You are on page 1of 24
RESENHA Plinio Junqueira Smith, O Ceticismo de Hume. Sao Paulo: Loyola, 1995 (Colecao Filosofia, 32). 303 pp. Preficio de Oswaldo Por- chat Pereira. ISBN: 85-15-01108-5. DEBORAH DANOWSKI Departamento de Filosofia, Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro, Rua Marqués de Sdo Vicente, 225, Gavea, 22453-900 RIO DE JANEIRO, RJ BRASIL eviveiros@ax. ibase.org.br Uma das questdes mais importantes € polémicas da filo- sofia de David Hume, seu ceticismo vem ocupando boa parte da atencao dos comentadores ¢ estudiosos. Desde Reid e Be- attie até os trabalhos mais recentes, a verdadeira proliferacao da literatura sobre Hume no se fez sem produzir uma grande disparidade de interpretagdes, nao apenas acerca do ceticismo, mas acerca de diversos outros pontos mais ou menos particula- res, € mesmo do sentido mais geral da obra desse filésofo. Frente a tal emaranhado de leituras, aqueles que pretendem se esclarecer sobre o problema do ceticismo humeano, e por €x- tensao do ceticismo em geral, terao no livro de Plinio Smith um auxilio precioso. O Ceticismo de Hume pretende, através de uma anilise ri- gorosa (“estruturalista com ressalvas”) do texto humeano, de- terminar, por um lado, como surge em Hume a problemética do ceticismo, qual a articulagao dessa problematica com sua © Manuscrito, 1998. Published by the Center for Logic, Epistemology and History of Science (CLE/UNICAMP), State University of Campinas, P.O. Box’ 6133, 13081-970 Campinas, $.P., Brazil. 298 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) teoria das idéias, em que medida ela se adequa ao projeto de uma ciéncia empirista da natureza humana; e, por outro, de- terminar o sentido preciso que o proprio Hume da ao termo “ceticismo”, se esse sentido resiste a uma anilise fiel dos textos ou se reflete uma incompreensao do autor acerca de sua pr6- pria filosofia, e finalmente a correcao ou nao, do ponto de vis- ta hist6rico, dessa auto-caracterizacao de Hume frente as duas adicao cética: 0 pirronismo e 0 principais fontes antigas da ceticismo académico. O livro gira em torno de trés teses basicas uma distincgao entre um aspecto meramente analitico, cético ou negativo e um aspecto construtivo, psicolégico ou positivo na filosofia de Hume; essa filosofia deve ser considerada estri- tamente mentalista, nao comportando qualquer forma de rea- lismo; a ciéncia empirica proposta por Hume é imediatamente nao existe uma “ciéncia cética”, e a correta compreensao do significado do ceticismo humeano mostra que nao ha nessa expre nhuma contradicdo interna. Essas trés tes’ © construidas gradativamente e de forma bastante coerente € cuidadosa ao longo de todo o texto, desde a apresentacao do projeto filos6- fico de Hume, passando pela abordagem de sua teoria das idéias e de sua reformulacao da nogao de causalidade, até as andlises sobre o ceticismo. Para isso, além da constante discus- s4o com os comentadores, nao se poupam interessantes € es- ssao ne- clarecedoras notas comparativas entre pontos especificos das filosofias de Hume e de Ockham, Descartes, Malebranche, Berkeley, Locke , Kant e Wittgenstein, entre outros. A idéia da inexisténcia de dois aspectos ou duas etapas distintas no pensamento de Hume, sejam elas contrarias ou complementares, anuncia- tra, juntamente com a intengao cética de uma “terapia” que ex- ja pelo fato de que o filésofo mos- © Manusorito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 229 purgasse toda supersticao € todo carater hipotético ou dogma- tico da filosofia, um projeto positivo, “construtivo e empirista” de formulagio dos principios gerais que regem o entendimen- to humano. E logo ficard claro, com o desenvolvimento daque- las trés teses no texto de Plinio Smith, que um problema do tipo “como conciliar 0 aspecto construtivo e empirista do sis: tema com 0 aspecto cético?” (p. 45) — tal como foi diversas ve~ zes colocado por comentaristas de Hume ~ seria um falso pro- blema. A andlise da nogao de causalidade, normalmente tida como um dos principais temas da filosofia de Hume, tem sido também privilegiada pelos que querem abordar a natureza de seu ceticismo, segundo duas grandes ordens de interpretagao. A interpretacdo cética em geral, nos diz Plinio Smith, vé a dou- trina humeana da causalidade basicamente como a afirmacao da impossibilidade de fundarmos pela razdo nossas inferéncias causais, que seriam assim reduzidas a uma mera conjuncao constante entre as idéias de causa e efeito, e de nossa ignoran- cia quanto A existéncia de causas reais. A interpretacao natura- lista procura, ao contrario, sublinhar a andlise dos mecanismos psicolégicos, ou dos princfpios da natureza humana responsé- . Mas, na verdade, hoje a maior veis por nossas crengas caus parte dos comentadores, céticos ou naturalistas, vé na andlise sobre a causalidade uma dicotomia entre as “dtividas céticas” € a “solucao humeana”. Sua maior discordancia esta na forma que atribuem a essa dicotomia, bem como na importancia re- lativa que dao a seus termos: fala-se de uma distincao entre uma parte ou etapa légica e negativa e uma construtiva € posi- tiva; ou entre uma “andlise” baseada no principio empirista, ou “principio da cépia”, e uma “sintese” baseada nos principios da imaginacao; ou entre uma investigacao sobre a critica ao “ale- gado fundamento na razio” e outra sobre a origem das crengas © Manuserito, 1998, XXI(1), pp. 227-249, April. 