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\ PER RUURLULUUUU ODER OULU LUULULUL LEELA: EUNICE OSTRENSKY A OBRA POLITICA DE HOBBES NA REVOLUCAO INGLESA DE 1640 Trabalho apresentado como dissertagao de Mestrado ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sto Paulo ‘Orientador: Renato Janine Ribeiro UNIVERSIDADE DE SAO PAULO. 1997 PERUUUUREUUULUD EURO ULULALULU LEE LLULL EUNICE OSTRENSKY A OBRA POLITICA DE HOBBES NA REVOLUGAO. INGLESA DE 1640 Trabalho apresentado como dissertayio de Mestrado ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas da Universidade de Sto Paulo ‘Orientador: Renato Janine Ribeiro UNIVERSIDADE DE SAO PAULO 1997 3 \ VULUAAAAAAUULLAALALLLAAL AL Wh ATETVALLLL Resumo Trata-se de investigar como as obras politicas de Thomas Hobbes buscam intervir no andamento da Revolugdo Ingless, promovendo a submiss’o ao governo estabelecido. O trabalho privilegia cinco obras, a saber: “Prefiicio” a tradugo da Histéria da Guerra do Peloponeso (1628), Human Nature’ De Corpore Politico (1640), De Cive (1642), Leviata (1651) e Behemoth (1668). E determinamte nessa lista a presenga de textos ditos nio- filosoficos, ja que 0 discurso histérico ¢ 0 discurso filoséfico tém a mesma finalidade politica evitar a rebelifo. Entretanto, em cada uma dessas obras é visado um determinado inimigo, cuja capacidade de sedugdo - ¢ portanto de sediglo - acaba contaminando a forma de exposigéo da doutrina civil. Entre os possiveis leitores figura o soberano, uma vex que precisa conhecer seus direitos, suas tarefias, além da natureza de seus siditos, para impedir a desintegragao do Estado. ) \ PESASIRE ESSEC OCCU SUTURE RENE RRREEEREEYT | Agradecimentos Ao professor Renato Janine Ribeiro, pela orientag%o atenta deste trabalho A minha mle, Leda, aos meus irmios Antonio ¢ André, pela confianga, pelo incentive, por tudo. Ao Juan, pelo carinho, Ao Eduardo, pela camaradagem. E a Profa. Maria das Gragas S. do Nascimento, por sua grande ajuda ao longo desses anos Este trabalho contou com o auxilio do Consetho Nacional de Pesquisa Cientifica ~ CNPq -, mediante a concessio de bolsa durante o periode de margo de 1994 a setembro de 1996 A lembranca de Engénio Ostrensky, meu pai (Endo gostavas de festa... que festa srande hoje te faria a gente”) PUUUUUUUUUSSEODS SEER UROMDUDAARAULA AAALAC \ Indice Resumo Agradecimentos Apresentacio... Capitulo 1: O humanista e 0 filésofo da nova cién Capitulo 2: Os dissimuladores. Capitulo 3: Opressio, autoridade ¢ instrucib.... Paginas finais... Bibliografi VAMP UU UU ED RU RAED ADD DD DD DRUS UAV A LAND ae Apresentacao ‘Nao foi de fato a ocorréncia da guerra ctvil que gerou suas opinides, mas @ perspectiva dela; naturaimente, entretanio, suas convicgdes se fortaleceram quando seus medos se tornaram reais...” J. Aubrey, Brief Lives, p. 147, primeiro capitulo deste trabalho procura mostrar as razBes pelas quais o maior dos problemas politico-filoséficos - a guerra civil - s6 recebe abordagem direta em um iflogo de corte historico intiulado Behemoth, ¢ desfazer o antagonism entre 0 conhecimento histériea ¢ 0 filoséfico indicado ja no titulo das obras: Behemoth, simbolo biblico de impiedade, ingratidio, assassinato, violéncia e injustiga, oposto ao Leviatd, , que significa a vitéria da autoridade sobre o orgulho. monstro igualmente bi 'Um estudo que saliente os lagos entre o discurso filosdfico € © discurso histérice tende a percorrer uma via acidentada ¢ tortuosa. Mesmo © mais incauto dos leitores € capaz de perceber alguns paradoxos, por assim dizer, entre conceitos-chave desenvolvidos nas obras filosdficas e opinides expostas no didloge historico. Jé ao leitor atento no passa desapercebido que o filésofo da nova ciéncia de certa maneira rejeita 0 humanista, 0 tradutor de a Histéria da Guerra do Peloponeso, alegando que a histéria atua no dominio das crengas, no no da razdo. Como explicar essas contradi¢Ses? Uma saida simples seria considerar que {historia ¢ filosofia so registros diversos € portanto incomparaveig) Denunciar a diferenga, claro, nio & explici-la. Por isso uma solugdo nesses moldes no pode ser satisfatdria. Talvez 0 mais adequado seja observar 0 processo mediante o qual a historia e a filosofla se contraptiem em um primeira momento para em seguida se completarem © Hobbes do Behemoth & um autor hibrido. Suas concepgdes sobre:a histéria so anélogas as defendidas em 1628, tal como nos permite afirmar o cotejo entre a estrutura formal do livro de 1668 ¢ 0 exame do “Prefiicio” a Historia da Guerra do Peloponeso, ‘que constitui um verdadeiro enssio sobre o estatuto ¢ a fingdo da historia para Hobbes Ao mesmo tempo, seria falso afirmar que\o' Behemoth é a produgdo de um historiador apenas) uma vez que muitos dos argumentos que marcaram a filosofia politica do autor \ TY UURDUE RES EDEORORORESOSEOSOROSRORGU EUG lid esto reproduzidos. Por sua vez, o Human Nature, De Corpore Politico e De Cive banem por completo a historia da esfera da cigncia, ao passo que 0 Leviad atribui lguma importancia 4 histéria, sem prejuizo de té-la como um conhecimento inferior a filosofia, na medida em que nela se admitem até mesmo incoeréncias e paradoxos. Nas ‘quatro obras politicas citadas, a unica linguagem verdadeira ¢ a filoséfica, de modo que ro seria mi a opini8o de quem julgasse o Behemouh uma produgio menor do elenca de grandes obras de Hobbes. Mas seria precipitado tal julgamento. Voltar ao fazer historico em 1668, quando se conta ja oitenta anos, pode indicar | fam certo esgotamento do género filosdficd) Também pode significar que nunca se] sbandonou totalmente a perspestiva histérica. Ambas as hipdteses parecem corretas, pois, apesar das intengdes do programa da década de 40 © das aparéncias em contrario, Hobbes nunca dissociou totalmente sua filosofia da historia, seja ela tomada como ‘cenério em que incide o texto filoséfico, seja como instrumento de conscientizagio sobre os deveres civis do sidito. Ao escavarmos o subsolo das relagdes entre o discurso filos6fico ¢ o discurso historico, veremos que o antagonismo se sustenta apenas em uma camada ostensiva de leitura, ja que ha entre eles uma relagdo de complementago. Se no primeiro capitulo se privilegiam as relagdes intratextuais entre filosofia e historia, isto ¢, como Hobbes concebe ambos os conhecimentos, no segundo © no terceiro no horizonte esto as relagdes entre o discurso do filésofo e os acontecimentos historicos. Alguém mais critico adiantaria que de duas, uma: para se fazer um trabalho hpesses moldes, ou se ¢ um historiador-filosofo (ou um fildsofo-historiador), ou 0 resultado final ser constrangedor. Em tempos de especializagdio dos saberes, como um Sgenico em certo assunto se aventura em outros dominios sem ser leviano? Melhor seria s ocupar de seus proprios afazeres, em que ha muito pouco espago para erros (embora © mesmo niio seja vélido para as polémicas), quando a leitura técnica € levada a sério Aliés, uma leitura deste ultimo tipo ¢ sempre mais Geralmente, o pretenso portador de sabedoria universal acaba errando em tudo quanto ‘firma, deixando mostra o amalgama inusitado entre erudigo (gratuita) e ignorincia que a critica grandiosa. De antemio, ¢ preciso esclarecer que este trabalho ndo deseja considerar a obra Seu contexto, isto ¢, tratar o texto filoséfics como