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YARA FRATESCHI VIEIRA POESIA MEDIEVAL LITERATURA PORTUGUESA global editora 1987 INTRODUCAO 1. 0 desafio da poesia medieval. Vock, estudante brasileiro dos fins do século XX, esté a ponto de ler uma poesia de pelo menos cito séculos de idade, escrita num pafs diferente, mas numa lingua gue dizem ser a sua. Tudo nela envetheceu: a lipgua, os temas, as referéncias, as alusGes, os géneros, as fungdes Eos enanto.nele ‘que compéem a cul spacificamente brasileira, a vis literatura “estranha”” continua a pulsar/ Dizer que ela mantém 0 scu encanto “eterno” nflo corresponde bem 2 verdade: em todas as épocas, certas formas e expressbes lite: rérlas arcaicas si0 “redescobertas” ¢ passam, por isso, a fazer parte da histdria literdria viva; foi iss0 que aconteceu, no Romantismo, com a poesia medieval. No entanto, Eada épac extos de outra {cua maneira, interpretendo-os de acordo com os seus prSprios valo- res_e gostos, acres aturalmenté, 0 jue mio se coaduna mais 1s expectati Roaror-contemporinen, assim, esses fextos areaicos vém jé Mtrados © engrossados pelas selegSes e interpretagées de tantos séculos de or um lado, ise riqueza suratxtual sjuda-2 Bes ¢ alusdes perdidas; POF Su, contd, pode 50-9 qué estava 1é, mas apenas 0 que. “ndo estava’¢ ‘por ofhos diferentes e diferentes razde¥ a medieval € hoje, portanto, apesar de todos os cestudos que sobre ela se fizeram, ainda um desafio: trabalho _de auelogo a tenuate de sons todo um mundo de relagSs ‘partir de-Fragmentos, procurando os cacos complementares, limpans da poeira acumulada, Tavando_as_dive .das_de_tinta, srescentadas_portantas_geracbes de leitores. E para cheger a que ‘A pureza original de uma reconstituigio perfeita? O tra- 9 balho da histéria liters no mundo contemporaneo, diferente do trabalho de acumulacao erudita do século ‘XIX: a sua fungio é utra, ¢ criar_um clo tenso entre _o ob jeto do estudo e 0 sujeito qu uda, ou seja, “uma das razGes_de-trabalhar com 8 histéri €o sujeito reconhecer a sun propria ident “passado™" (thems na Idade Média, reconhecer na face do outro a nossa peop face modiieads, waz ave 6 Rost -tngo sem_dlnar ds sitar idade: cis a tarefa_para_a qual_a_leitura dos “ofer jesafio}) medievais_oferec 2. 0 retrato do Outro. Na segunda metade do século XII, Por figal separouse do teing asturoleonés para afirmarse como fing iiuependente, Apesar da separagéo politica, Portugal continuo. ¢ Tmanter Tagos econdmicos, socials e culturals com o resto do norosste saaye ala Tbética, especialmente com @ Galiza, com s qual for ce rr uma entidade lingitica distinta: a lingua ent@o falada ao fe do Douro era 0 chamado “gelego-portugués”, ou “galaico-Por fugués, A importincia desse dialeto ne vida cultural da Peninsula Thutica eté meados do séeulo XIII foi tio grande que o célebre osriena D Afonso X, 0 SAbio (r. 1252-1284), rei de Lefo e Castel re compos a maior parte de suas potsias; e a sua importing nel dos theyou a eruzar es fronteiras da Peninsula Thérica, pols hé aaerrento do seu emprego, como um dos dieletos pocticos do Gpoca, por trovadores provenssis: por exemplo, o oélebre descordo pluriliogle de Raimbaut de Vaqueiras, escrito entre 1199 © 1202. | poesia medieval portuguesa inclufda nesta Antologia, ¢ 220% posta_cin_galego-portugtts, razdo pel ‘também chamada_poe- sia ou lirica galego-portuguesa. Os seus ‘limites cronologicos, que nfo “poslem_sex_tracados_com_pree So enon s ademrse pelo menos dos tins ‘um convite eum d or Tada ao IV Pia possi do século X11 até a segunda metade ¢O © TV. Era_poesia composts. fubanecantada, nai coves dos res 2 magnates portuguesss isioe f eastglhanos, ¢ compunham-na todos aqueles que se_jelgavem 22% esde o rei e 0s principes, os