230 0 CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) na natureza humana; ou ainda entre uma anilise filos6fica e outra psicolégica. Para Plinio Smith, entretanto, a andlise rigorosa dos tex- tos de Hume sobre a causalidade, tanto no Tratado da Natureza Humana como na Investigagao sobre 0 Entendimento Humano, est& longe de mostrar qualquer distingao desse tipo, revelando an- tes diversos “niveis de andlise que se sucedem dentro de um tinico percurso argumentativo” (p. 72). Assim, por exemplo, um desses niveis, a descoberta de que a experiéncia é o fun- damento de nosso conhecimento de causa ¢ efeito, possui cla- ramente um aspecto positivo, embora supostamente perten¢a A parte critica ¢ negativa da andlise de Hume, ja que vem re- forcar a idéia de que a raz4o ndo é esse fundamento. E, por ou- tro lado, a afirmacdo de que a origem de nossas conclusdes a partir da experiéncia é um principio da imaginacao nao pode ser considerada como um aspecto positivo distinto. Ela é ape- nas, segundo Plinio Smith, a conclusao de um “silogismo dis- juntivo” (p. 80): ou € a razao ou é a imaginagao o fundamento dos raciocinios experimentais; ora, nao é a raz4o; portanto, é a imaginacao. Uma Unica e mesma argumentagao, portanto, combinaria os dois aspectos, positivo e negativo, e restaria a Hume descrever 0 mecanismo natural pelo qual a imaginacao produz a idéia de relagao causal. A segunda tese central de © Ceticismo de Hume é a de que este ceticismo nao se faz sobre o pano de fundo de um realis- mo, como querem sobretudo alguns comentadores favoraveis 4 interpretacdo naturalista, acreditando que Hume aceita a rea- lidade do mundo, do sujeito e de poderes causais, que apenas nao poderiam ser apreendidos adequadamente por nossas idéias, embora sejam objetos de crenga. Ao contrario, diz Pli- nio Smith, todo o empirismo de Hume se exerce a partir de © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 231 um “dogma” mentalista: a mente s6 tem acesso a percepcoes € a suas relacées, e nao a objetos externos ou a conexdes causais sobre a reais (p. 66). Em primeiro lugar, nada podemos saber existéncia ou nao de objetos externos. E certo que Hume di- versas vezes distingue objetos de impresses, ¢ faz uso de ex- press6es que parecem apontar para causas externas de nossas percepcGes; porém essas passagens, Como por exemplo as se- cées iniciais do Tratado, apenas refletem uma maneira impreci- 6ria, por parte de sa de falar, ou mesmo uma utilizagao provi Hume, da linguagem realista do senso-comum, devendo ser antes interpretadas e corrigidas 4 luz dos textos sobre as idéias de existéncia e de existéncia externa,’ que abordam direta € explicitamente a questao, e t¢m um carater claramente nao- realista; ou entao a luz das andlises subsequentes, sobretudo na secio “Do ceticismo em relagao aos sentidos”, em que se expli- ca como a mente é levada a essas ficgdes. Em segundo lugar, € como consequéncia da suspensio de juizo acerca da existéncia ou nao de objetos externos 4 mente, tampouco podemos afir- mar a existéncia de qualquer relacio causal entre esses “obje- tos”. Para Plinio Smith, quando Hume afirma que os “poderes ocultos” ou as causas finais que regem a natureza nos sao to- talmente desconhecidos, ele nao quer dizer que eles decidi- damente existam, embora nao os possamos alcangar, mas sim que nada podemos afirmar sobre sua existéncia ou inexisténcia. E sequer devemos dizer, com alguns autores, que Hume reconhece que a natureza, embora nao nos deixe entrever es- sas conexdes causais nos préprios objetos, inevitavelmente nos levaria a crer nelas, justificando assim nao racionalmente nos- sas crencas. Segundo o autor de O Ceticismo de Hume, a crenga causal imposta pela natureza também se restringe as percep- "A Treatise of Human Nature, pp. 66-68. © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) ces — 0 habito “nao nos obriga a crer em realidades outras que nao as percepcdes” (p. 212)*. Na verdade, toda a doutrina humeana da crenca é feita de modo a explicar a constitui¢ao pela imaginacao de “sistemas de realidades”, que, embora coe- rentes com a regularidade da experiéncia passada e guiados pelo habito, prescindem de qualquer referéncia a algo que es- a definicao de “realidades” taria além das impress6es. Tanto e: como as duas definigdes de causas® se enquadram estritamente nessa concepcao “fenomenalista” da filosofia de Hume: jamais podemos ultrapassar os fendmenos, ou afirmar algo sobre qualquer outra realidade. Um trecho da Investigacéo, entretanto, parece resisuir com mais forca a essa interpretacao: na parte II da secao V’, Hume se refere a “uma espécie de harmonia pré-estabelecida idéias”; e entre o curso da natureza e a sucessao de nos: afirma que “embora os poderes ¢ forcas que governam a pri- meira nos sejam totalmente desconhecidos, constatamos que nossos pensamentos e concepgdes tém seguido o mesmo ca- minho que as outras obras da natureza.” Essa passagem tem sido objeto de pelo menos duas leituras diferentes (p. 90). Para a interpretacao realista, o que Hume diz aqui é que, “ain- da que estejamos presos as percepcdes, 0 costume permite, de algum modo que nos é desconhecido, a correspondéncia entre * Entretanto, através de princfpios irregulares da imaginacio (ou seja, prinefpios que nio se sujeitam ao habito, embora sejam to na- turais quanto este), projetamos a idéia de conexao necesséria, origi- nada de um simples sentimento interno de determinacio, para os proprios “objetos” - produzindo, assim, a idéia de que haveria uma conexio causal nas coisas mesmas, 4 qual nés terfamos acesso. O tex- to niio se refere aqui a esse problema. 