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Poities Tadeu Breda: Gaza, Sao Paulo, a normalizagao do massacre EP} osiosra0a4-1742 Tempo deletra:7min Gaza, Sao Paulo, a normalizagao do massacre Por Tadeu Breda, editor da Elefante Um dos motivos que levaram a Elefante a voltar todos os olhos para a Palestina a partir de outubro de 2023 foi a certeza de que, apos a violenta agao do Hamas em Israel, como. assassinato e o sequestro de civis, 0 governo de Benjamin Netanyahu desencadearia uma opera¢ao militar sem limites nem precedentes contra Gaza. As declaragées (sobretudo a ja tristemente célebre “Estamos lutando contra animais humanos e agindo de acordo com isso”, proferida pelo ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant) e as ag¢des que se seguiram apenas reforcaram a constatagao de que estavamos diante do inicio de uma campanha genocida — o que péde ser rapidamente confirmado com a escalada didria e com oalvo dos bombardeios: edificios inteiros, que desmoronavam principalmente sobre mulheres e criangas. Apés cinco meses de ofensivas aéreas e terrestres contra a populagao de Gaza, interrompidos apenas por alguns dias para troca de reféns de lado a lado (porque boa parte dos palestinos presos em Israel também pode ser considerada refém, uma vez que sequer foi julgada), a cifra de mortos palestinos ja ultrapassou trinta mil Nao se sabe ao certo quantas pessoas jazem sob os escombros. A fome ea sede grassam. A desnutricdo se alastra, assim como as doen¢gas infecciosas. Nao consigo sequer imaginar o desespero reinante entre os cidaddos de Gaza neste momento, entre pais e mdes que perderam ou que temem perder os filhos, entre filhos que perderam ou temem perder os pais, entre mulheres prestes a parir em meio ao morticinio, com acesso precario aos poucos hospitais que restaram no territério. E tampouco alcango compreender a impressionante capacidade de resisténcia desse povo. Ao olhar para o que esta ocorrendo na Palestina nos ultimos meses, porém, é possivel vislumbrar respostas para uma das perguntas que mais me inquietam — e nao sé a mim: como a humanidade permitiu que o Holocausto acontecesse? Aresposta parece estar em nossa incapacidade de reagir coletiva e rapidamente ao monstruoso, uma vez que nos entregamos a interesses politicos mais imediatos e nos perdemos em conjecturas supérfiuas diante da realidade que se escancara bem diante de nossos olhos. Enquanto vacilamos, os perpetradores da carnificina avangam resolutos, intensificando o massacre. Um exemplo é a discuss&o indcua iniciada pelas reacdes do governo israelense e de seus defensores na imprensa mundial e brasileira depois de Lula ter dito e repetido a obviedade de que Netanyahu esta promovendo um genocidio em Gaza que tem paralelo com o que Hitler fez com os judeus (e com comunistas, homossexuais, ciganos) no século XX Em meio a tuites indignados e a notas de repuidio — e aum pedido de impeachment protocolado na Camara dos Deputados —, 0 governo de Israel avan¢ou em seu plano de atacar Rafah, ao sul de Gaza, para onde ordenou que os civis fugissem caso nao quisessem morrer nos bombardeios mais ao norte, e apropriou-se de novas areas da Cisjordania, onde também decidiu construir mais assentamentos. Eisraelenses de extrema direita aproveitaram a terra-arrasada que restou no norte da faixa territorial palestina para tentar construir um novo assentamento judeu Oprojeto, aqui, claramente, é ir esticando as fronteiras do aceitavel, normalizando a barbarie, até que os atos mais impenséaveis possam ser executados sem que causem escandalo ou, menos ainda, acarretem maiores consequéncias | Apoieoviomunpo Assim, em 29 de fevereiro, um raro comboio de ajuda humanitaria entra na Faixa de Gaza e é imediatamente cercado por palestinos famélicos — nada mais natural para quem precisa urgentemente de um pouco de farinha para ndo ver a familia morrer de inani¢ao. Soldados israelenses se envolvem, disparam contra pessoas que so querem comida. Um drone filma tudo la do alto. Como resultado, mais de cem civis perdem a vida, Aguerra de verses come¢a imediatamente, seguindo 0 roteiro tradicional, em que as Forgas Armadas de Israel se eximem de responsabilidade ou oferecem justificativas irrelevantes para os crimes que cometem, assim como ocorrera nos ataques que fizeram aos hospitais de Gaza “em busca de terroristas’ E antes, e sempre. Contudo, nao ha duvidas. Se essas