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Perversées © vinculo de perversdo somente se realiza quando o manifesto perverso se encontra @ se completa com um “partenaire”, por mais dissimulado ou oculto que esse parega ser. Assim, muitas pessoas exercem o papel de servir como simples cenario de palco, no qual um outro representa eternamente o CONCEITUAGAO O tema da perversio é controverso e po- lémico porque, além da conceituacio classica de que refere um transtorno que desvia os fins da sexualidade normal, ele também implica, na atualidade, questées morais, éticas, ideo- légicas e juridicas. Assim, de acordo com a sua etimologia (a palavra “perversao” deriva de per + vertere, que quer dizer: pér as avessas, des- viar, desvirtuar...), 0 vocdbulo designa o ato de © sujeito perturbar o estado natural das coisas, de modo que, com a sua conduta, oposta & nor ‘mal, desafia as leis habituais, consciente de que, com os seus atos, ultraja seus pares e a ordem, social na qual ele esta inserido, Para muitos autores, 0 conceito de per- versdo, nos dias de hoje, foi estendido, dentro ¢ fora da psicandlise, para uma abrangéncia que inclui outros desvios que nao unicamente os sexuais, como seriam os casos de perver- ses “morais” (por exemplo, os “proxenetas”, ou seja, pessoas que ganham dinheiro interme- diando casos amorosos), “sociais” (neste caso, a conceituago de perversao fica muito con- fundida com a de psicopatia); “perversdes ali- mentares” (bulimia, anorexia nervosa...); “ins- titucionais” (algum desvio da finalidade para a qual a instituicio foi originalmente criada); ¢, naturalmente, também a possivel perversio do setting analitico. Entretanto, dentro de uma conceituacao mais estrita, um expressivo con- tingente de autores psicanaliticos mantém uma. fidelidade a Freud e defende a posicao de que, em psicanilise, o termo “perverséo” deve de- seu drama, e vice-versa signar unicamente os desvios ou aberragoes das pulsdes sexuais, inclufdas aquelas que estao fusionadas com as pulsdes sAdico-destrutivas. ‘Um outro ponto que deve ser enfatizado 0 que se refere A necessidade de que se esta- beleca uma distingio entre perversdo e perver- sidade: 0 primeiro alude a uma estrutura que se organiza como defesa contra angtistias persecutdrias, depressivas e, especialmente, de desamparo, enquanto a outra refere-se a um cardter de crueldade e de malignidade. Assim, na perversao, o sujeito nao busca primariamen- tea sensualidade; antes, essa se comporta como ‘uma valvula de escape para ele provar para os outros, e para si mesmo, que superow as an- gtistias mencionadas De qualquer maneira, todos admitem hoje que a perverséo no é um simples ressurgimen- to ou persisténcia de componentes parciais da sexualidade pré-genital, como era a assertiva original de Freud. Antes, o atual conceito de perversdo implica a existéncia de um tipo parti- cular de vinculo interpessoal, que consiste em um jogo de identificagdes projetivas e intro- jetivas de nticleos psicéticos de cada um, que so admitidos e processados pelos participan- tes da relagdo, de tal forma que um fica preso 20 outro, complementando-se reciprocamente. Indo mais longe, entre muitos autores atuais que estudam as perversées, hd uma forte inclinacao ‘em considerar que suas raizes residem nas pri- mitivas fixagdes narcisistas, ndo obstante certas perversdes guardarem n{tidas fixagdes na fase “perverso-polimorfa”, nas fases anais e sexuais, enquanto muitas outras transparecem uma 268 DAVID E. ZIMERMAN interseccdo entre Edipo e Narciso, como é 0 caso, por exemplo, do don-juanismo e das ninfoma- nias, nos quais, subjacentes a uma aparente ati- vvidade genital intensa e insaciavel, sempre est presente uma intensa angiistia de desamparo narcisista, da mesma forma como, no caso do exibicionismo, a angistia que esté encoberta pela exibigio do pénis é decorrente de uma an- mtistia de castracao. Para ficar num tinico exemplo de perver- sfo, vou citar uma situagao de exibicionismo que, mesmo tendo sido fora da situagao ana- litica e ter um sabor jocoso, me parece bas- tante ilustrativa do quanto 0 ato perverso de © sujeito se exibir representa um fetiche de- fensivo contra uma intensa angistia de cas- tragio e de desamparo. A historieta é a se- guinte: na