um dentre os varios “reflexos” da €poca Tampouco se negligenciari a estrutura interna da obra em detrimento do mero selato hist6rico, ja que nfo nos interessa a histéria factual, ou a historia tomada como um ‘conjunto de fatos heterogéneos, orientados de acordo com a sucesso temporal. A 3 ‘istOria ser pensada a partir dos acontecimentos que alteraram as relagdes politicas, Sociais € econdmicas entre os homens na Inglaterra do século XVII, Italo Calvino nos ensina que “nlo se deve confundir a cidade com o discurso que 2 descreve”. Entretanto, salienta Calvino, que hi uma relaglo entre eles, ninguém Guvids'_ Que 0 dito nos sirva de adverténcia: o discurso de Hobbes sobre a guerra ciyil ‘ado deve ser tomado pela guerra civil em si mesma - mas as relagdes dindmicas entre eles Podem devem ser tragadas. No caso presente, o discurso nos leva a cidade, ou seja, a Settura minuciosa de texto exige que entendamos minimamente as guerras civis inglesas ¢ © potencial revolucionario das religides Do contrario, ficariam quase sem sentido - estéreis - 05 capitulos relativos as causas da rebelio ¢ a0 oficio do soberano e as partes 0s tratados politicos de Hobbes destinadas a interpretago das Escrituras Mas, voltando 4 objegdo, niio ha equivoco em frisar que a separagio entre filosofia e historia nas obras politicas de Hobbes seja arbitraria. Se, por um lado, a tarefa de comentar um fildsofo como nosso se torna mais complexa porque leva ao estudo da historia, por outro, entretanto, sem esse estudo nos arriscamos a descaracterizar a sua ~~ Cintencio: original, pois escrevia para interferir no debate Politico de sua época. Suas i obras foram compostas a fim de que os contempordneos, alguns dos quais personagens centrais da Revolugio, lessem-nas. De alguma maneira, Hobbes logrou seu intento?, isso ‘Go indicando que suas teses tenham sido postas em pritica, Portanto, de ponta de vista do leitor, a dimensto historica no pode ser desprezada No segunda capitulo sio examinadas as doutrinas em voga durante a RevolugZo Ingles, Expdem-se ¢ comentam-se as quatro formulagdes sobre os motivos que, de cordo com Hobbes, levam um Estado & dissolugio, a saber: capitulo XXVII de De Corpore Politico, XTI da segunda parte de De Cive, XXIX do Leviatd, ¢ Behemoth. © exame dessas formulagdes visa a sublinhar menos os elementos em comum entre as Guatro, ¢ mais as diferengas, Nao se trata, obviamente, de denunciar eventuais SontradigGes internas do pensamento de Hobbes, mas de perceber 0 movimento do Bssunto sobre 0 qual se debruga 0 autor. A Revolugho Inglesa, como € sabido, Sonstituiu-se de varias fases © significativamente nelas repercute a intervengo do Siosofo. Cada uma delas se refere a um momento historieo distinto em que se situa 4 pad. Antonio Candido, O Discurso e a Cidade, Sto Paulo, Duas Cidades, 199%: p. 18. cae Se eset, que se consulte 0 artigo de Quentin Skinner, “The context of Hobbes's theory of Political obligation”, A bibliggrafia completa se encontra no fim deste trabalho, VUVDURAAAAAAL AREAS 4 DEUUUUUU EREDAR AALAND ‘Hobbes, leitor de seu tempo. Talvez por isso nfo se possa apontar dentre as quatro a formulago definitiva e completa © comentario das chamadas “doutrinas sediciosas” permite, ao mesmo tempo, acompanhar © procedimento empregado por Hobbes para ataci-las. Assim como no ‘primeiro capitulo, no segundo novamente a retérica ocupa © centro das atengdes do autor, quer quando a renega, quer quando a utiliza A eficécia da filosofia é inversamente proporcional a utilizagao da retérica quanto mais se recorre ao discurso eloqiiente, ‘menos poder se reconhece ao discurso cientifico. E 6 por meio da retdrica que 0 esforgo de Hobbes em racionalizar o Estado ¢ a religio parecer mais evidente A critica a atividade clerical merecera paginas de fextremo sarcasmo. Isso porque, de acordo com Hobbes a religido, seja catélica, presbiteriana, anglicana, independente, anabatista ou pentamonarquista, havia deitado ‘suas raizes sobre a zona mais cinzenta da alma humana: 0 medo da morte e do Além. E Se ndo houvesse inferno ¢ os homens aprendessem a respeitar as leis? Acabaria a manipulagdo muitas vezes grosseira do homem comum, que passa a vida aterrorizado nao-em se salvar da cadeia ou dos suplici impostos pelo soberano, mas dos tormentos infernais infinitos ¢ eternos. Para Hobbes, nao passam de fulicia os pretextos de “guerra santa”, “povo eleito” e outros boatos. O Reino de Deus niio ¢ deste mundo, mas aquilo a que aspira 0 clero é bem mundano € comezinho: poder. Segundo 0 autor, no anseio de ‘conquistar a soberania o clero oculta seus verdadeiros interesses sob a capa da santidade ¢ das intengGes pias. Cabe a ele desnudé-los, propondo o fim do inferno ¢ uma nova interpretagdo para a palavra “alma” Embora sejam os maiores responsaveis pela guerra, os religiosos no foram os anicos 0 dilaceramento do Estado é acentuado, no Behemoth, quando entram em cena ‘0s interesses laicos. Assim como o clero havia tomado subversivas as palavras das Escrituras, também os parlamentares interpretaram os textos clissicos sobre a democracia conforme fosse mais conveniente a seus propdsitos. Ao. mesmo tempo, advogados interesseiros foram desenterrar na noite dos tempos leis ancestrais que fayorecessem a regulagdo particular da propriedade, a limitagdo dos direitos da soberania ete E interessante notar nesse ponto que Hobbes traca o elo, que mais tarde fara escola com Weber e Tawney, entre a religido protestante e as atividades comerciais. Para 0 autor, os discursos religiosos haviam encantado os parlamentares e advogados, além de proprietarios de terras e comerciantes. Esses se aliaram entio ao clero e, ato continuo, TUPUUL DETTE EEEECUUU EEDA DARD ALAA ELL De puseram-se a encantar o$ que estavam 4 sua volta, numa sorte de “efeito-domino” a morte do Rei, a soberania parlamentar, 0 confisco de terras, a formagdo do Exército, a ampliago do comércio colonial, enfim, tudo estava previste pela Biblia ou pela common- eww, quando nfo por ambas simultaneamente 0 terceiro e tiltimo capitulo abandona o mote da desobediéncia civil como causa da guerra: saem de cena os sedutores, para darem lugar a atuago ineficaz do governante. De um lado, Hobbes nio deixa de registrar o quanto o soberano foi traido ¢ vitimado por um proceso difamatério, de outro, talvez tenha sido o grande responsivel por todo a processo de sedugiio. Malgrado a intengio racionalista ¢ de esclarecimento, Hobbes constata que -verdade ndo ¢ auténoma, ou seja, também ela deve se submeter a vontade ¢ a opinisio do -governante, pois o julgamento das doutrinas que podem ser professadas em publico é um ddircito inalienavel da soberania. Ainda que o conhecimento ciemtifico examine a wveracidade de certas proposigdes, no esti a seu alcance estipular a verdade que deve nortear a constituigao do Estado, cuja esséncia se define no momento em que o soberano institui as leis eivis. Tudo 0 que for contrério & manutengao do Estado deverd ser julgado falso. © homem é uma criatura volivel e inconstante, e por isso so inevitaveis as ilus6es e a dominagdo, Poderiamos tentar compreender esse fendmeno recorrendo a welha explicagaio cansada - © fartamente explorada - de que somos vitimas de nossa propria came, nio estariamos errando. Todavia, culpar as paixdes por todas as