pessoas todas morreram atingidas por projéteis (os militares israelenses admitem ter assassinado no episddio “nao mais que dez" palestinos na fila do pao — e confessar um crime horrendo como esse perde importancia diante do pequeno numero de “animais humanos” confessadamente abatidos, tornando-se quase uma absolvigdo) ou pisoteadas, ou de ambas as formas, o culpado é omesmo. Afinal, os palestinos em Gaza apenas se amontoaram em volta dos caminhées de ajuda humanitaria porque estao sendo castigados pela fome e pela sede, consequéncias obvias de quase cinco meses de ataques brutais. E, se efetivamente houve gente pisoteada, isso se deve ao fato de que soldados israelenses comecaram a disparar contra a multiddo — alguém ficaria parado ao ouvir os estampidos vindos da arma de um agressor que esta matando seus vizinhos aos milhares? Basta retirar Israel da cena e nada disso teria acontecido. E é assim desde 1948. O que estamos assistindo em Gaza é cada vez mais preocupante porque, com o irrefreavel genocidio em curso, Israel, apoiado pelos Estados Unidos e pela Europa — por bilhdes de ddlares em dinheiro e armas enviados pelo Ocidente —, esta definitiva e talvez permanentemente destruindo qualquer nogao de direitos humanos e qualquer possibilidade de que sejam colocados em pratica no presente e no futuro. Gragas a essa matan¢a, os limites da civilidade, que ja eram estreitos, esto desaparecendo a uma velocidade vertiginosa. Claro que muitas outras desgracas aconteceram e acontecem em varios lugares do mundo Mas esse confiito (que a imprensa tradicional insiste em classificar como uma guerra entre Israel e Hamas, quando se trata claramente de uma campanha de exterminio e expulsao de todo um povo de seu territério) tem uma peculiaridade indelével: trata-se de um genocidio cometido por um povo que ha menos de cem anos foi vitima de um genocidio, e que usa 0 fato de ter sido vitima de um genocidio como justificativa para cometer um genocidio, respaldado pelas mesmas nagées que nesse ultimo periodo construiram e implementaram a Declarago Universal dos Direitos Humanos, a Convengao de Genebra e a Organizaco das Nagées Unidas na tentativa, ainda que apenas retorica, de valorizar a vida humana sobre todas as coisas e construir uma paz mundial duradoura. Agora, nem aretorica temos mais. Trata-se, pois, de uma faléncia moral inédita desde a Segunda Guerra Mundial, em escala planetaria. O mundo nao sera mais 0 mesmo depois do que esta ocorrendo na Palestina. Ja nao é. E isso deveria preocupar a todos, em todos os lugares, porque aacaéo de Israel, patrocinada pelos governos e pelos senhores da guerra estadunidenses e europeus, dard carta branca para que episédios do género se repitam globalmente, sem que exista qualquer respaldo diplomatico para sua condenacao e interrup¢ao. Afinal, se um Estado pode exterminar impunemente um povo que escolheu como inimigo, e com amplo respaldo internacional (financeiro, politico e militar), outros Estados também se sentirao no direito de fazé-lo — e farao, ainda mais em um contexto de ascensdo da extrema direita Voltemos, pois, ao Brasil. Em Sao Paulo, enquanto um protesto em solidariedade ao povo palestino reuniu duzentos gatos pingados no vao do Masp, em Sao Paulo, em 24 de fevereiro — pessoas que deviam se manifestar contra o genocidio em Gaza mas que deixaram esse assunto de lado para brigar entre si porque uns queriam falar ao microfone e outros nao deixaram —, no dia seguinte a extrema direita deu mais uma vez mostras de grande capacidade de mobilizagao popular, com uma concentra¢ao. multitudinaria na Avenida Paulista — onde, por sinal, fiamularam bandeiras israelenses em apoio ao exterminio em Gaza. Estavam la o ex-presidente da Republica, pastores evangélicos, parlamentares conservadores, o prefeito da capital e o governador do estado. Sobre este ultimo, cria do bolsonarismo, a newsletter da Agéncia Publica enviada em 1° de mar¢o diz o seguinte: Em SAo Paulo, a Policia Militar do governo Tarcisio de Freitas matou 38 pessoas em menos de um més na Operagao Verao — continuagao da malfadada Operagao Escudo, que ja havia tirado a vida de 28 pessoas na Baixada Santista no ano passado. Para além da letalidade fora de controle, ambas as operacées tiveram como mote a vingang¢a pela morte de um policial. Nao se trata de uma guerra de policiais contra “pandidos" aplaudida por boa parte da sociedade, apesar