época em que eu era residente de psiquiatria na Clinica Pinel de Porto Alegre, fui procurado por uma de nossas atendentes, uma jovem universitéria que, aos prantos, pedia socorro porque ja nao sabia mais 0 que fazer diante do fato de que quando atraves- sava o “parque da Reden¢ao”, caminho obri- gatério para ir de sua residéncia até a clinica, sempre topava com um jovem senhor que, entéo, abria, com um gesto orgulhoso, uma longa capa preta que sempre usava, de sorte a exibir o seu pénis, o qual, pela sua atitude, manifestamente, ele julgava imenso. A aten- dente estava apavorada, mudava constante- mente de trajeto no parque, porém o exibi- cionista sistematicamente a surpreendia e re- petia o mesmo gesto, para o pavor dela e a enorme satisfagao dele. Diante de seu pedido de socorro ~ se nao houvesse solucao ela estava determinada a pedir demissio, embora gostasse muito de seu trabalho na clinica -, tentei fazé-la entender que quanto mais ela se apavorasse, mais ele se gratificava e se motivava para prosseguir nes- sa forma de assédio, visto que, assim, sentia-se forte e reassegurava-se de que nao estava cas- trado, pelo contrério, as mocinhas que ele es- pantava é que eram frdgeis e tremiam de medo dele, enquanto ele ficava com 0 papel de po- tente, todo-poderoso e possuidor de um pénis, avantajado e assustador. Poucos dias apés, com um ar feliz, a atendente veio contar que o exibicionista “lar- gara do pé dela”, diante da sua seguinte ma- nobra: no satisfeita em seguir a recomenda- gio de que ela se mostrasse indiferente para esvaziar a sua iluso de onipoténcia contida na perverséo exibicionista, ela decidiu ir além e, aproximando-se bem junto a ele, mirou fi- xamente para o seu pénis, e, com uma voz de piedade, exclamou a sentenca: “Mas como é pequenininho, o que aconteceu meu filho ?”, a0 que se seguiu que o aludido exibicionista fechou lenta e melancolicamente a sua capa, retirando-se em passos lentos. A parte cOmica dessa narrativa real é que, apés um breve tempo, a atendente, também chorando, voltou a me procurar , sendo que, é claro, me preparei para ficar decepcionado de que a estratégia de compreensio analitica ti- vesse falhado. Nao foi isso que aconteceu, ela simplesmente chorava porque estava cheia de culpas, enquanto, em meio as grimas que der- ramava, conseguiu balbuciar: “Coitado, ele de- sapareceu, eu 0 procuro por todos os cantos do parque para conforté-lo e dar uma forca, mas, coitadinho, desaparecet totalmente. O que & que eu faco?...” CARACTERISTICAS CLINICAS As formas clinicas que comumente sao descritas como protétipos das perversdes so as de sadismo e de masoquismo, fetichismo, pedofilia, homossexualidade (em grau de de- gradacio), exibicionismo, incesto de pai com filhas ou, muito mais raramente, de mae com filho, voyeurismo (ou: escopofilia) e traves- tismo. Mecanismos defensivos Cada uma delas permitiria uma densa explanagao genético-dindmica, mas isso extra- polaria os propésitos deste capitulo. De uma forma genérica, o que cabe afirmar é que uma pessoa portadora de uma perversdo idealiza a sexualidade pré-genital, as zonas erdgenas, tal como elas primitivamente foram representa- das, com os objetos parciais e, mereé do recur- so defensivo da “recusa” (ou renegagao, dene- gacao...), 0 sujeito perverso apresenta uma “compulséo a idealizar”, assim pretendendo impor aos outros as suas ilusdes. Muitos auto- Tes contemporaneos tendem a considerar que a perversao constitui-se em uma defesa extre- ma contra a psicose. A aludida defesa de recusa (na base do, “eu sei que tal coisa existe, mas faz-de-conta que nao existe”...) & tipica das perversdes e vale acrescentar que 0 seu uso excessivo prejudica o emprego de uma “repressao ttil”, o que afe- ta a elaboracao edipica, daf resultando um borramento dos limites e limitagdes, 0 que, por sua vez, determina um ndo-reconhecimento das diferencas, relativas ao sexo (por exemplo, en- tre a pré-genitalidade ¢ a genitalidade adul- ta), geragdes, capacidades, ocupacao de luga- res, hierarquia ¢ obediéncia as leis. Para completar a conceituagdo de perver- sdo, a partir do enfoque abordado, cabe afir- ‘mar que nas neuroses existe uma completa dis- criminacao entre “eu e os outros”; nas psicoses, ha uma total indiscriminagao