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José Henrique de Faria Possui Pés-Doutorado em Labor Relations (ILIR - University of Michigan, EUA). Doutor em Administragao pela Faculdade de Economia, Administragao e Contabilidade da Universidade de Sao Paulo - FEA/USP. Mestre em Administragao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PPGA/UFRGS. Graduado em Ciéncias Econémicas pela Faculdade de Administragao e Economia - FAE-PR. Professor Titular do Programa de Pés-Graduagao em Administragao da Universidade Federal do Parana ~ PPGADM/UFPR. (Mestrado e Doutorado). Pesquisador PQ/CNPg. Lider do Grupo de Pesquisa Economia Politica do Poder e Estudos Organizacionais - EPPEO, UFPR/CNPq (desde 2002). PODER, CONTROLE & GESTAO Curitiba Jurud Editora 2017 Capitulo 1 PODER, CONTROLE, GESTAO E TRABALHO: OS FUNDAMENTOS DA TEORIA DA ECONOMIA POLITICA DO PODER 11 FUNDAMENTOS EPISTEMOLOGICOS E METODOLOGICOS A explicagao de todo 0 processo epistemoldgico (produgaio do conheci- mento) ¢ metodolégico que orienta este livro decorre da necessidade de esclarecer as formas pelas quais a matéria (objeto da pesquisa em seu campo empirico) é apreen- dida pela consciéncia (sujeito da pesquisa em sua relagdo com o objeto), de maneira a que seja possivel desenvolver a Teoria da Economia Politica do Poder, com énfase em um de seus aspectos mais essenciais: a critica A gestdo das unidades produtivas sob 0 comando do capital e ao sistema de controle sobre 0 processo de trabalho que esta desenvolve. Na perspectiva de Teoria da Economia Politica do Poder 0 método de produgao do conhecimento tem por fundamento a primazia do real sobre a ideia, entendendo, contudo, que o real para ser apropriado pela consciéncia necesita da mediagao do pensamento, recusando tanto o empirismo (o sensivel imediato, a expe- riéneia primeira) quanto o idealismo (0 pensamento que se basta a si mesmo). A inscrigo da matéria na consciéncia mediada pelo pensamento nao se constitui nem em uma tradugdo direta, sem intermediacao, nem em uma elaboragéio metafisica, mas em uma interag%o dialética, tensionada e dindmica, marcada pela complexidade ¢ pelas contradigées entre o sujeito e o objeto. Todo o projeto aqui desenvolvido considera os fenémenos concretos imediatos como sendo sua forma mais desenvol- vida, que para serem representados demandam uma anilise histérica de sua consti- tuigdo, desde sua forma mais simples. Como orientagiio epistémica este livro situa-se na dimenstio de uma Epis- temologia Critica do Concreto (FARIA, 2014), inspirada pelo materialismo histérico 34 José Henrique de Faria ¢ dialético’. Tal vinculagio nao pretende prestar contas ou submeter-se a qualquer dogma, a ortodoxia ou a qualquer corrente marxista especifica, na medida em que este livro se constitui em uma proposta de avango tedrico em estudos organizacio- nais. tendo por orientagao concreta a produgio critica do conhecimento no campo das unidades produtivas e de seu sistema de controle sobre 0 processo de trabalho. Nao se deseja, aqui, depreciar 0 dogmatismo (também chamado de fidelidade) mar- xista, apenas indicar que nao se assume nenhum compromisso com qualquer corren- te do marxismo exatamente por entender que este tipo de procedimento dogmatico € © pai do idealismo que o marxismo tanto critica. Tampouco se trata, aqui, de tomar o marxismo como uma ciéncia social, destituida da praxis. Neste sentido, cabe também insistir em uma observagao importante sobre a relagiio do sujeito com o real ¢ com suas expressdes. Como a Teoria da Economia Politica do Poder trata também da ideologia, nao ha como deixar de indicar, como ja notaram Marx e Engels (1976; 2007) em sua famosa critica 4 ideologia alema, Cas- totiadis (1982) em seu classico estudo sobre a instituig%o imaginaria da sociedade, Ricocur (1990) em sua perspectiva hermenéutica, que a ideologia n&o apenas ¢ uma construgao do pensamento que se basta a si mesmo, como igualmente produz seu proprio esquema de interpretaco, de dissimulagao, de justificagao, de divulgagao e de renovagdo. Assim, para se conferir um sentido aceitavel ao par ciéncia-ideologia, & necessdtio observar, mesmo na perspectiva fenomenoldgica hermenéutica de Ri coeur (1990, p. 92-5), que: (i) “todo 0 saber objetivante” sobre a “posigdo na socie- dade, mia classe social, numa tradigéo cultural, numa historia, é precedido por uma relagdo de pertenca que jamais poderemos refletir inteiramente”; (ii) se 0 “sa- ber objetivante é sempre segundo relativamente A relagdo de pertenga, nao obstante pode constituir-se numa relativa autonomia”, pois 0 “momento critico que 0 consti- iui é fundamemalmente possivel, em virtude do fator de distanciamento que perten- ce a relagdo de historicidade”; (iii) a critica das ideologias, fundadas por interesses especificos, “jamais rompe com seus vinculos com o fundo de pertenca que a funda. Esquecer esse vinculo inicial é cair na iluséo de uma teoria critica elevada ao nivel do saber absoluto”; (iv) se 0 saber pode se distanciar da ideologia, esta é sempre um cédigo de interpretagao, pois nao existem “intelectuais sem amarras e sem ponto de apoio”. Nada é mais necessério, atualmente, como ensina Engels, que a rentincia 4 arrogdncia para que se possa empreender com paciéncia o trabalho incessante- mente retomado do distanciamento e do assumir a condigao historica, Cabe, portanto, a0 sujeito pesquisador compreender que o distanciamento possivel de sua vinculagao ideolégica jamais ira Ihe conferir neutralidade axioldgica e que o saber que se pode 7 ‘0 método dialético consiste em analisar objeto (a matéria) em sua totalidade ou inteireza (0 total nfo & o absoluto), em suas miltiplas relagdes causais (que nada tem. a ver com relagdes causa-efeito), em suas contradigdes, complexidade e movimento, Toda matéria contém um dit plo caniter, constitui-se como uma unidade de contrarios, O método guia 0 sujeito pesquisador ha apropriagao do real e & na dialética do real que se encontra a dialética da andlise. A exposi- io dos resultados da pesquisa (0 texto), contudo, obedece as formalidades linguisticas, & pra- mnatiea. A dialética esta na realidade e no método de anilise. O texto expde, de maneira formal, f teoria, © conccito, enfim, a realidade complexa resultante da pesquisa. Este assunto ser re- tomado mais adiante. Poder, Controle & Gestio 35 produzir carrega em si os vinculos iniciais. Tais vinculos, convém insistir, néio po- dem ser confundidos com “mapas cognitivos” aprioristicos, pois enquanto os pri- meiros decorrem de uma posigio politica os segundos decorrem da escolha arbitraria de pressupostos conceituais. A investigagio deve partir de bases reais e nao da imaginagdo que se tem sobre a realidade. Como ja indicava Marx (2007, p. 37): Nao se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, ¢ tampou- co dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir dat, chegar aos homens em carne e sso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expoe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideo- logicos e dos ecos desse processo de vida [...]