bastardos dos reis, ros, esoudeiros, até a gente socielmente mais ic viviam de cantar e tocar nas cases ricas Poesia encontrou o seu apogeu primelremente ne come Oe “Alonso X, depois na de D. Afonso 111 de Portugal © na do neto do Rei Sébio, D. Dinis (x. 1279-1325). Aa ares poticas meeal eat Ripe Ro eable=i> ee cnt on composts ¢ ees Sampo iio onde se difundiu a poesia galego-portuguess, 0s graus hierdrquicos: bameabieti gg — trovador, que compée os poemas ¢ as msicas por mero prazer, sem fazer disso 0 seu ganha-pio. Pata isso devia ser, pelo. menos, esonomicamente independente e, na meioria dos casos, fidalgo. — jogral, que canta e recita as composigdes de outro, fazendo disso 2 sua profissio. = segrel, trovador que percorte a cavalo as terras, cantando nas diversas cores e casas ricas. Alugando a sua arte, mas no sendo um mero jogral, o segrel constitui um elemento perturbador da ordem hierdrquica trovadoresca, Essa hierarquia no passava, € claro, de um id: : > passava, , de um ideal normative, conepondenie esting de sovedade medieval. Naturalmen- ,, naquela como em outtas épocas anteriores & grande difusa SE ee ep cauuaci as anteameacegu classes dominantes: clero @ nobreza, Entretanto, por um lado, a rep on sia do_leto,-aue Tnclufa gente das mais di- “yersas condig6es ¢ origens, coniribuia para diluit os li iir_os limites rigidos ‘da disiibuigio da cultura; por outro fado, 0 gosto ae mais sofisticada e por diversGes mais requintadas que se desenvolvia entre a nobreza, atrafa oda uma populagéo_de_pessoas talentos Mas_de_cordiglio ‘para as quais imitar Sara torte constitufa estimulo ¢ fator de_ascensio social. E_presiso ainda ter em conta o papel de divulgador da cultura popular ¢,vemécula que 6 jogral assum, stinging desde os camades mais baixas da popu: Ingao até os castelos reais ¢ senhoriais. 3 Os Cancioneros. A. poesia galegoportuguess. deve ter circulado ha época da sue produgdo, sob a forma de “cadernos”, ou coletGneas individuais de poesias, normalmente acompanhadas da respectiva pauta musical. Hé indicagdes de que existiram cancioneiros com os eemas de D. Afonso Xe de D. Dinis, e pelo menos um desees ancioncivinhos” chegou até nés: © de Martim Codex. Agrupados { copiaclos em coleténeas gerais, constituem os Cancioneiros, como {0 eoniecemos hoje © dos quais nos restam trés, i uw Sabiase, por vagas referéncias feitas no século XV ¢ XVI, que linha existido um Cancioneiro das poesias medievais portuguesas, mas ja a partir do século XVI ninguém podia gabar-se de télo tido ‘em maos. No século XIX, contudo, 0 trabalho de um punhado de teruditos ¢ fil6logos trouxe & luz trés importantes coletdneas da poesia tnedieval portuguesa. — ¥Cancianelroda_Ajud (CA): assim chamado porque se encontrava, na altura em que foi publicado pela primeira vez, na Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa. Foi provavelmente copiado em fins do século XIII, na corte de D. Afonso X, para uso do seu nto, o rei portugués D. Dinis. Descoberto em principios do século, foi copiado e impresso algumas vezes antes que Carolina Michaélis de Vasconcelos apresentasso a sua edigio ctitica com comentérios, em 1904, © Cancioneiro da Ajuda contém apenas cantigas de amor © nio inclui os poemas de Afonso X, nem de D. Dinis ¢ dos poetas seus contempordneos. —G Cancioneiro da Vaticana (CV): 6 0 Cédice Vat. Lat, 4803, descoberto na Biblioteca do Vaticano e publicado na integra, em edigao diplomética, em 1875, pelo romanista italiano Etnesto Mo- naci. Foi copiado, de forma bastante insatisfatdria, nos fins do século XV ou comego do XVI, por iniciativa do humenista italiano ‘Angelo Colocci. bem mais completo que o Cancioneiro da Ajuda, incluindo cantigas de amor, de amigo, de escdrnio e