguém escuta de novo, dessa vez por causa do barulho alto estridente estourado do motor, do cano de es- capamento, daquele som que da a impressao de que todos os pedacos estao se desconjuntando, e da corrente de metal baten- do em madeira na traseira de um caminhao muito grande en- trando rua dos siamipés adentro. O guarda Zepa se vira, aponta o mesmo dedo e agora grita: “poDE NAO! PODE NAo!”. 49 Mas ninguém ouve outra vez porque o caminhio esta che- gando e logo esta dentro do terreno. Uns correm pra um lado, outros pro outro. S6 nao fogem a Rita, que est4 com fones de ouvido, e 0 An- tonio, que esta distraido, criando, escolhendo, pintando. E o caminhao para bem perto deles. O breque tem aquele barulho incrivel de pum de dinossauro ou de dragio soltando fumaca fedida pelas narinas. Trés pedes saltam do caminhio, e outro fica na cacamba e vai jogando ferramentas, placas, ripas, caibros e tabuas, fazendo barulho de strike de boliche; os outros pegam enxadas e come- cam a cavar. O guarda Zepa chega perto da cabine do caminhao e quase que a porta que se abre acerta a sua cabeca; quem abriu e des- ce € 0 motorista, que parece mais ledo de chacara, seguranca, capanga que o Podinao. O cara nao tira os éculos escuros que refletem o sol e sem dizer nada, como se fosse tirar um ma- co de cigarros do bolso pra fumar, ele pega, desdobra e mostra um documento. A gente corre pra saber 0 que é aquele papel cheio de assinaturas e carimbos. O titulo no alto da pagina diz tudo: Permissao para a Instalacao de Suporte para Antincio Lu- minoso de 20 m “versus” 15 m. Vinte metros de comprimento e quinze de altura? Suporte? Anuncio luminoso? Ninguém consegue dizer nada, a nao ser o guarda Zepa, que murmura: “Pode nao... pode nao...” Antes de a gente conseguir pensar, raciocinar, digerir, en- tender essa informacao, um carro vira a esquina derrapando e o Alex, apesar de estar de costas pra entrada da rua, diz: “E uma perua Volvo quatro portas modelo deste ano”. Sl Como ele pode saber tudo isso s6 pelo barulho do carro, nao sei, nunca vou entender. O Antonio consegue brincar: “E qual é o ntimero da placa?” A gente ri, mas durante bem pouco tempo. Desce da perua Volvo quatro portas modelo deste ano um homem com jeitéo de engenheiro, de terno, ténis nos pés e boné na cabega. Ele olha pra gente muito simpatico, sorrindo com 97 dentes, a tes- ta enrugada, os olhos faiscando, e pede com gentileza demais: “Desaparecam daqui, seus pré-aborrescentes do caramba, que senhores temos um trabalho a faze euce O Alex pega o celular do bolso e anuncia que vai ligar pro pai, que é advogado! w 8 A Rita pega o celular do bolso e grita que vai falar com a bisavo pra ela falar com a dona Ella pra ela falar com alguém, sei 1a, da prefeitura! O Briel pega o celular do bolso e diz que vai chamar os irmaos. Os trés saem correndo com o telefone na orelha, e logo de- pois a Anita e a Olivia vao pra casa de uma delas, chorando. O Podinio se afasta ¢ fica olhando com mais cara de mata- dor do sert&o agreste que nunca. O Antonio pergunta se eu tenho um celular, eu pego no bol- so e passo pra ele, que tecla e se afasta, falando baixo. Eu fico vendo o engenheiro instalar um aparelho sobre um. tripé daqueles que eles usam nao-sei-como-nem-bem-por-qué sempre que vao comec¢ar uma construcao. O motorista cha- ma um dos pedes, que pega um tipo de régua comprida e poe em pé. O engenheiro faz sinais pra ele ir se afastando, se afastando, vai mais um passo pra tras, outro, mais outro, che- gou, para! Me da enjoo e frio na barriga e uma secura na garganta, [i- ca dificil de engolir. O peao encosta a régua nos troncos juntos, entrelagados, grudados do Chris e da Flora, o sujeito de terno e boné faz sinal de positive, olha pro motorista e faz outro gesto pequeno e rapido, com o dedao pra baixo, e os dois dao risada. O Podinao solta um suspiro grunhido. Eu nao tenho davida do que ele quis dizer: pra instalar o luminoso no terreno vazio, eles vao derrubar os dois ipés siameses! 