. Os homens, ao desenvolverem sua produgéo material e seu intercdémbio material, transformam também, com esta suat realidade, seu pensar ¢ os produtos de seu pensar. Com este sentido, para a Teoria da Economia Politica do Poder o real é toda a Coisa que existe concreta e materialmente tal como é experienciado e apro- priado pela consciéncia, mesmo que esta existéncia ¢ esta experiéncia se operem apenas no plano do pensamento ou das emogées ¢ nao representem 0 concreto com- partilhado ou 0 concreto fisico (tangivel). Deste modo, o “material” é tudo 0 que pode ser apreendido pela consciéncia como matéria pensada. As fantasias, as ilusdes, 0s mitos, 0 imagindrio, as sensagées, enfim, o fetiche, ainda que ndo encontrem correspondéncia no plano tangivel, existem concretamente para 0 sujeito como sua realidade (ainda que dela nao tenha necessariamente plena consciéncia) e, como tal, so existéncias reais, ou seja, embora seus contetidos possam ser abstratos, 0 plano das ideias e dos sentimentos tem uma existéncia real. Nem sempre se trata de um real objetivado ou passivel de compartilhamento, mas isto ndo torna estes fendme- nos menos importantes na defini¢do da ago concreta dos sujeitos. Uma parte desta realidade, pelo fato de nao poder ser compartilhada ou por nao ser referenciada a uma inteligibilidade, tem sido considerada como nfo pertencente ao plano do real. Entretanto, a psicandlise (especialmente a lacaniana) j4 demonstrou que o que nao pode ser compartilhado e o que existe no inconsciente intervém na ago e no pensa- mento dos sujeitos. Em outras palavras, sto fendmenos reais. Isto no significa que devem ser tomados tais quais sao imediatamente, sem uma elaboragii critica. Nesta mesma esteira, ¢ por considerar que as fantasias, os simbolos, os mitos, as emogdes e 0 conhecimento nao tém significado real fisico, que a razio instrumental s6 pode tomar o real como significag&o pensada do visivel, minimizan- do ou mesmo negando a importéncia da subjetividade na ago do sujeito. E por considerar que sé pode existir uma verdade absoluta que a Idgica positivista nio admite as possibilidades de existéncia de contrarios. Desta discussao entre material e imaterial decorre outra, tio polémica quanto. Sem ditvida, uma das mais insistentes objegdes de marxistas e freudianos em geral refere-se a pretensio de juntar Marx e Freud em um mesmo plano tedrico. Ontolégica e epistemologicamente, as teorias de Marx e Freud se encontram em planos antagénicos. Entretanto, do ponto de vista da Teoria da Economia Politica do Poder, a questo central é 0 quanto este antagonismo pode ou nao ser apropriado 36 José Henrique de Paria metodologicamente, Nao se trata de saber, portanto, 0 quanto 0 pensamento real corresponde ao concreto visivel ou compartilhado, mas 0 quanto corresponde a ago do sujcito, ainda que no possa ser percebido, pois se as relagdes que o sujeito é capaz de elaborar incluem elementos que representam tanto 0 concreto expresso quanto o imagindrio, tanto a raz3o como 0 afeto, tanto 0 consciente como o incons- ciente, tanto a atividade manual quanto a intelectual, isto deve significar que todas estas inclusdes estejam presentes em sua agdo € em seus conceitos. Neste sentido, igualmente, ndo é suficiente deduzir a natureza do sujeito pelo seu comportamento manifesto ¢ tampouco pretender entendé-lo a partir apenas de estimulos ou, por outro lado, da “fungao inconsciente”. Este tema no é nove, tendo sido enfrentado pela primeira geragao da Es- cola de Frankfurt, especialmente por Adomo, Fromm, Marcuse e Reich (ROUANET, 1998). Um dos primeiros estudos que buscam estabelecer uma relagio metodolégica ¢ tedrica entre a psicandlise e 0 marxismo foi desenvolvido por Osborn (1943), que apresentou uma abordagem entdo inovadora na qual ilustrou as inter-relagdes entre a vida subjetiva, descrita por Freud, ¢ 0 mundo objetivo das relagdes de produgio, investigado por Marx: “um erro muito divulgado é que a concepgéio marxista exclui de toda a consideragdo as qualidades subjetivas que jogam, a cada instante, wn papel tao importante na conduta humana” (OSBORN, 1943, p. 23). Entre tantas proposigées sobre o tema, Viana (2008) apresenta os ensaios “universo psiquico € reprodugiio do capital”, “Freud e o marxismo”, “Freud ¢ a abjuragdio dos sentimentos” e “Marcuse ¢ a critica ao neofreudismo”. Todas estas propostas sugerem a perspecti- va aqui adotada de que na relagdo entre a psique € a razio, entre o subjetivo e 0 objetivo, 0 real se torna o mundo cognoscivel na forma de concreto pensado, tanto no plano consciente quanto na constituigao do inconsciente. Portanto, uma andlise critica da realidade social na perspectiva materialista pode ser compartilhada por uma orientagao psicanalitica ou da psicologia social, como ja indicava Adorno (2015), embora n&o nos mesmos termos. Para compreender 0 método em Marx (1977) é preciso também compre- ender 0 didlogo tensionado que ele faz com a fenomenologia ¢ a ciéncia da logica de Hegel. Este entendimento é importante aqui ndo apenas para tratar a questio do método, mas para também introduzir a discussdo com a psicanilise. Isso porque & preciso observar, a este respeito, que a psicandlise, especialmente a lacaniana, toma a filosofia hegeliana como uma de suas principais referéncias epistémicas. Hegel pretende defender a supremacia da razdo contra os empiristas € idealistas puros, retomando o tradicional embate entre o idealismo platénico ¢ o realismo aristotélico, tendo por referéncia a filosofia alema, especialmente Kant e Fichte. Para Hegel, enquanto a Coisa-em-si (0 objeto) estiver fora do alcance da raz%o, esta serd apenas um principio subjetivo incapaz de alcangar a objetividade do real. Assim, é necessario, para Hegel, unir objetividade ¢ subjetividade no plano da razio, que para ele é a verdadeira forma da realidade, pois é na raz4o que se inte- gram as contradigées sujeito-objeto construindo uma unidade e uma universalidade. E 0 confronto entre a subjetividade interiorizada do sujeito e a experiéncia objetiva da vida © por esta conduzida que representa a universalidade e a totalidade para Hegel. Poder, Controle & Gestiio _ 37 Na “Enciclopédia”, Hegel (1995) apresenta trés posigdes ao problema da relagdo entre pensamento e objetividade: i, A experiéncia imediata, ingénua. Esta experiéncia, sem elaborar a opo- sigdo do pensamento em-si ¢ consigo mesmo, acredita que da simples reflexdo se chega a verdade, ou seja, decorre da crenga que basta a ex- periéncia imediata para que a consciéncia represente a verdade do obje- to (da coisa em si). Para Hegel, esta posigao de que oi pensamento se di- rige ao objeto reproduzindo o contetido sensivel fazendo-o contetido do pensamento consigo mesmo como verdade, converte-se em dogmatismo; ii, O embate entre idealismo e empirismo. Para Hegel a verdade est4 na realidade a qual se conhece por meio da percepgao. No entanto, o em- pirismo puro resulta na ilusfo decorrente do uso de categorias metafi- sicas da matéria, sendo que com estas categorias se pressupée a reali- dade e se raciocina metafisicamente sobre ela sem discernimento criti- co e de forma inconsciente. Para Hegel é necessario submeter as cate- gorias a uma investigag’o prévia do valor dos conceitos, A moda kan- tiana, mas, para além desta, é preciso penetrar no contetido e nas rela- g6es que as determinagdes contém para escapar da oposi¢ao entre ob- jetividade e subjetividade, a qual nao faria outra coisa sendo represen- tar 0 objeto como coisa-em-si; iii, O pensamento diante do objeto. Diz respeito ao saber imediato (inspira- G40, revelagéio, senso comum). Para Hegel aquilo que o saber imediato conhece ¢ que, 4 representago, se une de forma imediata e insepardvel a consciéncia-de-si. Para os defensores desta posigdo, argumenta Hegel, 0 objeto do conhecimento € a verdade, o infinito, o incondicionado, de forma que quando 0 pensamento s6 compreende o objeto assim que cle € colocado sob a forma de conceito que o converte em algo mediatizado, entao 0 conhecimento do objeto sé ocorre na forma de um saber imedia- to. Para Hegel, esta posigao nao leva a imediatidade do saber e, neste sentido, sugere a uniao entre o saber imediato e a mediagao que o pre- cedeu € a conexio entre a existéncia imediata e sua mediagao. Partindo