disso; enquanto nas perversées, 0 outro nao est completamen- te internalizado porquanto falta uma “constén- cia objetal”, e os objetos guardam uma condi- Gio de fetiche, isto é, jé nao é mais imaginério, mas também ainda nao é simbdlico. Actings Resulta daf que, nas perversées, existe uma necessidade de constantes actings na bus- ca de uma pessoa externa que se preste a0 conluio inconsciente de um “faz-de-conta” (de que tudo esta bem, por exemplo); porém, como a funcio de discriminagéo do perverso é pre- céria, ele nao vai permitir que 0 outro seja au- ténomo e diferente dele, tampouco existe uma consideracao dele pela outra pessoa, porque 0 seu partenaire deve funcionar como uma espé- cie de fetiche. Antiteses E til enfatizar o aspecto de que nos vit culos perversos sempre se observa a perma- nente presenca de pares antitéticos, em que um é a antitese do outro, como, por exemplo, um recfproco sadismo-masoquismo, ou exi- bicionismo-voyeurismo, subjugador-subjuga- do, ete, que funcionam & moda de uma gangorra. Ou seja, é freqiiente a possibilida- de de que os papéis se revezem na vineula- MANUAL DE TECNICA PSICANALITICA 269 ridade perversa, de sorte que, para exempli- ficar com uma tinica situagéo, um mesmo ho- mem pode estar no papel de sédico, em um. certo momento, ¢ no outro, pode caber a sua mulher esse papel enquanto ele se submete masoquisticamente a ela. Clivagem da personalidade Deve-se ao fato de que toda pessoa per- versa apresenta uma dissociago na sua perso- nalidade, de forma que - & moda da metéfora do “médico e o monstro” - 0 sujeito, durante o dia, pode ser um conceituado e sério profissio- nal liberal; enquanto & noite, vai procurar uma relacdo sexual com travestis, e, o que importa enfatizar, é que ambos os aspectos, embora antipodas, sdo auténticos e representam aspec tos opostos, dissociados, que pertencem a pes- soa do perverso e que convivem dentro dele. ‘Um outro exemplo que cabe ¢ aquele que aparece no filme La belle de jour (interpretada por Catherine Deneuve) a qual, durante a noi- te conservava todo porte de uma fina dama, de hébitos requintados e uma excelente cumpri- dora dos deveres de esposa, mae e dona de casa, porém, durante as tardes, freqiientava um bordel, onde satisfazia os seus desejos perver- sos de ser uma prostituta, submetendo-se se- xualmente a praticas sexuais com todo tipo de homem, inclusive com aqueles que Ihe impu- nham sadicamente rituais de castigos fisicos. Estou certo que todo leitor poder facilmente constatar uma série de situacdes equivalentes a essa na vida real, na pratica analitica, em determinados filmes, ete. Psicopatia Embora clinicamente, muitas vezes, a per- versio € a psicopatia se superponham e con- fundam, € itil estabelecer uma distingao entre ambas. Assim, muitos autores consideram que a psicopatia pode ser vista como um “defeito moral”, porquanto ela designa um transtorno psiquico que se manifesta no plano de uma “conduta anti-social”. Os exemplos mais co- muns so os daqueles individuos que roubam ¢ assaltam; mentem, enganam e sao imposto- res; seduzem e corrompem; usam drogas e ¢o- 270 DAVID E. ZIMERMAN metem delitos; transgridem as leis sociais e, de mé-fé, envolvem outros, etc. A estruturacdo psicopatica manifesta-se por trés caracteristicas bésicas: a impulsividade, a repetitividade compulsiva e 0 uso prevalente de actings de natureza maligna, acompanha- dos por uma irresponsabilidade e aparente au- séncia de culpa pelo que fazem. Algum trago de fantasia de psicopatia, assim como de per- versio, é inerente & natureza humana; no en- tanto, 0 que define a doenca psicopatica é 0 fato de que as trés caracteristicas que foram. enfatizadas vo além de um uso eventual, mas, sim, que elas se tornam “um fim em si mesmo” @, além disso, so egossinténicas, muitas vezes sendo idealizadas pelo sujeito psicopata, vin- do acompanhar uma total falta de considera- do pelas pessoas, que se tornam alvo e ctim- plices de seu jogo psicopatico, Na pratica psicanalitica, os psicopatas so pacientes que, dificilmente, entram espontanea- mente em andlise, e, quando o fazem, mostram, ‘uma forte propensdo para atuacdes e para o aban- dono do tratamento quando este ¢ levado a sério pelo analista, nao sé pela razao de uma enorme dificuldade de ingressarem