8 Treatise, p. 172, ¢ An Enquiry on Human Understanding, pp. 76-77. * Enquiry, pp. 5455. © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI nossas idéias e um mundo exterior”. Ja para os favoraveis a uma interpretacao fenomenalista (nosso autor, entre eles), a mengao a uma “harmonia pré-estabelecida” (e também a cau- sas finais, um pouco adiante) é irénica: 0 curso da natureza tia 0 conjunto de nossas impressdes dos sentidos, e a corre pondéncia diria respeito apenas ao fato de © costume nos levar a esperar corretamente a nova impressao. Plinio Smith procura mostrar que, apesar de aparentemente estar apoiada pelo uso de certos termos como “objetos externos”, “as outras obras da natureza” etc., a interpretagao realista perde claramente sua forca quando a passagem em questio é revista & luz das andli- ses do Tratado, ou mesmo de outras anilises da propria /nvest gacito sobre 0 Entendimento - como, por exemplo, a teoria da crenca, a definicao de causa, € a refutacao da tese do designio e da nocio de causas finais, na secao XI, sobre os milagres (e, ao longo dos Didlogos sobre a Religidio Natural). acrescentemos A terceira tese do livro é, como a primeira, uma resposta a problemas decorrentes da visio de uma dualidade no pen- samento de Hume. Assim como havia sido necessdrio determi- nar a correta relacdo entre ceticismo e naturalismo (mostran- do que na verdade os dois formam uma s6 coisa), € preciso agora deixar clara a plena compatibilidade entre o ceticismo e o empirismo. Para isso, Plinio Smith procuraré demonstrar primeiramente que a ciéncia da natureza humana proposta por Hume desde seu projeto filoséfico nao pode ser melhor caracterizada senao como uma “ciéncia cética”; ou ainda, que “a concepgao cética da ciéncia é precisamente sua concepcao empirica” (p. 152). Em outras palavras, nao ha qualquer oposi- ao invés de ser um obstaculo cao entre intengées e resultado: a um projeto positivo ¢ empirista, aquilo que Hume chama de seu ceticismo € resultado da pratica rigorosa do empirismo: © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. 234 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) uma filosofia fundada estritamente na experiéncia e na obser- limitar a descrever, busca formu- vacio, e que, em lugar de lar principios gerais acerca do dominio préprio do entendi- mento e da natureza humana (0 que permite, a0 mesmo tem- po. que ela constitua a base para um futuro sistema completo das ciéncias). Entretanto, quando se formula de: entre © ceticismo humeano e a ciéncia empirica - isto é, quando se afirma que o ceticismo é resultado da “légica”, a qual se constitui como uma ciéncia empirica -, tem-se que en- frentar a objecdo de que Hume cometeria aqui uma peticao de principio, utilizando-se da ciéncia empirica para justificar a ci- ancia empirica (p. 226). Pois como poderia 0 proprio ceticis- mo fundamentar essa ciéncia, fundamentar a legitimidade de adocio do método experimental? A tese de Plinio Smith é que © propésito de Hume no ¢ justificar a ciéncia empirica (o que realmente seria insuficiente para explicar a recusa da ciéncia racionalista), mas sim investigar a possibilidade (que sera ne- gada) de uma ciéncia nao empirica. Para isso, Hume partiria de uma experiéncia irrecusdvel — irrecusavel nao apenas para o empirista, mas também para o racionalista — e que, justamente por isso, nao precisaria ser justificada: que temos sensagoes ¢ idéias simples e complexas, que as impressdes simples prece- dem as idéias, que a meméria, diferentemente da imaginac4o, preserva a ordem das percepgdes etc. Dessa experiéncia, Hume extrai uma série de principios, que Ihe permitem a construcao de sua ciéncia do homem, e também a conclusao de que é a este dominio que a ciéncia deve se limitar. “O que se justifica na filosofia de Hume”, diz Plinio Smith, “é a limitagao da cién- cia ao dominio da experiéncia, nao o procedimento de recor- rer 4 experiéncia, em si mesmo incontrovertivel” (p. 229). Ou, maneira a relacio em outras palavras, a recusa do racionalismo, “a limitacao em © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 235 Hume das investigagdes a experiéncia € conclusao, ¢ nao pres- suposto, de sua filosofia” (p. 283). O Coticismo de Hume completa, assim, a exposicao daquilo que seu autor considera como a profunda unidade da reflexao humeana, a qual ndo pode ser corretamente compreendida enquanto nao se aceitar a relacdo fntima e indissocidvel entre seus trés elementos principais: ceticismo, naturalismo e empl rismo (cf, p. 282). Mas resta ainda esclarecer melhor 0 concei- to mesmo de ceticismo. Boa parte das dificuldades apresenta- das pelas interpretagoes anteriormente analisadas se devem ao fato de que o proprio texto humeano parece conflitante em suas referéncias ao ceticismo. Em primeiro lugar, Hume utiliza uma série de diferentes adjetivos para caracterizé-lo ~ ha, por exemplo, 0 “ceticismo total”, ha o “moderado ou mitigado”, o “pirrdnico” € 0 “académico”, o “antecedente” € 0 “consequen- te” -, o que leva Plinio Smith a se