dos alertas dos especialistas sobre 0 equivoco dessa politica. Em ambos os casos, as comunidades foram invadidas e civis foram assassinados indiscriminadamente para “dar 0 troco”, sem poupar nemas criancas. ‘Ao todo, somando ambas as operagées, sao 66 pessoas mortas. Nas palavras do relatorio da Ouvidoria das Policias, que visitou os lugares-alvo da operacao no dia 11 de fevereiro, este ja é “o maior massacre do estado paulista desde a chacina do Carandiru’ [..] na gestao Tarcisio, com o capitao Derrite a frente da Seguranga Publica, o numero de criangas e adolescentes mortos em decorréncia de operagées policiais subiu 58% em um ano. Onumero saltou de 24 mortos em 2022 para 38 em 2023. A maior parte das vitimas é negra e diversos crimes tem caracteristicas de execugao. Nunca € demais frisar: nada disso é novidade, infelizmente, mas a escalada é visivel. Basta querer olhar. E os paralelos entre o que acontece nas periferias brasileiras e em Gaza sao evidentes. Cada vez mais sera assim Também no dia 1* de margo, o Itamaraty — que demorou, mas finalmente resolveu comegar a se posicionar com mais firmeza contra 0 genocidio na Palestina — soltou uma nota a imprensa dizendo que “a agao militar em Gaza nao tem qualquer limite &tico ou legal’, que é preciso agir para interromper esse massacre, que, ‘a cada dia de hesitacao, mais inocentes morrerao’, que “a humanidade esta falnando com os civis de Gaza’, que o massacre de palestinos em busca de ajuda humanitaria, seguido de “declaragées cinicas e ofensivas as vitimas do incidente’, feitas horas depois pelo governo israelense, “devem ser a gota d'agua para qualquer um que realmente acredite no valor da vida humana’. Eu assino embaixo. A grande questdo é que essas afirmacoes também servem para se referir ao que as forgas de seguranga fizeram, fazeme continuaro fazendo em todo o Brasil. Ate porque a Justi¢a falna miseravelmente em colocar qualquer limite aos seus agentes — ou melhor, faz questao de conferir-Ihes impunidade. Em 29 de fevereiro, ministros do Superior Tribunal Militar votaram por absolver os oito militares responsdveis pelo fuzilamento do mUsico Evaldo Rosa, além de determinarem a redugdo, a pouco mais de trés anos em regime aberto, da pena aeles imposta pela morte do catador de reciclaveis Luciano Macedo. Quem se lembra desse caso? Nos nao poderiamos esquecé-lo. Em 2019, homens do Exército cumprindo fungdes de seguran¢a publica no Rio de Janeiro dispararam dezenas de tiros (naquele dia, falou-se em 80, mas depois contou-se 257) contra 0 carro em que Evaldo trafegava com sua familia. Ele morreu, esposa e filho sobreviveram. Um catador de reciclaveis que assistiu a cena, Luciano, tentou socorré-lo, e também foi assassinado. Todos eram negros. Em reacao a esse absurdo, a Elefante abriu uma chamada publica que deu origem ao livro De bala em prosa: vozes da resisténcia a0 genocidio negro, com textos de novos escritores e escritoras negras, finalista do Prémio Jabuti em 2021. A maior derrota que podemos sofrer como sociedade, como espécie, é permitir a normalizagao e a justificagdo de tamanha matanga, onde quer que ela acontega, bem diante de nossos olhos, Ignorar um genocidio alhures é criar condigdes para que ele aconte¢a em absolutamente qualquer lugar, inclusive na porta da nossa casa Episédios como os que se repetem em Gaza ou nas periferias brasileiras precisam ser chamados pelo que sao — massacres, genocidios, carnificinas — e freados o quanto antes, sem tergiversacées, enquanto ainda nos resta algum resquicio da humanidade que se esvai pouco a pouco com tantas e tantas mortes. Leia também Israel barra ajuda humanitaria do Brasil na Faixa de Gaza, denuncia deputado italiano Heloisa Villela: EUA ensaiam mudanga de posigao sobre massacre em Gaza por Israel; video Siga-nosno Google News Comentarios Clique aqui para ler e comentar a] VIOMUNDO Leia também Jeferson Miola: Ministro do TCU que conhecia detalhes do golpe continua blindado e com salario de RS 48 mil Angela Carrato: Midia tenta na maior cara de pau reeditar a Operagao Lava Jato Pedro Pinho Augusto: Transi¢ao energética, poder efarsas neoliberais Ubiratan de Paula Santos: A relativizagdo do genocidio do povo palestino por Israel ‘Ajude o VIOMUNDO: seja um apoiador! (© 2024 -Todos os dretas reservados Sobre Anuncie —~Politicade Privacidade —=—AlterarPlitica hello.

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