destas trés posigdes, Hegel argumenta que a ideia, enquanto sa- ber subjetivo ou enquanto mero ser-por-si, ser que nfo é ideia, no pode constituir uma verdade, Assim, para Hegel, apenas a ideia por meio do ser e apenas o ser por meio da ideia é que constituem a verdade. A filosofia seria, entdo, a expresstio mes- ma da realidade ao eliminar a distingfio entre a ideia e o real j4 que ambos seriam faces de uma mesma-coisa, de onde advém a maxima hegeliana de que o real é racio- nal ¢ oracional € real. O problema da filosofia, como exposto na Filosofia do Direito (HEGEL, 1976), € compreender aquilo que 6, pois aquilo-que-é é a raziio, ou seja, a filosofia & uma produgio do Espirito que vive no interior ¢ no exterior da consciéncia, sendo seu contetido a realidade, O propésito hegeliano € estabelecer um acordo entre a filosofia ¢ a realidade, cabendo & filosofia, mediante a consciéncia deste acordo, 38 José Henrique de Paria produzir a conciliagao entre a raziio consciente de si mesma (a raz3o assim como & imediatamente) e a realidade. [sso signifiea que pata encontrar a verdade em deter- minado contetido da experiéncia o sujeito deve encontra-la dentro de sie tal contet- do deve ser capaz de concordar com a certeza que 0 ser tem de si mesmo, unindo-se 4 realidade. Em outras palavras, 0 problema do contetido da experiéneia deve ser transposto para o lugar do conceito, pois o conceito é a atividade do sujeito e, como tal, a verdadeira forma da realidade. Hegel discorda da concepeao segundo a qual quanto mais 0 sujeito se abs- trai da realidade, mais itreal é seu conhecimento. Para Hegel, ao contrario, 0 concei- to exige uma abstragao da realidade ¢ torna esta mais rica, pois a formagiio do con- ceito vai do fato ao contetido de sua esséncia. Portanto, ao sujeito cabe viver 0 fatoe se colocar contra ele, pois o mundo do fato nao ¢ racional e € preciso tazé-lo A razio, de forma que a realidade venha a corresponder 4 verdade, A verdade, assim, nao esta no fato, mas na razao que lhe corresponde. Este processo hegeliano da criagio do conceito se faz. sob a determinagiio de um método, a Dialética, na medida em que esta concebe e produz a determinagao niio enquanto oposigéio ¢ limite, mas como compreensio por si mesma do resultado ¢ do contetido, O processo dialético € a alma propria do contetido. O objeto, em tal sistema, deve incluir 0 negativo ¢ © positivo, a negagdo ¢ a negaeo da negagao, de tal forma que o-que- torna-se falso para poder retornar 4 verdade. Tal método ba- sela-se em duas proposigSes: (i) 0 racional € real ¢ 0 real ¢ racional, ou seja, a reali dade nao é penetrada pela raz, mas ¢ necessdria uma total e substancial identidade entre razio e realidade; (ii) o ser ¢ o nada sao uma tinica e mesma coisa, ou seja, No ha nenhuma coisa no mundo que nao contenha a co-pertinéncia entre o ser ¢ 0 nada, jd que cada coisa somente é coisa enquanto a todo o momento de seu ser é algo que ainda nao-vem-a-ser (que ainda nfo é como verdade) ¢ algo que passa a néo-ser (que se nega diante do conceito): tal & o cariter processual de toda realidade. No Prefacio da Fenomenologia, Hegel (2014) apresenta seu sistema. He- gel inicia o Prefacio tratando da contradig&o que deve conter o sistema filosdfico, indicando que a consciéncia que a apreende nao sabe exatamente liberta-la de sua unilateralidade e nem reconhecer que a luta dos contrarios exige consideri-los como momentos mutuamente necessarios. Neste sentido, reclama do fato de que a aparén- cia possa conter o essencial sem que se considerem suas diferengas, de onde resulta um dar voltas ao redor da Coisa mesma, combinando a aparéncia da Coisa com a Coisa, de onde resulta a caréncia efetiva de ambas. “A Coisa mesma ndo se esgota em seu fim, mas em sua atualizagdo; nem o resultado é 0 todo efetivo, mas sim 0 resultado junto com seu vir-a-ser [...]. Igualmente, a diversidade é, antes, 0 limite da Coisa: esta ali onde a Coisa deixa de ser; ou 0 que a mesma nao é&” (HEGEL, 2014, p. 25-25). Para Hegel, julgar o que tem conteiico ¢ solidez é facil: apreendé-lo & mais dificil. Por isso, “quando enfim 0 rigor do conceito tiver penetrado na pro- fundeza da Coisa, entdo tal conhecimento e apreciagdo terdo na conversa 0 lugar que Ihes corresponde” (HEGEL, 2014, p. 25). O objeto, assim, néio se revela aos sentidos em sua aparéncia imediata, demandando uma ago da raziio capaz de im- primir @ mesma sua plenitude completa. E a razio que confere 4 Coisa o que cla é ¢ nfo a propria Coisa. O elemento da existéncia da verdade esté no conceito, ou seja, j Poder, Controle & Gestio 39. na ideia produzida da Coisa e nfo na Coisa mesma. Para Hegel, 0 sentido da Coisa esta to enraizado no mundo que é preciso uma forga de igual magnitude para retird- lo dali e edifica-lo: este é o lugar da filosofia. Para Hegel, quando o saber carente de conceito “pretende ter mergulhado na esséncia a peculiaridade do Si [...] esté escondenda de si mesmo o fato de que [..] ora deixa 0 campo livre em si mesmo a contingéncia do conteitdo, ora deixa o campo livre no contetido ao arbitrério” (HEGEL, 2014, p. 28). O que primeiro desponta é a imediatidade do mundo e assim como um edificio nao esté pronto quando se constroem seus alicerces, também 0 conceito do todo nfio é 0 todo mesmo logo em seu inicio: “a ciéneia nfo esté completa no seu comego”. O comego € uma ampla transformagao de miltiplas formas, “ste comeco é 0 todo, que retornou a si mesmo de sua sucessdo [no tempo] ¢ de sua extenséo [no espaco]; € 0 conceito que- velo-a-ser conceito simples do todo” (HEGEL, 2014, p. 29), cuja efetividade é ape~ nas um momento de um processo. Assim, embora esta primeira apariefo esteja en- volta em uma simplicidade, para a consciéncia sua riqueza de ser-ai anterior parte do que precisa ser aptimorado de acordo com o estabelecimento de sélidas relagées, Decorre dai que “a justa exigéncia da consciéncia, que aborda a ciéncia, é chegar por meio do entendimento ao saber racional” (HEGEL, 2014, p. 30). Se 0 desenvolvimento entre o sensivel original e seu conceito nao se desenvalye, é por- que se trata da repetig&io da mesma fSrmula ea ideia nao abandona seu comego, tornando-se prisioneira do formalismo que apenas distingue as diferengas de conteit- do ¢ somente porque este ja estd pronto e é conhecido. Considerar que um ser-ai ¢ tal como no absoluto, ou seja, na sua verdade universal, niio € outra coisa sendo dizer que 0 ser-ai é algo, porém no absoluto 0 ser-ai nao é nada, porque no universal é tudo uma coisa sé; “é ingenuidade de quem esté no vazio do conhecimento 0 por este saber tinico — de que tudo é igual no absoluto — em oposigito ao conhecimento diferenciador e pleno” (HEGEL, 2014, p. 31). E como, ironiza Hegel, dizer que A noite todos os gatos séio pardos. Na concepgao de Hegel, “ido decorre de entender e exprimir 0 verda- deiro nao como substancia, mas também, precisamente, como sujeito. Ao mesmo tempo, deve-se observar que a substancialidade inclui em si ndio 86 0 universal ou a imediatez do saber mesmo, mas também aquela imediatez que é 0 ser, ou a imedia- tez para o saber” (HEGEL, 2014, p. 32). © problema aqui colocado é como 0 sujcito (subjetive) pode pensar o ob- jeto (objetivo)? Como é possivel submeter a verdade do objeto 4 verdade do sujeito? Somente com a resposta para tais questées é que, segundo Hegel, se pode chegar até um saber absoluto. Por isso ¢ que os trés primeiros capitulos da Fenomenologia partem do sujeito cognoscente em nivel elementar. i. O primeiro tipo de conhecimento elucidado é a certeza sensivel que, posteriormente, caminha para algo denominado como suprassensivel. Por certeza sensivel pode-se entender aqui o conhecimento