maldizer, inclu- sive as de autoria de D. Afonso X ¢ D. Dinis — € Cancioneiro da Biblioteca Naciondl (CBN): meanuscrito ‘encontrado na biblioteca do Conde Brancuti, copiado no séeulo XVI também por iniciativa de Angelo Colocci e por ele anotado. Por ‘eausa disso, o manuscrito, que é ainda mais amplo que o da Vati- fea, passou a sex conhecido como Cancioneiro Colocci-Brancuti funtgs de ser doado & Biblioteca Necional de Lisboa, em 1924, ¢ dela ilflyar o seu atual nome. E o mais completo dos Cancioneiros me iligyais portugueses. Além de maior niimero de cantigas, inclui frag- montos de uma Arie de Trovar. Hives trés Cancioneiros, que em alguns casos se completam ini GulFOs se repetem, contém tudo o que nos resta da Iitien trova ft alogosportuguesa, desde os fins do séoulo XII até meados HV. 0 Cunolonviro da Ajuda previa a incluséo da pauta musical Giiilpas, mas Como, infelizmente para nés, a c6pia néo chegou ‘Peippletada wm todos os seus detalhes, no temos acesso « esse Componente fundamental dessa poesia, Por um fellz ucuso, porém, em tudo se perdeu: em 1914, o antiqutio madilenho Peto Vinal fuupeiava o achado de um Cancionetinho de Martin Codex, con rig fet cantigas de amigo dessefogral, dos quals gels acompe ls da respectiva notagio musical. Em’ 1915, Vindel publicou uma edieao de pouquissimos exemplates, com a reprodugao fot sréfica do manuserito, propiciando desta forma o aparecimento fur turo de edigdes critica e estudos, bem como de interpretactes must. cais das cantigas de amigo de Martim Codax. Hed A leitura dos Cancionei ginal. é tarefa ‘cit pettus dos_Cancioneitos._na_seu_ estado origi a dificil, no s6 para os leigos, mas até eh ear 6 dos estragos naturais-causadoy pal ee uso indevido (paginas arrancade é uso indevido (pépinas arrancades, margens cortades), € pre considerar ainda que dols-dox Canslonsito aum sviedoe on amanuenses italianos e ibericos de dives argon manuenes lio s origem € cultura, tempos den Por sia—veZ, haviem -compostas em diferentes momentos da evolugao da lingua, E preciso lembrar ainda que_nfo_dispomos_de_viios Cancioneis, a so om apna, mes ois deo qua apenas parcialmente, tornando definitivos lquer_perda ou engano. ac Os estudiosos responsév. : esponséveis pela descoberta dos Cancioneitos, facta nals que prosseguiram © seu trabalho, iniciaram a Ard tarefa de Jer e interpretar esse material. O primeito resulta : fade It in rimeiro resultado yerda- fGiramente significative, em termos de Ietura e quantidade de in The ate Post ao dispor dos letores, como fruto de pesgulsas que he ram pelo menos 25 anos de vida, foi olerecid sonst, : vida, foi oferecido por Gtolina. MicheéliS de Vasconesl6} a0 publicar’ em 1904 a edigno a ee da_Ajuda, em dois Volumes, NO-primeird : uublicou asta Teitura dos poemas contidos 1 Dublico S08 Tefura dos oemas contides no Cancioncro, acres jeuindorthes os nomes dos autores © preenchendo algumas lacunas tlo manuscrito, gracas & comparasao com os manuscritos encontrados Mol Alée dos comentirios e das notas explicativas, a erudita valack® Santow a cada pocma uma parétrase em alemio. No segundo $slume, oferece ao Ieitor uma quantidade inerivel de informayces bre © manuserito, as suas diversas edigdes, os seus : fitos histéricos relevantes ume ates tigas, bem como sobre a vid: re a vida no noroeste da Peninsula na alta CoMposigtio dos pocmas. a Na Bibliografia, © leitor encontrar uma relaglo das edigées ‘dos Cancioneiros, bem como das edigdes parciais de acordo com © ‘genero ou com 0 autor, Poética medieval. A poesia trovadoresca distingue-se das demais formas posticas medievais anteriores a cla por ser profana, em lingua yerndcula (por oposigo & demais produgao em latim), silébica (e nfo ‘quantitativa), ¢ ainda por ser Hiriea e obra de individuos de identi- dade conhecida. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, como 6 disse, conser- varam-se os fragmentos de uma Arte de Trovar, ou Arte Poética, {ue nos ensina algumas coisas a respeito da forma como essa poesia foi recebida na sua época, ou pouco tempo depois.* ‘Assim, no que se refere aos géneros, o anGnimo autor da Arie de Trovar classilica 0s poemas contidos nos Cancioneiros em tres grandes grupos: as cantigas de amor, as cantigas de amigo © 93 cart tigas de escirnio e maldizer. Q critério utilizado para distinguir_as ccantigas de amor das _de_amigo diz respeito 90 emissor_cm igo, AS_cantigas “das duas outras pela sua “Tntengio ofensiva”, que pode ser mais ou menos se_usam palavr 5, isto &, equtivocas, <0 de escimio; se ‘go conirério, ofendem abertamente, sf0 de maldizer. Da perspectiva de Arie de-Trovar. portanto, a julgat-pelo_qus-dela-resis-s80_ dois 6s principals crtérios constitutivos do génefo: de um lado, o conted= ic ‘as_distingue em lirica amorosa_ou_agressiva; de outro, © ‘ques sepata-em-poosia-masoulina-ou-feminina. mndo sempre presente que o conceito de género néo pode ser » de forma normativa ¢ absolut, 1 te _reflete-de Torma Uinimica as expectativas do poeta e do_seu_piblico, vamos tentar [enificar_algama Se arctericne dos glnefos_salepoporuus as “dos genefos_galepo-portugueses, para Os quais ‘conservamos @ denominagio tradicional, ‘Vamos examinar em primeiro lugar a_questio dis personigens encOntradas no texto. Na_cantign de_amor, o-cimor ¢ um "eu” ing e jinabivic ntual € a mulher, chamada “minha 1” (observar a forma masculina “senhor”, orfunda do yooubu- {rio feudal); na cantiga de amigo, o emissor € um “eu” feminino, 9%, ow amado. Em alguns poems, ods nfo é 0 “amigo”, mas algume-forna “ _4(8) irma(s) ou amiga(s), a natureza, caso {SRPHSEE na arma de 3 pein. Se poses importincia ao fato de ser ele ou ela o sujei a fto_de sr ele ou cleo wcio males oeosen — a A simples presenga das formas “mina s ‘Yetsos, como yocativo ou nao, jé tinha a i expectativas do ouvinte para outras propric: -sintéticas_ov na principal da cantiga de amor é « coi Suofrinento emoiaso do poeia br cats do amor oe pela mulher. Os principals tices desenolvidos sfo:-o dh dama (empre in F a0 poeta) 0 desprezo da mulher, a “coita”” do mulher, chamada pelo ovador “minha senhor’ termos “superlativos € abstratod pincer Hora. embors, elas cantigas de esodrio ¥ maldize, fi 4 sue superioridads bisica 5 sup 5 lag6es_hiera Mit deierminam o patadoro que subjaz a0 amor rds. a. ologia- dos_prdprios trovadores provengais. i fiv'a nologia dos _préprios trovadores provencais, & fin’amors: 2 possibilidade de tealizagio do desejo Doser, mas gozar di de niio-pos- M10, amor-Minne contend 6 i le a ; inne contendo ndo s6 0 desejo sen B tililtier verdadeiramente “mulher” aoe aaa orto ~transpostpara_0_plano—secilar,que—quer “haye_and have i" 0 exericio do amor_acaba assamindo carter de foma ora moral ¢ artstico eee A cantiga de amigo, \ cantige de amigo, por sua vez, situese num ambiente cam: fosino? ec miulberemrgerat que nela Tala nfo € a "senhora” Uno Ma a doncela das seis € dos campos. O.tema downanle 2iasios, \)divretscag amorosa; nas suas dlersa5 modalicades: ora como que se (ilabelece um didlogo entre ga de amore rbeee u ntre a cantiga de amore ade amigo, justi- Neando-se-entao-a mulher da sua falta de correspondéncta a9 "cor iso” amoroso do_amigo: ora é e mulher que se que colla”-amoi i io oila”” ainorosa, provocada seja pela incorre cia_do amigo, parago_a que os obrigam_diversos fatores, como TbigaO materna, Bs trabalhos do may; ora podemos ainda 4 nobreza empobrecida, das soldadeiras (especialmente & Maria Bal wey ete. Uma descrigéo mais detalhada ¢ proposts Por Tavani, que distingue, além do tipo parédico da cantiga de amor (eseémio gue tor), quatro campos semanticos principals Nett cantigas: tye ultraje; 2) a alimentagSo: 3) a polemics oni grupos socials a ategorias profiulonsis; © 4) 0 cbscena® Brees RI natural one dgo fo estanques, mas se sobrepoem de diversas ‘maneiras. Vor causa da sua linguagem As vozes bastante ruts # ccantigas de exedmnio © maldizer (6m sido geralmente excluieas das antologias Ge possin medieval, ¢ foi preciso esperar até 1005, Pee que Rodri- gues Lapa puscsse a disposigao dos estudicse® ¢ interessados uma eijefo das cantigas desse género constantes 0 Cancioneiro da Vax ticana e da Biblioteca Nacional Versificagdo, A grande maiorin dos poemas trovadoresoot galego-por- Toguctespossui tes ov quatro estrofes (ow coor, Me terminclogia| eee de Trovar), sendo a minoria constituida de Porm de duas oe are es menos sind, de uma (aalguns casos, pode legitima- sunte levantar a hipétese de se tratar de poemas ‘ncompletos) va eatrfe mats comum contém seis versos (ou palavras): vunidos por és rimas, dispostas da sepuinte marcia: abbace ou ababces Por epunda possibilidade € constituida pela eteore de sete vers0s, Mando que os seis primelros se unem por tes ripias 6 “iltimo retoma vere das duas rimas iniciais (abbacca, abbaccb, ‘ababecb). Um ter se ipo oferece umm distico monorrimo mals tm verso & uma poesia inculta.” Gualquer que tenha sido a origem dessa poesia, paralelistica, quando a confrontamos com a sua companheira de Cancioneiro, & intiga de amor, percebemos que nio estamos diante de uma poesia satis “em estado puro” do ventre que a gerou, Ela 6 poesia pelo srenos assumida, Ou entéo reelaborada, pelos mesmos poetss que Gompuseram as cantigas de amor e de escdrnio e maldizer, para se- coe rvantadas na corte, © “eu” feminino dessas cantigas é no mo~ vento da composi¢ao por nés eaptada, uma fieso, um papel lirico Tesumido pelo trovador, Tratase antes de uma mudanga de registro: popularizante, no caso das cantigas de amigo, e aristocratizante, no poke das cantigas de amor.” As de esedrnio e maldizer podem optar por um ou por outro. A distingZo no ¢, contude, absolula, mas Representa apenas a tendéncia geral do lirismo galego-portugués. 4, Nesta Introdugdo, procurei levantar alguns problemas bésicos Tigados & leitura da poesia lirica galego-portuguesa: naturalmente, ddadas a complexidade do assunto, as dimensdes deste trabalho, de propésito meramente introdutério, e as minhas prOprias LimitagSes, prota coisa ficou de fora, Para o leitor fascinado ¢ curioso, in- Gluise uma bibliografia sucinta, que The possa servir de ponto de partida. ‘Chamo a atengio para o fato de ndo se ter inclufdo nesta ‘Antologia nem a poesia religiosa das Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso X, nem a poesia palaciana do Cancioneiro de Resende: essa opgio teve que ser feita, por causa da limitagio de espace. No que se refere & Antologia propriamente dita, guioume © dosejo de por & disposigio do leitor um ntimero equilibrado e ve ide amor, de amigo ¢ de escérnio © maldizer, Em jure! adotar ume leitura jé existente que me parecesse indo os recursos de que dispunha no momento” Para fio ottografica, segui, de maneira geral, as “Notmas para textos medievais portugueses”,” com as seguintes Aranscrevi por i 0 h indicativo de semivogal (mia por fiervei on final em palavras encurtadas (en por erde) Wilureza desta edicao impedia o peso de notas is cantigas, Wie jluci necessério e possivel, fiz alguma chamada a ‘especificos nas notas bibliogréficas referentes a cada fim do volume, o leitor encontraré um Glossério com os le me pareceram mais dificeis de compreensio para uma @ontempor’nea a izando este trabalho, agradecer