incertezas em que se pode meter 0 homem ¢ pouco mais que lamentar o fato mesmo de termos nascidos humanos, e no anjos. © problema sério com que se deve lidar é 0 da Profunda ignoriincia que nos envolve e que pode nos destruir. Hobbes julga necessério ortanto que o soberano se apresse em dominar o imaginario de seus stiditos, o mais forte ¢ prontamente possivel, com doutrinas que garantam a estabilidade politica, antes ue seus inimigos 0 facam, evitando assim 0 pior Ora, qual o celeiro da rebelifio: sendo as Universidades? De la partem os bispos, sdmiradores da indiscernivel e desprovida de discernimento escolastica; os pregadores, Iktores que sio das Escrituras, os democratas seduzidos pela retorica classica; fidalgos cociosos © apaixonados pela historia antiga Por causa disso, 0 primeiro passo de um soberano ciente da vulnerabilidade de seus siditos € a reforma nas Universidades, que slardo os educadores do Estado hobbesiano. Isso significa que em si mesma a pregacéo no € um mau, antes pelo contririo, ela é necessiria ao govemante que deseje a manutengio de seu poder e a seguranca de seu povo, Nisso, Carlos | agiu mal. Omitiu-se ‘ou mesmo permitiu que conselheiros corruptos dominassem a corte. Seu dramatico fim ez de certo mode previsivel tee Ao analisar algumas faces da guerra civil na obra politica de Thomas Hobbes, a imperfeiedo vai se constituindo no tema central deste trabalho: imperfeigio dos conhecimentos histOrico ¢ filoséfico; imperfeigiio dos homens, imperfeigao do soberano. Esquematizando um pouco, no primeiro capitulo se salienta a fragilidade dos discursos iante da irracionalidade humana; no segundo o foco incide sobre os mecanismos de ‘engano ¢ auto-engano a que os cidadios esto sujeitos, enquante no terceiro a tentativa €/a de se apontar a culpa do soberano enquanto-conscigncia publica impura e mau orador. Além disso, &-dois iltimos capitulos parecem A primeira vista diametralmente opostos. No segundo, adotando © ponto de vista de Hobbes, esencantado do século XVII. mundo do racionalismo. No terceiro, subtraindo ao texto 2 critica velada ao governante, ¢ possivel perceber como 0 mundo do filsofo de stra-se 0 mundo Malmesbury também ¢ 0 dos dogmas, que ele mesmo em alguma medida ajudara a Gerrubar, e como neles se estrutura um projeto particular de reforma dos Estados. De ceria maneira, o primeiro capitulo, ao tratar do humanista e do filésofo, jé deixara ‘entrever 0 autor na berlinda, “suspenso entre dois mundos’ a Cada um desses capitulos exigiria, a rigor, um trabalho inteiro; cada um deles ambiciona a independéncia ¢ a maioridade. Ao mesmo tempo, parodiando Giordano Bruno, a guerra civil em Hobbes é uma circunferéncia cujo centro esta em toda parte ¢ a pesiferia em nenhuma Sendo assim, ¢ certo que estas magras péginas nao satisfario © petite do tema, e & bem provavel que ao fim nos sintamos desapontades com a oferta spinguada. Mesmo assim, foi necessirio partir de algum ponto ¢ circunscrever um espaco ‘mais ou menos preciso no qual o problema pudesse ser tratado, sem correr 0 risco de feproduzir meras minicias, detalhes insignificantes, ou mesmo resvalar para o vazio da generalidade. * Hill, Christopher, “Thomas Hobbes and the Revolution in political thought", in Puritanism and Revolution, p. 268, WANLA AAD. VA VAAAA AAAS WAAL Capitulo OC humanusta e 6 filosofo da nova ciéncia ‘Ep femtbo de 1679, cinco meses antes de sus morte, Thomas Hobbes escreveu ao editor ‘Willem Crocdie pare lhe pedir que desistisse de publicar 0 livro Didlogo sobre as Guerras (Cite die Bp, escrito em 1668". De acordo com Hobbes, 0 rei firmemente havia Ihe secesadi> 2 pecmiissio para a publicacdo da obra ¢, diante disso, nada mais restava fazer sendo ebedecilo, pots ninguém melhor que © governante para decidir sobre os livros permitidos a0 (pitiico Serie preferivel, continuava o filésofo, perder a quamtia que esperava obter com a \peblicecdo, ou talvez remeter a Crooke outra obra “tao vendivel quanto aquela”, a ofender ‘Suz Majestade* © cpisédio ¢ significative, pois - supondo-se qué a carta seja sincera’ - revela nao s6 a submissio ¢ lealdade do filésofo ao monarca, quanto o mal-estar provocado por suas obras nas sutoridades. De fato, tratava-se de um escritor cujos livros eram bastante conhecidos, como se pode supor & partir da afirmagio de que © Dialogue era vendavel, e que provavelmente era mais versado em filosofia que © rei, Mas a exceléncia do livro nic estava em questio, na eedida em que 0 proprio Hobbes defendera, anos antes, a superioridade da vontade do soberano em relagdo a “verdade filoséfica™ Havia ainda um outro dado: a censura indicava ‘gee 2 obra poderia ser perigosa para a manutengo da paz. Suprema ironia, para quem passara iiltimos cingienta anos de vida elaborando fundamentos tedricos que permitissem a estsbilidade politica! Alids, nada poderia ser mais indicativo da lealdade e justiga de um siidito =x relagio a seu soberano, dizia o filésofo na Dedicatoria do livro, gue|o relate do ocorrido extre 1640 ¢ 1660, Guelensinaria aos leitores como as mudangas fortuitas de governo sio 0. Suto da insensatez ¢ da injustica’ ‘Assim Hobics chama o Behemoth em sua correspondéncia com ¢ editor, Edigles piratas da obra sircularam sso final da década de 1670, mas.a versio autorizada sé recebeu publicayo postuma em 1682. ‘Considerations upon the reputation, loyalty, manners and Religion of Thomas Hobbes, “Bookseller's “Advertisement”, E.W.. 4, pp. 411-412 ¢publicado em 1679) * Para se esquivar da ccnsura que incidiu sobre @ Leviald a partir de 1668, Hobbes teria permitido uma nova publicagto do livro na Holanda, © ardil mostra que o flésofo talvez nlo levasse a opinito de Sua Majestade {loem conta quanto alardeava (cf. C.B. Macpherson, Leviathan. “Introduction”, p. 68): =" compete a sobcrania ser juiz de quais as opinides ¢ doutrittas que s€0 contrarias & paz, ¢ quais as que Ihes fo propicias. E, cm conseqiéacia, de (..) quem deve examinar as doutrinas de todos os livros antes de serem (Leviata, XVIII, p. 109), Behemoth, ed. Ferdinand Tonnies TVA © que poderia haver de tio nocive a paz publica no Behemoth? Nio estavam suficientemente desmascarados e vilipendiados os grandes inimigos da monarquia, 0s (eesbiterianos. comforme cra wogs no periodo da Restauracio? £ possivel No entanto, tumbées ers Woes eatre os cortesios clogiar discretas - ou nio - predilegdes catdlicas, ¢ isso (Hobies tema em sis fazer Ainds que 0 livro nio tratasse os assim chamados papistas ome peotagomists ix rebeliio. li estavam citados, julgados e condenados por seduso, ¢ (POSE por respomsabiiiade ireta mas guerras civis’. De alguma maneira, essa atitude ‘See Gee nosso tor no se preocupara em reparar as criticas feitas a eles nas paginas ss Gesabecades do Jovian’, em que clero romano era simplesmente ridicularizado, (Como se isso ja no fosse bastante, alguns membros do Parlamento dos Cavaliers (Femete Se 1661 2 1679) encontravam na censura a obra - ¢ no eventual enquadramento de ‘Ses ator entre os dissenters - a possibilidade de uma desforra curtida desde a década de 50, qezedo 0 Leviatd se tomara popular. Embora elogiados no livro’, os membros daquele Pariamento tinham Hobbes por uma “besta negra” que merecia ser langada a clandestinidade, jestamente com os presbiterianos € outros sectarios, por