perguntar: “Qual o sentido do ‘ceticismo’ de Hume? Ha um ou varios sentidos? Se varios, quais e como se articulam?” (p. 14). Em segundo lugar, Hume ora parece rejeitar o ceticismo, ora parece defendé-lo. Mas qual ceticismo € criticado, qual defendido? Para esclarecer questées como essas, 0 autor nos oferece trés abordagens dis- tintas e complementares. Primeiramente, procura determinar qual a visio do préprio Hume sobre o ceticismo de sua filoso- eauma anilise fi- fia. Em seguida, investiga se essa visio “resi el aos textos, ou se nao passa, por exemplo, de uma caracteri- zacao retorica ou mesmo (...) de uma incompreensao do filé- sofo a respeito de sua prépria filosofia.” (pp. 26-27). E, final mente, faz uma comparacao, de carater mais hist6rico, entre a do ceticismo posicao humeana ¢ as duas correntes principa antigo, a pirrénica e a académica — 0 que Ihe permi ao mes- mo tempo mostrar a adequacao de seu uso do termo “cetic © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. ) April. O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) mo” e precisar a contribuigao de Hume para o desenvolvimen- to da reflexao cética. Sempre que Hume reflete sobre o sentido de sua filoso- fia como um todo, constata Plinio Smith, ele a caracteriza como uma filosofia cética ou como um ceticismo mitigado (isto €é, como um ceticismo moderado pela for¢a dos instintos naturais ¢ pelo reconhecimento da necessidade da crenga ¢ da acao, nado obstante nossa incapacidade de fundamenté-las ra- cionalmente). Por outro lado, se lermos com a devida atengao as passagens que parecem recusar um ceticismo, veremos que todas se referem, explicita ou implicitamente, a um ceticismo excessivo, total ou pirrénico, e nao ao ceticismo moderado as- sumido por Hume. Diversos partiddrios da interpretagao naturalista afirmam que essa auto-imagem de Hume nao se ajusta perfeitamente 4 dualidade presente em sua filosofia, e que, ao lado de seu ceti- importante, a cismo, haveria uma outra dimensao tao ou mai do naturalismo. Entretanto, tal critica nao se sustenta aos olhos de Plinio Smith, que, como ja vimos, procura demons- trar a auséncia desses dois aspectos distintos em Hume. Na verdade, diz ele, tanto essa interpretagao quanto uma forma mais elaborada da interpretacdo cética — que, aceitando os termos do debate colocado pelos naturalistas, tenta imputar a Hume uma filosofia oscilante entre ceticismo e naturalismo — restringem demasiadamente o sentido do “ceticismo”, dando- Ihe uma conotacao exclusivamente negativa, 0 que os obriga a recorrer ao termo naturalismo para designar os “aspectos posi- tivos” presentes em Hume. Para Plinio Smith, “nao sera preci- so (...) postular uma outra dimensao de sua filosofia: o ceti- cismo humeano é um naturalismo” (p. 197). Uma outra critica A correcao da auto-imagem de Hume como cético parte daque- les que atribuem a Hume um realismo, o que seria inconcilia- © Manuserito, 1998, XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 237 vel com um ceticismo. Mas, j4 0 vimos também, O Ceticismo de Hume recusa essa interpretacio, mostrando que a concepcao humeana de relagdo causal, de realidade ¢ mesmo de repre- sentacio € estritamente mentalista, jamais pretendendo fazer qualquer afirmacao (ou negagao) a respeito de algo que ultra- passasse os meros fendmenos. E, novamente, 0 ceticismo apre- goado por Hume tampouco deve ser considerado incompatt- vel com seu projeto de uma ciéncia empirista. Pois “no mo- mento preciso em que Hume chama a sua filosofia de cética, ele reelabora a idéia de uma ciéncia do homem ou da investiga- cdo cientifica em geral” (p. 225). Essa defesa da “auto-imagem” de Hume sera fortalecida pela comparacio de seu ceticismo com as doutrinas de Car néades € de Sexto Empirico, principais representantes do “ce- ticismo académico” e do “ceticismo pirrénico”, respectivamen- te. O proprio Hume parecia considerar sua filosofia como préxima do ceticismo académico (ou mitigado), afastando-se entretanto do pirronismo. E varios intérpretes procuraram confirmar essa opiniao, através da andlise de uma série de pon- tos que permitiriam uma identificacdo entre os ceticismos de Hume e de Carnéades. Plinio Smith analisa separadamente cada um desses pontos € os recusa em sua quase totalidade, propondo em seu lugar outros pontos de semelhanca. Em primeiro lugar, se seguirmos a interpretacao de Sexto Empiri- co acerca de Carnéades, veremos que, embora (ao contrario do que costumam pensar os comentadores de Hume) nao seja possivel aproximar suas concepcdes de “representagao prové- vel” ¢ de “probabilidade” em geral, existe naquele, assim como em Hume, uma relagao entre os graus de crenga ¢ a intensida- de varidvel da representacao. Em segundo lugar, ambos con- cordariam com a suspensao do juizo acerca de um conheci- mento sobre o mundo, e com a necessidade de aceitacao de © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. 