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CAPITULO 24 Espaco para crescer Sons Srone Mis Imagine que vocé tenha vivido distante de outras criangas durante a maior parte de sua infineia, Em vez de passar 0 tempo brincando, vocé aprenderia grego e algebra com um professor particular, ou se envolveria em conversas com adultos extremamente inteligentes. O que vocé teria se tornado? Isso foi mais ou menos 0 que aconteceu com John Stuart Mill (1806-1873). Ele foi um experimento educacional. Seu pai, James Mill, amigo de Jeremy Bentham, tinha a mesma visio de Locke de que a mente das criangas era vazia, como um quadro branco, James Mill estava convencido de que, se criasse uma crianga da maneira correta, haveria uma boa chance de ela se tornar um génio. Por isso, James ensinou seu filho John em casa, garantindo que o menino nio perdesse tempo brincando ou aprendendo maus hibitos. Contudo, ndo se tratava apenas de transmitir contetidos para aprovagdo em provas, muito menos de uma memorizago forgada ou algo desse tipo. James ensinou John a usar 0 método de questionamento socratico, encorajando o filho a explorar as ideias que aprendia, em vez de simplesmente repeti-las. O impressionante resultado foi que, aos trés anos de idade, John ja estudava grego antigo. Aos seis, escrevera uma histéria de Roma c aos scte jé entendia os didlogos de Platio na lingua original. Aos oito, comegou a aprender latim. Aos doze, tinha um conhecimento abrangente de histéria, economia e politica, conseguia resolver equagdes matemiticas e demonstrava um interesse apaixonado ¢ sofisticado por ciéneia, Ele era um prodigio. Aos vinte anos, j4 era um dos pensadores mais brilhantes de sua era, embora jamais tenha de fato superado sua estranha infancia e permanecido solitério e um pouco distante durante toda a vida. No entanto, ele se fornou um tipo de génio, Isso quer dizer que o experimento do pai fumcionara. Mill tornou-se um ativista contra a injustica, um dos primeiros feministas (ele foi preso por fomentar o controle de natalidade), politico, jornalista e um grande fildsofo, talvez.o maior fildsofo do século XIX. Mill foi criado como utilitarista, ¢ a influéncia de Bentham era imensa. A familia Mill passava todo verdo na casa de campo de Bentham, em Surrey, Mas, embora Mill concordasse com Bentham que a agao correta & sempre aquela que produz a maior felicidade, ele passou a acreditar que a explicagao de felicidade como prazer dada por seu professor era muito grosscira. Entdo, o jovem desenvolveu sua propria versio da teoria, uma versio que distinguia os prazeres mais elevados dos menos elevados. Se houvesse uma escolha, seria melhor ser um porco feliz chafurdando na lama ¢ enfiando a cara no coxo ou um ser humano infeliz? Mill pensava que era ébvio que escolheriamos ser um humano infeliz em vez de um porco feliz. Mas isso vai contra 0 pensamento de Bentham. Lembre-se de que Bentham dizia que tudo o que importa so as experiéncias prazerosas, independentemente de como sao produzidas. Mill, por outro lado, achava que podemos ter diferentes tipos de prazer e que alguns sao muito melhores que outros, tio melhores que nenhuma quantidade de prazer inferior jamais sera equiparavel 4 menor quantidade do prazer superior. Os prazeres inferiores, como aqueles que os animais podem experimentar, jamais seriam um desfio aos prazeres superiores ¢ intelectuais, como ler um livro ou ouvir um concerto. Mill foi mais aléme disse que seria melhor ser um Socrates insatisfeito do que um tolo satisfeito, isso porque o filésofo Sdcrates foi capaz de obter prazeres muito mais sutis pelo pensamento do que um tolo jamais conseguiria obter. Por que acreditar em Mill? Sua resposta era a de que quem experimentasse tanto prazeres superiores quanto inferiores preferiria os superiores. Um porco nao pode ler ou escutar misica classica, entio sua opinio sobre isso nfo valeria. Se um porco pudesse ler, ele preferiria ler a rolar na lama. Isso é 0 que Mill pensava. No entanto, algumas pessoas