sua “selvagem e atéia™ doutrina ica A proposta dos parlamentares nfo era gratuita Era dificil ignorar, naquela altura, © desprezo do filosofo pelas instituigdes parlamentares, no obstante a velhice o tornar mais seadescendente ou respeitoso’. Aes olhos de Hobbes, o Parlamento sempre fora uma iEstituipdo duvidosa que, por ser 0 lugar ideal dos debates ¢ dos discursos retéricos, apenas ‘Geveria incumbir-se de aconselhar esporadicamente o soberano. Dar a Cimara dos Comuns ‘== fingio legislativa ¢ cobradora de impostos seria provocar uma cisdo fatal da soberania’ , coadenando-se & guerra civil Predominava entio, entre os partidarios da monarquia absoluta ¢ do direito divino, 0 rofundo sentimento da perfidia de Hobbes. Defensor da causa monarquica até o final dos anos $9, nosso autor parecia té-la abandonado para se submeter a autoridade dos revolucionérios e ‘dear 20 engagement cromwelliano da dévada de 50°) E o pior de tudo: sua teoria se Behemoth, I, pp. 2 ¢3. *~ devo confessar que este Parlamemo tem feito tudo que um Parlamento pode fazer para a segurana de sossaipaz™ ( Behemoth, IV, p. 204). *Q Skinner, “The contextof Hobbes's thoory of obligation”. pp. 110-15 * Dealogue of the Common Laws, E,W. 6, p. 17. ® Leveona. XXIX, p. 197 ® Sobre a questio do Icitor privilegiado de Hobbes, que se confira 40 Ieitor sem Medo, pp. 62:3: ~.. mio sdevemos esquecer que, do cap. XVII ao XI, Hobbes supSe que seu leitor aocita mais facilmente a sobcramia ‘sum. regime democritice que na monarquia, ¢ ¢ usando argumentes famitiares a tal ouvinfe qué 6 filésofo (..) ee Os prctendia filosdfica e imparcial’. © vilio hobbista da Restauracao, para utilizar a bela ‘expresso de Skinner’, individuo calculista, de natureza ma ¢ anti-sociavel, capaz de subverter ‘2s leis para instituir um poder arbitrério, era portanto o inimigo a ser combatido, Vejamos uma das passagens que serviria de apoio aos criticos realistas “E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclestastico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, sem outro objettva sendo colacar diante dos olhos dos homens a muitua relacda enire protecdo e obediéncia, de que a condigéto da natureza humana e as leis divinas (quer naturais, quer positives) exigem um cumprimento invioldvel. E- muito embora na revolucda dos Estados nio possa haver uma constelagdo muito propicia para 0 aparecimento de verdades desta natureza (tendo um aspect desfavordvel para os que dissolvem o antigo governo e vendo apenas as costas dos que erigem um nove}, contudo ndo posso acreditar que seja condenade nesta época, quer pelo juiz piiblico da doutrina, quer por calguém que deseje a continuagde da paz piblica.”* ‘Os realistas no se enganavam. Hobbes parecia, em 1651, olimista quanto ao destino de seu Leviatd, cuja doutrina esperava fosse ensinada nas Universidades'. Estava persuadido ge qué 0 exposto no livro poderia ser de alguma valia para o debate em torno da legitimidade do poder dos novos governantes. Para esses iiltimos, o problema estava em descobrir uma fSrmula que justificasse seu direito de mando. Quanto aos grupos hostis a Revolugdo (presbiterianos e realistas, principalmente), tratava-se de convencé-los da necessidade de ebedecer ao conquistador’. O dilema se afigurava nos seguintes termos: por que essas ‘sutoridades deveriam ser obedecidas, se s6 haviam alcangado 0 posto pela insubordinagio & ‘vontade do antigo soberano? E qual o direito do conquistador sobre os conquistados? ‘moat a igualdade de poder, ¢ a superioridade, em eficicia, da forma mondrquica de govern (..). Hobbes (..) stoma 2 argumentago democritica para converter os democratas a0 Estado soberano, de preferéncia seeninquico. A sua monarquia preférida, Hobbes a constitui com republicanos” * = am homem que nfo tenha sido chamade-a fazer uma tal promessa expressa (por ser alguém cuje poder ‘ether nfo seja considerdvel), contudo, se viver abertamente sob sua proteel0, se considera que se submeteu 20 ‘ger (..). Do mesmo modo. se um homem, quando su pais ¢ conquistado, se encontra fora dele, nfo fica Ssoogaisiado nem submetida, mas se a0 regressar se submeter ao govemo ¢ obrigado a obedever-Ihe” (Leviatd, Revisdo ¢ Conclusio’, p. 406) * @ Stainner, “The context of Hobbes's theory of political obedience”, p. 116 * Least, “Revisio ¢ Conclusto”, p. 410 * fico (..) com alguma esperance de que esta minha cbra vena um di 2 cuir nas mos de um soberano, qe 2 examinari por si proprio (...), sem a ajuda de algum iniésprete interessado ow invejoso, ¢ que pelo ‘exercicio da plena soberania, protegendo o ensino paiblica desta obra, transformara esta verdade especulativa ta utilidade da pritica” (Leviatd. XXXI, p. 218; grifos meus) * Q Skinner,"Conquest and Consent: Thomas Hobbes and the engagement controvers P79. VUUUUUL UTR EEEEEUUU ETE A chave para um estado duradouro estava na demonstragdo da relacdo necessaria entre protegdo ¢ obediéncia. Infelizmente, Carlos I fora incapaz de garantir a vida e a seguranca de sus siditos, ¢ eles estavam livres para procurar abrigo sob as asas do conquistador, agora. soberano. Dizendo de outro modo, ainda que um novo pacto no anulasse o anterior, se a soberania nfo cumpriu a razo para a qual foi instituida (a paz dos siditos € sua defesagatra ‘um inimigo comum), os sudites ficavam livres da relago de obediéncia. A. ‘sbedigncia incondicional a um soberano parecia impossivel: “entende-ge que tee ‘siditos para com o soberano dyra enquanto, e apenas enquaggg, gf também o poder mediante 0 qual ele ¢ capaz de protegé-los”'. A Revoluglo langara a éspada da justiga da volta para as mios dos particulares, que tinham por igso o direito e axfperdade de defender suas ‘vidas, seus membros ¢ sua seals da mgnpira que considerassiiiblipally allequada’ Tudo o que contradissesse esse dircito seria simplesmente irracional De scordo com Skinner, essa solugiio aproximava Jortemesue Hobbes dos assim chamados teéricos dos poderes de facto”, que pretendiara giPAlb.dife politico cuja origem ¢ a forca, ¢ ouffijique governa p . se submetem por medo do Se de seus ‘de suas vidas A conquista’ é adquirida pelo medo quando os dominados evofizam gps as agdes do dominador, sob pena de morte ou cativeiro. No segundo, institui-se 0 Estado pelo medo que os homens tém uns dos outros ou de um inimiga em comum. De resto, a obediéncia dos siditos deve ser rigorosamente igual, do mesmo modo como so iguais os direitos dos respectivos soberanos, _p0u, em outras palavras, ambos tém o mesmo titulo) Nenhum poder, mesmo © conquistado por intermédio de forga, pode ser considerado ilegitimo* Anos mais tarde, Hobbes se desdobrara para convencer seus leitores do contrério, isto € de que nao fizera a apologia do Parlamento ¢ de Cromwell. Usando de um procedimento muito peculiar, denunciara a existéncia de um complé, cujo propdsito seria desvirtuar o comteddo de suas obras. Segundo o autor, o Leviati nfo estava endereyado aos republicanos, Tanto assim que jamais recebera de Cromwell ou de algum de seus partidérios qualquer [beneficio. Some-se a isso 0 fato do Protetoradg se estabelecer trés ou quatro anos apds a * Leviatd, XOX, p. 135 * @ Skinner. “Consent and Conquest... p. 95 ® Leviatd, XX, p. 124 *~ hi poucos Estados no mundo cujos primdrdios possam em consciéncia ser justificados” (p, 