238 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) ntagdes capazes de nos guiar na vida. Além di certas repres tanto Hume como os académicos recomendariam moderacao, cautela e imparcialidade nos julgamentos, bem como o saudé- vel habito da diivida e de constantes revisGes dos resultados de nossas investigacées. Finalmente, Plinio Smith concorda que os dois filésofos se assemelham ao pregar 0 confinamento a vida didria, com suas crencas provaveis, e com a suspensio de todo assentimento dogmatico ou absoluto. O tinico ponto controverso dessa aproximacao se deve a interpretagio de Ci- cero que atribui a Carnéades a recusa da necessidade da cren- ca para a vida, a qual é “uma das principais semelhancas que Hume enfatizou entre a sua filosofia e 0 ceticismo académico” (p. 266), diferenciando-as do pirronismo. De toda forma, a conclusao de Plinio Smith é que a proximidade entre as duas doutrinas ja seria suficiente para justificar a caracterizacio da filosofia de Hume como cética. Por outro lado, 0 autor cré que “o cético excessivo, to criticado por Hume, em nada corresponde ao cético pirrénico grego” (p. 267). Na verdade, a comparacao das filosofias de Hume e de Sexto Empirico ira revelar uma grande afinidade entre as duas formas de ceticismo. Primeiramente (embora com objetivos aparentemente diversos — cf. p. 269) existe nos dois autores uma valorizacio e uma prioridade funcional da “légica”, concebida como a investigacdo da natureza e dos limi- tes de nosso entendimento e das idéias, no caso humeano, ou como a investigagao das doutrinas dogmaticas norteada pela problematica do critério, no caso de Sexto. Em segundo lugar, podemos encontrar em Sexto algo semelhante a distingao humeana entre impress6es € idéias, o que 0 leva, assim como a Hume, a afirmar que a liberdade de nossa mente é limitada Em terceiro lugar. pelo que os sentidos nos podem fornecer. Sexto prega a suspensao de juizo a respeito da existéncia de © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April, DEBORAH DANOWSKI 239 causas reais, uma vez que os simples fendmenos, aos quais nos devemos limitar, nado nos permitem uma conclusao certa a esse respeito; além disso, como Hume, ele procura mostrar a nao validade da inducdo de nossa experiéncia de casos observados para a generalidade dos casos. Mais ainda, refletindo sobre a doutrina estéica que distingue o “signo indicative” do “come- morativo”, Sexto, ao mesmo tempo em que critica o primeiro por indicar um objeto que jamais pode se tornar evidente a nés, defende o segundo, que ele associa 4 nogao de causa, e que nos lembra um objeto apenas temporariamente nao evi- dente, sem nada postular para além dos fenémenos e daquilo que observamos na experiéncia. Plinio Smith acredita, assim, que podemos ver no cético pirrénico uma certa concep¢ao po- sitiva (embora menos acentuada que a critica) de causa, ana- loga 4 de Hume. Quanto ao principal motivo da discordancia de Hume em relacao ao pirronismo — que este levaria 4 inacao e, consequentemente, 4 morte -, o autor mostra que ele é in- fundado: Sexto na verdade afirma que 0 cético ndo deve per- manecer inativo. E perfeitamente possivel, segundo ele, viver sem opinides, apenas de acordo com os fendmenos e a vida comum, deixando-nos guiar pela natureza, pelas paixdes, wra- dicdes e costumes. A suspensio pirrénica do juizo nao supe a abolicdo de toda crenga: o fenémeno se impoe a nés, que 0 aceitamos irrecusavel e involuntariamente. Um outro possivel ponto de semelhanca entre os dois ceticismos € a rejeicao da apreensibilidade do mundo exterior, problematica geralmente aceita como eminentemente moder- na, mas que alguns autores tentam’® encontrar também no pit ronismo antigo, embora de forma menos desenvolvida. Plinio ® Qu jé tentaram, tendo depois abandonado a opiniio, como, gundo Plinio Smith, teria sido 0 caso de Oswaldo Porchat © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227 240 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) Smith afirma que a postura pratica prépria da filosofia antiga nao impede que haja em Sexto um questionamento da exis: téncia real de todas os corpos, inclusive de seu préprio corpo, que passam a ser objetos da suspensao do juizo. Entretanto, aquilo que é mais caracteristico da abordagem moderna da questo, 0 mentalismo (dentro do qual também Hume esta in- serido), nao poderia estar presente em Sexto. Sua diivida acer- ca da existéncia real dos corpos nao supée, por exemplo, nada semelhante concepgao humeana da mente como feixe de representagdes; em outras palavras, nao ha no cético antigo uma interioridade, que s6 poderia existir dentro de uma dis- tingdo entre sujeito e objeto. “Se n3o se pode falar de um mundo interno, entao nao se deve dizer também que Sexto co- loca em questdo a realidade de um mundo externo” (p. 282). a diferenca importante, e apesar do que diz Apesar dess explicitamente o proprio filésofo empirista, a conclu: toda essa andlise leva o autor de O Ceticismo de Hume € que o ce- ticismo pirrénico é plenamente compativel com o pensamento de Hume, e que, por isso, “é inteiramente adequada do ponto de vista hist6rico a caracterizacao da filosofia hameana como “cética’ (e em particular ‘pirrénica’)” (p. 288). Oo a que Apés essa breve exposicao das principais teses e questdes de O Ceticismo de Hume, apresento a seguir algumas observacées que me parecem mais importantes. Vimos que 0 estabelecimento daquilo que chamamos de a primeira tese do livro, a saber que nao ha no pensamento de Hume uma dualidade entre um aspecto meramente negativo e um aspecto positivo, faz uso de um recurso 4 forma légica da argumentacao humeana. Embora a tese nao se sustente apenas por esse recurso, 0 certo é que nosso autor voltaré a ele diver- sas vezes, nao apenas na andlise sobre a causalidade, mas