53 5. A noticia SE ESPALHA Escrito por SabiAntonio Eu nao queria contar justo este pedaco da histéria, em que eu sou o personagem principal, mas a Rita disse que eu sei me- Thor que qualquer um da turma 0 que aconteceu, porque esta- va assistindo a tudo de camarote, no alto da Flora e do Chris. Entio, ja que é assim, 14 vai. Eu nao pensei que precisava ter uma ideia pra salvar aque- las duas arvores lindas, eu simplesmente pensei em subir nos galhos e me recusar a sair 14 de cima, mas ai eu pensei que eles nao iam dar a minima e iam derrubar a Flora e 0 Chris comi- go junto, e entao eu pensei que precisava inventar um jeito de chamar a atencdo, quem sabe até de um canal de televisao, e foi entdo que eu pensei em me fantasiar de passarinho. Todos esses pensamentos vieram muito rapido, um atras do outro, e depois veio mais um: “Eu preciso fazer isso ja, nado da tempo de ver se vai ser bom ou ruim, se vai dar certo ou nao, € 0 que eu posso lazer agora, entao € 0 que eu vou fazer” O Ivan me emprestou o celular dele e eu liguei pras tias, primeiro pra Tiara (se eu fizesse 0 que estava querendo sem fa- lar com ela, nao seria legal), que demorou pra atender e ja foi dizendo que estava ocupada, e veio com aquela velha desculpa’ “estou numa reuniado”. Mas eu disse que precisava falar com ela urgente, € o jeito que eu [alei isso acho que foi bem forte, por- que ela perguntou 0 que era e eu contei, e ela me deu a maior forca, mas pediu pra eu tomar cuidado e me fez prometer que, se a barra ficasse muito pesada, eu ia descer e pronto. Ai eu liguei pra Tisabel. A Tiara tinha dito que ela podia 54 ligar pra avisar, mas eu disse que ligava eu mesmo porque se- nao ela ia ficar chateada, ia fingir que nao estava, mas ia ficar sim, porque todas as vezes que eu falei sé com a Tiara, ela de- pois me contou que ficou com cittmes e achando que eu acho que ela é menos minha mae, s6 porque a Tiara € mesmo tia, irma da minha mie, e eu tive que dizer muitas vezes que isso nao era verdade. Entao eu liguei e contei o que eu ia fazer e ela disse a mesma coisa que a Tiara, que era pra eu tomar cuida- do e desistir se a barra ficasse pesada. Eu corri pra casa ja pensando em como ia ser a minha fan- tasia de passarinho e que passarinho eu ia ser. Entao liguei pra turma pra me ajudar, e antes de chegar em casa eu ja sabia que ia ser um sabia. Depois de a fantasia ficar pronta e de algumas ligacées feitas, chegou a hora de subir na arvore. O Alex estava perto e quis subir comigo. Eu disse que podia ser perigoso e que era bestei- ra duas pessoas correrem perigo se uma pessoa s6 podia cha- mar a atengao, e ele disse que nem ia ter graca subir comigo sem estar fantasiado, e eu subi tao rapido que nem me lembro de quando estava subindo, eu s6 me lembro de quando eu ja estava 14 no alto e vi o primeiro carro de jornal de Tv chegan- do. Eu pensei: “Eu vou aparecer na televisdo, eu vou ficar fa- moso, eu vou ser chamado pra ser 0 mocinho de um seriado”, e depois eu ri de mim mesmo e disse pra mim mesmo que eu nao estava fazendo aquilo pra aparecer, e sim pra tentar salvar a Flora e o Chris. Foi a Tisabel que me mostrou como era facil fingir que