em uma “posicio depressiva”, como também por causa de uma arraigada predominancia da pulsdo de morte e seus derivados, que obrigam a uma conduta tan- to hetero, como auto-destrutiva, ASPECTOS TECNICOS NA PRATICA ANALITICA DAS PERVERSOES 1. Nao é comum que os pacientes espon- taneamente procurem um tratamento psicana- litico para tratar de sa perversio; muitas ve- zes, em situagdes mais graves, eles procuram, quando séo prensados por algum familiar ow representante da lei. © mais freqtiente é que no curso da andlise, gradual e sutilmente, vio surgindo os sintomas da perversao que, amiti- de, o terapeuta durante longo tempo (&s vezes anos) sequer suspeitava da existéncia deles. 2. Isso se deve a duas razdes: uma é a que eles funciona de uma forma em que a perso- nalidade mantém-se absolutamente cindida — isso constitui a caracteristica mais tipica da perversao -, tal como aparece na conhecida metéfora, antes mencionada, do “médico e monstro”. Convém enfatizar que a cisio da perversao (nesse caso, éa personalidade, como uum todo, que fica cindida) é distinta da ciséo descrita por M. Klein (os objetos é que séo dissociados em bom e maui, idealizado e per- secutério, etc.), ¢ também difere da ciséo da “histeria dissociativa” (na qual é 0 ego que fica cindido, em uma parte que esté consciente e em outra que opera a partir dos desejos que esto recalcados no inconsciente) 3. A segunda razio que explica por que 0 lado perverso pode custar a aparecer ¢ que tais pacientes convivem com ele de uma forma egossinténica. Isso nao afasta a possibilidade de que, quando descobertos na pratica perver- sa mais condendvel (incesto, pedofilia, por exemplo), eles se debatam em culpas e divi- das, porém sentem-se impotentes diante de uma irrefredvel compulsdo & repeticao da pré- tica perversa, 4. A perversio sempre resulta de uma busca de encontrar e preencher uma “falta” de algo ou alguém do passado; 0 perverso apenas necesita de um parceiro (partenaire) que consinta e complemente a iluséo daquilo que ele procura. 5. A montagem (estrutura) perversa fra- cassa porque ela contém justamente aquilo que deve esconder. O perverso, por mais que quei- ra ocultar sua perverséo, sempre acaba se trax indo porque ele esté sujeito a duas forgas opos- tas, iguais na quantidade, que estao em um. permanente jogo duplo: uma parte dele man- tém um policiamento pulsdo perversa, en- quanto a outra parte sabota a primeira (tam- bém pela razdo da formagio de culpas que 0 impelem a ser flagrado e punido) e comete al- gum tipo de “besteira”, assim fazendo fracas- sar 0 seu lado sadio, de modo a perpetuar 0 sistema perverso. f funcdo do analista tornar bem claro para este tipo de paciente a existén- cia desta -inconseiente mesmo —“dialética per- versa” que essas duas partes travam dentro dele proprio. 6. Na hist6ria pregressa desses pacientes, quase sempre so encontradas evidéncias de “pais pervertizantes”, como, por exemplo, o de uma mae simbidtica — sedutora erégena ¢/ou narcisista—e, neste iltimo caso, ela engrande- ce 0 filho e 0 usa como uma mera extenso sua, com a exclusdo do pai. 7. Nessas pessoas sempre existem fortes componentes narcisistas ¢ sadomasoquistas, de modo que ha uma espécie de “adigdo” 4 con- duta sddico-destrutiva ¢ masoquista, com a respectiva escolha de pessoas que funcionem de partenaires. analista deve se manter atento 4 forte possibilidade de que este paciente pro- cure envolvé-lo em uma configuragao vincular dessa natureza, 8, Da mesma forma, sempre é encontra- da uma baixa toleréncia as frustragdes, uma nitida preferéncia pelo mundo das ilusdes; con- seqiientemente, uma evitacdo de entrar em contato com as penosas verdades, tanto as ex- ternas quanto as internas. Uma das tarefas mais, dificeis para o terapeuta consiste justamente em desfazer, no ritmo toleravel para pacien- te, o mundo das ilusdes ¢ a negagao (a “recu- sa”) que ele faz das verdades que ele faz. ques- tao de nao conhecer (corresponde ao “-K”, de Bion), processo sempre muito doloroso. 9. Esse estado mental do paciente gera uma ideologia baseada na crenga de que “me- Ihor vive quem melhor consegue fingir”, o que © leva ao emprego dominante de pensamento e atitudes de um como se, uma indefinicao do senso de identidade entre “ser” e “ndo-ser”, 0 que costuma acarretar um crdnico sentimento de vazio, tédio, asco e falsidade. 