primeiro que a consciéncia faz do mundo, isto ¢, 0 conhecimento empirico. Tal co- nhecimento caminha para um conhecimento suprassensivel na medida em que tenta superar a fisica; 40 José Henrique de Faria . O segundo tipo de conhecimento do sujeito é denominado por Hegel de consciéncia de si, Por consciéneia de si pode-se compreender a conscién- cia que ultrapassou a esfera do senso comum e do empitico ¢ se desco- bre enquanto tal. Ha aqui um movimento dialético, uma espécie de ca- minho que sera mais bem elucidado, Seu intuito é partir da fenomenolo- gia, isto &, do mundo das coisas que aparecem e so dadas para a formu- agdio de um sistema da ciéncia. No seu entender, a filosofia é equivalen- te a ciéncia, Desse modo, o que se entende por fenomenologia e por e pirito é a mesma coisa. Estas consideragées so importantes uma vez que o didlogo entre 0 mate- rialismo histérico e a fenomenologia (que orienta a psicanilise) se faz por sobre estas dimensdes ontolégicas e epistémicas. Para que tal didlogo se estabelega é ne- cessario retomar a critica ao sistema filos6fico hegeliano sobre a relativa autonomia da razao frente ao real: “Hegel caiu na ilusdo de conceber 0 real como resultado do pensamento, que se concentra em si mesmo”, afirma Marx (1977a, p. 219), ou seja, © real, pata o idealismo hegeliano, é um processo de sintese do pensamento que reduz 2 plenitude da representagao a uma determinagiio abstrata, Marx critica exa- tamente a concepgao hegeliana de que no plano da razio esté a verdadeira forma da realidade, que na razfio que se integram as contradig6es sujcito-objeto construindo uma unidade e uma universalidade. A compreensio da ciéncia da légica hegeliana é importante para ajudar a entender o proceso de produgdo tedrica, mas a mesma precisa ser colocada sobre outra perspectiva. Para Marx (2013), de fato, o movimento das categorias de andlise aparece & consciéncia como um verdadeiro ato de produgao decorrente do real, ¢ seu movi- mento tem como resultado 0 mundo concreto. Se este movimento decorresse da ideia, a totalidade concreta seria apenas produto do pensamento e da representagao que se moveriam por si mesmas, ou seja, produtos absolutos do conceito que se originaria a si proprio, que pensaria acima e 4 parte da percepgdo ¢ da representagao. As categorias, 20 contritrio, sie produtos da elaboragao consciente partindo do real. Como indica Marx (2013, p. 162), “as coisas sao, em si mesmas, exteriores ao ho- mem”, e & por isso que ele s6 pode apropriar-se delas como coisas pensadas. Portan- to, a totalidade que se manifesta na mente como um todo pensado € produto do cé rebro pensante que se apropria do mundo pela iinica forma possivel, Assim, embora © sujeito (consciéncia) e a realidade (mat¢ria) sejam em si mesmos distintos, a reali dade passa a pertencer ao sujeito quando este se apropria dela como realidade pen- sada, como realidade para-si. Ainda que se possa intuir que hé mais do que se percebe e do que se ela- bora, convém insistir que o real para a consciéncia (real pensado) & apenas o que pode ser conecbido a partir do concreto, do que é material 4 apreenséio pelo sujeito. ‘Assim, se 0 sujeito se dedica a uma atividade especulativa ou puramente tedrica, 0 mesmo subsiste autonomamente com relagdo 4 mente, em uma separagaio cartesiana entre razio e emogio. Isto ocorre se 0 sujeito, socialmente compreendido, nao atua de forma constante sobre a mente como condigdo prévia da apreensao, representagio ¢ elaboragao, Poder, Controle & Gestiio 41 Este livro, portant, fundamenta-se em uma andlise que tem no materia- lismo histérico uma referéncia, tomando de empréstimo algumas consideragdes pontuais oriundas da psicologia social freudiana, pois pretende dar conta de um corte analitico sobre o qual o marxismo tradicional n&o tem se debrugado suficientemente. Nao se trata de um freudomarxismo, mas de considerar a concepgio freudiana no Ambito do marxismo naquilo que é possivel dialogar, ou seja, em sua materialidade concreta. Esta relagaio entre o marxismo e a psicologia social, como mencionado, foi explorada de forma original pela Teoria Critica, porém com outra finalidade que nao a da anallise das relagdes de poder e dos mecanismos de controle sobre o processo de trabalho nas unidades produtivas capitalistas. Ainda que possa, este didlogo, gerar certa estranheza em alguns circulos académicos mais ortodoxos, 0 mesmo é absolu- tamente necessario para alcangar os objetivos pretendidos ¢ ser perseguido como uma contribuigao que, se nao ¢ inteiramente nova, tampouco é dogmatica. Este livro nGo é, portanto, um exercicio de freudomarxismo, de neomarxismo, de marxismo revisionista e tampouco se filia a qualquer qualificagao deste ou de outro género. E preciso insistir que este é um livro marxista que no tem nenhuma intengdo de pagar tributo a qualquer corrente especifica do pensamento marxista ou prestar contas a nenhum marxismo em particular, ortodoxo ou heterodoxo. A insergdo da psicologia social freudiana® neste livro orientado pelo mate- rialismo histérico é um recurso fundamental para entender a fisica (a materialidade) do poder, ou seja, a pratica da gestio e do controle do processo de trabalho no mun- do do capital, nas organizagées produtivas sob seu comando, exatamente ali onde as relagdes de poder e sua objetivagdo cm mecanismos de controle diariamente se pro- duzem e reproduzem. Assim sendo, “o método critico toma o que os outros disse- ram e vislumbraram e trabalha com este material a fim de transformar 0 pensamen- to — eo mundo que ele descreve — em algo novo (...). Um conhecimento novo surge do ato de tomar blocos conceituais radicalmente diferentes, fricciond-los uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionério” (HARVEY, 2013, p. 14). Em tal perspectiva, é crucial tomar os argumentos desenvolvidos nas teorias, desconstrui- los criticamente (procurar suas contradigées, limites e falhas), repara-los em novos termos ¢€ transforma-los em conceitos uteis. Em sintese, é preciso compreender que a observaciio imediata de um fe- némeno nio permite, por si s6, sua captura como fenémeno pensado em sua inteire- za. A aparéncia do fenémeno indica apenas sua forma tal como parece ser e nao como de fato é, ou seja, em sua pseudoconereticidade. Para compreender um fend- meno é necessério partir de sua forma imediata, mas ¢ fundamental ir além dela e isto requer uma elaboragdo ¢ uma reflexdo em profundidade (mediagéio pelo pensa- mento). Ao mesmo tempo, partir de uma teoria dada para com ela compreender um fendmeno permite ao sujeito ver no mesmo apenas o que ja estava previamente definido na ideia, pois, neste caso, o fendmeno “mostra-se” ao sujeito somente na- quilo que ele pretendia ver antes mesmo de conhecé-lo. Eventualmente recorrer-se- a diélogos com Dejours, Piaget, Vygotsky e outras correntes da psicologia naquelas concepgdes que possam auxiliar no desenvolvimento argumentativo. Em nenhum caso trata-se de proceder a um amélgama epistemoldgico ou tedrico, mas em tensionar 0s coneeitos. 