al- guma coisa estava acontecendo. Um dia, numa rua movimen- tada, ela disse “Olha s6” e apontou pro alto, e na mesma hora tinha um monte de gente olhando pro alto e algumas pessoas apontando, e em muito pouco tempo tinha um monte de gente olhando com muita atencdo pra uma coisa que nao era nada. Quando eu vi o segundo carro de jornal de Tv, um carro da policia, um bando de vizinhos das ruas proximas e ouvi a si- rene de um carro de bombeiro, eu achei que ia dar certo, que eu tinha apontado pra cima e cada vez tinha mais gente olhan- do, sé que nesse caso nao estavam olhando pro nada, e sim pra um carinha fantasiado tentando impedir um crime. 56 La de cima eu nao podia ver tudo o que estava acontecen- do, por causa dos galhos cheios de folhas, mas dava pra ouvir aquele monte de gente falando: — Esto filmando cenas de novela? — E um filme de publicidade? — Filme de cinema? — Por que a gente nao pode chegar perto pra ver? — Pra que tanta policia? — E pra que tanto caminhao de telenoticias? —E pra valer? — O que esta rolando em cima das paineiras? —E uma arvore s6, ta ligado? — Uma arvore com flores de duas cores, uma de cada lado? — Acorda, esperto — Sao o qué? Ipés? — Calma, meu senhor, eu nao vou tirar pedaco da calcada! — Pode nao! Pode nao! — Quem ele pensa que €? O dono da rua? — Pode nao! Pode nao! — Fu jd ouvi e ja entendi, grande. — Da licenga que eu sou reporter? — Eu estou com ela — E eu também, olha, sou o fotdgrafo. Fala se eu sou ou nao sou? —E sim, eles estéo comigo. Obrigada, é muita gentileza da sua parte. — Eu posso mesmo ser 0 seu fotdgrafo? — Pega esse cartéo e manda as melhores fotos que vocé ti- rar pra este e-mail. Quem sabe? — Ev sei. 57 — E, vocé e essas setecentos e noventa e quatro pessoas ti- rando foto com celular. — Agora dé um tempo, é cada um por si, valeu? — Valeu ai. — Me empresta um pouco o seu binéculo? — O que é aquilo que tem naquele galho? — E um papagaio? — Vocé acha que é uma pipa? — E muito pequeno pra ser papagaio, arara, periquito. — Entao € um pavao! Foi ai que eu pensei que a minha fantasia nao estava muito boa: papagaio? Pavao? So faltou me chamarem de frango! Ou sera que eles estavam achando que eu era mesmo um bicho? Me deu vontade de gritar la pra baixo: “Esse passaro que esté empoleirado num galho bem alto nao é um passaro! Nao € um avido! Nao é um super-homem! E um carinha fantasiado de passarinho. Alé! Tem alguém ai dentro do cérebro de vocés?”. Um carinha que eu achei que conhecia de algum lugar apontou pra mim e disse: — Eum bem-te-vi! Ai uma senhorinha bonitinha de cabelo lilas que estava ao lado dele disse: — Eum sabia. E ele ficou bem interessado e perguntou: — E mesmo? Ela sorriu e respondeu: — Um sabia beeeeem grande, nao €? Mas é um sabia. E os dois continuaram trocando uma ideia’ — Eu nao conheco passarinhos, nao sei distinguir um do outro. 58 — Que bobagem. Vocé decerto sabe como € um beija-flor. —E£, sei. — Um bem-te-vi vocé reconhece pelo piado: bem te vi! Bem te vil! — E mesmo. — Aposto como vocé ja viu um pardal, uma andorinha e um periquito. — E, pode ser. — E acabei de perceber que aquele sabia, na verdade, é um menino fantasiado de sabia. Vocé conhece aquela parlenda do sabi — Nao, senhora. — E assim: “Vocé sabia que o sabia sabia assobiar?”’ — Que barato. A senhora sabe por que toda essa gente esta aqui por causa de um menino com asas e¢ bico de papelio pin- tado? Eu me abaixei um pouco e vi que a reporter do primeiro carro de tv tinha chegado, e prestei atencao no que ela dizia: — Eu estou em uma pequena travessa e vou tentar desco- brir o que esta acontecendo, o que tirou tantas pessoas de suas casas Foi ai que eu descobri que pelo menos naquela noite eu ia ficar famoso, que era o superstar da hora, porque a reporter fez um sinal pro cara que estava gravando e os dois comecaram a subir, galho por galho, até chegar perto de mim. E, depois de pedir siléncio pro pessoal que estava 14 embaixo, ela falou pra camera e pra mim: — Esse menino, que esta fantasiado de passaro e que se chama Antonio, acabou de se mudar pra esta rua. Aqui moram trés garotas e outros trés garotos da idade dele, que estao ha 59 muito tempo divididos em duas turmas, os Lobatos e os Hip- -Hops. E isso mesmo? Eu fiquei impressionado por ela ja saber de tudo aquilo, depois fiquei com frio na barriga e né na garganta e dei uma ri- sada de bobo, e ai consegui me comportar mais ou menos co- mo um ser humano e respondi — Eu achei que poderia fazer parte das duas turmas, mas to- dos ficaram muito bravos comigo quando souberam que eu ti- nha aceitado tanto o convite pra ser um Lobato como o pra ser um Hip-Hop. Foi superestranho, porque de repente eu estava falando com uma reporter e tinha um cara gravando, ela me pergun- tando e eu respondendo coisas da minha vida. Eu pensei as- sim: “Por que interessa pra alguém o que aconteceu hoje na minha vida?’, mas ai eu pensei que interessava, sim, porque eu era aquele menino maluco que tinha se fantasiado e subido no alto de duas arvores ameacadas. Entao ela continuou: — Isso tudo aconteceu por volta da hora do almoco. Mais tarde, no meio da tarde, esse menino veio para 0 terreno e co- megcou a pintar aquelas flores ali no muro. Em superpouco tempo, toda a galera da rua estava aqui, e trés jé estayam pin- tando também. Até af essa histéria estava com cara de paraiso. E como subitamente ela ficou com cara de inferno? Ela colocou o microfone perto da minha boca e eu disse: — E isso ai! E que logo depois chegou um caminhao de uma firma daqueles outdoors que acendem. Fles querem instalar um gigantesco logo ali. Imagine como vai ser pra nés que mo- ramos aqui, com um luminoso eeeenooooormeeee piscando a noite inteira. Mesmo que a parte luminosa esteja virada pra 14, 60 muita luz vai escapar pro lado de ca. E vocé ja chegou perto de um painel desses? Eles soltam um zumbido sem fim. A gente simplesmente nao vai dormir sossegado nunca mais. A repérter, que depois eu fiquei sabendo que chamava Ro- sangela, disse no microfone: — O pior de tudo é que, para instalar esse verdadeiro dis- co voador, eles vao derrubar esses nossos velhos amigos que os meninos chamam de Chris e Flora. Foi ai que esse menino chamado Antonio inventou este plano meio maluquinho e fez a fantasia de sabia. Ela passou a bola pra mim: — Nenhum dos moradores adultos tentou fazer alguma coisa? E eu chutei: — O pai do Alexandre, o doutor Moreira, que é um exce- lente advogado, examinou os documentos que foram trazidos pelo engenheiro responsavel pela instalacdo do painel, e esta- va tudo em ordem. A Rosangela faz cara de chateada e perguntou: — E mesmo? E a quem pertence este terreno? Eu respondi: — Parece que este terreno é de um senhor chamado doutor Pepino... nao, o nome dele é Porpeta... nao, é Pimenta. Dizem que o dono de um terreno pode fazer o que quiser nele, e esse doutor Pimenta tem a licenca da Prefeitura e tudo mais. A Rosangela, que ja sabia o resto da historia, contou falan- do pra camera: — Esse terrivel senhor se cercou de todos os documentos necessarios para cometer este crime, e, ainda por cima, os ins- taladores vieram sem avisar ninguém e, como eu ja disse, no 