10. Todos esses aspectos co-existem com a presenga, em uma parte da personalidade, de uma estrutura obsessiva, o que denota a fre- giiéncia que as fixagdes anais esto presentes. 11. Além das aterradoras angiistias pa- randides e depressivas, esse paciente foge, so- bretudo, de seu terror diante da angustia de desamparo. A repercussao disso na prética cli- nica é que esse paciente faz uma negacao ma- cica do quanto ele é dependente e, principal- ‘mente, mantém-se em uma constante fuga de entrar em um, desejével, porém, altamente penoso, estado de posi¢ao depressiva 12, Fim decorréncia de uma série de difi- culdades para a capacidade de pensar adequa- damente essas dificeis experiéncias emocionais, (pela razao maior de que, ao longo da vida, muito pouco esses pacientes transitaram pela posicao depressiva), cles substituem por actings excessivos. Uma das principais formas de es- coamento é a da atuacdo por vias erégenas, ndo sendo raro que, para manter um “estado MANUAL DE TECNICA PSICANALITICA 274 de completude” (inclusive da bissexualidade), cles atuem uma fantasia de “hibridizacao” por meio de uma ligacdo com alguma pessoa bissexuada. Outras formas possiveis de atua- do pela via erégena consiste em manifesta- des homossexuais, don-juanismo (ou ninfo- mania), pedofilia e algo equivalente. 13. Embora se processem pelas zonas erégenas, tais atuagées estiio, predominante- mente, a servigo de uma pré-genitalidade, de forma que cabe afirmar que é nas perversoes, que mais claramente se observa uma articula- do da estrutura edipica com a estrutura nar- cisica. Essa afirmativa é importante quanto ao manejo técnico, pelo fato de que, envolvido pelas ricas ¢ floridas narrativas de contetido sexual que esse paciente The oferta, o analista pode se sentir tentado a interpretar em um ni- vel edipico, quando muito provavelmente a raiz, de tudo seja a de um transtorno narcisista; caso esse equiivoco se mantenha, pode resultar uma andlise estéril. 14, Em relagao aos fenémenos que se processam no campo analitico, cabe ressaltar 05 seguintes aspectos. Em relacao ao setting, hd uma necessidade de que o mesmo seja pre- servado ao maximo; no entanto, o ataque ao ‘enquadre nao se faz marcadamente contra as, combinagGes contratuais (hordrios, faltas, pa~ gamentos...), conforme acontece comumente ‘com as psicopatias, mas, sim, contra os luga- res e papéis que, respectivamente, devem ca- ber ao paciente e ao analista e que o paciente perverso procura subverté-los. Assim, é titi que o analista se pergunte: “Qual o papel que esse paciente quer colocar em mim? O de uma mée que nunca frustra, o de um pai engana- do ¢ esterilizado, o de um juiz, professor, su- perego, ego auxiliar, um duplo dele, continen- te para as projegdes das partes que ele nao suporta?” 15. A resisténcia mais dificil de ser remo- vida é aquela decorrente de uma forte cisio da personalidade, de modo que esse paciente, tal ‘como acontece nitidamente no fetichismo, usa macigamente o recurso da “recusa”, de modo que ele repete com o terapeuta as experiéncias infantis de tentar negar as diferencas entre ambos, o que ele faz por mecanismos préprios da posigao esquizo-paranéide, embora, diferen- temente dos psicopatas, ele pode entrar em 272 DAVID E. ZIMERMAN estado depressivo, &s vezes num estado de de- sespero e ideacao suicida. 16. Em relagio a transferéncia, inicialmen- te 6 ttil estabelecer uma diferenca entre per- versio clinica (consiste no quadro, cujas prin- cipais caracteristicas foram descritas neste ca- pitulo) e perversdo da transferéncia (ou trans: {feréncia perversa). Esta iiltima pode estar pre- sente na andlise de pacientes com perversdes (ou fantasias de...), no entanto, isso esta longe de significar que com certeza se trate de paci- ente perverso, pois a perverséo da transferén- cia pode estar presente em qualquer andlise na qual os papéis e as fungées do par analitico fiquem desvirtuados. A maneira mais comum de acontecer uma perverso da transferéncia & que, por meio de identificagdes projetivas, o paciente consiga colocar no analista a sua ex- citacao, a sua impaciéncia, uma intimidade exagerada, a provocagio de contra-atuagoes e, especialmente