407). VUCEEEEELUUEULUUUUULT ERD D DD AADA LEME WL pabiicecdo do livro' Quanto ao conteiido da citada “Revisio ¢ Conclusto”, seria apenas um alerts 20s que se submeteram para manterem de boa-fé a palavra empenhada e nio intentarem qualquer traicho’ Ainda, proprio Behemoth poderia em parte ser interpretado como um auto de defesa, & qee Hobbes oferecia uma versto inteiramente distinta da anterior sobre a tomada de poder ‘pelos republicanos. Passadas menos de duas décadas, os revoluciondrios a quem as paginas do Gero de 1651 prometeram submissio no tinham mais qualquer direito de mando ¢ eram seasiderados usurpadores: “Vi nesia revolugio um movimento circular do poder soberano, passando, através de dois usurpadores, ‘pai’ e ‘filho’, do iltime Rei para sen filho, Pots (detxanda de lado o pader do Conselha de Oficiais, que foi iempordrio e cujos detentores se consideravam apenas procuradores) moveu-se do Rei Carlos I para.o Longo Parlamento; dai para o Rabo; de Rabo para Oliver Cromwell; ¢ emdo de volia de Richard Cromwell para o Longo Parlamento; deste, para o Rei Carlos I, onde se espera passa cele por muito iempo permanecer. "* Em 1668, 0 direito de conquista ¢ veementemente recusado aos revolucionarios, que em 1642 teriam se apropriado de uma autoridade alheia Qu, em termos nfo tio amenos, teriam roubado o Estado, através do engodo e da fraude, das méos de uma dinastia que reinava normanda, Hobbes enfatizava a havia mais de seiscentos anos, quer dizer, desde a conqui tese de que o rei devia seu titulo aquela conquista e por isso tinha direito ilimitado sobre os conquistados: era senhor de todas as propriedades do reino*, podia tributa-las arbitrariamente, bem como massacrar seus opositores, em respeito a méxima de salus populi, Apenas a inversio da linguagem e de valores - tipica de uma rebelido - poderia tornar 0 homem comum tho seduzido, to disposto a atacar um bom governante’ , ¢ a culpa-lo por crimes cometidos por seus adversarios. Quanta loucura e impudéncia fazer a guerra contra a pessoa natural do rei (Carlos 1), em nome de sua pessoa artificial (a soberania, © Estado)*! Mas néo apenas. subemtende-se que a revolta contra © sucessor do conquistador normando foi ilegitima ¢ * Considerations... EW. 4, pp. 415-816 ? Considerations... E.W., 4, p. #24 2 Bohemoth, TV, p 204. * Behemoth, Mp. 119, 2 Behemoth, Mp: 154 e IL p98. © Behemoth, UL, p. 108, POUL UATE EECA AAD DRA RAED R Sejusta, pois traiu a confianga do soberano na palavra empenhada, violando @ lei de natureza que estipula o cumprimento dos pactos! Como se vé, opera-se uma guinada de cento e oitenta graus em relagdo a0 dito no Lewiaid. Para 0 Hobbes do Behemoth, o Imerregno seria o intervalo durante o qual a soberania ‘estivera nas mios de tiranos, no de conquistadores. Ora, a tirania é um governo que carece de sul de dominio ou justificativa pelo direito, e a usurpagio em que ela se baseia determina a marca do mau governo” Usurpacdo, tirania, ilegitimidade de um governo: expressées nfo raro relacionadas as doutrinas clissicas, presentes no primeiro trabalho de Hobbes - 0 “Prefiicio™ & tradugdo da ‘Historia da Guerra do Peloponeso, de Tucidides (1628) -, reencontradas no Behemoth, mas ‘abandonadas no periodo compreendido entre 1640 e 1668. O humanismo que inicia 0 percurso intelectual de Hobbes parece também terminé-lo, fechande assim o circulo de sua vida longa ‘A imagem de um movimento circular, alias, encerra os livros de 1651 e de 1668, como ‘nos mostram os excertos citados. Em ambos, representa a Revolugio. No Leviai, & 0 movimento dos astros que permite interpreta-la coma 0 conteuido empirico das cigneias civis. Pois 0 fendmeno proporcionara ao filésofo observar concretamente a migraglo € circunvolugdo dos interesses © prazeres dos homens em tomo do poder politico, Mas o mais importante talvez seja a esperanca dé que 0 novo governo, seguindo desde 0 inicio as regras do método filoséfico, assente seus principios em fundagdes verdadeiras ¢ doutrine adequadamente 08 siditos para afastar tanto quanto possivel a emergéncia de novas revolugées. desejo de estabilidade politica se repete no Behemoth, Entretanto, nio se trata mais de considerar, seja de que fngulo for, © movimento revolucionario como algo positive. Véem- se apenas suas implicagdes destrutivas, ndo apenas para o Estado ou para os siditos, mas também para a capacidade regenerativa da filosofia. Cético, Hobbes constata que 0s projetos ® Behemoth, I, p. 14 > oder-se-ia argumentar que 0 descompasso entre as duas verses de Hobbes - sabre o direito ou nfo de mando des revoluciondtios - estd inscrito na propria teoria dos poderes el facto. De um lado, hé utna legitimagao de tods revolugdo bem succdida, ja que a pera de poder implica uma petda de dirsite, Mas, de outro, se todo lgeverno deve ser obedocido, mifo importando qual sta origem, no ha legitimidade em resistit sos poderes Superiores, Disso se segue que toda rebelio bem sucedida ¢ accitivel c nenhuma o ¢ (Cf. G. Burgess, “The Controversy”, pp: 525-526) > Q reinado de Pristrates scria, segundo Hobbes, fruto de uma usurpagdo (cf: The History of the Grecian War, EW. & p. xii) AVL politicos bem intencionados e arquitetados segundo as normas mais rigorosas da ciéncia nao os deveres para com 0 Estado, cujo subtraem os homens as trevas de sua eterna ignordnc cemprimento garante seguranga e conforto, sempre serdio esquecidos quando os interesses, ‘pessoais estiverem em jogo’ . Se a instrugdo ¢ ineficaz, e se portanto nfo ha meios racionais de ‘fer os siiditos obedecerem ao governante, que o obedecam mediante 0 uso da for) Voltando ao fio, assim como na passagem que fecha © Leviatd, no Behemoth a imagem do circulo sugere a existéncia de dois estagios simétricos ¢ antagénicos de dissolugio © constituigao de um Estado. Esse processo deixa transparecer uma tese que, de to repetida, toma-se lugar-comum nas obras de nosso autor: 0 esfacelamento progressivo do poder politico ‘em decorréncia da rebeliio, No Behemoth, entretanto, o sinal se inverte. To logo, com efeito, © Parlamento usurpa © Estado das m&os de Carlos I, os elementos que criginariamente 0 compunham comegam a se dispersar, uma parte dos parlamentares trai e engana os demais, formando um novo governo. As rebelides também imperam no seio desse grupo, ¢ do antigo “abo” sobra um unico homem, talvez melhor orador, Cromwell, que ¢ (mal) sucedido por seu filho, Esse ultimo, por sua vez, perde também as rédeas do poder, o qual ¢ recuperado novamente pelo Rump. Mas o pequeno grupo nao tardaré em ser suplantado pelo grupo maior. Parlamento finalmente chama de volta o rei de direito, De outra perspectiva, o excerto pode ser assim interpretado: a monarquia ¢ destituida por uma democracia, que com o tempo se transforma primeiro em oligarquia e depois novamente em monarquia de um impostor, Temos, com isso, dois semicirculos colados pelo didmetro, um dos quais representa 0 direito e 0 outro a extorsdo: farsa mondrquica - oligarquia - democracia - monarquia legitima ‘A impressio do leitor, portanto, é a de que 0 movimento revolucionério abala um poder longamente instituido, porém ndo ¢ capaz de destrui-lo, como se a monarquia fosse mais forte ¢ duradoura que qualquer investida humana. Tudo se passa - para usar a linguagem da fisica aristotélica, que o Hobbes do Leviaid no obstante contesta - como s€ 0 poder residisse naturalmente na pessoa do Rei, a despeito de uma fora ndo-natural té-lo deslocado * Behemoth, I, pp. 39-40, 2 Veja-se Behemorh, IV, p. 204: “ [o presente] Parlamento, em ternios éxptessos ¢ apropriados, declareu que esse dircito [ 0 da milicial perience exchustvamente a0 Rei, ¢ no a qualquer uma das duas Cimaras do Parlamento. Esse ato é mais instrutivo ao pove que todos o§ argumentos extraidos do direito de soberania e, ‘conseqtentemente, mais adequado 2 desarmar, para 0 porvir, a ambieo de todos os arenguciros”. Isso nilo ‘obstante, € curioso notar que no inicio do livro essa solugde ¢ imediatamente descartada como forma de comter 0s sediciosos, jé que um Enército forte deperide do dither do tesouro paiblico. Ora, se os homens de dinheiro ‘no concordsrem com as tributagdes © se recusarem a pagi-las, nao ha possibilidade de encher os cofres do Estado (CF. 1, p. 2) VUUUUUUER TET EALV ALAA DDR DAR DARED. 