tam- © Manusorito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 241 bém nas andlises sobre a crenca na existéncia dos corpos ex- ternos 4 mente (p. 112) € sobre a producao da idéia da identi- dade do eu (p. 131). Ora, é bem verdade que Hume se utiliza da forma “disjuntiva” em seus raciocinios, de maneira direta € explicita, em pelo menos duas ocasides’. Entretanto, a insi téncia de Plinio Smith em sublinhar a forma “ldgica” do argu- mento me parece dar uma falsa impressio de neutralidade & andlise humeana e a seu resultado. Nao devemos esquecer que, quando Hume diz, por exemplo, “nao é a razio”, ele esté fazendo uma critica ampla e contundente de uma poderosa tradicao filoséfica, que afirmava que a relacdo causal é uma re- lacdio necessdria ¢ pode ser descoberta a priori pela razdo; ¢ que quando conclui “é a experiéncia”, ou “é a imaginacao”, ele esta propondo todo um novo dominio de anilise. Nao se trata aqui da mera exclusao de um dos termos de uma disjunc¢ao. Sobre- tudo na primeira ¢ terceira partes do Livro I do Tratado, era preciso combater com muito empenho e vigor o papel nor- malmente atribuido & razao, € s6 isso poderia abrir caminho para a total mudanga de rumo nas investigacoes filoséficas, vol- tadas agora para a origem de certas idéias na imaginacao.” ° CL. Treatise, pp. 88 ¢ 188. Note-se que, neste tiltimo caso (a pro- pésito da crenga na existéncia dos corpos externos), a primeira pre- missa, “disuntiva”, contém trés, € nao apenas dois, termos: tratase de saber se sio os sentidos, a razio ou a imaginacio que produzem a opiniéo da existéncia continua ou distinta de algumas de nossas per cepcbes. 7 Embora seja correto que, um pouco mais adiante, na parte IV, quando Hume se utiliza da mesma forma argumentativa para analisar a origem da crenca nos corpos externos, a razo é, dentre os trés termos da nova disjungio (ver a nota 6), 0 mais rapidamente descar- tado, devemos notar que um dos argumentos apresentados para isso se baseia inteiramente nas conclusdes ja alcangadas a respeito da re- © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, Apri 242 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) Por outro lado, embora possamos concordar com a criti- ca A rigidez de uma distingao tal como a proposta, por exem- plo, por Barry Stroud’, nao devemos esquecer que ela tem mérito de procurar resgatar 0 aspecto positivo da filosofia de Hume, soterrado por certas leituras que privilegiam exclusi- vamente suas andlises criticas. Que Stroud tenha identificado esses dois “aspectos” a duas “etapas” ou “fases” vem apenas re- forcar a preocupacao histérica de sua interpretacao: Hume nao poderia por em pritica sua ciéncia da natureza humana (ou, se preferirmos, seu “empirismo cético”) sem combater certos conceitos fundamentais da tradicao metafisica. Se esse combate € de fato concomitante ¢ nao anterior & investigacao da natureza humana é uma outra questao. Esse problema reaparece na critica de O Ceticismo de Hu- me aos argumentos que querem fundamentar uma outra forma da mesma distincao basica, a saber a separacao entre uma ana- lise baseada no principio da cépia (que teria uma funcao ex- clusivamente cética) ¢ outra baseada nos principios da imagi- nac4o, e que constituiria o aspecto propriamente naturalista da doutrina humeana (pp. 171-ss). Segundo Plinio Smith, a fungao do principio da cépia em Hume é “procurar a impres- sao original de uma suposta idéia filosdfica, com o intuito de tornar 0 seu significado preciso. A rejeicgao do conceito filosé- fico [nos casos em que nao for possivel descobrir essa impres- sao original] aparece como uma consequéncia eventual dessa funcio...” Ora, o que podemos observar nos textos em questao lacio de causa ¢ efeito, o que parece um bom motivo para que nao se retomasse agora toda a discussio anterior (cf. Treatise, p. 193). * Stroud afirma, por cxemplo, que “a explicacio psicolégica ou naturalistica positiva s6 € introduzida depois que o argumento cético negativo foi considerado como independentemente bem sucedido” ((1977) 15). © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 243 é que, embora a critica realmente pareca ser, nao a funcao, mas uma consequéncia eventual do principio da cépia, nao deve ser por acaso que Hume analisa conceitos filoséficos em que essa € quase sempre a consequéncia, primeira senio principal. O caso da idéia de substancia é exemplar. Ao contrario do que enten- de nosso autor, a leitura do texto de Hume na secao VI deixa claro que o objetivo da andlise desse conceito através do prin- cipio da cépia é sobretudo desfazer o falso conceito da metafi- sica. * O novo significado, que Hume propée a seguir, é clara- menie secundario. Na verdade, se for para designar a mera co- lecdo de qualidades distintas, 0 conceito de substancia j4 quase nao tem serventia no discurso filos6fico. E por isso que, mes- mo nas partes posteriores do livro I do Tratado””, ele continua- rd sendo objeto de critica; e 0 significado “positive” proposto por Hume apareceré apenas como referéncia de um novo conceito, a saber o de “corpo”". Mas, além dessa descoberta do significado “correto” da idéia de substancia, ou seja, das verdadeiras impressdes de sen- sagao que se encontram por tras desse termo, Hume empre- ende na secao III da parte IV uma outra anilise, que busca compreender os princfpios da natureza humana que fazem com que, por exemplo, a filosofia antiga acredite poder atribu- ir ao termo um significado diferente (o que constitui propria- mente a razao da critica humeana). Nesse caso, devera ser ex- plicada a tendéncia da imaginacao a, embora nao apoiada em ° Treatise, LIVI, pp. 15-16. © Como por exemplo as secdes II ¢ V da parte IV. "Cf. Treatise, HIV-IIL, p. 219: “Os fildsofos mais judiciosos admi- tem que nossas idéias dos corpos nao sio senao colegdes formadas pela mente das idéias das diversas qualidades sensiveis distintas que compéem os objetos, ¢ que observamos terem uma uniio constante umas com as outras.” © Manuserito, 1998, XXI(1), pp. 227-249, April. 