importante, a sua tentativa de fazer o analista entrar em uma cumplicidade com ele. Vale lembrar que existem registros de que nos casos nos quais pacientes perversos queriam colocar Freud no papel de cimplice, como, por exemplo, rompendo a regra do si Io, ele interrompia a andlise 17. Assim, a contratransferéncia assume uma importéncia singular na relacdo analitica, pois o terapeuta fica submetido a uma pressio do paciente, nem sempre manifesta, por meio, de um sutil jogo de seduces ou de ameacas diversas, com as quais esse analisando procura ter o dominio da situagao analitica e forcar que © analista comporte-se como ele, o paciente, quer! O grande risco consiste na possibilidade de haver uma absoluta falta de conscientizacdo sobre a real esterilizacdo do proceso analiti- co, devido & construcao transferencial-contra- transferencial de um conluio de acomodagio entre ambos. E provavel que esse tipo de conluio tenha o conformismo do analista como uma forma de ele se defender de um verdadei- ro “tumulto contratransferencial” que, muitas vezes, os pacientes conseguem despertar. Outro aspecto que pode provocar uma contratransferéncia dificil & 0 fato de que, a exemplo de como deve ter sido com sua mae, que provavelmente alternou com ele momen- tos de seducdo com outros de castracio e re- Jeigao, os pacientes com estrutura perversa, também com o analista, alternam fases de se- dugio (inclusive por meio de aparéncias de melhoras), com outros em que ha uma perma- nente presenca de polémica e desatio. Na situago analitica € comum a sensagao contratransferencial de o analista estar presen- ciando e, &s vezes, participando de uma cena tea- tral, com um script pré-programado, como é 0 caso, por exemplo, de um paciente exibicionista “forgar” o terapeuta a ficar no papel de um. voyeurista de suas faganhas amorosas. Um aspecto particularmente importante no vinculo analitico é 0 fato de que os perver- sos costumam executar com alta maestria a arte de manter uma fachada de “bom mogo”, que estd encobrindo a parte perversa propriamen- te dita Quanto as interpretagdes do analista, so- bretudo, ele deve levar em conta, no minimo, quatro aspectos: a) a impulsividade deste pa- ciente nao é tanto vivida por ele como um real “desejo”, como pode aparentar, mas, sim, como ‘uma forma de ele expressar uma ideologia par- ticular, prenhe de idealizacées ¢ ilusdes; b) ele tem a convicgao de que a andlise ndo passa de uma doutrinagao que o analista quer impor a ele, de modo que ele pode se queixar que as interpretagdes do analista somente 0 desqua- lificam (enquanto a verdade é que, assim pro- cedendo, é ele quem desqualifica o seu analis- ta). Da mesma forma, quando este paciente exclama em um aparente desespero “nao adian- ta, ndo tem saida”, é bem provavel que 0 ver- dadeiro sentido disso possa ser: “Nao adianta, nao vou Ihe dar entrada aos meus niicleos in- conscientes”; c) o terapeuta deve estar atento para uma forte tentacdo de interpretar o flori- do ¢ atraente “material edf xar passar os essenciais elementos narcis 4d) nao basta o analista estar interpretando cor- retamente, acima de tudo, ele deve estar aten- to & com o destino que as suas interpretagoes seguem na mente desse paciente, porqué ele costuma desvirtué-las, 18, Uma caracteristica especialmente im- portante na atividade interpretativa do analis- ta consiste na necessidade de ele mostrar sis- tematicamente as relagdes perversas que se es- tabelecem entre as partes contraditérias den- tro do préprio self do paciente, de modo que é eficaz.assinalar ao paciente que constantemen- te ele esta mentindo para si mesmo. 19. Habitualmente, o estado mental do paciente perverso é 0 de uma fragmentacio, de modo que os movimentos de integracéo vam, acompanhados das anglistias préprias da “mu- danga catastréfica” (termo de Bion), com sin- MANUAL DE TECNICA PSICANALITICA 273 tomas de confusdo e despersonalizagao, o que cexige do terapeuta uma atitude ao mesmo tem- po firme e solidéria 20. A pessoa real do analista adquire um papel relevante, pois todo perverso sofre de identificagdes patogénicas, de sorte que, indo além das interpretagdes, o terapeuta também. funciona como um novo modelo de identificagéo.

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