14 Semporariamente: Por isso, o governo parlamentar no seria sendo um arremedo, uma imitago rosseira do governo monirquico. E quando a volta do circulo se completa, tudo retora a seu hoger Ge one ‘Nags geramte, todavia, que © poder se estabelea para sempre na monarquia, ja que 0 poder canon, 2s ocbeiities volte ¢ meia se repetem Nao ha como nfo associar a nogiio de um (poder que com © tempo descreve um circulo a idéia de Roda da Fortuna: quem esta no cimo BOS Ses petio com aoris ¢ transportado inexoravelmente para baixo, para a derrota e pees some! Caberis a Hobbes, a mancira do bumanista, precaver os homens sobre os (PEvSSeS = que estEo sujeitos os que desejam o mando, sobre o quanto ha de arbitrio e capricho = sxercicio de autoridade Nao se trata, assim, de explicar cientificamente © porqué da ‘czealaglo de poder, 2 razio da desobediéneia, mas de dizer que ha coisas incompreensiveis ¢ inexplicaveis para a filosofia, uma delas 0 cariter vio das paixdes de mudanga e a natureza ‘indiscernivel do poder, coisas que apenas a histéria é capaz de contemplar. Resumamos o que foi tratado até aqui. Em um primeiro momento, sugeriu-se que ‘Hobbes nfo conseguiu aprovagio de Carlos II para publicar seu Behemoth devido @ sua mé- fama entre os cortesdos, embora o livro parecesse bem mais conciliador com os realistas - ‘como deixam entrever algumas de suas passagens - que as obras de filosofia politica anteriores, Esse fato, que A primeira vista s6 interessa ao colecionador de anedotas ¢ pequenas intrigas, introduz © desconforto que marca a recepgao das obras de nosso autor, além, é claro, as descontinuidades entre as obras histérica ¢ filosbfica. Ora, esses dois fendmenos, 0 da recepeao da obra pelos leitores © o das ambiguidades entre um outro escrito, 1iko sko ‘aleatorios, tampouco apenas justapostos. Na verdade, o cardter diibio de algumas afirmagies, de Hobbes, em oposigo a firmeza de algumas de suas teses, nao revela contradigées internas - seria tolo pensar o contririo - , ¢ sim o publico-alvo a que se destina 2 obra, Mas ha mais: 0 Ponto de fuga dos escritos de Hobbes nao est neles mesmos, isto ¢, nio depende de uma ‘organizagao interna, mas de sua utilidade: para que servem, qual seu objetivo. Compreender esses problemas é também dar conta das tensdes superficiais entre filosofia e hist6ria "Na Inglaterra dos Tudor (século XVI) a imagem da Reda da Fortuna ainda ¢ fteqientements usada, embora cristianizada. Cf. “English Politics and the concept of Honour”, M. James, Past and Presont supplement 3, p. 7 WER ROUUUROODERUREOOOUOCOOIIIOCUOOUISEE 15 Embora quarenta anos separem a tradugio da Hisiéria da Guerra do Peloponeso do. Behemoth, nao vai equivoco no dizer-se que 0 iltimo livro reproduz,a teoriajsobre a histéria desenvolvida no “Preficio” do primeiro, Ao cotejarmos as consideragdes sobre 0 estatuto da histéria expostas no “Prefiicio ao Leitor”, que abre aquela tradue&o, @ estrutura formal do livro de 1668, perceberemos a simetria entre aquilo que, segundo Hobbes, torna Tucidides um grande historiador ¢ © fazer histérico do filsofo. Nao sabemos ao certo se realmente ha coincidéncias entre as concepgdes historieas de Tucidides, a quem Hobbes elegeu como seferéncia, ¢ as glosadas no referido “Prefici do Peloponeso a sua maneira. ja que o autor interpreta a Historia da Guerra Muitos so os clementos que concorrem para produzir essa interpretagdo, Do humanismo talvez venha a escolha pela historia como histéria civil’, de Bacon, de quem ‘Hobbes fora secretario, 0 privilégio da observacao e da historia sobre 0 mero estabelecimento de principios abstratos’. Talvez fosse possivel, ainda, tragar o vinculo entre Maquiavel olhando para a Roma republicana e Hobbes, voltando sua atengio para as cidades-estado gregas. idlogo com toda uma tradigde certamente existe, e serin desejével delineé-lo com mais vagar. Ater-nos-emos, contudo, a0 primeiro ponto, isto €, a histéria como parte da formagio do humanista Vimos que 0 Behemoth buseava a seu modo alertar aos cidadios sobre as revolugdes @ que 0 poder politico esta sujeito, Em 1628 nio era diferente. O Parlamento editava a Petigéo de Direitos que, a0 declar iegais as prisBesarbitrvas o recolhimento de trbutos sem seu jecido em 1591, segundo © qual esses direitos pertenciam exclusivamente ao rei’. Era entio a oportunidade para Hobbes fazer Tucidides consentimento, contrariava o principio falar aos ingleses sobre as armadilhas que estavam sendo montadas por parlamentares’, mais interessados em satisfazer sua sede de nomeada que em proporcionar seguranga publica. Ora, como a historia da guerra entre os gregos poderia persuadir os cidadios ingleses de que 0 conflito era um mau negocio, sendo sugerinda a existéncia de um quadro analogico entre a historia do Estado grego e a historia do Estado inglés? © Peloponeso torna-se o espelho da, * M. Reik, op et, pp. 378. 2 CB. Macpherson, “Introduction” to Levéathan, pp. 116-17 > © Hill. The Cendury of Revolutia, p. 8, ~ * Apud, Q. Skinner, Reason and Rhetorte in the Philosophy of Hobbes, p. 44 VUUUUUUUELTEUUUULU URED DD AEA D. 16 Ingimterra, “pois aquele que tiver visto por que graus ¢ fases um Estado florescente primeiro ‘extra em guerra civil e depois chega a muina, ao observar as ruinas de qualquer outro Estado, \pressupora uma guerra semelhante ¢ fases semelhantes ali também”! Abstraindo a geografia e © tempo, percebemos que no ha alteragdo da esséncia feemana Tanto assim que um inglés desatento ¢ frivolo no século XVII participa de comogoes suscitadas por um discurso politico inflamado da mesma maneira que um longingue ateniense ‘mo século IV aC, a0 deliberar na dgora. A histéria mostra o que hi de continuidade na satureza do homem, os tipos, caracteres ou disposigdes (manners) recorrentes, o que persiste ‘no tempo para além das contingéncias, Tipos como os homens generosos, que so antes de ‘tudo predispostos a obedecer a lei, porque permitem tanto aos outros quanto a si mesmos, ou ‘como 0s curigsos que, por se interessarem pelas causas, ndo se deixam levar por aparéncias De outro lado, ha também os medrosos, que tendem a crer em superstigdes € so arrebatados facilmente por palavras ameagadoras ¢ obscuras, enquanto 0$ tipos vaidosos esto sujeitos a movimentos internos mais ou menos violentos, que os tomam tremendamente instaveis.