244 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) impressdes, operar uma sintese das qualidades diferentes ¢ su- cessivas através da suposicao da existéncia de alguma coisa desconhecida por tras dessas qualidades, ¢ que nos permitiria vélas como unidas num objeto tinico, € como possuindo uma identidade apesar de suas variagdes no tempo. O que Plinio Smith pretende mostrar € que, no caso da idéia de substancia como no de diversas outras, nao se pode separar 0 percurso que, guiado pelo principio da cépia, nos leva das idéias as im- presses, € 0 que, seguindo a sintese operada pelos principios da imaginagao, nos leva das impressées as idéias. Assim, por exemplo, na investigacio sobre a idéia de conexao necessdria, no Tratado, *é a busca da impressio original que poe em mar cha a busca pelos principios da imaginacao” (p. 176); mas, por outro lado, sem recorrer A sintese operada pelo habito (que Plinio Smith identifica como um dos princfpios da imagina- ¢4o), jamais poderiamos determinar essa impressio. Em suma, tracar a origem de nossas idéias ¢ explicar a génese de certas fiecdes nao passariam de “dois aspectos das relagbes que certas impressdes mantém com certas idéias. Buscar a impressdo ori- ginal nao se dissocia do elaborar uma descrigéo dos processos s” (p. 178). E portanto, os supostos dois momentos da filosofia de Hume, as idéie genéticos da imaginacao ao produzir no: m “sintético” e um “analitico”, seriam antes dois sentidos de um 86 percurso: podemos enfatizar 0 percurso que nos leva da idéia as impressdes; ou percorrer o caminho inverso, das im- pressdes as idéias correspondentes. “Em ambos os casos, esta- remos percorrendo 0 mesmo caminho, expondo a mesma inves- tigacio de Hume.” (p. 179) O que essa abordagem me parece desconsiderar é que, quando Hume investiga a origem de uma idéia que daria signi- ficado a um conceito filos6fico e nao encontra de safda uma impressio dos sentidos que possa téla originado, ele recorre © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 245 aos “princfpios da imaginacao”, nao para encontrar finalmente essa mesma impressdo, e sim para encontrar em seu lugar uma impressao de reflexao. Assim, por exemplo, a idéia de conexao necessdria, 4 qual nado corresponde nenhuma impressao dos sentidos, sera originada no sentimento de determinacio pro- duzido pelo habito em decorréncia de uma conjuncao cons- tante na experiéncia passada. E a idéia cuja origem foi assim determinada jé nao tera exatamente o mesmo significado que a idéia da qual partiu a investigacao.’* Ou seja, nao sao as mesmas impressdes e as mesmas idéias que sao objetos do princfpio da cépia e dos principios da imaginacao. O principio da cépia busca primeiramente uma coisa, e é apenas se nao a enconta que recorre aos principios da imaginagao, para en- contrar outra coisa. Por isso, novamente, nao ha uma paridade na escolha do sentido do percurso: da impressao a idéia, ou da idéia A impressao. No segundo caso, hé uma critica; no primei- ro, a exposicao de um mecanismo positivo da imaginacio. E, mais importante, os termos em jogo ndo sao os mesmos. Nada disso significa, entretanto, uma discordancia da- quilo que me parece ser o grande mérito da interpretacao de Plinio Smith: a ampliacao do conceito de ceticismo tal como deve ser aplicado 4 filosofia humeana, de modo a fazé-lo signi- ficar um tnico e mesmo esforco que compreende os aspectos positivo e negativo dessa filosofia. Tal interpretacao é funda- mental, por exemplo (como lembra o proprio autor), porque © Foi a essa caracteristica das andlises humeanas que G. Deleuze ((1953) 12-14) se referiu ao dizer que, nas questées do entendimen- to, Hume sempre vai da auséncia de uma idéia no espirito & presenca de uma afeccio do espirito (impressio de reflexio). E, assim como 0 método da filosofia vai da auséncia de uma idéia no espirito & pre- senca de uma impressio, a teoria da razio vai de um ceticismo da ra- zio a um positivismo do sentimento. © Manuserito, 1998, XXI(1), pp. 227-249, April. 