a0 Prof. Massaud | mestre sempre presente hi tantos anos, nfo s6 0 convite (jgunizar esta Antologia, mas também a leitura atenta © as (Gos, de que me vali nas diferentes vers6es por que passou 0 ner, MARTIM CODAX Provavelmente foi jogral, galego, de meados do século XIII. As ‘suss sete cantigas encontram-se nos Cacioneiros da Vaticana ¢ da Biblioteca Nacional, No entanto, um manuscrito isolado, contendo s sete poemas ¢ a notacdo musical de seis deles, foi encontrado pelo antiquétio madrilenko Pedro Vindel, que os publicou em 1915, To- des as cantigas sfio de amigo, de feigo popular, isto é, tém estrutura Peralelistica ¢ refréo; em conjunto, parecem formar, nas palavras e Reckert ¢ Macedo, “uma espécie de vilancete semanticamente pi ‘alclistico as prestagdes”, ou seja, os poemas combinam diverses pos- ‘bilidades teméticas: presenca atual, futura ou passada da amiga na praia, cidade ou igreja de Vigo, onde receia no encontrar-se, confia encontrar-se ou jd se encontrou com o amigo. Quatro cantigas si Barcarolas © dessas, a de n.? 25 (“Quantas sebedes amar amigo”) ‘merece minuciosa anélise de Roman Jakobson: identificando os ele- menios que, através de um jogo de semelhancas e oposigces, conse- guem entrelagar o tema marinho ¢ o amoroso, e gradualmente incluir promover 0 “ego do remetente feminino”, Jakobson chama a aten- $40 para a construséo fonoldgica e gramatical dessa cantiga, que considera um “raro espécime das jias verbais do século XIII” ¢] Ondas do mar de Vigo, se vistes mew amigo! e ai, Deus, se verré cedo! ‘Ondas do mar levado, se vistes meu amado! e ai, Deus, se verré cedo! Se vistes meu amigo, © por que eu sospiro! e ai, Deus, se verré cedo! Se vistes meu amado, por que hei gram cuidado! € ai, Deus, se verré cedo! JIN 491 (CBN 1278) [25] Quantas sabedes amar amigo treides comig’ a lo mar de Vigo banhat-nos-emos nas ondas. (Quantas sabedes amar amado treides comig’ a lo mar levado ¢ banhar-nos-emos nas ondas. Treides comig’ a lo mar de Vigo © veeremo-lo meu amigo banhar-nosemos nas ondas. Treides comig’ a lo mar levado veeremo-lo meu mado e banhar-nos-emos nas ondas. JIN 495 (CBN 1282) PAAI GOMES CHARINHO [27] As frores do meu amigo briosas vam no navio; € vans’ as frores, daqui bem com meus amores: das som as frores dequi bem com meus amores. As frores do meu amado bbriosas vam eno barco; e vam-s’ as frores daqui bem com meus amores: idas som as frores daqui bem com meus amores Brigsas vam no navio pera chegar ao ferido; e-vam-s’ as frores daqui bem com meus amores: idas som as frores dagui bem com meus amores. Briosas vam eno barco pera chegar ao fossado; e vam-s’ as frores daqui bem com meus amores: idas som as frores daqui bem com meus amores. 110 Pera chegar ao ferido, servirmi, corpo velido; vams' as frores daqui bem com meus amores: fdas som as frotes daqui bem com meus amores. Pera chegar ao fossado servir-mi, corpo loado; e vams’ as frores daqui bem com meus amores fdas som as frores daqui bem com meus amores. JIN 220 (CBN 817) ut AIRAS NUNES © potco que se sabe da sua biogratia indice que foi clérigo, isto é, homem de letras, e que freqiientou a corte de D. Sancho IV de Castela. Floresceu, portanto, no iltimo quartel do século XIII Deixou um cancioneiro relativamente pequeno em numero de canti- 25 (7 de amor, 3 de amigo, 4 de escdmio © 1 pastorela), mas rele- yante pela forma elaboradamente pessoal que soube dar aos cénones da litica provengal e galego-portuguesa. Demonstra um conhecimento rico e variado da literatura européia de além-Pirencus, que se revela no 36 na citago de versos em provengal, mas também na escolha de formas occitanicas, como a pastorcla, o sirventés politico ¢ mo- ralizante, ¢ na assimilagéo dos principais conceitos da