apontaram que cle supunha que todos fossem iguais a ele, ou seja, preferiam ler a rolar na lama. Pior ainda: logo que Mill apresentou as diferentes qualidades de felicidade (superior ¢ inferior), assim como as diferentes quantidades, ficou muito mais dificil perceber como poderiamos calcular o que fazer. Uma das grandes virtudes da abordagem de Bentham foi sua simplicidade, com todos os tipos de prazer ¢ dor avaliados na mesma moeda. Mill nao apresenta nenhuma maneira de calcular uma taxa de cambio entre as diferentes ocorréncias de prazeres superiores e inferiores. Mill aplicava seu pensamento utilitarista a todos os aspectos da vida. Ele pensava que os seres humanos se pareciam um pouco com as arvores. Se nio damos 4 drvore 0 espago necessério para cla se desenvolver, cla sera fraca e retorcida. Todavia, na posigao correta, ela pode realizar todo o seu potencial, atingindo uma altura e uma extensio consideréveis. De maneira semelhante, nas circunstancias corretas, os seres humanos prosperam, e isso gera boas consequéncias nao s6 para individuo em questo, mas também para toda a sociedade — a felicidade é maximizada. Em 1859, Mill publicou um livro curto, porém inspirador, defendendo sua visio de que dar as pessoas 0 espago que julgam ser conveniente para se desenvolverem era a melhor maneira de organizar a sociedade. Esse livro chama-se Sobre a liberdade e ainda hoje é amplamente lido. Paternalismo, termo originado da palavra pater, que significa pai, significa forgar alguém a fazer algo para o seu proprio bem (embora pudesse igualmente se chamar maternalismo para mater, palavra latina para mie). Se quando crianga vocé foi forcado a comer vegetais, entenderd muito bem esse conceito. Comer vegetais nao transforma ninguém em uma pessoa boa, mas seus pais insistem que é preciso comé-los para o seu préprio bem. Mill acreditava que nio havia nenhum problema com o paternalismo quando direcionado as criangas: elas precisam ser protegidas de si proprias © ter scu comportamento controlado de varias maneiras. Contudo, o paternalismo direcionado aos adultos em uma sociedade civilizada era inaceitivel. A ‘nica justificativa para isso era se um adulto corresse o risco de prejudicar alguém com suas proprias agdes, ou se tivesse sérios problemas psiquidtricos. A mensagem de Mill era simples e ficou conhecida como principio do dano. Todo adulto deveria ser livre para viver como quiser, desde que ninguém seja prejudicado no processo. Trata-se de uma ideia desafiadora para a Inglaterra vitoriana, quando muitas pessoas supunham que parte do papel do governo era impor bons valores morais s pessoas. Mill discordava. Ele acreditava que a maior felicidade viria dos individuos que tivessem uma maior liberdade na forma de se comportar. E nfio era $6 0 fato de o governo dizer as pessoas 0 que fazer que preocupava Mill. Ele odiava o que chamou de “tirania da maioria”, a forma de as pressdes sociais evitarem que a maioria faga o que quer fazer, ou se torne o que quer se tornar. Os outros até pensam que sabem 0 que nos tora felizes, e de modo geral esto errados. Nés sabemos melhor do que ninguém 0 que queremos fazer de nossa vida. E mesmo que nio saibamos, pensava Mill, € melhor que cometamos os préprios erros do que sermos forcados a nos adaptar a um modo de vida. Isso esti em consonincia como utilitarismo, pois Mill acreditava que aumentar a liberdade individual gera uma felicidade maior para todos do que se essa liberdade for limitada Os génios, de acordo com Mill (que era 0 prdprio génio), precisam ter mais liberdade do que todos nés para se desenvolverem. Eles raramente correspondem as expectativas da sociedade em relagZo ao seu modo de comportamento e costumam parecer exeéntricos. Todos nés perdemos quando o desenvolvimento deles é tolhido, pois nesse caso nio contribuem para a sociedade tal como o fariam se fossem mais livres. Portanto, se quisermos atingir © maior nivel possivel de felicidade, precisamos nao interferir na vida dos génios, a no ser