61 meio da tarde, quando a maioria dos adultos esta fora daqui, trabalhando. Eu fiz que sim com a cabega, ¢ ela foi em frente: — Foi muita sorte os meninos terem conseguido avisar 0 doutor Moreira. No entanto, ele nao péde fazer nada. Mas, mas, mas... Os sete meninos acharam que podiam. Enquanto dois ajudaram o Antonio a fazer e vestir a fantasia, duas meninas li- garam para uma das tias dele, que trabalha em uma emissora de televisdo, e dois meninos combinaram a parte deles com o senhor José Paulo, que € 0 vigia noturno da ruazinha, mas que esta sempre aqui 24 horas por dia. Eu disse: — Ele parece que é morador de rua. Ai a reporter continuou: — Quando a nossa equipe de reportagem estava chegando, o senhor José Paulo usou pela primeira vez, e espero que pe- Ja ultima, a arma dele, que € muito velha e enferrujada. Ele ati- rou para 0 alto e, ao ouvir os tiros, os funcionarios da firma de instalacdo ficaram amedrontados e se afastaram dos ipés para se esconder., Eu dei risada, apesar de nao achar muita graca. Ai fiquei sem graca, porque a Rosangela apontou pra mim e disparou: — Entao, esse bravo menino correu e subiu até chegar a es- se galho dos ipés siameses. Foi assim que comecou a se for- mar esta situagdo. Esse sabia nao se intimidou com a chuva de ameacas que recebeu e ficou firme. Os funciondrios e 0 enge- nheiro s6 nao partiram pra ignorancia porque havia uma ca- mera grayando. Na verdade, nao tinha s6 uma, mas duas cameras gravando, porque o Briel estava com a do pai dele, e ele foi passando as 62 imagens pra um daqueles computadores portateis e mandan- do pra algumas daquelas muitas paginas que tem na internet. A Rosdngela contou essa parte da hist6ria do jeito dela: — Até o fim do dia ja havia milhares de pessoas sabendo des- se episédio. Quando a lua apareceu, ja eram centenas de milha- res. A ultima noticia que eu recebi falava em milhdes de pes- soas. Agora nfo estou sé eu aqui. Ha equipes de nove emissoras Facecook de televisdo de varios tipos de programas, quinze emissoras de radio e repdrteres de tudo quanto é tipo de imprensa. Eu fiquei admirado com o barulho que consegui fazer. Ela nao parou, cada vez mais animada: — Agora comeca a parte mais interessante desta histéria Varios adultos que moram nessa rua procuraram todo tipo de ajuda, porque toda essa gente que esta aqui vai acabar cansan- do dessa brincadeira e voltando para casa. Nés, as equipes de reportagem, uma hora teremos que voltar para as emissoras. Os policiais e os bombeiros também nao podem ficar aqui para sempre. Eu tentei nao desanimar, e a Rosdngela: — E uma questio de tempo. Quando na rua ficarem apenas os moradores e os funcionarios da companhia contratada para instalar o antincio luminoso, que agora so mais de vinte, vao arrancar o Antonio dos galhos dos ipés, que irao para 0 chao. No entanto — em primeira, primeirissima mao —, os adultos conseguiram descobrir trés coisas: a) as licencas para a ins- talacdo do antincio foram conseguidas com a ajuda da Ella MacQueen, que se considera dona de tudo por aqui; b) 0 doutor Pimenta conseguiu provar, usando documentos falsos, que os ipés estéo corroidos por cupins e praticamente mor- tos, o que é uma mentira horripilante; c) 0 terreno nao per- tence ao doutor Pimenta; a escritura que ele tem é falsa! Eu disse falsa! Ela parou de falar e ficou olhando pra cAmera, meio tremen- do, feito personagem de filme. Ai respirou fundo e continuou: — Diga, Antonio, por que vocé esta fazendo esta verdadeira encenagao performatica? — Eu precisava salvar essas duas arvores. 64

You might also like