fin‘amors, como pot exemplo, a alegria de amar e a “mesura”. As suas cantiges mantém um didlogo intertextual explicitamente assumido: assim, na pastorela “Of hoj’ eu hla pastor cantar”, os versos do refrdo so partes de cantigas de amigo, algumas jé identificadas como de outros trovadores, e que ele refez. A famosa beilada ‘‘Bailemos nés, jé todas trés, ai amigas” é uma refacc#o muito mais elaborada da cantiga de Joam Zorro “Bailemos agora, por Deus, ai velidas”, ¢ a cantiga de amor “Vi eu, senhor, vosso bom parecer”, se € certa a hipétese de Tavani, tem como refrdo versos em provencal “mesclado de elemen- tos hispano-romances.” As cantigas de escdrnio sfo, como os sirven- teses provencais, de caréter ativamente politico e moralizante, desen- volvendo duas delas o tema da decadéncia dos costumes eclesiésticos. [55] Bailemos nés ja todas trés, ai amigas, 8 aquestas avelaneiras frolidas, © quem for velida, como nés, velidas, se amigo amar, 88 aquestas avelaneiras frolidas verré bailar. Bailemos nés ja, todas trés, ai irmanas, 8 aqueste ramo destas avelanas, © quem for Iougana, como nés, louganas, se amigo amar, 86 aqueste ramo destas avelanas verrdé bailar. Por Deus, ai amigas, mentr’ al non fazemos, 80 aqueste ramo frolido bailemos; © quem bem parecer, como nés parecemos, se amigo amar, 86 aqueste ramo, sol que nds bailemos, verré bailar. GT 7 (CBN 879) 134] Of hoj’ eu hia pastor Gr 126 du cavalgava per hifa ribei © @ pastor estava sentheira; © ascondi-me pole ascuitar, © dizia mui bem este cantar “Solo ramo verd’ ¢ frolido vodlas fazem a meu amigo; choram olhos d'amor.”” E @ pastor parecia mui bem, € chorava ¢ cstava cantando; © eu mui passo fui mi achegando Pola oir, ¢ sol non falei rem; © dizia este cantar mui bem: “Ai estorninho do avelanedo, cantades vés, © moir’ eu e pen’ © damores hei mal!” E eu ofa sospirar entom © queixava-se cstendo com amores © fazia guirlanda de flores; des i chorava mui de coragom © dizia este cantar entom: “Que coita hei tam grande de sofrer, amar amigu’ ¢ non ousar veer! E pouserei solo avelanal!"" Pois que a guitlands fez a pastor foise cantando, indos'en manselinh: € tomei-m’eu logo a meu camio, 2 de @ nojar non houve saber; ¢ dizia este cantar bem a pastor: “Pela ribeira do tio cantando ia Ia virgo amor; quem amores ha como dormiré, ai, bela frot?” 1 (CBN 868, 69, 70) DOM DINIS 135) Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, © u €? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u 6? Se sabedes novas do meu amigo, ‘quel que mentiu do que pés comigo? Ai Deus, eu é? Se sabedes novas do meu amado, quel que mentiu do que mi ha jurado? Ai Deus, eu 6? Vos me perguntades polo voss’ amigo © eu bem vos digo que € san’ ¢ vivo, Ai Deus, ¢ u 6? ‘és me perguntades polo voss" amado, © eu bem vos digo que é viv’ e sano, Ai Deus, e u 6? E eu bem vos digo que é san’ e vivo, © seerd vosc’ ant’ 0 prazo safdo. Ai Deus, ¢ u 6? E cu bem vos digo que 6 viv’ ¢ sano, © seerd vose’ ant’ o prazo passado, Ai Deus, eu 6! HL 92 (CBN 568) = Canis de Anign — De que morredes, filha, a do corpo velido? — Madre, moiro d' amores que mi deu meu amigo. Alva e vai liero, — De que morredes, filha, a do corpo loucio? — Madre, moiro d’ amores que mi deu meu amado, Alva e vai liero. Madre, moiro d’ amores que mi deu meu amigo, quando vej' esta cinta, que por seu amor cingo. Alva e vai liero. Madre, moiro d amores que mi deu meu amado, quando vej' esta cinta, que por seu amor trago, Alva e vai liero, Quando vef esta cinta, que por seu amor cing © me nembra, fremosa, como falou comigo. Alva e vai liero. Quando vej’ esta cinta, que por seu amor trago © me nembra, fremosa, como falamos ambos, Alva e vai liero,

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