que, obviamente, cles corram 0 risco de prejudicar os outros com as préprias agdes. Considerar 0 que eles fazem como algo ofensivo no é motivo para evitar que se comportem de determinado modo. Mill deixou isso bem claro: ofender nao deve ser confindido com fazer o mal. A abordagem de Mill teve algumas consequéncias perturbadoras. Imagine um homem sem familia que decida beber duas garrafas de vodea todas as noites. E facil perceber que ele est se matando aos poucos pela bebida. A lei deveria interferir nesse caso? Nao, dizia Mill, no até que cle corra 0 risco de prejudicar o préximo. Podemos conversar com ele, tentar convencé-lo de que ele esti se destruindo, porém jamais devemos forgd-lo a mudar seus modos; tampouco deve o governo evitar que ele consuma a prépria vida. E a livre escolha dele. Nao seria livre escolha se ele precisasse cuidar de uma crianga, mas, como ninguém depende dele, ele pode fazer 0 que quiser. Além da liberdade no modo de vida, Mill acreditava que era vital que todos tivessem liberdade para pensar e falar 0 que quisessem. Ele sentia que a discussio aberta cra um grande beneficio para a sociedade, porque forgava as pessoas a pensar arduamente sobre aquilo em que acreditavam. Se nao tivermos nossas visdes contestadas por visées opostas, provavelmente acabaremos sustentando-as como “dogmas mortos”, prejuizos que na verdade nio podemos defender. Mill defendia a liberdade de expressdo tendo como limite 0 ponto em que incita a violéncia. Acreditava que um jornalista deveria ser livre para escrever um editorial no qual declarasse que “os produtores de milho fazem com que os pobres passem fome”; todavia, se ele levantasse uma placa com as mesmas palavras na entrada da casa de um fabricante de milho diante de uma multiddo enfurecida, seria o incitamento a violéncia, algo proibido pelo principio do dano de Mill. Muitas pessoas discordavam dele. Algumas pensavam que sua abordagem a liberdade era centrada demais na ideia de que o importante é 0 que os individuos sentem em relagao a suas proprias vidas (algo muito mais individualista, por exemplo, que 0 conceito de liberdade de Rousseau, ver Capitulo 18). Outros acreditavam que ele abria as portas para uma sociedade pessimista que atruinaria para sempre a moral. James Fitzjames Stephen, contemporaneo de Mill, defendia que muitas pessoas deviam ser forgadas a um caminho estreito e ndo deviam ter muitas escolhas sobre 0 modo como viviam, pois muitas delas, dada a liberdade de agdo, acabariam tomando decisdes ruins e autodestrutiva: Uma rea na qual Mill era particularmente radical em sua época era o feminismo. Na Inglaterra do século XIX, as mulheres casadas nao podiam ter propriedades e tinham pouquissima proteg%io contra a violéncia e o estupro pelos maridos. Mill defendeu em A sujei¢do das mulheres (1869) que os sexos deveriam ser tratados igualmente, tanto no Direito quanto na sociedade de modo geral. Algumas pessoas que o cercavam diziam que as mulheres eram naturalmente inferiores aos homens. Ele questionava como era possivel afirmar isso quando as mulheres quase sempre foram proibidas de atingir todo o seu potencial: elas eram mantidas afastadas da educacao superior e de muitas profissdes. Acima de tudo, Mill queria uma maior igualdade entre os sexos. O casamento deveria ser uma relagdo de amizade entre iguais, dizia ele. Seu proprio casamento com a vitiva Harriet Taylor, que aconteceu tardiamente na vida dos dois, era uma relagdo desse tipo ¢ gerou muita felicidade. Eles cram amigos intimos (e talvez até amantes) quando o primeiro marido dela ainda estava vivo, mas Mill teve de esperar até 1851 para ser o segundo. Ela 0 ajudou a escrever tanto Sobre a liberdade quanto A sujei¢do das mulheres, embora infelizmente tenha morrido antes de os dois serem publicados. Sobre a liberdade foi publicado pela primeira vez em 1859. No mesmo ano surgiu outro livro ainda mais importante: A origem das espécies, de Charles Darwin.

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