2 José Henrique de Faria Em uma noite de céu limpo, vocé pode ver a Nebulosa de Andrémeda e passa a aprecid-la. O que vocé vé, contudo, nao é a nebulosa tal como ela é mas como ela foi ha um milhao de anos-luz. Esta nebulosa ja no se encontra da forma que vocé a vé. A realidade imediata, a nebulosa que vocé vé, mostra apenas a apa- réncia deste fendmeno naquele momento em que vocé a aprecia, Sem compreender a relago espago-tempo, vocé podera concluir que aquilo que vé é exatamente aqui- Jo que €. Trata-se de uma ilusfio. A nebulosa que vocé vé mostra-se em sua aparén- cia imediata naquela dimens&o tempo-espago. Mas para entender, de fato, este fenémeno, nao existe outra forma senao partir desta realidade imediata, daquilo que vé (e nao do que imagina), para entZio buscar, cada vez mais profundamente, os conceitos que expdem esta realidade. Ao munir-se do conceito de espago-tempo, produzido a partit do real e disponivel para vocé, torna-se possivel compreender 0 fendmeno da nebulosa tal como ¢, ainda que a realidade visivel apresente para vocé a nebulosa em sua forma aparente imediata. Uma vez equipado com os conceitos fundamentais, vocé pode fazer a mediagao, através do pensamento, entre o que vé {a forma) e 0 que € (0 contetido) e descobrir 0 quanto as aparéncias podem ser enganadoras. Isto nao significa que vocé podera fazer a transigao de um milhao de anos-luz, mas que pode compreender o fendmeno observado, Esta questo, guarda- das as devidas proporgdes, também € valida para entender as diferengas entre as aparéncias e a esséncia dos fendmenos organizacionais, superando a ilusio das formas imediatas, Convém ilustrar com uma situagao relatada em umas das pesqui- sas realizadas no 4mbito do EPPEO. Um gerente de uma empresa foi acometido de uma tilcera no duodeno cujo tratamento demandava uma intervengdo cirdrgica. Esta é a realidade imediata de onde se deve partir, mas nao é a realidade em sua totalidade. Aparentemente era um problema de satide que dizia respeito ao préprio sujeito e néio 4 empresa, segundo relatério da Area de Gestdo de Pessoas. Era ape- nas uma doenga que implicava em uma internagao ¢ afastamento do trabalho. A area encarregada de gestéo de pessoas encaminhou 0 processo de afastamento, encerrando ai sua acdo, de maneira que, para os efeitos formais, nao se procedeu a uma avaliagdo entre a doenga e 0 trabalho. Uma investigagao clinica (médica e psicolégica) mais acurada, contudo, mostrou que a tilcera era decorrente de uma situago de extremo estresse no trabalho. O estresse foi provocado pelo fato deste gerente nao conseguir atingir as metas de produgao que a empresa determinava, O nao cumprimento das metas era devido ao fato de que as condigdes de trabalho oferecidas ao gerente eram incompativeis com os resultados cobrados pela empresa (equipe, equipamentos, infraestrutura, etc.). A pressdo por resultados foi elevando o nivel de estresse, causando uma reag&o psicossomatica que desencadeou a tilcera. Uma leitura imediata deste fenémeno (a constatagaio da doenga) ¢ as providéncias decorrentes desta leitura fenoménica (afastamento do gerente do quadro da empre- sa) nfo mostram a relagdo entre a satide deste gerente ¢ © processo de trabalho ao qual 0 mesmo estava submetido e, portanto, ndo apontam qualquer ago conse- quente. Apenas uma investigagao rigorosa pode indicar como as aparéncias so en- ganadoras e orientar uma intervengiio apropriada. Mas uma intervengiio apropriada que nao rompa com a pseudoconcreticidade (que no seja revolucionaria) apenas ira intervir na superficialidade do problema: tal tem sido a proposta da psicodina- mica do trabalho e da teoria da atividade, por exemplo. a | Poder, Controle & Gesto 43 1.2 A TEORIA CRITICA A concepgaio da Teoria Critica tem sido relacionada diretamente 4 Escola de Frankfurt (BOTTOMORRE, 1983; 1984), enquanto compreensao totalizante e dialética, capaz de fazer emergir as contradigdes da sociedade capitalista. Entretanto, a Teoria Critica no é uma unidade na Escola: 0 grupo que se organiza em torno do Instituto de Pesquisa Social (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin, Fromm, Pollock), conhecido como a primeira geragdio da escola, adota fundamentos diferen- tes dos seguidos por Habermas, que representa segunda geragdo, cujos textos no inicio seguem as linhas definidas pelo grupo, mas reformula a nogao de Teoria Criti- ca tomando outro rumo € abandonando os fundamentos marxistas que caracterizam a Escola de Frankfurt em favor de uma concepgo neokantiana. A chamada terceira geragiio, representada por Honneth, volta-se a filosofia hegeliana pretendendo em- prestar a esta um cardter empirico no que se refere ao tema do reconhecimento social. Mesmo no primeiro grupo existem diferencas, que podem ser resumidas em dois textos: Tradizionelle und Kritische Theorie, publicado em 1937 por Horkheimer ¢ Philosophie und Kritische Theorie, publicado no mesmo ano por Marcuse como resposta a Horkheimer. A Teoria Critica pretendia denunciar? a repressiio ¢ 0 controle social a partir da constataco de que uma sociedade sem explorag3o é a tinica alternativa para que se estabelecam os fundamentos da justica, da liberdade e da democracia. Neste sentido, os tedricos da Escola de Frankfurt investiram tanto contra o nazismo, do qual foram vitimas, quanto contra o totalitarismo que se introduziu na Unitio Soviética, sob Stalin, tendo como horizonte a concepgiio de uma sociedade emanci- pada, Assim, ao mesmo tempo em que se vinculam ao pensamento marxista, esses tedricos nao abdicam da critica a determinados marxismos (os mecanicistas, os natu- ralistas, as verses fisicalistas da histéria elaborada pelos neoleninistas, entre outros), retomando a dialética hegeliana em sua versio materialista e dialogando com Freud, Weber ¢ outros pensadores nao marxistas. Tais didlogos abriram espacos para a ampliacdo das andlises de fundamento marxista, entre outras, nas éreas da estética, da cultura, do conhecimento, da linguistica, da psicologia social e das organizagdes. A Teoria Critica oferece nao apenas um modo de interpretag&io de como a produgio Existe um argumento de senso comum segundo o qual a critica deve corresponder uma propos- ta de solugao, pois € necessario recusar 0 “denuncismo”. Esta avaliagdo equivocada sobre a forga da denncia da teoria social est fundamentada em uma op¢ao pelo “sugestionismo prati- co”, para 0 qual toda a pesquisa que denuncia deve apresentar uma solugdo, a qual, naturalmen- te, no poderia decorrer da aco dos sujeitos ¢ das relagdes que estes stio capazes de estabele- cer, jé que se encontra brotada na mente iluminada do pesquisador e em certa arrogancia elitista que pressupde que o conhecimento ¢ suficiente para a agao transformadora. Uma pesquisa pode sugerir ages, sempre ¢ onde couber, mas ndo pode pretender que as mesmas sejam solu definitivas e inapelaveis e tampouco pode supor que, uma ver. indicadas, as sugestBes nfo se- jam trabalhadas pelas novas relagdes que inevitavelmente se estabelecerio a partir dela, Ao fi- nal, esta proposigdo de um cédigo de procedimentos priticos (Codex Theodosianus) parece pre- tender que as organizagdes recebam um conjunto de solugdes prontas, nascidas da concepgao de um aristocrético esquadrio de intelectuais orgénicos a servigo da ideologia do sistema de capital. 