¢ cegos para o mundo, pois se superestimam e desejam que outros venham a thes dar 0 mesmo valor que a si mesmos se atribuem, Os dois primeiros caracteres se apresentam no raro nos sibios, potas, bons cidadios; os dois iltimos estio frequentemente insatisfeitos ¢ com facilidade se revoltam Contudo, 0 que dao cariter e a finalidade do aprendizado da historia néo € a demonstragéo ou justificagfo da continuidade no tempo da natureza humana; tampouco ha interesse em definir 0 comportamento do homem, pois essas siio tarefas da ética. © historiador pressupSe essa continuidade, que de inicio nfo é clara ao leitor, para entio tornd-la evidemte, Seu esforgo consistira em forjar a complexa trama de relagdes entre o passado, o leitor ¢ seu tempo, estabelecendo quadros que permtitam a identificagdo entre os tipos e suas épocas. De fato, para Hobbes a historia so tem validade se sugerir que as calamidades pretéritas, provocadas pela ferocidade das paixdes, podem se repetir no futuro. Nesse sentido, é um saber atrelado a moral, as chamadas virtudes civis, pois procura dotar o leitor de um repertério: de exemplos edificantes ou de uma meméria anificial’; busea produzir prudéncia. Esses ‘ensinamentos portanto no se aplicam ao homem solitério, fechado sobre si mesmo em uma * Leviatd 1, p. 18. ~ R.J. Ribeiro, do leltor sem miedo, pp. 220-223, *M. Reik, op: cit, p. 40, | WUT ERUUUR RO OSRREDUEDDEEDOOO LOGE 17 wads de Scio € especulagio. Ao contrério, destinam-se ao espago publica, desenhando enfim 9 ‘ideal de uma cidadania ativa, revivido na Renascenga Inglesa ‘A boa historia deve cativar de tal modo o leitor, a ponto de transporté-lo para a cena excite onde experimentard 0s mesmos sentimentos do narradot. Dos fatos testemunhados ‘podesé extrair uma lipo e se tomara prudente, sem o que no conseguird se orientar diante de “cecacSes semelhantes is vividas na leitura, Dai o carater e a finalidade do estude das ages Ge 5 desenrolaram no passado: incutir no leitor experiéncia, ¢ assim servir aos altos |pemncipios da ética e da vida civil Debrugando-se sobre o contingente e o factual, a histéria destina-se ao leitor (gewilegiado) atemporal, a uma platéia universal ¢ eterna. Os leitores ideais' - “homens de estendimento” ?- do Hobbes humanista nfo por acaso pertencem A nobreza (“great persons”, noblemen”), visto que so ¢ digno de um cargo piblico aquele capaz de atos gloriosos € walorosos. Se a utilidade da historia é ensinar, aconselhar, essa também sera a finalidade do ettor de histéria: um courtier precisa da histéria como conselheira, a fim de aconselhar 0s protazonistas de um Estado. E certo, entretanto, que embora seja atemporal ¢ vise os homens da melhor especie, esses nao passam de bem poucos. Nao que Hobbes insinuasse @ processo de desaparecimento da nobreza, mas antes a escassez da virtude| A maioria dos homens, mesmo os assim chamados aristocratas, vai aos livros de historia em busca de fabulas ou com >ha mesma expectativa dog habitantes de Roma, “que freqiientava o espetéculo dos gladiadores desejando assistir mais 40 seu sangue, que & sua habilidade nas lutas"™ E quais seriam 5 leitores privilegiados do Hobbes do Behemoth? Nao sto certamente uitos dos membros do Longo Parlamento que se caracterizam nesse livro came simplérios (ery simple men”), grosseiros, mal educados, covardes - porém endinheirados; homens cujo tempo disponivel é empregado inteiramente nos negocios privadas ou no lazer’. Em resumo, 0 |eitor privilegiado da historia inglesa nfo pertence a classe social emergente, mas a uma certa nobreza galante (diminuta, diz Hobbes), qué despreza a conhecimento rasteiro proporcionado pelos sermbes em pillpito, frequenta circulos intelectuais fechados onde dialoga com seus "Essa referéncia é dada por Leo Strauss, especialmente nos capitulos IV VI de The political philosophy of T Hobbes 2 he History of the Grecian War, E.W.. 8, p. vi. ® The History of The Grecian War, E.W., 8, p: vi 4 The History of the Grecian War, EW., 8. pix * Behemoth, 1, pp. 38-39. 18 ‘igezis, alo se abandona ao Ocio, pois se interessa fortemente pelos negécios publicos. Tambem convergem, sob esse aspecto, o ultimo e 0 primeiro Hobbes; ambos se dirigem ao mesmo tipo Se lettor, com a ressalva de que esse se tomou figura cada vez mais rara na segunda metade do _stculo XVII. Seja como for, isso\dera claro o interesse de Hobbes pela politica ou, mais ] | Pescisamente, pela intervencio politica no debate piblico, interesse que ¢ transmitido nos seus Primeiros trabalhos ¢ em um dos ultimos pela historia, espécie impar de conhecimento, capaz = “mstruir os homens, capacitando-os, através do conhecimento das ages passadas, a se ianter prudentes em face do futuro” Desoritas a finalidade ¢ a natureza da histéria, resta saber como o historiador aleanga 0 ‘feito de impressionar o leitor ¢ assim tornd-lo apto para a atuagio nos negécios do Estado Observamos acima que ¢ necessério transportar o leitor para a cena narrada. Mas come isso é || Possivel” Na medida em que a historia ¢ um empreendimento retorico, ¢ que contém, por iss0, instrugdes de como conquistar 0 assentimento-do publico. Vejamos. Todo discurso retérico deve antes de mais nada selecionar com critério argumentos ou provas, isto ¢, encontrar /consideragdes gerais verdadeiras (loci communes) *, cuja fungi & ‘tomar provavel a causa defendida e aplica-la a casos individuais. E o que o retorico chama de invengao (inventio)’ @ 0 que constitui, para o Hobbes humaitista, a “alma” ou verdade do conhecimento histérico. Ao examinar o conjunto de fatos passados - que existem apenas na meméria - é fundamental que o historiader consiga identificar as diferengas entre uns © ‘outros’. E preciso escolher criteriosamente as agdes que passaré a descrever, sem adorn-las, excessivamente, porque dessa forma estaria entrando na seara das oragdes laudatorias, das exortagdes, dos poemas épicos ou dramaticos, em que o objetivo ndo ¢ a verdade e 0 que se buscam so as semethangas (dai a importincia das metaforas). Ao contrario, o discernimento ou discrigiio constituem requisitos essenciais para quem deseja oferecer conselhos, 0 que equivale a indicar as vantagens ou prejuizos de tomar certas ages, como € 0 caso do: historiador. Ora, se fazer historia. significa discernir 0 que é mais proveitoso conhecer, para Hobbes o argumento por exceléncia do historiador, a finte mesma da histéria, sera a inspeg&o | em tomo das causas que levam A dissolugdo de um Estado | The History of the Grecian War, £.W, 8p. vil, NO mestto texto, conferir paginas iv, vii, od, xxi ¢ x ? Q Skinner, Reason and Rhetoric in the philosophy of Hobbes, pp 112-3, » Q.Skimner, Reason and Rhetoric in the philosophy: of Hobbes. pp. $1465, * Leviata, IV, p. 44. Deserta a “verdade ou a “alma” da histéria', hd que se considerar a “elocug&o”, “seepo” ou enredo (e/ocutio), que segundo Hobbes se subdivide em método (dispasitio) e ‘esto A relagdo entre a elocugio ¢ a verdade € de dependéncia reciproca: sem a verdade, a ‘GlocusSo ¢ apenas um quadro da historia, a verdade, sem a elocugdo, ¢ incapaz de instruir’ A sgeenno exige a escolha judiciosa dos argumentos, descritos ¢ ordenados (dispositio) por ‘meemmédio de pensamentos e palavras apropriados (e/ocutia), para provocar emogdes de ‘Seectador no leitor (ornatus). Logo, @ relato adequado e expressive dos acontecimentos iares, a fim de que deles uma ‘Bee sc extraia para o futuro. Além disso, pode-se confirmar o acerto de predigtes feitas ha pectéritos € condig&o necessiria para fazé-los presentes ¢ fa seusto’ © alertar para que 0 mesmo no volte a ocorrer. Verossimil, portanto, ¢ toda conjectura baseada em evidéneia, de modo que a mera ssurrativa ¢ a contextualizacao dos eventos seja suficiente para sugerir a mesma evidéncia no Jietor Alguns historindores a esquecem no momento em que passam a conjecturar sobre as intengdes, 05 segredos € outras intimidades das personagens que caem sob sua pena’ Essa iindiscrigdo nfo € gratuita: o escritor deseja recomendar-se a si proprio, mostrando-se muito ‘arguto ao leitor. Ora, escrever sobre coisas no passiveis de conhecimento é 0 mesmo que iludir © apanhi-lo pelo ouvido, nio pela razio. Herddoto, nesse sentido, est nas antipodas de Tucidides, pois relatou os feitos maravilhosos dos gregos em sua luta contra os barbaros, feitos, alias, que nfo presenciou nem comheceu quem presenciasse. No escreveu sobre a vverdade, mas sobre a fiego. Tueidides, por sua vez, ateve-se aos atos e discursos que levaram a guerra e as calamidades dela decorrentes, E se ¢ tido come 0 mais politico dos historiadores nio é seno porque se expressou com diligéncia, Também a Hobbes no Behemoth importa as causas manifestas e pretextadas ¢ 0s atos mesmos da guerra, ¢ nio as especulagdes improvaveis sobre o que teria sobrevindo aos coragdes das personagens centrais para agirem da mancira como agiram. Proceder assim é \ The History ofthe Grecian War, E.W.. 8, p. xx * The History of the Grecian War, E.W., 8. p. XX, ° The History of the Grecian War, E.W., , p. xxi. * "A hiséria desempenha dois papeis, um de descoberts - trazendo, tal como a experiéncia, material para reflett - e outro de contraprova, confirmando & distincia © que foi experimentado no campo de prova.” (Fe. J. Ribeiro, 4 tltima razdio das reis, p97) ° The History of the Grecian war, op. cit. p. vi ‘satis prudente © aconselhavel - ¢ além disso, sinal de talento - que tentar conhecer com certeza ‘Gs motivos invisiveis da rebeliaio (loucura, iniqiidade, injustiga, hipocrisia, vaidade! etc.) A tajetoria de Tucidides é seguida a passos curtos. Nas duas obras, Histdria da Geerra do Peloponeso © Behemoth, _eettico das causas que levam o Estado a destruiggo, De acordo com Hobbes, 0 primeiro livro Ga Historia se debruga sobre a formagio do Estado grego, desde seu nascimento até o apogeu (@omento em que teria adquirido “vigorosa estatura™), para em seguida conjecturar os parte inicial se dedica principalmente a um estudo Gotivos possiveis da guerra - ou da queda -, cujas conseqiéncias seriam a divisio e a Gecadéncia desse império. Na base dessas conjecturas esta a reproduglo dos discursos & ‘orartes proferidos pelas diferentes facgdes em litigio Esse artificio Hobbes mimetiza no primeiro didlogo do Behemoth, onde se propée a alcangar 0 que ele chama das “sementes” da guerra civil’, que seriam certas “opinides a respeito de questGes religiosas ¢ politicas. Com efeito, neste didlogo nosso autor esquadrinha a origem © 0 conteude das doutrinas que supostamente teriam provocado a rebeliio, E © caso, por exemplo, da doutrina segundo a qual o Papa ¢ governanite universal {isto ¢, tem o direito de governar todos os cristdios’ }¢ do exame do papel das Universidades como disseminadoras de doutrinas sediciosas”. Para ambos os autores a investigagdo sobre as causas da desintegragto de um Estado deve necessariamente levar em conta os discursos ¢ opinides em voga no periodo que antecede a guerra. Nos livros subsequentes da Histéria da Guerra de Peloponesa, Tucidides aborda as agdes © oragdes da guerra, conforme ordem cronolégica. Mas antes de relatar essas ages, procura estabelecer seus motivos e fundamentos, com 0 propdsito de que o leitor possa estar inteirado de todo 0 longo e complexo processo de guerra, Também quanto a essa disposiglio da obra ha correspondéncia simétrica com Behemoth, em cujos didlogos segundo, tereeiro € quarto Hobbes se ocupa de publicar as declaragdes e protestos do rei e dos parlamentares, ® Behemoth pL 2 The History of Grecian War, op. ctf. Xi * Behemoth, “Dedicatoria” 4 Behemoth, “Dedicatéria”. grifos meus * Behemoth, I, pp. 12-13. * Behemoth, I, p. 36, 2 itm da crénica mesma da guerra’. Nao € raro 0 autor reproduzir, a exemplo de Tucidides, ‘Sertss fils em discurso direto, como é 0 caso da resposta ao rei & Root and Branch Petition = 1640" _ ou com alguma ironia citar expressdes dos revolucionarios’ Nesses didlogos ¢ possivel atentar para outro aspecto do método, também emprestado Ge Tucidides, relativo as chamadas “oragbes deliberativas”. A narragio € posta na boca das Personagens, de mancira que o leitor acredite na probabilidade desses discursos. Esse recurso - ‘= construsio hipotética, em ultima instincia, pois o narrador no poderia presenciar todas ‘= apbes deseritas - confere verossimilhanga ao relato e, por conseguinte, contribui para que o ctor seja tomado pelos mesmios sentimentos que teria se tivesse participado de todas as agdes Geseritas, Serdo to fortes ¢ reais as imagens, que o leitor se tornara também testemunha. Ou, por outra, screditaré ter visto que apenas leu, Portanto, 0 estilo implica a habilidade € ) perspicécia do historiador na produsdo de uma crenga em seu publice, Para Plutarco, segundo | Bos conta Hobbes, Tucidides foi capaz de tornar seu auditorio espectador de todas as cenas narradas, “pois ele conduzia seu ouvinte as assembléias do povo e ao senado, as ruas € 20s campos, para assistir a seus debates, & sedipao e as batalhas™. Hobbes anota a ligéo para quarenta anos mais tarde colocé-la em pratica No Behemoth, a forma dialogica parece reiterar a idéia de que se quer impressionar 0 leitor, informando-o com fidelidade. Embora muitos dos acontecimentos descritos no livro fossem informagdes de segunda-mio - visto que esteve onze anos exilado no Continente -, Hobbes fez de uma das personagens, a mais velha e experiente, testemunha ocular de todo 0 Process revolucionério, ¢ da outra, mais jovem e curiosa, comentador’. “A”, a personagem prudente, identifica-se com 0 filésofo pela idade, pela verve irdnica e pelo discurso claro direto, A personagem “B”, por sua vez, em alguma medida parece incorporar um cavalheiro galante, bem-educado ¢ erudito® , interessado em sorver a prudéncia de “A”. * Ao descrever as batalhas, Hobbes salicnta a ofensiva vitoriosa do exército real ¢ nfo suas derrotas. O artificio, sem chvids ret6rico, busca engrandecer a tarefa de Carlos I, atribuindo-Ihe coragem, honra, comando firme sobre os soidados e defesa ilimitada do seu reino (cf. Behemoth, Ill, pp. 122-127) * Behemoth, II. pp. $8459. * Fazia parte das artimanhas do Parlamento, diz Hobbes, acrescemtar a palavra “traidor” a toda pega de acusago. contra slguém cuja vida se desojava trat (cf. Behemoth, I, p. 67) The History of The Grecian War, “To the reader”. op cit, p. vii, 5 Segundo a “Dedicatéria” do Behemoth, a descrigio da gucrra ¢ tomada da narrago de Mr. Heath, © E de "B”, por exemple, a digressie sobre 05 Concilios eclesiasticos e suas decishes relativas a heresia (cf. I, p. 10).

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