246 0 CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) dificulta leituras como aquela introduzida pela tradigao kanti- ana, que vé na filosofia de Hume “uma critica bem-sucedida do racionalismo dogmatico ¢ uma tentativa malograda de fun- dar a experiéncia na psicologia e imaginacao” ( p. 185). Uma outra observacao a fazer diz respeito 4 questao da refutacao do realismo e defesa de um estrito mentalismo em Hume, mais particularmente a propésito da referéncia deste a uma “espécie de harmonia estabelecida” entre 0 curso da na- tureza e o de nossas idéias. Plinio Smith dé conta em sua anali- se, de uma maneira bastante convincente, do problema do rea- lismo, mas nao chega a abordar a questio de um dualismo, que Hume parece estabelecer ao se referir a dois termos su- postamente (ou ironicamente) harmonizados. A explanacao mesma da interpretacao fenomenalista menciona 0 fato de o costume nos levar a esperar corretamente uma nova impressao a partir de impressdes presentes ou passadas. Ora, o fato de a realidade se definir em funcao de nossas percepgdes nao im- pede que as inferéncias derivadas dessas percepcdes devam se verificar nessa realidade. O “curso da natureza” € a “sucessao de nossas idéias” sao dois termos distintos - ao menos, é 0 que © texto deixa transparecer superficialmente. Nosso autor com toda certeza estaria de acordo que nao estamos falando aqui de um sistema solipsista, e que, por outro lado, nao devemos interpretar o texto como se Hume concebesse uma “experién- cia” constitufda pelo sujeito, A maneira kantiana. Seria preciso, portanto, tentar encontrar uma resposta também para esse problema”. ‘A terceira tese de O Ceticismo de Hume, por sua vez, que afirma a plena compatibilidade entre 0 ceticismo ¢ 0 empiris- 'S Michel Malherbe (1984) tem uma solucio prépria para a questio. Vejase, por exemple, p. 139. Ver também G. Deleuze, (1980) 126. © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. DEBORAH DANOWSKI 247 mo humeanos, refere-se — para responder a objecao de que Hume estaria cometendo uma peti¢ao de princfpio ao fazer a escolha empirista — a um conceito de “experiéncia” que me pa- rece até certo ponto questionavel. Ha varias maneiras de se ca- racterizar a “experiéncia” de que Hume parte; todas elas, po- rém, serao diferentes da experiéncia “irrecusavel” do raciona- lista. Assim, por exemplo, para Hume nao hé uma diferenca de natureza entre impressées e idéias; as percep¢oes sao todas inteiramente distintas entre si, sem qualquer laco que as una de forma indissohivel, ¢ nao supdem nada que as sustente € nenhum principio que as organize; a mente, dessa forma, nao é dada na experiéncia como um sujeito, mas como mera cole- cao de percepcdes; mais ainda, as relacdes em geral so sem- pre exteriores as idéias, e portanto nao se encontram na expe- riéncia mesma, nem podem ser deduzidas de um dos termos relacionados. Essa experiéncia empirista, a0 menos se a com- preendermos como o conjunto de todos esses aspectos € de outros mais, nao poderia constituir uma base inquestionavel para nenhuma filosofia racionalista. Nao me parece, portanto, haver “solo comum” possivel entre empirismo € racionalismo. Uma tiltima observacio, acerca da comparac’o entre os ceticismos de Hume e de Sexto Empirico, e da refutacao de que seria possivel ver no antigo pirronismo algo semelhante & filosofia da mente moderna. Concordando inteiramente com a conchusio a que Plinio Smith chega apés sua andlise, nao po- demos entretanto deixar de fazer uma ressalva. Embora Hume descreva a mente como um feixe de percepcées, nao podemos, se quisermos ser estritamente coerentes com seus textos, falar na pressuposi¢ao de um mundo interno e um mundo externo. O que Hume descreve dessa maneira nao é o homem, mas da- dos que sao indistintamente percepgoes ou objetos, € que so- mente apés um longo e tortuoso trabalho dos princfpios irre- © Manuserito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April. 248 O CETICISMO DE HUME (PLINIO J. SMITH) gulares da imaginacio serao separados em percepcoes ¢ obje- tos. As proprias idéias de um eu, do mundo exterior e de cor- pos externos sao (como nosso autor mesmo mostrou) desmas- caradas por Hume como ficgdes da imaginacio ~ irracionais, embora irrecusdveis. Por outro lado, nao se pode negar que a prépria aceitacao da necessidade ou inevitabilidade da construgao dessas ficgdes pela natureza humana reflete 0 quanto Hume ain- da se encontra inserido dentro da tradico mentalista cartesiana. Para finalizar, nado podemos deixar de lamentar a volta da maldicio do comando “change all’, que transformou na edi- c4o final do texto todas as ocorréncias de “humano(a)” em “humeano(a)” (as notas de pé de pagina escaparam, por pura sorte). Felizmente, embora incémodo, esse é um erro facil de ser detectado, mesmo que, em pelo menos uma ocasiao, possa levar momentaneamente 4 hesitag¢ao quanto ao termo corre- to'*, Q belo trabalho de Plinio Smith escapa ileso dessa tentati- va de vinganca das maquinas sobre os homens. Em solidarie- dade a ele, podemos dizer, como os americanos: there ought to be a law against it! REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS DELEUZE, G. (1953). Empirisme et Subjectivité: essai sur la nature humaine selon Hume. (Paris, Presses Universitaires de France). HUME, D. (1975) [1739-1740]. A Treatise of Human Nature. ed. LAA. Selby-Bigge, revised P.H. Nidditch (Oxford, Claren- don Press). ¥ Refiro-me A pagina 282, onde se discute “a concepcio humeana da mente humana... © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April DEBORAH DANOWSKI 249 ——. (1978) [1748, 1777]. An Enquiry concerning Human Un- derstanding. ed. L.A. Selby-Bigge, revised P.H. Nidditch (Oxford, Clarendon Press). —. (1947) [1779]. Dialogues Concerning Natural Religion. ed. Norman Kemp Smith (Nova York, Macmillan). MALHERBE, M. (1984). La Philosophie Empiriste de David Hume. (Paris, J. Vrin). STROUD, B. (1977). Hume. (Londres, Routledge & Kegan Paul). © Manuscrito, 1998. XXI(1), pp. 227-249, April.

You might also like