44 José Henrique de Faria humana relaciona-se com os desejos, conflitos ¢ potenciais, mas também uma forma de desenvolver habilidades para pensar ldgica e criativamente, afastando-se do pen- samento canonizado. No entanto, a Teoria Critica também reinstaura o idealismo e a especulacao no interior do marxismo, empobrecendo sua concepgdo ontoldgica, obstinadamente defendida por Lukacs. O Instituto de Pesquisa Social Unstitut fiir Sozialforschung) foi funda- do" no interior desse confronto entre as diversas disciplinas, os dogmas em que se tornaram algumas teorias e as diferentes andlises de uma teoria, cada qual avocando para si a primazia da verdadeira interpretagdio, O marxismo, que deti- nha certa unidade e uma identidade, passava a conviver com a fragmentagao. O objetivo inicial dos fundadores do Instituto e de toda a primeira geragio era apresentar um modelo de marxismo como alternativa 4s concepgdes que dividi- am o marxismo. Tratava-se, neste momento, de resolver o problema da crise e da fragmentagao, de retomar a tradig&o do marxismo para restabelecer sua identi- dade. Um dos pontos cruciais na crise do marxismo residia em uma discordancia quanto ao caminho e aos meios para se chegar ao poder: pela via das reformas ou da revolugao, Tal divergéncia relacionava-se as andlises que estavam na base dos diagnésticos e prognésticos. nesse contexto que surge o programa de Horkheimer de um materialismo interdisciplinar. Para compreender o mundo, Horkheimer (1972; 1974; 1990) julgava, co- mo Lukacs (1974; 1974b; 1981), que se deveria partir do marxismo, porém refun- dindo-o com a incorporagao de outros saberes. Esse movimento, iniciado com Lukes e Korsch, denominado por Wiggershaus de “marxismo ocidental”, tem um dos seus eixos na abertura para saberes, teorias cientificas ou filosdficas, nado dire- tamente marxistas. Neste sentido, uma das novidades do materialismo interdiscipli- nar proposto por Horkheimer foi a tentativa de compatibilizar Marx e Freud, questéio que veio a se tornar extremamente relevante nos anos 1930 (MUSSE, 1999) e que, atualmente, no campo da psicologia social ¢ dos estudos organizacionais, adquire um lugar de destaque'', Horkheimer (1990) procurou compreender as manifestagées culturais a partir das condigdes de produgio da vida material relacionando os concei- tos freudianos de estrutura psiquica com a teoria marxista da reificagdio. "A Escola de Frankfurt teve sua origem no Instituto de Pesquisa Social fundado em Frankfurt em 1923, como um legado de Félix Klein, © primeiro diretor do Instituto foi Karl Grinberg, marxista austriaco, historiador da classe operiria, Sucedeu-the inicialmente Friedrich Polloch ¢ mais tarde, em 1931, Max Horkheimer. Foi precisamente com a nomeagao de Horkheimer a di retor que o Instituto passou a adquirir importéncia sempre maior, assumindo a condigao de Es- cola, tanto do ponto de vista formal, como do ponto de vista de uma corrente de pensamento, com um programa que passou para a histéria das ideias com o nome de “teoria critica da socie- dade” (ASSOUN, 1991). 1! E sempre necessirio ter algumas cautelas na incorporagiio dos conceitos. Lacan (2008), por exem- plo, sugere 0 conceito de mais-de-gozar como uma homologia ao conceito de mais-valia de Marx. Lacan se permite uma “licenciosidade poética” e, nesse sentido, desenvolve um conceito que do ponto de vista epistemoldgico, metodolégico e tedrico, ndo tem relagdo com o conceito de mais- valia. O problema pode assumir contomos tedricos graves quando os conceitos origindrios de uma Epistéme sao incorporados diretamente por outra sem qualquer mediagio. ; Poder, Controle & Gestdio 45 De acordo com Musse (2012, p. 25), para Adorno (1994) “a investigagaio social critica deve mostrar como nas relagdes subjetivas cintilam determinantes sociais objetivos”, ou seja, 0 modo de produgao “condiciona a consciéncia e o in- consciente dos individuos”, de forma que é “como dimensio reificada, carente de autonomia, que a subjetividade se torna tema prioritério de investigacao”. A subjeti- vidade, portanto, nao deve ser descartada de uma andlise epistemoldgica critica como se a mesma pertencesse apenas ao terreno da pura especulacio. A importancia da Teoria Critica da sociedade para os Estudos Organiza- cionais é de grande relevancia, na medida em que inaugura possibilidades analiticas antes restritas 4 economia, introduzindo uma visada interdisciplinar. Com 0 tempo, entretanto, a Teoria Critica abandonou as referéncias marxistas, desde a primeira geragiio, para praticamente negé-las na segunda e terceira geragdes. 13 A TEORIA DA ECONOMIA POLITICA DO PODER E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS A Economia Politica do Poder é uma teoria critica que néo se vincula di- retamente 4 Escola de Frankfurt e & Teoria Critica tal como definida por Adorno e Horkheimer, mas que reconhece sua importincia pata os estudos organizacionais, incorporando orientagdes que sao fundamentais para a compreenséo das relagdes de poder e dos mecanismos de controle segundo uma perspectiva interdisciplinar, A teoria critica do controle sobre o processo de trabalho que aqui se propde constitui- -se em uma teoria no apenas da economia (das relagdes de produgio das condigdes materiais de existéncia), mas igualmente do poder (da ideologia, da alienagio, da politica, do ordenamento juridico, enfim, da assim chamada superestrutura), E com este sentido que se descnvolve, aqui, a Teoria da Economia Politica do Poder. Desta forma, os estudos atuais sobre a vida nas organizagdes vem sugerir que é preciso investigar mais do que as racionalidades instrumentais, que as estratégias, que as instituigdes, que os comportamentos e que as politicas. A andlise das organizagdes necesita desvendar o mundo objetivo e subjetivo das relagdes de poder e as formas de controle que as mesmas impetram, para se sentir autorizada a compreender essas organizagdes em suas finalidades. Entende-se que isto pode conferir qualidade a teoria, criar condigées de andlise critica e promover intervengdes politicas transfor- madoras em ambientes de trabalho preenchidos de competitividade de toda a ordem, desde que superadas as pseudoconcreticidades: E neste sentido que se toma obrigatério apresentar os fundamentos da Teo- tia da Economia Politica do Poder no estudo da gesttio do processo de trabalho nas organizagdes, com a finalidade de indicar que a compreensfio da vida nas mesmas e sua dindmica exigem um esquema tedrico-metodoldgico critico ¢ dialético, que sej capaz de responder as questées que afetam a vida cotidiana dos sujeitos das mais variadas formas ¢ que valorizem o sujeito coletivo mais do que as organizages em que trabalham, pois de um modo ou de outro, se todos yivem em fungao de organi- zagoes ou delas dependem, como sugere Etzioni (1974), todos vivem originalmente em sociedade: especificamente, em uma sociedade dominada pelo sistema de capital. 46 José Henrique de Faria As organizagées sio, de fato, produg6es sociais e hist6ricas que adquirem autonomia relativa em relagdio aos sujeitos que a constituiram e que se consolidam como instin- cias de mediagéio entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados ¢ os objetivos para ‘os quais foram criadas. As organizagdes nfo sao entes abstratos, sujeitos absolutos, entidades plenamente auténomas, unidades totalizadoras e independentes, mas produ- ges histérico-sociais complexas, dindmicas © contraditérias, nas quais convivem esiruturas formais e culturais, manifestas e ocultas, concretas ¢ imagindrias. A dinami- cidade das organizagdes em suas particularidades ¢ singularidades, contudo, est con- dicionada pelo modo dominante de produgdo das condigdes materiais de existéncia, © problema central da Teoria da Economia Politica do Poder, portanto, consiste em esclarecer em que medida as instncias, por vezes estratégica e/ou ideo- logicamente ocultas (que se operam nos bastidores organizacionais, nas relagdes subjetivas ¢ no inconsciente individual), e as manifestas (inclusive ¢ especialmente as referentes ao regramento e as estruturas) dao contetido concreto as configuragdes do poder e do controle nas organizagdes, Dito de outro modo, é preciso revelar em que medida as gestées das organizagdes (unidades produtivas) coneretamente defi- nem suas relagdes de poder ¢ seus mecanismos de controle, incorporando 0 que nao pode ser dito as claras ao que se reproduz em seus pordes, ao que € possivel falar e ao que nfo pode ser manifesto explicitamente, de maneira a eriar wm mundo que pretende se apresentar ideologicamente coerente no plano discursivo e que é ao mesmo tempo preenchido de racionalidades (de regras, objetivos, politicas, proces- sos produtivos, planos, estratégias, etc.) ¢ de subjetividades (simbolos, ritos, elemen- tos imagindrios e mitos), mas que concretamente é incapaz. de subtrair scus parado- xos e contradigdes, Trata-se, em resumo, de ultrapassar as aparéncias fenoménicas, ow seja, a pseudoconereticidade das relagdes de produgio no interior das organiza- ges para buscar seu contetido real. ‘As formas concretas de organizagiio do mundo contempordneo sé podem ser compreendidas como resultados de um processo histérico, em todas as suas ins- Lincias. Muitos podem ser os enfoques e variadas as abordagens analiticas a que podem recorrer os pesquisadores no sentido de investigar de que maneira estas for- mas de organizagdo ocorrem nas diversas sociedades ¢ quais seus reflexos na vida social, em diferentes aspectos. A Teoria da Economia Politica do Poder procura, assim, expressar 0 Suporte conceitual ao estudo de organizagées concretas a partir da perspectiva das relagdes sociais de produgdo, do desenvolvimento das forgas produ- tivas ¢ das relagSes entre sujeitos e grupos sociais com o objetivo de analisar sua anatomia. A definig&io da Economia Politica do Poder como uma teoria remete a uma construgéo ao mesmo tempo ontolégica, epistémica ¢ metodolégica e a um correspondente sistema tedrico, Nao se trata de uma concepgo ontolégica no senti- do heideggeriano, da economia do poder, mas de uma estruturag%o analitica que procura recobrir os diversos campos em que se fundamenta a realidade da praxis organizacional ¢ nio uma forma de vé-la. Trata-se de uma teoria eminentemente interdisciplinar. Tal teoria se constitui, ela mesma, segundo uma concepgdo ontold- gica, com referéncia no materialismo historico, ou seja, como ontologia do ser social, gundo a expressiio de Lukics (2012; 2013), Neste sentido, trata-se também da Poder, Controle & Gestio 47 produgiio de conhecimento cientifico e, portanto, de uma Epistemologia Critica do Concreto. Do ponto de vista da produgtio do conhecimento, conforme ja indicado, a Teoria da Economia Politica do Poder é resultado de uma concepgao referenciada no materialismo histérico e dialético, sustentada na interagdo tensionada entre sujeito e objeto (consciéncia ¢ matéria) na producto do saber, a qual n&o abdica dos chama- dos fundamentos metodolégicos da ciéncia, Sendo 0 método aquilo que orienta a relagdo sujeito-objeto na produgao do conhecimento, ele est na origem dos proce- dimentos técnicos desta produgao, assim compreendidas as formas, os recursos, 0s instrumentos ¢ as tecnologias de pesquisa. Assim, de fato, 0 processo de elaboragaio tedrica exige a observancia dos rigores metodolégicos ¢ os cuidados no uso das técnicas de pesquisa. Neste sentido, entende-se que uma investigag&o cientifica encontra-se necessariamente condicionada (porém nao submetida) pelas teorias disponiveis, pelas proprias condigdes do sujeito pesquisador, pela condig&o do obje- to de pesquisa e pelos instrumentos de investigagao, nao existindo uma forma tecni- camente padronizada que se aplicaria a qualquer objeto em quaisquer circunstncias, Tampouco se trata de uma fenomenotécnica, tal como sugere Bachelard (2006). A concepgao de que a dialética nio ¢ compativel com pesquisas quantitativas é aqui totalmente recusada, pois 0 que determina a forma dialética de se apropriar do real é antes © movimento ¢ as relagdes contraditérias do objeto do que o tipo de recurso tecnoldgico para 0 acesso ao campo empirico de que se utiliza. Para a Teoria da Economia Politica do Poder, quanto mais amplo 0 acesso aos dados do campo empi- tico € quanto mais diversificadas forem as formas de obté-lo, mais precisa serd a analise, mais consistente 0 aleance da totalidade conereta do objeto (mais condigdes 0 pesquisador possui de ultrapassar a pseudoconcreticidade da Coisa). Ao mostrar como a gestdo das relagdes de trabalho nas organizagdes defi- ne e implanta seus mecanismos de controle a partir da interagao de instancias ocultas (porém reais) e manifestas que se opera em seu interior, o objetivo principal da Teo- tia da Economia Politica do Poder é responder a dois Propésitos que constituem sua praxis: primeiro é de natureza ontoldgica, epistémica ¢ tedrico-metodoldgica, conforme exposto; 0 segundo é de natureza pratica, porquanto deve permitir desven- dar e expor as relagdes de poder e os mecanismos de controle em organizagdes com 0 intuito de subsidiar os sujeitos em suas agdes politicas de resisténcia e de enfren- tamento. Para tanto, é necessario delimitar a abrangéncia de tal projeto e fundamen- tar sua abordagem. Tendo em vista que as questdes epistemoldgicas e metodolégicas 44 foram indicadas, ainda que sucintamente, cumpre agora definir que 0 objeto a ser estudado, o “ambiente” social em que o mesmo se encontra inserido, seu contexto e seu foco, so as relagdes de poder materializadas nos mecanismos de controle na gestio do processo de trabalho nas unidades produtivas ou de pertenga. Deste modo, é necessdrio reafirmar 0 teor especifico sobre o qual esta fundamentada a Teoria da Economia Politica do Poder. O “campo empirico” em que se encontra seu objeto de analise so as organizagdes concretas formais ou estaveis & as de pertenga, em suas miltiplas interagdes ¢ em suas formas recentes de estrutura- 40 no mundo contempordneo. O objetivo dos estudos nessa linha, apontado no inicio, sugere que estas organizagdes devem ser analisadas nos limites da sociedade 48 José Henrique de Faria contemporiinea marcadas pelo globalismo, ou seja, pela forma capitalista do proces: so histérico de globalizaggio ou totalizagiio. Ainda que se reconhega que este esque- ma proposto possa ser utilizado para andlises organizacionais em ambientes no afetados pelo globalismo capitalista, ¢ neste ambiente que este tipo de estudo pre- tende se concentrar, pois é nele que esto mais evidentes as contradigdes atuais do modo capitalista de produgio, Como se sabe deste Marx (1904; 1977a), a produgio social na qual os su- jeitos esto inseridos estabelece relagdes definidas, que slo ao mesmo tempo indis- pensiveis e independentes destes sujeitos, sendo que tais relagdes correspondem a estégios do desenvolvimento das forgas materiais de produgo € que © conjunto destas relagdes de produgdo se constitui na base econémica material sobre a qual se assenta a superestrutura juridico-politico-ideolégica, A base econdmica ¢ 4 superes- trutura correspondem formas de consciéncia social, O modo de produgao das condi- gdes materiais de existéncia condiciona o carater geral da vida social e emocional dos sujeitos, de forma que a consciéncia da transformagao da sociedade pelo sujeito individual encontra-se relacionada 4 consciéncia social, na medida em que ndo é a consciéncia dos homens que determina sua existéncia, mas, ao contrario, é sua existéncia social que determina sua consciéncia (MARX, 1904, p. 165; 1977a). Entretanto, a vida social é um lugar de contradigdes e a compreensio dos sujeitos sobre a mesma nao pode ser definida ¢ sequer determinada apenas pela consciéncia decorrente da sua existéncia social imediata, pois por mais importante que esta seja (como de fato 6), nao é a tinica forma de existéncia. O conjunto dos processos inconscientes ¢ subjetivos ¢ das relages sociais forma a totalidade da existéncia do sujeito € € esta totalidade que constrdi sua consciéncia. De igual ma- neira, tal construg%io encontra-se cla mesma carregada de contradigdes e conflitos presentes tanto em cada um dos processes (inconscientes ¢ sociais), como entre os mesmos. Para os propésitos deste livro, isto significa que se esté diante de um qua- dro complexo de relagdes de poder no qual tanto os elementos objetivos quanto os subjetivos aparecem amalgamados nos processos de dominagio ¢ de afirmagao da hegemonia do capital, E exatamente porque hd uma pereepgao deste amalgama que © capital investe cada vez mais no desenvolvimento de mecanismos sofisticados de controle sobre 0 processo ¢ as relagdes de trabalho € que, ao mesmo tempo, os traba- Ihadores aperfeigoam suas formas de resisténcia. Alienagdo, estranhamento ¢ cons- cigncia critica compéem © quadro histérico da luta politica fundamental. Como indica Marx Individuos determinados, que como produtores atuam de um modo tambéne de~ terminado, estabelecem enure si relacdes politicas e soviais determinadas. & pre- ciso que, em cada caso particular, a observagdo empirica coloque necessaria- mente em relevo — empiricameme e sem qualquer especulagiio ou mistificagiao — a conexdo entre a estrutura social ¢ politica e a produgio. (MARX, 2007, p. 35) ‘Assim, 0 problema tedrico ¢ pratico que se coloca aqui se concentra nas especificidades ou nas peculiaridades sécio-historicas ¢ estruturais da produgaio de Poder, Controle & Gesto 49 uma Economia Politica do Poder, pelo capital, sobre 0 proceso e as relagées de trabalho nas unidades produtivas sob o seu comando, produgao esta que se define em complexos sistemas e mecanismos de controle. A pesquisa que se desenvolve aqui a partir de uma perspectiva critica tra ta de investigar este problema teérico e pratico cuja formulagao esta sempre em movimento no interior de um processo histérico, o qual contém em si o desenvolvi- mento contraditério das forgas produtivas no capitalismo, com seus periodos de expansio e suas crises de acumulagaio. Processo este que se dé com, ao mesmo tempo, © exercicio do poder tanto do capital em seu curso de reprodug’o sociometabédlica, quanto dos trabalhadores, em suas formas de resisténcia ¢ de enfrentamento a partir da organizagao das suas forgas politicas, Tal problema nao poderia surgir ao acaso. Como afirma Marx (1904, p.165), 0 problema apenas surge quando as condigées materiais necessdrias @ sua solugdo jd existem ou estdo em processo de formagao. Portanto, desde que Marx, ha cerca de 150 anos, estudou 0 modo capitalista de produgao, as forcas produtivas se desenvolveram de uma forma cada vez mais complexa. Tratar da gestiio do processo de trabalho sem levar em conta o desenvolvimento das forgas pro- dutivas é, de pronto, recusar a concep¢do materialista historica. Uma palavra ainda sobre a produgdo da pesquisa e sua exposigao. A légi- ca da descoberta difere da logica de exposigao, como ja sugeria Hegel (2014). Su- gestdo esta que Marx (1977) retoma em outra perspectiva. De fato, a pesquisa come- ga pelo real em seu ponto mais desenvolvido para chegar aos conceitos mais simples € as teorias que o expliquem. A exposigdo segue o caminho inverso, indo dos con- ceitos mais simples que ajudam a “iluminar” 0 modo como a realidade opera, para 0s mais complexos que permitem a representagiio do real em sua forma tedrica (ideal) atual. A légica da exposigaio formal dos conceitos nao pode ser confundida com uma proposigao aprioristica, segundo a qual o real deve ser explicado (enquadrado) de acordo com uma teoria previamente existente (uma teoria que existia antes e inde- pendentemente da realidade), e sim como um modo organizado de explanagao. Deve-se distinguir 0 modo de exposigdo segundo sua forma, do modo de investi- gacdo. A investigagdo tem de se apropriar da matéria em seus detathes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o real. Se isto é realizado com sucesso e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, 0 observador pode ter a impressdio de se encontrar diante de wna construgdo & priori. (MARX, 2013, p. 90) 14 A CONCEPCAO DE ORGANIZACAO Tendo em vista que este é um livro sobre a pratica do poder na gestdio do trabalho em organizagGes produtivas capitalistas na forma de mecanismos de contro- le, é preciso destacar que um dos problemas mais comuns dos estudos organizacio- "2 A producto de uma economia politica do poder pelo capital difere fundamentalmente daquela produzida pelo coletivo dos trabalhadores, 50 José Henrique de Faria nais 6 tratar a insténcia da organizagao de maneira metafisica, inespecifica, como estrutura Gnica, universal ou monolitica, ou seja, como “a organizagao”, esta forma elementar de concentragdo de interesses. E oportuno observar, neste sentido, que esta maneira de se referir a organizagao nao é recente. Jung (1978, p. 64), por exem- plo, chamava a ateng&o para 0 fato de que os “interesses sito como deuses: quando reconhecidos e aceitos por muitos, pouco a pouco formam uma ‘igreja’, agrupando ‘ao seu redor todo um rebanho de fieis. Chama-se isto ‘organizagao”. Organizagao, tal como este termo ¢ empregado por Jung, possui um sentido tio amplo (pode ser uma estrutura formal ou de pertenga) quanto abstrato (aplica-se a qualquer caso), podendo se referit a muitos fenémenos ao mesmo tempo, pois so os interesses que promovem agrupamento. E com tal sentido, por exemplo, que Enriquez, (1974; 1986; 1997) trata das “organizagdes”, ou seja, entidades auténomas, com vida pré- pria: a otganizagao como um “ser em si”. Esta maneira morfoldgica como o termo é empregado vem sendo, de fato, também utilizada indistintamente todas as vezes que 0 conceito de organizagdo remete ao mesmo tempo para a estrutura de elementos que constituem uma entidade ¢ para referenciar processos, praticas ou formas de agiio, tal como em “organizagao do trabalho”, em “organizagao cientifica do trabalho”, em “métodos de organizagao” ou em “organizagtio da greve” e “organizagao politica”. Quando o conceito de organizagiio é empregado apenas em seu sentido sociolégico simples, 0 mesmo refere-se 4 estrutura formal ou regular de elementos que constituem uma entidade, a qual serve A realizagio de agées de interesse econémico, juridico-politico, social, cultural e ideolégico. Neste conceito encontram-se as empresas, os clubes ¢ associagdes, os drgaos piiblicos ¢ 0 préprio apatelho estatal. Motta (1981), por exemplo, refere-se ao Estado como uma organizagao. Em alguns casos, 0 conceito sociolégico de organizagiio tem sido relacionado ao de Instituigio (LAPASSADE, 1977), quando diz respeito: (i) 4 uma forma de organizagao que corresponde aos costumes (ou habitus, segundo a concepgao de Bourdieu, 1983) ou estruturas sociais, sejam estas estabelecidas por leis que vigoram em um determinado Estado e que estabelecem seu ordenamento (tal como a da propriedade privada), sejam por procedimentos (tais como casamento, familia, etc.); (ii) A estrutura material que serve A realizagio de agées de interesse social ou coletivo (tais como as instituigdes publicas de ensino). Sendo este um estudo referenciado no materialismo historico, € preciso esclarecer que com nenhum desses sentidos mencionados a organizagio possui um estatuto ontolégico em Marx". Os conceitos morfolégico e sociolégico de orga- nizagio nfo existem em Marx. No primeiro caso, Marx tratara da propria pratica ou, em extremo, da praxis. No segundo caso, que se refere a estrutura formal ou regular da sociedade e 4 sua materialidade, Marx tratard de suas especificidades, tal como estabelecido nos conceitos de partido politico, de Estado ou de fabrica, oficis manufatura ou industria, por exemplo, Assim, a organizagao, se compreendida como empreendimento, encontrara em Marx uma correspondéncia no conceito de unidade Jo, no Brasil, foi resgatada brilhantemente por Elcemir Pago-Cunha em sua tese de doutoramento na UFMG, da qual me valho aqui. Para uma andilise detalhada sobre o conceito dle organizagio em Marx, ver Pago-Cunha (2010),

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